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SOCIOLOGIA URBANA 2 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 3 1 ABORDAGENS TEÓRICAS NA SOCIOLOGIA URBANA .................................... 4 1.1 A sociologia urbana da escola de Chicago ....................................................... 6 1.2 Modernidade e a formação dos centros urbanos ............................................ 10 2 A SOCIOLOGIA URBANA PELO OLHAR DE ALGUNS AUTORES CRÍTICOS 11 3 A CIDADE E O CAPITALISMO: OS PROCESSOS DE INDUSTRIALIZAÇÃO E URBANIZAÇÃO ........................................................................................................ 20 3.1 Territorialização e segregação nas grandes metrópoles ................................ 25 4 AS CIDADES NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA .......................................... 28 5 SOCIOLOGIA URBANA EM RELAÇÃO AO MEIO AMBIENTE .......................... 37 6 MUDANÇA SOCIAL E ORGANIZAÇÃO .............................................................. 47 7 CULTURA e SOCIEDADE.................................................................................... 57 7.1 CULTURA BRASILEIRA ................................................................................. 60 8 FUTURO DAS CIDADES...................................................................................... 65 8.1 Uma cidade harmônica ................................................................................... 71 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 75 3 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 1 ABORDAGENS TEÓRICAS NA SOCIOLOGIA URBANA A Sociologia é uma disciplina acadêmica que se dedica ao estudo das relações sociais, das instituições sociais e da sociedade em geral. É uma ciência social que reúne um acervo de conhecimentos acumulados ao longo do tempo e busca oferecer explicações sobre o comportamento humano. Em contraste com a Psicologia, outra ciência das ciências sociais, a Sociologia não se concentra na análise do comportamento individual de forma isolada. Em vez disso, ela examina atitudes e comportamentos humanos como fenômenos coletivos, buscando compreendê-los por meio das interações sociais e das relações estabelecidas entre as pessoas (GIL, 2019). Frequentemente, muitas pessoas tendem a procurar explicações de natureza psicológica ao tentar entender o comportamento humano. Elas buscam entender até que ponto as características individuais de uma pessoa podem influenciar seu comportamento. Por exemplo, podem indagar se a intenção de votar em um candidato específico é moldada pelo interesse pessoal do eleitor ou pela afinidade que ele sente pelo candidato. Ou podem questionar se o suicídio está relacionado a distúrbios mentais que podem levar alguém a tomar a decisão de encerrar a própria vida. Também é comum investigar se a adesão de um trabalhador a um movimento grevista está associada ao grau de insatisfação dele com a empresa. A violência é uma realidade presente no cotidiano da população brasileira, sendo amplamente documentada em noticiários e programas de televisão. Ela se tornou lamentavelmente comum, com números alarmantes e relatos de tragédias frequentemente divulgados. Os estudos sobre esse tema envolvem diversas áreas do conhecimento, como a Sociologia Urbana, o Direito, a Psicologia e as Políticas Públicas, entre outras. A análise da violência requer uma abordagem multifacetada, explorando uma ampla gama de fatores e nuances, desde os relacionados às características individuais dos envolvidos até aqueles de natureza estrutural que a condicionam ou influenciam de maneira significativa. A cidade, com sua forma, processos e estrutura interna, mantém uma relação dialética intrínseca com a sociedade que a abriga. Cada sociedade molda e organiza suas áreas urbanas de acordo com suas necessidades e valores, enquanto 5 simultaneamente é influenciada por essas configurações urbanas. O ato de construir uma casa, por exemplo, não se limita apenas à edificação física, mas também está ligado à construção da identidade e da cultura do indivíduo. Cidades que promovem a convivência, respeitam a diversidade, criam espaços propícios para a interação social, garantem direitos e fornecem serviços essenciais desempenham um papel fundamental na promoção de uma sociedade mais pacífica e harmoniosa. Compreende-se que a sociologia é a ciência dedicada à investigação do comportamento humano dentro da sociedade e suas consequências. Dentro desse contexto, a sociologia urbana é uma subárea que se concentra na análise das relações sociais entre indivíduos, grupos e instituições dentro do ambiente urbano. Similarmente à antropologia urbana, a sociologia urbana serve como um pilar fundamental nos estudos relacionados às cidades e às questões decorrentes das interações humanas nesses ambientes urbanos (PESCAROLO, 2017). A sociologia urbana concentra-se em abordar temas específicos que incluem os processos de industrialização e como eles transformam os espaços sociais, bem como as questões de desigualdade social e pobreza. Ela também explora conceitos como comunidade, territorialização e a crescente precarização do trabalho, das relações sociais e da qualidade de vida das pessoas. Nas últimas décadas, essa subárea da sociologia tem demonstrado um interesse crescente pelos fenômenos de urbanização e gentrificação, refletindo uma preocupação mais ampla com o planejamento urbano e os desafios relacionados à violência em centros urbanos densamente povoados. A sociologia urbana reconhece que muitas vezes essas questões estão interligadas, contribuindo para um entendimento mais abrangente da dinâmica urbana contemporânea. A gentrificação é um termo derivado do inglês "gentrification," introduzido pela socióloga britânica Ruth Glass em 1963. Glass utilizou a palavra "gentry," que se refere às classes sociais mais abastadas, para descrever o fenômeno de transformação do centro de Londres, no qual bairros operários passaram a ser ocupados pela classe média e alta da cidade (PESCAROLO, 2017). Em essência, a gentrificação envolve uma mudança na dinâmica de uma região ou bairro, frequentemente manifestada por meio da construção de novos edifícios e estabelecimentos comerciais, o que resulta na valorização econômica da área. Isso, por sua vez, leva ao aumento dos preços dos imóveis e serviços, tornando 6 a permanência de residentes de baixa renda insustentável devido aos novos padrões de custos na região. A gentrificação tem sido objeto de críticas devido à sua natureza excludente, tendência à privatização e ênfase excessiva na higienização social. Além da sociologia urbana, diversas outras disciplinas buscam incorporar as discussõesdesse campo de estudo para enriquecer a compreensão de seus próprios objetos de pesquisa, tais como arquitetura e urbanismo, engenharia civil, geografia, economia e administração. Para elucidar como certos temas se tornaram centrais na sociologia urbana, é importante traçar uma breve explicação sobre a formação do campo sociológico e como determinados assuntos passaram a ser foco de interesse das ciências sociais. No século XVIII e XIX, uma série de eventos históricos impactantes, como o advento da modernidade, o crescimento acelerado das cidades, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, desempenhou um papel crucial no surgimento da sociologia. O cenário europeu, marcado por essas duas grandes revoluções e pelo rápido e desordenado desenvolvimento urbano, deu origem a inúmeros conflitos e desafios sociais. Consequentemente, a sociedade passou a ser encarada como uma questão complexa a ser minuciosamente investigada e solucionada. Nesse momento de profundas transformações, os pensadores da época sentiram-se convocados a fornecer respostas e a advogar por reformas sociais, tudo isso em meio à sensação de uma possível crise iminente (PESCAROLO, 2017). Foi assim que a Europa se estabeleceu como o epicentro de onde emanaram as principais teorias sociais, uma hegemonia que perdura até hoje, embora tenha sido impactada pelas influentes teorias pós-coloniais. Essas teorias permitiram que regiões como a África e a América Latina emergissem como produtoras de conhecimento relevantes nesse campo, desafiando a primazia europeia nas teorias sociais e enriquecendo o panorama acadêmico global (PESCAROLO, 2017). 