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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO Angélica Conceição Vieira Uma cartografia afectiva: pistas sobre bebês em documentos-afetos de instituições de acolhimento Florianópolis 2021 Angélica Conceição Vieira Uma cartografia afectiva: pistas sobre bebês em documentos-afetos de instituições de acolhimento Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para obtenção do título de mestra em Educação. Orientadora: Dr.ª Kátia Adair Agostinho. Coorientador: Dr. Rogério Machado Rosa. Florianópolis 2021 Angélica Conceição Vieira Uma cartografia afectiva: pistas sobre bebês em documentos-afetos de instituições de acolhimento O presente trabalho, em nível de mestrado, foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros: Prof. Rogério Machado Rosa, Dr. Coorientador Prof.ª Marta Corrêa de Moraes, Dr.ª Universidade Federal de Santa Catarina Prof.ª Joselma Salazar de Castro, Dr.ª Prefeitura Municipal de Florianópolis Prof.ª Gabriela Guarnieri de Campos Tebet, Dr.ª Universidade Estadual de Campinas Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão, que foi julgado adequado para obtenção do título de mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação. ____________________________ Prof. Amurabi Pereira de Oliveira, Dr. Coordenador do Programa de Pós-Graduação ____________________________ Prof.ª Kátia Adair Agostinho, Dr.ª Orientadora Florianópolis, 2021 Dedico esta cartografia à mulher fortaleza de minha vida. Mãe você é inspiração em minha vida. Ao meu morcego preferido (in memoriam), que resolveu bater asas e voar para longe de mim, e aos seus que aqui ficaram. Aos filhos amados, Arthur e Raul compositores das minhas mais lindas histórias. Às minhas Marias (in memoriam), que partiram durante o percurso dessa escrita, deixando muitas saudades. Aos que permanecem ao meu lado mesmo nas dificuldades, vulgo amigas(os) verdadeiras(os). À Prof.ª Dr.ª Kátia Adair Agostinho, que acreditou na minha determinação e força para viver esta experiência. Ao Prof. Dr. Rogério Machado Rosa, que me proporcionou muitos encontros potentes. À Universidade Federal de Santa Catarina e à Prefeitura Municipal de Florianópolis enquanto representantes de todas as instituições públicas do nosso país. Vocês são essenciais à vida da maioria das brasileiras e dos brasileiros. Por isso, defendamo-las! A todos os bebês e crianças que têm seus direitos violados. Saibam que existem sim aqueles que sempre lutaram/lutam contra injustiças. Às pessoas que sofrem, assim como eu, com transtorno de ansiedade e depressão. Por favor, não tenham receio de procurar ajuda. As quase 600 mil vítimas do Covid-19 e seus familiares. Lamento profundamente por não terem sido vacinadas com antecedência. E, por fim, à vida, que é movente, surpreendente e todos os dias tem algo a nos ensinar. AGRADECIMENTOS À MINHA VIDA AOS ENCONTROS QUE ME CONSTITUEM… E A TODAS(OS) QUE FIZERAM E AINDA FAZEM PARTE DESTA MINHA VIAGEM. OBRIGADA!!!!!! RESUMO Esta é uma cartografia afectiva de pistas sobre bebês em documentos-afeto de instituições de acolhimento do município de Florianópolis. Documentos-afeto são aqui considerados elaboração das organizações de tempo-espaço e de práticas cotidianas em relação ao que se tem pensado sobre e para os bebês nessas escritas afetadoras e afetantes, que interferem na produção de diferentes infâncias, subjetividades e nos corpos desses bebês. O objetivo e a relevância desta pesquisa estão ancorados na discussão e na reflexão referentes a esses documentos e a como os bebês, enquanto seres pré-individuais, potências de vida, cuja individuação está em processo de construção, são representados nessas escritas. O intuito aqui não foi encontrar respostas e verdades absolutas, e sim propor um diálogo que pudesse contribuir com os estudos dos bebês. Ressalta-se que esta cartografia conversa com a filosofia da diferença, com as noções de afetos e afecções, principalmente nas obras de Spinoza e Deleuze. Para análise e reflexão desses documentos-afeto, também se buscou fazer uma aproximação ao repertório teórico e metodológico da interseccionalidade. Com o auxílio dessa ferramenta conceitual, deu-se início ao processo de pensar nos bebês em situação de acolhimento, nos corpos que os gestam e nessas instituições. Como uma cartografia, seu trajeto foi constituído não por escolhas dadas a priori, mas sim pelas pistas que foram sendo descortinadas no decorrer da pesquisa, num processo de (re)existências contra as violências e práticas que promovem desigualdades e, portanto, devem ser cada vez mais questionadas. Palavras-chave: Cartografia. Bebês. Documentos-afeto. Instituição de acolhimento. Interseccionalidade. ABSTRACT This is an affective cartography of clues about babies in documents-affect of shelter institutions in the city of Florianópolis. Documents-affect are considered here as the elaboration of time- space organizations and daily practices in relation to what has been thought about and for babies in these affective and affecting writings that interfere in the production of different childhoods, subjectivities and in the bodies of these babies. The objective and relevance of this research are anchored in the discussion and reflection regarding these documents and how babies, as pre- individual beings, life potencies, who are in the process of constituting their individuation, are represented in these writings. The intention here was not to find answers and absolute truths, but to propose a dialogue that can contribute to the Study of Babies. Emphasizing that this cartography talks with the philosophy of difference, with the notions of affections and affections in the works mainly by Spinoza and Deleuze. I also sought to analyze and reflect on these documents-affects an approximation to the theoretical and methodological repertoire of intersectionality. With the help of the conceptual tool, it was launched to think about babies in a sheltered situation, the bodies that gestate them and these institutions. As a cartography, a path constituted not by choices given a priori, but clues that were unveiled during this cartographic research was carried out. In a process of (re)existence against violence and practices that promote inequalities and that must be increasingly questioned. Keywords: Cartography. Babies. Affection documents. Foster care institutions. Intersectionality. LISTA DE FIGURAS Figura 01 – Viva a universidade pública, viva a produção do conhecimento científico ........... 6 Figura 02 – Parada obrigatória ................................................................................................ 16 Figura 03 – As múltiplas faces do amor .................................................................................. 19 Figura 04 – Detalhes que nos escapam ................................................................................... 31 Figura 05 – O início... .............................................................................................................. 51 Figura 06 – Contando outras histórias .................................................................................... 66 Figura 07 – Chega de amarras .................................................................................................74 Figura 08 – O poder do discurso ............................................................................................. 79 Figura 09 – Falar é um ato de resistência ................................................................................ 80 Figura 10 – Bell Hooks ........................................................................................................... 82 Figura 11 – A história que se perpetua .................................................................................... 99 Figura 12 – A propagação de histórias camufladas ............................................................... 111 Figura 13 – Retrato de realidade(s) ....................................................................................... 129 Figura 14 – Deixe-nos viver com dignidade ......................................................................... 130 Figura 15 – Impressão de bebê(s) .......................................................................................... 131 file:///C:/Users/Jonhn%20Paulo%20Mafra/Downloads/AJUSTES%20POS%20DEFESA.docx%23_Toc86997469 file:///C:/Users/Jonhn%20Paulo%20Mafra/Downloads/AJUSTES%20POS%20DEFESA.docx%23_Toc86997470 file:///C:/Users/Jonhn%20Paulo%20Mafra/Downloads/AJUSTES%20POS%20DEFESA.docx%23_Toc86997472 file:///C:/Users/Jonhn%20Paulo%20Mafra/Downloads/AJUSTES%20POS%20DEFESA.docx%23_Toc86997473 file:///C:/Users/Jonhn%20Paulo%20Mafra/Downloads/AJUSTES%20POS%20DEFESA.docx%23_Toc86997475 file:///C:/Users/Jonhn%20Paulo%20Mafra/Downloads/AJUSTES%20POS%20DEFESA.docx%23_Toc86997477 file:///C:/Users/Jonhn%20Paulo%20Mafra/Downloads/AJUSTES%20POS%20DEFESA.docx%23_Toc86997482 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Resultados do levamento, de acordo com os descritores utilizados e as bases de dados consultadas ................................................................................................. 42 Quadro 2 – Principais dados das pesquisas selecionadas ........................................................ 44 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS BDTD Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações Capes Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Dr. Doutor Dr.