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Uma Breve História Da Linguística-Heronides Moura

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Prévia do material em texto

Coleção de Linguística
Coordenadores
Gabriel de Ávila Othero – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Sérgio de Moura Menuzzi – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Conselho consultivo
Alina Villalva – Universidade de Lisboa
Carlos Alberto Faraco – Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Dante Lucchesi – Universidade Federal da Bahia (Ua)
Leonel Figueiredo Alencar – Universidade Federal do Ceará (UFC)
Letícia M. Sicuro Correa – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Luciani Ester Tenani – Universidade Estadual de São Paulo (Unesp)
Maria Cristina Figueiredo Silva – Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Roberta Pires de Oliveira – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Roberto Gomes Camacho – Universidade Estadual de São Paulo (Unesp)
Valdir Flores – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
CDD-410
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Moura, Heronides
Uma breve história da linguística / Heronides Moura, Morgana Cambrussi
– Petrópolis, RJ : Vozes, 2018. – (Coleção de Linguística)
Bibliogra�a
ISBN 978-85-326-5776-3 – Edição digital
1. Língua e linguagem 2. Linguística
I. Cambrussi, Morgana. II. Título. III. Série.
17-09546
Índices para catálogo sistemático:
1. Linguística 410
© 2018, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689-900 Petrópolis, RJ
www.vozes.com.br
Brasil
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por
qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou
arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora.
CONSELHO EDITORIAL
Diretor
Gilberto Gonçalves Garcia
Editores
Aline dos Santos Carneiro
Edrian Josué Pasini
Marilac Loraine Oleniki
Welder Lancieri Marchini
Conselheiros
Francisco Morás
Ludovico Garmus
Teobaldo Heidemann
Volney J. Berkenbrock
Secretário executivo
João Batista Kreuch
______________________________
Editoração: Maria da Conceição B. de Sousa
Diagramação: Sheilandre Desenv. Grá�co
Revisão grá�ca: Nilton Braz da Rocha / Nivaldo S. Menezes
Capa: WM design
Revisão técnica: Gabriel de Ávila Othero
ISBN 978-85-326-5776-3 – Edição digital
http://www.vozes.com.br/
Editado conforme o novo acordo ortográ�co.
Apresentação da coleção
Esta publicação é parte da Coleção de Linguística da Vozes, retomada
pela editora em 2014, num esforço de dar continuidade à coleção
coordenada, até a década de 1980, pelas professoras Yonne Leite, Miriam
Lemle e Marta Coelho. Naquele período, a coleção teve um papel
importante no estabelecimento de�nitivo da Linguística como área de
pesquisa regular no Brasil e como disciplina fundamental da formação
universitária em áreas como as Letras, a Filoso�a, a Psicologia e a
Antropologia. Para isso, a coleção não se limitou à publicação de autores
fundamentais para o desenvolvimento da Linguística, como Chomsky,
Langacker e Halliday, ou de linguistas brasileiros já então reconhecidos,
como Mattoso Câmara; buscou também veicular obras de estudiosos
brasileiros que então surgiam como lideranças intelectuais e que, depois, se
tornaram referências para disciplina no Brasil – como Anthony Naro,
Eunice Pontes e Mário Perini. Dessa forma, a Coleção de Linguística da
Vozes participou ativamente da história da Linguística brasileira, tendo
ajudado a formar as gerações de linguistas que ampliaram a disciplina nos
anos de 1980 e de 1990 – alguns dos quais ainda hoje atuam intensamente
na vida acadêmica nacional.
Com a retomada da Coleção de Linguística pela Vozes, a editora quer
voltar a participar decisivamente das novas etapas de desenvolvimento da
disciplina no Brasil. Agora, trata-se de oferecer um veículo de disseminação
da informação e do debate em um novo ambiente: a Linguística é hoje uma
disciplina estabelecida nas universidades brasileiras; é também um dos
setores de pós-graduação que mais crescem no Brasil; �nalmente, o próprio
quadro geral das universidades e da pesquisa brasileira atingiu uma
dimensão muito superior à que se testemunhava nos anos de 1970 a 1990.
Dentro desse quadro, a Coleção de Linguística da Vozes tem novas missões
a cumprir:
• em primeiro lugar, é preciso oferecer aos cursos de graduação em
Letras, Filoso�a, Psicologia e áreas a�ns material renovador, que permita
aos alunos integrarem-se ao atual patamar de conhecimento da área de
Linguística;
• em segundo lugar, é preciso continuar com a tarefa de colocar à
disposição do público de língua portuguesa obras decisivas do
desenvolvimento, passado e recente, da Linguística;
• �nalmente, é preciso oferecer ao setor de pós-graduação em
Linguística e ao novo e amplo conjunto de pesquisadores que nele atua
um veículo adequado à disseminação de suas contribuições: um veículo
sintonizado, de um lado, com o que se produz na área de Linguística no
Brasil; e, de outro, que identi�que, nessa produção, aquelas
contribuições cuja relevância exija uma disseminação e atinja um
público mais amplo, para além da comunidade dos especialistas e dos
pesquisadores de pós-graduação.
Em suma, com esta Coleção de Linguística, esperamos publicar títulos
relevantes, cuja qualidade venha a contribuir de modo decisivo não apenas
para a formação de novas gerações de linguistas brasileiros, mas também
para o progresso geral dos estudos das Humanidades neste início de século
XXI.
Gabriel de Ávila Othero
Sérgio de Moura Menuzzi
Organizadores
Sumário
Introdução
Capítulo 1 A dualidade da linguagem
1.1 O enigma da linguagem
1.2 As línguas e o naturalismo
1.3 Padrões linguísticos, padrões sociais
1.4 Não é dualidade, é ambivalência
Capítulo 2 Origem e diversidade das línguas
2.1 A teoria platônica da linguagem: o Crátilo
2.2 Rousseau: as paixões criaram a linguagem
2.3 Famílias de línguas
2.3.1 Movimento humano e movimento linguístico
2.3.2 A genética das línguas
2.3.3 O legado dos comparativistas
2.4 A natureza dos signos: as visões de Saussure e Bakhtin
2.4.1 Saussure e os signos
2.4.2 Bakhtin e os signos
Capítulo 3 A relação entre linguagem, pensamento e cultura
3.1 A língua como estrutura lógica: a gramática de Port-Royal
3.2 Tradição gramatical: construção da língua como representação do pensamento
3.3 A hipótese de Sapir-Whorf
3.4 Linguagem, mente e cérebro: uma arquitetura biológica para a linguagem
3.5 Linguagem, experiência e cultura: fatores imbricados que nos guiam para categorizar o
mundo
3.5.1 Transitividade, intransitividade e as coisas acontecendo ao nosso redor
3.5.2 O corpo como referência para a constituição de sistemas numéricos
3.5.3 Tudo o que existe ocupa lugar no espaço: o campo semântico espacial e a noção de posse
3.5.4 Mas que hipótese de investigação é essa?
Capítulo 4 Haveria uma “linguagem” dos animais?
4.1 O design dos sistemas naturais de comunicação
4.2 Ponto de vista e criação do signi�cado
Capítulo 5 O signi�cado visto como um elemento externo à linguagem: Saussure e Chomsky
Capítulo 6 Uma breve história da sinonímia
6.1 Sinonímia em Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.)
6.2 Sinonímia em Guilherme de Ockham (1285-1347)
6.3 Sinonímia em Saussure
6.4 A sinonímia no século XX
Conclusão – Da história para o presente
Referências
Introdução
Atravessar a história dos estudos linguísticos, do modo como ela se
apresenta nesta obra, signi�ca percorrer um caminho de intersecções,
composto por alguns roteiros não tão claros, mas também por trechos do
percurso bastante nítidos. As intersecções se produzem entre a Linguística e
as demais áreas do conhecimento cujas investigações recobrem aspectos
relacionados à linguagem, à sua constituição ou ao seu funcionamento.
Alguns exemplos dessas conexões encontramos nas relações que
apresentamos ao leitor entre Linguística e Filoso�a, Sociologia,
Antropologia, História, Psicologia e Neurologia.
Os roteiros não tão claros se localizam em um passado maisremoto, que
antecede até mesmo a ideia de Linguística enquanto ciência. Trazer à tona as
primeiras re�exões sobre a linguagem, aquelas que se registram por meio de
textos clássicos, é uma atividade arriscada, já que demanda acima de tudo
interpretações produzidas por pessoas que falam desses textos através das
lentes da atualidade. A posição que ocupamos produz um discurso sobre
esses textos conduzido pelo inventário das investigações linguísticas
desenvolvidas até aqui e as releituras emergem sobretudo quando
pretensiosamente julgamos que essas lentes não produzem distorções, mas
ajustes.
O trecho mais nítido do percurso é aquele que está mais próximo de nós
e que compreende a história dos estudos linguísticos após o advento da
ciência da linguagem (a Linguística) no início do século XX. Nessa parte do
caminho, a de�nição do objeto de investigação da Linguística e dos modos
de espreitar esse objeto são abertamente declarados, fartamente
documentados e muito e�cientemente discutidos por diferentes autores que
nos dão suporte. Nosso objetivo, então, foi abordar temáticas centrais, como
a origem e a diversidade da linguagem, a relação entre linguagem e
pensamento e a natureza biológica da linguagem, com foco nos estudos em
torno dessas temáticas e não nos modelos teóricos que sustentam esses
estudos.
Neste livro não propomos reconstruir a história dos estudos linguísticos
por meio da abordagem direta das correntes teóricas que a produziram.
Embora essa abordagem seja bastante efetiva e bem colocada por uma linha
temporal capaz de nos sugerir com segurança a sucessão dos estágios de
desenvolvimento da Linguística enquanto ciência, muitos bons manuais de
linguística já dão conta de apresentá-la ao leitor. A proposta, diferentemente,
é a de discutir temas, textos clássicos, problemas de investigação que
também podem amarrar as pontas dessa história e que têm papel relevante
em sua constituição, mas raramente são apresentados em detalhe.
