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FUNDAMENTOS DE GEOGRAFIA DO BRASIL PARA CIÊNCIAS SOCIAIS SUMÁRIO 1 Explorando conceitos básicos do espaço no contexto das ciências humanas .......... 4 2 Formação Territorial do Brasil: Aspectos Socioeconômicos e Ambientais .............. 15 3 Interculturalidade na formação da identidade brasileira: povos indígenas, africanos e europeus ................................................................................................................... 25 4 A Evolução da Divisão Regional no Brasil .............................................................. 34 5 O CONCEITO DE REGIÃO NA GEOGRAFIA E A QUESTÃO REGIONAL BRASILEIRA NOS CONTEXTOS POLÍTICO E SOCIOECONÔMICO ..................... 45 6 Desafios e perspectivas do desenvolvimento regional no Brasil: governança e desigualdades ........................................................................................................... 57 7 Dinâmica Demográfica Brasileira: Transições e Desafios PARA O Século XXI ...... 65 8 Desigualdades Regionais e a Evolução Demográfica no Brasil: Uma Análise da Qualidade de Vida ..................................................................................................... 72 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ............................................................................... 81 INTRODUÇÃO Prezado aluno, O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 1 EXPLORANDO CONCEITOS BÁSICOS DO ESPAÇO NO CONTEXTO DAS CIÊNCIAS HUMANAS O espaço geográfico constitui uma delimitação específica na superfície terrestre, destacando-se por sua identificação natural, entretanto, também é suscetível à influência direta da atividade humana. As modificações realizadas pelo homem sobre o ambiente natural refletem suas necessidades e prioridades. Nesse contexto, a geografia, como disciplina de natureza social, se dedica ao exame das relações entre a sociedade e o meio ambiente, centrando-se nas ações humanas que delineiam a configuração terrestre. Para além do conceito primordial de espaço, outras categorias como paisagem, região, lugar e território (CORRÊA, 2003) desempenham papéis cruciais ao desvendar os complexos laços entre as atividades humanas e a estrutura geográfica. A consolidação da geografia enquanto ciência ocorreu no final do século XIX e início do século XX. Inicialmente, uma disciplina emergiu nas universidades europeias, sendo posteriormente solidificada por meio da formação de sociedades geográficas e da colaboração entre exploradores naturalistas e acadêmicos O espaço desempenhou um papel fundamental nas considerações geográficas, embora suas análises nem sempre tenham tido sua totalidade. A dicotomia entre a geografia física e a geografia humana, desde o início do desenvolvimento da ciência, representa um desafio, e a relação entre sociedade e natureza deve ser entendida como uma entidade integrada e não fragmentada. A transformação da geografia em uma disciplina científica ocorreu em um contexto temporal que testemunhou a expansão do conhecimento e a exploração de novas fronteiras geográficas. As universidades europeias foram pioneiras na formalização da disciplina, logo seguidas pela instituição de sociedades geográficas que forneceram um espaço de colaboração entre estudiosos e exploradores. Nesse ambiente, o espaço, como elemento geográfico fundamental, esteve em foco, embora sua abordagem tenha variado em profundidade. A tensão histórica entre a geografia física e humana delineou uma dualidade conceitual que perdurou ao longo do desenvolvimento da disciplina, destacando a complexidade intrínseca da interação entre sociedade e ambiente. A intersecção entre a natureza e a intervenção humana no espaço geográfico delineia uma relação intrínseca. À medida que o homem transforma o ambiente conforme suas necessidades, ele imprime suas marcas distintivas, refletindo o alcance de suas necessidades sobre o ambiente circundante. Esse aspecto é o cerne da geografia como ciência social, que orienta sua investigação para a análise das influências incorporadas pela sociedade na configuração da superfície terrestre. Junto ao conceito central de espaço, outras categorias fundamentais, como paisagem, região, lugar e território (CORRÊA, 2003), emergem como ferramentas analíticas que enriquecem a compreensão das relações intrincadas entre a sociedade e o espaço geográfico. Através do Quadro 1 a seguir, pode-se verificar a distinção entre esses espaços: Quadro 1 – Categorias de análise na ciência geográfica e suas características CATEGORIA DEFINIÇÃO Lugar O lugar se relaciona à vivência e à identidade. É o espaço que pode ser sentido, onde se vivenciam as experiências. Paisagem A paisagem é um instrumento de análise do espaço geográfico e mobiliza as relações humanas. Os sentimentos e as questão subjetivas são expressas diretamente no espaço geográfico, transformando a paisagem. Ela pode ser classificada como natural e humanizada, considerando os aspectos culturais. Território O território tem como características o espaço delimitado por relações de poder. Região A região expressa uma particularidade de determinado espaço ou apresenta características específicas. A região é classificada em região natural e região geográfica. Ela pode ser compreendida como uma porção do espaço que apresenta uma combinação de elementos da natureza. Fonte: Adaptado de Santos (2008) A evolução do pensamento geográfico pode ser categorizada em quatro correntes principais: geografia tradicional, geografia teorético-quantitativa, geografia crítica e geografia humanista/cultural. Cada uma dessas correntes reflete diferentes abordagens e ênfases na compreensão do espaço geográfico. A geografia tradicional, que se estende aproximadamente de 1870 a 1950, precedeu as transformações ocorridas nas décadas de 1950 e 1970. Ela sucedeu à geografia clássica descritiva e, embora não tivesse o conceito de espaço como central, vestígios dessa ideia foram encontrados nas obras de Ratzel, ainda que de maneira implícita. Durante esse período, a atenção da geografia tradicional foi dirigida principalmente para os conceitos de paisagem e região. Além disso, houve debates sobre a definição do objeto de estudo da geografia e sua identidade em relação a outras disciplinas. Dentro dessa vertente geográfica, os conceitos de paisagem, região natural, região-paisagem e paisagem cultural ganharam destaque e foram amplamente discutidos nos estudos da época. Ratzel, por exemplo, compreendeu dois conceitos fundamentais em sua abordagem geográfica: o de espaço vital e o de território. Esses conceitos possuíam raízes profundas na ecologia e ganharam um papel central em seus trabalhos (CORRÊA, 2003). Em resumo, a geografia tradicional foi uma fase precursora que precedeu mudanças significativas no campoda geografia. Ainda que nessa o conceito de espaço não fosse abordagem central, os debates em torno dos conceitos de paisagem, região e busca pela identidade disciplinar foram características marcantes desse período, com figuras como Ratzel aceitar com ideias fundamentais, como os conceitos de espaço vital e território, que possuíam ligações sólidas com a ecologia (CORRÊA, 2003). A proteção da população e dos recursos naturais em um território específico é incontestável. Como afirmado por Corrêa (2003, p. 18), “o espaço, por meio de intervenções políticas, assume a forma de território, tornando-se um conceito central na geografia.” Isso destaca a importância da dimensão política na transformação do espaço em território, um conceito fundamental na disciplina geográfica. A corrente teórico-quantitativa, surgida no cenário geográfico por volta de meados de 1950, baseia-se no positivismo lógico e provocou profundas mudanças na abordagem geográfica. Através do método de pensamento hipotético-dedutivo, essa perspectiva adotou uma visão científica que se assemelhava à abordagem das ciências naturais. Consequentemente, o espaço, pela primeira vez na história do pensamento geográfico, emergiu como o conceito central da disciplina, enquanto os conceitos de lugar e território não possuíam a mesma fala na geografia teorético- quantitativa (CORRÊA, 2003). Nessa abordagem geográfica, o espaço é considerado sob duas perspectivas não mutuamente exclusivas: a das planícies isotrópicas e das representações matriciais. O plano isotrópico é derivado de um paradigma racionalista e hipotético- dedutivo, empregando modelos matemáticos para analisar dados quantitativos, como densidade demográfica, renda e padrão cultural. O objetivo é aplicar uma lógica econômica baseada na minimização de custos e maximização de lucros ou satisfação. Por outro lado, as representações matriciais referem-se aos métodos operacionais que permitem extrair conhecimento sobre localizações, fluxos, competências e especializações funcionais, entre outros aspectos relevantes (CORRÊA, 2003). A crítica geográfica corrente surge em 1970, sendo fundamentada no materialismo histórico e na dialética. Ela busca, desde o início, romper com as abordagens da geografia tradicional e teorético-quantitativa. Nessa perspectiva, o espaço é destacado como conceito-chave na compreensão geográfica. A teoria marxista é mantida e aplicada para analisar as contradições entre países centrais e periféricos, assim como as disparidades entre esses grupos de nações. O foco dessa abordagem recai sobre a análise do sistema capitalista. Por outro lado, a corrente da geografia humanista/cultural emerge por volta de meados da década de 1970. Essa perspectiva redireciona a atenção para os aspectos culturais e históricos. Semelhante à abordagem crítica, essa