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DESCRIÇÃO Estudar a dinâmica do capitalismo, suas crises e reinvenções nas últimas décadas dos séculos XX e primeiras décadas do XXI. PROPÓSITO Compreender os fenômenos do capitalismo contemporâneo, parte fundamental na dinâmica mundial, é importante para profissionais que precisam analisar o mundo contemporâneo. OBJETIVOS MÓDULO 1 Descrever a dinâmica do modelo neoliberal de acumulação capitalista MÓDULO 2 Examinar o fortalecimento dos projetos políticos que, no início do século XXI, questionaram o modelo neoliberal do capitalismo internacional MÓDULO 3 Identificar o fortalecimento de populismos de extrema-direita INTRODUÇÃO O capitalismo se consolidou como realidade histórica num longo e complexo processo, que teve início no século XIV e se estendeu até o final do século XVIII. Nesse período, várias experiências colaboraram para o amadurecimento, lento e não linear, da ordem capitalista: a crise do feudalismo, a formação do Estado moderno, as reformas religiosas, a revolução científica, o descobrimento da América e as revoluções burguesas, especialmente a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. No início do século XIX, o capitalismo já era realidade estruturada e não havia região no mundo imune à sua influência. Mas seria equivocado supor que a afirmação do capitalismo como modo de vida hegemônico significa que o sistema não foi desestabilizado por crises internas e por questionamentos daqueles que tentaram superá-lo, propondo ordem social alternativa. Ainda no século XIX, podemos destacar as revoluções sociais de 1848 e de 1871 na França, que trouxeram ao primeiro plano de suas reivindicações a superação do capitalismo. A crise geral de 1873 mostrou como a própria dinâmica interna do capitalismo era capaz de abalar o sistema. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi, em parte, resultado das contradições internas do capitalismo. Ao mesmo tempo, acontecia a Revolução Russa, que deu origem à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, com seu projeto de superação do capitalismo através da implantação do comunismo. Poderíamos falar, ainda, da crise geral do capitalismo da década de 1929, da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da Guerra Fria, na segunda metade do século XX. Em 1973, o capitalismo foi balançado por mais uma crise geral. A história do sistema econômico, portanto, é a história de suas mais diversas experiências críticas. É uma história marcada mais pela instabilidade do que pela estabilidade. Aqui, neste conteúdo, estamos interessados em estudar os capítulos mais recentes dessa história. Neste nosso século XXI, novamente a crise do capitalismo é realidade incontornável, seja no aspecto político, com a emergência de populismos de extrema-direita que ameaçam o modelo da democracia liberal burguesa, seja com a pandemia da covid-19, que colocou o ocidente capitalista de joelhos. Nossa reflexão está dividida em quatro momentos: primeiramente, tratamos do neoliberalismo, modelo de acumulação capitalista hegemônico no final do século XX e que se tornou alvo de questionamentos ao longo das duas primeiras décadas do século XXI. Em seguida, estudamos os dois governos do democrata Barack Obama nos Estados Unidos (2009-2017), especialmente o programa “ Obama Care”, que, em diversos aspectos, tensionou o modelo javascript:void(0) neoliberal. Depois, nos debruçamos sobre os governos de centro-esquerda que ascenderam ao poder na América Latina na primeira década do século XXI, negando as premissas neoliberais. Ainda aqui, abordamos o desenvolvimentismo chinês, o grande adversário do neoliberalismo ocidental no cenário mundial. Nosso próximo passo é analisar a dinâmica ideológica dos populismos de extrema-direita, que se fortaleceram em meio à crise social provocada pelo neoliberalismo e colocaram em risco o modelo da democracia liberal burguesa ao longo da década de 2010. Por último, examinamos os efeitos da pandemia da covid-19 para o sistema capitalista internacional. OBAMA CARE Programa de saúde governamental do governo Obama, que foi muito criticado pela oposição. MÓDULO 1 Descrever a dinâmica do modelo neoliberal de acumulação capitalista CONHECENDO O NEOLIBERALISMO Assista ao vídeo abaixo com o professor Rodrigo Perez apresentando o papel do neoliberalismo. NEOLIBERALISMO: HISTÓRIA E CONCEITOS FUNDAMENTAIS Manifestação contrária ao Imposto Comunitário na Trafalgar Square, em 31 de março de 1990. No final da década de 1980, alguns governos de importantes países centrais, como Estados Unidos e Inglaterra, começaram a colocar em prática uma modalidade de gestão político- administrativa que ficaria conhecida como “neoliberalismo”. O presidente norte-americano Ronald Reagan (1911-2004) e a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1925-2013) foram os primeiros líderes a seguirem o receituário neoliberal, caracterizado pelo corte abrupto nos gastos do Estado, o que significa precarizar serviços públicos e reduzir o arco de direitos sociais garantidos pelo governo. Em questão está o debate sobre qual seria a função do Estado, que, na lógica liberal, deve ficar restrita à garantia da segurança interna e da soberania nacional, intervindo o mínimo possível na economia, que deveria funcionar de acordo com a “lei do livre mercado”. Assim, a relação capital versus trabalho, entre patrões e empregados, aconteceria sem nenhuma mediação do poder público, com o Estado se eximindo da responsabilidade de garantir proteção social aos trabalhadores e aos pobres em geral. Margaret Thatcher e Ronald Reagan chegaram ao comando político de seus países comprometidos com a agenda neoliberal, o que fez com que seus governos tenham sido marcados por muitas tensões e protestos promovidos pelos trabalhadores e por outros setores da sociedade civil organizada. Thatcher já era figura relevante na cena política inglesa desde meados da década de 1970, quando liderava a oposição conservadora contra o governo trabalhista comandado por James Callaghan (1912-2005). O presidente Ronald Reagan com a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, em Camp David, em 1986. Em síntese, o governo trabalhista estava fundado no projeto da social-democracia, que defende o Estado como centro planejador do desenvolvimento econômico, da promoção da justiça social e da ampliação dos direitos sociais, como alimentação, moradia e proteção laboral aos trabalhadores. Todos esses direitos estariam garantidos através daquilo que alguns economistas chamam de taxação progressiva da sociedade. OU SEJA, AS PESSOAS PAGARIAM IMPOSTOS DE ACORDO COM SUA RIQUEZA. OS RICOS PAGARIAM MAIS E FINANCIARIAM OS DIREITOS SOCIAIS DOS MAIS POBRES, QUE PAGARIAM MENOS IMPOSTOS. ASSIM, O ESTADO FUNCIONARIA COMO GARANTIDOR DA EQUIDADE SOCIAL. Como podemos perceber, trata-se de uma concepção de Estado completamente diferente daquela que caracteriza o pensamento neoliberal. Margaret Thatcher se fortaleceu como liderança política questionando esse uso do Estado, argumentando que a taxa tributária necessária para garantir a manutenção da social-democracia seria demasiadamente alta e oneraria equivocadamente a sociedade civil, sufocando a iniciativa privada e o empreendedorismo individual. Assumindo o comando político da Inglaterra em maio de 1979, Thatcher fundou seu governo na ideia de desregulamentação: alterou a legislação trabalhista, o que provocou muitos protestos organizados pelas principais centrais sindicais do país; privatizou empresas públicas e diminuiu impostos. A popularidade que Thatcher havia acumulado nos anos de oposição diluiu-se rapidamente, a ponto de ela ter sido alvo, em 1984, de uma tentativa de assassinato. TENTATIVA DE ASSASSINATO A tentativa ocorreu em um atentado terrorista reivindicado pelo IRA (Exército Republicano Irlandês), com uma explosão no Grand Hotel Brighton, onde ocorria uma reunião do partido conservador. javascript:void(0) Grand Hotel após a explosão de atentado ao assassinato de Thatcher. RonaldReagan. Ronald Reagan foi eleito o 40° Presidente dos EUA em novembro de 1980, após derrotar o candidato democrata Jimmy Carter, que, na época, era o presidente em exercício, tentando reeleição. A vitória de Reagan foi esmagadora e traduziu um desejo de mudança compartilhado