1.1 A sociologia urbana da escola de Chicago Por que a Universidade de Chicago, nos anos 1920, se tornou um epicentro tão prolífico para o desenvolvimento da Escola de Chicago de Sociologia? Como e por que, entre 1915 e 1935, a sociologia floresceu de maneira tão notável na Avenida Midway, em uma instituição que, desde sua fundação em 1892, exerceu uma influência desproporcional no cenário das ciências sociais nos Estados Unidos? Não 7 apenas Chicago se destacou como o epicentro global da sociologia nesse período, mas também pela abordagem colaborativa e intelectualmente expansiva de seu departamento (EUFRÁSIO, 2020). A sociologia não estava sozinha nesse aspecto; a Escola de Chicago de Filosofia, liderada por John Dewey, estava no auge de sua influência. A Escola de Chicago de Ciência Política ganhava força e reputação, enquanto a Escola de Chicago de Economia começava a se destacar no horizonte. Existem várias características típicas que podem ser observadas ao distinguir uma escola de ciência social. Geralmente, essa escola é liderada por um fundador carismático e seguida por um grupo de adeptos que varia em número, geralmente compreendendo de uma a três dúzias de membros. O líder desse grupo exibe uma personalidade dominante e influente. Os membros da escola compartilham um conjunto de ideias, crenças e princípios normativos, muitas vezes diferindo das correntes predominantes na disciplina naquela época (EUFRÁSIO, 2020). Uma característica essencial de uma escola é a sua busca por modernizar ou renovar a disciplina à qual pertence. Ela é composta por uma comunidade científica coesa, centrada em torno de uma figura central, o líder intelectual carismático, e em torno de um paradigma que orienta a investigação da realidade empírica. Nos primeiros anos do século XX, os Estados Unidos desempenharam um papel de destaque no campo da sociologia. A Escola de Chicago, em particular, ficou fortemente associada à sociologia urbana. Embora o sociólogo alemão Walter Benjamin (1892-1940) tenha sido um dos precursores dos estudos sobre processos urbanos, foi a Escola de Chicago que se destacou nas áreas de antropologia e sociologia urbana. Além disso, esse período testemunhou uma grande migração de cientistas sociais europeus para os Estados Unidos devido à guerra, com muitos deles provenientes da Escola de Frankfurt. Isso colocou a América no centro das discussões sociológicas do século passado (PESCAROLO, 2017). A percepção de que os indivíduos estavam se aproximando cada vez mais espacialmente, devido ao crescimento demográfico das grandes cidades, estimulou o desenvolvimento de estudos relacionados ao surgimento de favelas, à proliferação do crime e da violência, bem como ao aumento da população, fenômenos marcantes no início do século XX. Esse contexto impulsionou o interesse da sociologia urbana nas dinâmicas sociais e nos desafios enfrentados nas cidades em rápido crescimento. 8 A Sociologia foi introduzida nos Estados Unidos durante a virada do século XX e rapidamente adquiriu características distintamente americanas, estabelecendo- se como uma disciplina acadêmica de grande importância. Vários fatores desempenharam um papel fundamental na valorização da Sociologia no país. Entre esses fatores, destacam-se as rápidas transformações sociais ocorridas, a ética protestante que promovia a racionalização do conhecimento e das práticas, a orientação pragmática em busca da eficiência, o sistema capitalista voltado para o progresso científico e social, bem como a receptividade das universidades americanas (GIL, 2019). Essa combinação de fatores contribuiu para o florescimento da Sociologia nos Estados Unidos, permitindo que se tornasse uma disciplina academicamente respeitada e influente, capaz de abordar e analisar as complexas questões sociais que surgiam em meio às rápidas mudanças sociais e econômicas do país na época. Na década de 1920, a Universidade de Chicago desempenhou um papel crucial na formação da primeira "escola" sociológica americana, liderada por renomados sociólogos como Robert Park, Everett Burgess, Roderick McKenzie e outros. Ao considerarem a cidade de Chicago como um autêntico laboratório de pesquisa social, esses acadêmicos desenvolveram estudos pioneiros sobre tópicos como marginalidade, segregação étnica, criminalidade e delinquência juvenil. Utilizando métodos como estudos de comunidade, histórias de vida e observação participante, esses pesquisadores conferiram à Sociologia norte-americana uma abordagem nitidamente empírica (GIL, 2019). Foi na Universidade de Chicago que as bases do Interacionismo Simbólico foram solidificadas, tornando-se uma das perspectivas sociológicas mais influentes. Isso se deveu, em grande parte, aos trabalhos de figuras notáveis como George Herbert Mead (1863-1931) e Herbert Blumer (1900-1987). O Interacionismo Simbólico trouxe uma nova compreensão das interações sociais e da maneira como os indivíduos atribuem significado aos símbolos e às interações em suas vidas cotidianas, contribuindo significativamente para a sociologia e influenciando profundamente o campo das ciências sociais nos Estados Unidos e além (GIL, 2019). Após o término da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos entraram em um período de notável prosperidade econômica e assumiram o papel de principal potência mundial. Isso levou a sociedade americana a recuperar a confiança em seus 9 valores, que haviam sido abalados no início dos anos 1930. Nesse contexto, a Sociologia passou a ser vista não apenas como uma disciplina capaz de analisar os problemas sociais, mas também de explorar as possibilidades de mudança social em um ambiente de estabilidade. Como resultado, a Sociologia nos Estados Unidos entrou em uma fase de "idade de ouro" que se estendeu até o final dos anos 1960 (GIL, 2019). Durante esse período, duas principais tendências se destacaram na Sociologia americana. Por um lado, houve o desenvolvimento do empirismo quantitativo, caracterizado pela utilização de métodos estatísticos rigorosos e análises quantitativas. Um dos principais representantes dessa abordagem foi Paul Lazarsfeld (1901-1976). Por outro lado, o funcionalismo também desempenhou umpapel significativo, buscando compreender como a sociedade funciona, como a ordem é estabelecida e como as instituições sociais interagem entre si. Entre os principais expoentes do funcionalismo estavam Talcott Parsons (1902-1979) e Robert K. Merton (1910-2003). Esse período de prosperidade e desenvolvimento intelectual permitiu à Sociologia nos Estados Unidos florescer e contribuir de forma substancial para a compreensão das dinâmicas sociais e institucionais da sociedade. A partir da década de 1960, ocorreu uma transformação significativa no cenário sociológico nos Estados Unidos, com uma crescente crítica aos modelos anteriores. A sociedade passou por eventos marcantes, como agitações raciais, revoluções urbanas, a revolução cubana e, sobretudo, a Guerra do Vietnã, que deixaram a sociedade mais crítica em relação às instituições e ao Estado. Paralelamente, no ambiente acadêmico, surgiu uma nova tendência conhecida como Sociologia Crítica (GIL, 2019). Wright Mills foi um dos pioneiros desse movimento, que se caracterizou por sua preocupação menos com a ciência pura e mais com questões sociais, especialmente relacionadas à desigualdade, como classes sociais, pobreza, discriminação social, racismo, poder corporativo, crimes de colarinho branco e conflitos sociais. Nesse contexto, Karl Marx, que havia sido em grande parte ignorado pelos sociólogos americanos, emergiu como uma das principais influências na Sociologia Crítica, graças, principalmente, às suas teorias sobre a natureza dos conflitos sociais e suas análises sobre a estrutura de classe na sociedade. 10 Esse movimento marcou uma mudança significativa na abordagem sociológica nos Estados Unidos, enfatizando uma perspectiva mais engajada e crítica em relação às questões sociais e políticas. 1.2 Modernidade e a formação dos centros urbanos A modernidade e seus desafios foram o principal objeto de estudo da sociologia, especialmente porque a disciplina se consolidou no Grupo de professores e pesquisadores da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, durante a década de 1920. Esse grupo, que ficou conhecido como Escola de Chicago, produziu contribuições significativas para a sociologia, psicologia social e ciências da comunicação. Eles deram origem a uma abordagem chamada de behaviorismo social ou interacionismo simbólico, que se concentra na análise das relações entre indivíduos e comunidades. Essa abordagem enfatiza a interpretação e explicação como métodos-chave e investiga a linguagem como um fator crucial na comunicação (PESCAROLO, 2017). A modernidade pode ser entendida como um período histórico em que a sociedade rompeu com a tradição medieval e adotou uma nova visão de mundo. Durante a Idade Média, predominava o pensamento escolástico, enquanto a modernidade se caracterizou pelo surgimento de uma razão mais autônoma e pelo desenvolvimento do capitalismo em todo o Ocidente. Nesse contexto, surgiram as ideias de indivíduo e sujeito. Pode parecer estranho, mas antes da modernidade, não existia uma concepção que reconhecesse cada pessoa como única, dotada de subjetividade. A subjetividade se refere ao mundo interno dos indivíduos, suas visões pessoais, pensamentos e sentimentos, que só passaram a ser valorizados no século XVII. Antes disso, as pessoas eram percebidas de maneira mais coletiva, sempre ligadas ao seu grupo social, sem serem consideradas seres únicos e singulares. A modernidade se fundamentou em alguns aspectos-chave, incluindo o individualismo, a secularização das instituições e a distinção entre o público e o privado (PESCAROLO, 2017). A modernidade trouxe consigo uma série de mudanças significativas que impactaram não apenas a sociedade, mas também a forma como o conhecimento era concebido. Essas transformações incluíram uma crítica epistemológica aos 11 paradigmas que antes dominavam a compreensão do mundo, o surgimento da ciência moderna, avanços tecnológicos substanciais, um aumento na importância do fator econômico na estruturação social, o desenvolvimento de filosofias nacionais e o surgimento das ciências sociais como campo de estudo e investigação. Esses elementos juntos moldaram a paisagem intelectual da modernidade e influenciaram profundamente a forma como a sociedade percebe a si mesma e o mundo ao seu redor. Na modernidade, especialmente nas grandes cidades, o conceito de tempo tornou-se mais fluido e dinâmico, refletindo uma sensação de constante movimento e agitação. Outro aspecto significativo associado à modernidade está relacionado à maneira como o tempo é percebido. A experiência temporal moderna tem seu foco no presente, contrastando com o passado, que é considerado como algo antigo. O tempo na modernidade é também caracterizado por sua fugacidade e rapidez, tornando-se difícil de ser apreendido. Muitas pessoas atualmente sentem que os dias passam velozmente e que o tempo disponível é insuficiente para todas as tarefas e obrigações. Embora o tempo cronológico continue inalterado, a modernidade influenciou profundamente a percepção e a gestão do tempo subjetivo. Viver nas grandes cidades introduz uma sensação de aceleração e constante movimento na subjetividade das pessoas (PESCAROLO, 2017). 