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08  Fall	
  
  
  
2  
 
  
  
Meditações  sobre  o  educador  ..............................................................................................  3  
Memórias…  ............................................................................................................................  4  
Tristeza  ....................................................................................................................................  6  
Flor  na  fenda  da  rocha  ..........................................................................................................  8  
A  felicidade  dos  pais  ..........................................................................................................  10  
Alegria  é  a  prova  dos  nove  ................................................................................................  12  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
3  
Meditações  sobre  o  educador  
  
Van  Gogh  tem  uma  delicada  tela  que  representa  esta  cena:  o  pai,  jardineiro,  interrompeu  
seu  trabalho,  está  ajoelhado  no  chão,  com  os  braços  estendidos  para  a  criança  que  chega,  
conduzida   pela   mãe.   O   rosto   do   pai   não   pode   ser   visto.   Mas   é   certo   que   ele   está  
sorrindo.  O  rosto-­‐‑olhar  do  pai  está  dizendo  para  o  filhinho:  “Eu  quero  que  você  ande”.  
É  o  desejo  de  que  a  criança  ande,  desejo  que  assume  forma  sensível  no  rosto  da  mãe  ou  
do  pai,  que  incita  a  criança  ao  aprendizado  dessa  coisa  que  não  pode  ser  ensinada  nem  
por  exemplo  e  nem  por  palavras.  Os  braços  estendidos  do  pai  são  mais  importantes  que  
os   braços   estendidos   do   professor.   Aquele   pai   agachado,   braços   estendidos,   sorriso  
escondido:  não  é  uma  linda  imagem  para  o  educador?  
Nietzsche   é   o   filósofo  que  mais   amo.  Dizia   ele   só   amar   os   livros   escritos   com   sangue.  
Seus  textos  são  escritos  com  sangue,  sangue  sob  a  forma  de  palavras.  
Bem  que  ele  poderia  dizer:  “Hoc  est  corpus  meum”,  isso  é  o  meu  corpo.  
Eu  escrevo  antropofagicamente.  Antropofagia  é  um  ritual  pelo  qual  os  vivos  devoram  os  
mortos.  Eles  não  os  devoram  por  razões  gastronômicas.  Rituais  antropofágicos  não  são  
churrascos.  Eles  os  devoram  por  razões  de  amor.  
Há   duas   coisas   que   se   podem   fazer   com   o   corpo   de   um   morto.   A   primeira   delas   é  
enterrá-­‐‑lo,   para   ser   devorado   pelos   vermes   e   para   que   continue   morto.   A   segunda   é  
devorá-­‐‑lo  para  que,  morto,  continue  a  viver  em  nossos  corpos.  
Há   autores   que   li   sem   que   os   tivesse   amado.   Não   os   devorei.   Suas   ideias   ficaram  
guardadas  na  minha  cabeça.  Outros,  que  amei,  eu  os  devorei.  Passaram  a  fazer  parte  do  
meu  corpo.  
Aquilo   que   se   come   não   continua   o   mesmo   depois   de   comido.   É   assimilado   —   fica  
semelhante  a  mim.  Batatas,  cenouras  e  carnes,  uma  vez  comidas,  deixam  de  ser  batatas,  
cenouras  e  carnes.  Passam  a  ser  parte  de  mim  mesmo,  minha  carne,  meu  sangue.  Assim  
acontece   com   os   autores   que   devorei   e   cito.   Só   os   cito   porque   se   tornaram   parte   da  
minha   carne   e   do  meu   sangue.   Eu   os   conheço   “de   cor”  —   isto   é,   como  parte   do  meu  
coração.  Deixaram  de  ser  eles.  São  eu.  
Segundo  Nietzsche,  a  primeira   tarefa  da  educação  é  ensinar  a  ver.  É  através  dos  olhos  
que  as  crianças  tomam  contato  com  a  beleza  e  o  fascínio  do  mundo.  Os  olhos  têm  de  ser  
educados  para  que  a  nossa  alegria  aumente.  As  crianças  não  veem  “a  fim  de”.  
Seu  olhar  não  tem  nenhum  objetivo  prático.  Veem  porque  é  divertido  ver.  
Educar  é  mostrar  a  vida  a  quem  ainda  não  a  viu.  O  educador  diz:  “Veja!”  —  e  ao  falar,  
aponta.   O   aluno   olha   na   direção   apontada   e   vê   o   que   nunca   viu.   O   seu   mundo   se  
expande.  Ele   fica  mais   rico   interiormente.  E,   ficando  mais   rico   interiormente,   ele  pode  
sentir  mais  alegria  e  dar  mais  alegria  —  que  é  a  razão  pela  qual  vivemos.  
  