ª Doutora ECA Estatuto da Criança e do Adolescente Funabem Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor n./nº Número Nupein Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação na Pequena Infância Nuvic Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Violências PIA Plano Individual de Acolhimento PPGE Programa de Pós-Graduação em Educação PPP Projeto Político-Pedagógico Prof. Professor Prof.ª Professora SAM Serviço de Assistência ao Menor UFSC Universidade Federal de Santa Catarina v. Volume Figura 1 – Viva a universidade pública, viva a produção do conhecimento científico Fonte: elaborada pela autora. SUMÁRIO 1 DOS AFETOS E DAS AFETAÇÕES INICIAIS .......................................................... 13 1.1 DOS ARRANJOS DE UMA PESQUISA/VIDA EM MOVÊNCIA ................................. 15 1.2 PISTAS DE UMA IDEIA-POTÊNCIA E DO ENCONTRO COM A CARTOGRAFIA.22 2 CONEXÕES COM LINHAS DE ESCRITA ACADÊMICA SOBRE BEBÊS .......... 29 2.1 PISTAS CARTOGRÁFICAS: ESTRATÉGIAS PARA A CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTOS SOBRE BEBÊS .............................................................................. 38 3 (DES)CONTINUIDADES DO GOVERNO DA INFÂNCIA: NOTAS SOBRE GIROS HISTÓRICOS DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE BEBÊS ........ 49 4 QUE CORPOS SÃO ESSES? A INTERSECCIONALIDADE E SEUS ATRAVESSAMENTOS NOS CORPOS QUE GESTAM............................................ 64 4.1 BEBÊS-AFETOS: DEVIRES E POTÊNCIA DE UM CORPO ........................................ 83 5 DOCUMENTOS-AFETOS: (IN)DOMESTICANDO CERTEZAS DE UM PENSAMENTO INTERSECCIONAL .......................................................................... 97 5.1 AFECÇÃO PERSISTÊNCIA ........................................................................................... 101 5.2 AFECÇÃO INSURGÊNCIA ........................................................................................... 107 5.3 AFECÇÃO RESISTÊNCIA ............................................................................................. 114 6 DAS FORÇAS QUE AINDA PEDEM PASSAGEM .................................................. 126 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 132 13 1 DOS AFETOS E DAS AFETAÇÕES INICIAIS “O desejo é revolucionário, porque sempre quer mais conexões, mais agenciamentos” (DELEUZE; PARNET, 1998) Um projeto, um ponto de partida, o rabisco de um trajeto que nasce de uma ideia. Mas não de qualquer ideia, e sim de uma que, desde o início, foi se apresentando enquanto ideia- potência. É potente porque clama por se propagar, é potente porque já não mais consegue ser guardada para ser revisitada em outro momento, é potente por não querer mais ficar quieta, esquecida num canto qualquer da memória, é potente porque causa desassossego e estranhamento, e é potente porque está ligada ao desejo. O desejo aqui é uma força motriz que me move a pensar, força-potência que me lança à ação, o desejo como força que faz agir, uma pesquisa desejante da vida em expansão e da produção de novos conhecimentos. “É a Ciência + Desejo = ciência desejante, viva. Uma ciência a serviço da afirmação da vida como obra de arte, como suas cores, paixões e movimentos […]” (ROSA, 2016. p. 74). Uma ideia que se desmembra em alguns questionamentos: será que bebês são contemplados na construção dos documentos produzidos em instituições de acolhimento? O que esses documentos dizem a respeito das suas organizações, do seus tempos-espaços e das práticas cotidianas destinadas aos bebês. Nesse horizonte, pretende-se analisar tais documentos, elaborados por três instituições de acolhimento do município de Florianópolis, e, desses encontros, produzir pistas sobre bebês nesses contextos. Com esse questionamento em mente, e a necessidade de pôr esse desejo em prática, foi preciso dar um primeiro passo. E qual o caminho para que isso se tornasse possível? Minha entrada no mestrado. No entanto, não foi assim tão inesperadamente, como num belo dia de verão, em que os raios de sol, por entre as frestas da janela, iluminam meu corpo não mais adormecido e me despertam a vontade de ir à praia. Esse processo, que me atraiu como o magnetismo de um imã, é composto por um contexto muito mais complexo. É uma história que começou há dezesseis anos, após a formação no Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Santa Catarina. Recém-formada, queria pôr em prática todo o aprendizado compartilhado. Preciso dizer algo que é muito marcante em minha personalidade e na minha profissão: a formação em uma universidade pública, que muito influenciou a minha forma de pensar o ensino público, de pensar as relações políticas e classistas de nosso país, e sustenta até hoje minha prática docente. Saí da universidade ciente de que sou, além de professora com perfil de ensino público, uma defensora do ensino público. 14 A saída da universidade acabou me lançando para novos horizontes, e, no ano seguinte, torno-me membro efetiva da Educação Infantil na Prefeitura Municipal de Florianópolis. Durante esse período de entrada até a saída provisória para realizar o mestrado, assumi distintas funções, que me possibilitaram pensar as infâncias, os bebês e as crianças. O desejo já estava operando em minha vida, antes mesmo de eu decidir pela temática que pretendia pesquisar. Ali, no contato diário com bebês, crianças e outras profissionais, por meio de relatos e trocas de saberes e experiências, fui me constituindo enquanto docente de crianças de 0 a 5 anos. Desses relatos de experiências que compartilhamos entre colegas de trabalho, um deles foi como uma flecha e atingiu em cheio um alvo que, talvez,nem fosse seu propósito. Era uma flecha que acabava de acertar um pensamento, aliás, o meu pensamento. Pronto! Aquele relato tinha toda minha atenção. Assim como música aos meus ouvidos, ouço a experiência vivenciada com bebês, crianças e adolescentes em instituições de acolhimento. Alguns podem chamar de delírio o fato de uma professora de Educação Infantil escolher realizar sua pesquisa em uma instituição de acolhimento, outros podem achar pretensioso ou até mesmo audacioso. E eu digo: é sim! É tudo isso e muito mais. Não é tarefa fácil abrir mão de um espaço com o qual você já se sente familiarizado para bater à porta de uma outra instituição e querer fazer parte desse contexto. Minhas bases, tanto de estudos quanto de atuação, transitavam pela Educação Infantil. Mas, mesmo assim, acabei sendo seduzida pela ideia de investigar bebês em instituições de acolhimento. E esse desejo de saber dessas infâncias foi muito mais relevante que a insegurança de ter que transitar por outras instituições. Havia uma voz, que vinha de dentro, sussurrando-me constantemente: 15 Estrategicamente, começo a traçar minha aproximação e o percurso de minha entrada no mestrado. Como eu já frequentava ciclos de diálogos no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação na Pequena Infância (Nupein) e no Núcleo Vida e Cuidado: estudos e pesquisas sobre violências (Nuvic), ambos grupos imersos na linha Educação e Infância do Programa de Pós- Graduação em Educação (PPGE) da UFSC, sabia da localização daquelas que poderiam acolher essa ideia e, assim como eu, torná-la ainda mais potente. Fiz o necessário: participei de um processo seletivo marcado por uma ampla concorrência. Que ninguém pense que, por ser pública, a universidade é aberta a todos, mas isso é um outro assunto – que também atravessa esta escrita. Tive que passar por todas as etapas desse processo, cada qual com suas particularidades, até enfim ser aprovada. E lá estava eu, no primeiro dia de uma reunião geral do grande grupo que ingressava no Mestrado de Educação do ano de 2018/2. Dessa grande reunião, formou-se uma ramificação, que reunia as alunas da específica e almejada linha de pesquisa ‘Educação e Infância’, composta por seis mulheres e os mundos que cada qual trazia consigo. Logo nesse primeiro contato com aquelas que dividiriam comigo uma caminhada de dois anos, percebi as diferenças que caracterizavam esse grupo. Distintos modos de olhar e de se apresentar, áreas de atuação as mais diversas, mas todas com o entusiasmo de estarem ali ocupando aquele espaço. Era notória a vontade de vivenciar essa experiência em suas faces ansiosas, alegres e curiosas. E eu, imersa também nesse movimento sedutor, sentia-me convidada a respirar novamente os ares acadêmicos. Delas, posso dizer que mal sabiam o quanto de contribuição teriam nesta minha caminhada. Dessa forma, é importante que seus nomes apareçam aqui: Ana Laura, Débora, Juliana, Olívia e Patrícia, mulheres fortes, defensoras e pesquisadoras das infâncias, que a cada encontro faziam/fizeram e fazem desta produção algo que nenhum outro grupo me proporcionaria, pois cada uma trouxe consigo o seu jeito de ser. E juntas promovemos belos encontros. 1.1 DOS ARRANJOS DE UMA PESQUISA/VIDA EM MOVÊNCIA “Um encontro é sempre um convite para a novidade e por isso exige coragem daqueles que simpatizam com as diferenças” (ROSA, 2016, p. 59) Nessa trajetória, arranjos foram necessários, pois, assim como na vida e suas afetações na esfera pessoal, profissional e coletiva, a pesquisa e a vida acadêmica também não são estáticas, previsíveis e inflexíveis, atravessamentos inesperados conjuntamente as constituem. 