corrente também se fundamenta em bases filosóficas, especialmente a fenomenologia e o existencialismo (CORRÊA, 2003). Operando em um sistema classificatório bastante diferente do nosso, estudos antropológicos sobre as cosmologias ameríndias demonstraram que essas culturas não estabelecem uma separação entre a vida humana e as formas de vida do mundo animal e natural. Em vez disso, compreendem as relações entre esses outros seres e os seres humanos como parte constituinte de sua humanidade (TORNQUIST; LISBOA; MONTYSUMA, 2010). É relevante destacar o trabalho significativo realizado por Eduardo Viveiros de Castro (2011) em relação às sociedades indígenas dos territórios latino-americanos. Eduardo Viveiros de Castro modificou o conceito de "perspectivismo ameríndio" para caracterizar o pensamento das sociedades ameríndias, que desempenha um papel importante na virada ontológica. Esse termo descreve a percepção de que o mundo é composto por uma multiplicidade de pontos de vista, uma vez que todos os seres, humanos e não humanos, têm o potencial de serem ativos (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, citado em ARMANI, 2020). O perspectivismo implica que o universo é habitado por diferentes tipos de seres com capacidade de ação, tanto humanas quanto não humanas. Todos esses agentes percebem os demais existentes de acordo com perspectivas diversas. No contexto desse modelo de pensamento, o que é comum entre humanos e animais não é a animalidade, mas a capacidade ou habilidade de agir, tomar decisões e influenciar eventos no mundo. A virada ontológica também possui implicações políticas, pois busca consideração não apenas nas ações de não humanos (objetos, animais e outros seres), mas também de seres humanos que historicamente foram marginalizados, ou seja, colocados à margem da sociedade. O filósofo e antropólogo Philippe Descola (2012 apud ARMANI, 2020), lança uma crítica contundente à conduta intelectual que, frequentemente, age como se os não humanos não estivessem presentes em todos os lugares da vida social. Ele salienta a importância de reconhecer a presença e influência desses não humanos em todas as esferas da existência humana, lembrando-nos que as interações que moldam nosso mundo não se limitam apenas às instituições que guiam a vida dos seres humanos. Essa perspectiva desafia a visão convencional e impulsiona uma compreensão mais profunda das complexas redes de relações que conectam seres humanos e não humanos. Esses questionamentos têm impulsionado a chamada virada ontológica, cujos principais autores incluem o próprio Descola, Eduardo Viveiros de Castro, Bruno Latour, Manuela Carneiro da Cunha, Dawi Kopenava, Ailton Krenak, entre outros (ARMANI, 2020). Em linhas gerais, esse movimento questiona as posições de sujeito e objeto, abraçando a instabilidade dessas categorias e, mais ainda, desestabilizando as posições de pesquisador/antropólogo e objeto de estudo (encapsulado na figura do “nativo”). Essa virada tem possibilitado que grupos tradicionalmente assinalados como nativos (caso das populações indígenas) possam desenvolver teorias acerca das suas próprias sociedades (assim como de seus visitantes) (SÁ JÚNIOR, 2014). Essa abordagem — à qual é também dado o nome de antropologia simétrica — tem permitido o reconhecimento da multiplicidade conceitual da noção de natureza. humanidade. Os seres humanos têm o hábito de criar sistemas classificatórios para organizar o mundo ao seu redor e suas experiências cotidianas. Isso envolve categorizar pessoas, seres e objetos em grupos como masculino ou feminino, estabelecer relações de parentesco, e até mesmo classificar aspectos do cosmos e entidades com base em sistemas religiosos e cosmologias. Nos sistemas classificatórios ocidentais, a dicotomia entre natureza e cultura desempenha um papel significativo. Frequentemente, usamos a palavra “natural” para denotar uma suposta verdade ou essência humana imutável e universal. Por exemplo, podemos ouvir frases como "É natural que os homens sejam os provedores da família" ou "Os seres humanos ocupam naturalmente o topo da cadeia alimentar". Nesses casos, "natureza" é usada para implicar uma verdade intrínseca e inquestionável. Por outro lado, também é comum ouvirmos expressões como "A revolta da natureza" ou "A vingança dos tubarões", nas quais "natureza" é usada para representar forças ou eventos além do controle humano, muitas vezes associadas a princípios imutáveis e lógicas próprias. A sociologia contribui ao destacar que a distinção entre natureza e cultura não é algo transcendental, mas sim uma construção histórica e cultural moldada pelas ações humanas. Isso implica que o significado de "natureza" e "cultura" está intrinsecamente ligado a um outro. Em diferentes sociedades e culturas ao longo do tempo e do espaço, a maneira como essas categorias são articuladas podem variar. Como já foi dito, algumas sociedades, como as cosmologias ameríndias desenvolvidas pela antropologia, não separam a vida humana das formasde vida animal e natural. Nessas culturas, as relações entre seres humanos e outros seres são vistas como parte constitutiva da humanidade. Em resumo, o conceito de "natureza" é uma construção cultural e histórica que reflete os valores e representações de uma sociedade. Isso permite que as ciências sociais explorem temas que antes eram considerados exclusivos das ciências naturais, como corpo, emoção, sexualidade e relações interespécies. Essa abordagem relacional entre natureza e cultura nos ajuda a compreender como diferentes sociedades concebem e interagem com o mundo ao seu redor. Nas sociedades capitalistas modernas, a natureza frequentemente é percebida como uma entidade separada da cultura, um campo ontológico externo que existe para ser explorado, civilizado e dominado em benefício pleno da humanidade. Essa visão tem suas raízes nas mudanças significativas que ocorreram na Europa a partir do século XVI, quando o humanismo surgiu em meio a profundas transformações sociais, econômicas e políticas que moldaram a forma como a sociedade interage com o ambiente natural. Essa perspectiva dualista entre natureza e cultura tem influenciado não apenas a exploração dos recursos naturais, mas também as atitudes em relação à conservação ambiental e ao equilíbrio entre desenvolvimento econômico e preservação do meio ambiente. Durante os séculos XVI e XVII, a Europa testemunhou a Revolução Científica, um período caracterizado por uma ruptura significativa com os dogmas religiosos que dominaram a Idade Média. Essa revolução não apenas redefiniu a compreensão da natureza de forma mais racional, mas também estabeleceu uma nova visão de mundo, frequentemente chamada de humanismo, que colocou o "homem" no epicentro do conhecimento. Esse período de transformação não se limitou apenas ao domínio científico, mas também se estendeu à produção artística, onde a obra "O Homem Vitruviano" de Leonardo da Vinci se destaca como um exemplo notável. Essa representação icônica ilustra o homem como o ideal de perfeição, proporção e harmonia, simbolizando a transição da concepção medieval para uma abordagem mais centrada no ser humano em uma época que redefiniu os paradigmas da ciência e da cultura. Figura – O homem Vitruviano de Leonardo da Vinci, é um símbolo do antropocentrismo moderno Fonte: O homem... (2019, documento on-line). O filósofo, físico e matemático René Descartes (1596–1650) desempenhou um papel importante nesse contexto. Em sua perspectiva, a natureza era vista como uma máquina que poderia ser comprovada em termos de números e detalhes. Isso fez com que a natureza deixasse de ser vista como uma criação divina (obra de Deus) e passasse a ser considerada sujeita às leis de funcionamento. Isso implicava que os seres humanos passaram a assumir uma posição externa à natureza, transformando- a em objeto de estudo científico e de dominação. Essa abordagem cartesiana da natureza como máquina fundamentou a cultura ocidental moderna. Assim, nas sociedades ocidentais modernas, a relação entre natureza e cultura é frequentemente hierárquica, com uma clara separação entre os dois. Isso contrasta com outras culturas em que as fronteiras entre natureza e cultura são mais fluidas e permeáveis, como é o caso das cosmologias indígenas mencionadas acima. Já a geografia utiliza o conceito de trabalho e cultura para refletir sobre como os espaços naturais sofrem a intervenção humana e se transformam em espaços geográficos. O espaço natural, conforme definido pelo geógrafo Milton Santos, é a "primeira natureza" ou o espaço intocado pelo ser humano e que não ocorreu transformações (SANTOS, 2008). Neste contexto, observamos todos os elementos naturais, como clima, relevo, hidrografia, etc. No entanto, na atualidade, é cada vez mais difícil encontrar um espaço verdadeiramente natural, uma vez que o homem realiza mudanças constantes no ambiente. Exemplos remanescentes de espaços naturais incluem geleiras e algumas matas ou florestas intocadas, como alguns trechos da Floresta Amazônica. O espaço geográfico é considerado o principal objeto de estudo da geografia. De acordo com Santos (2008), é entendido como uma "segunda natureza" e é definido como o espaço que foi alterado pelo homem ao longo da história, à medida que este se apropria da natureza por meio do trabalho, das técnicas e da cultura, que engloba valores e implicações. O espaço geográfico é formado pela combinação dos elementos naturais com os elementos sociais. Elementos como cidades, prédios, estradas asfaltadas e parques são considerados espaços geográficos. Por exemplo, a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, é um espaço