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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Estudos Sociais e Políticos Programa de Pós-Graduação em Sociologia Giovana Esther Zucatto “Não se nasce militar, torna-se militar”: uma análise do processo de inserção feminina nas Forças Armadas Brasileiras Rio de Janeiro 2017 Giovana Esther Zucatto “Não se nasce militar, torna-se militar”: uma análise do processo de inserção feminina nas Forças Armadas Brasileiras Dissertação apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientador: Prof. Dr. Luiz Augusto Campos Rio de Janeiro 2017 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA IESP Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte. __________________________________ _______________________ Assinatura Data A ficha catalográfica deve ser preparada pela equipe da Biblioteca. Ela deverá ser inserida neste local e esta folha não é contada para fins de paginação. Na versão impressa, deverá constar no verso da folha de rosto. Formatar a fonte conforme o modelo escolhido para todo o trabalho (Arial ou Times New Roman) A ficha desta máscara foi inserida através do recurso de selecionar, copiar e colar especial como documento do Word (objeto). É possível editá-la dando dois cliques em cima da ficha com o botão esquerdo do mouse. Giovana Esther Zucatto “Não se nasce militar, torna-se militar”: uma análise do processo de inserção feminina nas Forças Armadas Brasileiras Dissertação apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aprovada em: Banca examinadora: Prof. Dr. Luiz Augusto Campos (Orientador) Instituto de Estudos Sociais e Políticos - UERJ Prof. Dr. José Eduardo León Szwako Instituto de Estudos Sociais e Políticos - UERJ Profa. Dra. Adriana Marques Defesa e Gestão Estratégica Internacional - UFRJ Rio de Janeiro 2017 Para os estudantes, professores e funcionários da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que seguem resistindo. AGRADECIMENTOS Agradeço à República Federativa do Brasil, através do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pela formação pública e de excelência que me foi concedida. Agradeço, em especial, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão da bolsa de estudos que tornou possível cursar este Mestrado. Agradeço ao apoio incondicional de minha família, que sempre me permitiu perseguir meus ideais e alçar voos cada vez mais distantes de casa. Agradeço ao Prof. Dr. Luiz Augusto Campos, por ter me orientado na elaboração desta dissertação, especialmente por ter acreditado na ideia dessa pesquisa desde o início. Da mesma forma, agradeço ao Prof. Dr. José Szwako e à Profa. Dra. Adriana Marques, pela participação na banca de avaliação deste trabalho, pelos comentários, críticas e sugestões; os erros remanescentes são de minha inteira responsabilidade. Agradeço, ainda, a Simone Gomes e Felipe Macedo, pelo auxílio na revisão do texto e pelos comentários enriquecedores. Não posso deixar de agradecer a Bruna Jaeger e Marília Closs, por serem minhas bases de apoio há 7 anos e as irmãs que a vida me permitiu adotar, assim como a Pedro Brittes, pela amizade e confiança. A Niury Novacek, Weslley Dias e Gabriel Melo e, através deles, a todos aqueles que me receberam de braços abertos no Rio de Janeiro e me ajudaram a adotar essa cidade como lar. Registro um agradecimento às mulheres do Coletivo Feminista Virgínia Leone Bicudo, aos colegas da turma de Mestrado do IESP/2016 e aos amigos do grupo Bom Churrasco e Cia, pelo companheirismo e amizade tão importantes nesses dois anos. Por fim, agradeço a Alexandra Elbakyan, criadora do site Sci-Hub, e a todas aquelas e aqueles que trabalham pela democratização da ciência e da produção acadêmica. Yo no camino detrás de ti, yo camino de la par aquí. (Antipatriarca – Ana Tijoux) RESUMO ZUCATTO, G. E. “Não se nasce militar, torna-se militar”: uma análise do processo de inserção feminina nas Forças Armadas Brasileiras. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2017. Este trabalho dedica-se a investigar o processo de abertura das Forças Armadas do Brasil à entrada de mulheres. Ainda que o Brasil tenha enviado enfermeiras ao front europeu na Segunda Guerra Mundial, foi só em 1980, com a criação do Corpo Auxiliar Feminino da Marinha, que teve início um processo abrangente de integração feminina às instituições militares do país. O objetivo do trabalho é, então, entender em que contexto político-social se deu essa abertura, como ele tem se desenvolvido e qual o estágio atual da presença de mulheres nas Forças Armadas. Para isso, será dividido em três capítulos. O primeiro será destinado a realizar uma revisão bibliográfica sobre o tema. O segundo realizará uma contextualização histórica, localizando o início desse processo no contexto da redemocratização; a partir daí, será analisado como isso tem se dado nas diferentes Forças e o atual quadro de participação feminina nas Forças Armadas Brasileiras. Por fim, o terceiro capítulo trará relatos de entrevistas com mulheres que servem no Quadro Médico do Coro de Saúde da Marinha do Brasil, apontando suas impressões sobre suas experiências dentro da Força. Conclui-se que, apesar de a inserção feminina ter se dado de maneira gradual e ancorada em alguns estereótipos de gênero, os estereótipos de masculinidade e feminilidade não se apresentam de maneira fixa dentro da instituição militar. Palavras-chave: Inserção Feminina. Forças Armadas Brasileiras. Masculinidades. Feminilidades. ABSTRACT ZUCATTO, G. E. “Não se nasce militar, torna-se militar”: uma análise do processo de inserção feminina nas Forças Armadas Brasileiras. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2017. This work is dedicated to investigate the process of opening of the Brazilian Armed Forces to the entrance of women. Although Brazil sent nurses to the European front in World War II, it was only in 1980, with the creation of the Navy’s Auxiliary Corp, that a comprehensive process of female integration began in the country's military institutions. The objective of this study is to understand the social-political context of this opening, how it has developed and the current stage of the presence of women in the Brazilian Armed Forces. In this regard, it will be divided into three chapters. The first one will be destined to carry out a bibliographical revision on the subject of the Female integration to the Armed Forces. The second one will carry out a historical contextualization, locating the beginning of this process in the context of redemocratization; from there, it will be analyzed how it has taken place in the different Forces and thecurrent framework of female participation in the Brazilian Armed Forces. Finally, the third chapter will feature interviews with women who serve on the Medical Corps of the Brazilian Navy, pointing out their impressions of their experiences within the Force. The conclusion is that, although the process of female integration has taken place in a gradual way and based in some gender stereotypes, the stereotypes of masculinity and femininity are not presented in a static way within the military institution. Keywords: Female participation. Brazilian Armed Forces. Masculinities. Feminilities. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Presença de Mulheres nas Forças Armadas do Brasil (2016)............ 53 Gráfico 2 - Participação de Mulheres na Marinha do Brasil (2016)..................... 54 Gráfico 3 - Participação de Mulheres na Força Aérea Brasileira (2016).............. 54 Gráfico 4 - Participação de Mulheres no Exército do Brasil (2016)..................... 55 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Porcentagem de mulheres nas Forças Armadas de países estrangeiros em 2011................................................................................................................................ 56 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 13 1. CAPÍTULO 1 – REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ........................................................................... 17 1.1 MASCULINIDADE(S) - APORTE TEÓRICO PARA PENSAR A CONFIGURAÇÃO DAS RELAÇÕES DE GÊNERO NAS INSTITUIÇÕES MILITARES .................................... 18 1.2 INSERÇÃO DE MULHERES EM AMBIENTES MILITARES/HIERÁRQUICOS ........ 22 1.2.1 Estudos acerca da inserção feminina nas Forças Armadas do Brasil ........................... 22 1.2.2 Estudos em Forças Armadas no exterior ......................................................................... 30 1.2.3 Estudos em outras instituições masculinas/hierárquicas ................................................ 33 1.3 CONCLUSÕES PARCIAIS ..................................................................................................... 36 2. CAPÍTULO 2 – HISTÓRICO E SITUAÇÃO ATUAL DA PARTICIPAÇÃO DE MULHERES NAS FORÇAS ARMADAS DO BRASIL ................................................................. 37 2.1 CONTEXTO HISTÓRICO ...................................................................................................... 39 2.1.1 Mudanças políticas: transição democrática e um novo ciclo político ............................ 41 2.1.2 Transformações econômicas e sociais ................................................................................... 43 2.2 HISTÓRCO DA INSERÇÃO FEMININA NAS FORÇAS ARMADAS DO BRASIL ...... 46 2.2.1 Marinha do Brasil .............................................................................................................. 46 2.2.2 Força Aérea Brasileira ....................................................................................................... 