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Burgess nota

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Burgess nota, com a indulgência a que as suas próprias contradições o obrigam, a ironia de um socialista chamar socialismo ao regime mais monstruoso que consegue imaginar; mas não precisa de explicar, e não explica, as razões óbvias desta opção. Nós, habitantes do Século XXI, habituados pela propaganda vigente a equacionar "esquerda" com "estatismo", também podemos ver ironia na escolha deste nome. As razões de Burgess para notar esta ironia são, contudo, um pouco diferentes das nossas. Burgess não era um anti-estatista doutrinário, mas sim um conservador na tradição burkeana, a quem a ideologia anarco-capitalista e revolucionária representada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan repugnaria tanto como a qualquer militante da esquerda dita radical. Não acredita que o Estado seja a emanação do Mal, mas exige dele essa coisa fora de moda que é a responsabilidade moral. No capítulo "Clockwork oranges" de "1985", declara os seus pressupostos ético-políticos:
A chemical substance injected into [Alex's] blood induces nausea while he is watching the films, but the nausea is also associated with the music. It was not the intention of his State manipulators to introduce this bonus or malus: it is purely an accident that, from now on, he will automatically react to Mozart or Beethoven as he will to rape or murder. The State has succedeed in its primary aim: to deny Alex free moral choice, which, to the State, means choice of evil. But it has added an unforeseen punishment: the gates of heaven are closed to the boy, since music is a figure of celestial bliss. The State has commited a double sin: it has destroyed a human being, since humanity is defined by moral choice; it has also destroyed an angel.
O Estado aqui descrito não é imoral, como o de Orwell, por opção metafísica da oligarquia que o dirige: é, mais realisticamente, um Estado amoral. Há, e houve, Estados imorais, mas nunca houve nenhum que se definisse exclusivamente pela imoralidade. Burgess tem razão neste ponto. Monstros desta natureza relevam mais de ficções como Harry Potter ou Lord of the Rings do que da realidade política que vivemos. O Mal absoluto, diz Burgess, é tão desinteressado como o Bem; e todas as tiranias estáveis estão ao serviço de interesses.
Não é que não nos sintamos tentados, por vezes, a elaborar fantasias deliciosamente assustadoras sobre os "Senhores do Mal"; mesmo nós, portugueses, cá no nosso cantinho, detectamos um eco distante destas fantasias quando ouvimos um político, um economista ou um empresário deixar no ar a ideia de que tudo o que é impopular é necessariamente justo e acertado e tudo o que beneficia o cidadão comum é injusto e desastroso. Levada inteiramente a sério, esta ideia implicaria uma negação total e radical da democracia; mas somos, tal como Burgess, demasiado sensatos para levar muito a sério ou muito à letra tudo o que diz o poder, e é por isso que não confundimos José Sócrates ou Maria de Lurdes Rodrigues com Voldemort.
Ao contrário de Thatcher e de Reagan, Burgess não via no Estado a única, nem necessariamente a principal, fonte de opressão. O Estado que Burgess denuncia não é o pesadelo de Orwell, que para Burgess não passa disso mesmo: dum pesadelo. Nem é o Moloch burocrático da lenda negra anti-socialista. É, acima de tudo, o Estado de Ivan Petrovitch Pavlov e de Burrhus Frederic Skinner:
The Soviet State wished to remake man and, if one knows Russians, one can sympathize. Pavlov deplored the wild-eyed, sloppy, romantic, indisciplined, inefficient, anarchic texture of the Russian soul, at the same time admiring the cool reasonableness of Anglo-Saxons. Lenine deplored it, too, but it still exists. Faced with the sloth of the waiters in Soviet restaurants (sometimes three hours between taking the order and fulfilling it), the manic depression of Soviet taxi-drivers, the sobs and howls of Soviet drunks, one can sometimes believe that without communism this people could not have survived. But one baulks, with a shudder, at the Leninist proposal to rebuild, with Pavlov's assistance, the entire Russian character, thus making the works of Chekhov and Dostyevsky unintelligible to readers of the far future.
B. F. Skinner foi um behaviourista radical, bem conhecido pelos professores como teórico da Educação cujas teses ainda hoje têm influência política no nosso País e noutros. Mas tem outras facetas menos conhecidas: como filósofo político, produziu em 1948 Walden Two, uma eutopia - ou distopia, conforme o ponto de vista - em que as técnicas de psicologia do comportamento conduzem a uma harmonia social perfeita; como filósofo moral, produziu em 1971 Beyond Freedom and Dignity, título este que não pode deixar de dar calafrios a Burgess - e, creio bem, a muitos de nós. Burgess denuncia o Estado Soviético não tanto por pretender privar o homem da sua liberdade económica como por pretender privá-lo, na esteira de Pavlov e Skinner, da sua liberdade moral.
Mas se o Estado não é a única nem a principal fonte potencial de opressão, então não basta a Burgess denunciar o Estado, como em A Clockwork Orange; é preciso enumerar e denunciar as outras forças potencialmente hostis à liberdade (leia-se: liberdade moral) do ser humano:
There are, indeed, forces always ready to diminish State power, though oppressive enough in their own ways. Multinational companies that can make and break governments but don't give a damn about matters of responsibility to thought, art, sentiment, health, morality, tradition. The manipulators, the true investigators into the power of propaganda, meaning doublethink, subliminal suggestion, rendering us unfree in the realm of what we consume. Trade unions. Minority groups of all kinds, from the women's liberationists to the gay sodomites. And where we expect the State, that takes our money, to protect us from the more harmful of the anarchic forces of the community, there we find the State peculiarly powerless.
Se Burgess soa aqui como um cruzamento anti-natural entre um manifestante anti-globalização e um moralista reaccionário, reflictamos que o texto foi escrito antes de, quer o neoliberalismo, quer o movimento politicamente correcto terem adquirido o estatuto de verdades dificilmente questionáveis.
Na segunda parte de 1985, Burgess já não toma como alvo o Estado de Pavlov e Skinner, mas sim uma das forças que enumera nos capítulos anteriores. O vilão principal de Burgess é, nesta narrativa, o movimento sindical. Não o movimento sindical tal como existiu nos países democráticos ao longo dos séculos XIX e XX, mas aquilo em que ele parecia estar a tornar-se no Reino Unido em 1978: um sindicalismo totalitário que se substitui ao Estado e regula despoticamente todos os aspectos da vida em sociedade. Este retrato do movimento sindical era em parte, mesmo naquele tempo e lugar, pura e mal intencionada propaganda; mas propaganda em que Burgess acreditou. Tal como Orwell se tinha alegrado, trinta anos antes, com a vitória avassaladora do partido Trabalhista nas primeiras eleições que se seguiram à Guerra, é possível que Burgess se tenha alegrado com o triunfo de Margaret Thatcher, no ano seguinte ao da publicação de 1985, com base num programa explicitamente anti-sindical. Se assim foi, esta alegria deve ter durado pouco.

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