geográfico, pois as atividades comerciais e esportivas, são intervenções humanas que moldam o uso desse espaço como visto na Figura 2. Figura 2 – Praia de Copacabana invadida pela intervenção humana Fonte: adaptado de https://shre.ink/2a3O Essas definições são fundamentais para compreender a geografia e sua importância na análise das transformações do ambiente em decorrência da ação humana, bem como na compreensão das relações entre sociedade e natureza. Portanto, o espaço geográfico representa o resultado das interações entre seres humanos e o ambiente natural ao longo do tempo. Todo espaço, seja ele natural ou não, pode ser observado, descrito e analisado, surgindo assim um novo conceito, o de paisagem. Ela, além de ser um instrumento visual para analisar o espaço geográfico, influencia profundamente os humanos. Ela reflete sentimentos e questões subjetivas, moldando o ambiente. Classificado em natural e humanizada, incorpora aspectos culturais. (SANTOS, M. 2008). A definição de paisagem é essencial, pois desenvolve a habilidade e observação, descrição e análise, além de promover a compreensão e o entendimento das razões por trás da paisagem que se observa. Isso possibilita que a reflexão sobre questões como onde, como, por quê, por quem e para quem determinada paisagem existe. Segundo Santos (2008, p. 40), a paisagem abrange tudo o que podemos ver, tudo o que a nossa visão alcança. Ela engloba não apenas volumes, mas também núcleos, movimentos, odores, sons e muito mais. A paisagem é um conjunto de elementos diversos, de diferentes épocas e pedaços de tempos históricos que representam várias maneiras de produzir e construir o espaço. No cotidiano, vivenciamos diversas paisagens, como a rua em que moramos, o caminho para a escola ou o parque onde brincamos. A paisagem é dinâmica e se transforma ao longo do tempo. Se pensarmos no bairro em que vivemos nos últimos 20 anos, podemos notar mudanças significativas, como a substituição de casas por prédios, o surgimento de novos estabelecimentos comerciais e melhorias na infraestrutura. As paisagens podem ser convencionais em dois tipos principais: • Paisagens naturais: são compostas basicamente por elementos da natureza que sofreram pouca ou nenhuma intervenção humana, como uma floresta intocada ou uma geleira. • Paisagens culturais: são aquelas formadas por elementos construídos pelo ser humano ou que passaram por transformações devido ao trabalho humano. Exemplos incluem cidades, parques e áreas de cultivo. As paisagens culturais podem apresentar predomínio de elementos culturais ou naturais. Por exemplo, um bairro é uma paisagem cultural com predominância de elementos construídos pelo homem, enquanto um parque ambiental representa uma paisagem cultural com elementos naturais modificados pelo ser humano, como caminhos e áreas de lazer. O estudo da paisagem assume um papel de importância fundamental na compreensão do mundo circundante, suas mudanças ao longo do tempo e a relação entre elementos naturais e culturais que se encontram presentes nas paisagens observadas diariamente. Nessa perspectiva, a pesquisa sobre paisagens possibilita uma apreciaçãomais profunda das complexidades e interações que definem a relação humana com o ambiente natural e construído. A interseção entre a ciência, a filosofia e as ciências sociais contemporâneas têm gerado um terreno fértil para a revisão e reconstrução de conceitos arraigados, especialmente aqueles relacionados à nossa percepção da natureza e da cultura. Nesse contexto, as reflexões de Bruno Latour, destacado pensador contemporâneo, sobre o conceito de "Gaia" emergem como uma abordagem inovadora que desafia as fronteiras tradicionais e nossa compreensão do mundo que nos cerca. Nas obras e palestras mais recentes de Bruno Latour, a figura de “Gaia” é usada para avançar sua crítica à cosmopolítica ocidental e para problematizar a noção de natureza como um bloco homogêneo (CASTRO; OLIVEIRA, 2018). Gaia é evocada como uma metáfora para os processos de uma Terra que está viva, reabrindo a noção de Natureza e redistribuindo o que havia sido embalado dentro desse conceito (CASTRO; OLIVEIRA, 2018, p. 354). Em contraposição à noção de que a Terra seria um espaço inerte, Gaia representa um mundo animado composto por múltiplas entidades que reagem às nossas ações de maneira não necessariamente previsível (CASTRO; OLIVEIRA, 2018). Gaia compreende ondas de ação que não regulam fronteiras entre humanos e natureza, sociedade e indivíduo. Nessa perspectiva, os agentes são como vizinhos que interagem ativamente entre si (CASTRO; OLIVEIRA, 2018, p. 356). Um exemplo dado pelos autores é a poluição dos oceanos por plástico, em que o descarte de plásticos nos oceanos resulta em uma complexa rede de interações entre organismos vivos e elementos inorgânicos. Essas interações incluem a manipulação lenta desses materiais no oceano, os peixes que ingerem com esses resíduos e, eventualmente, se tornam parte da cadeia alimentar humana, carregando consigo componentes químicos tóxicos (CASTRO; OLIVEIRA, 2018). Esse exemplo ilustra a complexa teia de interações e constituições mútuas entre seres vivos e elementos inorgânicos. Sob a perspectiva de Gaia, não há uma distinção clara entre um ser e seu ambiente, dissolvendo a ideia de dentro e fora (CASTRO; OLIVEIRA, 2018). Por fim, é enfatizado que a atual crise ecológica é resultado da perspectiva moderna que separa natureza e cultura. Portanto, é urgente buscar uma nova sensibilidade capaz de reconectar agentes e o coletivo (CASTRO; OLIVEIRA, 2018). Com o avanço das ciências sociais contemporâneas, emergiram uma série de terminologias, conceitos e modelos analíticos destinados a aprofundar nossa compreensão da intrincada rede de interações que abarca tanto os agentes humanos quanto os não humanos. Isso engloba uma variedade de elementos, como populações, ecossistemas, modos de produção, comunidades e uma ampla gama de formas de vida que coexistem na Terra. Esses desenvolvimentos representam um esforço contínuo para desvendar as complexidades subjacentes às relações que moldam nosso mundo. Em conclusão, torna-se incontestável que a separação artificial entre natureza e cultura representa uma construção fabricada pela modernidade ocidental, cujo surgimento ocorreu em um contexto histórico bem definido nos séculos XVI e XVII, e que atualmente está sendo objeto de questionamento e revisão. Esta reflexão lança luz sobre o fato de que a atual crise ambiental transcende sua dimensão puramente ecológica, pois afeta profundamente diversas populações vulneráveis em todo o mundo, destacando a interdependência indissolúvel entre os desafios ambientais e sociais que enfrentamos no século XXI. 2 FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL: ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS E AMBIENTAIS Quando os portugueses chegaram ao Brasil em 1500, resgataram um território já habitado por diversos grupos étnicos indígenas, que há séculos ocupavam essa região. A presença dos colonizadores portugueses marcou uma mudança significativa na forma de uso e ocupação do território brasileiro. A coroa portuguesa e os colonos enviados para o Brasil adotaram um modelo de colonização baseado na exploração de recursos naturais, terras e mão de obra disponível na colônia, visando direcionar os produtos extraídos para uma metrópole. Esse processo de colonização teve um impacto profundo na vida dos indígenas, que já habitavam o território brasileiro. Como observado por Moreira (2011, p. 11), os colonos portugueses encontraram um território povoado por uma diversidade de tribos indígenas cujo soma chega a uma população de mais de cinco milhões de habitantes. Espaço e força de trabalho aí estão reunidos. Durante cerca de três séculos, os portugueses, juntamente com os bandeirantes, que eram exploradores que adentravam o interior das terras brasileiras, e os religiosos jesuítas, desempenharam papéis fundamentais na alteração das formas de uso e ocupação do território brasileiro. Essas intervenções tiveram consequências significativas tanto para a paisagem geográfica quanto para a vida dos povos indígenas que já habitavam o território. Portanto, a chegada dos portugueses ao Brasil e a subsequente colonização representaram um ponto de virada na história do uso e ocupação do território brasileiro, tendo impactos na cultura e na sociedade indígena, bem como na exploração dos recursos naturais e na configuração geopolítica da região. Os três primeiros séculos serão dedicados a essa tarefa de disponibilização, realizada por intermédio de uma ação simultânea de expropriação e realocação territorial das tribos indígenas. A expropriação será a tarefa dos bandeirantes. A realocação, dos jesuítas. Disponibilizado, o espaço pode agora ser ocupado pelo colono. E a população indígena dele despojada, usada como força de trabalho (MOREIRA, 2011, p. 11–12) Durante esse período, a disponibilização do espaço envolveu ações simultâneas de expropriação e realocação das tribos indígenas. Os bandeirantes desempenharam o papel de expropriadores, explorando e expandindo as fronteiras territoriais, enquanto os jesuítas desempenharam um papel na realocação das tribos. Esse processo permitiu a ocupação efetiva do espaço pelos colonos, muitas vezes à custa da população indígena, que foi despojada e usada como força de trabalho. Essa dinâmica complexa ilustra os desafios e as consequências sociais da colonização inicial do Brasil. A organização inicial do território brasileiro ocorreu por meio das capitanias hereditárias, que representavam uma estratégia de distribuição de terras implementada pelos colonizadores, dando continuidade