2 A SOCIOLOGIA URBANA PELO OLHAR DE ALGUNS AUTORES CRÍTICOS A problemática urbana tem sido alvo de análise por numerosos autores que são amplamente reconhecidos como clássicos no âmbito das ciências sociais, especialmente nos contextos do pensamento social europeu e norte-americano. A necessidade de encontrar soluções para as crises e turbulências que surgiram nos séculos XVIII e XIX, devido às grandes revoluções e ao crescimento desordenado da população urbana, aliada ao surgimento das ideias iluministas, deu origem ao positivismo, que foi a primeira grande corrente de pensamento social. Essa escola é mais notavelmente associada a Auguste Comte (1798-1857), frequentemente considerado o pioneiro da sociologia moderna (PESCAROLO, 2017). Os positivistas acreditavam na possibilidade de explicar os problemas sociais da mesma forma que se lida com os problemas nas ciências exatas, ou seja, por meio 12 de leis rigorosas. Para esse grupo de pensadores, a sociedade podia ser compreendida como um organismo composto por partes integradas que funcionavam harmoniosamente, seguindo um modelo de organização física ou mecânica. Portanto, o positivismo também era conhecido como organicismo ou darwinismo social, representando a crença, por vezes vista como científica, de que as sociedades mudavam ou evoluíam de acordo com padrões históricos permanentes. Posteriormente, surgiram outros modelos de análise social que desafiaram o positivismo. Embora o positivismo nas ciências sociais não tenha sido completamente substituído, ele foi questionado por pensadores que levaram em consideração aspectos culturais, históricos e subjetivos. Embora possamos afirmar que Auguste Comte foi o pioneiro da sociologia, é inegável que Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber são os pensadores que forneceram as ferramentas mais relevantes para a compreensão dos fenômenos sociais, incluindo os fenômenos urbanos. Além desses, outro importante estudioso da vida em sociedade foi Georg Simmel (1858-1918), que desempenhou um papel significativo na escola sociológica alemã (PESCAROLO, 2017). É impossível abordar a sociologia urbana sem mencionar a contribuição de Simmel. Um de seus ensaios mais renomados é "A Metrópole e a Vida Mental" (1902), no qual ele analisa os impactos das grandes cidades na psicologia humana e nas relações sociais. Em sua obra "As Grandes Cidades e a Vida do Espírito" (1903), Simmel também oferece reflexões importantes sobre a vida em ambientes metropolitanos. Por meio desses textos e outras obras, Georg Simmel exerceu uma influência significativa nos estudos relacionados ao fenômeno urbano. GeorgeSimmel Georg Simmel exerceu uma influência significativa sobre diversos autores, especialmente aqueles de origem alemã. Entre os intelectuais que foram influenciados por Simmel estão nomes como Max Weber, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Karl Mannheim e também precursores da Escola de Chicago, incluindo Robert Park e Louis Wirth. A obra de Simmel foi um importante catalisador para o desenvolvimento de ideias e abordagens inovadoras nas ciências sociais, deixando uma marca duradoura no pensamento sociológico e cultural (PESCAROLO, 2017). Georg Simmel, nascido em Berlim, enfrentou desafios para se consolidar na academia, em parte devido à sua abordagem pouco convencional. Sua obra tinha um 13 caráter fragmentário e não se encaixava facilmente em um único estilo ou em teorias sociais que seguiam grandes sistemas de pensamento, como o marxismo, que estava em voga na época. Isso o tornou uma figura singular na sociologia, afastando-se das abordagens mais tradicionais e rígidas (PESCAROLO, 2017). Simmel desempenhou um papel crucial na sociologia urbana ao abordar a vida na cidade em diversos ensaios, sendo "A metrópole e a vida mental" um dos mais notáveis. Publicado pela primeira vez como uma conferência em 1902, este trabalho, embora mais conhecido na sociologia do que na psicologia, chamou a atenção para os aspectos psicológicos da vida em uma grande metrópole. Simmel discutiu as características únicas e os desafios associados à vida em uma cidade de grande porte. Assim como Walter Benjamin, Simmel vivenciou as transformações rápidas que ocorriam na cidade em seu cotidiano, percebendo como essas mudanças afetavam o comportamento e os sentimentos dos indivíduos. Ele destacou como a abundância de estímulos nervosos nas cidades desencadeava alterações significativas nos mecanismos psicológicos das pessoas, levando a modificações em seus comportamentos e formas de sentir. Isso contribuiu para a compreensão das complexas interações entre os indivíduos e o ambiente urbano, tornando sua obra valiosa para a sociologia urbana (PESCAROLO, 2017). Simmel destacou a liberdade como uma característica fundamental da vida na era moderna. Ele argumentou que os indivíduos modernos buscavam preservar a "autonomia e individualidade de sua existência" diante das forças sociais avassaladoras, influências históricas, cultura externa e pressões da vida técnica. A partir do século XVIII, as pessoas começaram a se esforçar para se libertar das restrições morais e religiosas, influenciadas em parte pelas ideias iluministas, que enfatizavam a importância da individualidade e da diferenciação. As cidades desempenharam um papel significativo nesse contexto, oferecendo um ambiente propício para que os indivíduos buscassem essa liberdade e singularidade. Além disso, Simmel argumentou que a grande quantidade de estímulos nervosos nas cidades provocava mudanças substanciais nos processos psicológicos das pessoas, resultando em modificações em seus comportamentos e maneiras de sentir. As grandes cidades eram caracterizadas por constantes mudanças e uma notável descontinuidade, proporcionando um terreno fértil para experiências de 14 impressões súbitas e transformadoras. Isso enfatiza a influência do ambiente urbano na psicologia dos indivíduos e destaca a complexidade das interações entre as pessoas e as cidades modernas (PESCAROLO, 2017). Nas pequenas cidades, os relacionamentos tendem a se aprofundar e enraizar, desenvolvendo-se gradualmente no ritmo constante da aquisição contínua de hábitos. Por outro lado, nas grandes cidades, as relações interpessoais são caracterizadas por uma forte preservação da individualidade, resultando em interações com um tom menos caloroso. O indivíduo que vive na metrópole muitas vezes se torna um anônimo, apenas mais um na multidão. Esse anonimato pode estimular comportamentos egoístas e até impiedosos, uma vez que as relações nesse contexto tendem a ser impessoais e imprevisíveis, tornando os indivíduos menos temerosos de decepcionar os outros. O cidadão que vive na metrópole frequentemente se sente desenraizado e distante. O excesso de estímulos proporcionado pela experiência nas grandes cidades leva a uma crescente consciência e intelectualidade voltada para a preservação da vida subjetiva, como uma forma de resistência ao poder avassalador das complexidades urbanas. No entanto, essa intensa intelectualidade pode desconectar o indivíduo metropolitano de uma conexão mais profunda com suas emoções. Consequentemente, esse tipo de indivíduo pode gradualmente adotar uma postura desinteressada em relação aos outros, frequentemente manifestando uma frieza desprovida de empatia, devido à distância que mantém de suas próprias emoções. Nesse contexto urbano, Georg Simmel descreve uma estrutura impessoal na cidade, mas ao mesmo tempo, promove uma subjetividade altamente pessoal, caracterizada por uma "atitude blasé". Essa atitude é resultado do excesso de estímulos e pressões aos quais os habitantes metropolitanos estão sujeitos, levando à incapacidade de diferenciar o significado e o valor das coisas. Para a pessoa blasé, tudo parece ter o mesmo tom, e nenhum objeto se destaca ou tem preferência sobre outro, refletindo uma adaptação à vida nas grandes cidades. Georg Simmel argumentou que os habitantes metropolitanos tendem a adotar uma postura reservada entre si, que pode ser percebida como frieza e indiferença por pessoas de pequenas cidades e áreas rurais. Essa reserva pode evoluir para antipatia, estranheza e repulsa em situações de proximidade extrema, até mesmo ódio 15 e conflito. No entanto, essa atitude, quando dirigida a outros, também é sentida voltando-se para o próprio indivíduo (PESCAROLO, 2017). Simmel acreditava que essa antipatia era uma forma de proteção contra os perigos da metrópole, como a indiferença e a influência indiscriminada. Portanto, os habitantes metropolitanos desenvolvem mecanismos para coexistir em espaços lotados, o que restringe sua liberdade física, mas amplia sua liberdade mental, já que o anonimato na multidão é uma experiência única na história, permitindo uma sensação de liberdade espiritualizada e refinada. Os impactos abrangentes que uma grande cidade exerce sobre um indivíduo são vastos. A funcionalidade de uma metrópole ultrapassa amplamente suas fronteiras físicas, tornando a liberdade um componente essencial dessa extensão. No entanto, essa liberdade é alcançada devido à limitação e à raridade dos contatos interpessoais. Max Weber Max Weber, influenciado