16 Passei por vários enfrentamentos, dentre os quais greve de estudantes, mudança de coordenação, desafio de comprovar proficiência em uma língua estrangeira que mal dominava, encontro com novos autores, alteração de orientação, aproximação à outra metodologia, mudança na estrutura familiar e tantos outros ocorridos. Lembrando-me a todo momento de que tais acontecimentos não se desvinculavam do ato de pesquisar, porque pesquisa é vida. Aliás, a vida não fica em suspensão enquanto estou frequentando uma disciplina ou escrevendo parte desta dissertação. É uma trama indissociável. Para além de pesquisadora, sou mãe, filha, irmã, amiga, estudante, professora, mulher branca, militante e outras tantas coisas. E é desse lugar que esta pesquisa será/foi realizada. Para além de todos esses aspectos, eis que um em específico se fez presente não só na instância individual mas sobretudo em uma coletividade nacional e também mundial. Falo aqui da pandemia de Covid-19, atravessamento que colocou o mundo de pernas para o ar. Algo proporcionado pela onda da pandemia e também pelo rompimento do ligamento do tornozelo, resultado de uma queda também não planejada: Fonte: acervo particular da pesquisadora (2020). Em meio a essa desordem, sou tirada a uma prosa rítmica para pensar sobre cuidado pessoal, repouso, vida e morte, para refletir sobre os seres humanos que somos, seres do mundo que carregam consigo a vida e a morte. Aliás, vida e morte andam de mãos dadas, e essa pandemia nos fez vivenciar esse luto coletivo, tendo de acompanhar diariamente o número excessivo de mortes, de finais de histórias, de sonhos, de conhecimento, de cultura, de vida já fria, por vezes abandonada nas calçadas, os vínculos rompidos repentinamente. A pandemia Figura 2 – Parada obrigatória 17 descortinou ainda mais a desumanidade. Escolhas de que vida vale mais, de que vida pode produzir mais, de quem ‘merece ou não’ viver. Essa foi uma fase muito cruel que o vírus fez o mundo vivenciar. Uma experiência coletiva que, ao mesmo tempo, torna-se individual, pois cada um de nós teve de lidar, ao seu modo, com a sensação de tê-lo rondando nosso país, nosso Estado, nosso município, nossos lares e perceber que a morte está dentro da própria vida. Esse tabu veio à tona, e inevitavelmente tivemos que colocar o dedo nessa ferida, que mostra o quão frágil somos diante da morte. Lidar com a sensação e a aproximação da morte afeta profundamente o que pensamos dessa passagem. Porque o fim iminente atesta o factual vazio de nossa existência, de nossas ações. Percebemos, ao olhar o mundo à frente, que não temos mais tempo para aquilo que não fizemos quando o tempo era próspero. Não há mais tempo para ler aquele livro, para comer aquela comida, para ter a vida que deixamos para depois. Cafés da manhã fizeram-se diferentes, rotinas de sono foram alteradas, rotinas alimentares e emocionais também. Aliás, muitas emoções à flor da pele. Muitas foram as alterações que movimentaram não só o corpo, que precisou se adaptar a esse contexto, mas também a mente, que sentia a necessidade de refletir sobre todo esse impacto e, mesmo diante disso, dar continuidade a uma pesquisa. Pois o tempo cronológico é distinto do tempo das emoções. Como um corpo sedentário, fomos tirados para dançar um novo ritmo, não ditado pela suposta convicção de superioridade do ser humano, mas sim pelo invisível e devastador vírus, que resolveu ditar as regras às quais teríamos que nos adequar para que ele não se tornasse ainda mais mortal do que já vinha se mostrando. Alterou nossas rotinas, nossas saídas, nossos encontros, nossos afetos, nossas idas e nossas não idas. A Covid-19 também fez com que corpos já isolados socialmente se tornassem, em tempos de cólera,1 ainda mais invisíveis e solitários. Ruas e vielas desenharam-se na frieza e na crueldade de uma prevenção anunciada com o uso de álcool em gel e máscaras àqueles que sequer tinham o que comer e onde se abrigar. Em tempos pandêmicos, escrevo em meio a conversas, discussões políticas, elaborações do que será preparado para o almoço, ouvindo falas de uma criança que fica perguntando constantemente onde está sua mãe, pequenos conflitostêm de ser resolvidos repetitivamente, e a rua, a praia, a caminhada já não são mais opções possíveis para que eu possa aliviar minhas tensões. 1 Segundo o DICIO, dicionário online de português: sentimento violento diante de uma situação revoltante; ira. 18 Escritas que se movimentam em meio a um Pantanal em chamas, em meio ao movimento Black Lack Lives Matter,2 desencadeado pela morte de George Floyd,3 apagão do Amapá, renúncia de ministros – aliás, uma dança de cadeiras, um entra e sai em meio a discursos de retrocesso vinculados ao terraplanismo –, cortes de verbas de universidades públicas, descrédito da ciência e da pesquisa, recusa de compras de vacinas e vidas sendo ceifadas: durante esta escrita, já passamos de 600 mil mortos. Infelizmente, o Brasil tornou-se vitrine mundial de um país mal administrado, o que nos rendeu o título de nação com o maior número de mortos pelo coronavírus. Presenciamos, em todos os lugares, a luta por respiradores e leitos; por breves instantes, não parecia que estávamos falando de vida, e sim de máquinas. Era o direito à vida mais uma vez usurpado, o dinheiro, a corrupção, a ganância, a política da morte e do genocídio mostrando o valor de vidas. Mas não de quaisquer vidas: vidas pobres, negras ou pobres e negras. Frequentes são as interrupções de pensamento, que, em outros momentos, não ocorriam com a mesma frequência, já que agora temos um tempo mais alargado dentro de casa. É a tomada ou retomada de um parágrafo que, às vezes, leva um dia inteiro para ser concluído. Paciência e esperança, eis as palavras de ordem, pois sem elas os dias se tornam pesados, cansativos e desanimadores. Mas esse isolamento social também proporciona uma outra realidade, que deve ser ressaltada. Falo da aproximação afetiva roubada pela corrida rotina diária de levar filho à creche, de não ver o adolescente saindo cedo de casa para ir à escola, de uma chegada tardia depois de um encontro com o grupo de estudo e o filho já adormecido, cansado de esperar a chegada de sua mãe para lhe dar o banho, o beijo e o abraço apertado. Além desses, um outro acontecimento atravessa-me, desloca-me e mostra que, no meio da tormenta, pode aparecer algo a mais. Um pequeno intruso instalado em uma região tida como rara, que se manifesta por meio de um sangramento, uma radiografia solicitada, e eis que esse intruso é identificado – um tumor –, confirmando um diagnóstico de câncer na rinofaringe. Não meu, mas de minha irmã. A princípio, desespero em ter de lidar com notícias e rotinas que essa descoberta trouxe junto dela. Um tratamento é prescrito e, entre radioterapias e quimioterapias, 2 Segundo a Universidade Federal do Espírito Santo, o Black Lives Matter denuncia a violência e o racismo da polícia desde 2013, quando foi criado por três movimentos diferentes: a Aliança Nacional das Trabalhadoras Domésticas, a Coligação Contra a Violência em Los Angeles e o Ativismo pelos Direitos dos Imigrantes. O movimento ficou popular após a morte de Eric Garner, em 2014, que, assim como George Floyd, foi asfixiado por um policial. Em ambos os casos, a frase “não consigo respirar” marcou os protestos antirracismo. 3 Morto por um policial que ajoelhou sobre seu pescoço, o que gerou uma manifestação, principalmente nos Estados Unidos, referente a lutas antirraciais. 19 novos espaços se abrem para pensar sobre a vida e a morte, a fragilidade e a força, o medo e os sonhos, o tratamento e as curas. Nascem junto disso outros espaços de construção desta escrita. Nossas vidas são movidas pelo tempo, e a cronologia do tempo referente ao findar desta pesquisa se aproxima. E isso também é algo que precisa ser imerso nesse período, em que tenho que lidar com essa nova rotina, que flui de forma tão distintas do planejado. Figura 3 – As múltiplas faces do amor Fonte: acervo da pesquisadora. É, planejamentos são importantes, porém as movências do viver nos lançam para onde querem, sem sequer nos pedir licença, demarcando o fato de que a vida, o falar da vida e o pesquisar vidas nunca serão algo estático. Um vírus que fez o mundo parar, uma doença que fez eu e minha família nos reorganizarmos, e uma pesquisa que continua a fluir dentro dessas novas organizações que vão se me apresentando. Tive que seguir novos caminhos, traçar novas linhas, almejando novos horizontes e, desse modo, realizar uma pesquisa longe do espaço da universidade, longe das discussões coletivas, distante das bibliotecas e dos grupos de estudo. Pesquisa sendo finalizada dentro de casa. Novos tons, novas leituras e a vida em movimento fizeram com que eu me reinventasse a cada desafio imposto, a cada dificuldade superada e a cada conquista realizada. 20 Talvez esta seja a maior e mais importante alteração deste processo: a transformação de um ser que, em contato com novos saberes, percebe algo novo à sua espera no próximo passo que se propõe a dar, no próximo capítulo escrito num texto a ser lido, na próxima live a ser assistida. A experiência de fazer uma pesquisa cujo processo, aqui, comparo ao nascimento de um bebê. Olha-se um corpo tão pequeno, do qual nada sabemos sobre a capacidade e a potência para transformar vidas. Quando nasce uma pesquisa, nascem junto a ela vários caminhos e distintos processos; quando nasce um bebê, junto a ele nasce uma ou mais mães, pais, irmãos, nasce um lar, um quarto planejado e organizado nos mais íntimos detalhes para recebê-lo; ou quem sabe, ao contrário, um cômodo compartilhado com os demais membros da família; também pode nascer uma instituição que irá acolhê-los, entre tantas outras possibilidades. Mas um nascimento jamais será neutro. Porque nenhum pequeno corpo de bebê traz consigo a mesma forma desses tipos de nascimento, eles carregam a novidade, o estranhamento, alteram rotinas, solicitam cuidados, novas formas de pensamento acompanham essa experiência. Assim foi comigo; o nascimento desta pesquisa transformou-me em uma outra pessoa, que, ao longo da caminhada, trocou sua roupagem diversas vezes, tentando, a cada instante, tornar-se mais livre das amarras dos padrões sociais, dos padrões acadêmicos, dos padrões de desenvolvimento de pesquisas, dos padrões de pensamento sobre os bebês e as instituições de acolhimento. Sou uma pesquisadora que busca constantemente manter-se aberta a novas possibilidades, às novas formas de escrita, mas ciente de que, mesmo diante do desejo de pesquisar, “[...] de produzir interferências (ou fissuras), seja naquele que escreve, seja naquele que lê” (MACEDO; DIMENSTEIN, 2009, p. 154), por vezes, caía/cai nas armadilhas dos discursos, das concepções e dos pré-julgamentos já cravados em meu corpo, tal como tatuagens. Mas tatuagens também podem ser removidas. É doloroso, é invasivo e é marcante, porém o processo de remoção possibilita que um novo desenho, um novo traço possa ser realizado, substituindo aquilo que nos acompanhou durante algum tempo e que fez parte do que somos, do nosso corpo, de nossas intimidades, que não são esquecidas porque não mais estão ali. É um antigo aprendizado, uma antiga marca no corpo dando espaço a novidades. 