  
  
  
  
  
  
  
4  
Memórias…  
  
Faz   tempo,   fiz   uma   horta   no   meu   quintal.   Não   é   grande.   Mas   tem   couve,   espinafre,  
alface,   cenoura,   orapro-­‐‑nobis,   verdura   de   gente   pobre,   em  Minas,   hortelã,  manjericão.  
No  muro  cresceu  um  pé  de  maracujá,  que  já  deu  a  mais  não  poder,  e  agora  está  secando.  
É  bom  ir  lá,  e  ver  as  coisas  crescendo,  especialmente  depois  da  chuva,  quando  elas  ficam  
agradecidas,   como  diz   o  meu  pai.   É   bom  ver   aquela   terra  que  o   esterco   fertilizou,   tão  
diferente  daquela  coisa  dura  e  seca  que  ela  era,  antes  que  o  desejo  e  as  mãos  a  tivessem  
engravidado.  
Acho  que  ela  também  tem  gratidão  por  se  ver  assim  tão  gorda.  Mas  não  são  só  as  coisas  
de  comer.  O  corpo  precisa  de  mais.  O  pão  é  pouco:  a  vida  precisa  também  de  alegrias  e  
carinhos.   E   foi   por   isso   que   plantei   coisas   boas   de   cheirar,   de   ver,   de   agradar.   O  
heliotrópio   japonês,   dezenas   de   cachos   roxos,   a   magnólia,   o   cajá   manga,   flor-­‐‑do-­‐‑
imperador,  rosmaninho,  camélia  vermelha,  o  manacá  da  serra.  Uma  jabuticabeira,  pelo  
cheiro  das  folhas,  o  cheiro  das  flores,  o  bom  humor  das  jabuticabas.  Já  pensou  nisto,  que  
as  frutas  têm  um  humor  especial,  cada  um  diferente  do  outro?  
Maçãs   e   peras   são   sérias,   não   contam   piadas,   e   são   próprias   para   aparecerem   em  
reuniões  de  pessoas  graves.  Bananas  e  cocos  (exceto  as  bananas-­‐‑ouro,  que  são  os  bobos  
da  corte)  são,  antes  de  mais  nada,  chatos,  sem  assunto.  A  jaca  é  uma  enorme  gargalhada.  
Enquanto   jabuticabas,   pitangas,   caquis   são   coisas   brincalhonas.   Até   acho   que   a   fruta  
proibida,   no   paraíso,   não   foi   maçã,   como  muitos   dizem,  mas   foi   caqui.   Existirá   coisa  
mais  erótica?  Já  as  uvas  têm  um  ar  de  nobreza,  combinam  com  música  erudita.  Plantei,  
por  isso,  uma  pitangueira,  minha  primeira  experiência  de  furto.  Quando  eu  era  menino,  
o   vizinho   tinha   pitangueira,   carregada   de   frutinhas   vermelhas,   que   ficavam   lá,   e  
ninguém  ligava.  Pular  o  muro  e  ir  roubar  era  demais  para  mim.  
Mas  preguei  uma  latinha  de  massa  de  tomate  na  ponta  de  um  cabo  de  vassoura,  e  furtei  
as  pitangas,  para  minha  alegria  e  o  sorriso  de  Deus.  Só  muito  mais  tarde  descobri  que  já  
naquele  momento   se  delineava  minha  vocação   teológica,  pois  Santo  Agostinho   fazia  o  
mesmo,   só   que   com  umas   peras   verdes   e   azedas.   Bom   é   o   gosto   da   fruta   proibida.   E  
teologia  é  bem  isto,  um  desejo  de  furtar  dos  deuses  os  seus  bons  frutos,  disfarçados  de  
poemas...  
A  produção  não  é   lá  grande.  Mas  a   imaginação  e  a  alegria  crescem  ao  ver  a   terra  e  as  
coisas   que   nela   crescem   e   prometem.   Pra  mim,   aquela   horta,   que   é  mais   que   horta   e  
jardim,  é  um  altar.  Altar  é  um  lugar  onde  os  olhos,  ao  verem  as  coisas  que  se  podem  ver,  
vêem  também  outras,  com  o  olho  interior.  Ao  ver  o  meu   jardim  e  ao  ser  agradado  por  
suas  cores  e  cheiros,  penso  que  também  eu  cresço  nele.  
Sou  um  irmão  de  couves  e  jabuticabeiras:  meu  corpo  é  um  filho  da  terra.  E  é  por  isso  (eu  
penso)   que   fico   contente   ao   vê-­‐‑la   feliz.   Fico   pasmo   ao   ver   aquelas   casas   em   que   os  
jardins   foram  substituídos  por   lajotões.  Pra  mim  é   cemitério,   e   imaginoa   terra,  minha  
mãe,   enterrada,   sufocada,   cheia   de   vida,   sementes   que   não   podem   brotar.  As   pessoas  
fazem  isso  para  evitar  a  sujeira.  Terra  é  sujeira.  Já  perderam  a  memória  de  suas  origens.  
Preferem   o   cimento,   o   sinteco,   os   azulejos,   a   fórmica:   seres   hospitalares,   que   tomam  
banho  em  pinho  sol,  para  ter  o  cheirinho  de  limpeza.  Na  minha  rua  havia  um  ipê  roxo.  
  