pela sociedade norte-americana. A situação, em parte, era semelhante à inglesa. Na década de 1930, em virtude da crise geral do capitalismo, os Estados Unidos, sob a liderança do presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), estabeleceram um tipo de governo que podemos definir como sendo de matriz social-democrata. O Estado se tornou o principal investidor e, por meio de obras públicas, gerou milhares de empregos, agindo também como protetor social dos mais pobres, com forte legislação trabalhista. Isso tudo, às custas e tributação progressiva da sociedade civil, na qual os ricos pagam mais impostos e os pobres são os principais receptores dos direitos sociais garantidos pelo Estado. O plano de reestruturação econômica idealizado por Roosevelt, que ficou conhecido como New Deal, impactou o mundo no período entreguerras, demonstrando os limites práticos da tese do livre mercado, fundamental para o repertório liberal a partir do século XVIII, desde os textos de Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823). As guerras mundiais e o colapso do sistema capitalista internacional mostraram que, em momentos de crise aguda, somente o Estado é capaz de promover movimentos anticíclicos e estimular a economia quando os investidores privados estão assustados e pouco dispostos a correrem riscos. Segundo Pierre Dardot e Christian Laval, foi a “necessidade prática de intervenção do governo javascript:void(0) que pôs em crise o liberalismo dogmático, pautado numa ideia de desregulamentação que nunca se consolidou na prática” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 38). NEW DEAL O plano tinha uma relação com um modelo econômico baseado em um capitalismo dirigido e intervencionista conhecido como keynesianismo. Sinais para a eleição de 1936 nas ruas de Hardwick, Vermont, EUA. A cultura do New Deal foi fundamental para a superação da crise catastrófica que se abateu sobre os EUA entre as décadas de 1930 e 1950. Porém, a partir do final da década de 1960, ganharam força os questionamentos ao modelo rooseveltiano do Estado provedor. Como demonstra Jürgen Habermas, as críticas à social-democracia, nos EUA, tiveram o resultado de refundar a direita norte-americana, dando início àquilo que o autor chama de “A nova obscuridade”. Além das críticas à carga tributária necessária para a manutenção do experimento social-democrata, ganhou forma, também, um tipo de crítica cultural, que explicava o comportamento considerado desregrado da juventude (movimento pelos direitos civis da população negra, movimento hippie, festival de Woodstock) pelas alegadas comodidades que o “Estado assistencialista” possibilitava. Isso teria dado origem a uma geração preguiçosa, hedonista e pouco afeita ao trabalho. SEGUNDO OS NEOLIBERAIS, A SITUAÇÃO DE COLAPSO MORAL QUE ESTARIA SENDO VIVENCIADA NOS EUA, NAS DÉCADAS DE 1960 E 1970, SE EXPLICAVA PELA “INFLAÇÃO DE EXPECTATIVAS E REINVINDICAÇÕES IMPULSIONADA PELA CONCORRÊNCIA ENTRE OS PARTIDOS, PELAS MÍDIAS DE MASSA, PELO PLURALISMO DE ASSOCIAÇÕES ETC. ESSA PRESSÃO DAS EXPECTATIVAS DOS CIDADÃOS “EXPLODE” EM UMA AMPLIAÇÃO DRÁSTICA DAS TAREFAS ESTATAIS. OS INSTRUMENTOS DE CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO SE SOBRECARREGAM COM ISSO. A SOBRECARGA LEVA TANTO MAIS ÀS PERDAS DE LEGITIMIDADE QUANTO O ESPAÇO DE AÇÃO ESTATAL É ESTRANGULADO POR BLOCOS DE PODER PRÉ- PARLAMENTARES, E QUANDO OS CIDADÃOS RESPONSABILIZAM O GOVERNO PELAS PERDAS ECONÔMICAS PERCEPTÍVEIS. ISSO É TANTO MAIS PERIGOSO QUANTO MAIS A LEALDADE DA POPULAÇÃO DEPENDE DE COMPENSAÇÕES MATERIAIS. (HABERMAS, 2015, p. 67) Foi nesse clima de acirrado conflito e intensas disputas entre concepções de Estado diametralmente opostas que aconteceram as eleições presidenciais de 1980. Todo o debate eleitoral girou ao redor do legado do modelo rooseveltiano. A vitória esmagadora de Reagan decretou um novo momento na história dos EUA, caracterizado pela radicalização da perseguição às esquerdas, pelo enfraquecimento dos sindicatos e pelo desmonte da legislação destinada à proteção social. Ronald Reagan dando seu discurso de aceitação da nomeação na Convenção Nacional Republicana, em Detroit, no estado de Michigan, em 17 de julho de 1980. Com todo custo social que tiveram, os governos de Thatcher e Reagan conseguiram diminuir os gastos públicos e garantir maior rendimento aos setores mais dinâmicos e poderosos do capitalismo na época, transformando o modelo neoliberal de gestão em padrão hegemônico. A FORÇA DO NEOLIBERALISMO PARECIA INABALÁVEL, TENDO SIDO COROADA PELO CONSENSO DE WASHINGTON, REALIZADO EM 1989. O “consenso”, como ficou conhecido, foi um fórum internacional comandado pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional, o FMI, e pelo Departamento de Tesouro dos EUA que definiram o receituário neoliberal como o único tecnicamente correto para administrar as economias nacionais. O encontro estabeleceu algumas “regras de ouro” para a boa prática da gestão econômica, como a desregulamentação dos gastos obrigatórios do Estado, a privatização das empresas públicas e diminuição da carga tributária. O principal efeito ideológico do Consenso de Washington foi transformar aquilo que era uma orientação ideológica em obrigação técnica e, dessa forma, conseguir pautar o debate econômico mundial. ATENÇÃO A hegemonia neoliberal, no entanto, não duraria para sempre. O alvorecer do século XXI trouxe diversos questionamentos ao modelo neoliberal, impulsionando diferentes experiências de crise, como estudaremos nas próximas seções. Por enquanto, é importante dedicar mais atenção ao próprio neoliberalismo, às suas transformações, tentando entender seu lugar na história do pensamento político/econômico liberal. AGENDA POLÍTICA NEOLIBERAL A agenda política e econômica do neoliberalismo consiste na radicalização de preceitos liberais que vinham sendo desenvolvidos desde o século XVIII. Na primeira geração do liberalismo econômico, podemos situar: David Ricardo. David Ricardo (1772-1823) Adam Smith. Adam Smith (1723-1790) Cada um a seu modo, ambos defenderam as ideias do Estado mínimo e do livre mercado, sem desconsiderar o dilema do combate à pobreza social, questão fundamental para o pensamento econômico liberal. PARA RICARDO E SMITH, A POBREZA SOCIAL SE RESOLVERIA NATURALMENTE PELA LÓGICA DA COMPLEMENTARIEDADE. Ou seja, setores com excesso produtivo compensariam o deficit produtivo de outros setores, naturalmente, em troca impulsionada pelo livre fluxo da atividade econômica, sem interferência do Estado, que somente atrapalharia o processo. Havia, nesses autores e nas práticas políticas que eles inspiraram, aquilo que podemos chamar de “utopia liberal”, segundo a qual o aprimoramento das liberdades individuais levaria à erradicação da pobreza social. ATENÇÃO O dilema da pobreza social tornou-se ainda maior no século XIX, com o aprofundamento da Revolução Industrial. Surgiram grandes conglomerados urbanos em diversos países da Europa, com trabalhadores amontoados em bairros proletários, com acesso precário à água e aos serviços sanitários. As doenças se espalhavam, assim como a violência. Todos os grandes pensadores oitocentistas trouxeram a pobreza social para o primeiro plano de suas reflexões. No final do século XIX, o filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) promoveu algumas mudanças no pensamento econômico liberal, especialmente no que se refere à questão da pobreza social, tornando-se matriz daquilo que posteriormente seria conhecido como neoliberalismo. Tal como Ricardo e Smith, Spencer também defendia que a pobreza social seria naturalmente extinta pelo livre mercado. Porém, diferentemente dos seus antecessores, Spencer negava a lógica da complementariedade produtiva e, evocandoos princípios do darwinismo, falava em competição social. Herbert Spencer PARA SPENCER, A POBREZA DESAPARECERIA COM O DESAPARECIMENTO DOS POBRES, QUE, MENOS PREPARADOS PARA A DISPUTA SOCIAL, TENDERIAM A DESAPARECER, A MORRER. Para isso, o Estado não deveria intervir no processo, tampouco garantir amparo social aos pobres. Na lógica spenceriana, a pobreza social acabaria na medida em que os pobres desaparecessem. Nas palavras do próprio Spencer no livro O indivíduo contra o Estado , publicado pela primeira vez em 1884: SENDO A AQUISIÇÃO DE UM BEM