21 E foi nessa perspectiva de abertura aos bons encontros com o desconhecido que fui apresentada àquela que me afetou e ampliou minha potência de vida. Falo da cartografia, que me fez perceber sutilezas há tempo não acessadas, dando um novo sentido à produção de conhecimento e à pesquisa. Essa ideia-potência, unida àquela que seria/será a ‘cereja do bolo’, compôs tudo o que vem na sequência desta apresentação. Foi a aproximação com algo que buscava, mas não sabia da existência. Eis que o Prof. Dr. Rogério Machado Rosa promove esse encontro: - ‘Prazer, cartografia! Que façamos bons encontros desta experiência que agora é nossa’. 22 1.2PISTAS DE UMA IDEIA-POTÊNCIA E DO ENCONTRO COM A CARTOGRAFIA “Não há fórmula/forma/fôrma Nem tampouco um método Quiçá exista um antimétodo Não generalize/interprete Joga fora o a priori Deixa o caminho definir o a posteriori É no meio que tateamos as suavidades Degustamos as intensidades E-x-p-e-r-i-m-e-n-t-a-m-o-s (no plural porque o experimento se dá num agenciamento) Descobre que sabor, textura, cor têm o movimento Bailar no acontecimento A vida se faz em ritmos e passagens Cosmo/caos/mesmo/outro/lentidão/velocidades Cabe-nos descobrir as doses Maquinar cada (dis)solução E ao final da criação da vida como obra Esquecer a receita! Inventar um corpo de memória-suave Que desliza na superfície da multiplicidade E atualiza o aconte-ser Apostar no embate contra a dureza Utilizando microgestos de singeleza Há que se ter ousadia, leveza, prudência e poesia Pra criar uma esquizoexistência com alegria” (VASCONCELLOS, 2016) É CORPO, É PESQUISA, É ESCRITA VIVA, ATRAVESSAMENTOS, TRANSFORMAÇÕES EM CONSTANTE MOVIMENTO 23 Construir uma cartografia afectiva dos encontros com bebês nas produções discursivas de documentos em instituições de acolhimento, como já anunciado, é a ideia-potência que aqui pretende-se expandir. Falar de uma pesquisa cartográfica é falar de forças, afetos e afecções. Mas as noções de afeto com a qual opto por dialogar são de Spinoza e Deleuze. Por quê? Porque ambos pensam em afeto e afetações para além da afetividade abordada pela tradição. No entanto, não quero aqui desconsiderar estas últimas ou descartá-las das práticas de afeto com os bebês, muito pelo contrário. O que quero dizer é que “[...] o ‘afeto’ é aqui entendido não no sentido de ‘ternura’, mas no sentido filosófico mais amplo. O afeto aqui é visto como fundamentalmente relacional e processual” (HUTTA,4 2020, p. 70). E este processo/relação, segundo esses filósofos, faz com que o corpo aumente ou diminua suas potências de agir, ampliando assim a ideia de afetividade e trazendo à luz da reflexão um processo em que “[...] um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por outros corpos: é este poder de afetar e de ser afetado que também define um corpo na sua individualidade” (DELEUZE, 2002b, p. 1). Mas é necessário entender que “[...] somos agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como ondas do mar agitadas por ventos contrários, somos jogados de um lado para o outro, ignorantes de nossa sorte e de nosso destino” (SPINOSA, 2020, p. 139). Assim, optei por trazer tais conceitos para pensar, mas não só, mas também possibilitar a junção entre esses e os documentos dessas instituições de acolhimento aqui pensados enquanto documentos-afetos, bem como pensar os bebês como bebês-afeto e práticas cotidianas enquanto práticas de afeto. Esses conceitos, que andaram aqui de forma indissociáveis na teoria encontraram nessa cartografia passagem para juntos pensarmos bebês, produções de documentos e o contexto institucional. E isso orientou toda essa construção cartográfica, aqui inicialmente anunciados, mas que terão suas discussões ampliadas no decorrer dessa escrita. Esses documentos-afeto são aqui refletidos enquanto escritas moventes que têm “[...] seus percursos em constante conexão com o que acontece no espaço/arte/tempo/vida” (PEREIRA, 2014, p. 106) das instituições em estudo. Uma perspectiva que contraria a ideia de documentos serem apenas uma aglomeração de letras, frases e parágrafos inacessíveis às realidades e às afetações de todos os sujeitos que ali se encontram. E é nesse sentido que pretendo pensar sobre o lugar que as palavras ocupam nesses documentos, o que representam na vida daqueles que lá se encontram. Por essa razão a opção pela cartografia trata de “[...] construir conhecimento com o outro e não sobre o outro. Meu 4 Este texto foi publicado originalmente em inglês na Revista Geografia em Atos. Esta tradução foi realizada por Silvana Prado. 24 encantamento pela cartografia como estratégia de construção de conhecimento ampliava-se em termos de significado e de intensidade” (ROSA, 2016, p. 55), por acompanhar processos e permitir que o cartógrafo produza pistas daquilo que se propõem a pesquisar. Nesse horizonte, [...] a cartografia trata da concepção, produção, [...] interpretando à sua maneira o espaço, há casos em que ela é aplicada como método de acompanhamento para traçar percursos poéticos, sendo aquilo que força a pensar e ver o todo do processo do artista pesquisador, dando-se como possibilidade de caminho a ser traçado no trabalho, como uma atenção voltada ao processo em curso. Entendendo que o método cartográfico convoca a um exercício cognitivo peculiar do pesquisador, uma vez que, estando voltado para o traçado de um campo problemático, requer uma cognição muito mais capaz de inventar o mundo do que reconhecê-lo. (MOURA; HERNANDEZ, 2012, p. 2). A tarefa não é fácil, mas necessária para que se possa, aos poucos, ir desnudando e desconstruindo muitas convicções, a fim de acompanhar, pelas lentes da cartografia, no meu caso, o que esses documentos dizem sobre os bebês e as organizações institucionais que circunscrevem essa relação. Meu foco nesta trajetória, é a de um corpo que vive a pesquisa cartográfica, é o esforço de não a converter em uma ideia universal das coisas e dos conceitos. A aspiração é dar lugar a outras formas de pensá-la. Aliás, o caminho aqui está “[...] em trânsito e sem endereços e endereçamentos fixos” (ROSA, 2017, p. 193). Um pensar que constitui experimentações de distintos modos e escritas com distintas formas de orquestrar uma pesquisa e formas diversas de olhá-la. “Cada linha escrita mascara e expõe [...] lascas de realidade que se conectam, linhas múltiplas que se entrecruzam. Linhas escritas, neste sentido, são perceptos” (JÚNIOR, 2011, p. 61). Prática que exige da gente uma enorme vontade e o exercício constante da liberdade, que coloca em xeque quem somos diante da pesquisa e da escrita. Que nos faz questionar mais profundamente nossa própria forma de existência em uma coletividade composta por diferenças que marcam os sujeitos da pesquisa, o movimento do mundo, suas rotas, seus fluxos e, pelo plano da imanência da vida, o plano dos encontros de intensidades. E, nesse aspecto, ressalto o quanto, nas “[...] cartografias, vemos apenas algumas linhas pelas quais a vida vai sendo tecida em uma multiplicidade de afetos, às vezes tristes, outras alegres, diminuindo ou aumentando nosso grau de potência de afetar e ser afetado” (PEREIRA, 2014, p. 128). Movimentos cujas marcas constituem subjetividades, desde cedo, a partir da produção de ordens discursivas. São modos de vida, crenças e ideologias as quais produzem as infâncias, bem como os lugares sociais a serem ocupados por determinados corpos e camadas sociais, principalmente no que se refere à população pobre. 