48 2.2.3 Exército Brasileiro .............................................................................................................. 50 2.3 SITUAÇÃO ATUAL ................................................................................................................. 51 2.4 CONCLUSÕES PARCIAIS ..................................................................................................... 56 3. CAPÍTULO 3 – “SER MILITAR” POR MULHERES MILITARES – PERCEPÇÕES FEMININAS SOBRE SUAS EXPERIÊNCIAS NAS FORÇAS ARMADAS ............................... 58 3.1 ESCOLHA PELA CARREIRA E CURSO DE FORMAÇÃO ............................................. 59 3.2 IDENTIDADE E PROFISSÃO MILITAR NA ATUALIDADE .......................................... 64 3.2.1 Modernização da profissão militar ................................................................................... 67 3.3 EVOLUÇÃO E AVANÇOS DA PRESENÇA FEMININA NAS FORÇAS ARMADAS ... 69 3.4 CONCLUSÕES PARCIAIS ..................................................................................................... 73 CONCLUSÃO ..................................................................................................................................... 76 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 81 ANEXO - HIERARQUIA MILITAR DAS FORÇAS ARMADAS BRASILEIRAS .................... 85 13 INTRODUÇÃO Ao longo da história ocidental, as mulheres foram sistematicamente excluídas do campo de combate, mas isso não quer dizer que elas estiverem ausentes das guerras. Às legiões de combatentes seguiam mulheres encarregadas de toda sorte de tarefas: curandeiras e enfermeiras, lavandeiras, cozinheiras, prostitutas, encarregadas das correspondências ou mesmo de revistar o campo de batalha ao fim do confronto, recolhendo objetos de valor dos corpos caídos. Essa configuração se manteve dominante até o advento dos modernos exércitos industriais, onde as funções de apoio foram institucionalizadas dentro da hierarquia militar, as estruturas logísticas sofisticadas e a função militar crescentemente profissionalizada. Nas armadas, não há relatos recorrentes da presença de mulheres embarcadas nos navios militares. A mulher enquanto combatente figurou muito mais como uma figura mítica ou totem, normalmente travestidas de homens para poderem integrar as fileiras militares. No Brasil, o primeiro registro histórico de uma mulher que se incorporou às Forças Armadas foi da baiana Maria Quitéria de Jesus Medeiros, que 1822 se juntou às forças voluntárias que combateram as forças portuguesas e consolidaram a Independência do Brasil. O exemplo de Maria Quitéria é adotado pelas Forças Armadas como uma espécie de “mito fundacional” da mulher militar brasileira. Na Segunda Guerra Mundial, 67 enfermeiras brasileiras foram enviadas para o front europeu, as quais foram mandadas para a reserva ao final do conflito. Foi apenas em 1980 que as Forças Armadas do Brasil passaram a aceitar mulheres, ano da criação do Corpo Auxiliar Feminino na Marinha. O primeiro processo seletivo para o Corpo Auxiliar Feminino admitiu 514 candidatas de diferentes áreas. Em 1982, a Força Aérea criou o Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica. Apenas em 1989 o Exército passou a admitir mulheres no recém-criado Quadro Complementar de Oficiais. Nos últimos 40 anos, as Forças Armadas brasileiras passaram por diversas transformações, como o retorno para o controle civil ao fim da Ditadura Militar e a unificação das três Forças em um único Comando com a criação do Ministério da Defesa em 1999. Contudo, a mudança mais significativa foi, possivelmente, essa incorporação de mulheres às fileiras militares, que tem desafiado a instituição de diversas maneiras. Isso se deve ao fato de que se abrir para a entrada de mulheres requer uma série de planejamentos e adaptações, que vão desde mudanças físicas nas instalações militares, passando por códigos de comportamento 14 e relacionamento, adequação de testes físicos, até um acompanhamento do desempenho dessas mulheres uma vez integradas. O objeto deste trabalho é, assim, o processo de inserção feminina nas Forças Armadas do Brasil nos últimos 40 anos. O objetivo principal é analisar historicamente e compreender as dinâmicas e tensões atuais em torno desse processo, atentando para as construções de gênero nas instituições militares e nas sociedades nas quais estão inseridas, em sentido amplificado. Nesse sentido, são levantadas algumas perguntas: 1) Quais são os motivos que levaram as Forças Armadas brasileiras a se abrirem apara a entrada de mulheres? 2) Levando em consideração que o ethos militar é amplamente baseado em ideaisde masculinidade e virilidades, como são interpretados e (des)apropriados os estereótipos de gênero? 3) De maneira mais ampla, como tem se dado o processo de integração de mulheres às Forças Armadas brasileiras? Inicialmente, podemos levantar algumas hipóteses: 1) A abertura das Forças Armadas à presença feminina foi motivada, em um primeiro momento, tanto pela necessidade de complementar quadros dentro das Forças quanto como meio de melhorar a imagem da instituição junto à sociedade civil; 2) mesmo com o pioneirismo da entrada de mulheres em uma instituição tradicionalmente masculina, os estereótipos tradicionais de gênero são mantidos e até mesmo reforçados em algumas situações, constituindo um obstáculo à total integração das mulheres nas Forças Armadas; 3) o processo de inserção feminina tem se dado de maneira ainda restrita, baseada amplamente em papeis de gênero e na divisão sexual tradicional; o que é evidenciado pelo caráter gradual da admissão feminina e pelas funções nas quais são permitidas às mulheres servirem. A pesquisa em questão possui um forte cunho qualitativo. Em um primeiro momento será realizado uma análise bibliográfica acerca do tema em questão, a fim de elucidar alguns pontos importantes para o debate. Aqui cabe se debruçar sobre o que as pesquisas acerca do papel que as mulheres cumprem nas Forças Armadas nos têm a dizer, especialmente aquelas que tratam da inserção e papel das mulheres dentro da caserna1. No que tange ao contexto atual de presença de mulheres nas Forças Armadas, serão analisados dados secundários fornecidos por fontes governamentais variadas. Para a parte empírica, partiu-se de duas entrevistas semi- 1 O termo caserna é sinônimo de quartel, ou local onde são alojados as/os soldados. No Brasil, utilizamos também como equivalente à carreira militar. 15 estruturadas feitas em profundidade com oficiais, tanto da ativa quanto da reserva, do Quadro de Médicos do Corpo de Saúde da Marinha do Brasil. Desde a redemocratização, em 1985, as Forças Armadas estão submetidas ao poder civil e, tecnicamente, ao controle da sociedade. No entanto, dado o caráter conservador da transição democrática que o país atravessou e anistia concedida a agentes do regime militar, ainda existem diversos constrangimentos dentro da sociedade civil em debater temas relacionados às Forças Armadas – um exemplo pungente é inexistência de um posicionamento do movimento feminista, ou mesmo de movimentos de mulheres, acerca da incorporação de mulheres nas fileiras militares. Ainda que esse panorama venha se alterando nos últimos anos, são poucos os pesquisadores comprometidos com esses temas. Promover esse debate é uma contribuição importante da academia civil, por assim dizer, para o processo de democratização das Forças Armadas brasileiras. Dessa forma, a principal justificativa dessa pesquisa diz respeito à carência de estudos na Sociologia sobre temáticas relativas às Forças Armadas, sobretudo em seu cruzamento com as temáticas de gênero e feministas, o que contribui para ressalta a relevância da proposta aqui defendida. Se os estudos sobre as Forças Armadas não são parte do mainstream das ciências sociais brasileiras, os estudos que fazem um recorte de gênero são ainda mais escanteados. “A ‘mulher soldado’ é um tema duplamente ausente nos estudos acadêmicos: não é discutido pelos grupos que se dedicam aos estudos de gênero e nem pela sociologia militar” (MATHIAS e ADÃO, 2008). Como forma de atingir o objetivo acima exposto e averiguar as hipóteses supracitadas, este trabalho será dividido em três capítulos. Inicialmente, será realizada uma revisão bibliográfica em torno de dois eixos. O primeiro será voltando para um debate mais teórico sobre as formas como são organizadas as relações de gênero, partindo da conceptualização de Connell (2005) sobre masculinidades. Nesse sentido, adotar uma concepção menos engessada da forma como se estruturam as relações de gênero auxilia a evitar um erro comum, que é homogeneizar a forma como todos os homens se comportam em relação às companheiras de farda ou como as mulheres entendem seu papel lá dentro. Um segundo eixo girará em torno de estudos mais específicos sobre a presença de mulheres nas Forças Armadas brasileiras, primordialmente, trazendo também algumas pesquisas com experiências estrangeiras, além de exemplos de inserção de mulheres em outros ambientes hierárquicos e tradicionalmente masculinos. 