PARA O POVO O TRAÇO EXTERNO VISÍVEL COMUM NAS MEDIDAS LIBERAIS NOS TEMPOS ANTIGOS (E ESSE BEM CONSISTIA ESSENCIALMENTE NUMA DIMINUIÇÃO DA COERÇÃO), RESULTOU QUE OS LIBERAIS VIRAM O BEM DO POVO NÃO COMO UM OBJETIVO QUE ERA NECESSÁRIO ATINGIR DIRETAMENTE. E, PROCURANDO ATINGI-LO DIRETAMENTE, EMPREGARAM MÉTODOS INTRINSECAMENTE CONTRÁRIOS AOS QUE HAVIAM SIDO EMPREGADOS ORIGINALMENTE. (...) QUEREM LASTIMAR AS MISÉRIAS DOS POBRES MERITÓRIOS, EM VEZ DE REPRESENTÁ-LAS – O QUE NA MAIORIA DOS CASOS SERIA MAIS CORRETO – COMO AS MISÉRIAS DOS POBRES DEMERITÓRIOS. EM MINHA OPINIÃO, PODE- SE CONSIDERAR QUE UM DITADO CUJA VERDADE É ACEITA IGUALMENTE PELA CRENÇA COMUM E PELA CRENÇA DA CIÊNCIA GOZA DE UMA AUTORIDADE INCONTESTÁVEL. POIS BEM! O MANDAMENTO: “SE UMA PESSOA NÃO DESEJA TRABALHAR, NÃO DEVE COMER” É SIMPLESMENTE O ENUNCIADO CRISTÃO DESSA LEI DA NATUREZA SOB IMPÉRIO DA QUAL A VIDA ATINGIU SEU GRAU ATUAL, A LEI SEGUNDO A QUAL UMA CRIATURA QUE NÃO É SUFICIENTEMENTE ENÉRGICA PARA SE BASTAR DEVE PERECER. (SPENCER apud DARDOT; LAVAL, 2016, pp. 46-47) O spencerianismo inspirou a formação de um grupo de economistas que ficaria conhecido como Escola de Chicago, formada por nomes como George Stigler (1911-1991) e Milton Friedman (1912-2006). Em síntese, a Escola de Chicago defendia o monetarismo, confrontando o keynesianismo, que era o fundamento econômico da social-democracia. Outro importante grupo de economistas que sistematizou os valores do neoliberalismo foi a Escola Austríaca, representada por nomes como Carl Menger (1840-1921), Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914) e Ludwig von Mises (1881-1973). As ideias de voluntariedade e agência são norteadoras do pensamento econômico desenvolvido pela Escola Austríaca. Para os autores, as partes individuais devem ser totalmente livres para negociar suas interações econômicas, sem nenhum tipo de regulação por parte do Estado. Para os economistas da Escola Austríaca, o indivíduo é a célula fundamental da atividade econômica e, por isso, não deve ser constrangido por interesses externos a ele. Nas palavras de Mises: Ludwig von Mises Como podemos perceber na citação, o Estado, para Mises, é força coercitiva, cuja única função é constranger e limitar a liberdade individual. Estamos aqui muito distantes da concepção de Estado que foi desenvolvida por outros autores do escopo liberal, como John Locke (1632-1704), para quem o Estado tinha a função de garantir as liberdades individuais através da aplicação da lei. Em Mises, o Estado é a ameaça à liberdade individual, e, quanto menos Estado, mais liberdade. Foi esse modelo neoliberal que se tornou hegemônico no capitalismo internacional em fins do século XX e, como veremos a seguir, entrou em colapso já nos primeiros anos do século XXI. VERIFICANDO O APRENDIZADO MÓDULO 2 Examinar o fortalecimento dos projetos políticos que, no início do século XXI, questionaram o modelo neoliberal do capitalismo internacional CRISES DO NEOLIBERALISMO Assista ao vídeo abaixo com o professor Rodrigo Perez sobre a crise do modelo neoliberal no mundo. CRISE DO NEOLIBERALISMO NAS AMÉRICAS O século XXI nasceu sobre os impactos da lógica neoliberal acumulados ao longo da década de 1990. Em regiões mais pobres do mundo, sobretudo na América Latina, as diretrizes do Consenso de Washington provocaram o empobrecimento geral das sociedades civis, a precarização de serviços públicos e o comprometimento da soberania nacional, com a privatização em empresas públicas estratégicas. Um dos principais efeitos do neoliberalismo se deu na transformação na ideia de Estado e, consequentemente, de função do poder público. O ESTADO DEIXOU DE SER VISTO COMO O RESPONSÁVEL PELA SEGURANÇA E PELO BEM-ESTAR SOCIAL DA COMUNIDADE PARA SER TRATADO COMO UMA EMPRESA QUE JAMAIS PODE DAR PREJUÍZO. É o “Estado-firma”, nas palavras de Wendy Brown. TANTO AS PESSOAS QUANTO OS ESTADOS SÃO BASEADOS NO MODELO DA EMPRESA CONTEMPORÂNEA, ESPERA-SE QUE TANTO AS PESSOAS QUANTO OS ESTADOS SE COMPORTEM DE MODOS QUE MAXIMIZEM SEU VALOR CAPITAL NO PRESENTE E AUMENTEM SEU VALOR FUTURO, E TANTO AS PESSOAS QUANTO OS ESTADOS O FAZEM ATRAVÉS DE PRÁTICAS DE EMPREENDEDORISMO, AUTOINVESTIMENTO E ATRAÇÃO DE INVESTIDORES. (BROWN, 2015, p. 22) Como o autor deixa claro, a racionalidade liberal, ou a “nova razão do mundo”, para usarmos as palavras de Pierre Dardot e Christian Laval, afetou todas as relações humanas, tanto as públicas como as privadas. É como se o neoliberalismo tivesse inflado a lógica econômica a tal ponto que todas as ações humanas passaram a ser vividas a partir das ideias de lucro e prejuízo. Até mesmo a temporalidade, como argumenta Arthur Ávilla, foi afetada pela lógica neoliberal, com horizontes de futuro sendo fechados e a experiência humana sendo encerrada no eterno presente, no curto tempo da performance, da eficiência e do consumo. A mundialização dos preceitos neoliberais provocou desconforto e mal-estar em diversas regiões do mundo, o que deu origem ao surgimento de diversos questionamentos que se fortaleceram já nos primeiros anos do século XXI. Podemos começar pela eleição de governos de centro-esquerda em vários países da América Latina, fortalecidos pela insatisfação daquelas sociedades com o modelo de administração neoliberal. Em 2005, a empresa de comunicação britânica BBC realizou uma pesquisa e concluiu que ¾ dos 350 milhões de pessoas que viviam na América Latina naquela altura estavam sendo governadas por projetos políticos de esquerda ou de centro-esquerda. Clique no botão abaixo e confira a lista de presidentes de esquerda e seus períodos de duração. Clique no botão para ver as informações. Objeto com interação. VEJA AQUI! javascript:void(0) Na época, o fenômeno ficou conhecido como “guinada latino-americana”. Abaixo, a lista desses governos, com seus períodos de duração: Néstor Kirchner, na Argentina, entre 2003 e 2007. Cristina Kirchner, na Argentina, entre 2007 e 2015. Evo Morales, na Bolívia, entre 2006 e 2019. Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, entre 2003 e 2011. Dilma Rousseff, no Brasil, entre 2011 e 2016. Ricardo Lagos, no Chile, entre 2002 e 2006. Michelle Bachelet, no Chile, entre 2006 e 2010 e entre 2014 e 2018. Oscar Arias, na Costa Rica, entre 2006 e 2011. Maurício Funes, em El Salvador, entre 2009 e 2014. Salvador Sánchez Cerén, em Salvador, entre 2014 e 2019. Rafael Correia, no Equador, entre 2007 e 2017. Manuel Zelaya, em Honduras, entre 2006 e 2009. Daniel Ortega, na Nicarágua, desde 2007. Fernando Lugo, no Paraguai, de 2008 a 2012. Tabaré Vázquez, no Uruguai, de 2005 a 2010 e depois de 2015 a 2020. José Mujica, no Uruguai, de 2010 a 2015. Hugo Chávez, na Venezuela, entre 1999 e 2013. Nicolás Maduro, na Venezuela, desde 2013. Bandeira de Hugo Chávez durante as eleições presidenciais de abril em Caracas, Venezuela, 2018. É claro que esses governos têm suas particularidades e qualquer tentativa de generalização é analiticamente perigosa. Entre esses governos, podemos encontrar desde projetos de conciliação nacional que tentaram negociar com as forças do capital, como foram os casos do kirchnismo na Argentina e do petismo no Brasil. Encontramos, também, governos de enfrentamento e de ruptura, como foi o de Chávez, na Venezuela, e de Morales, na Bolívia. Mas, se é possível pensarmos em características comuns a todos esses governos, como a rejeição ao neoliberalismo e às diretrizes doConsenso de Washington e a recuperação da função social do Estado, suas trajetórias políticas também foram bastante diversas. Alguns encontraram resistências e foram golpeados logo no início, como foram os casos de Manuel Zelaya, em Honduras, e de Hugo Chávez, na Venezuela, sendo que Chávez conseguiu reverter a situação e se manter no poder. Também Evo Morales foi golpeado, mas depois de anos de governo. Fernando Lugo, no Paraguai, e Dilma Rousseff, no Brasil, foram objeto de processos de impeachment polêmicos e definidos como “golpe parlamentar” por parte da bibliografia especializada. javascript:void(0) KIRCHNISMO Nome atribuído ao casal que se revezou na presidência argentina – Cristina e Néstor. As resistências ao neoliberalismo nos primeiros anos do século XXI não ficaram restritas à América Latina. Também nas duas principais potências do mundo, nos EUA e na China, aconteceram