por Georg Simmel e abrangendo várias áreas do conhecimento, como economia, direito e música, examinou a crescente racionalização na vida do homem moderno, especialmente na metrópole. Weber focou em entender as razões que levam as pessoas a agir de certas maneiras, classificando as ações em quatro tipos: ação racional visando um objetivo específico, ação racional orientada por valores, ação afetiva e ação tradicional (PESCAROLO, 2017). Weber estabeleceu dois domínios de ação: um mais racional e outro ligado a causas menos racionais, como o afeto e as crenças tradicionais, que podem influenciar as pessoas a seguir certos comportamentos sem questionar suas razões. Essas formas de ação são observadas na vida dos habitantes das grandes cidades. Weber escreveu dois textos relevantes para a compreensão da vida urbana: "Conceito e categorias da cidade" e "A cidade", ambos publicados postumamente em 1921. Segundo Weber, o termo "cidade" refere-se a um grande assentamento com construções compactas, em oposição a casas dispersas. Nas cidades, as casas são próximas umas das outras, promovendo a formação de comunidades vizinhas. Além disso, a maioria dos habitantes das cidades modernas depende economicamente da indústria ou do comércio, em contraste com a agricultura. A cidademoderna é caracterizada por sua diversidade de ocupações industriais (PESCAROLO, 2017). Para Weber, uma cidade moderna é estabelecida de duas maneiras: 16 ➢ Pela presença de um território dominado, que serve como sede de um governante e atua como um centro onde existe uma indústria especializada que atende às necessidades econômicas e políticas, incluindo o comércio de mercadorias. ➢ Devido a um intercâmbio regular e constante de mercadorias na localidade, que desempenha um papel essencial na atividade econômica e no fornecimento de bens para os habitantes, como um mercado diário em oposição a eventos ocasionais, como feiras. Weber utilizou esses critérios para definir as cidades modernas, que, em sua visão, diferem substancialmente das cidades antigas. Uma cidade, no sentido aqui abordado, é essencialmente um "local de mercado", onde existe um centro econômico com atividades de mercado local. Os habitantes urbanos dependem da produção especializada de bens industriais e mercadorias para atender às suas necessidades, enquanto também trocam produtos específicos de suas economias. As cidades podem ser caracterizadas como de produtores (cidades industriais) ou de consumidores, onde diversas ocupações, como profissionais liberais, podem coexistir (PESCAROLO, 2017). Além disso, uma cidade moderna é caracterizada pela interdependência com outras localidades para suprir as necessidades de bens não produzidos internamente. Isso leva à formação de relações entre a cidade e o campo, com ênfase na importância da cidade como um local de defesa e segurança para seus cidadãos. Resumidamente, uma cidade concentra grande população, regula atividades comerciais e econômicas, e resolve disputas por meio de autoridades políticas e judiciais. Os aspectos econômicos, políticos e militares estão interligados na existência da cidade. A perspectiva de Max Weber sobre a cidade engloba noções de cidadania, autonomia e a substituição da dominação tradicional pelos habitantes associados. Ele via a cidade como um local de significativa estratificação social e a considerava um elemento fundamental no processo de racionalização do Ocidente. Weber identificava duas formas de racionalização associadas ao surgimento das cidades: uma de natureza instrumental, ligada aos interesses econômicos, e outra relacionada à moral e às instituições legais. Esta última forma de racionalização contribuiu para o desenvolvimento do direito burguês à igualdade e para uma mentalidade universalista 17 em relação aos indivíduos, abrangendo a racionalização do direito, da moral e das relações sociais na cidade. Émile Durkheim David Émile Durkheim é considerado o fundador da sociologia como uma disciplina independente. Ele ocupou a primeira cátedra de sociologia criada na França, na Universidade de Bordeaux, em 1887, e depois lecionou sociologia e pedagogia na Universidade Paris-Sorbonne a partir de 1920 (PESCAROLO, 2017). Uma de suas contribuições significativas para a reflexão sobre a questão urbana é encontrada em sua obra "Da Divisão do Trabalho Social", publicada em 1893. Nesta obra, Durkheim discute a categoria do trabalho social, que se refere a um tipo específico de relação social que surge da divisão do trabalho, especialmente proeminente nas grandes cidades. Durkheim argumenta que todo trabalho é social e enfatiza a importância de entender esse conceito como um elemento crucial na compreensão das relações sociais (PESCAROLO, 2017). Em suas análises, Durkheim destaca a importância da manutenção da coesão social nas sociedades urbanas e industrializadas. Ele argumenta que a forma como o trabalho está organizado nessas sociedades resulta em uma solidariedade orgânica, em contraste com a solidariedade mecânica característica das sociedades mais tradicionais. Nas sociedades tradicionais, a solidariedade mecânica prevalece devido à semelhança interna entre os membros do grupo. Eles compartilham crenças e sentimentos semelhantes, e suas formas de pensar, sentir e agir são altamente uniformes, resultando em uma consciência individual que se alinha estreitamente com a consciência coletiva. Isso significa que a coerção social é forte, e há pouco espaço para divergências ou mudanças na ordem social estabelecida (PESCAROLO, 2017). Em contraste, nas sociedades urbanas e industrializadas, a solidariedade orgânica surge devido à complexidade da divisão do trabalho. Aqui, a consciência individual e coletiva pode ser diferente, pois os indivíduos têm papéis e funções especializados. A coerção social é menos intensa, permitindo mais espaço para a diversidade de pensamentos e comportamentos. Isso leva à coexistência de diferentes formas de consciência, tanto individuais quanto coletivas, e à capacidade de questionar e mudar as normas sociais de maneira mais flexível. 18 Durkheim argumenta que as relações sociais são sustentadas por diferentes formas de solidariedade. Nas sociedades menores e mais simples, a solidariedade é mecânica, baseada na semelhança e na conformidade automática ao comportamento coletivo. À medida que as sociedades crescem e se tornam mais complexas, surge uma solidariedade orgânica, resultante da interdependência de várias ocupações e perspectivas de vida. Essa solidariedade é essencial para manter a coesão social (PESCAROLO, 2017). A estratificação social cria relações de interdependência entre os indivíduos, mantendo-os conectados. Nas sociedades capitalistas e urbanas, as formas de coesão social são diferentes das sociedades tradicionais devido à maior diversidade de ocupações. No entanto, Émile Durkheim ressalta que nem toda divisão do trabalho gera solidariedade; algumas situações podem levar à anomia e patologia social. Exemplos disso incluem falências industriais, conflitos entre trabalho e capital, trabalho não regulamentado que leva à exploração, e ocupações em que não há uma colaboração significativa entre os trabalhadores, resultando em tempo ocioso e individualismo. Isso enfraquece os laços sociais de interdependência, reduzindo a solidariedade. É importante observar que a anomia, que é a falta de compreensão e atribuição de sentido às normas sociais, tem efeitos prejudiciais na sociedade, incluindo o aumento da criminalidade e suicídio. Portanto, as sociedades urbanas e capitalistas enfrentam desafios decorrentes de seu crescimento e especialização, que podem ter consequências negativas para a coesão social (PESCAROLO, 2017). Karl Marx Karl Marx, um filósofo, sociólogo, jornalista e revolucionário socialista nascido em 1818 na Alemanha, ofereceu uma análise importante da sociedade urbana, capitalista e industrializada. Para Marx, o trabalho desempenhou um papel central em sua obra, sendo considerado a expressão da vida humana e uma atividade que transforma tanto o indivíduo quanto a relação do ser humano com a natureza. Por volta dos 26 anos, Marx abandonou sua posição liberal e burguesa para se unir à causa dos operários e ao movimento comunista, com profunda compaixão pela situação precária em que viviam, devido à exploração brutal a que eram submetidos. Assim como Durkheim, Marx acreditava que o trabalho deveria proporcionar dignidade, crescimento, sentido e significado social. No entanto, na 19 sociedade capitalista industrial, o trabalho frequentemente gerava dominação e alienação. Marx argumentava que um indivíduo que não encontrasse satisfação em seu trabalho ou precisasse suportar condições degradantes para sobreviver não poderia ser verdadeiramente feliz. Uma sociedade desigual e injusta produziria pessoas incapazes de refletir sobre sua própria existência (PESCAROLO, 2017). Marx concentrou seus estudos na sociedade capitalista industrial, com um enfoque especial nas cidades. Ele via as cidades como o palco principal onde o capitalismo se manifestava. Nas cidades industrializadas,Marx identificou a miséria e a degradação da classe operária, temas que foram destacados de forma contundente em obras como "A situação da classe trabalhadora na Inglaterra," de Friedrich Engels, e "O Capital," de Karl Marx. Ambas as obras, publicadas originalmente em 1845 e 1867, respectivamente, evidenciaram as condições adversas enfrentadas pelos trabalhadores e a exploração que ocorria nas cidades. Marx e Engels argumentavam que a história da sociedade era a história da luta de classes, e as cidades industriais do século XIX desempenharam um papel histórico e estratégico como o local onde essa luta entre a classe trabalhadora e os capitalistas se desenrolava. As cidades eram vistas como o berço da burguesia e de sua ascensão revolucionária, mas também como o espaço onde a exploração dos trabalhadores se manifestava de forma mais evidente. Acreditavam que a cidade capitalista, nessa perspectiva, tinha uma importância histórica e concreta (PESCAROLO, 2017). É importante ressaltar que não estamos afirmando que a Revolução Industrial teve apenas impactos negativos. O que destacamos aqui é a relação entre essa revolução e a precarização do trabalho humano, um tema central nas análises marxistas. As dificuldades enfrentadas pela classe operária resultaram em uma série de movimentos políticos e lutas que desempenharam um papel crucial na criação e manutenção dos Estados de Bem-Estar Social na Europa ao longo de muitas décadas. Graças a essas lutas e à preocupação com as consequências da Segunda Guerra Mundial, muitos países europeus conseguiram estabelecer períodos de garantia de direitos, proteção social, previdência, educação de qualidade e assistência médica (PESCAROLO, 2017). 