  
5  
Um  dia  passei   lá  e,  para  o  meu  horror,  vi  que   tinham  cortado  uma  cinta  na  sua  casca,  
volta   toda,  para  que  morresse:   era   cortar  as  veias  de  uma  pessoa  viva.  É  que  as   flores  
sujavam  o  chão,  e  dava  muito   trabalho  varrê-­‐‑las.   Imagino  que,   se  pudesse,  plantariam  
no  seu   lugar  uma  árvore  de  plástico.  O   ipê  está   lá,  morto,  sem  folhas.  E  com  certeza  a  
pessoa  que  o  matou  está  feliz,  por  não  mais  ter  que  varrer  a  calçada.  Mas  pra  mim  terra  
não   é   sujeira:   é   origem,   é   destino.   Nascemos   da   terra.   Somos   nada   mais   que   a   terra  
modificada,  misturada  com  a  água,  com  o  ar,  com  o  fogo,  como  pensavam  filósofos  de  
muitos  séculos  atrás.  
Terra,  pedaço  do  meu  corpo,  meu  corpo  além  da  minha  pele,  seio  em  que  me  alimento,  e  
se  ele  se  secar,  eu  morro.  Pois  é,  são  ideias  como  essas  que  me  vêm  à  cabeça  quando  fico  
ali  diante  do  meu  altar,  minha  horta,  meu  jardim...  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
6  
Tristeza  
  
Hoje   quero   falar   da   tristeza.   Não  me   perguntem   por   que,   pois   eu  mesmo   não   sei.   A  
tristeza  não  pede   licença,  não  se  explica.  Vai  chegando  de  mansinho  e  espalhando  seu  
perfume  de   jasmim  pelas   coisas,   até   que   todas   ficam   encantadas   pela   beleza   que   nela  
mora.   Ficam   belas-­‐‑tristes   as   nuvens   do   céu,   tristes-­‐‑belos   os   bem-­‐‑te-­‐‑vis   nos   galhos   das  
árvores,   belos-­‐‑tristes   os   objetos   silenciosos   do   meu   escritório,   e   até   mesmo   o   café   da  
manhã  fica  triste-­‐‑belo...  A  tristeza  é  sempre  bela,  pois  ela  nada  mais  é  que  o  sentimento  
que  se  tem  ante  uma  beleza  que  se  perdeu...  
Não  sei  o  que  a  chamou.  Teria  sido  a  visão  das  florestas  ardendo,  com  seus  prenúncios  
de  desertos  quentes  e  fins  do  mundo,  os  pássaros  fugindo  para  nunca  mais  voltar?  Ou  a  
visita  a  lugares  antigos  amados...  Ah!  Quem  ama  nunca  deveria  voltar...  Lembro-­‐‑me  dos  
versos   que   decorei   no   Grupo,   o   poeta   visitando   paisagens   de   outros   tempos   e  
cadenciando  a  sua  tristeza  com  um  refrão  que  se  repete.  “São  estes  os  sítios?  São  estes...  
Mas  eu  o  mesmo  não  sou.  Marília,  tu  chamas?  Espera  que  eu  vou...”  Até  a  bem-­‐‑amada  
fica  à  espera  quando  o  corpo  tenta  recuperar  os  espaços  perdidos.  Pois  é.  Visitei  lugares  
de  minha  infância  lá  em  Minas,  e  vi  que  a  casa  velha  onde  morei   já  não  existe  e  nem  a  
jabuticabeira  que  reguei  e  as  três  paineiras  a  cuja  sombra  me  assentei.  Fiquei  ali,  diante  
dessas  ausências.  E  percebo  que  tristeza  é  isto:  estar  diante  de  um  espaço  onde  um  dia  
houve  o  encontro.  Saber  que,  cedo  ou  tarde,  tudo  o  que  está  presente  ficará  ausente.  A  
tristeza  testemunha  que  o  mistério  da  despedida  está  gravado  em  nossa  própria  carne.  
“Quem   nos   desviou   assim”,   perguntava   Rilke,   “para   que   tivéssemos   um   ar   de  
despedida   em   tudo   o   que   fazemos?”   Não   é   esta   ou   aquela   despedida.   As   pequenas  
despedidas  apenas  acordam  em  nós  a  consciência  de  que  a  vida  é  uma  despedida.  O  que  
Cecília  Meirelles  dizia  de  sua  avó  morta  podemos  dizer  da  vida  inteira:  “Tudo  em  ti  era  
uma  ausência  que  se  demorava,  uma  despedida  pronta  a  cumprir-­‐‑se...”  Tristeza  é   isto,  
quando   o   belo   e   a   despedida   coincidem.   O   que   revela   o   nosso   próprio   segredo,  
dilacerado  entre  o  belo,  que  nos  tomaria  eternamente  felizes,  e  os  nossos  braços,  curtos  
demais  para  segurá-­‐‑lo.  
“E   quando   nos   sentimos   mais   seguros   algo   inesperado   acontece:   um   pôr-­‐‑do-­‐‑sol...   E  
estamos  perdidos  de  novo...”  (E.  Browning).  Mas,  que  será  aquilo  que  nos  põe  a  perder?  
A   beleza   do   crepúsculo?  Não.  Mas   a   percepção  de   que   a   beleza   é   crepúsculo.  Goethe  
dizia  do  pôr-­‐‑do-­‐‑sol:   “Tudo  o  que   está  próximo   se  distancia”.  Ao  que  Borges   comenta:  
“Goethe   se   referia   ao   crepúsculo,  mas   também   à   vida.   Aos   poucos   as   coisas   vão   nos  
abandonando”.   O   pôr-­‐‑do-­‐‑sol   é   triste   porque   nos   conta   que   somos   como   ele:  
infinitamente  belos  em  nossas  cores,  infinitamente  nostálgicos  em  nosso  adeus.  
A  tristeza  é  o  espaço  entre  o  belo  e  o  efêmero,  de  onde  nasce  a  poesia.  Não  é  por  acaso  
que  os  poetas  repetem  sempre  o  mesmo  tema.  “As  nuvens  à  volta  do  sol  que  se  põe”,  
dizia  Wordsworth,  “ganham  suas  cores  tristes  de  um  olho  que  contempla  a  mortalidade  
dos  homens...”  E  assim,  os  poetas  vão  colocando  suas  palavras  sobre  o  vazio.  Não  um  
vazio  qualquer,  vazio  “pedaço  arrancado  de  mim”,  mutilação  no  meu  corpo.  Exercício  
de  saudade;  tornar  de  novo  presente  um  passado  que  já  se  foi.  “Saudade  é  o  revés  de  um  
parto,  é  arrumar  o  quarto  para  o  filho  que  já  morreu...”  
  