críticas e questionamentos ao neoliberalismo. Seria exagerado dizer que o governo do democrata Barack Obama, entre 2009 e 2017, rompeu com os preceitos neoliberais. Mas seria equivocado supor que sua administração seguiu os mesmos passos dos governos republicanos anteriores, herdeiros de Ronald Reagan, que fizeram dos EUA o laboratório mundial das práticas neoliberais. Obama, ao menos dentro dos EUA, relativizou algumas dessas práticas, ainda que tenha as imposto a países mais pobres. Barack Obama iniciou seu governo sob grande euforia da sociedade civil norte-americana. Cerca de 2 milhões de pessoas compareceram à cerimônia de posse em 24 de fevereiro de 2009, num clima de congraçamento político que poucas vezes se viu naquele país. Não era para menos, pois os EUA acabavam de eleger o primeiro presidente negro, concluindo um ciclo de lutas da população afro-americana que havia começado na década de 1960, com a jornada dos direitos civis. O governo de Obama foi bastante contraditório no que se refere à comparação entre as políticas externa e interna. Poucos presidentes dos EUA foram tão belicistas como Barack Obama, cuja administração foi marcada por intensa movimentação militar, sobretudo no Oriente Médio. RESUMINDO No plano da política interna, Obama tentou corrigir problemas estruturais históricos da sociedade norte-americana, como, por exemplo, a falta de um sistema de saúde ao qual os cidadãos pudessem recorrer. Pode parecer estranho aos nossos olhos, mas os EUA não têm um sistema de saúde para atender à população que não tem dinheiro para pagar pelo serviço privado. Até o governo de Obama, os pobres não tinham atendimento médico, o que traduz os valores de um país construído historicamente a partir da lógica do mercado, da iniciativa privada, que desconfia de tudo que é público. Ao criar o “Obama Care”, em 2010, Obama ofereceu plano de saúde subsidiado pelo Estado a todos os cidadãos americanos em situação de vulnerabilidade social. Com isso, o presidente trouxe o Estado para o debate nacional sobre o direito à saúde, recuperando a ideia, de matriz social-democrata, de que cabe ao poder público garantir acesso a direitos sociais básicos. Posteriormente, Donald Trump, sucessor de Obama, tomou o desmonte do “Obama Care” como prioridade política, o que estudaremos com mais calma na próxima seção, quando nos dedicaremos aos populismos de extrema-direita, que se fortaleceram em diversas partes do mundo como um dos resultados do colapso do neoliberalismo. CRISE DO LIBERALISMO NO MUNDO Também do outro lado do Oceano Atlântico, na Ásia, diversos países organizaram estratégias de desenvolvimento econômico que confrontaram preceitos do neoliberalismo. Analisando justamente a crise do império capitalista estadunidense, o cientista político norte-americano Chalmers Johnson (1931-2010) foi o primeiro a utilizar o conceito “desenvolvimentismo asiático” para analisar projetos econômicos emergentes naquela região do mundo ao longo dos primeiros anos do século XXI. O livro de Johnson, publicado em 1982, se dedica principalmente ao “milagre econômico japonês”, mas as linhas gerais da análise do autor podem nos ajudar a compreender outros casos que configuram, em grande medida, a crise contemporânea do capitalismo neoliberal. Em outra obra, publicada em 1993, Johnson se debruçou especificamente sobre a história econômica dos países asiáticos na segunda metade do século XX. Depois do trabalho de Johnson, tornou-se recorrente dizer que o “estado desenvolvimentista” foi o grande responsável pelo desenvolvimento econômico acelerado da Coreia do Sul, Taiwan e Singapura entre os anos 1960 e 1980, da China, a partir dos anos 1990, e do Vietnã, no início do século XXI. O “MODELO ECONÔMICO” JAPONÊS DO PÓS- GUERRA NÃO ERA ORIGINAL E VINHA DOS ANOS 1920; E SUA CARACTERÍSTICA FUNDAMENTAL NÃO ERA ECONÔMICA, TINHA A VER COM A “INTENSIDADE” COM QUE A SOCIEDADE E O GOVERNO JAPONÊS SE DEDICAVAM AO ESTABELECIMENTO E CUMPRIMENTO DOS SEUS OBJETIVOS ESTRATÉGICOS. ESTA “INTENSIDADE” SE DEVIA AO FATO DE QUE O “MODELO” TINHA SIDO CONCEBIDO COMO UM INSTRUMENTO DE GUERRA E DE RECONSTRUÇÃO, DEPOIS DA GUERRA, E COMO INSTRUMENTO DE DEFESA DA SOBERANIA JAPONESA, FRENTE AOS DESAFIOS DO MUNDO E DO CONTEXTO GEOPOLÍTICO ASIÁTICO, NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX. (JOHNSON, 2017, p. 91) O QUE O AUTOR ESTÁ DIZENDO? OS MOTIVOS QUE EXPLICAM O SUCESSO ECONÔMICO JAPONÊS SÃO MAIS POLÍTICOS DO QUE PROPRIAMENTE ECONÔMICOS. Em um contexto de reconstrução nacional após a Segunda Guerra Mundial, o Estado japonês tomou para si a responsabilidade de zelar pelos interesses nacionais, condicionando toda atividade econômica ao que Johnson chamou de “pacto de desenvolvimento coletivo”. Não é difícil perceber que essa forma de tratar a relação do Estado com a economia é diametralmente oposta ao receituário neoliberal. A trilha aberta pelo Japão foi seguida por outras nações asiáticas. O recado que vinha da Ásia parecia claro: o neoliberalismo ocidental, com sua concepção de “Estado-firma”, não servia para aquela região do mundo. Foi exatamente dessa negação ao neoliberalismo que se fortaleceu outra ideologia político-econômica que na transição do século XX para o século XXI acabou reequilibrando a geopolítica mundial, fazendo da Ásia a região mais economicamente ativa e desenvolvida do planeta. Em 1989, foi publicado outro livro sobre o desenvolvimentismo asiático, dessa vez assinado pela economista norte-americana Alice Amsden (1943-2012). Sugestivamente intitulado Asia’s Next Giant (O próximo gigante asiático , em tradução livre), Amsden ampliou a análise de Johnson para a Coreia do Sul, para o “milagre econômico coreano”, nas palavras da própria autora. Segundo Amsden, no caso da Coreia do Sul, o modelo de desenvolvimento também era caracterizado pelo protagonismo do Estado, fincando suas raízes na primeira metade do século XX, na luta anticolonialista contra o próprio Japão. Sobre a China, Johnson também chama atenção para a experiência da guerra anticolonialista, o “campesinato revolucionário” como força de impulsão desenvolvimentista. Para os autores, as guerras fizeram com que as sociedades asiáticas criassem vínculos de solidariedade e confiança com o Estado, visto como o guardião dos interesses nacionais. A partir da leitura desses autores, podemos analisar o desenvolvimentismo asiático em quatro características principais: Clique nas setas para ver o conteúdo. Objeto com interação. A prosperidade asiática observada em fins do século XX se deu pelo fortalecimento dos Estados nacionais, algo que aconteceu em meados do século passado, a partir de diversas experiências de guerras emancipatórias. Isso deu origem a um sistema interestatal regional altamente competitivo que ajudou a potencializar ainda mais o desenvolvimento dos países locais. A estratégia econômica destes países asiáticos esteve sempre muito longe dos valores neoliberais, rejeitando frontalmente a premissa do “Estado mínimo”, ou do “Estado-firma”. Não há nenhuma instituição ou política que explique isoladamenteo sucesso do crescimento asiático, e que possa ser transplantada para países que tenham se constituído ou estejam fora de sistemas de poder altamente competitivos. A simples condição de latecomer ou de “capitalismo tardio” não explica nada, nem é capaz de gerar um projeto e uma estratégia de alto crescimento. Os asiáticos nunca se referiram a si mesmos como “desenvolvimentistas”. Suas estratégias econômicas não têm nada a ver com o chamado “desenvolvimentismo latino-americano”. Sua política industrial, comercial e macroeconômica sempre esteve a serviço de sua “grande estratégia” social e nacional e da sua luta pela conquista ou reconquista de uma posição internacional autônoma e preeminente. Os asiáticos têm plena consciência de que a política econômica entregue a si mesma é cega e incapaz de gerar seus próprios objetivos. E muito menos ainda de definir os objetivos de uma sociedade e de uma nação. Ao longo dos últimos séculos, os olhares do chamado “mundo ocidental” permaneceram bastante concentrados nos países que orbitavam em torno das economias europeias e dos Estados Unidos. Não fossem os países árabes, por sua participação decisiva no mercado global de petróleo, e pela Rússia, em função de seu