20 3 A CIDADE E O CAPITALISMO: OS PROCESSOS DE INDUSTRIALIZAÇÃO E URBANIZAÇÃO O surgimento das cidades representa um evento historicamente recente na trajetória da humanidade. Estudos apontam que aproximadamente 12.000 anos atrás, os primeiros assentamentos humanos começaram a surgir como uma consequência direta do desenvolvimento da agricultura. Antes desse marco, os seres humanos eram principalmente nômades, dependentes da caça e coleta de alimentos, deslocando-se em busca de recursos naturais para a sua subsistência (GIL, 2019). Os primeiros locais a atrair as populações para o estabelecimento permanente foram aqueles situados nas proximidades de rios com margens ricas em nutrientes. Esses locais propiciavam condições favoráveis para a prática da agricultura e a pesca. Como resultado, as primeiras cidades surgiram na região da Mesopotâmia, que significa "entre rios," nas proximidades dos rios Tigre e Eufrates, por volta de 3.500 a.C. Inicialmente, essas cidades se desenvolveram como centros comerciais e militares e tinham uma população que contava com apenas algumas centenas de habitantes. Durante a Antiguidade, várias cidades pertencentes ao Império Romano chegaram a abrigar mais de 50.000 habitantes. No entanto, a partir do século V, com a invasão de tribos bárbaras, compostas principalmente por guerreiros e com pouco interesse no comércio, muitas dessas cidades enfrentaram um colapso significativo. Isso resultou na migração da maioria de sua população para áreas rurais. Somente após o século X é que essas cidades começaram a experimentar um lento processo de recuperação populacional (GIL, 2020). No século XVIII, a dinâmica das sociedades europeias sofreu uma transformação significativa com o início da Revolução Industrial. Nesse período, houve um rápido crescimento da população urbana, impulsionado pela migração em massa de agricultores do campo para as cidades. As cidades em processo de industrialização viram a criação de bairros industriais, onde os trabalhadores passaram a residir em proximidade às fábricas, facilitando o acesso ao local de trabalho. Além disso, tornou-se imperativo estabelecer sistemas de transporte público para atender às crescentes necessidades de deslocamento na paisagem urbana em transformação. 21 As condições de saneamento nas cidades industriais típicas do século XIX eram extremamente precárias, com a maioria delas carecendo de sistemas de abastecimento de água e saneamento básico. A introdução desses serviços nas cidades ocorreu de forma gradual, começando pelos bairros frequentados pela elite. Somente no início do século XX é que as áreas habitadas pela classe trabalhadora passaram a contar com esses serviços essenciais. Comparando as cidades industriais com as cidades pré-industriais, percebe- se que as primeiras adotaram um sistema de classes mais permeável e promoveram maior mobilidade social. Embora as características tradicionais de atribuição de status, como gênero, raça e etnia, ainda mantivessem sua importância, as cidades industriais ofereceram mais oportunidades para que as pessoas progredissem com base em seus talentos e habilidades (GIL, 2020). No final do século XX, surgiu um novo modelo de comunidade urbana: a cidade pós-industrial. Nessas cidades, a economia é dominada pelas finanças globais e pelo fluxo eletrônico de informações. A produção se torna descentralizada e frequentemente se desloca para áreas distantes dos centros urbanos, mas o controle permanece nas mãos de corporações multinacionais, cuja influência transcende as fronteiras municipais e, por vezes, até nacionais. Para entender o desenvolvimento complexo da cidade no contexto do capitalismo, é crucial analisar sua evolução histórica e como o sistema capitalista desempenhou um papel fundamental nesse processo. Para uma análise eficaz da organização do espaço urbano, é vital compreender as influências essenciais, que estão intrinsicamente ligadas às condições materiais da vida social, moldadas pelo capitalismo (LINS, 2020). Assim, é crucial encarar a cidade como um processo em constante evolução, em oposição a uma entidade estática e invariável. Ela espelha as dinâmicas intrínsecas à maneira como a riqueza é produzida na sociedade, perpetuamente se transformando ao longo do tempo. Essa realidade se torna evidente ao examinar o capitalismo em suas diferentes fases. Portanto, é pertinente refletir sobre a estrutura do sistema capitalista e as transformações que ele provoca no ambiente urbano ao longo desse processo. Isso começa com a análise das guildas de artesãos e, em seguida, avança para a manufatura como uma forma primordial de organização e produção impulsionada pelo 22 capital. Para uma distinção adequada entre essas duas atividades mencionadas, continuaremos com algumas considerações sobre as guildas e, em seguida, sobre a manufatura. O comércio e o avanço das cidades com a adoção da moeda ofereceram aos artesãos a chance de abandonar a agricultura e se dedicar inteiramente ao seu ofício. Não era mais indispensável dispor de um investimento significativo de capital para exercer seu trabalho na área urbana. Em suas próprias residências, em salas ou quartos, tanto artesãos quanto artesãs podiam produzir seus produtos (LINS, 2020). A motivação por trás da produção desses bens não era o lucro em um mercado global e altamente estruturado. Para o artesão, bastava ter alguns clientes que fizessem encomendas, e, desse modo, ele atendia principalmente às pessoas da sua própria cidade de residência. Poderia contar com um ou dois assistentes, mas sua produção se destinava apenas a um mercado limitado e local. Isso representava a pequena indústria medieval, onde o mestre artesão criava o produto do início ao fim e também cuidava da venda. As mercadorias eram produzidas por artesãos experientes que eram proprietários tanto da matéria-prima quanto das ferramentas necessárias para fabricar os produtos, e eles vendiam os produtos acabados. Nesse cenário, o mestre supervisionava todo o processo de produção dos bens e também se encarregava de comercializá-los nas ruas da cidade.Nessas oficinas, os artesãos começaram a estabelecer suas próprias corporações, agrupando-se em organizações dedicadas exclusivamente a um ofício específico, formando assim as corporações de artesãos. Nesse contexto, a relação entre o mestre artesão e seus assistentes ou aprendizes não era caracterizada por uma subordinação rígida, como na típica relação entre capital e trabalho, pois a distância social entre o patrão e o empregado não era significativa, e ambos poderiam ser membros da mesma corporação (LINS, 2020). Eles não se viam em posições opostas e não competiam por interesses conflitantes. Havia uma certa igualdade entre essas duas classes, embora fosse necessário um longo período de aprendizado prático para que um assistente se tornasse um artesão qualificado. A relação entre o mestre e o aprendiz assemelhava- se à relação entre pai e filho, uma vez que a oficina era praticamente uma extensão do lar do artesão. Consequentemente, a produção artesanal na cidade era regulada pelas corporações de ofício, que funcionavam como uma espécie de associação de 23 mestres artesãos. Em troca de moradia e ensinamentos, o artesão colaborava com o mestre em sua oficina. Todas essas corporações eram governadas por seus estatutos, que inicialmente tinham o objetivo de fomentar um senso de fraternidade e não de competição entre os membros. No entanto, as corporações também trabalhavam para manter um controle exclusivo sobre cada tipo de artesanato, pois a visão predominante era preservar a alta qualidade do trabalho entre os associados. Os valores medievais de honra e ética influenciavam a maneira como esses mestres cuidavam de sua reputação perante os habitantes da cidade. Isso ia ao ponto de que as transações realizadas pelos artesãos eram estritamente justas, visando beneficiar ambas as partes envolvidas na troca. Tanto o vendedor quanto o comprador não buscavam obter vantagem nas transações comerciais, uma vez que os produtos fabricados eram vendidos a preços que refletiam apenas os custos, sem acréscimos ou descontos de valor (LINS, 2020). Nesse período, as cidades, ainda sob a administração feudal, não seguiam um padrão predefinido. Não havia divisões claras de terrenos ou um planejamento urbano bem organizado. Os bairros urbanos eram ocupados à medida que os moradores chegavam ao espaço urbano. Elementos naturais da paisagem, como montanhas, encostas e rios, exerciam uma forte influência no traçado das cidades. As cidades eram caracterizadas por ruas sinuosas, traçado irregular e uma aparência geral de descontinuidade. Essa forma de organização urbana estava relacionada com o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas da época, que trabalhavam com recursos pouco transformados pela atividade humana. Até o advento das corporações de ofício, as cidades mantinham sua natureza comunal, adaptando-se organicamente às dinâmicas da vida social (LINS, 2020). Muitos outros aspectos sociais tiveram que evoluir para que essa revolução se concretizasse completamente. No domínio das ideias, houve uma mudança fundamental na cosmovisão, passando-se de uma perspectiva teocêntrica para uma visão que colocava a humanidade no centro, em vez do divino. Movimentos como o Iluminismo e reformas religiosas testemunham essa transformação. Essas novas ideias, combinadas com os novos métodos de geração de riqueza e a agitação nas cidades, deram à burguesia o poder necessário para conquistar a hegemonia. 