às práticas estabelecidas. As capitanias hereditárias eram áreas de terra designadas aos donatários e transmitidas por hereditariedade, passando de pais para filhos. Cada donatário tinha a responsabilidade de administrar e proteger as terras que lhe fossem concedidas, além de cumprir as obrigações estipuladas pelo rei de Portugal. Essa estrutura de capitanias hereditárias desempenhou um papel fundamental na colonização do Brasil, estabelecendo um sistema de governança descentralizada em que os donatários detinham autoridade sobre suas respectivas áreas. Isso influenciou profundamente como o território foi explorado e ocupado durante os primeiros anos da colonização. Essa divisão territorial representou uma tentativa de organização do vasto território recém-descoberto, atribuindo diferentes áreas a donatários encarregados de sua administração. A criação das capitanias hereditárias foi uma iniciativa do rei D. João III e marcou o início da presença colonial portuguesa no Brasil. Embora as capitanias tenham desempenhado um papel significativo na colonização, a subsequente adoção da administração centralizada a partir de 1548, com a criação do Governo-Geral, desempenhou um papel crucial no estabelecimento de uma estrutura mais eficaz de controle sobre a colônia. Esse período inicial da colonização deixou um legado significativona história do Brasil. As capitanias hereditárias foram a primeira medida real de colonização tomada pelos portugueses em relação ao Brasil. Com as capitanias, foi implantado um sistema de divisão administrativa por ordem do rei português D. João III, em 1534. A América Portuguesa foi dividida em 15 faixas de terra, e a administração dessas terras foi entregue aos donatários. As capitanias existiram no Brasil durante séculos, mas, a partir de 1548, uma nova forma de administrar o Brasil foi criada (SILVA, 2020, documento on-line). Na Figura 1 abaixo, é possível observar as capitanias hereditárias e os europeus designados como donatários, ou seja, aqueles que receberam parcelas de terra para administrar. Essa representação cartográfica ilustra a distribuição das capitanias e os respectivos donatários, destacando a divisão territorial realizada durante o período colonial no Brasil. Figura 1 – Capitanias hereditárias do Brasil Colônia. Fonte: https://shre.ink/2wrU Outra maneira de organizar o espaço geográfico do Brasil, especificamente no que diz respeito à distribuição de terras, foram as sesmarias. As sesmarias foram instituídas com o propósito de introduzir práticas agrícolas e promover o povoamento das novas terras pertencentes à coroa portuguesa. A Sesmaria era um lote de terras distribuídas em nome do rei de Portugal para o cultivo de terras virgens, sendo amplamente utilizada no período colonial brasileiro. Originada nos últimos estágios da Idade Média em Portugal, começou com as capitanias hereditárias em 1534 e foi abolida durante a independência do Brasil em 1822, tendo sua origem nas terras comunais de Portugal e sua distribuição entre os habitantes rurais. (PINTO, 2020). Conforme Théry e Mello-Théry (2005), os ciclos econômicos desempenharam um papel fundamental no processo de povoamento do território brasileiro. Segundo esses autores, a interiorização do país, que durante muito tempo esteve concentrada nas faixas litorâneas, ocorreu por meio dos diversos ciclos econômicos. Estes ciclos, de acordo com a mesma fonte, foram responsáveis por contribuições à exploração de regiões até então desocupadas. Iniciava-se, assim, a formação de um “arquipélago” brasileiro, com uma espécie de mosaico de regiões autônomas. Formava-se um país de diferenças regionais, com uma série de ciclos econômicos em regiões distintas. Cada tipo de produção afetou uma região diferente do país, permitindo novos povoamentos (chamados de “interiorização”) (Théry; Mello-Théry, 2005). Até o século XVII, predominava o ciclo econômico do açúcar, restrito às áreas territoriais do litoral onde se cultivava cana-de-açúcar e se produzia açúcar em engenhos. Depois, iniciou-se um processo de interiorização, povoamento e expansão para Minas Gerais, com a descoberta de ouro. O ciclo econômico do ouro começou no final do século XVII (Théry; Mello-Théry, 2005). A mineração em Minas Gerais impulsionou a mudança da capital do Brasil Colônia. A capital, que antes era Salvador, passou a ser o Rio de Janeiro. Com essa mudança, o centro econômico, que era restrito ao litoral nordestino, deslocou-se para o centro-sul brasileiro. Isso intensificou o processo de interiorização do Brasil; formaram-se vilas e, consequentemente, polos de mineração. Em seguida, iniciou o ciclo econômico do café, nos séculos XIX e XX. Nesse ciclo, São Paulo ganha destaque. No estado, o café desenvolveu-se magnificamente, sobretudo no Vale do Paraíba Paulista, adaptando-se bem à terra roxa. Nesse período, o cultivo do café utilizou mão de obra assalariada (não mais servil e pouco comprometido), apresentado no início principalmente de imigrantes custeados pelos fazendeiros paulistas (Théry; Mello-Théry, 2005). Outro ciclo econômico e produtivo que contribuiu para modelar o território brasileiro foi o da borracha, no início do século XX, na região da Amazônia. Além disso, destaca-se a pecuária, que contribuiu mais do que o ouro para dilatar o espaço brasileiro. A produção pecuária se estendeu até depois do período do ouro, criando estradas e pontos de apoio resultados. Destaca-se ainda a atuação dos bandeirantes (bandeirantismo) e das missões jesuítas (aldeamentos) e a expansão da agropecuária no processo de interiorização do País. No entanto, esses processos implicaram impactos sociais e ameaças aos povos originários indígenas, bem como aos povos e comunidades afrodescendentes. Devido aos modelos econômicos e de trabalho vigentes, esses povos foram capturados, escravizados e, em alguns casos, mortos e extintos. Portanto, a distribuição de terras por capitanias hereditárias e sesmarias, bem como os ciclos econômicos, teve um impacto profundo na formação territorial do país. Entre as consequências desses processos, destacam-se a economia e a política latifundiária (em que prevalecem as grandes propriedades rurais), a concentração fundiária e a desigualdade social rural (Théry; Mello-Théry, 2005). Nos períodos colonial e monárquico, a organização do território brasileiro foi predominantemente influenciada pela exploração dos recursos naturais. De acordo com Moreira (2011), inicialmente, os colonos portugueses organizaram o território com base em características socionaturais conhecidas como 'faixas geobotânicas'. As faixas eram delimitações territoriais que refletiam a diversidade ambiental do Brasil e influenciavam diretamente as atividades econômicas da época. Cada faixa apresentava particularidades em termos de vegetação, solo e clima, determinando os tipos de cultivos e como a terra seria utilizada para atender às demandas da colônia. De acordo com Moreira (2011), inicialmente, os colonos portugueses organizaram o território com base em características socionaturais conhecidas como “faixas geobotânicas”. A seguir, descrevemos essas faixas: • Faixa Costeira (litoral): Esta região era caracterizada por uma vegetação de mata tropical. • Faixa Interiorana: Nessa área, uma vegetação predominante era uma mata campestre. • Faixa Setentrional (Região Norte): Na Região Norte do Brasil, localizada em vegetação de mata equatorial. Na Figura 2 abaixo, é possível visualizar os domínios geobotânicos brasileiros e sua representação cartográfica. Figura 2 – Domínios geobotânicos do Brasil. Fonte: Adaptado de Becker e Egler (2006 apud MOREIRA, 2011, p. 9). Nos domínios geobotânicos, foram condicionantes as formas de produção relacionadas ao setor primário da economia, incluindo agricultura, pecuária e extrativismo. Os colonizadores portugueses tinham como objetivo implementar a práticas de agricultura do tipo monocultura baseada no sistema de plantation, com o propósito de comercializar essa produção agrícola e direcioná-la para a metrópole portuguesa, mantendo assim a relação de colônia-metrópole. A cultura agrícola predominou em áreas de mata tropical litorânea, enquanto a pecuária foi desenvolvida em regiões de mata campestre no interior. O extrativismo, por sua vez, desenvolveu- se principalmente nas áreas da mata equatorial ao norte do país (Moreira, 2011). A chegada dos colonos portugueses ao Brasil com seu estilo de vida voltado para a monocultura e a exportação de produtos agrícolas aconteceu através das três faixas geobotânicas. Essa abordagem, embora em grande parte semelhante à ocupação indígena anterior, resultou em uma nova forma de relação com o ambiente, influenciando a integração da natureza e introduzindo diferentes arranjos socioambientais (MOREIRA, 2011). Veja abaixo uma descrição das principais características físicas e naturais das três faixas geobotânicas, conforme apresentado no Quadro 1. Essas características desempenharam um papel fundamental na definição das atividades econômicas predominantes em cada região do Brasil colonial, influenciando assim como o território foi inicialmente ocupado e utilizado peloscolonos. Quadro 1 – Principais características físicas e naturais das faixas geobotânicas Fonte: Adaptado de Moreira (2011). Segundo Gomes (1988), o arranjo e organização espacial foram moldados pela interação entre o modo de vida e a pertença étnica de grupos indígenas, como os tupis (que se dedicavam à agricultura e à lavoura de mandioca), os gês (que se envolviam na coleta e caça), além dos caribes e aruaques. Nas áreas da mata atlântica, eram habitadas pelas tribos tupis, enquanto as regiões de vegetação campestre