desenvolvimento econômico e das tensões vestigiais da Guerra Fria, nossas preocupações provavelmente seriam ainda mais ocidentalizadas. Não sem razão, muitos se viram perplexos diante da emergência da China no cenário global, que passou a ostentar taxas médias de crescimento econômico de 10% a partir da década de 1990. Ao longo dos anos, nenhum país ocidental conseguiu rivalizar com esses índices e, gradualmente, a frase Made in China começou a se fazer bastante presente em nossa vida cotidiana. Caso esteja lendo esse texto em seu computador, recomendamos que vire o mouse e procure o local em que o produto foi fabricado. A chance de encontrar um Made in China é grande. Se não acontecer, basta uma busca simples e você perceberá que muitos produtos que temos à nossa disposição são chineses. Ainda que os EUA continuem responsáveis por boa fatia do comércio internacional, o país asiático deve assumir a dianteira até 2026. Por esse motivo, nenhuma análise sobre as dinâmicas comerciais do século XXI pode ignorar a participação chinesa no mercado global. Apesar das inúmeras variáveis e divergências que compõem o complexo jogo que garantiu essa mudança, muitos analistas se apoiam em duas explicações gerais para esse processo. Segundo Rhys Jenkins (2019, p. 22), essas mudanças podem ser observadas a partir de duas lentes, uma externa e outra interna. EXTERNA Do ponto de vista externo, observa-se o impacto significativo do "abandono das políticas keynesianas do consenso pós-guerra e a adoção do neoliberalismo, especialmente sob Reagan nos Estados Unidos e Thatcher no Reino Unido. Uma das estratégias do capital para restaurar a lucratividade foi deslocar a mão de obra para reduzir os custos da produção”. INTERNA Em contraste, a abordagem interna “toma como ponto de partida as mudanças ocorridas na China após a morte de Mao Tsé-Tung em 1976. As reformas na política econômica começaram com Deng Xiaoping em 1978 e desencadearam um processo dinâmico de crescimento que ampliou a competitividade da China" (JENKINS, 2019, p. 22). Nesse sentido, enquanto os países “ocidentais” diminuíram significativamente a presença do Estado na economia, a China adotou uma posição oposta, que permitiu o desenvolvimento tecnológico, a ampliação do mercado consumidor global e diversas outras ações que tornaram o país atrativo, inclusive, a investidores estrangeiros. Em 2001, as exportações chinesas ganharam novo impulso com a adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC). Diversas empresas da China começaram a realizar obras no exterior, e os empréstimos de bancos chineses também consolidaram sua presença nos mercados financeiros globais. EM SUMA, ESSA MUDANÇA ECONÔMICA DESENCADEOU UMA SÉRIE DE EFEITOS, COMO AS CHAMADAS “GUERRAS COMERCIAIS”, QUE REPRESENTAM, TALVEZ, UM DOS ASPECTOS MAIS VISÍVEIS DO PROTAGONISMO CHINÊS NESSE INÍCIO DO SÉCULO XXI. MERCADOS IRREGULARES Ainda que a ênfase nos estudos sobre as dinâmicas comerciais se dê a partir de elementos visíveis, parte importante das transações econômicas globais acontece à margem dos esforços oficiais de contabilização. Para além dos grandes debates acerca do modus operandi de parte do mercado financeiro, da ausência de transparência em muitas transações, dos processos de lavagem de dinheiro e de depósitos que se avolumam em paraísos fiscais, parte do movimento no comércio global se desdobra para além da superfície através da venda e compra de produtos de inegáveis impactos políticos, sociais e econômicos. EXEMPLO O comércio ilegal de armas de fogo é um exemplo conhecido, assim como o de substâncias psicoativas. Esse último caso, inclusive, merece uma observação mais atenta. Não menos importante, os processos de globalização e multilateralismo contribuíram francamente para o aumento do comércio internacional de drogas. Ainda que parte dos processos de importação e exportação de drogas se dê por vias próprias, a ampliação dos circuitos de trocas comerciais permitiu que muitos comerciantes incluíssem suas mercadorias proibidas em redes regulares, o que exige permanente esforço de fiscalização por parte das autoridades aduaneiras. Também é difícil rastrear o destino dos valores adquiridos com comércio ilegal. Ainda que traficantes locais façam investimentos locais e fracionados para “lavar” o dinheiro ilícito, acredita-se que parte importante das cifras seja regularizada através de aplicações no mercado financeiro, muito mais difíceis de identificar. Oficial da aduana dos EUA recompensa seu cão farejador após identificar narcóticos escondidos em uma embalagem em Chicago. Os números estimados ao longo do século XXI são bastante esclarecedores em relação ao poder desse mercado ilegal. Em 2003, o mercado varejista de drogas teria arrecadado algo em torno de 322 bilhões de dólares, soma que é maior do que o PIB de muitos países. De acordo com o relatório Estimating Illicit Financial Flows Resulting From Drug Trafficking and Other Transnational Organized Crimes (2011), o comércio irregular teria sido responsável por valores próximos a 1,5% do PIB mundial em 2009, com destaque para o narcotráfico. Estimativas do World Drug Report , publicação anual do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, mostram que, no início do século XXI, cerca de 5,2% da população mundial entre 15 e 64 anos fez uso, regular ou esporádico, de alguma substância psicoativa ilegal. Em 2012, atingiu-se o número de 4,7% e, em 2015, 5,5%. O relatório aponta que o aumento no consumo acompanha o crescimento demográfico, mas se mantém percentualmente estável (UNODC, 2019). Também vale destacar que a distinção geral entre drogas lícitas (tabaco, álcool, ansiolíticos etc.) e ilícitas (maconha, cocaína, crack, metanfetamina) não depende das características de cada droga, haja vista que muitas substâncias, hoje ilegais, já foram permitidas e muitas drogas, hoje ilegais, já foram autorizadas sem qualquer regulamentação. Há inúmeras questões envolvidas nessa equação, desde o estigma social do usuário até a criminalização da pobreza. Refletindo Com o passar dos anos, a crise do neoliberalismo foi ganhando contornos mais trágicos, motivados pela insatisfação social provocada pela precarização da qualidade de vida em diversos países ocidentais. Esse ambiente de frustração e ressentimento serviu como combustível para a ascensão de governos de extrema-direita, que, nos anos 2010, colocaram em risco a própria ideia de democracia liberal representativa, que estudaremos na próxima seção. VERIFICANDO O APRENDIZADO MÓDULO 3 Identificar o fortalecimento de populismos de extrema-direita A EXTREMA-DIREITA E A DEMOCRACIA LIBERAL Assista ao vídeo abaixo com o professor Rodrigo Perez apresentando o debate da ascensãode movimentos de extrema-direita no mundo. COMO AS DEMOCRACIAS MORREM Em 2018, chegou ao Brasil o best seller Como as democracias morrem , de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, publicado originalmente nos EUA em 2017. O sucesso do livro escrito pelos professores de Ciência Política da Universidade de Harvard foi mundial, o que pode ser explicado pelo tema tratado no texto, o que nos interessa diretamente aqui, em nossos estudos. Os autores analisaram as crises democráticas contemporâneas e o seu principal desdobramento no plano político: a ascensão de governos de extrema-direita em diversos países, como EUA, Georgia, Hungria, Filipinas e Brasil. O tema também foi explorado por outro livro de destacado sucesso no mercado editorial internacional: trata-se de O povo contra a democracia , escrito pelo cientista político Yascha Mounk e publicado no Brasil também em 2018. É a partir desses dois textos que discutimos as crises democráticas contemporâneas, explorando suas relações com o colapso internacional da ordem capitalista neoliberal. MAS DE QUE TIPO DE CRISE DEMOCRÁTICA ESTAMOS FALANDO? Tanto “crise” como “democracia” são termos bastante polissêmicos no vocabulário político ocidental. Começaremos esclarecendo com cuidado qual modalidade de democracia está colapsando nos dias de hoje. Trata-se do experimento democrático liberal burguês que nasceu no século XVIII na Europa e nos EUA, tendo se tornado hegemônico mundialmente no final da década de 1980, com o fim da URSS e com o término da Guerra Fria. A convicção de que a democracia liberal era