Com esse objetivo de�nido, apresentamos, no primeiro capítulo, uma
discussão inicial que pretende caracterizar a linguagem por sua pluralidade
de facetas, de propriedades constitutivas, todas legítimas e de�nidoras das
posições teóricas assumidas diante do objeto de estudo linguagem. No
capítulo 2, estão em foco importantes discussões sobre a origem das línguas
e sua diversidade, desde posições �losó�cas até estudos de natureza mais
objetiva, como a reconstrução linguística proposta pelos comparativistas. O
terceiro capítulo foi dedicado a apresentar ao leitor outras visões acerca da
linguagem humana, guiadas por diferentes pressupostos: lógicos, biológicos,
mentalistas ou culturais. Já no quarto capítulo, abordamos a relação entre a
linguagem humana e outros sistemas naturais de comunicação, discutindo
como se pode pensar (e como se pensa) a “linguagem” animal em uma
perspectiva cientí�ca. No quinto capítulo, discutimos a visão de dois
grandes nomes da linguística moderna, Saussure e Chomsky, em relação à
signi�cação, mais especi�camente, à denotação. No sexto e último capítulo,
foi abordada a trajetória das de�nições de sinonímia pelo viés da cultura
ocidental, desde a visão aristotélica até o século XX.
Com isso, desejamos que o percurso de leitura escolhido aqui seja, além
de um dos caminhos possíveis para compreendermos o desenvolvimento do
pensamento linguístico, uma forma de retribuirmos aos muitos
interlocutores que tivemos ao longo de nossa formação, com os quais
compartilhamos as ideias seminais deste livro.
Os autores
Capítulo 1
A dualidade da linguagem
Os seres humanos sempre tentaram entender como as línguas surgiram,
por que há tantas línguas diferentes no mundo e como essas línguas se
constituem. Com uma viagem no tempo, é possível examinar como
diferentes autores, de vários períodos históricos, responderam a essas
questões intrigantes. Nem todos os estudiosos que se envolveram com o
problema da origem das línguas são linguistas, pois a questão interessou
também a muitos �lósofos, príncipes e clérigos. Mesmo tendo atraído a
atenção e os esforços de tantos intelectuais, é necessário fazermos a ressalva
de que o problema foi abordado muitas vezes de forma especulativa,
puramente hipotética.
Muitas dessas especulações nos parecem hoje pouco pertinentes, mas
revelam muito sobre a cultura e a época em que foram feitas. Se analisarmos
a questão sob um ponto de vista estritamente da ciência linguística
moderna, a discussão histórica perde muito de seu valor. Para um biólogo, o
estudo da biologia do século XVI pode ser desprovido de interesse, pois o
que se fazia nessa época tem pouca ligação com o que se faz hoje na
Biologia. Mas a linguagem humana é um objeto de pesquisa diferente do
objeto de pesquisa da biologia: as línguas humanas são tanto objetos
naturais, no sentido de que têm uma realidade objetiva no mundo natural,
quanto são objetos culturais, e, como tais, estritamente conectados ao
ambiente cultural em que existem.
Compare, por exemplo, com outros objetos de pesquisa: a circulação
sanguínea e as religiões. A circulação sanguínea é um objeto de pesquisa
estritamente natural, que não depende de fatores culturais para sua
compreensão. Assim, para quem investiga a circulação sanguínea hoje,
haverá pouco interesse em estudar a forma como os gregos da Antiguidade
descreviam o fenômeno. O interesse, na verdade, pode ser o de curiosidade
histórica. Agora compare com o estudo das diferentes religiões. As práticas
religiosas (muitas delas milenares) envolvem intrinsecamente realidades
imaginadas, crenças e fatores culturais, portanto, saber como as civilizações
antigas descreviam, analisavam e viviam a religiosidade na sua época é
interessante para quem estuda religião hoje, pois não se pode explicar a
origem e o desenvolvimento das diferentes religiões sem relacioná-las a uma
cultura ou a um ideal de cultura.
Já as línguas humanas apresentam uma ambiguidade em seu estatuto
cientí�co, porque são tanto um objeto natural (como a circulação
sanguínea) quanto um objeto social (como as religiões). Se quisermos
mostrar quais estruturas gramaticais são comuns a todas as línguas
humanas, ou como são formados os sons da linguagem, precisaremos
descrever objetivamente o maior número possível de línguas e chegar a uma
hipótese que possa ser comprovada empiricamente, como nas ciências
naturais.
Mas esse tipo de questão empírica não esgota o campo de investigação
sobre as línguas: é relevante de�nir e estudar qual a importância social da
linguagem, como são encaradas suas mudanças e suas variações pelos
falantes de uma sociedade, quais os efeitos que a diversidade linguística
provoca em uma dada comunidade, qual a relação que uma sociedade
percebe entre linguagem e pensamento etc. Todas essas são questões sociais,
que envolvem não apenas objetos naturais, mas a percepção que os seres
humanos têm desses fatos e como eles são construídos e modi�cados.
A linguagem é um assunto substancial e instigante para as comunidades
humanas, como a religião, e as pessoas costumam ter muitas ideias sobre o
seu uso e o seu valor. Também nesse sentido o estudo de autores antigos
pode ser muito interessante e revelador: eles nos mostram como suas
sociedades viam a linguagem, sua origem e seu uso, e podemos comparar
essas crenças com as nossas, o que é uma forma muito útil de perceber quem
somos e como pensamos. Vamos nos dedicar a esse estudo no capítulo 2.
Outro aspecto interessante envolvido no que consideramos a face social
da linguagem é a percepção e o exame de como emergem, por meio da
estrutura ou de expressões das línguas e do próprio texto, as crenças das
diferentes épocas sobre muitos dos aspectos sociais, políticos, religiosos,
en�m, humanos. Conforme veremos adiante, quando olhamos em detalhe,
podemos nos surpreender com, por exemplo, a in�uência de questões de
gênero socialmente instituídas nos usos de expressões linguísticas (gênero
gramatical) oumesmo em orientações institucionalizadas acerca de usos
considerados igualitários ou pelo menos não discriminatórios. Também
pode causar estranheza a interferência de ordem religiosa no ensino de
padrões linguísticos bastante especí�cos e gramaticais, como o paradigma
pronominal, a exemplo do ensino, no Brasil, de “vós” como segunda pessoa
do plural com foco na leitura e na compreensão do texto religioso. São todos
exemplos pontuais de como pode surgir uma tensão entre duas ou mais
facetas da linguagem, perpassadas pela história, pelo contexto e pelo próprio
material linguístico.
1.1 O ENIGMA DA LINGUAGEM
Para reforçar a dualidade da linguagem que apresentamos aqui,
propomos começar nossa discussão abordando o permanente interesse
histórico sobre como as línguas são adquiridas: Essa aquisição é
determinada por fatores sociais ou por fatores biológicos? Nos primeiros
anos do século XIX, pro�ssionais dedicados às notas de material linguístico,
os diaristas, já se ocupavam do registro da fala de crianças, com o objetivo
de documentar o período em que a linguagem emerge nos indivíduos
(CASTRO; FIGUEIRA, 2006), para sistematizar essa fala e compreender
seus modos de estruturação e de desenvolvimento. Ainda hoje a Linguística
se ocupa desse enigma, mas o modo como teoriza sobre ele tem sofrido
muitas transformações ao longo do desenvolvimento dos estudos
linguísticos. Antes de apresentarmos essas diferenças, entretanto, vamos
retomar um acontecimento estarrecedor que envolveu o debate em torno da
aquisição de linguagem.
No ano de 1828, na Alemanha, teve lugar um dos episódios mais
controversos sobre aquisição de linguagem e o desenvolvimento do
pensamento. Um jovem surgiu em praça pública, na cidade de Nuremberg,
com aproximadamente 16 anos de idade, após supostamente ter sido isolado
do convívio humano logo ao nascer. O jovem chamava-se Kaspar Hauser[1] e
muitas especulações sobre sua história de vida têm sido levantadas desde
então[2].
Uma das hipóteses mais inusitadas é a de que Kaspar era descendente de
Napoleão Bonaparte e intrigas políticas teriam levado ao sumiço e cativeiro
da criança. Testes recentes de DNA (realizados pela Universidade de
Munique) desmentem essa origem nobre (WEICHHOLD et al., 1998), mas
permanece a questão que nos interessa: Se Kaspar foi de fato reintroduzido
na sociedade após longo tempo de separação, iniciado em seu nascimento,
como era seu comportamento linguístico? Kaspar desenvolveu a linguagem
de modo regular?
Documentos apresentados por Masson (1996), sobretudo trechos de
diários médicos e de relatórios de tutores responsáveis por instruir Kaspar e
prepará-lo para as práticas sociais, relatam que sua linguagem era tão
rudimentar quanto outras funções motoras básicas: o menino-selvagem,
como era conhecido, mal conseguia andar. Entretanto, algumas formas
linguísticas eram balbuciadas e, supostamente, uma sentença era sempre
repetida “Quero ser cavaleiro como meu pai”. Durante o cativeiro, em uma
construção isolada na mata, Kaspar fora alimentado por um homem, de
quem recebera a pouca instrução linguística que tinha para fornecer quando
fora encontrado pela população de Nuremberg.
Uma vez em exposição contínua à língua, conforme aponta Masson
(1996), os relatos de seus tutores (que acabaram cumprindo a função de
diaristas) dão conta de que Kaspar teria apresentado um rápido
desenvolvimento da linguagem e, em paralelo, do pensamento lógico-
dedutivo. A entrada nos diferentes sistemas culturais, contudo, parece ter
sido mais conturbada e Kaspar teria sido assassinado em uma emboscada,
poucos anos após ser descoberto. O surpreendente modo como essa
personagem teria superado as de�ciências de linguagem em tão pouco
tempo (cinco anos de convívio social e instrução formal contínua) pode ser
um argumento em favor de outra hipótese sobre seu surgimento, a de que
Kaspar Hauser era, em verdade, um farsante que se fez passar por pessoa
abandonada e tirou proveito do interesse social que se criou em torno dele.