24 Como resultado, os burgueses puderam liderar uma série de revoluções na Europa, como a Revolução Gloriosa de 1688-1689 na Inglaterra e a revolução burguesa mais emblemática em 1789 na França. Essas mudanças representaram uma verdadeira revolução social, que começou quando os comerciantes e negociantes assumiram papéis de destaque na economia da época e, assim, conseguiram unir forças para desafiar diretamente a ordem feudal, estabelecendo uma influência política e cultural predominante na sociedade (LINS, 2020). Com o declínio do Estado absolutista, emerge o Estado burguês, que, por sua vez, reestrutura seus elementos essenciais, como o exército, a polícia e a burocracia, para servir à nova forma de produção de riqueza. Dessa maneira, o capitalismo organiza toda a superestrutura para favorecer seu pleno desenvolvimento, com a generalização da produção de mercadorias como a atividade econômica central. Assim, o capitalismo se fortalece e se prepara para a etapa subsequente que marcará sua maturação: a Revolução Industrial. A partir desse período, o capitalismo se estabelece como o principal modo de produção de riqueza, passando por uma nova fase de expansão e, mais uma vez, provocando transformações significativas nas cidades. A relação entre a cidade e o capitalismo durante os processos de industrialização e urbanização desencadeou mudanças profundas na sociedade. Essa interação impulsionou o crescimento e a expansão das cidades, à medida que o capitalismo se tornou o modo predominante de produção de riqueza. A industrialização acelerou a urbanização, resultando em um aumento significativo na população urbana, à medida que as pessoas migravam do campo para as cidades em busca de oportunidades de emprego nas fábricas e indústrias emergentes. Além disso, o capitalismo moldou a paisagem urbana, promovendo o desenvolvimento de infraestruturas, transporte público e a criação de bairros específicos para diferentes classes sociais. No entanto, esse processo também trouxe desafios, incluindo problemas de habitação, poluição e desigualdade social, que ainda são questões significativas em muitas cidades modernas. 25 3.1 Territorialização e segregação nas grandes metrópoles Território é comumente concebido, em várias análises e abordagens, como um espaço delimitado por fronteiras, nem sempre visíveis, que se estabelece por meio da expressão e imposição do poder. Explorar as questões relacionadas ao território significa explorar uma série de processos sociais que envolvem classe social, raça, aspectos étnico-culturais, faixas etárias e outras formas de estratificação social, que inevitavelmente resultam em segregação (PESCAROLO, 2017). O processo de territorialização e segregação nas grandes metrópoles é um fenômeno complexo que abrange diversas dinâmicas sociais, econômicas e culturais. A territorialização refere-se à ocupação e apropriação de espaços urbanos por diferentes grupos sociais. Em contrapartida, a segregação envolve a divisão desses grupos em áreas geográficas distintas, muitas vezes com base em critérios como classe social, raça, etnia ou nível de renda. Nas grandes metrópoles, esses processos são frequentemente evidentes, resultando na formação de bairros ou áreas urbanas específicas associadas a determinados estratos sociais. Isso pode levar à criação de zonas de exclusão, onde as oportunidades de acesso a serviços, educação, emprego e qualidade de vida são desiguais. A segregação também pode se manifestar na falta de investimentos em infraestrutura e serviços públicos em áreas marginalizadas, perpetuando assim as desigualdades socioeconômicas (PESCAROLO, 2017). As causas da territorialização e segregação nas grandes metrópoles são variadas e incluem fatores históricos, políticos e econômicos, bem como preconceitos e discriminação. Para abordar esse desafio, é fundamental implementar políticas públicas que promovam a inclusão social, reduzam as disparidades socioeconômicas e garantam o acesso equitativo a recursos e oportunidades em áreas urbanas. Além disso, o planejamento urbano e o desenvolvimento sustentável desempenham um papel crucial na mitigação da segregação e na promoção de cidades mais inclusivas e equitativas. A gentrificação oferece valiosas perspectivas para entender os mecanismos atuais de exclusão social. O estudo dos processos de gentrificação representaum ponto central de discussão na pesquisa sociológica, uma vez que é um fenômeno essencial na reconfiguração metropolitana contemporânea (PESCAROLO, 2017). 26 A subsequente expulsão da população local muitas vezes ocorre sem a devida consideração do Poder Público em relação ao destino dessas pessoas. Em algumas situações, o Estado cede às pressões do setor privado, priorizando intensamente o capital em detrimento dos indivíduos que, devido ao processo de revitalização local, são deslocados de suas moradias. Normalmente, as áreas anteriormente ocupadas por comunidades de menor poder aquisitivo experimentam uma desvalorização progressiva dos imóveis, sendo estigmatizadas como locais associados à pobreza, marginalização e prostituição. A atualidade desse fenômeno está intrinsecamente relacionada com o discurso contemporâneo de desenvolvimento amplamente promovido pelo Poder Público, muitas vezes focado em interesses financeiros predominantes. Outra justificativa para os notórios processos de revitalização de áreas previamente negligenciadas pelo governo está ligada aos elevados níveis de perigo associados a esses territórios. A suposição subjacente é que ao restaurar a antiga imagem glamorosa dessas regiões, automaticamente se removerá a "marginalidade" que historicamente as caracteriza. Com as transformações nos espaços urbanos decorrentes do avanço do capitalismo financeiro, observa-se uma realidade de precarização das cidades no que diz respeito às condições de saúde, saneamento básico e mobilidade urbana para as comunidades periféricas no Brasil. Uma clara disparidade se estabelece entre os bairros destinados à moradia da classe burguesa e as áreas onde as comunidades marginalizadas residem. Entre as diferentes classes sociais, surge um profundo abismo em termos das condições mínimas de infraestrutura urbana necessárias para uma vida digna (LINS, 2020). O ritmo frenético das metrópoles também está deixando uma marca nas condições de saúde mental dos trabalhadores. As cidades capitalistas contemporâneas funcionam ininterruptamente, com serviços de informação e conectividade estendendo o dia para as horas noturnas, prejudicando o descanso dos habitantes urbanos. A utilização de tecnologias digitais, como computadores, smartphones e tablets, afeta a química do corpo, visto que as luzes emitidas por esses dispositivos interferem no sono e na regulação de hormônios fundamentais para a saúde física e mental. Com o passar do tempo, a exposição constante às telas desses aparelhos 27 também prejudica a visão dos trabalhadores. Além disso, os turnos de trabalho noturnos e na madrugada contribuem para esse processo de deterioração da saúde. Além dos transtornos de depressão e ansiedade, o estresse tem vindo a ter um impacto significativo na vida dos residentes das cidades brasileiras. O estresse associado ao uso do transporte público urbano tem afetado consideravelmente a saúde dos trabalhadores (LINS, 2020). As extensas esperas, a inadequação do sistema de transporte público para atender às necessidades da população, as longas distâncias percorridas entre as áreas de trabalho no centro e as residências nas periferias, bem como a ocorrência de violência em meios de transporte públicos e nas vias de trânsito, contribuem para níveis elevados de estresse nas camadas mais desfavorecidas da sociedade. Grande parte das pesquisas sobre transtornos mentais no ambiente urbano sugere que o risco de desenvolvimento dessas condições é mais elevado nas áreas mais economicamente desfavorecidas. A depressão ocupa a posição de segunda principal razão para o afastamento de trabalhadores de seus empregos, com a perspectiva de se tornar a principal causa na próxima década. Isso sinaliza claramente a existência de um fenômeno de adoecimento coletivo dos trabalhadores nas cidades capitalistas, uma vez que os transtornos mentais tendem a ser mais prevalentes em um ambiente urbano (LINS, 2020). A reprodução e a preservação da vida em ambientes de extrema pobreza, como as favelas, também contribuem para o aumento da prevalência de transtornos de ansiedade e depressão ao longo da vida. A falta de segurança, a violência e a escassez de recursos são elementos que