  
7  
Lembro-­‐‑me  de  Álvaro  de  Campos  dizendo  da  dor   que   sentia   ao  ver   os   navios   que   se  
afastavam  do  cais.  “Ah!  Todo  cais  é  uma  saudade  de  pedra...  Todo  atracar,  todo  largar  
de   navio   é   —   sinto-­‐‑o   em   mim   como   meu   sangue   —   inconscientemente   simbólico,  
terrivelmente  ameaçador  de  significações  metafísicas.  E,  quando  o  navio  larga  do  cais  e  
se  repara  de  repente  que  se  abriu  um  espaço  entre  o  cais  e  o  navio,  vem-­‐‑me  uma  névoa  
de   sentimentos  de   tristeza  que  me  envolve   com  uma   recordação  de  uma  outra  pessoa  
que  fosse  misteriosamente  minha...  
E  é  só  agora,  Drummond,  que  compreendo  o  que  você  diz  no  seu  poema  "ʺAusência"ʺ,  no  
qual   você   afirma   não   lastimar   o   espaço   vazio.  Não   deveria   ser   assim...  Acontece   que,  
depois  da  partida,  só  fica  a  ferida,  ferida  que  não  se  deseja  curar,  pois  ela  traz  de  novo  à  
memória   o   belo   que   uma   vez   foi.   “Por   muito   tempo   achei   que   ausência   é   falta.   E  
lastimava,  ignorante,  a  falta.  Hoje  não  o  lastimo.  Não  há  falta  na  ausência.  A  ausência  é  
um  estar  em  mim.  E  sinto-­‐‑a,  branca,  tão  pegada,  aconchegada  nos  meus  braços,  que  rio  e  
danço   e   invento   exclamações   alegres,   porque   a   ausência,   essa   ausência   assimilada,  
ninguém  a   rouba  mais  de  mim...  Não  é  estranho   isto,  que  na   tristeza  more  a  beleza,   e  
que  se  encontre  aí  mesmo  um  pouco  de  alegria?  É  mais  bonita  a  dor  de  quem  arruma  o  
quarto  para  o  filho  que  já  morreu,  que  o  vazio/vazio  de  quem  não  tem  nenhum  quarto  
para  arrumar.  
Brinco  com  a  minha  tristeza  como  quem  cuida  de  uma  amiga  fiel...  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
8  
Flor  na  fenda  da  rocha  
  
A   coisa  não   fazia   sentido.  Não   chegava  a   ser   carta.  Um  bilhete,   escrito  numa   folha  de  
bloco   amarelo,   rasgada   pelo   meio.   O   nome   que   a   assinava   não   me   fazia   lembrar  
ninguém.  Vinha  de  algum  lugar  dos  Estados  Unidos.  Pensei  que  se  tratava  de  maisuma  
dessas  pessoas  estranhas  que  escrevem  coisas  sem  nexo  para  desconhecidos.  
    
