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Recensao_Critica_Verdade_Tropical

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Recensão Crítica 
 
Verdade Tropical 
 Caetano Veloso 
 
 
 
 
 
 
Beatriz Bibas 
Ano letivo 2018/2019 
 
 
 
 
 
 
 
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Verdade Tropical 
 
Verdade tropical é um livro autobiográfico de memórias, que relata o percurso de vida 
profissional e pessoal de Caetano Veloso, desde a sua juventude, em Santo Amaro na 
Bahia, até ao exílio em Londres na década de 70. Foca-se no desenvolvimento e criação 
do movimento cultural que veio a ser conhecido como Tropicalismo, assim como nas 
repercussões que o regime de ditadura militar no Brasil dos anos 60 tiveram na vida 
pessoal e intelectual do autor e daqueles que viriam a ser nomeados como os 
“tropicalistas”. 
Com uma composição narrativa e filosófica, expõe as várias fases do percurso de Caetano 
Veloso e introduz ao leitor um conjunto de cantores, cineastas, compositores e autores 
que participaram e influenciaram o movimento tropicalista. Nomes emblemáticos como 
Glauber Rocha, Gal Costa, Maria Bethânia, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Rogério 
Buarque, Torquato Neto entre outros. 
Identificado o tema em estudo, nesta recensão crítica iremos analisar a emergência do 
Tropicalismo, o processo da sua origem e a razão da sua nomeação. De seguida, iremos 
falar do Festival de Música da Record de 1967 e finalmente, estabelecer a ligação entre o 
Tropicalismo como movimento cultural, musical e social e o chamado movimento 
antropofágico de Oswald de Andrade de 1928. 
A metodologia escolhida para este trabalho baseou-se na leitura e análise do livro 
“Verdade Tropical” (Veloso, 1997), complementada com informação recolhida em sites, 
enriquecida com a leitura do livro “Caetano Veloso” (Wisnik, 2005) e com o 
visionamento dos filmes “Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now!” (César Filho, 2011) e 
“Tropicália” (Machado, 2012), assim como outros artigos mencionados na bibliografia. 
 ⸙ ⸙ ⸙ 
Tropicalismo foi um movimento cultural fundado instintivamente por Caetano Veloso e 
Gilberto Gil em 1967 que pretendia ligar e, mesmo, fundir o nacional e o internacional, o 
popular e o erudito e relacionar o industrial e o artesanal, o elétrico e o acústico, tal como 
caracteriza Rogério Duarte no filme “Tropicália” (Machado,2012) : “(…) entre o 
malandro e o erudito, entre o baiano e o carioca, entre o Europeu e o Africano, em suma, 
a tropicália vem a ser a busca de uma síntese entre ideias totalmente contraditórias”. 
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Tendo sido construído no centro da nascente pós-modernidade, foi um movimento que 
buscava aproximar, criar pontes entre dicotomias que, à primeira vista, pareciam 
contrastantes, mas, numa altura em que, no cenário mundial, tudo se estava a transformar 
nos âmbitos social, cultural e político, era necessário fundi-las. Sendo um movimento 
que encarnava a não resistência às influências da música norte-americana, da 
contracultura e do Cinema Novo, era quase impossível não sobrepor dicotomias: 
“samplear” retalhos musicais (…) criar uma fusion qualquer, uma maionese musical 
vulgarmente palatável” (Veloso, 1997:168). 
 ⸙⸙⸙ 
O nome “Tropicalismo” teve origem a partir da obra de arte de Hélio Oiticica intitulada 
“Tropicália”, uma instalação artística que pretendia relacionar o nacionalismo brasileiro, 
o uso de elementos da “cor local” como araras e palmeiras com a cultura brasileira 
moderna e tecnológica. “(…) uma instalação (…) que consistia num labirinto ou mero 
caracol de paredes de madeira, com areia no chão para ser pisada sem sapatos, um 
caminho enroscado, ladeado de plantas tropicais, indo dar, ao fim, num aparelho de 
televisão ligado.” (Veloso,1997:188). Hélio Oiticica revela no filme “Tropicália” 