25 Assim, esta cartografia foi constantemente atravessada por estudos decoloniais, pela interseccionalidade e pela Filosofia da Diferença, que me ajudaram a refletir sobre essa diferença não enquanto “[...] um problema, mas sim [como] ponto de partida para criar problemas e, assim: problematizar” (BARROS; MUNARI; ABRAMOWICZ, 2017, p. 109). Defendendo que a “[...] diferença precisa ser retirada da cena onde foi satanizada para ser recolocada na multidão, onde a paisagem é indefinida, onde não se sabe exatamente quem é quem e o que é o que, mesmo porque ela é nômade: quem estava ali não está mais, quem chegou já saiu” (BARROS; MUNARI; ABRAMOWICZ, 2017, p. 109). Essas colocações instigam-me a pensar naquilo que nos escapa entre os dedos, entre os contornos fixos, no que causa rupturas e foge das forças estabelecidas. Instigam-me a pensar na infância e nos bebês de forma nômade, ou seja, aquela que “[...] não se funda numa totalidade englobante,mas, ao contrário, desenrola-se num meio sem horizonte, como espaço liso, estepe, deserto ou mar” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 41). Aqui, tomo o nômade como incabível em um conceito fixo, em um modelo a ser seguido, um pensamento não na perspectiva de uma infância e de um bebê captáveis, normatizados, formalizados, mas sim em uma perspectiva que se aproxima do devir, com modos próprios de escapar a essas amarras, que os aprisionam e tentam condicioná-los como universais, um pensamento do devir de uma infância nômade, “[...] que escapa ao modo do pensamento logocêntrico do racionalismo clássico” (LINS, 2017, p. 271). Tais inquietações e questionamentos põem-me a pensar em conceitos, perspectivas e seguridades de infância e de bebês, que exigem que se pensem neles em descontinuidade com padrões lineares e cronológicos, uniformemente pautados em uma infância romantizada, inocente e universal, descontextualizada das distintas realidades, culturas e modos de viver e de ser bebê, dos fluxos infantis e das forças nômades que os permeiam. “Nessa perspectiva, a ideia de infância não está vinculada unicamente à faixa etária, à cronologia, a uma etapa psicológica ou a uma temporalidade linear, cumulativa e gradativa, mas ao acontecimento, à arte, ao inusitado, ao intempestivo” (ABRAMOWICZ; LEVCOVITZ; RODRIGUES, 2009, p. 180). Fazendo com que seja imprescindível que se discuta, pesquise e se busque uma aproximação mais íntima, que nos possibilite outras miragens, que nos permita pensar em bebês, crianças e instituições de acolhimento. Tal necessidade se faz presente, já que As noções de infância que ainda norteiam o pensamento atual parecem estar atravessadas por um viés histórico, construído a partir de uma visão cronológica moderna. Percorrem as margens e minúcias da infância, percebem-se práticas para a produção de uma determinada forma de subjetivação, captura de infantis, processos 26 de disciplinamento que tornam favoráveis as formas de organização do mundo social, político e econômico. (PRETTO; MUNHOZ; COSTA, p. 5, 2017). Nessa perspectiva, diversas são as possibilidades de pesquisar esses espaços e contribuir com a ampliação de discussões que possam desmistificá-los enquanto espaços puramente assistencialistas e reprodutores de desigualdades, os quais, por essa razão, carregam o estigma de serem prejudiciais aos que ali se encontram. Com a análise desses documentos, fui produzindo pistas para tecer reflexões sobre bebês em situação de acolhimento, sobre os corpos que os gestam e sobre os atravessadores sociais referentes à classe, à raça, ao gênero, à idade, entre outros critérios, a fim de pensar essas infâncias institucionalizadas. Entendo-os enquanto rizomas. De acordo com Deleuze e Guattari (1995, p. 31), um rizoma “[...] não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e trasborda. Ele constitui multiplicidade”. Portanto, o controle nunca pode ser total, já que sempre há a possibilidade de se construir uma estrutura codificada diferente da prevista, uma estrutura transversalizada pelos fluxos de força e movida pelas ações desejantes. Uma estrutura presente em seus contornos físicos, em seus regulamentos, em suas práticas vigentes; e, em especial, em suas práticas imperceptíveis pelo olhar veloz, em seus sons inaudíveis pelo compasso automatizado dos gestos e das falas prontas, e em seus intervalos vazios e caóticos que são negados pelas formas totalitárias. (OLIVEIRA; FONSECA, 2007, p. 136). E é em total desassossego que me permito pensar na infância, nos bebês e nessas instituições e em seus tempos-espaços enquanto espaços em constante transformação, em constante conexão com uma dada realidade social, a qual apresenta seus conceitos e discursos, colocando em suspenso as certezas referentes àquilo que pensamos sobre/da infância, convidando-me, cada vez mais, a pensar numa infância nômade, que “[...] remete a um modo de distribuição de terras que não têm nem contorno, recinto, circuito ou cerca” (LINS, 2017, p. 273 ). O encontro com o pensamento nômade vem me proporcionando pensar na infância a partir da não fixação de conceitos; da não fixação de uma dada realidade, na qual se incluem essas instituições e os sujeitos ali inseridos; da forma de controle desses corpos; do encapsulamento do ser bebê, do ser criança e do devir da infância. Devir é um rizoma, não é uma árvore classificatória nem genealógica. Devir não é certamente imitar, nem se identificar; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes, nem produzir, uma filiação por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a “parecer”, nem “ser”, nem “equivaler”, nem “produzir”. (DELEUZE; GUATTARI 1995, p. 15-16). 27 Trata-se de um pensamento que nos convida a olhar a infância com inquietude, aquele que nos desafia, que nos provoca e que nos convida a pensá-la de outros modos. Aquele que estremece o território das certezas, que movimenta nossos corpos adultos, cujos atravessamentos nos causam transformações. De acordo com Leclercq (2002, p. 27), “[...] a pequenez é aquilo que rompe a hierarquia das partes em favor de uma hierarquia das potências”. A partir das leituras das obras de Deleuze, o autor destaca que “[...] a força que o bebê tem não depende de suas dimensões [...]. Ele é nômade, ele é o grande desterritorializado. O bebê é, assim, pura univocidade [...] desenvolve sempre novos graus hierárquicos de potência” (LECLERCQ, 2002, p. 19). Há um desafio posto àqueles que se propõem a realizar pesquisas com e sobre bebês, pois há duas tarefas complexas para serem realizadas nos estudos dos bebês: compreender como os discursos sobre eles se proliferam, se constituem e se diferenciam dos discursos sobre as crianças e, além disso, compreender a maneira pela qual eles se individuam, se subjetivam e se singularizam de maneira “original” e que lhes é própria. (TEBET; ABRAMOWICZ, 2018, p. 926). Conhecer essas instituições, suas rotinas, organizações e planejamentos destinados aos bebês reflete a necessidade de “[...] focalizarmos os bebês […] no sentido de sua potência, diferença e singularidade, e na capacidade do adulto de mobilizar-se para abrir-se aos pontos de vista e forças de desejos das crianças” (DELGADO; NÖRNBERG, 2013, p. 151) e de pensá- los nesses espaços enquanto afetantes e afetados por eles. A fim de “[...] que esse discurso não fique apenas no campo da idealização, é extremamente necessário que sejam realizados mais estudos e pesquisas a respeito desta população e sobre o atendimento a ela oferecido dentro da instituição” (CECATTO, 2008, p. 35), levando em consideração a importância de ambientes, práticas educativas e de cuidados adequados às suas especificidades, pois são eles “[...] inteiramente, singularidade pré- individual, anterior a todas as manifestações do subjetivo” (LECLERCQ, 2002, p. 23). Os bebês estão “[...] imersos em uma condição de metaestabilidade onde tudo escapa. Onde tudo é potência e nada está dado [...] deste modo, constituídos como devires, seres singulares” (ABRAMOWICZ, 2011, p. 18) que se diferenciam da categoria criança. Abordar essa realidade adentrando nesses documentos-afeto torna-se relevante no que tange à possibilidade de localizar e discutir a invisibilidade de bebês, constatada na própria produção científica, que pouco tem discutido e se dedicado à “[...] experiência dos bebês nesses contextos, o que vai ao encontro de uma tradição histórica no Brasil de invisibilidade dos bebês 28 na arena pública, a qual se desdobra na precariedade e desigualdade na prestação de benefícios e em flagrantes violações de seus direitos” (MOURA, 2017, p. 13). Compulsar esses documentos, que em contato com a realidade que acompanhamos,produzimos pistas das singularidades e subjetividades que os constituem exige-nos um olhar para além da escrita dura, enrijecida em suas concretudes, sob uma perspectiva em que se “[...] conjugam o indefinido, o incerto; em que todas as possibilidades – mesmo que não efetuadas – são ao menos realidade virtual, que poderão ser atualizadas por um processo singular de criação e invenção [...] os movimentos, as transformações, as diferenciações” (BARROS; MUNARI; ABRAMOWICZ, 2017, p. 115). Nesse processo, em meio ao constante movimento de um mergulho em afetos, sentidos e pistas, a pesquisadora/cartógrafa vai se produzindo nas “[...] intensidades, seguindo ritmos, acompanhando processos, sem se submeter ao domínio, mas num movimento também de produção, numa composição e decomposição de ritmos, linhas e velocidades” (BERTUSSI., 2016, p. 51). Aponto como característica desse processo o poder de ter acesso e compartilhar informações e pistas importantes, que transitam por dados que revelam, entre outros aspectos, a baixa incidência da produção científica referente a essa temática, configurando a importância deste estudo ao pesquisar os bebês enquanto categoria portadora de especificidades distintas de crianças, adolescentes e adultos, as quais exigem contornos diferentes quando se pensam nas práticas educativas e nos cuidados destinados ao cotidiano e ao atendimento a essa demanda. O bebê indiscutivelmente representa a radicalidade de um novo ser: inédito, criativo, surpreendente e, por que não dizer, incontrolável? Abrir-se para essa alteridade, construir espaços de continência que permitam exploração, estranhamento e busca de representação para cada situação, suportando angústia e dúvida me parece ser o papel essencial dos cuidadores e, portanto, organizador de qualquer projeto educacional para a primeira infância. (MONTAGNA; MARIN, 2011, p. 9). Nessa experimentação, deixo-me levar pelas escritas vivas, pela existência e pelas resistências desses documentos-afeto e de suas formas de se organizarem, na tentativa de produzir atendimentos que busquem práticas favorecedoras do desenvolvimento integral dos sujeitos