Como muito pouco se sabe a respeito de sua origem, podemos
considerar as evidências que há como provas de que Kaspar foi de fato um
indivíduo privado do convívio social durante sua infância e parte da
juventude. Isso nos permite reavivar o interessante paradoxo em torno da
capacidade biológica de Kaspar para o desenvolvimento da linguagem, pois
essa faculdade teria sido inicialmente estimulada por uma pobreza de
estímulos levada ao extremo. Na infância, sua exposição a dados linguísticos
era restrita demais, nada sistemática. Muito embora isso não o tenha
impossibilitado de desenvolver capacidades linguísticas tão logo tenha sido
introduzido em uma comunidade de fala, precisou receber instrução formal
acerca da linguagem (o que não acontece em processos naturais e
corriqueiros de aquisição de linguagem pela criança) e não chegou ao ponto
de desenvolver uma capacidade linguística regular – que se pode veri�car,
por exemplo, na fala de uma criança de quatro anos, sem que ela tenha
recebido instrução linguística formal ou não espontânea.
Somos imediatamente levados ao contraste posto entre fatores
biológicos versus fatores sociais determinantes dos componentes que
responderiam pela aquisição de linguagem. Esse contraste remonta a
diferentes posições em torno da questão. Desde a defesa de que essa
aquisição é essencialmente biológica, até a defesa de que é essencialmente
social, chegamos hoje ao meio-termo[3] de que (i) há uma cooperação de
fatores de ambas as naturezas para a aquisição e para o desenvolvimento da
linguagem e de que (ii) nem a condição biológica nem a puramente social
são su�cientes para que falantes adquiram sua(s) língua(s) materna(s).
Entre esses três posicionamentos em torno da questão, muitos linguistas
têm se movimentado e assumido frentes de pesquisa que podem estar mais
para uma ponta do debate ou para outra ou mesmo podem re�etir uma
compreensão menos discreta quanto à natureza da aquisição de linguagem,
considerando-se o franco desenvolvimento das pesquisas nessa área e a
complexidade do fenômeno em investigação. Do mesmo modo que, salvo
condições patológicas, o aparato biológico próprio da espécie nos
acompanha desde o nascimento, também somos seres inerentemente
sociais, ou seja, ambas as condições estão presentes no processo regular de
aquisição da linguagem pela criança, o que cria limitações para a
investigação de uma condição sem a interferência da outra.
Na linguística moderna, a defesa do caráter biológico da aquisição de
linguagem é atribuída aos estudos de natureza gerativista, os quais
apresentam uma série de argumentos bastante contundentes para essa
posição e um sólido programa de investigação. Esse pensamento consiste em
tomar a linguagem por um viés mentalista e operar a descrição do
conhecimento linguístico (em oposição ao seu uso) de modo internalista,
considerando-se a linguagem humana um objeto biológico por natureza
(CHOMSKY, 2000). Evidências em favor dessa perspectiva normalmente
são reunidas em torno da premissa de que a criança já nasce com um
conjunto de conhecimentos linguísticos internalizados e latentes. Por esse
motivo, apesar de exposta a informações linguísticas que não seguem um
padrão voltado à infância ou ao desenvolvimento da linguagem pela criança,
a exposição à fala do adulto basta para que, em um curto tempo, já nos três
primeiros anos de vida, uma pessoa tenha condições de produzir um
conjunto de dados variado e complexo, que inclui processos gramaticais
bastante so�sticados, como a formação de sentenças. Além disso, a criança é
capaz de produzir frases que nunca ouviu antes, empregando seu potencial
de desenvolvimento da linguagem e sua criatividade linguística, e
compreender sentenças cuja referência, por exemplo, não está disponível de
forma visual e imediata no contexto de fala: Mamãe foi trabalhar; ela logo
volta.
A principal indagação chomskyana acerca do conhecimento linguístico
estápautada justamente nessa premissa (identi�cada como pobreza de
estímulo), de que os dados linguísticos a que o falante está exposto em seus
primeiros anos de vida são pouco sistemáticos, desestruturados e
insu�cientes quando comparados à sistematicidade, à estruturação e à
riqueza do conhecimento linguístico revelado ainda durante o período
identi�cado como de aquisição de linguagem. Nesse cenário, surge a questão
de pesquisa que perpassa a investigação gerativista: Diante de evidências tão
parcas e pouco estruturadas, como podemos saber tanto? Esse argumento,
como lembram Cezario e Martelotta (2008, p. 208), é vinculado ao “[...]
chamado ‘problema de Platão’, que assim se desdobra: ‘Como o ser humano
pode saber tanto diante de evidências tão passageiras, enganosas e
fragmentárias?’”
Torna-se saliente, então, a competência linguística de que dispõem os
falantes e que pode explicar, por exemplo, a incrível regularidade dos
processos de aquisição de linguagem por crianças falantes de línguas
distintas e em contextos de aquisição diversi�cados em termos afetivos,
econômicos, culturais, geográ�cos. Para exempli�car, podemos ilustrar essa
questão a partir da simpli�cação de encontros consonantais, um processo
fonológico bastante regular em fase de aquisição de linguagem (OTHERO,
2005). Porque representariam uma di�culdade maior de produção,
considerando-se o caráter físico da fala, encontros consonantais tenderiam a
sofrer redução, como em “Minha blusa branca” → “Minha busa [‘buzɐ]
banca [‘bãkɐ]”. Casos como esse são comuns e não representam erros
fonológicos assistemáticos ou desvios de fala imprevisíveis, mas re�etem um
comportamento linguístico esperado para a criança em fase de aquisição,
pois são processos fonológicos “[...] inatos, naturais e universais. Isso quer
dizer que todos os seres humanos ditos ‘normais’, em algum momento
durante os primeiros anos de sua aquisição da linguagem, enfrentaram tais
di�culdades e limitações” (OTHERO, 2005, p. 4, grifos no original).
De acordo com a visão inatista da linguagem, portanto, nascemos
preparados para falar; temos essa capacidade porque somos providos de um
aparato próprio da espécie, que con�gura uma gramática universal
(CHOMSKY, 1986). Nesses termos, salvo casos de patologias, qualquer
indivíduo é dotado de condições biológicas para a aquisição de pelo menos
uma língua. Contudo, para isso, precisa de estímulo externo, pois esse
conhecimento internalizado é acionado e parametrizado a partir de regras
que vão se con�gurando em um domínio implícito, mas “alimentado” por
dados linguísticos fornecidos de modo explícito e espontâneo quando a
criança é exposta às situações de uso da(s) língua(s) em aquisição, nos
primeiros anos de vida.
Em outra frente de pesquisa (não inatista), a in�uência de investigações
de base interacionista ou construtivista – que partiram de Piaget, mas
tiveram desdobramentos em muitas teorias distintas – aponta para a direção
do componente social ou ambiental como edi�cação de todos os sistemas
simbólicos, entre eles a linguagem. A condição primária passa a ser a relação
entre a criança e a língua enquanto objeto, considerando-se os contextos de
uso, a pluralidade de sistemas em interação e a própria complexidade dessa
interação. No bojo dessas pesquisas, o chamado cognitivismo construtivista
caracteriza-se por assumir o desenvolvimento da linguagem como um
processo de maturação que ocorre exclusivamente por motivações externas
ao indivíduo e, ainda, como desdobramento da construção da inteligência e
do sistema simbólico resultantes da interação entre o ambiente e o
indivíduo. Já o interacionismo social considera que o desenvolvimento da
linguagem é o resultado de processos comunicativos em que a criança e o
adulto produzem trocas linguísticas por meio da interação social. Essa
interação daria origem ao conhecimento linguístico, que passaria a ser
internalizado pela criança (CEZARIO; MARTELOTTA, 2008).
Nessa perspectiva interacionista, revela-se um pressuposto contrário ao
gerativista, pois está anulada a ideia de que a experiência linguística da
criança, em termos de exposição aos dados, seja assistemática e pobre em
alguma medida. Pelo contrário, a relevância dada aos dados é tanta que o
foco de explicação dos processos de aquisição de linguagem centra-se na
in�uência que a fala do outro, do adulto e de seus pares, pode ter na
atividade linguística da criança (CASTRO; FIGUEIRA, 2006).
Como vemos, em termos teóricos, trata-se de uma inversão no ponto de
vista de observação. A aquisição de linguagem é avaliada e descrita a partir
de uma conjuntura externa e que considera a linguagem um sistema
simbólico social, não biológico, constituído por meio de estruturas
cognitivas e da própria interação, produzidas de acordo com o
desenvolvimento da criança e com estágios especí�cos de maturação. A
aquisição da linguagem, portanto, é dependente da interação entre a criança
e seu objeto de conhecimento, no caso, a(s) língua(s) materna(s), mediada
por condições ambientais ou por condições sociais.
Na atualidade, diferentemente, a ciência cognitiva chega ao que
denominamos cognitivismo social e acomoda essas diferentes tensões sobre
a natureza dual da linguagem, biológica e sociocultural, dividida entre esses
dois domínios em todas as suas dimensões, incluindo-se a aquisição.
Estamos fazendo referência à teoria de aquisição baseada no uso
(TOMASELLO, 1999), segundo a qual a cognição social, advinda de um
processo de adaptação biológica (e não de deriva genética ou de seleção
natural da espécie), responde pelo desenvolvimento da linguagem humana.
Quadro 1 Cognição social: Adaptação biológica ou seleção natural?
Se a
cognição
social fosse
originada
por
seleção
natural
(ou deriva
genética)...
