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Coleção de Linguística Coordenadores Gabriel de Ávila Othero – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Sérgio de Moura Menuzzi – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Conselho consultivo Alina Villalva – Universidade de Lisboa Carlos Alberto Faraco – Universidade Federal do Paraná (UFPR) Dante Lucchesi – Universidade Federal da Bahia (Ua) Leonel Figueiredo Alencar – Universidade Federal do Ceará (UFC) Letícia M. Sicuro Correa – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Luciani Ester Tenani – Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) Maria Cristina Figueiredo Silva – Universidade Federal do Paraná (UFPR) Roberta Pires de Oliveira – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Roberto Gomes Camacho – Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) Valdir Flores – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) CDD-410 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Moura, Heronides Uma breve história da linguística / Heronides Moura, Morgana Cambrussi – Petrópolis, RJ : Vozes, 2018. – (Coleção de Linguística) Bibliogra�a ISBN 978-85-326-5776-3 – Edição digital 1. Língua e linguagem 2. Linguística I. Cambrussi, Morgana. II. Título. III. Série. 17-09546 Índices para catálogo sistemático: 1. Linguística 410 © 2018, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora. CONSELHO EDITORIAL Diretor Gilberto Gonçalves Garcia Editores Aline dos Santos Carneiro Edrian Josué Pasini Marilac Loraine Oleniki Welder Lancieri Marchini Conselheiros Francisco Morás Ludovico Garmus Teobaldo Heidemann Volney J. Berkenbrock Secretário executivo João Batista Kreuch ______________________________ Editoração: Maria da Conceição B. de Sousa Diagramação: Sheilandre Desenv. Grá�co Revisão grá�ca: Nilton Braz da Rocha / Nivaldo S. Menezes Capa: WM design Revisão técnica: Gabriel de Ávila Othero ISBN 978-85-326-5776-3 – Edição digital http://www.vozes.com.br/ Editado conforme o novo acordo ortográ�co. Apresentação da coleção Esta publicação é parte da Coleção de Linguística da Vozes, retomada pela editora em 2014, num esforço de dar continuidade à coleção coordenada, até a década de 1980, pelas professoras Yonne Leite, Miriam Lemle e Marta Coelho. Naquele período, a coleção teve um papel importante no estabelecimento de�nitivo da Linguística como área de pesquisa regular no Brasil e como disciplina fundamental da formação universitária em áreas como as Letras, a Filoso�a, a Psicologia e a Antropologia. Para isso, a coleção não se limitou à publicação de autores fundamentais para o desenvolvimento da Linguística, como Chomsky, Langacker e Halliday, ou de linguistas brasileiros já então reconhecidos, como Mattoso Câmara; buscou também veicular obras de estudiosos brasileiros que então surgiam como lideranças intelectuais e que, depois, se tornaram referências para disciplina no Brasil – como Anthony Naro, Eunice Pontes e Mário Perini. Dessa forma, a Coleção de Linguística da Vozes participou ativamente da história da Linguística brasileira, tendo ajudado a formar as gerações de linguistas que ampliaram a disciplina nos anos de 1980 e de 1990 – alguns dos quais ainda hoje atuam intensamente na vida acadêmica nacional. Com a retomada da Coleção de Linguística pela Vozes, a editora quer voltar a participar decisivamente das novas etapas de desenvolvimento da disciplina no Brasil. Agora, trata-se de oferecer um veículo de disseminação da informação e do debate em um novo ambiente: a Linguística é hoje uma disciplina estabelecida nas universidades brasileiras; é também um dos setores de pós-graduação que mais crescem no Brasil; �nalmente, o próprio quadro geral das universidades e da pesquisa brasileira atingiu uma dimensão muito superior à que se testemunhava nos anos de 1970 a 1990. Dentro desse quadro, a Coleção de Linguística da Vozes tem novas missões a cumprir: • em primeiro lugar, é preciso oferecer aos cursos de graduação em Letras, Filoso�a, Psicologia e áreas a�ns material renovador, que permita aos alunos integrarem-se ao atual patamar de conhecimento da área de Linguística; • em segundo lugar, é preciso continuar com a tarefa de colocar à disposição do público de língua portuguesa obras decisivas do desenvolvimento, passado e recente, da Linguística; • �nalmente, é preciso oferecer ao setor de pós-graduação em Linguística e ao novo e amplo conjunto de pesquisadores que nele atua um veículo adequado à disseminação de suas contribuições: um veículo sintonizado, de um lado, com o que se produz na área de Linguística no Brasil; e, de outro, que identi�que, nessa produção, aquelas contribuições cuja relevância exija uma disseminação e atinja um público mais amplo, para além da comunidade dos especialistas e dos pesquisadores de pós-graduação. Em suma, com esta Coleção de Linguística, esperamos publicar títulos relevantes, cuja qualidade venha a contribuir de modo decisivo não apenas para a formação de novas gerações de linguistas brasileiros, mas também para o progresso geral dos estudos das Humanidades neste início de século XXI. Gabriel de Ávila Othero Sérgio de Moura Menuzzi Organizadores Sumário Introdução Capítulo 1 A dualidade da linguagem 1.1 O enigma da linguagem 1.2 As línguas e o naturalismo 1.3 Padrões linguísticos, padrões sociais 1.4 Não é dualidade, é ambivalência Capítulo 2 Origem e diversidade das línguas 2.1 A teoria platônica da linguagem: o Crátilo 2.2 Rousseau: as paixões criaram a linguagem 2.3 Famílias de línguas 2.3.1 Movimento humano e movimento linguístico 2.3.2 A genética das línguas 2.3.3 O legado dos comparativistas 2.4 A natureza dos signos: as visões de Saussure e Bakhtin 2.4.1 Saussure e os signos 2.4.2 Bakhtin e os signos Capítulo 3 A relação entre linguagem, pensamento e cultura 3.1 A língua como estrutura lógica: a gramática de Port-Royal 3.2 Tradição gramatical: construção da língua como representação do pensamento 3.3 A hipótese de Sapir-Whorf 3.4 Linguagem, mente e cérebro: uma arquitetura biológica para a linguagem 3.5 Linguagem, experiência e cultura: fatores imbricados que nos guiam para categorizar o mundo 3.5.1 Transitividade, intransitividade e as coisas acontecendo ao nosso redor 3.5.2 O corpo como referência para a constituição de sistemas numéricos 3.5.3 Tudo o que existe ocupa lugar no espaço: o campo semântico espacial e a noção de posse 3.5.4 Mas que hipótese de investigação é essa? Capítulo 4 Haveria uma “linguagem” dos animais? 4.1 O design dos sistemas naturais de comunicação 4.2 Ponto de vista e criação do signi�cado Capítulo 5 O signi�cado visto como um elemento externo à linguagem: Saussure e Chomsky Capítulo 6 Uma breve história da sinonímia 6.1 Sinonímia em Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) 6.2 Sinonímia em Guilherme de Ockham (1285-1347) 6.3 Sinonímia em Saussure 6.4 A sinonímia no século XX Conclusão – Da história para o presente Referências Introdução Atravessar a história dos estudos linguísticos, do modo como ela se apresenta nesta obra, signi�ca percorrer um caminho de intersecções, composto por alguns roteiros não tão claros, mas também por trechos do percurso bastante nítidos. As intersecções se produzem entre a Linguística e as demais áreas do conhecimento cujas investigações recobrem aspectos relacionados à linguagem, à sua constituição ou ao seu funcionamento. Alguns exemplos dessas conexões encontramos nas relações que apresentamos ao leitor entre Linguística e Filoso�a, Sociologia, Antropologia, História, Psicologia e Neurologia. Os roteiros não tão claros se localizam em um passado maisremoto, que antecede até mesmo a ideia de Linguística enquanto ciência. Trazer à tona as primeiras re�exões sobre a linguagem, aquelas que se registram por meio de textos clássicos, é uma atividade arriscada, já que demanda acima de tudo interpretações produzidas por pessoas que falam desses textos através das lentes da atualidade. A posição que ocupamos produz um discurso sobre esses textos conduzido pelo inventário das investigações linguísticas desenvolvidas até aqui e as releituras emergem sobretudo quando pretensiosamente julgamos que essas lentes não produzem distorções, mas ajustes. O trecho mais nítido do percurso é aquele que está mais próximo de nós e que compreende a história dos estudos linguísticos após o advento da ciência da linguagem (a