abrigavam as tribos gês. Por outro lado, nas zonas de mata equatorial, encontravam-se as demais tribos indígenas, como caribes e aruaques. Posteriormente, uma nova abordagem na organização do território emergiu, considerando não apenas a distribuição espacial das tribos indígenas e as faixas geobotânicas, mas também aspectos climáticos, como tipos de clima, massas de ar, temperatura e regime de chuvas, bem como o relevo e as bacias hidrográficas. Os novos ocupantes passaram a considerar esses elementos (GOMES, 1988). Para definir os domínios morfoclimáticos do Brasil, Ab'Sáber (2003) desenvolveu uma abordagem holística, considerando cuidadosamente os elementos naturais fundamentais, como relevo, clima, vegetação e hidrografia. Além disso, ele se dedicou a compreender as complexas interações e relações entre esses componentes nas paisagens, fornecidas assim uma visão abrangente e integrada das características geográficas do país. O "domínio morfoclimático e fitogeográfico" representa uma extensa área territorial, abrangendo centenas de milhares de quilômetros quadrados, onde se observa um padrão consistente de características de relevo, tipos de solos, padrões de vegetação e condições climáticas e hidrológicas. Esses domínios territoriais apresentam características paisagísticas consistentes em termos de dimensão e distribuição, resultando na formação de um complexo relativamente uniforme e abrangente em relação às condições fisiográficas e biogeográficas (AB'SÁBER, 2003, p. 11–12). Na Figura 3, é possível observar os domínios morfoclimáticos do Brasil, conforme definidos por Ab'Sáber (2003). Esses domínios incluem o amazônico, cerrado, mares de morros, caatinga, araucária e pradarias. Além disso, na figura, são identificadas faixas de transição que não apresentam diferenciações distintas em suas características. Figura 3 – Domínios morfoclimáticos do Brasil. Fonte: Ab’Sáber (2003 apud RICO, 2017, documento on-line). Moreira (2011) observa que a organização espacial tanto dos indígenas quanto dos colonos no território brasileiro mantém uma correspondência significativa com os domínios morfoclimáticos. O autor destaca que a faixa de mata atlântica, habitada pelos tupis e utilizada para a prática da lavoura agrícola durante o período colonial no Brasil, corresponde ao domínio de mares de morros. Por outro lado, a faixa de mata campestre, ocupada pelos povos tapuias e utilizada para a prática pastoril, se alinha com os domínios da caatinga, cerrado, araucárias e pradarias. Por fim, a mata equatorial, que abrigava várias tribos indígenas e era caracterizada pela atividade extrativista, corresponde ao domínio amazônico (Moreira, 2011). A formação territorial do Brasil resultou da interação entre características naturais e atividades humanas. Desde a colonização, as práticas de ocupação e uso da terra foram moldadas pelas condições ambientais, como vegetação, clima e relevo, onde, diferentes regiões do país abrigaram modos de vida e atividades econômicas específicas, influenciadas pelas características socionaturais, e ciclos econômicos, como o do açúcar, ouro, café e borracha, também tiveram impacto na ocupação do território. A compreensão dessa relação é essencial para entender a diversidade geográfica e cultural do Brasil. A lei do arranjo espacial engloba a consideração de fatores como a localização e a fertilidade do solo, resultando na combinação ideal conhecida como “renda diferencial”. Em algumas áreas, busca-se compensar a qualidade inferior do solo com uma localização geográfica estratégica, como regiões litorâneas que desempenham um papel crucial no escoamento da produção (Moreira, 2011). A renda diferencial, conforme Oliveira (2007), é aquela que não depende da aplicação de capital, mas sim da natureza do solo e de sua fertilidade intrínseca, o que se traduz em maior produtividade. Nesse contexto, a fertilidade natural dos solos, a localização das terras (devido à valorização imposta pelo mercado naquela região) e os custos de transporte (associados às despesas de frete) são fatores territoriais de significativa importância (Oliveira, 2007). A ocupação do território durante o período colonial brasileiro iniciou-se nas capitanias da Região Nordeste, especificamente em São Vicente, Bahia e Pernambuco. Essa ocupação envolveu a instalação de canaviais, onde a cana-de- açúcar era cultivada, bem como engenhos de cana-de-açúcar. Essas atividades eram desenvolvidas em áreas de várzeas de rio, caracterizadas pela fertilidade do solo para a prática agrícola, e em regiões próximas a zonas portuárias, facilitando o escoamento da produção e a exploração das riquezas do território (Moreira, 2011). A migração da Região Nordeste para a Região Sudeste do Brasil não apenas influenciou a expansão da produção de café, mas também destacou a importância da relação entre a localização geográfica e a fertilidade dos solos na formação de polos de produção agrícola. Essa migração impulsionou o desenvolvimento de áreas com solos propícios para o cultivo do café, contribuindo significativamente para as consolidações do Sudeste como o principal produtor dessa cultura no país. Portanto, o processo de formação, ocupação e uso do território brasileiro foi moldado por ciclos produtivos e econômicos. Durante esse processo, a localização das atividades produtivas foi determinada pelos interesses dos colonizadores na exploração de recursos naturais e na utilização de grupos sociais, como indígenas e africanos. Além disso, essa localização foi influenciada por regulamentações espaciais que consideraram fatores como a qualidade e fertilidade do solo, o transporte de produtos e a proximidade de centros consumidores. Tudo isso ocorreu sob a lógica do valor e da reprodução social, resultando em impactos significativos e duradouros na sociedade e nos territórios (Moreira, 2011). 3 INTERCULTURALIDADE NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE BRASILEIRA: POVOS INDÍGENAS, AFRICANOS E EUROPEUS O Brasil é um país notável por sua diversidade, que se manifesta não apenas em suas características naturais, mas também na pluralidade de povos que compõem sua população e na heterogeneidade dos aspectos históricos e culturais que moldam a sociedade brasileira. Em termos simples, a formação do povo brasileiro é resultado da interação entre povos indígenas, africanos e imigrantes europeus (TRENNEPOHL, 2014). Para entender esse processo de formação, começaremos por uma visão retrospectiva, oferecendo uma breve descrição das diversas etnias que se desenvolveram para a construção da identidade brasileira. É importante destacar que esse percurso histórico não foi isento de conflitos, já que diferentes grupos sociais interagiram de diversas maneiras. Ao longo de milênios, a costa atlântica foi habitada por inúmeras comunidades indígenas que competiram pelos melhores locais para se estabelecerem. Nos últimos séculos, grupos indígenas de língua tupi, conhecidos por sua habilidade guerreira, estabeleceram-se ao longo de toda a costa atlântica, seguindo o curso do Rio Amazonas e subindo os principais rios, como o Paraguai, Guaporé e Tapajós, até suas fontes. Essa contribuição contribuiu para a configuração do que se tornaria o Brasil (RIBEIRO, 1995). O legado indígena não se limita apenas à geografia, pois também influencioua cultura e o modo de vida dos colonizadores portugueses. Os indígenas inspiraram-se na construção das primeiras casas portuguesas, introduziram o uso da rede para dormir, o hábito do banho de rio, a incorporação da mandioca na alimentação, a preparação de cestos de fibras vegetais e um vasto vocabulário nativo, principalmente do tupi, relacionado às coisas da terra, como nomes de lugares, plantas e animais (FRANTZ; TRENNEPOHL, 2014). No entanto, a contribuição dos povos indígenas vai além. Logo após a chegada dos portugueses, e dos indígenas serem pacificados e subjugados, compartilharam conhecimentos essenciais para a sobrevivência na selva, ensinando como lidar com os desafios das matas e orientando os colonizadores em suas expedições (SURUÍ, 2017). Ao longo da história da colonização do Brasil, os povos indígenas desempenharam papéis diversos, às vezes aliados na defesa contra invasores estrangeiros, outras vezes como mão de obra nas expansões agrícolas e extrativistas (SURUÍ, 2017). Os povos indígenas, devido à sua profunda conexão com a floresta, exploraram uma ampla variedade de alimentos, incluindo a mandioca e seus derivados, como farinha, pirão, tapioca, beiju e mingau, além de cultivos como milho, batata-doce, cará, feijão, tomate, amendoim, tabaco, abóbora, abacaxi, mamão, erva-mate e guaraná (PROGRAMA DE DOCUMENTAÇÃO DE LÍNGUAS E CULTURAS INDÍGENAS, 2012). Esses conhecimentos sobre as espécies nativas foram acumulados ao longo de milênios de convivência com a floresta. Além disso, os povos indígenas também desenvolveram significativamente o conhecimento das propriedades medicinais de plantas e ervas da região. Muitas dessas plantas, como a alfavaca (com propriedades antigripais, diuréticas e hipotensoras) e o boldo (com propriedades digestivas, antitóxicas e úteis contra a prisão de ventre e febres intermitentes), ainda são utilizadas por muitas pessoas no dia a dia (PROGRAMA DE DOCUMENTAÇÃO DE LÍNGUAS E CULTURAS INDÍGENAS, 2012). Os portugueses, oriundos da Península Ibérica na Europa, já tiveram contato com uma série de culturas, incluindo fenícios, gregos, romanos, judeus, árabes, visigodos, mouros, celtas e africanos. Deles, provem o idioma português, que se tornou o principal veículo da cultura brasileira, assim como a religião católica, que, posteriormente, se sincretizou com entidades das