→
Seu processo de desenvolvimento seria bastante lento e gradual, ao ponto de
tornar inviável a hipótese de que a espécie humana tivesse tido tempo suficiente
para desenvolver e aprimorar a cognição até o nível de complexidade que se
apresenta hoje em seus diferentes sistemas, um deles é a linguagem.
Mas se a
cognição
social é
produto de
adaptação
biológica
da
espécie...
→
Um evento resultante do processo de seleção natural produziu uma mudança na
espécie (a adaptação); a partir desse ponto, uma guinada no desenvolvimento
permitiu o surgimento de uma cognição social complexa, que distanciou os
primatas humanos das demais espécies. Esse salto evolutivo pode conter a
resposta não apenas para o desenvolvimento tão elaborado da cognição (e da
linguagem), como para as razões por que outras espécies não lograram a mesma
transformação.
Fonte: Os autores.
Essa cognição social estaria atrelada a uma capacidade de os indivíduos
da espécie compartilharem intencionalidade e reconhecerem-se como seres
com atividades e objetivos comuns, o que resultaria na construção de uma
experiência social também compartilhada. Essa experiência social tem como
gatilhos básicos a capacidade de cooperação e a intencionalidade não
instintiva (simbólica), as quais são exclusividade da espécie humana e
conduzem à transmissão cultural das diversas práticas sociais, entre elas a
prática de linguagem.
Em outros termos, assume-se que somos seres sociais, culturalmente
de�nidos, graças à formação de uma cognição social. A aquisição de
linguagem é resultado de uma aprendizagem cultural que desencadeia
muitas outras aprendizagens paralelas, mas todas com o mesmo �m: atender
a nosso conjunto de intencionalidades. A atividade de linguagem seria,
portanto, uma atividade sociocultural, guiada pela cognição humana,
repassada, transformada criativamente e aprimorada através de gerações, em
um constante ciclo guiado por ações colaborativas que levam ao
desenvolvimento cultural da linguagem (TOMASELLO, 1999).
Segundo essa perspectiva, um indivíduo da espécie, ao nascer, não parte
da estaca zero da aquisição de linguagem, mas de um inventário
sociocultural construído,do qual se apropria (em diferentes estágios de
desenvolvimento) e pelo qual se inscreve em práticas de linguagem
colaborativas e age sobre elas (TOMASELLO, 1999, 2000). A interação pela
linguagem e os contextos de comunicação são primordiais, portanto, para
que sejam �xadas as representações cognitivas relativas aos usos de
linguagem. Essa posição desencadeia outra análise bastante interessante da
linguagem, pois permite que ela seja tomada como elemento estruturador
das ações sociais simbólicas e colaborativas da espécie e, ao mesmo tempo,
como elemento resultante dessa colaboração cultural.
Neste ponto, podemos voltar a Kaspar Hauser e a sua suposta história de
aquisição. A condição do jovem, ao ser reintroduzido na sociedade, permite
que se pense de forma plural a sua relação com a linguagem. Evidencia, por
exemplo, sua ausência de patologia e a capacidade de acionar sua capacidade
linguística de forma gradual, tão logo seja estimulado a fazê-lo, pela
exposição contínua aos dados linguísticos. Também evidencia o tipo de
relação que tem com a própria língua, objeto externo e estranho para ele, e
toda sua complexidade simbólica. Por �m, ao entrar em um sistema coletivo
de interação dialógica e de comunicação, percebendo-se de uma cognição
social que possibilitava o compartilhamento de certas intenções, Kaspar
toma parte dessa aprendizagem colaborativa, apropria-se dela e a converte
em conhecimento acerca de certos produtos culturais, entre eles a
linguagem. Uma vez mais somos levados pela dualidade da linguagem, seja
pelas evidências em favor de nossa condição biológica para desenvolvê-la,
seja pelas evidências em favor de nossa condição sociocultural.
1.2 AS LÍNGUAS E O NATURALISMO
A história de surgimento das línguas é uma questão tão instigante para o
homem que nos dá uma ideia clara do papel central da linguagem em uma
re�exão sobre a natureza humana – natureza social e biológica. A linguística
histórica revela, inclusive, uma intersecção tão íntima nesse aspecto que até
mesmo as metáforas de descrição cientí�ca se orientaram por ela. Foi assim
que chegamos aos conceitos de família de línguas, genealogia das línguas,
língua-mãe (línguas-irmãs, primas e assim por diante), parentesco entre
línguas, que são referências metafóricas sobretudo porque a história das
línguas é explicada por “[...] um complexo processo de diferenciação
correlacionada com a história social e cultural das sociedades humanas”
(FARACO, 2005, p. 207) e também com sua história genética.
Quadro 2 Uma metáfora genealógica para as línguas
Genealogia
e
parentesco
das línguas
→
Descrever a genealogia das línguas é um trabalho de linguística histórica cujo foco é
o estabelecimento das relações que as línguas guardam entre si, que podem ser de
parentesco ou não. O resultado desse estudo, guiado por um princípio de
ancestralidade linguística, além de esclarecer que relações há entre diferentes
línguas, fornece uma ordenação cronológica entre elas.
Família de
línguas →
São grupos de línguas com grande proximidade histórica e constitutiva, com
relações compartilhadas, como origem comum. Quando certas línguas são
agrupadas em uma família linguística significa que entre elas já se provou haver
uma ancestralidade comum. Por essa razão, kaingáng e xokléng são línguas
indígenas brasileiras agrupadas em uma mesma família linguística, a família Jê, que,
por sua vez, deriva do tronco Macro-Jê (RODRIGUES, 1986).
Língua-
mãe →
(e outras
relações
dessa
ordem)
Uma vez que a genealogia de uma família de línguas é conhecida, podemos
identificar quais línguas deram origem a outras. O latim vulgar é a língua-mãe do
português e do francês, por ser a ancestral direta dessas línguas, que são irmãs.
Fonte: Os autores.
Os estudos comparativistas – que se iniciaram séculos antes, mas
dominaram o cenário de investigação linguística do século XIX (ROBINS,
1967) – foram os responsáveis por perpetuar certos modos de referência que
passaram a ser comuns na descrição do tipo de relação entre as línguas e
eram in�uenciados de modo explícito por princípios naturalistas (ou
atualmente chamados darwinistas) de deriva genética e de seleção natural.
Essa mesma lógica também veio a ser empregada para se descrever os
contextos em que línguas surgem ou deixam de existir, as chamadas línguas
mortas, ou seja, línguas que, após longo processo de mudança contínua e
gradual, deixaram de ser faladas. A ideia de que “línguas morrem”, na
verdade, pode ser bem controversa, já que os processos regulares de
mudança linguística vão acarretando transformações ao longo do tempo. É
preciso destacar que essa mudança não é repentina, mas conduzida por um
lento processo histórico, como lembra Faraco (2005, p. 47):
[...] nunca é possível dizer que num determinado momento o latim, por
exemplo, deixou repentinamente de ser falado e foi integralmente
substituído pelo português: as mudanças foram lenta, gradual e
continuamente ocorrendo e resultaram, ao cabo de vários séculos, numa
forma de falar que, identi�cada com o Estado que se formou no ocidente da
Península Ibérica, terminou por receber o nome de português.
Segundo a teoria de seleção natural, quando uma espécie apresenta
características em variação (ou concorrência), as quais podem ser mais ou
menos especi�cadas pela reprodução e hereditariamente selecionadas, a
tendência é que permaneçam as características que mais contribuem para a
sobrevivência da espécie, ou seja, que ocorra uma seleção natural de
propriedades favoráveis à adaptação e à sobrevivência. Assim como no caso
da mudança linguística, a seleção natural é lenta e gradual e pode resultar
em transformações bastante signi�cativas. Voltando ao cenário linguístico,
as línguas apresentam variação inerente, formas concorrem por certos
períodos até que uma mudança ocorra: ou as formas assumem funções
distintas na língua ou uma dessas formas em concorrência deixará de ser
empregada pelos falantes. Mas essa dinâmica interna das línguas não é tudo.
Com o desenvolvimento das civilizações, certamente a capacidade de
adaptação política, econômica e cultural (dos povos falantes) das línguas
tornou-se conditio sine qua non para sua manutenção (ou sobrevivência).
Ainda que a analogia biológica possa ser esclarecedora (se empregada
como metáfora cientí�ca, não como fenômeno de mesma ordem), nem
todos concordam com a teoria de que a linguística tenha sido in�uenciada
pela visão darwiniana. Weedwood (2002, p. 93-94) aponta que há certa
antecipação dos estudos de linguistas comparativistas aos estudos
darwinistas. Ainda assim, consideramos que a in�uência nos modos
comparativistas de descrição e de análise não eram oriundos
especi�camente das teorias esboçadas por Darwin, mas de uma tendência
difundida entre os naturalistas do início do século XIX, de oposição ao
criacionismo – o que incidiu também sobre a negação do mito de Babel e da
ideia de monogênese linguística segundo a qual o hebreu teria sido a língua
original. De qualquer modo, em função da base materialista que a sustentou
em seu surgimento, consideramos que a ciência linguística “[...] não pôde
livrar-se da poderosa in�uência das ciências naturais, que �zeram enormes
progressos naquele período, nem da in�uência do darwinismo” (VIDOS,
1996, p. 38), que alavancou muitas áreas do conhecimento.
Para atestar essa in�uência, vamos iniciar nossa análise pela leitura da
descrição apresentada por Robins (1967) em relação ao trabalho de
relacionamento histórico entre línguas de J.J. Scaliger[4]. O objetivo deste
autor, além de construir um conhecimento sobre as diferentes línguas
orientado pela comparação entre seus aspectos fonológicos e léxicos
(descrever para comparar e compreender), também era o de desvendar o
mistério acerca de qual seria a língua mais antiga, a primeira de todas.