Linguística) no início do século XX. Nessa parte do caminho, a de�nição do objeto de investigação da Linguística e dos modos de espreitar esse objeto são abertamente declarados, fartamente documentados e muito e�cientemente discutidos por diferentes autores que nos dão suporte. Nosso objetivo, então, foi abordar temáticas centrais, como a origem e a diversidade da linguagem, a relação entre linguagem e pensamento e a natureza biológica da linguagem, com foco nos estudos em torno dessas temáticas e não nos modelos teóricos que sustentam esses estudos. Neste livro não propomos reconstruir a história dos estudos linguísticos por meio da abordagem direta das correntes teóricas que a produziram. Embora essa abordagem seja bastante efetiva e bem colocada por uma linha temporal capaz de nos sugerir com segurança a sucessão dos estágios de desenvolvimento da Linguística enquanto ciência, muitos bons manuais de linguística já dão conta de apresentá-la ao leitor. A proposta, diferentemente, é a de discutir temas, textos clássicos, problemas de investigação que também podem amarrar as pontas dessa história e que têm papel relevante em sua constituição, mas raramente são apresentados em detalhe. Com esse objetivo de�nido, apresentamos, no primeiro capítulo, uma discussão inicial que pretende caracterizar a linguagem por sua pluralidade de facetas, de propriedades constitutivas, todas legítimas e de�nidoras das posições teóricas assumidas diante do objeto de estudo linguagem. No capítulo 2, estão em foco importantes discussões sobre a origem das línguas e sua diversidade, desde posições �losó�cas até estudos de natureza mais objetiva, como a reconstrução linguística proposta pelos comparativistas. O terceiro capítulo foi dedicado a apresentar ao leitor outras visões acerca da linguagem humana, guiadas por diferentes pressupostos: lógicos, biológicos, mentalistas ou culturais. Já no quarto capítulo, abordamos a relação entre a linguagem humana e outros sistemas naturais de comunicação, discutindo como se pode pensar (e como se pensa) a “linguagem” animal em uma perspectiva cientí�ca. No quinto capítulo, discutimos a visão de dois grandes nomes da linguística moderna, Saussure e Chomsky, em relação à signi�cação, mais especi�camente, à denotação. No sexto e último capítulo, foi abordada a trajetória das de�nições de sinonímia pelo viés da cultura ocidental, desde a visão aristotélica até o século XX. Com isso, desejamos que o percurso de leitura escolhido aqui seja, além de um dos caminhos possíveis para compreendermos o desenvolvimento do pensamento linguístico, uma forma de retribuirmos aos muitos interlocutores que tivemos ao longo de nossa formação, com os quais compartilhamos as ideias seminais deste livro. Os autores Capítulo 1 A dualidade da linguagem Os seres humanos sempre tentaram entender como as línguas surgiram, por que há tantas línguas diferentes no mundo e como essas línguas se constituem. Com uma viagem no tempo, é possível examinar como diferentes autores, de vários períodos históricos, responderam a essas questões intrigantes. Nem todos os estudiosos que se envolveram com o problema da origem das línguas são linguistas, pois a questão interessou também a muitos �lósofos, príncipes e clérigos. Mesmo tendo atraído a atenção e os esforços de tantos intelectuais, é necessário fazermos a ressalva de que o problema foi abordado muitas vezes de forma especulativa, puramente hipotética. Muitas dessas especulações nos parecem hoje pouco pertinentes, mas revelam muito sobre a cultura e a época em que foram feitas. Se analisarmos a questão sob um ponto de vista estritamente da ciência linguística moderna, a discussão histórica perde muito de seu valor. Para um biólogo, o estudo da biologia do século XVI pode ser desprovido de interesse, pois o que se fazia nessa época tem pouca ligação com o que se faz hoje na Biologia. Mas a linguagem humana é um objeto de pesquisa diferente do objeto de pesquisa da biologia: as línguas humanas são tanto objetos naturais, no sentido de que têm uma realidade objetiva no mundo natural, quanto são objetos culturais, e, como tais, estritamente conectados ao ambiente cultural em que existem. Compare, por exemplo, com outros objetos de pesquisa: a circulação sanguínea e as religiões. A circulação sanguínea é um objeto de pesquisa estritamente natural, que não depende de fatores culturais para sua compreensão. Assim, para quem investiga a circulação sanguínea hoje, haverá pouco interesse em estudar a forma como os gregos da Antiguidade descreviam o fenômeno. O interesse, na verdade, pode ser o de curiosidade histórica. Agora compare com o estudo das diferentes religiões. As práticas religiosas (muitas delas milenares) envolvem intrinsecamente realidades imaginadas, crenças e fatores culturais, portanto, saber como as civilizações antigas descreviam, analisavam e viviam a religiosidade na sua época é interessante para quem estuda religião hoje, pois não se pode explicar a origem e o desenvolvimento das diferentes religiões sem relacioná-las a uma cultura ou a um ideal de cultura. Já as línguas humanas apresentam uma ambiguidade em seu estatuto cientí�co, porque são tanto um objeto natural (como a circulação sanguínea) quanto um objeto social (como as religiões). Se quisermos mostrar quais estruturas gramaticais são comuns a todas as línguas humanas, ou como são formados os sons da linguagem, precisaremos descrever objetivamente o maior número possível de línguas e chegar a uma hipótese que possa ser comprovada empiricamente, como nas ciências naturais. Mas esse tipo de questão empírica não esgota o campo de investigação sobre as línguas: é relevante de�nir e estudar qual a importância social da linguagem, como são encaradas suas mudanças e suas variações pelos falantes de uma sociedade, quais os efeitos que a diversidade linguística provoca em uma dada comunidade, qual a relação que uma sociedade percebe entre linguagem e pensamento etc. Todas essas são questões sociais, que envolvem não apenas objetos naturais, mas a percepção que os seres humanos têm desses fatos e como eles são construídos e modi�cados. A linguagem é um assunto substancial e instigante para as comunidades humanas, como a religião, e as pessoas costumam ter muitas ideias sobre o seu uso e o seu valor. Também nesse sentido o estudo de autores antigos pode ser muito interessante e revelador: eles nos mostram como suas sociedades viam a linguagem, sua origem e seu uso, e podemos comparar essas crenças com as nossas, o que é uma forma muito útil de perceber quem somos e como pensamos. Vamos nos dedicar a esse estudo no capítulo 2. Outro aspecto interessante envolvido no que consideramos a face social da linguagem é a percepção e o exame de como emergem, por meio da estrutura ou de expressões das línguas e do próprio texto, as crenças das diferentes épocas sobre muitos dos aspectos sociais, políticos, religiosos, en�m, humanos. Conforme veremos adiante, quando olhamos em detalhe, podemos nos surpreender com, por exemplo, a in�uência de questões de gênero socialmente instituídas nos usos de expressões linguísticas (gênero gramatical) oumesmo em orientações institucionalizadas acerca de usos considerados igualitários ou pelo menos não discriminatórios. Também pode causar estranheza a interferência de ordem religiosa no ensino de padrões linguísticos bastante especí�cos e gramaticais, como o paradigma pronominal, a exemplo do ensino, no Brasil, de “vós” como segunda pessoa do plural com foco na leitura e na compreensão do texto religioso. São todos exemplos pontuais de como pode surgir uma tensão entre duas ou mais facetas da linguagem, perpassadas pela história, pelo contexto e pelo próprio material linguístico. 