religiões africanas (FRANTZ; TRENNEPOHL, 2014). Em termos culturais, a influência lusitana na formação cultural brasileira é evidente. O calendário festivo brasileiro incorporou duas das festas mais emblemáticas, o carnaval e as festas juninas, trazidas pelos portugueses. Originalmente conhecidas como festas “joaninas” em homenagem a São João, essas celebrações dos santos populares, como são chamadas em Portugal, evoluíram para as festas juninas, integrando-se aos costumes locais brasileiros. Além disso, diversas festas populares, como a Festa do Divino, a Farra do Boi e a Folia de Reis, também têm raízes portuguesas (MUNDO LUSÍADA, 2016). O folclore brasileiro também foi influenciado pelo folclore português, incorporando uma série de criaturas e seres mágicos do imaginário lusitano, como o bicho-papão, a cuca e o lobisomem. Além disso, várias danças brasileiras, como o maracatu, o fandango e a caninha-verde, foram implementadas no país pelos portugueses ao longo dos séculos. O maracatu, por exemplo, chegou ao Brasil por volta de 1700, especialmente no Nordeste, enquanto o fandango, uma dança de pares de origem barroca, entrou no país algumas décadas depois, permanecendo popular no Sul. A dança de pares conhecida como caninha-verde é ainda mais antiga, tendo sido introduzida durante o Ciclo da Cana-de-Açúcar em diversas regiões canavieiras do Brasil, sendo atualmente típica do Ceará (MUNDO LUSÍADA, 2016). Uma influência significativa da cultura portuguesa na sociedade brasileira inclui as cantigas de roda, que eram comuns em Portugal na época do descobrimento. Músicas tradicionais como “Escravos de Jó”, “Sapo Cururu”, “Roda Pião”, “Atirei o Pau no Gato” e “Ciranda-Cirandinha” têm origem lusitana. Além disso, muitos dos pratos considerados típicos da culinária brasileira são adaptações da culinária portuguesa às condições do Brasil Colônia. Exemplos incluem a feijoada, o quindim, o caldo verde, a cachaça e a bacalhoada. Frutas, legumes, verduras e condimentos de Portugal também foram introduzidos nas comidas brasileiras, como jaca, fruta-do-conde, coco, manga, couve, pepino, alface, cebola e alho, entre outros (MUNDO LUSÍADA, 2016). A influência africana na formação da sociedade brasileira começou com o tráfico de escravos, que trouxe milhões de africanos para o Brasil como mão de obra escrava (FERREIRA, 2013). Embora tenham sido separados e submetidos a condições extremamente difíceis, os africanos assumiram a principal força de trabalho do Brasil, desempenhando um papel crucial no desenvolvimento econômico dos primeiros séculos (FRANTZ; TRENNEPOHL, 2014). Os escravos africanos eram fundamentais para a economia colonial, sendo descritos como “[...] as mãos e os pés dos senhores de engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente [...]” (ANTONIL, 1982, p. 89 apud FERREIRA, 2013). Em outras palavras, a escravidão era vista como essencial para o projeto de desenvolvimento dos portugueses no Brasil. No entanto, a contribuição africana não se limita ao aspecto econômico. Os africanos desejaram preservar suas culturas de origem e criar novas práticas culturais através da interação com outras culturas. Além de manterem tradições culturais distintas, os africanos também incorporaram elementos das culturas europeias e indígenas, influenciando-as culturalmente. Esse intercâmbio cultural entre diferentes grupos étnicos contribuiu para a formação de uma cultura afro-brasileira única e rica em diversidade (FERREIRA, 2013). Vale destacar que os africanos não formaram um grupo homogêneo, pois suas origens eram diversas. No entanto, dois grupos em particular se destacaram no Brasil: os bantos e os sudaneses. Os bantos foram assim chamados devido à sua relativa unidade linguística, incluindo africanos de Angola, Congo e Moçambique. No Brasil, bantos e sudaneses se misturaram, resultando em uma troca biológica, cultural e religiosa significativa (FERREIRA, 2013). Misturavam-se informações, assim como etnias, tradições e práticas culturais. Novas cores eram forjadas pela sociedade colonial e por ela apropriadas para designar grupos diferentes de pessoas, para indicar hierarquização das relações sociais, para impor a diferença dentro de um mundo cada vez mais mestiço. Da cor da pele à dos panos que a escondia ou a valorizava até a pluralidade multicor das ruas coloniais, reflexo de conhecimentos migrantes, aplicados à matéria vegetal, mineral, animal e cultural (PAIVA, 2001, p. 36). Assim, fica evidente que as interações culturais entre os povos africanos desempenharam um papel fundamental na construção da identidade cultural brasileira, resultando em uma cultura afro-brasileira distinta (FERREIRA, 2013). Eles não hesitaram em criar novos códigos de comportamento e reinventar práticas de sociabilidade e cultura (PAIVA, 2001). Esse processo de cruzamentos culturais foi o resultado de um longo período de intercâmbio que enriqueceu de forma única a cultura brasileira. Em última análise, é importante considerar que as três matrizes étnicas abordadas aqui desempenharam papéis cruciais na formação histórica e cultural do Brasil. Cada uma delas contribuiu de maneira significativa para a diversidade cultural do nosso país, como distribuída, não de maneira uniforme ou importadora, mas sim em um contexto de grande heterogeneidade e contradições. Essa é apenas uma pequena parte da complexa origem do Brasil que conhecemos e ao qual pertencemos.Quando abordamos a religião e a religiosidade na América portuguesa, é crucial compreender o significado profundo dessas práticas para as pessoas daquela época. Para elas, suas opiniões, fé e religiosidade permeavam todos os aspectos da vida cotidiana, moldando sua maneira de agir e pensar, influenciando as dinâmicas familiares, assim como sua participação na sociedade e na política (PRIORE, 1994, p. 5). Em outras palavras, não existia uma divisão nítida entre essas esferas, conforme comum hoje em dia, e a religião não se limitava a uma mera tradição ritualística, mas era vivenciada de forma profunda e intrínseca em todas as dimensões da existência. Da mesma forma, é importante compreendermos que a religião, como uma dimensão cultural, não é estanque e está sujeita a apropriações e usos diversos, conforme as necessidades conjunturais, sendo o sincretismo algo bastante comum: No campo da religião, é importante perceber que os seres humanos não se limitam a reproduzir aquilo que aprenderam: são agentes ativos na construção de uma realidade simbólica, da qual participam de acordo com sua experiência social. O rico, o remediado ou o pobre, o negro, o mulato ou o branco apropriam-se das práticas religiosas, usando-as segundo suas necessidades espirituais e materiais. Assim, a religião se configura num conjunto de formas de conhecimento e de crença que religa as experiências concretas das pessoas ao significado que elas lhes atribuem, ao sentido que dão à vida e à morte (PRIORE, 1994, p. 5). No contexto das práticas religiosas africanas, é importante considerar que o estudo dessas tradições durante o período colonial apresenta desafios importantes, uma vez que a maioria das fontes disponíveis é de natureza policial e se refere principalmente à repressão dessas práticas, que eram consideradas heréticas e ilegais naquela época. Via documentos, se tem conhecimento da existência de cerimônias religiosas como o acotundá, o candomblé e o calundu (PRIORE, 1994). Os africanos escravizados compartilhavam rituais tradicionais tanto em suas terras de origem na África como durante as viagens transatlânticas. Eles continuaram a praticar suas crenças religiosas mesmo nos locais de trabalho no Brasil colonial. Nesse contexto, essas práticas religiosas desempenharam um papel importante na tentativa de recriar uma identidade social que havia sido perdida devido ao exílio. No entanto, essas manifestações mágicas-religiosas eram frequentemente malvistas pelas autoridades civis e, especialmente, pela Igreja Católica (CALAINHO, 2013, p. 118). O acotundá, também conhecido como “dança de tunda”, foi uma dessas práticas religiosas que se desenvolveram em Minas Gerais durante o século XVIII. A descrição do culto nos demonstra como havia um sincretismo entre aspectos da religiosidade africana e o catolicismo: [...] aos sábados, grande número de “negros forros e cativos para ali acorriam para fazer um folguedo, dançando ao som de um tambor ou tabaque”, como diz um documento de 1747. Uma mulher entrava na dança, cantando com palavras extraídas de textos católicos, mas também utilizando o dialeto courá, da Costa da Mina (atualmente parte de Gana) (PRIORE, 1994, p. 30). Alguns autores consideram que o acotundá assemelha-se ao candomblé e ao xangô praticados no Nordeste. O altar de um legítimo candomblé baiano, o peji, fica comumente instalado no interior da casa, e o santo é representado por pedras, búzios e fragmentos de pedra, conforme a invocação, e encerrado em uma urna de barro. [...] Muitos elementos do ritual são praticamente idênticos no século XVIII e na atualidade: o emprego de galos e galinhas, moringas, recipiente com terra fétida; a predominância feminina, o destaque de uma das dançantes identificada como líder cerimonial; o sacrifício de animais, a possessão e o transe ao som de atabaques (PRIORE, 1994, p. 31). A historiadora Mary del Priore (1994) destaca que em diversos desses rituais, como o culto a Nossa Senhora do Rosário e Santo Antônio, a evocação dessas figuras religiosas servia como uma forma de cultuar as manifestações da religiosidade africana, mesmo que sob diferentes denominações e identidades. Essa sincretização religiosa era uma característica marcante da religiosidade