Por  alguma  razão  que  eu  ignorava  eu  fora  escolhido.  Dois  dias  depois  uma  carta  de  um  
amigo  me  explicou  o  mistério.  O  bilhete  me  fora  enviado  de  uma  prisão.  O  preso  tinha  
sido  executivo  de  uma  multinacional.  De  repente,  não  mais  que  de  repente,  se  deu  conta  
de  que  a  vida  era  muito  breve  e  que  a  sua  verdade  mais  profunda  era  outra.  
    
Aquilo  que  estava  fazendo  não  era  o  que  desejava  fazer.  O  que  ele  amava,  mesmo,  era  a  
natureza   com   suas   belezas   e  mistérios:   o   silêncio   das  montanhas   cobertas   de   neve,   as  
matas  com  suas  árvores  e  seus  bichos,  os  rios  de  águas  transparentes.  E  no  entanto  —  ele  
o  sabia  —  por  todos  os  lados  os  homens  de  guerra  a  haviam  violentado,  enchendo-­‐‑a  de  
instrumentos   de  morte:   fábricas   de   bombas   nucleares,   fortalezas   subterrâneas   onde   se  
aninhavam   foguetes   cheios   de   morte.   Que   lhe   adiantava   entregar   sua   vida   ao  
enriquecimento   de   uma   multinacional   se   este   mundo,   nosso   lar,   poderia,   a   qualquer  
momento,   ser   transformado   numa   imensa   solidão:   os   homens   mortos,   as   florestas  
queimadas,   as   montanhas   solitárias,   os   rios   correndo   transformados   em   veneno?  
Demitiu-­‐‑se.  Pensaram  que  um  emprego  melhor  lhe  tinha  sido  oferecido.  Quando  contou  
o  que  iria  fazer  julgaram-­‐‑no  louco.  Desfez-­‐‑se  de  tudo  o  que  tinha:  é  preciso  leveza,  nada  
que  segure.  Colocou  as  poucas  coisas  que  lhe  eram  necessárias  numa  mochila:  pode-­‐‑se  
viver   com   muito   pouco.   Entre   suas   coisas,   dois   ou   três   livros:   é   bom   caminhar   com  
aqueles   que   sonham  os  mesmos   sonhos,   ainda   que   estejam  distantes   e   o   que   deles   se  
tenha   seja   apenas   o   que   escreveram.  Assim,  mesmo   longe,   se   forma   a   companhia  dos  
conspiradores,  pessoas  que  respiram  o  mesmo  ar  —  com-­‐‑inspirar.  Ficamos  amigos  sem  
que   nunca   nos   tenhamos   encontrado.   Sem   ter   casa   fixa,   juntou-­‐‑se   a   um   grupo   de  
pacifistas.  Mas,  o  que  pode  um  grupinho  insignificante  contra  o  poder  da  morte?  Muito  
pouco.  Mas  não  importa.  É  preciso  obedecer  à  voz  interior  da  verdade.  Contra  a  loucura  
forte  dos  homens  de  guerra  só  resta  a  loucura  mansa  dos  homens  de  paz.  
      
Passaram,   então,   de   forma   obstinada   e   tranquila,   a   fazer   uma   única   coisa.   Invadiam  
pacificamente   as   instalações   nucleares   norte-­‐‑americanas,   caminhavam   na   direção   dos  
lugares  onde  se  fabricava  a  morte,  e  se  assentavam  nos  locais  rigorosamente  proibidos.  
Para  quê?  Só  para  dizer  a  sua  verdade.  Que  prefeririam  morrer  a  matar.  
    
Que   a   derrota   militar   é   preferível   à   destruição   do   mundo.   Mil   anos   de   cativeiro   são  
preferíveis  a  uma  vitória  nuclear.  Pois  no  cativeiro  permanece  a  esperança  de  que  a  vida  
poderá  nascer  livre  de  novo.  Mas  numa  vitória  nuclear  só  sobrarão  os  mortos.  A  vida  é  
um  valor  mais  alto  que  as   ilusões  da  guerra.  Seu  gesto  manso  durava  pouco  porque  a  
morte  não   anda   a  pé.  Logo   chegavam  os   soldados   armados  que  os   levavam  presos.  E  
  
  
9  
eram  condenados  pelos  tribunais,  por  sua  lealdade  à  verdade.  
    