1.1 O ENIGMA DA LINGUAGEM Para reforçar a dualidade da linguagem que apresentamos aqui, propomos começar nossa discussão abordando o permanente interesse histórico sobre como as línguas são adquiridas: Essa aquisição é determinada por fatores sociais ou por fatores biológicos? Nos primeiros anos do século XIX, pro�ssionais dedicados às notas de material linguístico, os diaristas, já se ocupavam do registro da fala de crianças, com o objetivo de documentar o período em que a linguagem emerge nos indivíduos (CASTRO; FIGUEIRA, 2006), para sistematizar essa fala e compreender seus modos de estruturação e de desenvolvimento. Ainda hoje a Linguística se ocupa desse enigma, mas o modo como teoriza sobre ele tem sofrido muitas transformações ao longo do desenvolvimento dos estudos linguísticos. Antes de apresentarmos essas diferenças, entretanto, vamos retomar um acontecimento estarrecedor que envolveu o debate em torno da aquisição de linguagem. No ano de 1828, na Alemanha, teve lugar um dos episódios mais controversos sobre aquisição de linguagem e o desenvolvimento do pensamento. Um jovem surgiu em praça pública, na cidade de Nuremberg, com aproximadamente 16 anos de idade, após supostamente ter sido isolado do convívio humano logo ao nascer. O jovem chamava-se Kaspar Hauser[1] e muitas especulações sobre sua história de vida têm sido levantadas desde então[2]. Uma das hipóteses mais inusitadas é a de que Kaspar era descendente de Napoleão Bonaparte e intrigas políticas teriam levado ao sumiço e cativeiro da criança. Testes recentes de DNA (realizados pela Universidade de Munique) desmentem essa origem nobre (WEICHHOLD et al., 1998), mas permanece a questão que nos interessa: Se Kaspar foi de fato reintroduzido na sociedade após longo tempo de separação, iniciado em seu nascimento, como era seu comportamento linguístico? Kaspar desenvolveu a linguagem de modo regular? Documentos apresentados por Masson (1996), sobretudo trechos de diários médicos e de relatórios de tutores responsáveis por instruir Kaspar e prepará-lo para as práticas sociais, relatam que sua linguagem era tão rudimentar quanto outras funções motoras básicas: o menino-selvagem, como era conhecido, mal conseguia andar. Entretanto, algumas formas linguísticas eram balbuciadas e, supostamente, uma sentença era sempre repetida “Quero ser cavaleiro como meu pai”. Durante o cativeiro, em uma construção isolada na mata, Kaspar fora alimentado por um homem, de quem recebera a pouca instrução linguística que tinha para fornecer quando fora encontrado pela população de Nuremberg. Uma vez em exposição contínua à língua, conforme aponta Masson (1996), os relatos de seus tutores (que acabaram cumprindo a função de diaristas) dão conta de que Kaspar teria apresentado um rápido desenvolvimento da linguagem e, em paralelo, do pensamento lógico- dedutivo. A entrada nos diferentes sistemas culturais, contudo, parece ter sido mais conturbada e Kaspar teria sido assassinado em uma emboscada, poucos anos após ser descoberto. O surpreendente modo como essa personagem teria superado as de�ciências de linguagem em tão pouco tempo (cinco anos de convívio social e instrução formal contínua) pode ser um argumento em favor de outra hipótese sobre seu surgimento, a de que Kaspar Hauser era, em verdade, um farsante que se fez passar por pessoa abandonada e tirou proveito do interesse social que se criou em torno dele. Como muito pouco se sabe a respeito de sua origem, podemos considerar as evidências que há como provas de que Kaspar foi de fato um indivíduo privado do convívio social durante sua infância e parte da juventude. Isso nos permite reavivar o interessante paradoxo em torno da capacidade biológica de Kaspar para o desenvolvimento da linguagem, pois essa faculdade teria sido inicialmente estimulada por uma pobreza de estímulos levada ao extremo. Na infância, sua exposição a dados linguísticos era restrita demais, nada sistemática. Muito embora isso não o tenha impossibilitado de desenvolver capacidades linguísticas tão logo tenha sido introduzido em uma comunidade de fala, precisou receber instrução formal acerca da linguagem (o que não acontece em processos naturais e corriqueiros de aquisição de linguagem pela criança) e não chegou ao ponto de desenvolver uma capacidade linguística regular – que se pode veri�car, por exemplo, na fala de uma criança de quatro anos, sem que ela tenha recebido instrução linguística formal ou não espontânea. Somos imediatamente levados ao contraste posto entre fatores biológicos versus fatores sociais determinantes dos componentes que responderiam pela aquisição de linguagem. Esse contraste remonta a diferentes posições em torno da questão. Desde a defesa de que essa aquisição é essencialmente biológica, até a defesa de que é essencialmente social, chegamos hoje ao meio-termo[3] de que (i) há uma cooperação de fatores de ambas as naturezas para a aquisição e para o desenvolvimento da linguagem e de que (ii) nem a condição biológica nem a puramente social são su�cientes para que falantes adquiram sua(s) língua(s) materna(s). Entre esses três posicionamentos em torno da questão, muitos linguistas têm se movimentado e assumido frentes de pesquisa que podem estar mais para uma ponta do debate ou para outra ou mesmo podem re�etir uma compreensão menos discreta quanto à natureza da aquisição de linguagem, considerando-se o franco desenvolvimento das pesquisas nessa área e a complexidade do fenômeno em investigação. Do mesmo modo que, salvo condições patológicas, o aparato biológico próprio da espécie nos acompanha desde o nascimento, também somos seres inerentemente sociais, ou seja, ambas as condições estão presentes no processo regular de aquisição da linguagem pela criança, o que cria limitações para a investigação de uma condição sem a interferência da outra. Na linguística moderna, a defesa do caráter biológico da aquisição de linguagem é atribuída aos estudos de natureza gerativista, os quais apresentam uma série de argumentos bastante contundentes para essa posição e um sólido programa de investigação. Esse pensamento consiste em tomar a linguagem por um viés mentalista e operar a descrição do conhecimento linguístico (em oposição ao seu uso) de modo internalista, considerando-se a linguagem humana um objeto biológico por natureza (CHOMSKY, 2000). Evidências em favor dessa perspectiva normalmente são reunidas em torno da premissa de que a criança já nasce com um conjunto de conhecimentos linguísticos internalizados e latentes. Por esse motivo, apesar de exposta a informações linguísticas que não seguem um padrão voltado à infância ou ao desenvolvimento da linguagem pela criança, a exposição à fala do adulto basta para que, em um curto tempo, já nos três primeiros anos de vida, uma pessoa tenha condições de produzir um conjunto de dados variado e complexo, que inclui processos gramaticais bastante so�sticados, como a formação de sentenças. Além disso, a criança é capaz de produzir frases que nunca ouviu antes, empregando seu potencial de desenvolvimento da linguagem e sua criatividade linguística, e compreender sentenças cuja referência, por exemplo, não está disponível de forma visual e imediata no contexto de fala: Mamãe foi trabalhar; ela logo volta. A principal indagação chomskyana acerca do conhecimento linguístico estápautada justamente nessa premissa (identi�cada como pobreza de estímulo), de que os dados linguísticos a que o falante está exposto em seus primeiros anos de vida são pouco sistemáticos, desestruturados e insu�cientes quando comparados à sistematicidade, à estruturação e à riqueza do conhecimento linguístico revelado ainda durante o período identi�cado como de aquisição de linguagem. Nesse cenário, surge a questão de pesquisa que perpassa a investigação gerativista: Diante de evidências tão parcas e pouco estruturadas, como podemos saber tanto? Esse argumento, como lembram Cezario e Martelotta (2008, p. 208), é vinculado ao “[...] chamado ‘problema de Platão’, que assim se desdobra: ‘Como o ser humano pode saber tanto diante de evidências tão passageiras, enganosas e fragmentárias?’” Torna-se saliente, então, a competência linguística de que dispõem os falantes e que pode explicar, por exemplo, a incrível regularidade dos processos de aquisição de linguagem por crianças falantes de línguas distintas e em contextos de aquisição diversi�cados em termos afetivos, econômicos, culturais, geográ�cos. Para exempli�car, podemos ilustrar essa questão a partir da simpli�cação de encontros consonantais, um processo fonológico bastante regular em fase de aquisição de linguagem (OTHERO, 2005). Porque representariam uma di�culdade maior de produção, considerando-se o caráter físico da fala, encontros consonantais tenderiam a sofrer redução, como em “Minha blusa branca” → “Minha busa [‘buzɐ] banca [‘bãkɐ]”. Casos como esse são comuns e não representam erros fonológicos assistemáticos ou desvios de fala imprevisíveis, mas re�etem um comportamento linguístico esperado para a criança