16 O segundo capítulo será dedicado a uma abordagem histórica da presença de mulheres na carreira militar no Brasil2. Para isso, parte-se do contexto em que se deu a abertura, na década de 1980, abordando aspectos políticos, sociais, econômicos e institucionais desse momento. Em seguida, será realizada uma recapitulação do processo histórico de admissão feminina nas três Forças separadamente. Depois, será traçado um panorama do atual estágio de inserção feminina nas Forças Armadas brasileiras, buscando enfatizar as limitações dessa presença e alguns dos desafios que se mantém à consolidação desse processo. O terceiro capítulo estrutura-se a partir de entrevistas em profundidade realizadas com duas médicas da Marinha, uma delas do quadro de oficiais subalternos e a outra Capitão de Mar e Guerra já transferida para a reserva. Partindo de mulheres do mesmo quadro (médico), busca- se colocar em relevo a diversidade de experiências e pontos-de-vista no que diz respeito à carreira militar, procurando se afastar de visões que unificam e simplificam as trajetórias femininas dentro de tal instituição. O capítulo será, então, estruturado em tornos de três eixos: escolha pela carreira militar e curso de formação; identidade e profissão militar na atualidade; e evoluções e avanços no processo de integração feminina nas Forças Armadas. Dentro desses eixos, procuraremos retomar aspectos da revisão bibliográfica e capítulo 2 e relacioná-los com os relatos dessas mulheres. 2 Ainda que “carreira militar” possa se referir à Polícia Militar no âmbito do Brasil, neste trabalho a expressão será adotada sempre em referência às Forças Armadas. 17 1. CAPÍTULO 1 – REVISÃO BIBLIOGRÁFICA A presença das mulheres nas Forças Armadas do Brasil, ainda que limitada a algumas funções, é fato consolidado. No entanto, isso não significa que o assunto tenha ganhado a devida atenção enquanto objeto de pesquisa. Podemos contabilizar alguns estudos que traçam um quadro mais geral da admissão de mulheres nas Forças Armadas, relacionando-o com as mudanças sociais, políticas e econômicas que o país atravessou nas últimas décadas, assim como com a submissão dos militares ao poder democrático (D’ARAÚJO, 2000; 2003; 2004; MATHIAS, 2005; MATHIAS e ADÃO, 2008; 2013; SANTOS, 2009; GIANNINI, FOLLY e LIMA, 2017), as características do processo decisório e a evolução de políticas de defesa com enfoque em gênero no Brasil (ALMEIDA, 2010; MATOS, REIS, et al., 2016), e estudos mais delimitados nas Forças ou em instituições militares específicas (CARVALHO, 1990; TAKAHASHI, 2002; 2007; SCHMIDT, CURTY, et al., 2005; BAQUIM, 2007; SILVA, 2007; LOMBARDI, BRUSCHINI e MERCADO, 2009; SANTOS e ROCHA-COUTINHO, 2010; GOMES, 2014). Tendo as instituições militares como lócus da pesquisa, importa debater como se desenvolvem as relações de gênero e a construção dos papeis esperados de homens e mulheres nesse ambiente. Alguns estudos (SILVA, 2007; GOMES, 2014) utilizam a ideia de dominação masculina de Bourdieu (1995; 2003) como ponto de partida para entender as interações na corporação e as expectativas sobre as mulheres. Contudo, esse conceito é problemático de várias maneiras, especialmente no que diz respeito à universalização da dominação, em que a alterações nesse panorama só seriampossíveis com mudanças estruturais mais profundas. Se partíssemos de uma visão universalizante sobre a dominação masculina e como ela é replicada nos diferentes ambientes, sobraria pouco para pensarmos a posição das mulheres nos contextos militares – um papel que seria sempre relegado à submissão e a adoção de estereótipos de gênero. Para pensar as múltiplas formas em que as expectativas sobre a masculinidade e a identidade militar se desenvolvem nos ambientes militares, assim como captar as contradições embutidas nesse processo, propõe-se partir da ideia de masculinidades apresentada por Connell (2005). Esse capítulo será destinado, então, a uma revisão bibliográfica acerca da inserção de mulheres em ambientes tradicionalmente masculinos ou militares e/ou hierárquicos. Para isso, em primeiro lugar será debatida a concepção de masculinidade de Connell, com um esforço de aplicá-la para o contexto das Foças Armadas. Depois, serão apresentadas pesquisas realizadas 18 nas Forças Armadas brasileiras, em especial aqueles que buscam medir os impactos da entrada de mulheres nessa corporação, assim como as percepções dos colegas homens sobre elas, além de relatos femininos sobre suas perspectivas e dificuldades. Serão trazidos, ainda, alguns estudos levados a cabo em Forças Armadas estrangeiras, e em outras instituições marcadamente masculinas e hierárquicas, como polícias e corpos diplomáticos. Por fim, algumas considerações parciais serão levantadas acerca dos estudos aqui debatidos. 1.1 MASCULINIDADE(S) - APORTE TEÓRICO PARA PENSAR A CONFIGURAÇÃO DAS RELAÇÕES DE GÊNERO NAS INSTITUIÇÕES MILITARES R. Connell (2005) faz uma crítica às teorias que empregam a noção de papeis sexuais determinados e estanques, uma vez que estas estariam assentadas em visões pré-determinadas do que seriam os papeis femininos e masculinos, visões essas oriundas de noções enraizadas na cultura do(a) pesquisador(a). Ter em conta a noção de papeis de gênero como algo fixo requer partir do pressuposto de uma certa passividade na absorção dos estereótipos sociais por crianças e adolescentes. Essa ideia de papeis de gênero dificultaria, ainda, a possibilidade de ver diferenças dentro dos grupos de homens e mulheres. Assim, Connell recusa qualquer definição essencialista acerca das relações de gênero, do que é “ser mulher” ou “ser homem”, afirmando que cada sociedade, cada momento histórico, nos variados grupos sociais, apresenta padrões diferentes de masculinidade e feminilidade – a própria existência de um conceito de masculinidade é contingente e histórica (CARVALHO, 2011). A autora descreve a emergência de padrões variados de feminilidade e masculinidade a partir de processos sociais complexos. Essas masculinidades e feminilidades podem seguir diferentes trajetórias ao longo do tempo, sendo sempre passíveis de contradições internas e rupturas históricas. Tem sido comum nos escritos históricos identificar essa mudança como vinda de fora – da tecnologia ou das dinâmicas de classe, mais frequentemente. Mas a mudança é também gerada dentro das relações de gênero. E essa dinâmica é tão velha quanto as relações de gênero (CONNELL, 2005). De acordo com Connell (2005), a concepção de masculinidade que adotamos no ocidente hoje se desenvolveu na Europa nos primórdios da era moderna, e é baseada na concepção de individualidade que se originou com o crescimento dos impérios coloniais e o progresso das relações econômicas capitalistas. Esse conceito de masculinidade da modernidade ocidental precisa ser entendido dentro de sua lógica inerentemente relacional: a masculinidade não existe se não em oposição à feminilidade. Ainda, é uma noção que no seu 19 uso moderno assume que o comportamento de um indivíduo se dá de acordo com o tipo de pessoa que é, dentro dessas características polarizadas. Ao colocar o gênero como uma maneira de estruturar prática social em geral, e não um tipo especial de prática, Connell (2005) demonstra que ele se relaciona com outras estruturas sociais. É comum se dizer agora que o gênero se intersecta – ou melhor, interage – com raça e classe. Nós podemos adicionar que ele também interage constantemente com a nacionalidade e a posição no mundo. [...]Para entender o gênero, precisamos constantemente ir além do gênero. O mesmo se aplica para o inverso. Não podemos entender classe, raça ou desigualdade global sem constantemente se mover em direção ao gênero. Relações de gênero são um componente majoritário da estrutura social como um todo, e políticas de gênero estão entre os principais determinantes de nosso destino coletivo. (CONNELL, 2005, p. 74-74. Tradução nossa) Da mesma maneira, ao longo da história, coexistiram – e coexistem – diversas formas de masculinidade e feminilidade: “a masculinidade do homem branco é construída não apenas em relação à mulher branca, mas também em relação ao homem negro” (CONNELL, 2005, p. 74. Tradução nossa). Nessa teia, as diversas masculinidades estão em disputa permanente e dinâmica, num processo de disputa pela posição de masculinidade hegemônica – ainda que coexistam e se relacionem de maneiras diferentes, Connell afirma que não existe a ideia de uma feminilidade hegemônica, pois sempre está em situação subordinada a alguma forma de masculinidade. Aqui, Connell (2005) pega emprestado o conceito de hegemonia da análise de Gramsci sobre as interações e lutas entre as classes sociais. A hegemonia diz respeito, então à dinâmica cultural pela qual um grupo clama e sustenta uma posição dominante na vida social. Em qualquer momento da história, uma forma de masculinidade em vez de outras é culturalmente exaltada. Dessa maneira, “a masculinidade hegemônica pode ser definida como a configuração de prática de gênero que incorpora a resposta correntemente aceita ao problema da legitimidade do patriarcado que garante a (ou é dada como garantidora da) posição dominante dos homens e subordinada das mulheres” (CONNELL, 2005, p. 77. Tradução nossa). Essa concepção de masculinidade hegemônica em disputa com outras formas de masculinidades pode ser transbordada para pensar as formas em que se constrõe as concepções de gênero dentro das Forças Armadas, da mesma maneira que para analisar como a identidade militar se desenvolve em associação à concepções de masculinidade. 20 É nesse sentido que podemos encontrar uma chave analítica para entender como se dão as expectativas sobre homens e mulheres nas instituições militares. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que as instituições militares foram construídas historicamente em cima de concepções normativas de gênero, onde o sexo masculino é identificado com valores associados à virilidade, agressividade e força física; enquanto o sexo feminino remete à maternidade, ao lar, à fragilidade e necessidade de ser protegida. Assim, a caserna não tem sido apenas restrita a um gênero, mas funcionado como uma instituição generificadora, que atribui e define gênero, levando a proporções muito maiores – praticamente um microcosmos – as dinâmicas sociais de gênero. De um lado, as instituições militares amplificam padrões culturais dominantes, e, no outro, participam ativamente de sua construção e reprodução (CARREIRAS e ALEXANDRE, 2013). Essa dualidade associada à oposição entre feminino e masculino não existe, no entanto, de maneira isolada. As categorias embutidas nessa polarização estão inseridas em um sistema estrutural de conceitos que dá sustentação à articulação entre gênero, paz e guerra (MACDONALD, 1987 apud CARREIRAS, 2009). Embora seu sentido e carga moral possam variar, nessa matriz simbólica paz e passividade ocupam frequentemente a mesma localização oposta a um conjunto que inclui masculinidade, guerra e atividade. [...]Nessa matriz simbólica, feminilidade, paz e passividade tem frequentemente uma mesma localização, oposta a outro conjunto que incluimasculinidade, guerra e atividade – conceitos interligados que envolvem em sua órbita muitos outros dualismos, tais como privado-público e doméstico-político. Nesse quadro, a imagem da mulher desempenha um papel crucial na própria definição do militar, na medida em que funciona como alteridade referencial: para além dos modelos masculinos do “herói”, do “camarada” ou do “verdadeiro homem”, o soldado é muitas vezes confrontado com imagens negativas, de mulheres ou homossexuais, utilizadas para representar as qualidades fracas ou ineficazes do recruta. (CARREIRAS, 2009, p. 173) Contudo, esses estereótipos de masculinidade e símbolos masculinos associados à violência e ao heroísmo passaram por transformações consideráveis ao longo da história. Por exemplo, por muito tempo, a imagem do soldado foi ligada ao cavalheirismo e ao heroísmo, ao passo que a emergência dos regimes fascistas no início do século XX esteve associada à construção de imaginários e narrativas nacionais fortemente baseados em ideais agressivos, dominantes e violentos de masculinidade (JESUS, 2014). Da mesma maneira, dentro das instituições militares emergiram e coexistem vários modelos de masculinidade. Isso pode ser associado a diversos fatores, como estarem inseridas em ambientes mais ou menos violentos ou 21 próximos de conflitos, do estágio da tecnologia empregada, da forma de organização militar e recrutamento – conscrição ou profissional, etc. Na demarcação entre funções de combate direto e de apoio é possível encontrar também demarcações de masculinidade. Homens em posições ligadas ao combate costumam ser considerados – e se considerarem – mais “duros” que aqueles alocados em outras unidades. “Estes últimos, por seu turno, poderão partilhar a ideia de masculinidade “machista” de muitos de seus companheiros pode funcionar como uma compensação para a falta de qualificações tecnológicas” (CARREIRAS, 2009, p. 175). Ao mesmo tempo, a incorporação das mulheres às forças militares em status militar integral tem se dado principalmente em funções de apoio, sendo pouquíssimos os países que possibilitam o acesso feminino a todas as carreiras das Forças Armadas ou policiais Dessa heterogeneidade de ambientes características das instituições militares resulta uma gama de masculinidades associadas à profissão militar. E é justamente devido a essa diversidade que a cultura militar deverá ser entendida em termos da relação entre várias “masculinidades” (CONNEL, 1987; 1995 apud CARREIRAS, 2009). A existência de vários arquétipos de masculinidade – algumas fisicamente violentas, mas subordinadas a ordens, outras dominantes e organizacionalmente competentes – e a forma como eles se relacionam é o que pode nos auxiliar no processo de entender o estado presente das relações de gênero nas organizações militares. Na realidade, coloca Carreiras (2009), seria impreciso e ingênuo supor que as operações militares realmente funcionem com base nos estereótipos tradicionais de heroísmo. Inclusive, atualmente, “a maioria dos líderes militares subscreveria à ideia de que ‘não queremos tipos Rambo a guiar nossos jipes e caminhões de fornecimento’” (CONNEL, 1995 apud CARREIRAS, 2009, p. 176). Sendo as Forças Armadas um ambiente tradicionalmente tido como masculino, cabe um olhar mais atento às dinâmicas relacionais no nível microssocial levando em conta o marco das masculinidades (e feminilidades). Essa atenção serve para perceber algumas questões, tais como – e se – se dão as formas de contraposição das mulheres à masculinidade hegemônica dos meios em que estão inseridas; como essas mulheres acabam se associando – e sendo associadas – a padrões de feminilidade e mesmo de masculinidade militares; e, da mesma forma, como os comportamentos dos homens militares podem ser compreendidos para além de um demarcador de masculinidade hegemônico. 22 1.2 INSERÇÃO DE MULHERES EM AMBIENTES MILITARES/HIERÁRQUICOS 1.2.1 Estudos acerca da inserção feminina nas Forças Armadas do Brasil Sônia Carvalho (1990) foi a pioneira em estudos sobre mulheres nas Forças Armadas no Brasil. Em um estudo sobre as mulheres militares do Centro de Aplicações Táticas e Recompletamento de Equipagens/base naval (CATRE – Parnamirim/RN), ela se focou nas relações entre homens e mulheres militares, e a partir daí e das condições de trabalho delas dentro da instituição, como o reconhecimento das mesmas naquele ambiente se dá sobre sua condição de mulher antes do fato de ser militar (CARVALHO, 1990). A instituição militar, quando da entrada dessas mulheres, reproduz as noções tradicionais acerca do gênero feminino e se apropria de suas representações simbólicas, com ênfase na mulher frágil e necessitada de proteção. Nesse sentido, esse tratamento mais delicado seria “um mecanismo de relação de poder porque revela a proteção do mais forte ao mais fraco, do dominante sobre o dominado” (CARVALHO, 1990, p. 146). A autora assinala que a estrutura disciplinar militar foi construída ancorada em determinados valores – displina, hierarquia, bravura, honra, etc – que são visto sobretudo como valores masculinos. A adaptação das mulheres à vida militar significa, em grande parte, internalizar esses elementos: “ não existe mulher ou homem, existe o militar, porém o código é masculino, portanto, a mulher se sobrepõe a identidade militar e se torna ‘militar homem’. A mulher é negada como mulher, assimila essa negação e passa a ser o militar e não a militar” (CARAVALHO, 1990, p. 90. Grifo nosso). Não existe, nessa dicotomia, espaço lugar para a “mulher militar”, ou se é uma militar mulher ou simplesmente militar, com denotação masculina. Ponto adjacente é levantado pelas cadetes entrevistadas por Giannini, Folly e Lima (2017). A preocupação é de que exista uma generalização das ações de uma mulher como representativa da de todas – os erros ou acertos de uma aluna acabaria representando o conjunto das mulheres. “Uma entrevistada sublinhou que ‘a inserção da mulher só será integral quando a Força enxergá-la primeiro como militar e depois como mulher’” (GIANNINI, FOLLY e LIMA, 2017. Grifo nosso). Cristina Rodrigues da Silva (2007) realizou uma observação etnográfica na Academia da Força Aérea (AFA – Pirassununga/SP) e entrevistas com mulheres militares da AFA e do Instituto Militar de Engenharia (IME – Rio de Janeiro/RJ). O estudo “objetivou compreender os indivíduos inseridos na instituição militar, focalizando a presença das mulheres nas Forças Armadas, na tentativa de buscar uma inter-relação entre estudos militares e gênero” (SILVA, 23 2007, p.17). Partindo da mesma hipótese de Carvalho (1990), de que “ser mulher” se sobrepõe ao fato de ser militar” dentro das instituições militares, a pesquisadora consegue destacar a diferença de tratamento que recebem as mulheres nesses ambientes, e que não só a hipótese acima pode ser confirmada, mas também, em determinados contextos ser parecido com um homem aproxima mais as mulheres da realidade militar. Das conversas com as cadetes da AFA, “temos que o fato da intensa cobrança, consequente de serem tidas como o foco em quase todas as situações vivenciadas na Academia, é a maior desvantagem – e leia-se desigualdade – para elas no meio militar” (SILVA, 2007, p.13). Uma série de ocasiões foram relatadas por elas, especialmente nos chamados “Exercícios de Campanha “ – saídas de campo e acampamentos – em que eram as únicas submetidas a atividades tais quais matar coelhos e cobras, como forma de mostrar que elas eram mais fracas e vulneráveis que os homens. Acerca da afirmação de que, em determinados contextos, ser parecido com um homem aproxima mais as mulheres da realidade militar, Silva (2007) retoma a tradicional associação dos valores militares à masculinidade – ou, partindo dos termos propostos por Connell (2005), a uma masculinidade hegemônica: “esses elementos [militares]são os próprios valores apreendidos na Academia, como os ideais de liderança e coragem, que sempre foram marcados, seja no mundo militar ou no civil, como valores “inatos” do homem” (SILVA, 2007, p.15). Assim, as cadetes através de sua formação passariam a apresentar mais elementos socialmente percebidos como masculinos que femininos – como a fraqueza, vaidade, inocência, etc. No entanto, uma ressalva precisa ser feita aqui. Ainda que as mulheres reconheçam o espaço militar como um ambiente masculino e mesmo paternalista, elas “indicam que há situações em que elas empregam atitudes e comportamentos mais femininos que trazem mudanças positivas nas relações dentro da instituição militar. [...] Um traço de feminilidade na masculinidade” (SILVA, 2007, p.16). Outro estudo