vitoriosa foi tão forte que o cientista político norte- americano Francis Fukuyama chegou a decretar o “fim da história”, como se a humanidade houvesse chegado, definitivamente, ao ponto final de sua evolução política. Em trabalho conjunto, os cientistas políticos norte-americano e alemão Alfred Stepan e Juan Linz afirmaram que a democracia liberal era a “única opção” e que tinha “vindo para ficar”. Queda do muro de Berlim, simbolizando o fim da Guerra Fria, 1989. A história teria acabado com o triunfo da democracia liberal, fundada no princípio da representação política e na proteção das liberdades individuais contra a tirania do Estado, que seria o melhor arranjo já inventado pela humanidade no sentido de viabilização da vida coletiva. Diz Yascha Mounk: IMPRESSIONADOS COM A ESTABILIDADE SEM PARALELO DAS DEMOCRACIAS RICAS, OS CIENTISTAS POLÍTICOS COMEÇARAM A CONCEBER A HISTÓRIA DO PÓS-GUERRA EM DIVERSOS PAÍSES COMO UM PROCESSO DE “CONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA”. PARA SUSTENTAR UMA DEMOCRACIA, O PAÍS DEVIA ATINGIR UM ALTO NÍVEL DE RIQUEZA E EDUCAÇÃO. TINHA DE CONSTRUIR UMA SOCIEDADE CIVIL VIBRANTE E ASSEGURAR A NEUTRALIDADE DE INSTITUIÇÕES DE ESTADO FUNDAMENTAIS, COMO O JUDICIÁRIO. GRANDES FORÇAS POLÍTICAS TIVERAM DE ACEITAR QUE DEVIAM DEIXAR OS ELEITORES – E NÃO O PODER DE SEUS EXÉRCITOS OU DE SUAS CARTEIRAS GORDAS – DETERMINAR OS RESULTADOS POLÍTICOS. TODOS ESSES OBJETIVOS FREQUENTEMENTE SE REVELARAM ESQUIVOS. (MOUNK, 2018, pp. 18-19) Qualquer eventual crise nas democracias liberais era explicada, e justificada, pelas condições inadequadas das sociedades em que a crise se manifestou, sempre em países pobres, sobretudo na América Latina, África e Ásia. ATENÇÃO O argumento era o de que a desigualdade social, a pobreza estrutural e o baixo nível de industrialização dificultavam a consolidação da democracia, potencializando projetos políticos autoritários, como as ditaduras militares que governaram a América Latina, incluindo o Brasil, entre as décadas de 1960 e 1980. John F. Kennedy durante a visita do então presidente João Goulart aos Estados Unidos em 1962. Posteriormente descobriu-se que o presidente estadunidense planejava invadir militarmente o Brasil para depor o governo de Goulart. A causa das crises democráticas, então, não seria o modelo liberal, mas o precário desenvolvimento capitalista desses países, sendo os ataques à democracia originários sempre de atores políticos exteriores ao funcionamento da própria democracia, como as forças armadas. Sobre essas crises democráticas, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt escreveram: DURANTE A GUERRA FRIA, GOLPES DE ESTADO FORAM RESPONSÁVEIS POR QUASE TRÊS EM CADA QUATRO COLAPSOS DEMOCRÁTICOS. AS DEMOCRACIAS EM PAÍSES COMO ARGENTINA, BRASIL, GANA, GRÉCIA, GUATEMALA, NIGÉRIA, PAQUISTÃO, PERU, REPÚBLICA DOMINICANA, TAILÂNDIA, TURQUIA E URUGUAI MORRERAM DESSA MANEIRA. (...) COM UM GOLPE DE ESTADO, A MORTE DA DEMOCRACIA É IMEDIATA E EVIDENTE PARA TODOS. O PALÁCIO PRESIDENCIAL ARDE EM CHAMAS. O PRESIDENTE É MORTO, APRISIONADO OU EXILADO. (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p.17) A segunda década do século XXI negou os prognósticos feitos no final dos anos 1980. A democracia liberal não era uma realidade eterna. O mundo viu um novo tipo de crise democrática, bem diferente do modelo “clássico” observado no século XX e capaz de desestabilizar o ambiente político, também, em países ricos. Agora, a democracia não está colapsando apenas em países pobres. Países ricos, de desenvolvimento capitalista avançado, estão vendo seus sistemas democráticos ruírem. Dessa vez, a morte da democracia não acontece em dia marcado, demarcada claramente por um evento de ruptura, por um golpe de Estado. A democracia morre aos poucos, de dentro para fora, sendo assassinada por líderes políticos eleitos pelos próprios ritos democráticos. PORÉM, HÁ OUTRA MANEIRA DE ARRUINAR UMA DEMOCRACIA. É MENOS DRAMÁTICA, MAS IGUALMENTE DESTRUTIVA. DEMOCRACIAS PODEM MORRER NÃO NAS MÃOS DE GENERAIS, MAS DE LÍDERES ELEITOS – PRESIDENTES OU PRIMEIROS- MINISTROS QUE SUBVERTEM O PRÓPRIO PROCESSO QUE OS LEVOU AO PODER. ALGUNS DESSES LÍDERES DESMANTELAM A DEMOCRACIA RAPIDAMENTE, COMO FEZ HITLER NA SEQUÊNCIA DO INCÊNDIO DO REICHSTAG EM 1933 NA ALEMANHA. COM MAIS FREQUÊNCIA, PORÉM, AS DEMOCRACIAS DECAEM AOS POUCOS, QUE MAL CHEGAM A SER VISÍVEIS. (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p.15) Levitsky e Ziblatt afirmam que, do ponto de vista das defesas democráticas, os novos tipos de crise dificultam ainda mais a autodefesa dos regimes democráticos. Como não há um momento claro de ruptura, pois o processo de erosão da democracia se dá dentro dos próprios ritos democráticos, nada é capaz de disparar os dispositivos de alarme da sociedade. Uma mulher com a foto de Hugo Chávez em protesto a favor dele. Caracas, Venezuela, 2007. Assim, quando a sociedade civil se dá conta, o autoritarismo já está instalado. Os autores destacam dois casos emblemáticos desse novo tipo de crise democrática: a Venezuela, com a ascensão de Hugo Chávez, em 1999, e os EUA, com a eleição de Donald Trump, em 2016. Em ambas as situações, argumentam Levitsky e Ziblatt, a própria democracia, representada pelos partidos políticos estabelecidos e pelas instituições legislativas e judiciárias, falhou ao permitir que lideranças com evidentes ideias antidemocráticas tivessem a oportunidade de apresentar seus projetos à sociedade civil. O aspecto aparentemente contraditório desse novo tipo de crise democrática está no fato de que as lideranças populistas chegam ao poder legitimadas pelas eleições (o rito mais sagrado da democracia) sendo, inclusive, apoiadas por segmentos relevantes da sociedade civil. Se essas lideranças foram eleitas, se são apoiadas por segmentos relevantes da sociedade civil, por que representam ameaças à democracia? Novamente, é relevante prestar atenção no que dizem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. UMA VEZ QUE UM ASPIRANTE A DITADOR CONSEGUE CHEGAR AO PODER, A DEMOCRACIA ENFRENTA UM SEGUNDO TESTE CRUCIAL: IRÁ ELE SUBVERTER AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS OU SER CONSTRANGIDO POR ELAS? AS INSTITUIÇÕES ISOLADAMENTE NÃO SÃO O BASTANTE PARA CONTER AUTOCRATAS ELEITOS. CONSTITUIÇÕES TÊM QUE SER DEFENDIDAS – POR PARTIDOS POLÍTICOS E CIDADÃOS ORGANIZADOS, MAS TAMBÉM POR NORMAS DEMOCRÁTICAS, QUE NEM SEMPRE ESTÃO CODIFICADAS EM LEI. (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, pp. 18-19) ASCENSÃO DE TRUMP Em março de 2016, e-mailsparticulares de John Podesta, principal responsável pela campanha de Hillary Clinton, foram divulgados pela WikiLeaks. As mensagens não continham nada que pudesse levantar suspeitas. No entanto, fóruns da internet com usuários anônimos passaram a explorar a repetição das palavras pizza e cheese (queijo) nas mensagens. Eles alegaram que o termo cheese pizza era uma espécie de código para child pornography (pornografia infantil), amparados sobretudo na coincidência que criaram entre as iniciais "c" e "p". A história continuou sendo alimentada e novas palavras foram associadas à pedofilia: segundo esses usuários, por exemplo, a palavra sauce (molho) fazia referência, naqueles e- mails, a orgias. A narrativa começou a ficar ainda mais intrincada: esses abusos sexuais aconteceriam em um suposto porão da pizzaria Comet Ping Pong, em Washington. O irmão do coordenador da campanha de Hillary, Tony Podesta, frequentava esse estabelecimento. O dono da pizzaria, James Alefantis, foi apresentado a John Podesta e chegaram a organizar um jantar de arrecadação de fundos para a campanha de Hillary. Não tardou para que outras questões fossem associadas à pizzaria, como suposto envolvimento dos donos com cultos satânicos. A então candidata passou a ser acusada de associação com uma rede de pedofilia e a repercussão foi tão enfática que até mesmo investigações policiais foram realizadas e, como era de se supor, nenhum indício que sustentasse essas alegações foi identificado. O FBI, ainda que acionado, se recusou a investigar um fato visivelmente falso, criado no meio da disputa política. Não menos importante, e ainda que a campanha de Hillary Clinton também tenha adotado esse expediente, as fakes news circularam mais e de forma mais intensa