Scaliger distinguiu onze famílias de línguas, quatro maiores e sete menores,
que cobriam todo o continente europeu. Para ele,as línguas reunidas numa
mesma família eram geneticamente relacionadas, porém entre as diversas
famílias não seria possível estabelecer nenhum parentesco. A classi�cação
genealógica de Scaliger coincide de modo geral com a dos modernos,
exceto por reunir o que hoje se separa como subfamílias de maiores, entre
elas a indo-europeia e a ugrofínica.
Para Scaliger, as línguas incluídas num mesmo grupo provinham de uma
mesma protolíngua, como acontece com os idiomas românicos em relação
ao latim. As línguas que serviam de ponto de partida para outras, chamou-
as Muttersprachen ou matrices linguae (línguas matrizes) (ROBINS, 1967, p.
134, negritos acrescidos).
Os termos destacados no texto de Robins dão conta do que chamamos
metáfora evolucionista para a explicação da origem das línguas. Desde a
ideia de relação genética até o estabelecimento de uma genealogia, vemos o
domínio dos graus de parentesco orientando as relações postas entre os
grupos de línguas. Muito provavelmente, esses grupos apresentavam
aspectos comuns em termos de léxico ou de fonologia em virtude da
proximidade geográ�ca dos povos falantes dessas línguas e de fenômenos
regulares de disseminação das línguas, a exemplo das grandes migrações
históricas do Homo sapiens, do contato fronteiriço multilíngue, que acarreta
processos como os de empréstimos linguísticos, das guerras, dos contextos
de dominação e de atividades econômicas, como o comércio[5].
O cruzamento de características linguísticas similares entre as línguas
descritas pelos comparativistas funcionava como estratégia para o
estabelecimento de ligações entre elas. Essas ligações denunciavam relações
mais próximas ou mais distantes e davam margem para que se pensasse, por
exemplo, a questão dos estágios de desenvolvimento das línguas e possíveis
relações de anterioridade e de posterioridade entre elas. Como vemos, a
metáfora evolucionista cumpria e ainda cumpre uma função central na
descrição clara dessas relações. Por ela era possível especi�car as relações
temporais, com o estabelecimento de diferentes gerações (língua-mãe e
línguas-�lhas), e também expressar a discretude observada entre certos
grupos de línguas (entre as diversas famílias não seria possível estabelecer
parentesco).
Muitas vezes, veri�camos in�uências marcadas de forma estrutural nos
processos de descrição linguística. A�rma-se que Schleicher, um dos mais
expressivos gramáticos comparativistas do século XIX, propôs uma
explicação genealógica para demonstrar as relações atestadas por
correlações linguísticas entre uma língua extinta e os grupos de línguas
observáveis, em que “[...] voltou-se justamente para o estudo da natureza e
forma desse hipotético idioma matriz e para o estudo das relações entre ele e
os seus descendentes conhecidos” (ROBINS, 1967, p. 144, negrito
acrescido).
Esse idioma matriz reconstruído é o proto-indo-europeu e o modo
como Schleicher apresentou as descobertas de seus estudos acerca das
relações e das origens de línguas indo-europeias “[...] deve muito aos
métodos de classi�cação botânica por espécies [...]” (ROBINS, 1967, p. 144).
Mas claro que o método comparativo não consistia em uma cópia de
procedimentos botânicos, apesar de alguns comparativistas terem sido
fortemente in�uenciados pelas ciências naturais. O método comparativo de
estudo das línguas assumia que
[...] entre elementos de línguas aparentadas existem correspondências
sistemáticas (e não apenas aleatórias ou casuais) em termos de estrutura
gramatical, correspondências essas passíveis de serem estabelecidas por
meio de uma cuidadosa comparação. Com isso, podemos não só explicitar o
parentesco entre línguas (isto é, dizer se uma língua pertence ou não a uma
determinada família), como também determinar, por inferência,
características da língua ascendente comum de um certo conjunto de
línguas (FARACO, 2005, p. 134, negrito acrescido).
Além da metáfora de deriva genética das línguas, outra que teve grande
aceitação entre os estudos linguísticos foi a de seleção natural, como vimos.
Línguas surgem e desaparecem ao longo de toda a história da civilização.
Como nos referimos a isso? Podemos dizer que uma língua nasce de outra
(o que envolve a ideia de língua-mãe ou língua ascendente, conforme Faraco)
ou que, quando extinta, trata-se de uma língua morta, que exempli�camos
antes. O que veri�camos, então, é um processo regular de manutenção ou de
apagamento linguístico, que pode ser referido em termos de adaptação às
transformações mais especí�cas internas às próprias línguas ou mesmo às
transformações externas mais gerais, concernentes à história da humanidade
(algumas línguas indígenas tornaram-se línguas mortas porque seus falantes
foram dizimados, por exemplo) e, dessa capacidade de adaptação natural,
resultaria a possibilidade de manutenção social das línguas. Adaptar-se a
transformações mais gerais, para dar apenas um exemplo, inclui subsistir
aos processos de expansão territorial e de dominação de povos cuja
soberania passa pela hegemonia linguística.
Uma língua morta é aquela que, sem falantes nativos, por não ter mais
substância social su�ciente, deixa de ser empregada por comunidades de
fala até se tornar extinta. Em nosso contexto, o latim tem de ser o exemplo
imediato de língua nessa circunstância, mas duas situações precisam ser
distintamente pontuadas: (a) podemos dizer que o latim é uma língua morta
porque, concretizados os processos naturais de variação e de mudança
linguística, hoje temos apenas falantes de línguas identi�cadas como
sistemas linguísticos distintos do latim, mas dele derivados, e não restou
nenhum falante nativo de latim, tal como essa língua era conhecida pouco
antes de Cristo; (b) as transformações políticas e culturais, que identi�camos
como “transformações mais gerais” por que passam as línguas, não são
determinantes para que uma língua seja extinta, mas criam situações que
podem orientar, por exemplo, o curso das mudanças linguísticas, como
quando línguas antes distanciadas geogra�camente (o português europeu e
as línguas indígenas ameríndias) são postas em contato e essa circunstância
cria um novo contexto de variação e mudança (veri�cável hoje no português
brasileiro).
Segundo o ditado, os romanos tinham muita força, mas nenhum verniz.
Apoiados pela força, eles dominaram povos e impuseram o latim como
língua de dominação – e isso originou uma gama de novas circunstâncias de
contato linguístico. Com o passar do tempo, do latim vulgar, que esteve em
contato com línguas locais dos povos dominados, foram surgindo outras
línguas. Nesse berço, nasce o português arcaico (do qual se originou o
português moderno e, hoje, o português brasileiro) derivado da subfamília
itálica. Uma visão mais precisa dessa origem pode ser extraída da Figura 1,
de Ilari e Basso (2011), em que os autores marcam com o símbolo “ † ” as
línguas mortas (sem falantes nativos):
Figura 1 Origens do português
Fonte: Ilari e Basso (2011, p. 16).
Aquilo que apontamos aqui em nenhuma medida menospreza o método
comparativo, que será estudado mais detidamente no capítulo 2 – Origem e
diversidade das línguas. Pelo contrário, a relação com as ciências naturais
decorre de uma interferência legítima entre campos do saber e a linguística
histórica ainda se vale de procedimentos de descrição e de análise
inaugurados pelos comparativistas. Contudo, desejamos evidenciar como o
campo da biologia conseguiu se espraiar também sobre o discurso cientí�co
da linguística, deixando-se perceber nas estratégias e na metodologia de
descrição e de classi�cação dos objetos de estudo, as línguas naturais
observáveis (português brasileiro, kaingáng) e as hipotéticas (como o proto-
indo-europeu, língua-mãe reconstruída de que falamos antes). O ponto que
nos interessa é evidenciar a perspectiva tácita de se tomar as línguas de
forma orgânica, aplicando-se a elas conceitos e procedimentos tão íntimos
da teoria naturalista.
1.3 PADRÕESLINGUÍSTICOS, PADRÕES SOCIAIS
Além da abordagem evolucionista sobre grupos de línguas, também
estudos estritamente sociais permitem que se olhe para línguas especí�cas e
que se veja nelas, mais claramente nos padrões linguísticos, o espelho de
padrões sociais e de estruturas de poder. Para esclarecer o que temos em
mente, podemos pensar que certas acepções, que vão gradativamente se
apagando do signi�cado das palavras em função de seu uso através dos
tempos, quando recuperadas, causam espanto e nos fazem pensar sobre o
surgimento delas e sobre a sociedade em que elas foram originalmente
empregadas. É curioso perceber que esse espanto vem, ao mesmo tempo, de
uma surpresa linguística (semântica) e de uma surpresa histórica e social.
Pensemos, para ilustrar, na etimologia de família[6]. Um falante de
português na atualidade não recupera qualquer informação sobre a história
de derivação semântica da palavra família ao empregar o termo em seu dia a
dia. Isso é o que dá origem a boa parte da surpresa linguística quanto à
etimologia do termo. Ao signi�cado de família, atribuímos acepções
bastante positivas, ligadas à composição de células de convivência que se
constituem por graus de parentesco, relações de afetividade e sentimentos
amorosos. Entretanto, voltando séculos na história da língua, descobrimos
que o termo família, de origem latina, denotava o conjunto de posses de
alguém e era utilizado para a demarcação de propriedade de pessoas, como
escravos e parentes. Família deriva de famulus, que designava um escravo
doméstico. Em um modelo de sociedade patriarcal, em que a �gura do
homem detinha o status de “centralizador/possuidor” dos demais membros
da unidade familiar, não é difícil irmos do signi�cado de famulus ao de
família.
No entanto, os tempos mudaram e a concepção social de família
também mudou. Por essas razões, acepções antes vivas para o termo hoje
são rejeitadas por aqueles falantes que nem reconhecem o modelo patriarcal
como legítimo nem aceitam que se desvincule o termo família da ideia de
união afetiva de indivíduos (muito distinta da união escravocrata ou
serviçal). Nesse ponto chegamos à surpresa histórica e social que perpassa
um aspecto da história da língua: julgamos a sociedade em que o termo
surgiu a partir dos elementos ideológicos que aparecem na língua.