em fase de aquisição, pois são processos fonológicos “[...] inatos, naturais e universais. Isso quer dizer que todos os seres humanos ditos ‘normais’, em algum momento durante os primeiros anos de sua aquisição da linguagem, enfrentaram tais di�culdades e limitações” (OTHERO, 2005, p. 4, grifos no original). De acordo com a visão inatista da linguagem, portanto, nascemos preparados para falar; temos essa capacidade porque somos providos de um aparato próprio da espécie, que con�gura uma gramática universal (CHOMSKY, 1986). Nesses termos, salvo casos de patologias, qualquer indivíduo é dotado de condições biológicas para a aquisição de pelo menos uma língua. Contudo, para isso, precisa de estímulo externo, pois esse conhecimento internalizado é acionado e parametrizado a partir de regras que vão se con�gurando em um domínio implícito, mas “alimentado” por dados linguísticos fornecidos de modo explícito e espontâneo quando a criança é exposta às situações de uso da(s) língua(s) em aquisição, nos primeiros anos de vida. Em outra frente de pesquisa (não inatista), a in�uência de investigações de base interacionista ou construtivista – que partiram de Piaget, mas tiveram desdobramentos em muitas teorias distintas – aponta para a direção do componente social ou ambiental como edi�cação de todos os sistemas simbólicos, entre eles a linguagem. A condição primária passa a ser a relação entre a criança e a língua enquanto objeto, considerando-se os contextos de uso, a pluralidade de sistemas em interação e a própria complexidade dessa interação. No bojo dessas pesquisas, o chamado cognitivismo construtivista caracteriza-se por assumir o desenvolvimento da linguagem como um processo de maturação que ocorre exclusivamente por motivações externas ao indivíduo e, ainda, como desdobramento da construção da inteligência e do sistema simbólico resultantes da interação entre o ambiente e o indivíduo. Já o interacionismo social considera que o desenvolvimento da linguagem é o resultado de processos comunicativos em que a criança e o adulto produzem trocas linguísticas por meio da interação social. Essa interação daria origem ao conhecimento linguístico, que passaria a ser internalizado pela criança (CEZARIO; MARTELOTTA, 2008). Nessa perspectiva interacionista, revela-se um pressuposto contrário ao gerativista, pois está anulada a ideia de que a experiência linguística da criança, em termos de exposição aos dados, seja assistemática e pobre em alguma medida. Pelo contrário, a relevância dada aos dados é tanta que o foco de explicação dos processos de aquisição de linguagem centra-se na in�uência que a fala do outro, do adulto e de seus pares, pode ter na atividade linguística da criança (CASTRO; FIGUEIRA, 2006). Como vemos, em termos teóricos, trata-se de uma inversão no ponto de vista de observação. A aquisição de linguagem é avaliada e descrita a partir de uma conjuntura externa e que considera a linguagem um sistema simbólico social, não biológico, constituído por meio de estruturas cognitivas e da própria interação, produzidas de acordo com o desenvolvimento da criança e com estágios especí�cos de maturação. A aquisição da linguagem, portanto, é dependente da interação entre a criança e seu objeto de conhecimento, no caso, a(s) língua(s) materna(s), mediada por condições ambientais ou por condições sociais. Na atualidade, diferentemente, a ciência cognitiva chega ao que denominamos cognitivismo social e acomoda essas diferentes tensões sobre a natureza dual da linguagem, biológica e sociocultural, dividida entre esses dois domínios em todas as suas dimensões, incluindo-se a aquisição. Estamos fazendo referência à teoria de aquisição baseada no uso (TOMASELLO, 1999), segundo a qual a cognição social, advinda de um processo de adaptação biológica (e não de deriva genética ou de seleção natural da espécie), responde pelo desenvolvimento da linguagem humana. Quadro 1 Cognição social: Adaptação biológica ou seleção natural? Se a cognição social fosse originada por seleção natural (ou deriva genética)... → Seu processo de desenvolvimento seria bastante lento e gradual, ao ponto de tornar inviável a hipótese de que a espécie humana tivesse tido tempo suficiente para desenvolver e aprimorar a cognição até o nível de complexidade que se apresenta hoje em seus diferentes sistemas, um deles é a linguagem. Mas se a cognição social é produto de adaptação biológica da espécie... → Um evento resultante do processo de seleção natural produziu uma mudança na espécie (a adaptação); a partir desse ponto, uma guinada no desenvolvimento permitiu o surgimento de uma cognição social complexa, que distanciou os primatas humanos das demais espécies. Esse salto evolutivo pode conter a resposta não apenas para o desenvolvimento tão elaborado da cognição (e da linguagem), como para as razões por que outras espécies não lograram a mesma transformação. Fonte: Os autores. Essa cognição social estaria atrelada a uma capacidade de os indivíduos da espécie compartilharem intencionalidade e reconhecerem-se como seres com atividades e objetivos comuns, o que resultaria na construção de uma experiência social também compartilhada. Essa experiência social tem como gatilhos básicos a capacidade de cooperação e a intencionalidade não instintiva (simbólica), as quais são exclusividade da espécie humana e conduzem à transmissão cultural das diversas práticas sociais, entre elas a prática de linguagem. Em outros termos, assume-se que somos seres sociais, culturalmente de�nidos, graças à formação de uma cognição social. A aquisição de linguagem é resultado de uma aprendizagem cultural que desencadeia muitas outras aprendizagens paralelas, mas todas com o mesmo �m: atender a nosso conjunto de intencionalidades. A atividade de linguagem seria, portanto, uma atividade sociocultural, guiada pela cognição humana, repassada, transformada criativamente e aprimorada através de gerações, em um constante ciclo guiado por ações colaborativas que levam ao desenvolvimento cultural da linguagem (TOMASELLO, 1999). Segundo essa perspectiva, um indivíduo da espécie, ao nascer, não parte da estaca zero da aquisição de linguagem, mas de um inventário sociocultural construído,do qual se apropria (em diferentes estágios de desenvolvimento) e pelo qual se inscreve em práticas de linguagem colaborativas e age sobre elas (TOMASELLO, 1999, 2000). A interação pela linguagem e os contextos de comunicação são primordiais, portanto, para que sejam �xadas as representações cognitivas relativas aos usos de linguagem. Essa posição desencadeia outra análise bastante interessante da linguagem, pois permite que ela seja tomada como elemento estruturador das ações sociais simbólicas e colaborativas da espécie e, ao mesmo tempo, como elemento resultante dessa colaboração cultural. Neste ponto, podemos voltar a Kaspar Hauser e a sua suposta história de aquisição. A condição do jovem, ao ser reintroduzido na sociedade, permite que se pense de forma plural a sua relação com a linguagem. Evidencia, por exemplo, sua ausência de patologia e a capacidade de acionar sua capacidade linguística de forma gradual, tão logo seja estimulado a fazê-lo, pela exposição contínua aos dados linguísticos. Também evidencia o tipo de relação que tem com a própria língua, objeto externo e estranho para ele, e toda sua complexidade simbólica. Por �m, ao entrar em um sistema coletivo de interação dialógica e de comunicação, percebendo-se de uma cognição social que possibilitava o compartilhamento de certas intenções, Kaspar toma parte dessa aprendizagem colaborativa, apropria-se dela e a converte em conhecimento acerca de certos produtos culturais, entre eles a linguagem. Uma vez mais somos levados pela dualidade da linguagem, seja pelas evidências em favor de nossa condição biológica para desenvolvê-la, seja pelas evidências em favor de nossa condição sociocultural. 