desenvolvido em instituições das Forças Armadas Brasileiras é a tese de doutorado de Emília Takahashi, professora de Psicologia da Academia da Força Aérea. Takahashi (2002) realizou sua pesquisa na própria AFA, a qual permite a entrada de mulheres desde 1996. Sobre a primeira turma, a autora relata que na maior parte as novas cadetes eram oriundas das capitais, especialmente do Rio de Janeiro, e aquelas advindas de cidades do interior eram de cidades como São José dos Campos – SP, onde existem instituições ligadas à Força Aérea. A abertura para cadetes do sexo feminino trouxe uma série de mudanças em regulamentos e procedimentos na AFA, que passaram a determinar, entre outras coisas, a padronização do uso de adornos, maquiagem, roupas íntimas e do corte de unhas das cadetes; 24 a necessidade de comunicação de efetivação e/ou rompimento de relacionamento afetivo no interior de organizações militares – não é proibido que cadetes de sexos opostos se relacionem, porém esses relacionamentos precisam ser comunicados ao Comando do Esquadrão, ficando vedado qualquer tipo de contato físico afetivo dentro da Academia; a proibição do acesso de cadetes a alojamentos do sexo oposto (TAKAHASHI, 2002; 2007). Da mesma forma, a entrada de cadetes e aspirantes do sexo feminino motivou uma série de adaptações físicas nas instituições, como a adaptação de dormitórios, banheiros e leitos nas enfermarias especiais para as mulheres. Os custos envolvidos nessas “melhorias” são recorrentemente colocados como empecilho para a ampliação da presença feminina – exemplo disso é o fato de que os vasos de guerra da Marinha ainda não foram adaptados para receberem as aspirantes que venham a escolher, quando possível, a Armada (GIANNINI, FOLLY e LIMA, 2017). As mesmas autoras apontam que é preciso ter cuidado com a separação física entre homens e mulheres. Ao passo que a entrada de mulheres nas academias é uma transformação significativa nas relações diárias da instituição, faz-se necessário abordar com cautela “o reforço de estereótipos sociais de homens e mulheres que pode causar a separação dos militares por segmentos masculino e feminino. Além disso, a segregação afeta a própria noção de espírito de corpo, tão necessária ao cumprimento das missões militares” (GIANNINI, FOLLY e LIMA, 2017). Takahashi (2002; 2007) traz uma série de dificuldades encaradas pelas cadetes pioneiras da primeira turma mista na AFA. De início, as alunas entrevistadas relatavam que pensavam que todos os seus colegas não as desejavam lá, pois elas “representavam uma “ameaça” ao militarismo, elas seriam a causa da suspensão de alguns “privilégios” dos cadetes (falar “palavrão”, “assistir vídeos eróticos” longe dos olhos dos oficiais, entre outros) e da desunião do Corpo” (TAKAHASHI, 2007, p. 3). Os comentários maldosos e piadas sobre a presença das cadetes eram frequentes, tanto de colegas como de oficiais. Os exercícios físicos, que em alguns casos são diferentes para mulheres e homens, eram outra razão para as alunas serem acusadas de serem protegidas e favorecidas, além de percebidas como menos aptas à profissão militar. A saída que grande parte delas encontrou para serem mais respeitadas dentro da instituição foi um esforço em acompanhar os homens em todas as atividades, mesmo as físicas, e um certo processo de “embrutecimento” – masculinização. Sobre a interação entre as alunas e os alunos, uma das primeiras percepções que a autora traz, em consonância com o relato de Silva (2007), é de que os cadetes, tendo em mente os 25 estereótipos tradicionais de gênero e os valores associados à função militar, acreditavam que as colegas estariam ocupando um espaço que não lhes pertencia. Eles consideravam que [As] mulheres “amolecem” o ambiente, são mais competitivas, mais difíceis de se doutrinar, não conseguem se impor quando no comando, “brincam” de fazer educação física, recebem tratamento diferenciado, e apresentam menos espírito de corpo do que os homens. [...][Por outro lado], as cadetes se aproximariam do estereótipo da mulher manipuladora, aquela que seduz, causa intriga e utiliza de suas potencialidades para o autofavorecimento. Este estereótipo é comumente ligado à corrupção do ambiente no qual esta mulher é introduzida. [...] [Em resumo], As mulheres foram identificadas com amolecimento e incapacidade física; os homens com capacidade de suportar pressão e com potência. Esta oposição justificaria o fato dos homens ocuparem as posições de comando, para as quais estariam “naturalmente” preparados. Os postos que necessitassem de orientação e obediência deveriam ser ocupados pelas cadetes que, por sua “fragilidade” e “debilidade”, estariam melhor colocadas neles (TAKAHASHI, 2002, p. 216-217. Grifo nosso). Ou seja, além da associação corriqueira da feminilidade com a fraqueza e a posição da vítima – em oposição ao combatente –, os valores vistos como femininos são extremamente negativos e reforçam a da mulher como manipuladora e não-confiável. Para mudar esse quadro, os cadetes acreditavam que as mulheres precisavam adquirir e demonstrar características tidas como masculinas, ou não se sairiam bem nos testes e não poderiam atuar em postos de comando. Essa suposta inaptidão ao comando foi percebida por muitos alunos como uma inversão de papeis, em que a obediência às mulheres não seria legítima. Nas palavras de um cadete entrevistado pela autora: “em termos de liderança, a mudança não foi tão positiva, porque o pessoal não gosta de abaixar a cabeça para mulher” (TAKAHASHI, 2002, p. 187). O desconforto e a desconfiança em relação às cadetes foi sendo diluído à medida que foram entrando novas turmas mistas e essas mulheres passaram a se destacar intelectual e militarmente, ganhando respeito de seus colegas e superiores, e ao final dos quatro anos de formação das pioneiras, já eram notáveis as melhorias na convivência (BRASIL, 2000; TAKAHASHI 2002; 2007). Chama atenção o fato de que ao longo dos quatro primeiros anos após essa abertura, houve um grande aumento das médias obtidas junto à Divisão de Ensino dos cadetes do curso de Intendência – até então, único curso que aceitava mulheres. Segundo os oficiais entrevistados, passado um período inicial de adaptação, as alunas estavam igualmente integradas, demonstrando atém mesmo desempenho melhor que seus companheiros em diversas tarefas, o que acabava por alavancar o desempenho dos cadetes também. (TAKAHASHI, 2002; 2007). De acordo com o relatório da Comissão de Acompanhamento do CFOInt Feminino, 26 O acompanhamento dos grupos mistos nas atividades acadêmicas revelou que, inicialmente, as cadetes destacavam-se em todos os envolvimentos na Divisão de Ensino: participação nas aulas, demonstração de interesse, criatividade e seriedade. Com o passar dos meses, os cadetes adotaram condutas semelhantes. Como resultado, houve uma elevação no nível desses grupos com consequente melhora (sic) de qualidade no preparo profissional, [...] elevação da qualidade individual e grupal, melhora de atitude diante de assuntos profissionais e uma postura de melhor entendimento,aceitação e maior respeito com relação à mulher no campo profissional (BRASIL, 2000, p. 9). Na mesma linha, está o trabalho de Schmidt, Curty et al (2005), que realizaram um estudo sob o enfoque das teorias sobre mudança organizacional a partir da entrada de cadetes aviadoras no Segundo Esquadrão de Instrução Aérea na AFA, buscando compreender o fenômeno da mudança organizacional quando desencadeado pela questão de gênero. De um lado, as resistências à entrada de mulheres se deu principalmente de forma indireta e velada. Entre os comportamentos que geravam um ambiente hostil às alunas, as autoras citam brincadeiras dos cadetes que questionavam a capacidade e a inteligência femininas, fofocas e comentários negativos feitos nos alojamentos masculinos e um sentimento de superioridade por parte dos colegas, já que muitos homens se sentiam superiores a suas companheiras de farda. É relatado um ceticismo acerca das capacidades das pilotas, amplamente baseados em concepções sobre “deficiências biológicas e fisiológicas da mulher, que segundo eles, dificultariam algumas atividades, como o pouso da aeronave” (SCHMIDT, CURTY, et al., 2005, p. 10). Para superar essas expectativas, muitas mulheres relataram a necessidade de se provarem, tendo desempenho superior ao de seus colegas homens. Ainda, percebiam que seus erros eram mais visados, o que aumentava a responsabilidade sobre elas (SCHMIDT, CURTY, et al., 2005). Por outro lado, a facilitação da aceitação – ou pelo menos, uma pretensa aceitação – deu-se em grande parte por conta da estrutura altamente hierarquizada da instituição e o cenário de disciplina e organização, especialmente pelo fato de que a ordem veio diretamente do Comandante da instituição, havendo uma grande pressão pela aceitação; no entanto, isso não eliminou as resistências individuais. Houve, nesse sentido, a adoção de uma série de medidas por parte da academia para auxiliar no processo, “como a convocação de instrutores com um perfil mais ‘cuidadoso’ e com uma linguagem mais polida, além da orientação aos cadetes mais antigos para a adoção de um comportamento ‘compatível’” (SCHMIDT, CURTY, et al., 2005, p. 7). As autoras pontuam que a adoção dessas medidas teve consequências positivas para as relações dentro da instituição, como a minimização dos possíveis conflitos e situação de mal- estar entre cadetes e superiores, a melhoria do tratamento dos instrutores com os cadetes do sexo masculino e uma percepção de maior profissionalismo por parte desses. 