ali imersos. Intenções essas que, por vezes, são enfraquecidas pelas políticas precárias destinadas ao não reconhecimento desses espaços enquanto promotores de ações destinadas aos cuidados e à educação de bebês, crianças e adolescentes cujos direitos foram violados. No intuito de produzir, na relação com nesses documentos, pistas para a tecitura desta cartografia, estou ciente da não neutralidade que os acompanham. Esses “[...] documentos são efeitos de práticas concretas, ou seja, de fazeres históricos, os quais tiveram tempo e lugar definidos” (LEMOS et al., 2015, p. 41). Ressaltam em suas linhas de vivências, entre o escrito 29 e o não escrito, conceitos, concepções, intenções e desejos que afetam práticas, rotinas, organizações espaciais e as relações estabelecidas nessas instituições. Nesse contato, no constante movimento de desterritorializar e reterritorializar, elenco em cada um desses documentos aquilo que mais me afetou durante o processo de leitura e de proximidade com essa escrita, “[...] desenganando as certezas das verdades tão gastas de nosso tempo, pondo em questão as linearidades sóbrias em que as constâncias do hoje se refazem a cada hora” (ZUCOLOTTO, 2014, p. 14). Assim, as linhas aqui tecidas, em contato com esse terreno, permitiram-me a problematização de práticas que historicamente demarcam a disciplinaridade, a (re)vitimização, a descriminalização, a colonialização e perpetuam atos contínuos de violência, “[...] de maneira a forjar resistências e produzir diferenças de toda ordem” (ABRAMOWICZ; TEBET, 2019, p. 7). Pensar na dinâmica das institucionalizações enquanto campo de organização “[...] por meio das relações de poder que o próprio processo de formação discursiva torna possível” (PECI; VIEIRA; CLEGG, 2006, p. 66) é determinante para que possamos conhecer essas práticas institucionais e as produções de subjetividades ali estabelecidas, possibilitando a experiência do contato com a multiplicidade, com o exercício do pensamento e com a (re)invenção desses conceitos. Enquanto: [...] um dispositivo, uma ferramenta, algo que é inventado, criado, produzido, a partir das condições dadas e que opera no âmbito mesmo destas condições. O conceito é um dispositivo que faz pensar, que permite, de novo pensar. O que quer dizer que o conceito não indica, não aponta uma suposta verdade, o que paralisaria o pensamento; ao contrário, o conceito é justamente aquilo que nos põe a pensar. Se o conceito é produto, ele é também produtor: produtor de novos pensamentos, produtor de novos conceitos; e, sobretudo, produtor de acontecimentos, na medida em que é o conceito que recorta o acontecimento, que o torna possível. (GALLO, 2008, p. 43). Entender que um conceito não está descolado de seu processo histórico nos possibilita compreender que ele não surge do nada. Está sempre atrelado a um conceito anterior, conectado a uma história, ao devir e também às diferenças. “O conceito de devir nada tem a ver com o que virá, e é nesse sentido que ele é aqui advogado como linha de fuga” (TEBET, 2019, p. 143). Destaco aqui a fuga enquanto ato de coragem em assumir fragilidades, desafios, erros e acertos conduzida pelo novo. Não no sentido de fuga de algo tido como desafiador/desestabilizador, e sim no sentido de romper com o que está estabelecido, com o que nos é vendido como certeza, que nos demanda conformidade com rotinas, padrões e modos de pesquisar estabelecidos desde as primeiras palavras digitadas. Pela novidade em realizar pesquisa, pela intensidade de realizar uma cartografia, pela audácia de pesquisar bebês e pela 30 coragem de entrar em instituições de acolhimento e experimentar as “metamorfoses da vida de que a cartografia se faz” (OLIVEIRA; PARAÍSO, 2012, p. 159). A partir da incessante atitude voltada para a criação de estratégias e ações “[...] promotoras de infâncias e de modelos de diferenciação [...] cujas práticas educativas não impeçam o devir, mas o implementem” (BARROS; MUNARI; ABRAMOWICZ, 2017, p. 122); é que busco construir uma cartografia de documentos-afetos sobre bebês em situação de acolhimento “O devir das cartografias é algo que se instala no entre, nas bordas, no entorno, na multiplicidade das possibilidades dadas e recebidas que as cartografias provocam” (PEREIRA, 2014, p. 117). Cumpre lembrar, porém, que a cartografia não se preocupa em apresentar um produto final, “[...] mas propõe acompanhamento de processos, gerando movimentos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, criando desvios, redes, derivas, rizomas” (PEREIRA, 2014, p. 109), os quais produzem, em cada corpo e em cada vivência, um modo único de expressar-se e escrever. São manifestações de afeto ético-estético-poético-dançantes, que vão deixando rastros e pistas, que dizem do que somos, do que pensamos e do encontramos, do que trazemos com a gente durante o caminho e de como somos atravessados pelo ingrediente fundamental de uma pesquisa, qual seja, a vida e sua intensidade, em constante movimento. Eis aqui algumas pistas do que esta escrita se propõe. Há considerar que “tudo o que servir para cunhar matéria de expressão e criar sentido [...] é bem-vindo. Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Por isso o cartógrafo serve-se de fontes não só escritas e nem só teóricas (ROLNIK, 2011, p. 65). Por fim, esta cartografia é composta por coerências, reflexões e vivacidade. Porque o cartógrafo “[...] fica intrigado e quer entender o que provoca sensações tão paradoxais. Respira fundo, toma coragem, apela para seu olho nu e também para a potência vibrátil, não só do olho, mas de todo seu corpo. E começa sua aventura” (ROLNIK, 2016, p. 85). Então, sintam-se à vontade,soltem os cintos e tenhamos, nesta cartografia, uma bela viagem. 31 2 CONEXÕES COM LINHAS DE ESCRITA ACADÊMICA SOBRE BEBÊS “Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é directo, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por dizer; ao passo que o sentido não é capaz de assim permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direcções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições” (José Saramago) O imediato precisa ser olhado, (re)olhado, convidado ao exercício e à sensibilidade para os detalhes. A pesquisa precisa sim causar perturbações, desassossegos, angústias, libertações, afetos e o lançar de diversos olhares, porque cada pesquisador tem algo a acrescentar, traz consigo suas experiências, seus sentidos e significados. Jamais uma pesquisa é igual à outra. Esta cartografia me pertence, porém foi costurada e criada a partir de sentidos, de significados e em contato com tantos outros olhares que a movimentaram. É partindo da potente diferenciação de sentido e significado proposta por José Saramago que pretendo me aproximar dos sentidos enquanto possibilidades de encontro com as produções de teses e dissertações e suas escritas, no traçar de um levantamento bibliográfico como processo de “[...] mapear e de discutir uma certa produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento” (FERREIRA, 2002, p. 257), cujo foco de dedicação também transita na temática que envolve os bebês em situação de acolhimento. Esse movimento de achegamento está ligado a um “[...] intercâmbio entre a produção construída e aquela a construir” (FERREIRA, 2002, p. 261). Visa agregar à essa cartografia o acesso a um conhecimento já produzido coletivamente. Ressalto que, aqui, essas produções também são consideradas documentos-afetos, pois são compostas por escritas vivas, afetantes e afetadas pelo contingente histórico, social e territorial, cada qual com suas marcas e particularidades, que nos que possibilitam “[...] uma visão geral do que vem sendo produzido na área e uma ordenação que permite aos interessados perceberem a evolução das pesquisas Figura 4 – Detalhes que nos escapam 32 [...], bem como suas características e foco, além de identificar as lacunas ainda existentes” (ROMANOWSKI; ENS, 2006, p. 41). A aproximação a essas produções científicas teve seu marco inicial na elaboração do pré-projeto submetido ao processo de seleção do mestrado. Digo isso porque, de imediato, identifiquei uma dada carência de pesquisas destinadas a pensar bebês em instituições de acolhimento, sinalizando a importância desse processo em distintas áreas e campos de estudos. Certamente, tal movimento inicial foi realizado de uma forma mais superficial, pois a escrita e o acesso a algumas informações ainda eram restritas. Consequentemente, já como aluna do mestrado, no mês de agosto de 2018, esse levantamento foi adquirindo contornos diferenciados e fundamentais para esta seleção. Assim como quem inicia uma obra de pintura que vai tomando outros contornos em seu processo de execução, esta seleção de estudos dedicados aos bebês em situação de acolhimento foi se constituindo a cada nova pincelada e a cada novo traço, ao longo dos quais eu também fui me constituindo enquanto cartógrafa “[...] de uma terra que não tem limites fixos, de uma terra que se faz, desfaz e refaz ante nossos olhos, à medida que caminhamos” (MAIA, 2006, p. 50). Parecia-me, a princípio, um movimento tardio, por já ter se passado um ano do mestrado. Porém, ao longo do processo, experimentei rupturas, tensões, deslocamentos, desassossegos e descobertas, proporcionados pela leitura, pela reflexão pela orientação e pela aproximação com o campo e com a cartografia, enquanto “[...] estratégia de produção de conhecimento que permite o acompanhamento dos fios que tecem paisagens identitárias, bem como as quebras e desmanches que os fluxos micropolíticos do desejo nelas operam” (ROSA, 2016, p. 76-77). Com o objetivo inicial de discutir a política de atenção à infância e a situação de vulnerabilidade e risco social que cerca a institucionalização dos bebês, pretendia observar as práticas institucionais e os cuidados destinados a essa demanda e às suas especificidades, juntamente com a análise desses documentos-afeto. Com esse intuito, no mês de março de 2019, iniciei a procura por uma instituição que se dispusesse a aceitar minha proposta de pesquisa e avaliei a possibilidade de que pudesse ser realizada em uma das instituições existentes em Florianópolis. Esse trajeto cartográfico deu-se primeiramente via internet, ou seja, verifiquei as páginas virtuais de cada instituição de acolhimento do município de Florianópolis. De imediato, desconsiderei aquelas que não atendiam bebês. Feito isso, localizei quatro instituições que poderiam acolher este estudo. Assim, elenquei uma ordem de orientação para contato e, em seguida, via telefone, aproximei-me da primeira instituição escolhida. 