1.2 AS LÍNGUAS E O NATURALISMO A história de surgimento das línguas é uma questão tão instigante para o homem que nos dá uma ideia clara do papel central da linguagem em uma re�exão sobre a natureza humana – natureza social e biológica. A linguística histórica revela, inclusive, uma intersecção tão íntima nesse aspecto que até mesmo as metáforas de descrição cientí�ca se orientaram por ela. Foi assim que chegamos aos conceitos de família de línguas, genealogia das línguas, língua-mãe (línguas-irmãs, primas e assim por diante), parentesco entre línguas, que são referências metafóricas sobretudo porque a história das línguas é explicada por “[...] um complexo processo de diferenciação correlacionada com a história social e cultural das sociedades humanas” (FARACO, 2005, p. 207) e também com sua história genética. Quadro 2 Uma metáfora genealógica para as línguas Genealogia e parentesco das línguas → Descrever a genealogia das línguas é um trabalho de linguística histórica cujo foco é o estabelecimento das relações que as línguas guardam entre si, que podem ser de parentesco ou não. O resultado desse estudo, guiado por um princípio de ancestralidade linguística, além de esclarecer que relações há entre diferentes línguas, fornece uma ordenação cronológica entre elas. Família de línguas → São grupos de línguas com grande proximidade histórica e constitutiva, com relações compartilhadas, como origem comum. Quando certas línguas são agrupadas em uma família linguística significa que entre elas já se provou haver uma ancestralidade comum. Por essa razão, kaingáng e xokléng são línguas indígenas brasileiras agrupadas em uma mesma família linguística, a família Jê, que, por sua vez, deriva do tronco Macro-Jê (RODRIGUES, 1986). Língua- mãe → (e outras relações dessa ordem) Uma vez que a genealogia de uma família de línguas é conhecida, podemos identificar quais línguas deram origem a outras. O latim vulgar é a língua-mãe do português e do francês, por ser a ancestral direta dessas línguas, que são irmãs. Fonte: Os autores. Os estudos comparativistas – que se iniciaram séculos antes, mas dominaram o cenário de investigação linguística do século XIX (ROBINS, 1967) – foram os responsáveis por perpetuar certos modos de referência que passaram a ser comuns na descrição do tipo de relação entre as línguas e eram in�uenciados de modo explícito por princípios naturalistas (ou atualmente chamados darwinistas) de deriva genética e de seleção natural. Essa mesma lógica também veio a ser empregada para se descrever os contextos em que línguas surgem ou deixam de existir, as chamadas línguas mortas, ou seja, línguas que, após longo processo de mudança contínua e gradual, deixaram de ser faladas. A ideia de que “línguas morrem”, na verdade, pode ser bem controversa, já que os processos regulares de mudança linguística vão acarretando transformações ao longo do tempo. É preciso destacar que essa mudança não é repentina, mas conduzida por um lento processo histórico, como lembra Faraco (2005, p. 47): [...] nunca é possível dizer que num determinado momento o latim, por exemplo, deixou repentinamente de ser falado e foi integralmente substituído pelo português: as mudanças foram lenta, gradual e continuamente ocorrendo e resultaram, ao cabo de vários séculos, numa forma de falar que, identi�cada com o Estado que se formou no ocidente da Península Ibérica, terminou por receber o nome de português. Segundo a teoria de seleção natural, quando uma espécie apresenta características em variação (ou concorrência), as quais podem ser mais ou menos especi�cadas pela reprodução e hereditariamente selecionadas, a tendência é que permaneçam as características que mais contribuem para a sobrevivência da espécie, ou seja, que ocorra uma seleção natural de propriedades favoráveis à adaptação e à sobrevivência. Assim como no caso da mudança linguística, a seleção natural é lenta e gradual e pode resultar em transformações bastante signi�cativas. Voltando ao cenário linguístico, as línguas apresentam variação inerente, formas concorrem por certos períodos até que uma mudança ocorra: ou as formas assumem funções distintas na língua ou uma dessas formas em concorrência deixará de ser empregada pelos falantes. Mas essa dinâmica interna das línguas não é tudo. Com o desenvolvimento das civilizações, certamente a capacidade de adaptação política, econômica e cultural (dos povos falantes) das línguas tornou-se conditio sine qua non para sua manutenção (ou sobrevivência). Ainda que a analogia biológica possa ser esclarecedora (se empregada como metáfora cientí�ca, não como fenômeno de mesma ordem), nem todos concordam com a teoria de que a linguística tenha sido in�uenciada pela visão darwiniana. Weedwood (2002, p. 93-94) aponta que há certa antecipação dos estudos de linguistas comparativistas aos estudos darwinistas. Ainda assim, consideramos que a in�uência nos modos comparativistas de descrição e de análise não eram oriundos especi�camente das teorias esboçadas por Darwin, mas de uma tendência difundida entre os naturalistas do início do século XIX, de oposição ao criacionismo – o que incidiu também sobre a negação do mito de Babel e da ideia de monogênese linguística segundo a qual o hebreu teria sido a língua original. De qualquer modo, em função da base materialista que a sustentou em seu surgimento, consideramos que a ciência linguística “[...] não pôde livrar-se da poderosa in�uência das ciências naturais, que �zeram enormes progressos naquele período, nem da in�uência do darwinismo” (VIDOS, 1996, p. 38), que alavancou muitas áreas do conhecimento. Para atestar essa in�uência, vamos iniciar nossa análise pela leitura da descrição apresentada por Robins (1967) em relação ao trabalho de relacionamento histórico entre línguas de J.J. Scaliger[4]. O objetivo deste autor, além de construir um conhecimento sobre as diferentes línguas orientado pela comparação entre seus aspectos fonológicos e léxicos (descrever para comparar e compreender), também era o de desvendar o mistério acerca de qual seria a língua mais antiga, a primeira de todas. Scaliger distinguiu onze famílias de línguas, quatro maiores e sete menores, que cobriam todo o continente europeu. Para ele,as línguas reunidas numa mesma família eram geneticamente relacionadas, porém entre as diversas famílias não seria possível estabelecer nenhum parentesco. A classi�cação genealógica de Scaliger coincide de modo geral com a dos modernos, exceto por reunir o que hoje se separa como subfamílias de maiores, entre elas a indo-europeia e a ugrofínica. Para Scaliger, as línguas incluídas num mesmo grupo provinham de uma mesma protolíngua, como acontece com os idiomas românicos em relação ao latim. As línguas que serviam de ponto de partida para outras, chamou- as Muttersprachen ou matrices linguae (línguas matrizes) (ROBINS, 1967, p. 134, negritos acrescidos). Os termos destacados no texto de Robins dão conta do que chamamos metáfora evolucionista para a explicação da origem das línguas. Desde a ideia de relação genética até o estabelecimento de uma genealogia, vemos o domínio dos graus de parentesco orientando as relações postas entre os grupos de línguas. Muito provavelmente, esses grupos apresentavam aspectos comuns em termos de léxico ou de fonologia em virtude da proximidade geográ�ca dos povos falantes dessas línguas e de fenômenos regulares de disseminação das línguas, a exemplo das grandes migrações históricas do Homo sapiens, do contato fronteiriço multilíngue, que acarreta processos como os de empréstimos linguísticos, das guerras, dos contextos de dominação e de atividades econômicas, como o comércio[5]. O cruzamento de características linguísticas similares entre as línguas descritas pelos comparativistas funcionava como estratégia para o estabelecimento de ligações entre elas. Essas ligações denunciavam relações mais próximas ou mais distantes e davam margem para que se pensasse, por exemplo, a questão dos estágios de desenvolvimento das línguas e possíveis relações de anterioridade e de posterioridade entre elas. Como vemos, a metáfora evolucionista cumpria e ainda cumpre uma função central na descrição clara dessas relações. Por ela era possível especi�car as relações temporais, com o estabelecimento de diferentes gerações (língua-mãe e línguas-�lhas), e também expressar a discretude observada entre certos grupos de línguas (entre as diversas famílias não seria possível estabelecer parentesco). Muitas vezes, veri�camos in�uências marcadas de forma estrutural nos processos de descrição linguística. A�rma-se que Schleicher, um dos mais expressivos gramáticos comparativistas do século XIX, propôs uma explicação genealógica para demonstrar as relações atestadas por correlações linguísticas entre uma língua extinta e os grupos de línguas observáveis, em que “[...] voltou-se justamente