(Machado, 2012) que “Tropicália não era só o título de uma obra, era uma posição diante 
das coisas e uma posição estética.” Esta colocação estética e cultural era, exatamente, o 
que Caetano e Gil tentavam apresentar e disseminar através da música. 
 ⸙⸙⸙ 
O movimento foi concretizado por uma juventude intelectual de músicos, escritores e 
artistas plásticos, sendo inaugurado inicialmente por Gilberto Gil e Caetano Veloso. 
Baseou-se nos princípios como a liberdade de expressão, a desmitificação da sexualidade 
e dos preconceitos e o desejo de dilacerar barreiras musicais e culturais. 
Posteriormente, o Tropicalismo se deixou contaminar também pelo âmbito político, com 
o objetivo de combater a censura e a ditadura militar que se intensificava no Brasil, e que 
só terminou duas décadas depois, em 1989. 
 “O Brasil, naquele tempo, sobre a sombra de uma ditadura, precisava que a juventude 
tivesse material mental para se excitar”, explica Tom Zé, compositor brasileiro e 
participante ativo do movimento Tropicalista, “Tropicália” (Machado, 2012). 
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Concretizaram manifestações e mudanças estéticas não só na música como também, no 
cinema, com o Cinema Novo (Glauber Rocha) como forma de manifesto. 
A pertinência da pergunta “Seria possível o tropicalismo sem a ditadura?” (Ridenti, 
Futuro do Pretérito Tropicalismo Now!, 2011) é salientada pela resposta do próprio autor. 
“Tudo era exacerbado pela instintiva repulsa à ditadura militar, o que unia uma aparente 
totalidade da classe artística em torno do objetivo comum de lhe fazer oposição.” 
(Veloso,1997:178). 
“Numa ditadura “pensar é crime” (Tom Zé, “Tropicália”). Para este artista, o tropicalismo 
ofereceu “para a fome da cabeça da juventude, elementos para eles estarem na excitação 
de pensar, na excitação de compreender seu tempo para fazer a antítese dele, tudo isso 
era crime (…) o Tropicalismo de Gil e Caetano estava cedendo isso por debaixo do pano. 
Eles estavam presos, mas as canções estavam por aí.” 
 ⸙⸙⸙ 
Considerada, por muitos, a música que inaugura o movimento, “Alegria, Alegria” foi 
composta e produzida em 1967, ano inaugural do Tropicalismo: “Parti para a aventura de 
“Alegria, Alegria” como para a conquista da liberdade” (Veloso,1997:179). Foi uma 
canção composta com o intento de ser uma marcha de carnaval com um toque de 
modernidade, evolução e pop, inspirada em Beatles. Apresentada no programa de 
televisão, “Festival da TV Record de 67”, foi acompanhada pelos “Beat Boys”, uma 
banda de rock “iê-iê” argentina. 
Gilberto Gil, companheiro musical de Caetano Veloso, apresentou no mesmo Festival, 
com a banda “Os Mutantes”, a canção “Domingo no Parque”, também reconhecida como 
uma música determinante para o início do tropicalismo. 
“Tendo assumido a tarefa que Gil tão claramente delineara, decidi que no festival de 67 
nós deflagraríamos a revolução. (…) comecei a compor uma canção que eu desejava que 
fosse fácil de aprender por parte dos espectadores do festival e, ao mesmo tempo, 
caracterizasse de modo inequívoco a nova atitude que queríamos inaugurar.” 
(Veloso,1997:165) 
Ambas as músicas e a sua performance, provocatória e irreverente, espantaram o público 
mais conservador da época e foram vistas com muita polémica social e política. A 
“estranheza” era provocada no público devido ao carácter progressista musical, que 
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combinava géneros musicais estrangeiros como o pop e o rock nacionais. A reação do 
público foi antecipada pelos artistas, dado a contestação da época contra a hegemonia 
cultural americana. “Eu sentia que nós estávamos mexendo em coisas perigosas”, escreve 
Caetano Veloso. 
 “As músicas eram feitas exatamente para provocar estranheza e através da provocação 
de estranheza, levar as pessoas a novas reflexões, ao entendimento da benignidade, enfim, 
dessas desconstruções, dessa iconoclastia…” (Gilberto Gil, Futuro do Pretérito 