33 Aqui preciso destacar que essa negociação com a instituição de acolhimento não seguiu a previsão temporal por mim estabelecida; foi algo que necessitou de um tempo maior do que eu cogitara inicialmente. Levei aproximadamente dois meses para negociar, entre telefonemas e o envio do projeto de pesquisa, explicitando qual o objetivo deste estudo. Antes de receber o parecer sobre a aceitação ou não da pesquisa, fui convidada a participar de um curso oferecido por uma das instituições, curso esse que abordava a metodologia de trabalho escolhida por esta instituição para nortear suas práticas cotidianas com bebês. Após, agendei uma conversa com o responsável, para ver da possibilidade de aceitação. Nessa conversa, alguns pontos ficaram acordados, dentre os quais o sigilo das imagens dos bebês, que não poderiam aparecer de forma nítida, ou seja, teriam que ser fotos tratadas e previamente compartilhadas com a equipe da casa, para, após liberação, compor esta pesquisa. Firmamos o compromisso de que minha presença na casa teria o objetivo de somente observar, portanto não me foi possível intervir nas práticas ali estabelecidas cotidianamente. Também me foi oferecida a possibilidade de acesso ao plano individual de acolhimento (PIA)5 dos bebês, mas tal possibilidade estaria atrelada a uma solicitação prévia à juíza da Vara da Infância e da Juventude, já que são documentos sigilosos e de responsabilidade de cada instituição. Além dos acordos previamente estabelecidos, fui convidada, pelo responsável da casa, a conhecer o espaço dessa instituição. Neste primeiro contato, percebi o quão difícil é, para uma instituição que atende até 18 bebês, além de crianças e adolescentes, manter-se com as verbas restritas advindas do Estado, o que faz com que necessite de uma outra organização6 para arrecadar verbas, visando ampliar a qualidade do atendimento oferecido. Existe uma relação de dependência na manutenção dessa instituição, provinda de doações, eventos e formas outras de se autossustentar, o que aponta para uma carência de investimentos por parte das políticas públicas e revela um olhar pouco preocupado com esses espaços. Todo esse processo me fez questionar meu próprio interesse em adentrar nessas instituições para observar os bebês, suas práticas institucionais e de cuidados. “Primeiro, porque um objeto a ser cartografado não é, assim, algo fixo, um objeto de dado empírico, organizado e fechado segundo as exigências da representação” (OLIVEIRA, 2014, p. 286). Assim, pus- 5 Segundo as Orientações Técnicas: Serviços de acolhimento para crianças e adolescentes (2009, p. 27),“O Plano de Atendimento tem como objetivo orientar o trabalho de intervenção durante o período de acolhimento, visando à superação das situações que ensejaram a aplicação da medida. Deve basear-se em um levantamento das particularidades, potencialidades e necessidades específicas de cada caso e delinear estratégias para o seu atendimento”. 6 Muitas dessas instituições acabam por criar dispositivos tais como campanhas para doações dos materiais necessários ao atendimento desses bebês, brechós, organização de eventos e outros. Todos em função da arrecadação de verbas, que são utilizadas de acordo com a necessidades e as prioridades elencadas por cada uma delas. 34 me a refletir sobre as infâncias em contextos não formais e a questionar se minha opção inicial de projeto de pesquisa seria realmente, dentre as diversas formas de pensá-la, a mais propícia para este momento – para mim, para os bebês e para aquele espaço que eu pretendia habitar. Estar diretamente inserida neste movimento da vida e da pesquisa, sendo a todo momento atravessada por experiências diversas, por outras possibilidades e caminhos, levou- me à compreensão de que existem diversas formas de estar com esses bebês nesses contextos que não pela via da observação. E, “[...] nesse sentido, trabalha-se com um modo de fazer pesquisa que se inventa enquanto se pesquisa, de acordo com as necessidades que surgem, de acordo com os movimentos do campo de estudo em questão” (FARINA, 2008, p. 10). Dessa forma, modificam-se olhares, posicionamentos e pensamentos, que me lançam por outros caminhos, distintos dos traçados inicialmente. Percebo o quanto “[...] o plano de uma cartografia é móvel: é o mundo e suas forças” (ROSA, 2017, p. 193). E o quanto o cartógrafo “[...] precisa seguir os fluxos, as sendas e os sulcos dos planos em que se inscreve” (ROSA, 2017, p. 194) uma pesquisa. Pois há múltiplas formas de adentrar e distintas formas de sair desse processo. Contudo o que interessa ao cartógrafo são as produções entre esses meios. Pois “[...] as coisas e os pensamentos crescem ou aumentam pelo meio, é aí onde é preciso instalar- se, é sempre aí que isso se dobra” (PELBART, 2014, p. 260), que isso se expande. Nesse caminho linearmente atuante no campo da minha imaginação, apareceram bifurcações, rupturas e questionamentos que não operavam no mesmo plano da linearidade imaginada. Isso não pôde ser ignorado, já que a neutralidade não é componente do ato de pesquisar. Pois, “[...] na pesquisa cartográfica, o cartógrafo, parte integrante da investigação, não se pretende neutro e com um lugar pré-fixado” (CORRÊA, 2009, p. 36), o que implica a adoção de um papel social e político que demarca o compromisso do pesquisador e da produção do conhecimento. Foi necessária uma pausa, a fim de que eu percebesse que existem demandas, organizações, regras e rotinas que atravessavam a todo momento esta pesquisa, uma vez que “[...] o gesto de pausa indica que a percepção, seja ela visual, auditiva ou outra, realiza uma parada e o campo se fecha, numa espécie de zoom. Um novo território se forma, o campo de observação se reconfigura” (KASTRUP, 2012, p. 43). Seguir os fluxos em que isso tudo se inscreve demonstra que existem desejos e tempos que não operam somente pelos ditames das minhas vontades de pesquisadora. Fazer paradas estratégicas, contemplar de forma calma e atenciosa aquilo que está sendo apresentado exige-nos atenção para com as diferentes linguagens que encontramos no caminho. 35 É preciso que algo nos incomode a ponto de nos sentirmos violentados para podermos pensar e produzir conceitos. Nesse sentido, toda pesquisa é um enfrentamento não pacífico com temáticas, problemas e posicionamentos metodológicos que se mostram adequados para corresponder aos nossos anseios. Tal enfretamento diz respeito não só ao embate com as situações que nos desacomodam e nos colocam a pensar, mas também com a defesa de perspectivas e pontos de vistas que acabam por nos produzir mediante o terreno em que adentramos. Perspectivas e ponto de vista que são revistos constantemente, visto que, se o horizonte está sempre em mudança, nossa chegada é sempre provisória. (OLIVEIRA; MOSSI, 2014, p. 195-196). É preciso observar, contemplar, deixar-se afetar, deixar-se entregar e ver o que essa entrega traz como possibilidades antes não pensadas, em um permitir-se sem culpas, porque o que se escreve é aquilo que está impregnado da intensidade de dado momento. Os tempos de uma pesquisa não são somente os tempos do pesquisador. E isso me fez perceber que toda essa vivência implicou novos acontecimentos. E o acontecimento, aqui, é algo que “[...] fala por si e rompe com todas as certezas e evidências do que nos parece mais sagrado” (MAIRESSE, 2003, p. 261). O que me fez mudar algo que parecia tão consolidado é, por vezes, uma situação difícil de ser descrita. Pois é algo que me toca e me afeta tão intimamente que parece perder esse encanto quando tento descrevê-lo. E a tentativa de descrever esse momento, para mim, é semelhante a observar o mar. Quando o olhamos, de imediato, vemos a imensidão. Quando nos pomos a olhá-lo mais atentamente, podemos ver o quão desafiador, misterioso e convidativo tudo isso pode ser. Aos poucos, aproximamo-nos, arriscamo-nos e molhamos nossos pés. Podemos arriscar mais um passo, e outro, e outro, até que nos permitimos um mergulho. A saída de um corpo depois do primeiro mergulho, a princípio, pode ser naturalizada para aquele que tem contato com o mar cotidianamente, mas parar e pensar nesse processo mostra muito dos desafios superados. “A lógica de um pensamento é como um vento que nos impele, uma série de rajadas e de abalos. Pensava-se estar no porto, e de novo se é lançado ao alto mar” (DELEUZE, 2013, p. 122). Um corpo que se lança aos desafios não é mais o mesmo corpo inicial. Dessa mesma forma, adentro nesse mar das instituições, nessa imensidão de possibilidades e opto por escolher novos caminhos. Percebo, nesta aproximação com as instituições e com as características que as compõem, que será mais prudente aprimorar o meu olhar, já que ele está permeado das minhas fragilidades