27 Marina Miranda Lery Santos e Maria Lúcia Rocha-Coutinho (2010) também levaram a cabo um estudo sobre (e com) as primeiras cadetes aviadoras da AFA: elas entrevistaram seis das onze aviadoras que se formaram em dezembro de 2006. Algo que chama a atenção nos relatos das autoras é um discurso que, apesar de pautar a igualdade entre os sexos, é marcado pela ideia da existência de características fundamentalmente femininas. Isso se traduz na crença bastante difundida entre elas de que algumas funções são mais adequadas para homens e outras para mulheres. Nesse caso, qualidades femininas como o “fato de as mulheres serem, por natureza, mais caprichosas, cuidadosas e, principalmente, mais detalhistas, [...] segundo elas, ajuda muito na profissão escolhida” (SANTOS e ROCHA-COUTINHO, 2010, p. 263). Um padrão nas entrevistas com Oficiais é um sentimento paternalista em relação às cadetes (D'ARAÚJO, 2000; 2003; TAKAHASHI, 2002; 2007; SILVA; 2007). De início, há uma preocupação com a segurança e o bem-estar das mulheres que adentram as fileiras militares, em grande parte pela percepção dessas como seres frágeis. De um lado, essa percepção que gerou a oposição de alguns quadros à entrada de mulheres, com a argumentação que isso diminuiria a coesão entre a tropa – homens se arriscariam mais para proteger suas colegas, a Força seria enfraquecida devido à emotividade feminina e perderia credibilidade frente a outras Forças (TAKAHASHI, 2007). Por outro lado, apesar de não ser capaz de continuar vetando a admissão de mulheres, essa argumentação continou a basear a exclusão em certas atividades consideradas de risco e de rigor disciplinar e, portanto, consideradas masculinas (D'ARAÚJO, 2003). Além disso, de início havia confusão em relação ao tratamento dispensado pelos Oficiais às cadetes, tratamento em vezes educados demais, levando em consideração o ambiente altamente hierarquizado em que essas relações estavam inseridas, em vezes preconceituoso (SILVA, 2007). Esse ponto é reforçado nos relatos das entrevistas realizadas por Giannini, Folly e Lima (2017). Entre os relatos da AFA, há um reconhecimento, por parte dos oficiais homens, de que eles tendem a ser menos rudes com as aviadoras. Ainda, especialmente entre os instrutores das primeiras turmas aviadoras, existia uma postura bastante paternalista com as cadetes, e mesmo de ceticismo em relação a suas capacidades. Essa “dificuldade em tratá-las com a rigidez necessária teria, portanto, contribuído para a percepção de que elas eram excessivamente beneficiadas, o que acabou por dificultar o processo de integração das mesmas” (GIANNINI, FOLLY e LIMA, 2017). Entre as mulheres abordadas, houve uma concordância com esse ponto, ressaltando, ainda, que essa atenção e cuidados excessivos com as cadetes foi responsável por cultivar algum tipo de rivalidade entre mulheres e homens, já que eles se 28 sentiam que as colegas eram favorecidas. No entanto, essas posturas paternalistas foram suavizadas ao longo do tempo, e a crescente familiaridade com a presença de mulheres tendeu a equalizar o tratamento despendido a cadetes de diferentes sexos por parte dos instrutores (GIANNINI, FOLLY e LIMA, 2017). Gomes (2014) ressalta a existência de “tetos de vidro” no processo de incorporação feminina ao Exército, que apareceriam na escassa presença de mulheres nas patentes mais altas de oficiais superiores, como tenente-coronel e coronel, onde são concentradas as funções “como as de chefes de seção ou de comandantes, o que limita bastante a esfera de atuação das mulheres, uma vez que as instituições militares são pautadas pela hierarquização funcional e organizacional” (GOMES, 2014, p. 95). Essa alienação das mulheres de posições com maior poder decisório implica, da mesma forma, que elas possuam pouco ou nenhum controle sobre as questões que lhes dizem respeito diretamente. O autor defende que a entrada das mulheres é semelhante à inserção de qualquer “minoria” – aqui ele compara com pessoal de suporte técnico ou civis – e “será sempre repudiada com uma presença diferencial e ameaçadora, porque distinta” (GOMES, 2014, p. 95) daquela prevista pelo código militar. Para Gomes, esse “teto de vidro” também se traduz como um “piso de vidro” na medida em que é vetado às mulheres o serviço militar obrigatório. Em termos de imagem, o soldado raso encarna os “vetores principais da identidade militar, [...] é alçado à condição de figura icônica e emblemática do militar, o que se exprime em uma expressão típica da instituição militar quando se busca expressar a valorização de uma vida rústica” (GOMES, 2014, p. 98); é o mito de Caxias. A ausência das mulheres tanto como soldados quanto nas linhas bélicas envolvidas com combate reforça afetaria, dessa maneira, a percepção delas enquanto militares de fato¸ já que não estariam ocupadas efetivamente com o fazer guerra. As entrevistas levadas a cabo pelo autor reforçam esse panorama, já que, no que tange à entrada de mulheres no Exército, as entrevistadas se colocavam de maneira geral contra a restrição de sua participação em ocupações de apoio, enquanto entre os homens havia uma parcela significativa que se opunha à admissão feminina em armas de combate; da mesma forma, foi percebida uma resistência maior entre os homens à alçada de mulheres a postos de comando (GOMES, 2014). Ainda, é interessanteperceber que, dentro do círculo militar, se mantém uma tendência de as mulheres assumirem posições mais liberais do que os homens, o que se traduz, também, em posicionamentos mais afastados da doutrina corrente da corporação. 29 A questão do comando também é abordada por Baquim (2007). Em uma sociedade baseada na “falocracia”, como é a brasileira, a mulher é considerada passiva e submissa, atributos incongruentes com a posição de chefia. Assim, a mulher que queira se colocar em posição de comando necessita não só “demonstrar as qualidades requeridas para a chefia, [mas também] precisaria provar ter uma competência profissional que a distinga do ‘padrão’ feminino” (BAQUIM, 2007, p. 2). Para isso, na visão da autora, faz-se essencial que as militares sejam submetidas às mesmas provas que seus companheiros, frequentando as mesmas escolas e cursos que os homens, possibilitando que elas alcancem uma posição de igualdade dentro da instituição e sejam respeitadas como líderes na corporação. Esse é, para ela, o caso da AFA, mais especificamente do Curso de Formação de Aviadores, acerca do qual ela realiza seu estudo tratando das primeiras aviadoras a se graduarem. Se, num primeiro momento o acesso feminino à Aviação foi marcado pela polêmica da reserva de vagas (ou não) para mulheres, Baquim (2007) ressalta que é importante destacar o fato de que as pioneiras aviadoras apresentaram um desempenho à altura de seus colegas, estando diversas vezes entre as primeiras classificadas ao final do curso, e mantendo médias congruentes com o restante da turma. A valorização da mulher dentro de estereótipos tradicionais se mantém dentre as entrevistas realizadas nas três Academias. Ainda que não seja de forma consensual, a maior parte dos homens questionados – tanto cadetes, como oficiais e instrutores – ressaltaram as habilidades femininas nas áreas de logística e administração, já que as mulheres seriam mais cuidadosas, pacientes e perceptivas e teriam também maior capacidade de resiliência. Da mesma maneira, a maioria dos entrevistados apontou que as mulheres não deveriam poder escolher as armas de combate, já que seriam fisicamente não-aptas a essas funções. Um fator interessante a ser ressaltado aqui é de que essa percepção está mais presente na AMAN e na EN, enquanto que na AFA há um maior grau de aceitação de que as mulheres possam atuar em posições de combate, inclusive na infantaria (GIANNINI, FOLLY e LIMA, 2017). Possivelmente, isso se deve ao fato de que a presença feminina na AFA já tem 20 anos, possibilitando uma maior familiaridade, enquanto as primeiras mulheres só entrarão na AMAN em 2018. Um assunto recorrentemente polêmico é das provas e testes físicos aos quais são submetidos as(os) cadetes e aspirantes. Isso por duas razões principais: de um lado, os resultados dos testes integram a nota que garante a classificação final dos alunos, e com isso escolher a sua especialidade dentro da arma (por exemplo, aviação de caça ou de reconhecimento); por outro lado, há o argumento recorrente de que se as mulheres não passarem 30 pelas mesmas provas físicas que os homens, elas não podem servir nas mesmas funções – essencialmente, um recurso para legitimar a exclusão feminina das armas de combate. Tanto na AFA, como na EN, o teste físico é diferente: mulheres e homens realizam os mesmos exercícios, mas com índices diferentes – tempo de realização de corrida ou número de repetições de uma determinada atividade, por exemplo. A diferença é o exercício de barra, que é exclusivo para homens na EN e que não foi cobrado para a admissão na EsPCEX, mas que será cobrada progressivamente durante o curso e também posteriormente na AMAN, ainda que com índices diferentes (GIANNINI, FOLLY e LIMA, 2017). 