afro-brasileira na época colonial. Por outro lado, o calundu era um ritual que parecia não ter se fundido com outras práticas religiosas na América portuguesa. Originado da religião dos vodus, que tinha suas raízes no povo jeje do Reino de Daomé (atual Benin), o calundu se destacou como um elemento religioso distinto e não sincretizado, mantendo suas características e tradições culturais de forma independente na colônia. Conduzido por um vodunô, um líder espiritual, e com a ajuda de vodúnsis, membros do culto, o ritual consistia em danças e cantos na língua jeje, ao som de ferrinhos (agogôs e gans) e atabaques. O centro do cerimonial abrigava elementos ainda hoje utilizados no candomblé baiano: ervas, búzios, dinheiro, aguardente. Folhas de diversas plantas serviam na preparação de ebós (alimentos oferecidos às divindades), em ritos de iniciação e limpeza do corpo, na medicina africana e no assentamento de altares de entidades. [...] Os calundus tinham a função de dar a seus participantes um sentido para a vida e um sentimento de segurança e proteção contra um mundo incerto e hostil (PRIORE, 1994, p. 31). No contexto dos povos indígenas, os pajés ou caraíbas eram homens que possuíam a habilidade de comunicar-se com os espíritos e interpretar suas mensagens. Os jesuítas os referem como “santidades”. Esses rituais, que envolviam diversas práticas, refletiam a crença em uma mitologia tupi, mas também demonstravam um sincretismo com a religião católica, uma vez que muitos indígenas foram educados em escolas e colégios jesuítas. A historiadora Mary del Priore (1994, p. 53) traz o relato de um episódio de “santidade” ocorrido na Bahia em 1586: O movimento foi iniciado não por um dos velhos pajés, mas por um certo Antônio, educado pelos padres da Companhia de Jesus em suas aldeias de Tinharé, na Capitania de Ilhéus. Antônio se internou no sertão, munido do que aprendera no contato com os portugueses e com os padres. Não tardou a enxertar na santidade algumas cerimônias da liturgia católica. Em sua cerimônia, anunciava o advento próximo de uma idade de ouro em que reinariam a abundância e a preguiça, e os brancos passariam de senhores a escravos. [...] Em torno de Antônio se juntou rapidamente uma verdadeira multidão de índios pagãos e batizados, forros e cativos (PRIORE 1994, p. 53). Quando tratamos das artes e da literatura na América portuguesa, é comum focarmos na produção artística e literária de europeus e seus descendentes. Isso ocorre porque as manifestações artísticas e literárias dos africanos e indígenas não eram totalmente integradas aos ambientes de prática e difusão cultural da época. No entanto, é importante destacar que, apesar de não terem sido encontrados registros escritos ou materiais facilmente acessíveis, podemos conhecer essas expressões culturais por meio da arqueologia e da transmissão oral intergeracional. Historicamente considerado, o problema da ocorrência de uma literatura no Brasil se apresenta ligado de modo indissolúvel ao do ajustamento de uma tradição literária já provada há séculos — a portuguesa — às novas condições de vida no trópico. Os homens que escrevem aqui durante todo o período colonial são ou formados em Portugal, ou formados à portuguesa, iniciando- se no uso de instrumentos expressivos conforme os moldes da mãe-pátria. A sua atividade intelectual ou se destina a um público português, quando desinteressado, ou é ditada por necessidades práticas — administrativas, religiosas (AB’SABER, 2003, p. 106). De uma perspectiva ampla, podemos considerar as cartas e os relatos dos viajantes que acompanharam as navegaçõesexploratórias e as primeiras incursões no território americano como obras documentais, uma forma de “literatura informativa”. Nesse contexto, a primeira “obra” desse tipo teria sido a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel, que se enquadrava no gênero de literatura de viagens comum no século XV em Espanha e em Portugal. Esses documentos refletem interesses mercantis e religiosos, oferecendo uma visão observada e descritiva dos acontecimentos. Os colégios jesuítas na colônia desempenharam um papel significativo na promoção das artes e da cultura, especialmente com o propósito de catequizar os indígenas e colonos. A conversão religiosa era promovida por meio de manifestações artísticas impregnadas de moral e pedagogia cristã. Um exemplo notável é a obra teatral e poesia do padre José de Anchieta (1533–1597), que incorporou valores católicos adaptados à realidade dos indígenas, incluindo o uso do tupi e elementos da cultura indígena para representar dualidades cristãs, como bem versus mal e virtude versus vício. Também devemos mencionar os sermões do padre Antônio Vieira (1608–1697) nesse contexto (AB'SABER, 2003). Além desses espaços religiosos, destaca-se a obra de Gregório de Matos Guerra (1633–1696), que compôs poesias abordando temas amorosos, religiosos e satíricos. Suas poesias satíricas renderam o apelido de “Boca do Inferno”, já que ele ousou adentrar no âmbito religioso com temas relacionados ao pecado, intemperança e sarcasmo, buscando inspiração e redenção na religião (AB'SABER, 2003, p. 107). No século XVIII, testemunhamos a fundação das primeiras academias artísticas e literárias registradas na América portuguesa. Essas academias surgiram em centros urbanos e atraíram diversos grupos sociais, incluindo religiosos, militares, desembargadores e altos funcionários. Exemplos notáveis incluem a Brasílica dos Esquecidos, fundada em 1724, e a Brasílica dos Renascidos, fundada em 1759, ambas na Bahia. No Rio de Janeiro, foi criada a Academia dos Felizes em 1736, seguida pela Academia dos Seletos em 1752. As academias e os atos acadêmicos significam que a colônia já dispunha, na primeira metade do século XVIII, de razoável consistência grupal. E embora se tenham restringido a imitar os sestros da Europa barroca, já puderam nutrir-se da história local, debruçando-se sobre os embates como os holandeses no Nordeste ou sobre as bandeiras e o ciclo mineiro no centro- sul (BOSI, 2015, p. 54). Após a descoberta de metais e pedras preciosas na região de Minas Gerais, ocorreu o desenvolvimento de um movimento moderno e artístico conhecido como “barroco mineiro” e de um movimento literário chamado “arcadismo”. Vale ressaltar que na historiografia não há consenso absoluto quanto ao uso da denominação “barroco” para descrever esse movimento na colônia, já que alguns argumentam que não se trata de uma mera imitação do barroco europeu. No âmbito do barroco mineiro, o escultor mais renomado é Antônio Francisco Lisboa (1738–1814), também conhecido como Aleijadinho, responsável por esculpir diversas obras em Vila Rica, que hoje é conhecido como Ouro Preto, e seus arredores. Quanto ao arcadismo, esse movimento literário teve origem na região das Minas Gerais por volta de 1757. Caracterizou-se pela valorização de temáticas bucólicas e simplicidade, além da utilização de modelos literários e mitológicos greco- romanos. Por esse motivo, o arcadismo também foi chamado de “neoclassicismo”, refletindo uma abordagem humanista em sua concepção. No que diz respeito às artes plásticas, é certo que a produção artística do período colonial estava fortemente ligada à Igreja Católica, abordando principalmente temas religiosos e sacros. Além disso, muitas obras de arte também retrataram a imagem do poder régio português, destacando a influência da coroa na produção de obras da época. A Igreja e o Estado português desempenharam um papel central na promoção e encomenda de obras de arte, o que resultou em uma abundância de pinturas, esculturas e arquitetura relacionadas a esses temas. De acordo com Cattani (1984, p. 116): [...] a produção artística foi dominada com exclusividade pelas diversas ordens religiosas que se instalaram no Brasil, para catequizar os indígenas e vigiar os colonos, estes muitas vezes fugidos da Inquisição. A produção artística concentrou-se nas Igrejas, centro da vida social. O dirigismo artístico manifestou-se, inicialmente, na imposição de uma arte de caráter religioso, respondendo evidentemente às necessidades do jogo político, pois, em última análise, era o rei de Portugal que comandava (CATTANI, 1984, p. 116). Nos séculos XVII e XVIII, as artes plásticas na América portuguesa apresentavam características do estilo barroco, tanto em Salvador, na Bahia, com a influência dos frades beneditinos, quanto em Minas Gerais (BRUNETO, 2001). O termo “barroco” tem sido objeto de extenso debate no campo da arte e da historiografia, sendo aceito por alguns e questionado por outros. No entanto, parece haver um consenso de que ele se refere às manifestações artísticas luso-brasileiras dos séculos XVII e XVIII, que reúnem características desse estilo. De acordo com Vainfas (2000, p. 68): Nos séculos XVII e XVIII, as artes plásticas na América portuguesa possuíam características do barroco, tanto em Salvador, na Bahia, como nos frades beneditinos, como em Minas (BRUNETO, 2001). “Barroco” é uma categoria com um longo debate artístico e historiográfico. De acordo com Vainfas (2000, p. 68): Nas artes plásticas, o barroco tem sido caracterizado por uma grande variedade de traços, em que se destacam a exuberância das formas, o gosto pelas oposições (como o uso do chiaro e oscuro na pintura), a visão do conjunto como uma composição de elementos distintos a que sempre podem ser justapostos [...] a prevalência da imagem sobre o desenho, a integração em profundidade dos planos da composição, e a manipulação de volumes que emprestam uma certa dimensão arquitetônica às obras. Na literatura, destaca-se o estilo ornamentado, o emprego das antíteses e das hipérboles, o