enquanto pesquisadora, e essa “[...] complexidade é um desafio, que considera o irredutível, o não homogêneo e a imperfeição, conhecendo a realidade através das incertezas, dos problemas e das contradições” (PAULON; ROMAGNOLI, 2010, p. 89). Isso me fez refletir sobre a ética na pesquisa com bebês e pensar sobre a violação de um campo pela mera necessidade de manter-se fiel a objetivos traçados inicialmente, sem se 36 permitir a movência do transitar de uma pesquisa. “Agir eticamente significa se colocar como ponto singular de uma infinidade aberta de relações, sem que sua ação se ampare em normas que funcionam como formas a priori, impostas do exterior à ação” (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2012, p. 106). Fui levada a me questionar acerca de sob qual lente pretendia produzir conhecimento. Era esta a sensação que me invadia no momento: um sentir-me despreparada para adentrar em uma instituição marcada por um processo histórico que fomenta no imaginário popular impressões negativas, que afetam diretamente os bebês ali presentes. Com isso, pensar em uma produção de conhecimento não autoritária, nem imposta de qualquer forma, sob a perspectiva de um determinado resultado, fez com que eu repensasse a intenção inicial e percebesse que “[...] o processo de pesquisa não é imposto, de fora, mas é tecido nas relações” (KRAMER; PENA, 2019, p. 74). Dessa forma, fiquei na porta de entrada e aceitei uma outra forma de adentrar nessas instituições, uma entrada leve, menos invasiva, mas também permeada daquilo que me motivava inicialmente. Assim, a pesquisa tomou um novo rumo e novos contornos foram traçados. Ciente de que a função do cartógrafo é “[...] dar passagem, fazer passagem, ser passagem”(COSTA, 2014, p. 75), penso isso enquanto atitude respeitosa com o compromisso ético, conhecedora que sou de minhas fragilidades em falar daqueles que me convidaram a adentrar em sua casa e dizer dos bebês e de suas rotinas utilizando-me das observações. Evidencio aqui o quão importante é o papel do pesquisador, “[...] uma vez que a produção do conhecimento se dá a partir das percepções, sensações e afetos vividos no encontro com seu campo, seu estudo, que não é neutro, nem isento de interferências e, tampouco, é centrado nos significados atribuídos por ele” (ROMAGNOLI, 2009, p. 170). Sendo assim, tal percepção não poderia ser desconsiderada, pois o intuito deste estudo, desde seus primeiros questionamentos, não era reforçar qualquer tipo de desigualdade, imagem de negatividade ou vitimismo. Aqui quero trazer para discussão como essas instituições vêm se organizando e os possíveis arranjos que fazem para atender a essa demanda de bebês, os quais, mesmo com seus direitos violados, permanecem sendo bebês, com pleno direito de usufruir com dignidade de suas infâncias. Localizadas as fragilidades de ocupar esse campo, optei por fazer com que essa pesquisa cumprisse com seu compromisso, pois a ética “[...] com a vulnerabilidade das pessoas precisa estar fundamentada no reconhecimento do outro e nas suas diferenças, sejam elas de cultura, de etnia, de religião, de gênero, de classe social, de idade, em busca de desvelar e contribuir para a superação das desigualdades” (KRAMER; PENA, 2019, p. 71). 37 Nesse movimento de deslocamentos e abalos, que perpassaram por toda a pesquisa, alteraram-se os objetivos e a metodologia. Tal movimento não está desvinculado da imersão nos terremos movediços que cercam a pesquisa, nem do trânsito por caminhos que não são previamente estipulados, mas que nos convidam a adentrar em lugares, em formas outras de pensar sobre aquilo que nos parecia a princípio tão consolidado. Dessa forma, “[...] estamos sempre passando de um território para outro, abandonando territórios, fundando novos” (HAESBAERT; BRUCE, 2002, p. 13). E sentir isso na própria carne, para mim, é encarado enquanto vivacidade, enquanto apontamento das fragilidades que constituem nosso ser e da forma nada linear que caracteriza a vida e a pesquisa. Tal movimento apresenta-se como um convite a uma dança que a cada momento é tocada de uma forma distinta: mudam-se os ritmos, os ânimos e os sentimentos. Mas a pesquisa segue. E segue no movimento que “[...] permite explorar as singularidades emergente das realidades estudadas” (PAULON; ROMAGNOLI, 2010, p. 85), tornando-se assim única no trilhar desse processo. E sigo acompanhada por esse turbilhão de emoções, que efetivadas em palavras irão tecendo textos, textos esses como lugares também compostos por expressões da vida, por afetos de produções, por múltiplas possibilidades, marcados por um tempo e um espaço próprios, únicos, íntimos, que, de certa forma, assumirão futuramente uma exposição de si e do pensar de quem os constituiu. Assim, “[...] escrever é fazer letra para a música do tempo; e é esta música, sempre singular, que nos indica a direção da letra, que seleciona as palavras que transmitam o mais exatamente possível seus tons, seus timbres, seus ritmos, suas intensidades” (ROLNIK, 1993, p. 9). É a exposição da mais íntima experiência vivenciada na relação da escrita, no exercício do pensar, que “[...] é sempre seguir a linha de fuga do vôo [sic] da bruxa. [...] não pensamos sem nos tornarmos outra coisa” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 58‐59). E eis o encanto de escrever algo enquanto “[...] um caso de devir, sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria visível ou vivida (DELEUZE, 2011, p. 11), a fim de nos proporcionar pensamentos outros e reflexões outras. Quando penso sobre as implicações do dizer, do que vai nas dobras desse dizer encontro-me com uma nova experiência. Agora, em texto, a experiência é a da escrita, de uma narrativa que vai ganhando e perdendo, enchendo-se e esvaziando-se de sentimentos. Dobras, marcas tatuadas na pele, que remetem ao movimento do duplo, daquilo que reúne sentido e significado. Marcas de uma escrita-experiência que remete à intimidade com o traço, com aquilo que se quer dizer, com a palavra que também alteriza-se pelo seu encontro com um ‘possível’ outro. (LIMA, 2011, p. 87). 38 Assim, na condição de cartógrafa aspirante, busquei o exercício e o esforço de ir “[...] na contramão dos clichês e a favor da experiência de si mesmo” (FISCHER, 2005, p. 125), dando passagens às linhas em movimento desses trajetos, na tentativa de romper com a linearidade e a rigidez por vezes solicitadas pela academia, adentrando “[...] não apenas no plano visível, o mais óbvio, mas também no invisível, igualmente real, embora menos óbvio” (ROLNIK, 1993, p. 2), e, dessa forma, deixando impresso aquilo que me foi tocante, aquilo que me afetou e o que os documentos-afetos fizeram-me refletir sobre os bebês acolhidos. Por vezes, vejo-me interrogando se o que estou a ler e entender é realmente aquilo que tal escritor queria que fosse propagado no momento. Dessa forma, penso em quão equivocada posso estar ao dizer do pensamento do outro aquilo que eu mesma quero dizer, aquilo que é interpretado e aquilo que a mim é familiar. “Torna-se mais difícil ainda pensar muito além daquilo que é dado, quando isso é visto como fruto de um desejo compartilhado. [...] por esse motivo, o que é dado acabou por se tornar parte de nós mesmos” (LARA, 2003, p. 11). E, dessa forma, como questionarmos nós mesmos? Pesquisar é algo tão íntimo que duas pessoas podem olhar para um mesmo lápis e dele escrever coisas distintas. São diversos os modos de sermos seres humanos, inexatos, incompletos, com desejos e vontades que são só nossas. O que constitui um pesquisador/cartógrafo/escritor estará impresso e assinado nessas escritas, que serão as “marcas autobiográficas do pesquisador” (FISCHER, 2005. p. 117). Penso ser esta a relevância de pesquisar: poder imprimir a originalidade de sermos, de produzirmos e de compartilharmos possibilidades outras de escrita acadêmica e de produção de conhecimento que não operem e se propagem enquadradas em uma única forma de ser, de escrever e de pensar. E é este o movimento proposto a seguir: manter contato com outras produções científicas, com formas outras de fazê-las, pensá-las, questioná-las, e seguir sabendo que tudo que é produzido, mesmo que em discordância, é uma contribuição para um refletir coletivo. Uma pesquisa é única, mas sua produção e seu alcance são coletivos e significativos, para que novas produções sejam contempladas e sigam seus rumos alicerçadas naquilo já produzido. 2.1 PISTAS CARTOGRÁFICAS: ESTRATÉGIAS PARA A CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTOS SOBRE BEBÊS Aqui, faço o levantamento de dissertações e teses, com o intuito de estreitar o diálogo com essas produções, que emergem de distintas áreas de conhecimento e discorrem sobre a 39 temática dos bebês em situação de acolhimento e sobre outros aspectos que transitam entre os sentidos e significados dados por cada pesquisador. Vejo este movimento enquanto componente fundamental da pesquisa, o poder de bailar pelas diversas frestas e possibilidades do conhecimento já produzido coletivamente, mas, enquanto produção cartográfica, esta pesquisa não vê nessas outras escritas um caminho obrigatório a ser perseguido, e sim possibilidades de encontro com a diversidade de pensamentos e formas de fazer pesquisa. É “[...] preciso irrigar a pesquisa em educação com virtualidades desconhecidas para que o já conhecido não vire uma camisa de força, para se criarem muitos modos de pesquisar em educação, os mais diversos, variados, desconectados e até disparatados” (OLIVEIRA, 2014, p. 281). Opto por seguir um caminho que me é próprio, que conta das minhas afetações,
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