1.2.2 Estudos em Forças Armadas no exterior Helena Carreiras, em entrevistas com militares homens em Portugal e na Holanda, buscou criar uma “tipologia de respostas masculinas à presença de mulheres nas Forças Armadas, bem como uma revisão dos argumentos por eles utilizados e posições assumidas face à integração de gênero” (CARREIRAS, 2009, p. 169). A autora cria uma escala de tipos-ideais, ou seja, assentados em tendências dominantes nos discursos, de reações masculinas com base na interconexão de percepções acerca das diferenças de gênero – reconhecimento de diferenças, tanto em termos de submissão como de sublimação da mulher, assim como da igualdade – e atitude relativa à aceitação feminina – oposição e aceitação, total ou condicional. Esses tipos ideais vão dos mais conservadores, que são contra a entrada de mulheres nas Forças Armadas por acreditarem em uma incapacidade feminina para as funções militares, até os mais progressistas, que aceitam totalmente a integração feminina com base na crença da igualdade entre os sexos (CARREIRAS, 2009). As categorias são as seguintes: a) sexista – aponta as diferenças entre os sexos, apresentando uma concepção de subordinação feminina ao homem, e se coloca contra a integração de mulheres às FA, considerando-a negativa para a corporação; b) tradicionalista – reconhece as diferenças entre os sexos, mas no sentido de elevar as mulheres a concepções idealizadas, sendo essa imagem incompatível com a função militar; c) pragmatista – assim como o sexista, assume que as diferenças entre os sexos se dão em desvantagem das mulheres, mas não é contra sua entrada nas FA, já que para ele isso não é bom nem ruim, mas um fato, e defende uma integração parcial, em que as mulheres sejam submetidas aos mesmos testes que os homens; d) machista – também aponta a inferioridade das mulheres e favorece a integração parcial, apenas em funções de apoio e nunca nas armas de combate; e) cavalheiro – assim como 31 o machista, apoia uma integração restrita a funções de apoio, mas por ter uma visão sublimada da mulher como algo imaculado, a ser protegido; por fim, o f) integracionista – acredita na igualdade entre os sexos e na total abertura das FA às mulheres, em um modelo de seleção sem distinção de sexo, mas baseado na ideia de “a melhor pessoa para a função” (CARREIRAS, 2009, p. 178-180). A partir daí, Carreiras (2009) busca tendências nas distribuições de posicionamentos nos dois países, Holanda e Portugal. Ela ressalva que se trata de uma classificação sincrônica, e que diversos entrevistados relataram uma mudança de postura ao longo do tempo. Apesar disso, é possível perceber uma disposição geral de posições mais conservadoras em Portugal, enquanto na Holanda há maior abertura para a integração de mulheres. É claro que se tratam de generalizações, mas é interessante ver como os valores sociais desses países refletem dentro da corporação militar. Cerca de metade [dos holandeses] são classificados como integracionistas, para apenas ¼ dos portugueses, os quais aparecem mais dispersos pelos vários tipos. [...] Esses aspectos são mais consistentes com a identificação dos militares portugueses com uma visão mais tradicionalista ou paleomoderna da realidade e da própria instituição, ao passo que os holandeses parecem partilhar orientações mais orientadas (sic) para a modernidade. [...] Uma primeira observação geral é a de que os portugueses tendem a recorrer a explicações naturalistas e essencialistas sobre a diferença feminina, enquanto os holandeses raramente o fazem. Desenvolvem, pelo contrário, um discurso racionalista em que as diferenças, quando identificadas, são atribuídas preferencialmente a aspectos sociais e culturais. (CARREIRAS, 2009, p. 182) Alguns aspectos das entrevistas são interessantes de serem trazidos aqui. A oposição dos tipos tradicionalista e cavalheiro tendem a ressaltar que a tradição e os valores militares podem ser afetados pela presença de mulheres; além disso, elas teriam limitações sociais e biológicas, tendo em vista a maternidade e as responsabilidades da vida familiar,e por isso não poderiam cumprir corretamente com suas funções, acarretando em maior carga de trabalho para os homens. A gravidez, aliás, seria um recurso frequentemente mobilizado pelas mulheres para evitarem serem convocadas a servir em lugares mais perigosos – lembrando que estamos falando de dois países-membros da OTAN. Ao mesmo tempo, a presença feminina em ambientes de combate despertaria instintos protetores nos homens, atrapalhando-os de focar na missão principal, configurando um risco operacional. Ainda, a presença de mulheres seria prejudicial pois iria tolher alguns comportamentos dos homens, e eles ficariam constrangidos de agir de maneira “natural”. Até mesmo os entrevistados com perfil integracionista defendem 32 a ideia de que diversos homens teriam dificuldades em lidar com a entrada das mulheres (CARREIRAS, 2009). Nesse sentido, a autora faz uma reflexão bastante pertinente não só ao caso que analisa, mas que pode ser aplicada a diversos estudos realizados com militares brasileiros: “Um elemento comum a esses relatos é o fato de que nenhum dos entrevistados parece ter consciência de que descreve fundamentalmente problemas que decorrem das atitudes masculinas mais que de características e comportamentos das mulheres”(CARREIRAS, 2009, p. 187). Nos Estados Unidos, as mulheres são aceitas nas fileiras militares desde a abolição da conscrição, em 1973, nos últimos momentos da Guerra do Vietnã – que durou até 1975. O processo de abertura no país foi igualmente gradual, e, ao passo que novas carreiras passavam a contar com presença feminina, uma série de estudos começou a ser levado a cabo sobre essas experiências, especialmente nos setores de maior prestígio, como as academias militares e a aviação de caça (DEFLEUR e GILLMAN, 1978; DURNING, 1978; LARWOOD e GLASSER, 1980; ADAMS, 1984; MCGLOHN et al., 1997). Em 2015, o governo americano derrubou as últimas barreiras à admissão feminina e determinou que todos os segmentos das Forças Armadas deveriam passar a permitir a entrada de mulheres. Schaeffer et al (2015), tendo em vista o fim do impedimento à admissão de mulheres no Corpo de Fuzileiros Navais, fizeram um levantamento de experiências de diversos países que aceitam mulheres em posição de combate a fim de averiguar possíveis ensinamentos que auxiliassem nesse processo. O estudo levado a cabo pelas autoras e autores tem como um de seus pontos centrais a atenção ao compromisso institucional em integrar as mulheres – no caso, em unidades de combate, mas vale como um indicativo para outras situações. Esse comprometimento institucional é medido a partir das seguintes variáveis: a) políticas de mudanças legais para apoiar a integração de mulheres, inclusive aquelas que dizem respeito a assédio sexual; b) evidência clara de forte envolvimento ou compromisso das lideranças – por meio de discursos, por exemplo; c) planos nacionais que incluam estratégias para a integração de mulheres e accountability; d) programas de treinamento abrangentes para facilitar a integração; d) avaliações pós-implementação (SCHAEFER et al., 2015). Um dos países em que percebeu-se um alto grau de comprometimento institucional foi a Austrália, onde a integração foi acompanhada de planos institucionais bem desenvolvidos, e mulheres foram apontadas para posições senior em suas ocupações, como forma de servirem de modelo e mentoras para as novas recrutas. Em outros países, como a Suécia, a Noruega e o 33 Canadá, que não apresentaram diretivas tão claras e um planejamento de médio prazo, observou-se um baixo engajamento das mulheres. Dentre os fatores que causaram essa baixa participação estão os obstáculos à progressão de carreira, muitas vezes causados pelo sexismo persistente nas corporrações (SCHAEFER et al., 2015). 1.2.3 Estudos em outras instituições masculinas/hierárquicas Além da análise da integração feminina nas Forças Armadas brasileiras e de outros países, lições importantes podem ser observadas nos estudos da inserção de mulheres em outros espaços hierárquicos e tradicionalmente masculinos. A experiência que mais se aproxima das Forças Armadas é, possivelmente, a das polícias, especialmente pela centralidade do uso da violência. No Brasil, algumas autoras e autores já se debruçaram sobre a incorporação de mulheres nas fileiras policiais, apontando sobretudo um déficit de participação, a manutenção de estereótipos atribuindo características físicas e psicológicas mais fracas às mulheres e, baseado nisso, o escanteamento delas para funções de apoio, principalmente nas primeiras turmas, e o problema do assédio moral e sexual (LEAL e FRANÇA, 2014; MOURÃO, 2013; CAPELLE e MELO, 2010; BUENO, TONELLI e SANTOS, 2015; SILVA, 2015). Um exemplo é o texto “UPPs, uma polícia de que gênero?” de Bárbara Mourão (2013). Aqui, a autora relata suas impressões acerca de uma pesquisa etnográfica com policiais das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) sobre as relações e percepções de gênero nesse ambiente. A pesquisa foi realizada com quatro grupos focais, com cerca de dez componentes cada – 2 de mulheres e 2 de homens – e em 5 entrevistas com mulheres, oficiais e praças, oriundas de 4 unidades diferentes. Um dos principais interesses da pesquisadora era observar a qualidade do processo de incorporação das mulheres nessas unidades, buscando focar principalmente nas condições do ambiente de trabalho, na receptividade dos colegas e nas oportunidades de desenvolvimento na carreira policial para essas policiais. Das conversas com os policiais do sexo masculino, a autora ressalta uma suspeita constante de que as colegas se aproveitam de sua condição de mulher para usufruir de privilégios e contornar suas responsabilidades, o que se soma à ideia de que as limitações naturais do sexo feminino impõem uma barreira ao pleno exercício da atividade policial. Esse questionamento das capacidades femininas se dá várias maneiras, como por exemplo, atribuir a mulheres tarefas tradicionalmente masculinas (desafiá-las a carregar o fuzil da maneira certa). O outro lado da moeda é as policiais buscarem se provar merecedoras da farda, o que muitas 