para o estudo da natureza e forma desse hipotético idioma matriz e para o estudo das relações entre ele e os seus descendentes conhecidos” (ROBINS, 1967, p. 144, negrito acrescido). Esse idioma matriz reconstruído é o proto-indo-europeu e o modo como Schleicher apresentou as descobertas de seus estudos acerca das relações e das origens de línguas indo-europeias “[...] deve muito aos métodos de classi�cação botânica por espécies [...]” (ROBINS, 1967, p. 144). Mas claro que o método comparativo não consistia em uma cópia de procedimentos botânicos, apesar de alguns comparativistas terem sido fortemente in�uenciados pelas ciências naturais. O método comparativo de estudo das línguas assumia que [...] entre elementos de línguas aparentadas existem correspondências sistemáticas (e não apenas aleatórias ou casuais) em termos de estrutura gramatical, correspondências essas passíveis de serem estabelecidas por meio de uma cuidadosa comparação. Com isso, podemos não só explicitar o parentesco entre línguas (isto é, dizer se uma língua pertence ou não a uma determinada família), como também determinar, por inferência, características da língua ascendente comum de um certo conjunto de línguas (FARACO, 2005, p. 134, negrito acrescido). Além da metáfora de deriva genética das línguas, outra que teve grande aceitação entre os estudos linguísticos foi a de seleção natural, como vimos. Línguas surgem e desaparecem ao longo de toda a história da civilização. Como nos referimos a isso? Podemos dizer que uma língua nasce de outra (o que envolve a ideia de língua-mãe ou língua ascendente, conforme Faraco) ou que, quando extinta, trata-se de uma língua morta, que exempli�camos antes. O que veri�camos, então, é um processo regular de manutenção ou de apagamento linguístico, que pode ser referido em termos de adaptação às transformações mais especí�cas internas às próprias línguas ou mesmo às transformações externas mais gerais, concernentes à história da humanidade (algumas línguas indígenas tornaram-se línguas mortas porque seus falantes foram dizimados, por exemplo) e, dessa capacidade de adaptação natural, resultaria a possibilidade de manutenção social das línguas. Adaptar-se a transformações mais gerais, para dar apenas um exemplo, inclui subsistir aos processos de expansão territorial e de dominação de povos cuja soberania passa pela hegemonia linguística. Uma língua morta é aquela que, sem falantes nativos, por não ter mais substância social su�ciente, deixa de ser empregada por comunidades de fala até se tornar extinta. Em nosso contexto, o latim tem de ser o exemplo imediato de língua nessa circunstância, mas duas situações precisam ser distintamente pontuadas: (a) podemos dizer que o latim é uma língua morta porque, concretizados os processos naturais de variação e de mudança linguística, hoje temos apenas falantes de línguas identi�cadas como sistemas linguísticos distintos do latim, mas dele derivados, e não restou nenhum falante nativo de latim, tal como essa língua era conhecida pouco antes de Cristo; (b) as transformações políticas e culturais, que identi�camos como “transformações mais gerais” por que passam as línguas, não são determinantes para que uma língua seja extinta, mas criam situações que podem orientar, por exemplo, o curso das mudanças linguísticas, como quando línguas antes distanciadas geogra�camente (o português europeu e as línguas indígenas ameríndias) são postas em contato e essa circunstância cria um novo contexto de variação e mudança (veri�cável hoje no português brasileiro). Segundo o ditado, os romanos tinham muita força, mas nenhum verniz. Apoiados pela força, eles dominaram povos e impuseram o latim como língua de dominação – e isso originou uma gama de novas circunstâncias de contato linguístico. Com o passar do tempo, do latim vulgar, que esteve em contato com línguas locais dos povos dominados, foram surgindo outras línguas. Nesse berço, nasce o português arcaico (do qual se originou o português moderno e, hoje, o português brasileiro) derivado da subfamília itálica. Uma visão mais precisa dessa origem pode ser extraída da Figura 1, de Ilari e Basso (2011), em que os autores marcam com o símbolo “ † ” as línguas mortas (sem falantes nativos): Figura 1 Origens do português Fonte: Ilari e Basso (2011, p. 16). Aquilo que apontamos aqui em nenhuma medida menospreza o método comparativo, que será estudado mais detidamente no capítulo 2 – Origem e diversidade das línguas. Pelo contrário, a relação com as ciências naturais decorre de uma interferência legítima entre campos do saber e a linguística histórica ainda se vale de procedimentos de descrição e de análise inaugurados pelos comparativistas. Contudo, desejamos evidenciar como o campo da biologia conseguiu se espraiar também sobre o discurso cientí�co da linguística, deixando-se perceber nas estratégias e na metodologia de descrição e de classi�cação dos objetos de estudo, as línguas naturais observáveis (português brasileiro, kaingáng) e as hipotéticas (como o proto- indo-europeu, língua-mãe reconstruída de que falamos antes). O ponto que nos interessa é evidenciar a perspectiva tácita de se tomar as línguas de forma orgânica, aplicando-se a elas conceitos e procedimentos tão íntimos da teoria naturalista. 1.3 PADRÕESLINGUÍSTICOS, PADRÕES SOCIAIS Além da abordagem evolucionista sobre grupos de línguas, também estudos estritamente sociais permitem que se olhe para línguas especí�cas e que se veja nelas, mais claramente nos padrões linguísticos, o espelho de padrões sociais e de estruturas de poder. Para esclarecer o que temos em mente, podemos pensar que certas acepções, que vão gradativamente se apagando do signi�cado das palavras em função de seu uso através dos tempos, quando recuperadas, causam espanto e nos fazem pensar sobre o surgimento delas e sobre a sociedade em que elas foram originalmente empregadas. É curioso perceber que esse espanto vem, ao mesmo tempo, de uma surpresa linguística (semântica) e de uma surpresa histórica e social. Pensemos, para ilustrar, na etimologia de família[6]. Um falante de português na atualidade não recupera qualquer informação sobre a história de derivação semântica da palavra família ao empregar o termo em seu dia a dia. Isso é o que dá origem a boa parte da surpresa linguística quanto à etimologia do termo. Ao signi�cado de família, atribuímos acepções bastante positivas, ligadas à composição de células de convivência que se constituem por graus de parentesco, relações de afetividade e sentimentos amorosos. Entretanto, voltando séculos na história da língua, descobrimos que o termo família, de origem latina, denotava o conjunto de posses de alguém e era utilizado para a demarcação de propriedade de pessoas, como escravos e parentes. Família deriva de famulus, que designava um escravo doméstico. Em um modelo de sociedade patriarcal, em que a �gura do homem detinha o status de “centralizador/possuidor” dos demais membros da unidade familiar, não é difícil irmos do signi�cado de famulus ao de família. No entanto, os tempos mudaram e a concepção social de família também mudou. Por essas razões, acepções antes vivas para o termo hoje são rejeitadas por aqueles falantes que nem reconhecem o modelo patriarcal como legítimo nem aceitam que se desvincule o termo família da ideia de união afetiva de indivíduos (muito distinta da união escravocrata ou serviçal). Nesse ponto chegamos à surpresa histórica e social que perpassa um aspecto da história da língua: julgamos a sociedade em que o termo surgiu a partir dos elementos ideológicos que aparecem na língua. Tendemos a avaliar que, no seu contexto de surgimento, a acepção de família revela uma sociedade que não se guiava por princípios igualitários, como os de direito. Entretanto, é arriscado julgarmos que estamos tão longe assim dessa sociedade. Um debate muito atual no Brasil diz respeito ao chamado Estatuto da Família[7], em que, a despeito do signi�cado socialmente atribuído ao termo família, parlamentares sugeriram uma de�nição legal de família que regressa à ideia patriarcal e, portanto, está mais para famulus que para família – de�nição camu�ada sob o rótulo limitativo de “tradicional família brasileira”, em que o termo tradicional é uma referência à composição histórica e bíblica das células familiares. Claramente não se pode legislar sobre o signi�cado de família