Tendemos a avaliar que, no seu contexto de surgimento, a acepção de
família revela uma sociedade que não se guiava por princípios igualitários,
como os de direito.
Entretanto, é arriscado julgarmos que estamos tão longe assim dessa
sociedade. Um debate muito atual no Brasil diz respeito ao chamado
Estatuto da Família[7], em que, a despeito do signi�cado socialmente
atribuído ao termo família, parlamentares sugeriram uma de�nição legal de
família que regressa à ideia patriarcal e, portanto, está mais para famulus que
para família – de�nição camu�ada sob o rótulo limitativo de “tradicional
família brasileira”, em que o termo tradicional é uma referência à
composição histórica e bíblica das células familiares. Claramente não se
pode legislar sobre o signi�cado de família enquanto item lexical da língua,
mas é possível legislar sobre a de�nição legal de família que uma sociedade
adota – o que tem efeitos não linguísticos, mas civis.
Questões como essa só vêm à tona quando nos debruçamos sobre a
história da língua e explicitamos os pontos em que é possível perceber
ideologias representadas por meio daquilo que é subjacente ao linguístico. A
menos que seja linguista, estudante de línguas clássicas (como latim) ou um
curioso sobre etimologias, o falante possui um conhecimento lexical que é
cego para a história da língua e para o percurso de derivação das palavras
(incluindo-se aí a derivação semântica). Também por isso há uma grande
diferença entre estudar a competência lexical dos falantes e estudar
etimologia, já que a história do inventário léxico de uma língua e o tipo de
conhecimento lexical que seus falantes possuem são coisas bem distintas.
Novamente a dualidade da linguagem se revela.
Uma análise similar pode ser feita a respeito de como estruturas sociais
se projetam sobre estruturas linguísticas especí�cas – o que recobre léxico e
gramática. Nos últimos anos, diversos estudos de base sociológica têm
levantado um debate em torno da chamada linguagem não sexista ou
linguagem inclusiva (para usar um termo que recobre outras questões além
das de gênero). No bojo dessas pesquisas, sustenta-se a tese de que, na
linguagem, revelam-se representações acerca do desequilíbrio de valoração
social entre homens e mulheres. Segundo esses estudos, décadas de
investigação apontaram que a linguagem “[...] nas sociedades ocidentais, por
ser um sistema simbólico profundamente arraigado em estruturas sociais
patriarcais, não só re�etia mas também enfatizava a supremacia masculina”
(CALDAS-COULTHARD, 2007, p. 233).
A supremacia estaria reforçada, por exemplo, no emprego da forma
masculina (categoria gramatical de gênero) como genérica em qualquer
contexto. Nessa perspectiva, usos como “todos os leitores compartilham essa
experiência satisfeitos” não são considerados genéricos legítimos porque
produziriam uma exclusão da parcela de mulheres leitoras (categoria social
de gênero), tendo em vista a seleção do masculino como estratégia de
referência generalizante. Uma ação empreendida a partir dessa posição,
portanto, foi assumir que, na relação da linguagem com as representações de
gênero cultural difundidas, “[...] palavras devem ser reapropriadas e novos
signi�cados propostos [...]” (CALDAS-COULTHARD, 2007, p. 232).
Entretanto, essa orientação incidiu não nas palavras, mas sobretudo na
categoria de gênero gramatical e na forma como ela passou a ser expressa
em falas públicas e em contextos mais formais de emprego da escrita,
principalmente por órgãos públicos de prestação de serviços à população.
Duas medidas foram adotadas como inclusivas: ou ocorre a duplicação
de gênero, para que não se faça segmentação sexista (todas as leitoras e todos
os leitores compartilham essa experiência satisfeitas e satisfeitos) ou se utiliza
uma expressão que, embora possua gênero gramatical marcado, não
produza segmentação por ser um genérico verdadeiro: “todas as pessoas
leitoras compartilham essa experiência satisfeitas”. O esforço para o falante
substituir um modo de referência por outro é algo que, claramente, desa�a-o
na tentativa de produzir usos linguísticos não excludentes. Isso ocasionou,
nas esferas públicas, o surgimento de diversos guias, como o publicado pelo
Ministério da Economia e do Emprego de Portugal (PORTUGAL, 2011),
Guia orientador para uma linguagem promotora da igualdade de género, e o
publicado no Brasil, pelo Estado do Rio Grande do Sul (2014), Manual para
o uso não sexista da linguagem.
Nesses guias é possível encontrar orientações que vão desde a instrução
prática sobre como usar a linguagem até discussões ideológicas sobre a
temática linguagem sexista e seus efeitos sociais. No cenário político
brasileiro, uma decisão da presidência da república (no ano de 2011)
colocou em evidência esse debate, ao ser o�cialmente adotado o termo
presidenta para referência à então Presidenta Dilma Rousseff, primeira
mulher eleita para o cargo no país. À época, gramáticos prescritivistas,
linguistas e muitos outros pro�ssionais (em especial os jornalistas) emitiram
suas opiniões de apoio ou de contraposição à medida.
Na prática, o que se veri�cou foi o cumprimento parcial dessa
determinação, quase um processo de variação linguística muito politizada e
até partidária, em que pessoas sensíveis à promoção de uma linguagem
inclusiva adotaram o termo presidenta, enquanto outras, por mais que
pudessem ser sensíveis à mesma questão, mantiveram-se no emprego do
termo presidente, deixando a especi�cação de gênero gramatical por conta
do artigo feminino (a presidente) e desvinculando o uso linguístico das
representações sociais de gênero.
Maistarde, essa posição presidencial teve outros desdobramentos legais
e hoje, por força de lei[8], a expedição de diplomas no Brasil deve designar a
pro�ssão e o grau obtido com a �exão de gênero relativa ao sexo da pessoa
diplomada – como licenciado ou licenciada em Letras, mestre ou mestra em
Linguística. Apesar do valor social dessa medida, ela é uma ação que acaba
por legislar sobre comportamentos linguísticos e tem efeitos bem claros,
como o surgimento de formas que nascem de motivações essencialmente
políticas (caso de presidenta) e não de motivações internas da língua
(morfológicas, fonológicas etc.).
Um último exemplo que apresentamos, ilustrando a relação entre
aspectos sociais e estrutura linguística, é o de como práticas religiosas
in�uenciam o estudo do paradigma pronominal do português. Comecemos
com a questão: Por que nossas crianças e jovens ainda estudam na escola o
vós como pronome pessoal do caso reto? Há alguns fatores que poderiam
responder a essa pergunta, como os que decorrem da prescrição gramatical
enquanto prática de ensino e da manutenção de vós nos manuais didáticos.
Mas aqui temos outro motivo em mente.
Não há nada na prática de linguagem que possa apontar para um
paradigma pronominal em que vós (seus pronomes e �exões equivalentes)
seja parte do português brasileiro. Entretanto, a in�uência das religiões
cristãs contribui para que se mantenha o padrão do texto bíblico, em que vós
e seus efeitos de concordância são frequentes, como limitador para os
processos de mudança no estudo das pessoas gramaticais, principalmente
em sistemas de ensino mais tradicionais. “Trata-se de maneira inequívoca de
um pronome arcaizante que se faz presente apenas nos textos bíblicos lidos
em templos religiosos” (LOPES, 2012, p. 117). O resultado disso é um
ensino de língua arti�cializado quanto ao estudo dos pronomes pessoais,
que não corresponde à realidade linguística e que não é capaz de absorver as
transformações pelas quais passou o paradigma pronominal do português
brasileiro nas últimas décadas.
Análises como as que apresentamos aqui só podem emergir quando
aspectos sociais são incorporados à investigação linguística. Os
desdobramentos da sociolinguística variacionista, alicerçada a partir dos
trabalhos de William Labov publicados principalmente em torno dos anos
de 1970, certamente estão na base de muitos estudos posteriores, e os
inspiraram a problematizar as relações entre língua e sociedade. De acordo
com essa perspectiva, os fatos linguísticos têm constituição social, caráter
variável, e isso tudo pode ser observado no uso espontâneo da língua, em
que estão presentes e em que são observáveis associações entre a estrutura
linguística e a estrutura social (LABOV, 2008 [1972])[9]. A assunção de que
as línguas são heterogeneamente compostas, de que fatores sociais têm
in�uência sobre elas, originando-se condicionantes sociais para os fatos da
língua e pressões sociais que acarretam mudanças linguísticas são revelações
que nos ajudam a construir uma compreensão mais nítida do que está por
trás de certas cenas de linguagem.
A re�exão que conduzimos nesta seção pode ser sumarizada em três
pontos. O vós é arcaico e não se pode mudar isso, mas a tradição religiosa
funciona como um agente social que pressiona e conserva a forma arcaica
nas situações de ensino de língua. A mudança semântica é constante e
guiada pelo uso, é uma parte da história da língua, ainda assim, podemos
retomar essa história a qualquer ponto e legislar sobre o signi�cado que se
pretende colocar em foco, ainda que ele seja apenas uma acepção histórica
do item lexical (caso de família, que discutimos) e não esteja mais presente
na comunidade de fala. E, �nalmente, a categoria de gênero gramatical e as
categorias sociais de gênero são coisas distintas; ainda assim, nada impede
que o elemento gramatical seja usado como instrumento de opressão ou de
enfrentamento à opressão.
1.4 NÃO É DUALIDADE, É AMBIVALÊNCIA
Antes, dissemos que as línguas humanas são caracterizadas por uma
ambiguidade em seu estatuto cientí�co, porque são tanto um objeto natural
quanto um objeto social. Com base na relação cumulativa e não opositiva
entre essas duas propriedades, discutimos alguns efeitos da dualidade entre
o componente natural e o componente social da linguagem, desde questões
de formulação do objeto que a ciência linguística isola para investigar (como
no caso da aquisição de linguagem: biológica e/ou social) até questões
relativas aos procedimentos de análise, como as metáforas de base
naturalista empregadas pela linguística histórica, que produzem uma
organização histórica e orgânica das línguas.