Aquele  bilhete  esquisito  me  viera  de  uma  dessas  prisões.  Dois  anos  atrás  me  escreveu  de  
novo,   de   outra   prisão.   Seria   libertado   no   dia   seguinte   e  me   dizia   da   sua   alegria,   pois  
dentro   de   poucas   horas   poderia   de   novo   ver   os   céus   estrelados.   Contou-­‐‑me   o   que  
acontecera.  Ele  e  seus  amigos  haviam  resolvido  repetir  o  mesmo  gesto.  Iriam  se  assentar  
sobre  os  silos  atômicos  —  os  lugares  onde  os  foguetes  ficam  guardados,  em  posição  de  
disparo  —  de  uma  instalação  nuclear   localizada  no  norte  dos  Estados  Unidos.  O   lugar  
era  lindo,  paraíso,  reserva  florestal  cheia  de  todas  as  formas  de  vida.  Por  uma  semana  ali  
ficaram,  gozando  a  beleza  das  matas,  dos  animais,  dos  rios.  Descreveu-­‐‑me  as  aves  e  os  
bichos.   Disse-­‐‑me   da   alegria   mística   que   tal   comunhão   com   a   natureza   lhe   dava:  
sentimento   muito   próximo   do   sagrado   —   pois   a   natureza   está   cheia   de   beleza   e   de  
mistérios.  Depois  de  uma  semana  todos  caminharam  para  os  silos,  assentaram-­‐‑se  sobre  
eles,  e  em  poucos  minutos  estavam  todos  presos.  No  ano  passado,  duas  semanas  antes  
da   Semana   Santa,   escreveu-­‐‑me   contando   que   iriam   fazer   coisas   semelhantes   no  
Domingo  de  Páscoa,  para  testemunhar  o  triunfo  da  vida  sobre  a  morte.  E  agora,  de  novo  
fora  da  prisão,   escreveu-­‐‑me  de  um  mosteiro   trapista,  no  alto  das  montanhas   rochosas.  
Preparava-­‐‑se  para  subir  até  os  lugares  mais  altos,  para  usufruir  uma  semana  de  solidão  
e  silêncio.  Para  longe  do  falatório,  para  perto  da  tranquilidade  onde  se  pode  ouvir  a  voz  
da  verdade  interior.  
    
Longe,   sem   nunca   tê-­‐‑lo   visto,   ele   me   ajuda   a   viver.   O   mundo   está   cheio   de   pessoas  
simples  e  nobres,  capazes  dos  gestos  mais  loucos  por  pura  fidelidade  à  sua  verdade.  A  
vida,  pelo  mundo  todo,  e  a  despeito  da  morte  que  vai  comendo  corpos,  florestas,  mares  
e  rios,  continua  a  se  afirmar  teimosamente  como  uma  planta  que  nasce  numa  fenda  de  
rocha.   Como   a  minha   “Glória   da  Manhã”,   que   a  morte   cortou   e   continuou   a   florir,   o  
Ladon  Sheats  (este  é  o  seu  nome)  teima  em  florescer...  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
10  
A  felicidade  dos  pais  
  
Viveu   outrora   um   imperador,   pai   de   muitos   filhos,   avô   de   muitos   netos.   Mais  
importante  que  as  coisas  da  administração  do  império  e  da  guerra  contra  os  inimigos  lhe  
eram  os  seus  filhos  e  netos,  a  quem  amava  de  todo  coração.  
Infelizmente,   entretanto,   como   acontece   com   todas   as   pessoas   acometidas   do   mal   do  
amor,  ele  sofria  sem  cessar  o  medo  de  que  a  Morte  pudesse  levar  um  deles.  
Essa  ideia  lhe  tirava  toda  a  alegria  de  viver.  De  dia  era  atormentado  pela  ansiedade.  De  
noite   era   afligido   pela   insônia.   Sua   cabeça   não   tinha  descanso.   Seus   pensamentos   não  
paravam  de  procurar  meios  de  burlar  a  Morte.    
Seu  palácio  estava  cheio  de  médicos,  laboratórios  e  remédios,  que  combatiam  a  Morte  no  
front   das   enfermidades.   Havia   também   guardas   por   todos   os   lados,   encarregados   de  
combater  a  Morte  no  front  dos  acidentes.  
Mas   ele   sabia   que   tais   cuidados   não   bastavam.   A  morte   é  muito   astuta.   Ela   ataca   no  
momento   em   que   não   se   espera,   de   uma   forma   não   prevista.   Por   isso,   o   imperador  
mandou   vir,   dos   lugares   mais   distantes   do   seu   reino,   todos   os   sacerdotes,   profetas,  
videntes,  mágicos,  feiticeiros,  sábios,  gurus,  com  o  pedido  de  que  não  só  realizassem  os  
rituais  mágicos   apropriados,   como   também  escrevessem,  nas  páginas  do   enorme   livro  
sagrado,   feito   especialmente   para   esse   fim,   com   papiros   recolhidos   em   noites   de   lua  
cheia  nos  lugares  onde  moravam  os  deuses,  as  fórmulas  que  garantiriam  aos  seus  filhos  
e  netos  vida  longa  e  a  felicidade  que  ele  tanto  desejava.  Somente  assim  ele  poderia  viver  
e  morrer  em  paz.  
Ouvindo  a  convocação  do  imperador,  veio  de  uma  longínquaprovíncia  um  velho  sábio,  
que  todos  ignoravam.  Ele  morava  num  lugar  distante,  nas  montanhas.  O  caminho  a  ser  
trilhado  era  longo  e  as  suas  pernas  eram  velhas  e  cansadas.  Chegou  atrasado,  depois  que  
todos,  após  realizarem  seus  rituais  e  registrar  seus  desejos,  haviam  partido.  
O   imperador  se  alegrou  ao  ser   informado  da  chegada  do  homem  santo  e  ordenou  que  
um   de   seus   conselheiros   lhe   mostrasse   o   livro   sagrado.   O   velho   sábio   leu  
cuidadosamente  os  desejos  que  ali  haviam  sido  escritos.  
Havia  os  desejos  dos  tolos,  que  desejavam  aos  filhos  e  netos  do  imperador  a  proteção  da  
riqueza,  das  armas  e  dos  exércitos.  
Havia   as  palavras  prudentes,   que   lhes   aconselhava  moderação   e  hábitos   saudáveis  de  
vida  como  receita  para  prolongar  os  seus  dias.  
Havia  as  fórmulas  dos  sacerdotes,  que  invocavam  a  proteção  dos  deuses  e  das  forças  do  
bem.  Havia  os  bruxedos  dos  feiticeiros  e  mágicos,  que  exorcizavam  as  forças  do  mal.    
Todas   estas   palavras   traziam   ao   imperador   grande   alegria   —   e   ele   julgava   que   elas  
protegeriam  melhor  aqueles  a  quem  amava.  
Após  ler  tudo  o  que  fora  escrito,  o  velho  sábio  tomou  de  uma  pena  e  gravou  nas  páginas  
do  livro  sagrado  estas  palavras:  
“Os  avós  morrem.  Os  pais  morrem.  Os  filhos  morrem.”    
E  assinou  o  seu  nome.  
O  imperador,  ao  ler  tais  desejos,  tomou-­‐‑os  como  uma  maldição.  Enfurecido,  exigiu  que  o  
sábio  se  explicasse,  sob  pena  de  ser  mandado  para  a  prisão  pelo  resto  dos  seus  dias.  
  