enquanto item lexical da língua, mas é possível legislar sobre a de�nição legal de família que uma sociedade adota – o que tem efeitos não linguísticos, mas civis. Questões como essa só vêm à tona quando nos debruçamos sobre a história da língua e explicitamos os pontos em que é possível perceber ideologias representadas por meio daquilo que é subjacente ao linguístico. A menos que seja linguista, estudante de línguas clássicas (como latim) ou um curioso sobre etimologias, o falante possui um conhecimento lexical que é cego para a história da língua e para o percurso de derivação das palavras (incluindo-se aí a derivação semântica). Também por isso há uma grande diferença entre estudar a competência lexical dos falantes e estudar etimologia, já que a história do inventário léxico de uma língua e o tipo de conhecimento lexical que seus falantes possuem são coisas bem distintas. Novamente a dualidade da linguagem se revela. Uma análise similar pode ser feita a respeito de como estruturas sociais se projetam sobre estruturas linguísticas especí�cas – o que recobre léxico e gramática. Nos últimos anos, diversos estudos de base sociológica têm levantado um debate em torno da chamada linguagem não sexista ou linguagem inclusiva (para usar um termo que recobre outras questões além das de gênero). No bojo dessas pesquisas, sustenta-se a tese de que, na linguagem, revelam-se representações acerca do desequilíbrio de valoração social entre homens e mulheres. Segundo esses estudos, décadas de investigação apontaram que a linguagem “[...] nas sociedades ocidentais, por ser um sistema simbólico profundamente arraigado em estruturas sociais patriarcais, não só re�etia mas também enfatizava a supremacia masculina” (CALDAS-COULTHARD, 2007, p. 233). A supremacia estaria reforçada, por exemplo, no emprego da forma masculina (categoria gramatical de gênero) como genérica em qualquer contexto. Nessa perspectiva, usos como “todos os leitores compartilham essa experiência satisfeitos” não são considerados genéricos legítimos porque produziriam uma exclusão da parcela de mulheres leitoras (categoria social de gênero), tendo em vista a seleção do masculino como estratégia de referência generalizante. Uma ação empreendida a partir dessa posição, portanto, foi assumir que, na relação da linguagem com as representações de gênero cultural difundidas, “[...] palavras devem ser reapropriadas e novos signi�cados propostos [...]” (CALDAS-COULTHARD, 2007, p. 232). Entretanto, essa orientação incidiu não nas palavras, mas sobretudo na categoria de gênero gramatical e na forma como ela passou a ser expressa em falas públicas e em contextos mais formais de emprego da escrita, principalmente por órgãos públicos de prestação de serviços à população. Duas medidas foram adotadas como inclusivas: ou ocorre a duplicação de gênero, para que não se faça segmentação sexista (todas as leitoras e todos os leitores compartilham essa experiência satisfeitas e satisfeitos) ou se utiliza uma expressão que, embora possua gênero gramatical marcado, não produza segmentação por ser um genérico verdadeiro: “todas as pessoas leitoras compartilham essa experiência satisfeitas”. O esforço para o falante substituir um modo de referência por outro é algo que, claramente, desa�a-o na tentativa de produzir usos linguísticos não excludentes. Isso ocasionou, nas esferas públicas, o surgimento de diversos guias, como o publicado pelo Ministério da Economia e do Emprego de Portugal (PORTUGAL, 2011), Guia orientador para uma linguagem promotora da igualdade de género, e o publicado no Brasil, pelo Estado do Rio Grande do Sul (2014), Manual para o uso não sexista da linguagem. Nesses guias é possível encontrar orientações que vão desde a instrução prática sobre como usar a linguagem até discussões ideológicas sobre a temática linguagem sexista e seus efeitos sociais. No cenário político brasileiro, uma decisão da presidência da república (no ano de 2011) colocou em evidência esse debate, ao ser o�cialmente adotado o termo presidenta para referência à então Presidenta Dilma Rousseff, primeira mulher eleita para o cargo no país. À época, gramáticos prescritivistas, linguistas e muitos outros pro�ssionais (em especial os jornalistas) emitiram suas opiniões de apoio ou de contraposição à medida. Na prática, o que se veri�cou foi o cumprimento parcial dessa determinação, quase um processo de variação linguística muito politizada e até partidária, em que pessoas sensíveis à promoção de uma linguagem inclusiva adotaram o termo presidenta, enquanto outras, por mais que pudessem ser sensíveis à mesma questão, mantiveram-se no emprego do termo presidente, deixando a especi�cação de gênero gramatical por conta do artigo feminino (a presidente) e desvinculando o uso linguístico das representações sociais de gênero. Maistarde, essa posição presidencial teve outros desdobramentos legais e hoje, por força de lei[8], a expedição de diplomas no Brasil deve designar a pro�ssão e o grau obtido com a �exão de gênero relativa ao sexo da pessoa diplomada – como licenciado ou licenciada em Letras, mestre ou mestra em Linguística. Apesar do valor social dessa medida, ela é uma ação que acaba por legislar sobre comportamentos linguísticos e tem efeitos bem claros, como o surgimento de formas que nascem de motivações essencialmente políticas (caso de presidenta) e não de motivações internas da língua (morfológicas, fonológicas etc.). Um último exemplo que apresentamos, ilustrando a relação entre aspectos sociais e estrutura linguística, é o de como práticas religiosas in�uenciam o estudo do paradigma pronominal do português. Comecemos com a questão: Por que nossas crianças e jovens ainda estudam na escola o vós como pronome pessoal do caso reto? Há alguns fatores que poderiam responder a essa pergunta, como os que decorrem da prescrição gramatical enquanto prática de ensino e da manutenção de vós nos manuais didáticos. Mas aqui temos outro motivo em mente. Não há nada na prática de linguagem que possa apontar para um paradigma pronominal em que vós (seus pronomes e �exões equivalentes) seja parte do português brasileiro. Entretanto, a in�uência das religiões cristãs contribui para que se mantenha o padrão do texto bíblico, em que vós e seus efeitos de concordância são frequentes, como limitador para os processos de mudança no estudo das pessoas gramaticais, principalmente em sistemas de ensino mais tradicionais. “Trata-se de maneira inequívoca de um pronome arcaizante que se faz presente apenas nos textos bíblicos lidos em templos religiosos” (LOPES, 2012, p. 117). O resultado disso é um ensino de língua arti�cializado quanto ao estudo dos pronomes pessoais, que não corresponde à realidade linguística e que não é capaz de absorver as transformações pelas quais passou o paradigma pronominal do português brasileiro nas últimas décadas. Análises como as que apresentamos aqui só podem emergir quando aspectos sociais são incorporados à investigação linguística. Os desdobramentos da sociolinguística variacionista, alicerçada a partir dos trabalhos de William Labov publicados principalmente em torno dos anos de 1970, certamente estão na base de muitos estudos posteriores, e os inspiraram a problematizar as relações entre língua e sociedade. De acordo com essa perspectiva, os fatos linguísticos têm constituição social, caráter variável, e isso tudo pode ser observado no uso espontâneo da língua, em que estão presentes e em que são observáveis associações entre a estrutura linguística e a estrutura social (LABOV, 2008 [1972])[9]. A assunção de que as línguas são heterogeneamente compostas, de que fatores sociais têm in�uência sobre elas, originando-se condicionantes sociais para os fatos da língua e pressões sociais que acarretam mudanças linguísticas são revelações que nos ajudam a construir uma compreensão mais nítida do que está por trás de certas cenas de linguagem. A re�exão que conduzimos nesta seção pode ser sumarizada em três pontos. O vós é arcaico e não se pode mudar isso, mas a tradição religiosa funciona como um agente social que pressiona e conserva a forma arcaica nas situações de ensino de língua. A mudança semântica é constante e guiada pelo uso, é uma parte da história da língua, ainda assim, podemos retomar essa história a qualquer ponto e legislar sobre o signi�cado que se pretende colocar em foco, ainda que ele seja apenas uma acepção histórica do item lexical (caso de família, que discutimos) e não esteja mais presente na comunidade de fala. E, �nalmente, a categoria de gênero gramatical e as categorias sociais de gênero são coisas distintas; ainda assim, nada impede que o elemento gramatical seja usado como instrumento de opressão ou de enfrentamento à opressão. 