Ainda com foco na dualidade da linguagem, re�etimos sobre como
padrões sociais e padrões linguísticos podem se fundir e, dessa fusão, como
emergem usos linguísticos associados a comportamentos sociais. Sua
associação irrestrita faz com que o comportamento linguístico do falante
seja valorado de acordo com a valoração do comportamento social
associado ao uso. Com isso, re�exos podem ser sentidos sobre a forma
gramatical das línguas (expressão de gênero gramatical, estudo escolarizado
dos pronomes), sobre o léxico (signi�cados associados a família) e até
mesmo sobre o comportamento linguístico dos falantes em situações sociais
de vigilância e de monitoramento (guias que regulamentam os usos em
dados contextos).
Com isso chegamos ao ponto em que nos perguntamos se essa re�exão
de fato rea�rma a dualidade da linguagem que inicialmente colocamos em
pauta ou se nos encaminha para outra direção, a da ambivalência. São tantas
as tensões acumuladas no território da linguagem, e nem sempre
neutralizadas, que a Linguística parece mesmo um campo em que elementos
antagônicos entram em con�ito, mas acabam por coexistir; isso é o que nos
dá um objeto de estudo ambíguo em seu estatuto cientí�co, cujo recorte
teórico de investigação pode ser tão diverso quanto sua própria constituição.
[1]. A história de Kaspar Hauser foi retratada no �lme O enigma de Kaspar Hauser, dirigido por
Werner Herzog. Nossa discussão, entretanto, não se orienta pela obra cinematográ�ca, mas pelos
estudos de Masson (1996).
[2]. Existem outros casos (igualmente intrigantes) de indivíduos que sofreram algum modo de
isolamento social durante a infância e que podem ser pesquisados pelo leitor que desejar saber mais
sobre desenvolvimento não regular da linguagem. Sugerimos a leitura do texto e linguistic
development of Genie, de Curtiss et al. (1974), em que os autores apresentam e discutem o caso de
Genie, uma adolescente privada do convívio social do início de sua vida até a adolescência.
[3]. Como veremos adiante, essa posição intermediária pode ser identi�cada pelos trabalhos de
Michael Tomasello e colaboradores, além de diversos gerativistas, como Steven Pinker e
colaboradores.
[4]. Não nos referimos a Scaliger (1540-1609) como representante de um discurso naturalista, o que
seria um anacronismo evidente. Referimo-nos desse modo à forma como Robins, já no século XX,
apresenta o trabalho de Scaliger. Por ter produzido seus estudos ainda sob o cerco da Igreja Católica,
que impunha às ciências toda a limitação necessária para que se mantivessem as “verdades cristãs”, o
estudo de Scaliger nem costuma ser considerado digno de grande credibilidade.
[5]. Sobre essa discussão, cf. a seção 2.3: “Famílias de línguas”.
[6]. Dicionários etimológicos nos dão a informação acerca da história da palavra, como a que pode
ser encontrada em Cunha e Mello Sobrinho (2007). As demais relações, entretanto, �cam a cargo do
leitor.
[7]. Projeto de Lei proposto em 2013 pelo então Deputado Anderson Ferreira (PR/PE), que tramitou
na Câmara dos Deputados em 2015 (tendo sido aprovado em votação da casa) e que reconhece “[...]
entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher,
por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquerdos pais e
seus descendentes” (BRASIL, 2013, n.p.).
[8]. Lei n. 12.605, de 3 de abril de 2012.
[9]. Para o leitor que deseja conhecer o padrão de estudo sociolinguístico laboviano, recomendamos a
leitura do texto “A estrati�cação social do (r) nas lojas de departamentos na Cidade de Nova Iorque”,
disponível em Labov (2008 [1972]).
Capítulo 2
Origem e diversidade das línguas
2.1 A TEORIA PLATÔNICA DA LINGUAGEM: O CRÁTILO
Ler o Crátilo, um dos mais famosos diálogos de Platão, é uma
experiência surpreendente, pois é como se entrássemos em um túnel do
tempo e caíssemos em plena praça pública da Atenas antiga; cada enunciado
expresso ali faz um enorme sentido no contexto daquela discussão, mas se
comparamos com o nosso tempo, as crenças sobre a linguagem expressas no
diálogo estão totalmente distantes do que sustentam os estudos linguísticos
modernos.
Crátilo, com o subtítulo Sobre a justeza dos nomes, relaciona-se com
outro diálogo de Platão, Teeteto, que aborda mais amplamente a questão do
conhecimento. Crátilo, entretanto, particulariza o problema do
conhecimento e o restringe ao que se pode chamar de conhecimento acerca
da linguagem. O debate em que Sócrates defende a posição de Crátilo
sustenta uma batalha retórica desproporcionada, em que um dos
debatedores apenas consente, já que Hermógenes é somente alegoria de
objeção (malsucedida) para a defesa da tese de que os nomes, com suas
sílabas e letras, estão tão intrinsecamente ligados à natureza das coisas
nomeadas que são capazes de capturar destas a essência, a ideia fundamental
– por essa razão conhecida como posição naturalista.
O pensamento platônico que dá lugar ao contexto de produção de
Crátilo não sai em busca dos enigmas da linguagem, mas em busca dos
enigmas que obscurecem nosso entendimento sobre o que é o conhecimento
humano e sobre como ele poderia ou não poderia ser compreendido de
forma autônoma à linguagem, em uma abordagem pura. Em Teeteto, Platão
chega a assumir a tese de que o debate sobre o conhecimento só pode ser
feito por meio da linguagem, do estudo de suas características e de sua
origem. A linguagem emerge, portanto, como um importante aspecto do
estudo platônico sobre o conhecimento. Assim nasce Crátilo e, por isso, esse
texto se enreda nas questões sobre a natureza da linguagem e sobre as
relações que existem entre linguagem e realidade, e entre linguagem e
pensamento, as quais até a atualidade têm embalado discussões em áreas
afetas à �loso�a da linguagem e à semântica, como os estudos modernos
produzidos em torno do papel da linguagem para a categorização do mundo
e para a construção conceitual.
O debate principal do diálogo, entretanto, é a oposição entre
naturalismo e convencionalismo do signo linguístico[10]. O signo linguístico
(de uma maneira simpli�cada, a palavra) é uma junção de som e sentido. Os
naturalistas julgam que deve existir uma relação entre a forma da palavra e o
sentido que ela expressa. Um exemplo são as onomatopeias: au-au designa
em português brasileiro o som que um cachorro faz e tenta-se reproduzir
esse som na própria palavra; por isso, considera-se que as onomatopeias são
representações naturais dos signi�cados. Nesse sentido, a ideia dos
naturalistas é a de que todas as palavras devem ter alguma relação natural
entre som e sentido. Os convencionalistas, por outro lado, defendem que o
som de uma palavra nada tem a ver com o sentido que ela designa; as
onomatopeias são apenas exceções a esse princípio.
Note-se que o convencionalismo, também conhecido como princípio da
arbitrariedade do signo, é hoje aceito como um princípio básico da
linguística moderna, e é essa uma das razões que nos levam a estranhar as
ideias defendidas no Crátilo. Sócrates, ao se juntar a Crátilo na defesa do
naturalismo, domina o debate em especial porque Hermógenes, embora
assuma posição inicial em favor do convencionalismo, muito pouco
argumenta em defesa de sua tese (no diálogo não há defesa do princípio da
arbitrariedade). É verdade que, ao �nal, Sócrates relativiza sua posição e
ataca o naturalismo radical, admitindo alguma forma de convenção no uso
linguístico, pois, de outra forma, a palavra, de tão semelhante à coisa que
designa, poderia ser um substituto da coisa em si, o que ele reconhece ser
inadmissível. Alguns comentadores desse diálogo platônico chegam a dizer
que no �nal Sócrates se mostra convencionalista, mas a nossa leitura é a de
que ele é fundamentalmente um naturalista (SEDLEY, 2003).
Em termos saussureanos, quando o assunto é o signo linguístico,
resultante da associação de um signi�cante a um signi�cado, “[...] o
signi�cante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao signi�cado, com o
qual não tem nenhum laço natural na realidade” (SAUSSURE, 2006 [1916],
p. 83, grifos no original). Mas muito antes de Saussure elaborar, de uma
maneira clara e precisa, o conceito de arbitrariedade do signo linguístico, o
�lósofo Descartes já havia sustentado que as palavras se ligam
arbitrariamente às coisas que elas denotam. O argumento dele é �losó�co e é
um dos fundamentos da revolução cientí�ca que ocorreu no século XVII.
Descartes argumentou que para estudar a natureza é preciso separar a
percepção sensorial feita pelo ser humano e a realidade das coisas naturais.
Tradicionalmente, acreditava-se que as coisas eram essencialmente o que
pareciam ser para nós, através de nossos sentidos (CLARKE, 2006, p. 115).
Isso leva a erros curiosos: não há nenhuma propriedade em uma pena de
pássaro que seja similar à sensação causada em uma criança, quando alguém
roça a pena nela. Ela sente cócegas, mas essa sensação é totalmente diferente
da natureza da pena em si. Para estudar a pena, é preciso esquecer as
cócegas e atentar para a estrutura físico-química que a compõe. Ora, as
palavras e as coisas também pertencem a categorias diferentes, e é um erro,
conforme essa visão, buscar nas palavras semelhanças com as coisas que elas
representam, assim como é um erro buscar nas coisas as mesmas sensações
que elas nos causam.