em favor de Donald Trump, conforme diversas análises sugerem (SILVERMAN, 2016). Muitos consideram que a eficácia dessa tática de Trump não pode ser apartada do conhecimento dos dados dos usuários fornecidos ilegalmente pelo Facebook: conhecer minuciosamente o perfil dos eleitores permitiu produzir notícias falsas que exploravam questões sensíveis para o eleitorado norte-americano. Um dos nomes mais expressivos nesse contexto foi de Steve Bannon, diretor executivo da campanha de Trump que também era responsável pelo Breitbart News , um veículo de mídia de extrema-direita. As instituições da democracia (tribunais de justiça, parlamento, órgãos regulatórios e instituições policiais), em si, não são capazes de resistir aos ataques dos autocratas eleitos, que, uma vez no governo, investem no aparelhamento desses espaços. É NECESSÁRIO QUE OS ATORES POLÍTICOS E A SOCIEDADE CIVIL ZELEM PELO CUMPRIMENTO DAS NORMAS QUE MUITAS VEZES NÃO ESTÃO CODIFICADAS, MAS QUE SÃO FUNDAMENTAIS PARA O PLENO FUNCIONAMENTO DA DEMOCRACIA. Levitsky e Ziblatt chamam essas normas de “padrões de comportamento democrático não escritos”, como, por exemplo, o comedimento no uso das prerrogativas constitucionais, o respeito à liturgia no exercício do cargo, confiança nos tribunais eleitorais, aceitação dos resultados eleitorais. Os autores demonstram como Donald Trump, eleito em 2016 o 45° Presidente dos EUA, atuou como inimigo da democracia, corroendo por dentro aquela que tinha a fama de ser a república mais estável do mundo. Os autores, convencidos de que os EUA são o país mais “livre do mundo”, o que denota postura algo etnocêntrica, mostram estupefação com o comportamento de Donald Trump no governo daquele país. Uma forca foi pendurada perto do Capitólio dos Estados Unidos durante a invasão do Capitólio dos Estados Unidos em 2021 Sem contar que o texto foi escrito antes da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, quando, em um evento inédito na história dos EUA, o candidato derrotado não reconheceu o resultado das eleições e insuflou seus apoiadores a invadirem o parlamento. Definitivamente, o novo tipo de crise democrática não acontece, apenas, em países pobres, de desenvolvimento capitalista atrasado. Mas ainda podemos investir mais na questão elementar para essa reflexão: se esses autocratas foram eleitos e são apoiados por setores relevantes da sociedade civil, por que representam um perigo para a democracia? Agora, é Yascha Mounk quem nos ajuda na reflexão. AS DEMOCRACIAS LIBERAIS TÊM MUITOS MECANISMOS DE CONTROLE CRIADOS PARA IMPEDIR UM PARTIDO DE ACUMULAR DEMASIADO PODER E PARA CONCILIAR OS INTERESSES DE GRUPOS DIFERENTES. MAS NA IMAGINAÇÃO DOS POPULISTAS A VONTADE DO POVO NÃO PRECISA SER MEDIADA E QUALQUER COMPROMISSO COM AS MINORIAS É UMA FORMA DE CORRUPÇÃO. NESSE SENTIDO, OS POPULISTAS SÃO PROFUNDAMENTE DEMOCRATAS: MUITO MAIS FERVOROSOS DO QUE OS POLÍTICOS TRADICIONAIS, ELES ACREDITAM QUE O DEMOS DEVE GOVERNAR. MAS TAMBÉM SÃO PROFUNDAMENTE ILIBERAIS: AO CONTRÁRIO DOS POLÍTICOS TRADICIONAIS, DIZEM ABERTAMENTE QUE NEM AS INSTITUIÇÕES INDEPENDENTES NEM OS DIREITOS INDIVIDUAIS DEVEM ABAFAR A VOZ DO POVO. (MOUNK, 2018, pp. 23-24) Se debruçando sobre diversos exemplos de lideranças autocráticas de extrema-direita que vêm se fortalecendo no mundo recentemente, o autor propõe uma tipologia geral desse tipo de orientação política ideológica. Seja nos EUA de Donald Trump, na Hungria de Viktor Orbán, na Grã-Bretanha de Nigel Farage, na França de Marine Le Pen ou no Brasil de Jair Bolsonaro, está acontecendo a perversão da própria ideia de democracia que vem sendo construída na cultura ocidental desde os gregos. TEMOS AQUI UMA DISCUSSÃO MUITO DIFÍCIL E QUE EXIGE DE NÓS MUITA ATENÇÃO! A democracia não é simplesmente o governo fundado na vontade da maioria. Esse é um aspecto elementar da democracia, mas não a esgota. A democracia não pode se esgotar na simples manifestação da vontade da maioria porque é função do Estado democrático proteger, também, as minorias, muitas vezes contra a vontade da maioria. Posições políticas minoritárias e derrotadas nas eleições, minorias étnicas, grupos socialmente vulneráveis por questões de raça e gênero. É dever da democracia garantir a existência, na diversidade, dessas pessoas, com pleno acesso a todos os direitos garantidos pela cidadania. Por isso, ao transformar a democracia em tirania da maioria, esses autocratas eleitos, mesmo que contando com apoio de setores numericamente relevantes da sociedade, se transformam em risco para a ordem democrática. Há ainda outra questão fundamental em nosso exercício de compreensão das crises democráticas contemporâneas. Yascha Mounk demonstra dados que apontam para um cenário bastante preocupante: HÁ UM QUARTO DE SÉCULO, A MAIORIA DOS CIDADÃOS DAS DEMOCRACIAS LIBERAIS ESTAVA MUITO SATISFEITA COM SEUS GOVERNOS E O ÍNDICE DE APROVAÇÃO DE SUAS INSTITUIÇÕES ERA ELEVADO; HOJE, A DESILUSÃO É MAIOR DO QUE NUNCA. HÁ UM QUARTO DE SÉCULO, A MAIORIA DOS CIDADÃOS TINHA ORGULHO DE VIVER NUMA DEMOCRACIA LIBERAL E REJEITAVA ENFATICAMENTE UMA ALTERNATIVA AUTORITÁRIA A SEU SISTEMA DE GOVERNO; HOJE, MUITOS ESTÃO CADA VEZ MAIS HOSTIS À DEMOCRACIA. (MOUNK, 2018, p. 19) O que mudou? Por que o povo está contra a democracia? A resposta passa pela situação de mal-estar social gerado pela própria lógica econômica neoliberal que já estudamos. Até mesmo nos países ricos, cada vez mais, o neoliberalismo está cobrando um alto preço social. Na medida em que o Estado, movido pela necessidade de corte de gastos e pela imposição de projetos de ajuste fiscal, vai abandonando sua vocação protetora, as pessoas se sentem mais desamparadas. O trabalho nunca esteve tão precarizado, a ponto de, mesmo nas economias centrais, ser raro encontrar trabalhador, fora do serviço público, sendo protegido pelos direitos tradicionais garantidos pela social-democracia, como férias remuneradas, 13° salário, licença-maternidade. Soma-se à “flexibilização das relações trabalhistas” a precarização dos serviços públicos provocada pela redução da capacidade de investimento dos governos. A máxima neoliberal do “Estado mínimo” é especialmente opressora com as pessoas comuns, trabalhadoras,e generosa com os grandes investidores que atuam no mercado financeiro. É COMO SE FOSSE “ESTADO MÍNIMO” PARA A MAIORIA DA POPULAÇÃO E “ESTADO MÁXIMO” PARA OS GRANDES OPERADORES FINANCISTAS. A população percebe isso, entende que a política se transformou no avalista da especulação e direciona sua revolta às instituições democráticas e à classe política tradicional. Não à toa, Donald Trump foi eleito nos EUA com um discurso contra Wall Street, e prometendo defender os empregos da indústria norte-americana. Nesse sentido, a ascensão dos populismos de extrema-direita, que no mundo inteiro estão abalando a ordem liberal-democrática, é um dos desdobramentos do esgotamento do modelo neoliberal de acumulação capitalista. Na próxima seção, estudaremos como a pandemia da covid-19, decretada pela OMS em março de 2020, vem intensificando as contradições do neoliberalismo. A PANDEMIA E O CAPITALISMO Assista ao vídeo abaixo com o professor Rodrigo Perez sobre a pandemia da covid-19 e a intensificação das contradições do neoliberalismo. COVID-19 E O MUNDO EM CRISE Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde usou pela primeira vez o termo “pandemia” para se referir à covid-19. Naquela altura, a doença já estava espalhada pelo mundo, impondo desafios estruturais à ordem social, política e econômica capitalista. Liberdades individuais como o direito de ir e vir, livre mercado, Estado mínimo. Todo o sistema de valores construído desde o século XVI, que estruturou historicamente o capitalismo, foi desafiado pela doença que se mostrou ser, antes de tudo, uma patologia social. Desde o início, os especialistas foram claros: até o desenvolvimento de vacinas capazes de imunizar em massa a população mundial e de remédios com poder de atenuar os efeitos da doença, o isolamento e o distanciamento social eram as únicas formas de conter o avanço do vírus. Começou, então, aquele que talvez tenha sido o mais espetacular capítulo da história da ciência. Os cientistas mais brilhantes do mundo começaram a trabalhar 24 horas por dia com o objetivo de desenvolver substâncias capazes