exercem influência sobre a ocorrência de problemas de saúde mental. Além disso, a exposição a ambientes de trabalho insalubres, baixos salários, crescente exploração da força de trabalho, ênfase em metas e comissões, empregos temporários e constante insegurança no emprego também representam fatores que podem desencadear distúrbios e angústias psicológicas. Para combater a territorialização e segregação nas grandes metrópoles, é crucial adotar uma abordagem abrangente. Primeiramente, políticas de planejamento urbano integrado devem ser priorizadas, visando à criação de bairros que misturem diferentes grupos sociais e econômicos, promovendo a diversidade e reduzindo a 28 segregação geográfica. Além disso, é fundamental investir em infraestrutura básica, como transporte público eficiente e acessível, saneamento, saúde e educação, em áreas historicamente negligenciadas. Isso garante que todos os residentes tenham acesso a serviços essenciais, independentemente de sua localização. Em segundo lugar, políticas de habitação acessível desempenham um papel central. Programas que visam à construção de moradias de baixo custo em diversas partes da cidade podem ajudar a reduzir a segregação residencial, permitindo que pessoas de diferentes níveis de renda vivam em áreas variadas. Paralelamente, é fundamental combater a discriminação em todos os níveis, implementando leis e políticas que proíbam a discriminação em habitação, emprego e educação, bem como promovendo a conscientização sobre questões de preconceito e estereótipos (LINS, 2020). Por fim, o envolvimento comunitário e a participação ativa dos residentes na tomada de decisões sobre o desenvolvimento urbano são essenciais. Ouvir as necessidades e aspirações das comunidades locais e incorporá-las no planejamento urbano ajuda a garantir que as soluções sejam adaptadas às realidades específicas de cada bairro. Isso pode ser alcançado por meio de conselhos de bairro, reuniões públicas e outras formas de engajamento cidadão, fortalecendo a voz das comunidades na construção de cidades mais inclusivas e equitativas. 4 AS CIDADES NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA A crise capitalista, que teve início entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970, desencadeou uma intensificação da ação do capital e do Estado contra a classe trabalhadora, bem como contra as estruturas que prevaleciam na era do fordismo. Esse período marcou uma fase na história do capitalismo em que se verificou uma acentuada destruição das forças produtivas, do meio ambiente e, de maneira ainda mais acentuada, da força de trabalho humana (SILVA, 2018). Foi durante a era de acumulação fordista que se difundiram os modelos de desenvolvimento inspirados no pensamento keynesiano em grande parte da América Latina entre as décadas de 1930 e 1970-1980, quando o Estado desempenhou um papel central no desenvolvimento econômico e na criação de sistemas de seguridade social. 29 A resposta do sistema capitalista a essa crise implica uma reconfiguração dos modelos de desenvolvimento e das relações de poder que os sustentam. Nesse contexto, os sistemas de proteção social em diferentes países passam por mudanças substanciais em termos de seus princípios orientadores, implementação e abrangência. Essas transformações estão intimamente ligadas às demandas de classe que são impostas ao Estado na atual fase de acumulação do capital, com a predominância do capital financeiro. A acumulação de riqueza e a legitimação dessas mudanças estão intrinsecamente ligadas à correlação de forças resultante da evolução da sociedade. Sob a supremaciada ideologia neoliberal, observa-se uma tendência significativa na reformulação das políticas de proteção social na região. Tais mudanças se orientam para uma perspectiva residual e liberal, tanto em nações que anteriormente haviam estabelecido sistemas centralizados com ambições de universalidade, como em países que possuíam sistemas de proteção social subdesenvolvidos ou inexistentes. Elementos-chave dessas reformas e novos modelos, implementados desde os anos 1980 e, especialmente, a partir dos anos 1990, incluem a focalização das despesas, a descentralização e desconcentração da gestão e administração dos programas sociais, a ausência de uma abordagem setorial nas políticas sociais, a promoção de redes mínimas de assistência à pobreza como uma alternativa e a expansão da comercialização de certas funções sociais (SILVA, 2018). Independentemente das nuances nas experiências nacionais, os sistemas de proteção social, que costumavam ser centralizados, segmentados, com aspirações de universalidade e gerenciados pelo Estado, moldados sob as formas de substituição de importações, estão sendo desestruturados e reformados por modelos de políticas sociais descentralizados, abrangentes, focados e com uma ampla participação da iniciativa privada. Esses modelos com inclinação liberal fundamentam-se na crença de que o mercado, impulsionado pelo crescimento econômico, desempenhará um papel essencial na integração social. Eles representam uma das respostas político- econômicas aos desafios enfrentados pela classe trabalhadora, que sofreu múltiplos impactos decorrentes de processos de reestruturação produtiva, repressão política e crises econômicas no último quarto do século XX. 30 A observação desses processos mais amplos na evolução da sociedade e na lógica da acumulação nos permite compreender as características socioeconômicas atuais e o significado dos programas de transferência de renda que são analisados dentro desse contexto (SILVA, 2018). Entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000, uma combinação de crescentes movimentos sociais e os efeitos de uma nova fase recessiva e de crise econômica gerou um amplo questionamento do neoliberalismo na América Latina. Nesse cenário, políticas influenciadas pelo Consenso de Washington foram contestadas, resultando em uma agenda de intervenção que desafiou os pilares centrais do neoliberalismo e promoveu a adoção de novos princípios organizadores. Estes incluem uma ênfase na esfera pública, a redução do caráter mercantil de bens e serviços sociais e a busca por garantias universais baseadas em direitos historicamente conquistados, entre outros. Embora essas demandas não tenham levado a uma ruptura completa com o modelo de regulação econômica e social que predomina na fase atual do desenvolvimento capitalista, elas servem como um desafio à hegemonia neoliberal. No início do século XXI, essas reivindicações interpelam a supremacia do neoliberalismo, refletindo questionamentos à submissão generalizada ao final do século XX. A América Latina emerge como um terreno de resistência e busca por alternativas ao capitalismo neoliberal em escala global. A crise que se tornou uma característica distintiva da fase capitalista desde o último quartel do século XX evidencia claramente uma tendência crescente para a concentração da propriedade e da riqueza nas mãos de poucos, juntamente com o surgimento de grandes massas de população consideradas excedentes pelo sistema capitalista. Essa dinâmica aprofunda os processos de empobrecimento e proletarização de diversos segmentos sociais, resultando na violação sistemática das garantias sociais conquistadas (SILVA, 2018). Esses processos têm como consequência a descidadanização, manifestada notadamente na crise das instituições políticas existentes. Como apontado, essas tendências tornaram a questão das garantias materiais dos direitos sociais uma preocupação central nas últimas décadas, dando origem a uma série de reivindicações nessa área. 31 A primeira década do século XXI testemunhou esforços significativos para restabelecer a legitimidade da ordem burguesa, marcando o início de um novo ciclo de crescimento econômico na região. Esse período refletiu tanto aspectos comuns como a diversidade de experiências, influenciadas pelas peculiaridades históricas e pelas dinâmicas de poder que foram moldadas em cada nação. Tais experiências continuaram sob a influência de processos estruturais essenciais que persistiram desde a era do neoliberalismo e que permanecem na base da organização da sociedade. Ao analisar essas continuidades e mudanças, torna-se aparente os limites estruturais inerentes aos modelos propostos e o teto que eles representam para o progresso das conquistas populares, bem como as oportunidades que podem surgir. Em 2013, a taxa de pobreza na América Latina atingiu 28,1% da população, com 11,7% vivendo em situação de indigência ou pobreza extrema. Isso equivale a um total de 165 milhões de pessoas em situação de pobreza, dos quais 69 milhões estão em condições de extrema carência (dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, 2013). Notavelmente, esses números revelam que a taxa de pobreza permaneceu praticamente inalterada em comparação com os níveis observados em 2012, que também foram de 28,1% (SILVA, 2018). Da mesma forma, a pobreza extrema não apresentou mudanças estatisticamente significativas, registrando apenas um leve aumento de 0,4 pontos percentuais em relação a 2012, quando estava em 11,3% (dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, 2012). Apesar das variações mínimas nas taxas, as novas estimativas apontam que a pobreza extrema atingiu valores semelhantes aos de 2011, representando um retrocesso em relação ao progresso alcançado na primeira década do século XXI. Essa tendência não é algo novo, uma vez que dados de edições anteriores do Panorama Social da CEPAL já apontavam para padrões semelhantes. De fato, as estimativas regionais indicam que a tendência de redução nas taxas de pobreza e pobreza extrema diminuiu, e até mesmo reverteu nos primeiros anos da segunda década do século XXI. Esse cenário, aliado ao crescimento populacional, resultou em um maior número de pessoas vivendo em situação de pobreza extrema em 2013 (dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, 2014). 