Outro �lósofo do século XVII, Leibniz, também criticou a visão
tradicional de que as coisas são aquilo que parecem para nós. Ao
caracterizar o que seria uma �loso�a racional e distingui-la do que
sarcasticamente chama �loso�a fanática, ele até mesmo ironizou a posição
de pensadores que
[...] salvaram as aparências forjando expressamente qualidades ocultas ou
faculdades que imaginavam semelhantes a pequenos demônios ou duendes
capazes de fazer o que se pede, como se os relógios de bolso assinalassem as
horas por uma certa faculdade horodeítica [que aponta as horas] sem
necessidade de engrenagens de rodas, ou como se os moinhos triturassem os
grãos por uma faculdade fractiva sem ter necessidade de nada que se
assemelhe às mós (LEIBNIZ, 1972 [1765], p. 129).
Não existe, é claro, essa propriedade de dar as horas, assim como não
existe nas palavras nenhuma propriedade que as ligue às coisas que
representam. Mas a �loso�a platônica aponta na direção contrária, para uma
essência das coisas re�etida pela exatidão dos nomes – essa propriedade
essencial seria a verdade segundo a qual se pode provar que as coisas
possuem um nome natural e certo que viemos a conhecer, mas cuja origem
nem sempre sabemos revelar e tampouco podemos modi�car. Para chegar a
ela, Sócrates invoca o argumento de autoridade de deuses, de sujeitos
judiciosos (representados por Homero) e de legisladores por eles
compreenderem as relações entre as coisas e os nomes e por estarem à frente
dos insensatos (“alguns homens e todas as mulheres”, conforme a visão
platônica), para quem essa verdade não transparece.
Sinuosamente, a argumentação naturalista de Sócrates busca inspiração
mesmo em domínios que não são da linguagem; a�nal, para tudo existe um
modo natural de acontecimento: ser bem-sucedido ao cortar as coisas exige
que a ação se faça como manda a natureza, pelo modo apropriado de cortá-
las, e não do jeito que bem se desejar;ao decidirmos incendiar alguma coisa,
não precisamos ser imaginativos, basta que sigamos o modo certo que nos é
indicado pela natureza e conseguiremos queimá-la; uma pessoa não fala
como bem entende, mas seguindo o caminho natural da fala, pronunciando
as palavras como devem ser pronunciadas, ou ela falhará por não respeitar o
modo natural de falar. São analogias de intenção clara: conduzir o
interlocutor para a verdade da natureza das coisas, o que inclui a exata
aplicação dos nomes.
Ao chegar à abordagem da fala como ação de curso claramente natural e
coletivo, insubordinada às vontades individuais, Sócrates afronta a ideia de
Hermógenes de que, independente de qual nome seja dado a uma coisa, esse
será o nome certo, pois entre o nome e a coisa só habita a convenção. Assim,
na visão de Hermógenes, um indivíduo poderia chamar a um objeto rastelo
ainda que todos os outros indivíduos chamem a esse objeto garfo, sem ter
prejuízo para denominação. O levante de Sócrates, por outro lado, acusa:
caso essa seja a verdade sobre as coisas, como se justi�caria esse mesmo
indivíduo estar sujeito a obedecer ao caminho natural da fala? Se essa
exigência se coloca, a justeza dos nomes é parte dela e não podemos chamar
um garfo de rastelo.
O naturalismo de Platão, por estranho que possa parecer aos olhos
modernos, está ligado a uma série de crenças e ideias do platonismo, que
passamos a discutir mais pontualmente.
1) As coisas e seres têm uma essência permanente. Nada mais natural
que cada palavra, visando a representar as coisas, tente caracterizar pelo
menos uma das propriedades da coisa ou ser por ela representada.
Portanto, a ligação mais natural não é exatamente entre som e sentido,
mas entre o sentido da palavra e a essência atribuída à coisa. O som
apenas ajuda a chegar a esse sentido que leva à essência. No exemplo
detalhado no Quadro 3, se o corpo (sôma) está ligado à sepultura
(sêma), é porque o corpo é a sepultura da alma, e essa é a essência do
corpo. Note-se que essa explicação é quase poética e cabalística; mas o
que importa a Platão é investigar o que um conceito, como “corpo” ou
“justiça”, realmente signi�ca. A forma fonológica das palavras (sôma-
sêma), tomada por semelhança, pode ajudar nessa investigação das
essências.
Quadro 3 Esquema naturalista
Fonte: Exemplos extraídos de Platão (2001).
Há, entretanto, uma fenda na argumentação de Crátilo. Ao discutir o
nome Orestes (personagem mitológico), na análise de sua justeza em relação
ao indivíduo que nomeia, o debatedor a�rma a possibilidade de seu nome
não obedecer à ordem natural: o “[...] nome me parece bem aplicado, quer o
tenha ele recebido por acaso, quer o denominasse desse modo algum
poeta, para indicar seu caráter feroz e selvagem, e a aspereza das montanhas
(oreinòn), como o nome está a indicar” (PLATÃO, 2001, 394e, negrito
acrescentado)[11]. A obra do acaso poderia ter lugar em uma visão naturalista
da origem da linguagem? Sendo o legislador aquele que responde pela astuta
tarefa de dar às coisas o nome exato para que lhes expresse a essência que
possuem, o poeta que nomeia Orestes não poderia ser guiado pela mão do
acaso, ou seja, não poderia adotar uma ação não motivada, o que seria o
mesmo que sofrer incidência da convenção ou do costume. Contudo,
Sócrates resguarda o argumento, ao considerar que os nomes dos heróis não
são boa amostra para a sua re�exão, pois podem resultar de decisões
acidentais. Melhor enfocar os nomes de coisas gerais ou alusivas à natureza.
2) A verdade sobre as essências das coisas é absoluta e não relativa de
acordo com a crença de cada pessoa. O relativismo era defendido pelos
so�stas, que Sócrates e Platão combatiam. Uma frase famosa de um
so�sta, Protágoras, é citada no Crátilo (386a): “[...] o homem é a medida
de todas as coisas, e por isso, conforme me parecerem as coisas, tais
serão elas, realmente, para mim, como serão para ti conforme te
parecerem”. Sócrates se insurgia contra esse tipo de a�rmação e então
imaginou que as palavras devem representar necessariamente a essência
das coisas. A relação som-sentido não pode ser arbitrária ou
convencional, pois dessa forma cada pessoa teria uma apreensão
diferente da essência das coisas, o que equivaleria a recair no relativismo
sofístico. Como diz Sócrates (386e): as coisas “[...] não estão em relação
conosco, nem na nossa dependência, nem podem ser deslocadas em
todos os sentidos por nossa fantasia, porém, existem por si mesmas, de
acordo com sua essência natural”. E nomear as coisas é designá-las de
acordo com sua essência: “[...] convirá nomear as coisas pelo modo
natural de nomeá-las e serem nomeadas, e pelo meio adequado, não
como imaginamos que devemos fazê-lo [...]” (387d).
E sobre tudo aquilo que não se pode explicar de forma natural, o que
Sócrates tem a dizer? “Declarar que se trata de expressão bárbara” (416a) ou
a�rmar que podem ser “[...] de origem estrangeira os nomes cujo sentido
nos escapa” (421d) ou, ainda, considerar que “[...] a idade dos vocábulos é
que os deixa indecifráveis” (421d). Sobre os nomes primitivos, aqueles que
constituem a unidade primeira e pela qual muitos outros nomes derivados
se explicam, não se considera que advêm de um estabelecimento operado
pelos deuses, cuja palavra é inquestionável, pois não explicar um nome
primitivo é o mesmo que invalidar a explicação de todos os seus derivados.
Para os naturalistas, os nomes primitivos, como imitação das coisas
nomeadas, formam-se por letras e sílabas que se assemelham aos objetos,
re�etem propriedades e revelam alguns de seus aspectos mais
característicos.
No entanto, essa posição ainda não anula a dúvida que se tem acerca do
primeiro nome ou nome original, pois o legislador, ao conceber o primeiro
nome, detinha um conhecimento sobre a coisa nomeada que não pôde se
construir por meio de outras palavras, não tinha outros nomes em que se
apoiar para concebê-lo. Daí deriva a constatação platônica de que o
conhecimento verdadeiro sobre as coisas não vem dos nomes, mas do ato de
se conhecer a verdade sobre as coisas. O conhecimento antecede e
independe do nome, conforme a posição naturalista. Isso é o mesmo que
a�rmarmos que o legislador, para exercer a arte de fazedor de nomes, antes
de qualquer coisa, é alguém que enxerga e conhece com clareza a natureza
das coisas, inclusive abdica da linguagem para conhecê-las, uma vez que a
linguagem (o nome) é mera imitação do mundo. Mas quem é esse legislador
a quem tanto fazemos referência?
3) Segundo a opinião de Sócrates e Platão, a verdade e a essência das
coisas devem ser estabelecidas pelas pessoas mais justas e mais razoáveis
de uma comunidade. Essa é ideia por trás da República ideal de Platão,
que seria governada por um conselho de sábios, com todos os poderes
para legislar (uma estrutura absolutista e androcentrista de sábios, na
verdade). Bem, só os sábios podem saber com justeza o que as palavras
devem signi�car, para representar da melhor maneira possível as coisas
que designam (por exemplo, a relação entre corpo e sepultura, sôma e
sêma, já citada). Assim, os sábios devem buscar e de�nir qual a relação
natural entre som, sentido e coisa representada. A convenção seria um
artifício dos tolos, que aceitariam qualquer relação arbitrária. Platão
sustenta que os sábios de�nem o sentido original das palavras. Esse é um
dos pontos que causam mais estranheza na leitura do Crátilo. Sócrates
rea�rma várias vezes que há legisladores sábios que de�niram, em algum
momento da história, a relação som-sentido das palavras de uma língua.
Ou seja, essa é a explicação platônica para a criação da linguagem: os
homens sábios se reuniram e de�niram a forma e o signi�cado das
palavras. A alegoria de Crátilo permite ver a linguagem não como o
resultado do trabalho de divindades, mas como negócio dos homens;
quer dizer, não de todos os homens, mas dos sábios.
Como ação de linguagem, nomear implica o uso de um instrumento
adequado

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