  
11  
“Majestade”,  disse  o  sábio.  “Não  sei  receitas  para  impedir  a  chegada  da  Morte.  Ela  virá,  
de  qualquer   forma.  Sou  apenas  um  velho  poeta.  Minhas  palavras  não   têm  o  poder  de  
exorcizá-­‐‑la.  O  que  eu  posso  desejar  é  que  ela  venha  na  ordem  certa.”  
“A  ordem  certa?”  
“O  que  é  que  mais  deseja  um  avô?  Ele  deseja  morrer  vendo  seus  filhos  e  netos  cheios  de  
vida  e  de  alegria.  
O  que  é  que  mais  deseja  um  pai?  Ele  deseja  morrer  vendo  seus  filhos  saudáveis  e  felizes.  
Aqueles   que   amam  morrem   felizes   se   aqueles   a   quem   amam   continuam   a   viver.  Não  
tenho  palavras  mágicas  para  impedir  que  a  Morte  venha.  Mas  lhe  ofereço  meus  desejos  
de   que   ela   venha   na   ordem   certa.   Desejo   que   Vossa  Majestade  morra   antes   que   seus  
filhos  e  netos.  
Por  isso  invoquei  a  Morte,  na  ordem  da  felicidade:  
Os  avós  morrem.  Os  pais  morrem.  Os  filhos  morrem.”  
O  imperador  sorriu,  tomou  nas  suas  as  mãos  do  velho  sábio  e  as  beijou.  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
    
  
  
12  
Alegria  é  a  prova  dos  nove  
  
Digo  que  o  corpo  carrega  duas  caixas.  Com  a  mão  direita  carrega  uma  caixa  cheia  de  
ferramentas,  e  com  a  mão  esquerda  uma  caixa  cheia  de  brinquedos...  
  
Essa   ideia   simplíssima,   resumo   da   minha   filosofia   de   educação,   me   apareceu  
quando  eu  me  dedicava  a  pensar  sobre  um  texto  de  Santo  Agostinho.  
  
Pois  ele,   resumindo  sua  visão  de  mundo,  disse  que   todas  as  coisas  que  existem  se  
dividem   em   duas   ordens   distintas:   a   ordem   do   “uti”   (ele   escrevia   em   Latim)   e   a  
ordem   do   “frui”.   “Uti”   =   utilidade,   coisas   que   podem   ser   usadas   para   produzir  
outras,   ferramentas,   de  martelos,   que   são   ferramentas   simples,   a   navios,   que   são  
ferramentas  complicadas.  E  a  ordem  do  “frui”,  fruir,  usufruir,  desfrutar,  amar  uma  
coisa  por  causa  dela  mesma.  
  
A   ordem  do   “uti”   é   o   lugar   do   poder.   Todas   as   ferramentas   são   inventadas   para  
aumentar  o  poder  do  corpo.  Já  a  ordem  do  “frui”,  ao  contrário,  é  a  ordem  do  amor  –  
coisas  que  não  são  utilizadas,  que  não  são  ferramentas,  que  não  servem  para  nada.  
Elas  não  são  úteis;  são   inúteis.  Porque  não  são  para  serem  usadas  mas  para  serem  
gozadas.  
Aí   vocês   me   perguntam:   quem   seria   tolo   de   gastar   tempo   com   coisas   que   não  
servem  para  nada,  que  são  inúteis?  Aquilo  que  não  tem  utilidade  é  jogado  no  lixo:  
lâmpada  queimada,  tubo  de  pasta  dental  vazio,  caneta  bic  sem  tinta...  
  