de controlar o contágio e a letalidade do SARSCOV-19. A vacina foi desenvolvida em tempo recorde. A “corrida pela vacina” se tornou mais do que uma urgência de saúde pública. Transformou-se mesmo em questão geopolítica de primeira importância. Em agosto de 2020, a Rússia, sob desconfianças da comunidade científica internacional, registrou a SPUTNIK V, primeira vacina contra a covid-19. O governo russo, comandado por Vladimir Putin, viu na vacina a oportunidade de reeditar o protagonismo do país vigente nos tempos da Guerra Fria. O mundo, entretanto, recebeu a vacina russa com ressalva e o imunizante não foi usado pelas nações centrais. Isso aconteceria apenas com a vacina BNT162b2 desenvolvida pela farmacêutica multinacional Pfizer, em parceria com o laboratório alemão Biontech. SAIBA MAIS Em 08 dezembro de 2020, Margaret Keenan, mulher inglesa com 90 anos, se tornou o primeiro ser humano vacinado contra a covid-19. A partir de então, a “vacina do Pfizer”, como ficou popularmente conhecida, passou a ser usada em diversos países do mundo, com a exceção daqueles que tiveram o infortúnio de serem governados por lideranças negacionistas. Mesmo com o desenvolvimento em tempo recorde da vacina, a pandemia continuou avançando, provocando milhares de mortes por dia, em todos os países do mundo, com destaque para EUA, Índia e Brasil, que rapidamente se tornaram epicentros mundiais da pandemia. A limitação operacional dos laboratórios e a dificuldade da comunidade internacional em avançar na discussão sobre a quebra das patentes foram os principais obstáculos para que a humanidade avançasse em ritmo acelerado no sentido da imunização em massa e do fim da pandemia. PORTANTO, MESMO COM VACINAS DISPONÍVEIS, A COVID-19 CONTINUOU AVANÇANDO E MATANDO. Governos de quase todos os países do mundo se viram, então, obrigados a adotar medidas de restrição de movimentação social, decretando toques de recolher, lockdowns , multando pessoas que transitassem nas ruas sem justificativa. Criou-se, assim, a normalização de um Estado de exceção que durou muitos meses, nos quais os direitos de livre movimento e de reunião, dois entre os mais importantes no repertório do liberalismo político democrático, foram sacrificados. Aqueles que por séculos foram considerados direitos individuais sagrados, como símbolos da luta da sociedade contra a tirania do Estado, foram suspensos, mostrando na prática, como os valores políticos ocidentais não eram capazes de enfrentar o novo desafio que se impunha ao mundo. Outro recado claro que a pandemia da covid-19 deu ao mundo foi em relação ao esgotamento do neoliberalismo como modelo viável de organização da economia capitalista. ATENÇÃO O SARSCOV-19 não mata apenas as pessoas, mas também a capacidade do Estado em tratar os doentes. Como o vírus tem grande capacidade de contágio, muitas pessoas adoecem ao mesmo tempo, o que sobrecarrega os hospitais públicos e privados, demandando dos governos mais investimentos na construção de estruturas hospitalares de emergência, na aquisição de insumos médicos e na viabilização de assistência social e políticas públicas de distribuição de renda para aqueles cujo sustento depende da atividade social, da circulação de pessoas. Em outras palavras, para sermos mais diretos: com as necessárias medidas de restrição de atividade social, a economia mundial entrou na maior recessão desde 1929, o que praticamente anulou a capacidade de investimento das empresas privadas. Se a iniciativa privada não é capaz de, por si só, contrariar o ciclo econômico recessivo, quem seria? A resposta é óbvia: o Estado, o poder público, os governos. Mas como fazê-lo dentro da cartilha neoliberal? A resposta está vindo da economia mais capitalista do mundo, que, simplesmente, propõe o abandono da cartilha neoliberal. ESTAMOS FALANDO DO GOVERNO DO DEMOCRATA JOE BIDEN NOS EUA. NOVOS RUMOS? Biden assumiu a Casa Branca no início de 2021 em um cenário político bastante conflituoso, como já vimos na seção anterior. Logo nos primeiros dias de seu mandato, Biden anunciou um pacote de recuperação econômica na ordem de 2,3 trilhões de dólares, o maior da história daquele país. Trata-se de investimento público direto em proteção social a pessoas e empresas e obras de infraestrutura com o objetivo de gerar empregos. Segundo o economista norte- americano Paul de Grauwe, Biden está rompendo com a herança de Reagan e retomando herança ainda mais antiga, de Franklin Roosevelt (1882-1945), o New Deal . Biden estaria, portanto, ainda segundo Paul de Grauwe, apresentando para a sociedade norte-americana um Great New Deal e, com isso, está dizendo ao mundo que os preceitos neoliberais não são capazes de solucionar a crise provocada pela pandemia, que só o Estado, agindo como indutor do desenvolvimento e não como “firma”, pode proteger a economia e a vida das pessoas. A China e a Rússia, adversários globais dos EUA, também aumentaram a participação dos investimentos públicos em suas economias. O mesmo aconteceu na Espanha, Portugal, Inglaterra e França, também segundo os dados apresentados por Paul de Gauwe. Poucos países do mundo ainda insistem na fórmula neoliberal do ajuste fiscal e da redução de gastos públicos, como o Brasil e a Índia. Não à toa, são países que, após mais de um ano de pandemia, encontram mais dificuldades em controlar o número de pessoas infectadas e mortas pelo SARSCOV-2. NÃO SERIA EXAGERADO, PORTANTO, AFIRMAR QUE A PANDEMIA DA COVID-19 REPRESENTA MAIS UM CAPÍTULO NA HISTÓRIA DAS CRISES DO CAPITALISMO, TENDO A ESPECIFICIDADE DE TER ESCANCARADO OS LIMITES DA LÓGICA NEOLIBERAL. VERIFICANDO O APRENDIZADO CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste estudo, nos dedicamos a entender com mais cuidado a história recente do capitalismo internacional, com atenção especial à dinâmica neoliberal e às crises por ela provocada.Como vimos na primeira seção, o neoliberalismo é hegemônico no sistema capitalista desde a década de 1980, quando nasceu com a promessa de desonerar a sociedade civil da carga tributária necessária para a manutenção do Estado de Bem-Estar Social. Com o tempo, entretanto, o resultado foi o contrário, tendo como consequências o aumento das desigualdades sociais e a precarização das condições de vida em diversas cidades do mundo. O aumento das insatisfações sociais levou a diversos questionamentos do modelo neoliberal ao longo das duas primeiras décadas do século XXI, indo desde governos progressistas na América Latina e nos EUA até os populismos de extrema-direita, passando pelo desenvolvimentismo asiático. A pandemia da covid-19, deflagrada no início de 2020, se tornou a prova cabal da dificuldade do neoliberalismo em reagir a crises estruturais, quando a economia precisa de incentivos e a iniciativa privada não pode investir, seja porque não tem dinheiro, seja porque não tem confiança para gastar suas reservas. Em situações desse tipo, somente o Estado, agindo como indutor do desenvolvimento social e econômico, é capaz de romper com o ciclo da carestia. É impossível saber de antemão os desdobramentos da atual crise do capitalismo. Certo mesmo é que a história do capitalismo, desde o início, é a história de suas crises, mas também de suas refundações. A ver o que acontece dessa vez. PODCAST Escute o podcast com o resumo sobre a crise do capitalismo: reinvenção do século XXI. FALA MESTRE Capitalismo, propriedade e fatores de produção Sinopse: José Luiz Niemeyer, coordenador do curso de Relações Internacionais do Ibmec RJ, e Guilherme Benchimol, fundador da XP Inc, refletem sobre os caminhos possíveis para a evolução do capitalismo. Sinopse: José Luiz Niemeyer, coordenador do curso de Relações Internacionais do Ibmec RJ, e Guilherme Benchimol, fundador da XP Inc, refletem sobre os caminhos possíveis para a evolução do capitalismo. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS ÁVILA, Arthur Lima de. Apontamentos sobre o fim da temporalidade: elementos para uma discussão. In : PEREZ, Rodrigo; SILVA, Daniel. Tempos de crise: ensaios de história política. Rio de Janeiro: Autografia, 2020. pp. 127-150. BROWN, Wendy. Undoing the Demos: neoliberalism’s stealth revolution. Nova York: Zone Books, 2015. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. 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