32 Em comparação com os dados de 2002, um ano que marcou o valor mais alto dos últimos 15 anos, a redução acumulada da taxa de pobreza foi de quase 16 pontos percentuais. Dessa diminuição, 10,4 pontos percentuais foram alcançados até 2008, representando uma média anual de declínio de 1,7%. No período entre 2008 e 2013, o ritmo de redução foi mais moderado, com uma queda acumulada de 5,4 pontos percentuais, equivalente a uma média anual de 1,0%. A partir de 2011, observou-se uma estabilização da taxa de pobreza regional, que permaneceu em torno de 28% (SILVA, 2018). Quando se trata da população em situação de pobreza extrema, observou-se uma tendência semelhante. Houve uma redução de 6,4 pontos percentuais entre 2002 e 2008, seguida por uma diminuição de 1,2 ponto percentual a partir de 2008 até 2013. De maneira comparável à taxa de pobreza, a parcela de pessoas vivendo em situação de pobreza extrema permaneceu na faixa de 11% a 12% durante o último período de três anos. O crescimento econômico sustentado nos primeiros anos da década de 2000 não conseguiu desfazer os traços estruturais dominantes de concentração de renda e riqueza. Este crescimento manteve um padrão distributivo regressivo e a economia permaneceu fortemente influenciada por interesses estrangeiros. Neste contexto de mudanças estruturais e conflitos sociais, emergiram, se expandiram e se consolidaram os Programas de Transferência de Renda Condicionada (PTRC). Esses programassurgiram como estratégias políticas para lidar com a crescente falta de proteção inerente às mudanças no mercado de trabalho e nas redes históricas de seguridade social que haviam sido construídas com base no modelo de seguro contributivo. Além disso, eles refletem uma expansão da assistência não contributiva, entregando apoio de forma personalizada e estabelecendo níveis mínimos de subsistência para trabalhadores informais, precários, desempregados e pessoas em situação de pobreza (SILVA, 2018). Nas últimas três décadas do século XX, testemunhamos mudanças profundas na dinâmica do capitalismo, com repercussões significativas na natureza do trabalho. De maneira geral, a resposta à crise do capitalismo no início dos anos 1970 foi liderada pela hegemonia do capital financeiro, marcando uma fase de desintegração no sistema capitalista. 33 As transformações estruturais resultantes dessa nova etapa de financeirização abrangem uma ampla gama de dimensões nas relações sociais, afetando tanto as empresas industriais e de serviços quanto o trabalho nas instituições públicas estatais. Elas influenciam as novas formas de recrutamento e gestão de força de trabalho, o papel do Estado e a distribuição dos recursos públicos, bem como as dinâmicas de interação individual e coletiva. Além disso, essas mudanças têm impacto nas políticas sociais, na natureza, extensão e formato dos programas e serviços sociais públicos. Nessa nova fase do capitalismo tardio, observamos uma consolidação na substituição do trabalho humano pelo trabalho automatizado. A transformação mais significativa que afeta a classe trabalhadora é a expulsão de um grande contingente de trabalhadores de seus locais de trabalho tradicionais, resultando em um crescente excedente populacional além das necessidades médias de exploração do capital. Isso representa uma mudança estrutural que regressivamente redefine a situação sócio- histórica, dando origem e consolidando novas formas de dominação e subordinação. Essas estão intrinsecamente ligadas ao aumento da flexibilização e da precarização do trabalho, que se tornam elementos predominantes nessa nova fase do capitalismo (SILVA, 2018). As estratégias adotadas pelas empresas para aprofundar a flexibilização das relações de trabalho e do mercado de trabalho consistem, principalmente, na implementação de formas "atípicas" de contratação de mão de obra, como o trabalho temporário, empregos de meio período e a subcontratação de trabalho em domicílio, entre outras práticas similares. Além da inerente precarização do trabalho assalariado, resultante do contexto institucional dos Estados keynesianos, tem havido um aumento significativo, nas últimas décadas, de uma grande parcela de trabalhadores que estão privados da capacidade de vender sua força de trabalho de acordo com as normas institucionais estabelecidas para o trabalho decente. Na Argentina, os dados mostram que a taxa de desemprego aberto foi de 2,4% em 1990 e aumentou gradualmente, atingindo um pico de 17,9% em 2002, seguido por 19,7% em 2002-2003. A partir desse ponto, a taxa começou a declinar, chegando a 7,1% em 2013 e atingindo 7,3% em 2014. No Brasil, os números seguem um padrão muito semelhante. Em 1990, a taxa de desemprego aberto representou 4,3% da População Economicamente Ativa (PEA), 34 aumentando para 10,4% em 2002 e 11,1% em 2003. Posteriormente, houve uma queda, chegando a 7,1% em 2013 e subindo para 7,5% em 2014 (SILVA, 2018). No Uruguai, a trajetória é comparável, com uma taxa de desemprego inicial de 8,5% da PEA em 1990, que cresceu durante os anos 1990 até atingir 16,9% em 2002. Em seguida, houve uma tendência de queda, chegando a 6,3% em 2011, antes de apresentar um leve aumento para 6,5% em 2013 e 6,8% em 2014. No Brasil, no início da década de 1990, ocorreu uma ruptura no modelo de industrialização por substituição de importações, desencadeada por um amplo processo de reestruturação produtiva. Isso se deu por meio das políticas econômicas neoliberais implementadas durante o governo de Collor (1990-1992). As empresas adotaram estratégias de redução de custos em resposta ao repentino aumento da competição internacional. Isso levou à necessidade de buscar novas formas de flexibilização nas regras de contratação de mão de obra, mesmo que a flexibilidade já fosse uma característica estrutural do mercado de trabalho brasileiro (SILVA, 2018). Essas tendências foram fortalecidas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que implementou uma política econômica anti-inflacionária, representada pelo Plano Real. Essa política priorizou a especulação financeira em detrimento do investimento produtivo. Tudo isso ocorreu em um contexto de aumento do déficit público, reformas no aparato estatal, redução dos gastos governamentais, especialmente na área social, privatizações e a adoção de medidas que flexibilizaram a legislação trabalhista. Todas essas ações foram parte das estratégias governamentais para melhorar a competitividade e integrar a economia nacional na nova ordem globalizada do mundo. Ao longo da história, muitos intelectuais expressaram críticas em relação a produções que são rotuladas como "pensamento social". Estas críticas tendem a enfatizar a importância da explicação epistemológica positivista em disciplinas como sociologia, filosofia, política e antropologia, em contraste com o julgamento de que intelectuais que se envolveram em diversas questões sociais podem ser considerados de maneira limitada ou inferiores (PINTO, 2020). No entanto, essas críticas frequentemente subestimam o compromisso e a relevância das reflexões produzidas por intelectuais que exploraram uma variedade de problemas sociais. Isso inclui análises críticas dos processos imperialistas e 35 expansionistas dos países do Norte, questões de genocídio e etnocídio de povos indígenas, bem como investigações sobre política, literatura, conhecimento, educação e muitos outros aspectos relacionados aos contextos históricos da América Latina. Nessa perspectiva, desafiar a ordem dominante das categorias teóricas- científicas ocidentais implica questionar suas premissas fundamentais. Isso também envolve repensar a produção intelectual na América Latina, afastando-se das simplificações inerentes a essas classificações, que geralmente servem apenas para disputas pelo domínio da narrativa sobre a realidade (PINTO, 2020). Aqueles que promoveram uma mudança na pesquisa dos problemas sociais, através da institucionalização das Ciências Sociais, consideraram politicamente apropriado questionar abordagens interpretativas e explicativas que resultaram na exclusão de certos intelectuais do campo das teorias sociais. A apreensão, reflexão e explicação das complexas questões enfrentadas pelos povos e nações da América Latina encontraram expressão por meio da literatura, que se estabeleceu como uma das formas mais proeminentes de pensamento crítico e autêntico na região. Através de obras literárias, graças à sua capacidade de abranger diversas temporalidades, idiomas e perspectivas regionais e globais, intelectuais e escritores latino-americanos puderam analisar questões sociais, denunciar as injustiças perpetradas por ditadores, tiranos e detentores do poder político e econômico, além de abordar as complexidades que envolvem os povos indígenas e afrodescendentes, bem como a influência de suas culturas em diversos aspectos da vida social. No contexto das políticas neoliberais, houve um aumento significativo da pressão para a implementação de programas sociais direcionados às populações em situação de pobreza extrema e vulnerabilidade. Essas políticas eram frequentemente justificadas com a alegação de que o déficit público era a principal causa da crise econômica. Em resposta a essa situação, surgiu a necessidade de buscar o equilíbrio fiscal
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