Faz   tempo   preguei   uma   peça   num   grupo   de   cidadãos   da   terceira   idade.   Velhos  
aposentados.   Inúteis.  Comecei   a  minha   fala   solenemente.   “Então   os   senhores   e   as  
senhoras   finalmente   chegaram   à   idade   em   que   são   totalmente   inúteis...”   Foi   um  
pandemônio.   Ficaram   bravos.   Me   interromperam.   E   trataram   de   apresentar   as  
provas  de  que  ainda  eram  úteis.  Da  sua  utilidade  dependia  o  sentido  de  suas  vidas.  
Minha  provocação  dera  o  resultado  que  eu  esperava.  Comecei,  então,  mansamente,  
a   argumentar.   “Então   vocês   encontram   sentido   para   suas   vidas   na   sua   utilidade.  
Vocês   são   ferramentas.  Não   serão   jogados   no   lixo.   Vassouras,  mesmo   velhas,   são  
úteis.   Já   uma  música   do   Tom   Jobim   é   inútil.   Não   há   o   que   se   fazer   com   ela.   Os  
senhores  e  as  senhoras  estão  me  dizendo  que  se  parecem  mais  com  as  vassouras  que  
com  a  música  do  Tom...  Papel  higiênico  é  muito  útil.  Não  é  preciso  explicar.    
  
Mas  um  poema  da  Cecília  Meireles  é   inútil.  Não  é  ferramenta.  Não  há  o  que  fazer  
com  ele.  Os  senhores  e  as  senhoras  estão  me  dizendo  que  preferem  a  companhia  do  
papel   higiênico   à   companhia   do   poema   da   Cecília...”   E   assim   fui,   acrescentando  
exemplos.  De  repente  os  seus  rostos  se  modificaram  e  compreenderam...  A  vida  não  
  
  
13  
se  justifica  pela  utilidade.  Ela  se  justifica  pelo  prazer  e  pela  alegria  –  moradores  da  
ordem   da   fruição.   Por   isso   que   Oswald   de   Andrade,   no  Manifesto   Antropofágico,  
repetiu  várias  vezes  “a  alegria  é  a  prova  dos  nove,  a  alegria  é  a  prova  dos  nove...”  
  
E   foi   precisamente   isso   que   disse   Santo   Agostinho.   As   coisas   da   caixa   de  
ferramentas,   do   poder,   são   meios   de   vida,   necessários   para   a   sobrevivência.   As  
ferramentas  não  nos  dão  razões  para  viver.  Elas  só  servem  como  chaves  para  abrir  a  
caixa  dos  brinquedos.  
  
Santo  Agostinho  não  usou  a  palavra  “brinquedo”.  Sou  eu  quem  a  usa  porque  não  
encontro  outra  mais  apropriada.  Armar  quebra-­‐‑cabeças,  empinar  pipa,   rodar  pião,  
jogar   xadrez,   bilboquê,   jogar   sinuca,   dançar,   ler   um   conto,   ver   caleidoscópio:   não  
levam   a   nada.   Não   existem   para   levar   a   coisa   alguma.   Quem   está   brincando   já  
chegou.  Comparem  a  intensidade  das  crianças  ao  brincar  com  o  seu  sofrimento  ao  
fazer   fichas  de   leitura!  Afinal  de  contas,  para  que  servem  as   fichas  de   leitura?  São  
úteis?  Dão  prazer?  Livros  podem  ser  brinquedos?  
  
O  inglês  e  o  alemão  têm  uma  felicidade  que  não  temos.  Têm  uma  única  palavra  para  
se   referir   ao   brinquedo   e   à   arte.   No   inglês,   play.   No   alemão,   spielen.   Arte   e  
brinquedo   são   a  mesma   coisa:   atividades   inúteis  que  dão  prazer   e   alegria.  Poesia,  
música,   pintura,   escultura,   dança,   teatro,   culinária:   são   todas   brincadeiras   que  
inventamos  para  que  o  corpo  encontre  a  felicidade,  ainda  que  em  breves  momentos  
de  distração,  como  diria  Guimarães  Rosa.  
  
Esse  é  o  resumo  da  minha  filosofia  da  educação.  Resta  perguntar:  os  saberes  que  se  
ensinam   em  nossas   escolas   são   ferramentas?   Tornam  os   alunosmais   competentes  
para   executar   as   tarefas   práticas   do   cotidiano?   E   eles,   alunos,   aprendem   a   ver   os  
objetos  do  mundo  como  se  fossem  brinquedos?  Tem  mais  alegria?  Infelizmente  não  
há  avaliações  de  múltipla  escolha  para  se  medir  alegria...

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