Tropicalismo Now!). Em suma, foi uma forma de espantar o público, uma maneira de 
introduzir o ainda não nomeado Tropicalismo como um choquee um movimento 
contrário à sociedade. 
 ⸙⸙⸙ 
Tropicalismo pode ser interpretado como uma vaga neo-antropofágica, uma renovação 
dos valores modernistas de Oswald de Andrade e de Mário de Andrade, dos anos 20, no 
Brasil. 
 No capítulo “Antropofagia” do livro “Verdade Tropical”, é apresentado o momento em 
que Caetano Veloso, após assistir à peça de teatro “O Rei da vela”, (Andrade, 1933) 
dirigida por José Celso Martinez, apercebe-se da semelhança do movimento que se 
instaurava na sociedade e cultura brasileira e do movimento anteriormente instaurado 
pelos modernistas de 1922. 
Da mesma forma que, no manifesto Antropófago de 1928, Oswald de Andrade pretendia 
“procurar o mesmo no outro” e absorver o “inimigo sacro”, ou seja, apropriar-se de outras 
culturas de uma forma seletiva e crítica, o Tropicalismo, expressou-se por uma atitude 
estético-cultural de “devoração” e assimilação crítica dos valores culturais estrangeiros 
que estavam a ser transplantados no Brasil. Uma “deglutinação” das virtudes, por 
exemplo, americanas e britânicas, com o rock e com o cinema e a sua adaptação à 
musicalidade brasileira. 
 “A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos 
“comendo” os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva 
dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva” 
(Veloso,1997:247). 
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O Tropicalismo utilizou a tese antropofágica e implementou-a, atualizando-a às questões 
presentes no Brasil dos anos 60. Questões tais como a dominação da cultura americana, 
a alienação da cultura de massas e a emergência dos meios de comunicação de massa. 
A apropriação de estilos estrangeiros e conjugação com estilos de música nacionais, 
juntamente com a utilização de termos ingleses e americanos nas músicas, eram formas 
de incorporar géneros musicais diferentes e, ao mesmo tempo, transformar a música 
brasileira, criando identidades híbridas. Por exemplo, em “Alegria, Alegria” (Veloso, 
1967) o uso do termo “coca-cola” no verso “Eu tomo uma coca-cola, ela pensa em 
casamento, e uma canção me consola, eu vou”. Esta era a primeira vez que a coca-cola, 
um dos maiores símbolos do império norte-americano, era mencionada numa canção 
brasileira, “A coca-cola fez com que se recebesse “alegria, alegria” como um marco 
histórico instantâneo” (Veloso,1997:166). 
Outra música de Caetano Veloso que explora esta mesma contradição é “Baby”, uma 
canção escrita para Gal Costa, integrante no álbum “Tropicália ou Panis et Circencis” de 
1968. “A canção tinha que terminar dizendo: “Leia na minha camisa, Baby, I love you”. 
Era um modo de comentar, com amor e humor, a presença de expressões inglesas nas 
canções ouvidas- e nas roupas usadas – pelas pessoas comuns.” (Veloso,1997:273). 
 ⸙⸙⸙ 
Em suma, o Tropicalismo foi um movimento cultural que transformou profundamente o 
cenário musical brasileiro, não só como motor da produção cultural nos diversos setores 
artísticos, como também como expressão máxima da condensação intuitiva de várias 
fontes, inspirações e interrogações político-culturais. 
A ponte entre o tropicalismo e o movimento modernista antropofágico, construída a 
posteriori, revela a potência inerente a essas interrogações, tornando-as intemporais e 
sujeitas a constantes repetições. 
Tendo sido um livro de memórias, escrito em 1997, sobre um movimento de vanguarda, 
parece-nos extraordinário como o seu caráter vanguardista mantém-se duas décadas 
depois, com especial e dramática pertinência, dado o contexto atual político-social da 
sociedade brasileira e mesmo mundial. 
 
 
 
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Referências bibliográficas: 
 
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