34 vezes aparece na forma de violência auto-infligida, como se para impor respeito as mulheres precisassem desafiar seus próprios limites. Daí que algumas das entrevistadas relataram que ter atravessado as mesmas etapas preparatórias que os homens não consolida seus lugares no meio policial (MOURÃO, 2013). A autora enfatiza, a partir disso, a importância de perceber os sujeitos em suas ambiguidades, não apenas como taboas rasas replicando estereótipos esperados. Segundo ela, não é propriamente às suas colegas que os policiais estão se referindo, mas das projeções que elas evocam, ou seja, das categorias de gênero que orientam suas leituras de mundo. Assim, a divisão sexual da sociedade ecoa muito mais como um indexador de valores do que uma elaboração sobre fatos observados – mesmo dentro da instituição policial (MOURÃO, 2013). Schaeffer et al. (2015) levantaram as lições dos processos de admissão e inclusão de mulheres nas polícias e nos corpos de bombeiros nos Estados Unidos. Dentre os apontamentos, estão a importância de garantir que os equipamentos e os uniformes estejam de acordo com as necessidades das mulheres, especialmente os armamentos empregados em missões de combate; e o fato de que dinâmicas de pequenas unidades precisam de atenção especial durante o processo de integração. Isso porque os homens em alguns casos assumem posições paternalistas e superproteroras em relação às mulheres, particularmente em situações que eles (os homens) achavam que eram perigosas demais para as companheiras. Apontam, ainda, que à medida que as policiais e as bombeiras eram promovidas e obtiveram maior responsabilidade, elas continuaram pressionando as organizações para reavaliar mais suas práticas, políticase procedimentos, ou seja, o processo de integração vai evoluindo junto com a progressão das mulheres nas instituições. Por fim, as autoras e autores sublinham a questão sempre presente do assédio sexual. O assédio, tanto verbal quanto sexual, tem se mantido um desafio constante em todas as fases da integração – evidenciando a necessidade de políticas e procedimentos eficientes para se lidar com o problema. Outra instituição estatal marcada por sua hierarquia e masculinização é o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Por muito tempo, mulheres foram proibidas de fazer o concurso de admissão à carreira diplomática – de 1938 a 1954, a legislação proibia o acesso de mulheres nos postos diplomáticos. Entre 1954 e 2015, 427 mulheres ingressaram na carreira diplomática, de um total de 2.126, correspondendo a 20,1%; atualmente, 22,6% dos diplomatas em atividade são mulheres (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2017). Tendo em vista essas desigualdades históricas, pesquisadoras e pesquisadores têm abordado o tema, assinalando os avanços e obstáculos na inclusão de mulheres na carreira, os gargalos à 35 progressão feminina dentro da hierarquia do Itamaraty e iniciativas adotadas pela instituição com vistas a mitigar essas dificuldades, como a criação de creches e a adoção de trabalho remoto (FARIAS e CARMO, 2016; BALBINO, 2009; 2011). É nesse contexto que Viviane Balbino (2011) desenvolve seu trabalho de conclusão do Instituto Rio Branco (IRB) e que originou o livro “Diplomata: substantivo de dois gêneros”, onde se debruça sobre o problema da baixa representação de mulheres especialmente no processo seletivo ao IRB. Ela parte da argumentação que para se ter mais mulheres na diplomacia não basta apenas aumentar a oferta de vagas, é preciso tornar a carreira atrativa a elas. Ela inicia pontuando que a tese de que mulheres não querem ser diplomatas porque almejam ter uma família é simplista e preconceituosa, mas, ao mesmo tempo, pontua que a dificuldade em ser casada com alguém que não é da mesma profissão, dada a grande mobilidade da diplomacia, é muito maior para mulheres do que para homens. Outro fator que serve como desestimulante é o baixo número de mulheres já dentro da instituição e a decorrente competição que existe entre as poucas mulheres que já trabalham na instituição. Por outro lado, ela defende que no governo de Dilma Rousseff, pela primeira vez na história do Brasil, a representação feminina em espaços de poder ganhou contornos de política de Estado (BALBINO, 2011). No entanto, importa também ter em mente as diferenças entre esses ambientes e corporações e as Forças Armadas. No Itamaraty, por exemplo, ainda que as diferenças de gênero sejam acentuadas, em que as mulheres encaram não só os desafios tradicionais de um ambiente de trabalho sexista, mas também as intrínsecas a uma carreira baseada em hierarquias claras, a questão de gênero e a importância dos estereótipos não é tão escrachada. Ao mesmo tempo, as Forças Armadas possuem um processo de promoção mais formalizado e uma hierarquia organizacional mais complexa que as forças policiais (SCHAEFER et al., 2015) ou a diplomacia. Por fim, no caso das polícias militares e dos corpos de bombeiros, os comandos são estaduais, submetidos ao mando do governador e das legislações locais, enquanto que as Forças Armadas, ainda que subdivididas regionalmente de acordo com a distribuição de cada Força, são federalizadas e submetidas diretamente à Presidência da República e ao Ministério da Defesa, distinção essa que tem impacto na forma como são desenhadas e/ou implementadas as políticas de inserção feminina. 36 1.3 CONCLUSÕES PARCIAIS Dos estudos analisados, possivelmente o aspecto mais marcante é que os principais impeditivos apresentados dizem respeito a ações, concepções e receios masculinos em relação às mulheres, muito mais do que desafios objetivamente materiais. Não é surpresa que diversas entrevistas foram pautadas por ideias estereotipadas acerca da condição feminina, especialmente ao contrapô-la com a careira militar, na dualidade fragilidade-virilidade. Interessante é notar como a construção desses discursos se dá muito com base em uma identidade militar associada a uma noção hegemônica de masculinidade dentro das Forças Armadas. Essas noções não necessariamente estão em confluência com as necessidades atuais situação da função militar, crescentemente baseada na profissionalização e especialização, com expansão das atividades de apoio e de inteligência, e menor protagonismo da força bruta e do engajamento direto em combate. Esses posicionamentos, apesar de aparecerem em algumas falas femininas, costumam ser mais frequentes nas falas de homens. Mantêm-se concepções tradicionais acerca do casamento e do papel das mulheres na estrutura familiar, sendo argumento recorrente que a mobilidade demandada pela profissão militar poderia configurar impeditivo à constituição de famílias por parte das mulheres, além de um sentimento de que muitas delas deixariam a corporação quando desejassem se casar ou ter filhos – ambos pontos colocados de maneira a contrariar a e maior inserção feminina nas FA. Ainda, as adaptações infraestruturais e as normas de convivência trazem fortemente a noção de separação dos sexos, o que em muitos sentidos se dá de forma exagerada, mas também confere maior segurança às mulheres naqueles ambientes. Por fim, as experiências das Forças Armadas estrangeiras, assim como das polícias, corpos de bombeiros e carreira diplomática acima relatadas constituem campos com ensinamentos valiosos para o processo de admissão de mulheres nas Forças Armadas. Fica evidente a importância de se ter um compromisso institucional claro com a integração feminina, através de planos consistentes e estruturados. Esse não tem sido o caso do Brasil, onde a inserção tem se dado de forma desintegrada entre as Forças, partindo muitas vezes de iniciativas pontuais das instituições, como no contexto das Academias militares. 37 2. CAPÍTULO 2 – HISTÓRICO E SITUAÇÃO ATUAL DA PARTICIPAÇÃO DE MULHERES NAS FORÇAS ARMADAS DO BRASIL Apenas na Segunda Guerra Mundial houve engajamento oficial de mulheres nos quadros militares brasileiros. Em 1942, o Brasil declarou guerra ao Eixo, criando a Força Expedicionária Brasileira (FEB). No ano seguinte, como forma de prestar apoio à FEB e garantir aos cidadãos brasileiros que as tropas não estariam desassistidas, foi implementado o Quadro de Enfermeiras da Reserva do Exército, que viriam a servir na Itália. No total, 67 enfermeiras brasileiras atuaram na Guerra; ao fim do conflito, a maior parte delas foi condecorada, sendo rapidamente desmobilizadas. Somente em 1957, através da Lei 3.160, as enfermeiras tiveram direito a serem incluídas no posto de 2ª tenente, o que inclusive lhes garantia direitos inerentes à carreira dos oficiais (MATOS, REIS, et al., 2016). A escala sem precedentes do conflito, tanto em termos de abrangência geográfica, quanto em termos de mobilização de recursos humanos e materiais, levou à incorporação de mulheres nas fileiras militares de diversos países na Segunda Guerra Mundial, especialmente nos quadros auxiliares, o que possibilitava que um número maior de homens fosse alocado para os fronts de combate. As mulheres passaram a atuar como enfermeiras, como no caso brasileiro, operando linhas de comunicação e logística e, principalmente, a trabalhar nas fábricas de produtos destinados à guerra. Em diversos países da Europa, muitas mulheres integraram as milícias de resistência nacional. Ainda, nos Estados Unidos e na União Soviética, algumas mulheres serviram como pilotas de aeronaves de combate – o exemplo mais famoso é de um regimento soviético de bombardeio noturno composto inteiramente por mulheres, que ficaram conhecidas como “bruxas da noite”. Como no Brasil, em todos os
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