jogo de palavras, que valorizava composições como os acrósticos. Na música, exprime-se por meio de novas formas, como a cantata (voz solista versus conjunto) e o concerto (concertino versus ripieno); da profusa ornamentação, que cabia ao executante acrescentar; e do apego a um certo virtuosismo vocal ou instrumental (VAINFAS, 2000, p. 68). Esse estilo barroco foi introduzido na América portuguesa pelos jesuítas, que já o praticavam em Portugal. Tornou-se a concepção estilística predominantemente na construção de capelas e igrejas nos arraiais mineiros durante o século XVIII. Favorecido pelo grande número de pequenos núcleos urbanos típicos da ocupação de Minas, esse movimento mobilizou quantidade extraordinária de recursos e de artesãos especializados, criando um ambiente cultural único, o chamado barroco mineiro, ao qual não faltaram manifestações musicais e literárias, além de pelo menos um artista de gênio, o mulato Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (VAINFAS, 2000, p. 69) Esse estilo barroco teria predominado até meados de 1760, quando começou a ceder espaço ao chamado estilo rococó. O rococó representou uma evolução na estética artística, caracterizada por uma maior leveza, detalhamento ornamental e influências francesas. Os povos indígenas, africanos e europeus desempenharam papéis cruciais na formação da identidade brasileira. Os indígenas influenciaram a cultura e o modo de vida dos colonizadores, os africanos enriqueceram a cultura brasileira com suas tradições, e os europeus trouxeram língua e religião. Essa diversidade é a base da identidade rica e complexa do Brasil, moldada pela convivência entre esses diferentes grupos étnicos e suas influências culturais. 4 A EVOLUÇÃO DA DIVISÃO REGIONAL NO BRASIL A regionalização no contexto brasileiroestá intrinsecamente ligada ao desenvolvimento político do país e à formação do Estado Nacional. O conceito de regionalização se manifesta historicamente como um elemento administrativo, sobretudo na subdivisão das macrorregiões. Para compreender esse conceito, é necessário reconhecer que a região de desenvolvimento desempenha um papel central nesse processo, refletindo as múltiplas concepções que moldaram sua formação ao longo do tempo. A influência de fatores internos e externos na construção regional é enfatizada por Santos (1994), que destaca a importância de uma análise dialética nesse contexto. Albuquerque Júnior (2009) destaca a relevância de considerar o caráter histórico das fronteiras e territórios regionais, que estão em constante evolução, influenciadas por fatores econômicos, políticos, jurídicos e culturais. O espaço regional é concebido como resultado das interações entre diferentes atores que operam em diversas escalas espaciais. A espacialidade regional não é estática e está sujeita a mudanças ao longo do tempo, refletindo a dinâmica das relações sociais e econômicas. Esse entendimento aproxima a noção de região da ideia de lugar, onde as interações cotidianas entre os atores desempenham um papel fundamental na compreensão da dinâmica regional. A discussão em torno da regionalização no Brasil é complexa, repleta de desafios epistemológicos, como observado por Paviani (1992). A regionalização no país remonta ao século XIX e teve origens políticas, respondendo à política centralizadora imposta pelo governo imperial e à oposição aos movimentos separatistas da época. Esse contexto histórico e político moldou o discurso regionalista, que se estruturou como uma resposta à centralização do poder. Mesmo durante os primeiros anos da Primeira República, a regionalização permaneceu como um elemento-chave na busca pela estabilidade do modelo federativo emergente. Mediante organismos descentralizadores, o governo teve em vista utilizar a regionalização como um meio de consolidar a unidade nacional, aproveitando a oportunidade para construir caminhos que promovessem a unificação do país (JÚNIOR, 2009). No entanto, vale ressaltar que, inicialmente, os documentos oficiais da República brasileira não mencionavam explicitamente a escala regional, concentrando-se principalmente na divisão em Estados, Municípios e Distritos para fins administrativos. Esse enfoque inicial foi uma proposta de trabalho que se assemelhava a um modelo anterior, demonstrando a influência do período anterior à República na formulação da estrutura administrativa do país (BRASIL, 1913). A implementação do federalismo brasileiro foi influenciada pelo modelo dos Estados Unidos, resultando em uma “federalização imperfeita” (MORAIS; VANDRESEN, 2003), marcada pela dualidade entre a União e os Estados Federados sobre o mesmo território e população. As oligarquias regionais desempenharam um papel crucial nesse processo, financiando a consolidação do modelo republicano enquanto buscavam legitimar a autonomia regional por meio de discursos que enfatizavam as singularidades políticas, econômicas, culturais e ambientais de suas regiões. Ratzel (1987) observa que as resistências regionais à integração podem resultar na formação de verdadeiros “sub-estados” no Estado, destacando a importância da coesão política e da organização do espaço político na estruturação do Estado. A proposta federativa brasileira gradualmente superou os movimentos separatistas, promovendo a observância republicana das peculiaridades regionais e a consolidação das ideias de pátria e nação. O lema do Manifesto Republicano de 1870, “Centralização-Desmembramento. Descentralização-Unidade,” ilustra a complexidade das aspirações republicanas locais e a busca pela independência política de cada Estado da federação brasileira (BRASIL, 1890). Assim, a federação brasileira emergiu como uma resposta ao desejo das elites regionais de manter o autogoverno, agora sem a interferência do Imperador, e garantir a sobrevida da constituição nacionalista. Nesse contexto, a regionalização passou a desempenhar um papel central na promoção do discurso nacionalista brasileiro. A relação dialética entre regionalismo e nacionalismo se transformou, e a concepção regional passou a ser uma ferramenta para a promoção do nacionalismo brasileiro (Candido, 1985). Na esfera financeira, o Brasil no período em questão era caracterizado pela fragmentação econômica regional, que ficou conhecida como “arquipélago econômico”. Isso se devia à falta de condições técnicas para uma integração econômica efetiva, resultando em distintas ilhas econômicas no país, como as regiões açucareira, cafeeira e extrativista. A frágil integração dessas economias ao nível federal contribuiu para que as perspectivas regionalistas predominassem sobre a ideia de formar um mercado nacional coeso. A situação geopolítica do Brasil no início do século XX era caracterizada pela fragmentação das oligarquias regionais e pela ausência de uma representatividade política nacional efetiva. No entanto, essa situação começou a mudar com o rompimento das alianças entre dois dos maiores representantes das oligarquias, Minas Gerais e São Paulo, em 1930. Esse momento marcou o início de uma reorganização política que, embora tenha continuado a reconhecer a importância das centralidades regionais, adotou um perfil mais centralizador após o golpe estado- novista de Getúlio Vargas em 1937. Inspirado pela política reservadora castilhista, o Estado Novo promoveu a construção de uma identidade nacional por meio de uma ampla propaganda nacionalista. Um exemplo disso foi a criação do Programa Nacional (atualmente conhecido como Voz do Brasil), que transmitia discursos nacionalistas por meio do rádio. No campo econômico, o governo implementou políticas de industrialização e integração econômica, visando desestruturar os arquipélagos econômicos e promover uma economia nacional mais coesa. Isso incluiu a transferência do direito de legislar sobre o comércio local das oligarquias regionais para o governo federal, a construção de infraestrutura nacional e a extinção de taxas no comércio inter-regional. A busca pela colonização da Amazônia, com foco na exploração da borracha, também fazia parte dos esforços para expandir a ocupação do território. Nesse contexto, o poder federal fortaleceu suas relações com o exército, reequipando e reestruturando as forças armadas. A ideia de centralização política e administrativa foi promovida como parte da identidade nacional durante o Estado Novo. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi criado em 1934 e instalado em 1936 como parte dos esforços para promover a unidade nacional. O IBGE tinha como objetivo coordenar e cooperar com as três esferas administrativas da República para melhor compreender o território brasileiro em constante evolução. O instituto desempenhou um papel fundamental na centralização técnica dos serviços estatísticos do país, afastando-se da estrutura oligárquica regional predominante no início do século XX e contribuindo para a construção da identidade nacional. Esses esforços refletiram a busca pela afirmação geopolítica do Brasil e a transição de uma economia regionalizada para uma economia nacional mais integrada, bem como a promoção da unidade nacional por meio de políticas centralizadoras e da construção de uma identidade nacional unificadora. Em primeiro lugar, é fundamental destacar que o surgimento do IBGE foi inserido em um contexto histórico marcado por um triplo movimento de centralização, burocratização e racionalização no âmbito do aparelho estatal. Esse período, identificado pelos analistas como um processo de formação do Estado capitalista- industrial brasileiro, representou uma quebra das “autonomias estaduais” que sustentavam os polos
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