1.4 NÃO É DUALIDADE, É AMBIVALÊNCIA Antes, dissemos que as línguas humanas são caracterizadas por uma ambiguidade em seu estatuto cientí�co, porque são tanto um objeto natural quanto um objeto social. Com base na relação cumulativa e não opositiva entre essas duas propriedades, discutimos alguns efeitos da dualidade entre o componente natural e o componente social da linguagem, desde questões de formulação do objeto que a ciência linguística isola para investigar (como no caso da aquisição de linguagem: biológica e/ou social) até questões relativas aos procedimentos de análise, como as metáforas de base naturalista empregadas pela linguística histórica, que produzem uma organização histórica e orgânica das línguas. Ainda com foco na dualidade da linguagem, re�etimos sobre como padrões sociais e padrões linguísticos podem se fundir e, dessa fusão, como emergem usos linguísticos associados a comportamentos sociais. Sua associação irrestrita faz com que o comportamento linguístico do falante seja valorado de acordo com a valoração do comportamento social associado ao uso. Com isso, re�exos podem ser sentidos sobre a forma gramatical das línguas (expressão de gênero gramatical, estudo escolarizado dos pronomes), sobre o léxico (signi�cados associados a família) e até mesmo sobre o comportamento linguístico dos falantes em situações sociais de vigilância e de monitoramento (guias que regulamentam os usos em dados contextos). Com isso chegamos ao ponto em que nos perguntamos se essa re�exão de fato rea�rma a dualidade da linguagem que inicialmente colocamos em pauta ou se nos encaminha para outra direção, a da ambivalência. São tantas as tensões acumuladas no território da linguagem, e nem sempre neutralizadas, que a Linguística parece mesmo um campo em que elementos antagônicos entram em con�ito, mas acabam por coexistir; isso é o que nos dá um objeto de estudo ambíguo em seu estatuto cientí�co, cujo recorte teórico de investigação pode ser tão diverso quanto sua própria constituição. [1]. A história de Kaspar Hauser foi retratada no �lme O enigma de Kaspar Hauser, dirigido por Werner Herzog. Nossa discussão, entretanto, não se orienta pela obra cinematográ�ca, mas pelos estudos de Masson (1996). [2]. Existem outros casos (igualmente intrigantes) de indivíduos que sofreram algum modo de isolamento social durante a infância e que podem ser pesquisados pelo leitor que desejar saber mais sobre desenvolvimento não regular da linguagem. Sugerimos a leitura do texto e linguistic development of Genie, de Curtiss et al. (1974), em que os autores apresentam e discutem o caso de Genie, uma adolescente privada do convívio social do início de sua vida até a adolescência. [3]. Como veremos adiante, essa posição intermediária pode ser identi�cada pelos trabalhos de Michael Tomasello e colaboradores, além de diversos gerativistas, como Steven Pinker e colaboradores. [4]. Não nos referimos a Scaliger (1540-1609) como representante de um discurso naturalista, o que seria um anacronismo evidente. Referimo-nos desse modo à forma como Robins, já no século XX, apresenta o trabalho de Scaliger. Por ter produzido seus estudos ainda sob o cerco da Igreja Católica, que impunha às ciências toda a limitação necessária para que se mantivessem as “verdades cristãs”, o estudo de Scaliger nem costuma ser considerado digno de grande credibilidade. [5]. Sobre essa discussão, cf. a seção 2.3: “Famílias de línguas”. [6]. Dicionários etimológicos nos dão a informação acerca da história da palavra, como a que pode ser encontrada em Cunha e Mello Sobrinho (2007). As demais relações, entretanto, �cam a cargo do leitor. [7]. Projeto de Lei proposto em 2013 pelo então Deputado Anderson Ferreira (PR/PE), que tramitou na Câmara dos Deputados em 2015 (tendo sido aprovado em votação da casa) e que reconhece “[...] entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquerdos pais e seus descendentes” (BRASIL, 2013, n.p.). [8]. Lei n. 12.605, de 3 de abril de 2012. [9]. Para o leitor que deseja conhecer o padrão de estudo sociolinguístico laboviano, recomendamos a leitura do texto “A estrati�cação social do (r) nas lojas de departamentos na Cidade de Nova Iorque”, disponível em Labov (2008 [1972]). Capítulo 2 Origem e diversidade das línguas 2.1 A TEORIA PLATÔNICA DA LINGUAGEM: O CRÁTILO Ler o Crátilo, um dos mais famosos diálogos de Platão, é uma experiência surpreendente, pois é como se entrássemos em um túnel do tempo e caíssemos em plena praça pública da Atenas antiga; cada enunciado expresso ali faz um enorme sentido no contexto daquela discussão, mas se comparamos com o nosso tempo, as crenças sobre a linguagem expressas no diálogo estão totalmente distantes do que sustentam os estudos linguísticos modernos. Crátilo, com o subtítulo Sobre a justeza dos nomes, relaciona-se com outro diálogo de Platão, Teeteto, que aborda mais amplamente a questão do conhecimento. Crátilo, entretanto, particulariza o problema do conhecimento e o restringe ao que se pode chamar de conhecimento acerca da linguagem. O debate em que Sócrates defende a posição de Crátilo sustenta uma batalha retórica desproporcionada, em que um dos debatedores apenas consente, já que Hermógenes é somente alegoria de objeção (malsucedida) para a defesa da tese de que os nomes, com suas sílabas e letras, estão tão intrinsecamente ligados à natureza das coisas nomeadas que são capazes de capturar destas a essência, a ideia fundamental – por essa razão conhecida como posição naturalista. O pensamento platônico que dá lugar ao contexto de produção de Crátilo não sai em busca dos enigmas da linguagem, mas em busca dos enigmas que obscurecem nosso entendimento sobre o que é o conhecimento humano e sobre como ele poderia ou não poderia ser compreendido de forma autônoma à linguagem, em uma abordagem pura. Em Teeteto, Platão chega a assumir a tese de que o debate sobre o conhecimento só pode ser feito por meio da linguagem, do estudo de suas características e de sua origem. A linguagem emerge, portanto, como um importante aspecto do estudo platônico sobre o conhecimento. Assim nasce Crátilo e, por isso, esse texto se enreda nas questões sobre a natureza da linguagem e sobre as relações que existem entre linguagem e realidade, e entre linguagem e pensamento, as quais até a atualidade têm embalado discussões em áreas afetas à �loso�a da linguagem e à semântica, como os estudos modernos produzidos em torno do papel da linguagem para a categorização do mundo e para a construção conceitual. O debate principal do diálogo, entretanto, é a oposição entre naturalismo e convencionalismo do signo linguístico[10]. O signo linguístico (de uma maneira simpli�cada, a palavra) é uma junção de som e sentido. Os naturalistas julgam que deve existir uma relação entre a forma da palavra e o sentido que ela expressa. Um exemplo são as onomatopeias: au-au designa em português brasileiro o som que um cachorro faz e tenta-se reproduzir esse som na própria palavra; por isso, considera-se que as onomatopeias são representações naturais dos signi�cados. Nesse sentido, a ideia dos naturalistas é a de que todas as palavras devem ter alguma relação natural entre som e sentido. Os convencionalistas, por outro lado, defendem que o som de uma palavra nada tem a ver com o sentido que ela designa; as onomatopeias são apenas exceções a esse princípio. Note-se que o convencionalismo, também conhecido como princípio da arbitrariedade do signo, é hoje aceito como um princípio básico da linguística moderna, e é essa uma das razões que nos levam a estranhar as ideias defendidas no Crátilo. Sócrates, ao se juntar a Crátilo na defesa do naturalismo, domina o debate em especial porque Hermógenes, embora assuma posição inicial em favor do convencionalismo, muito pouco argumenta em defesa de sua tese (no diálogo não há defesa do princípio da arbitrariedade). É verdade que, ao �nal, Sócrates relativiza sua posição e ataca o naturalismo radical, admitindo alguma forma de convenção no uso linguístico, pois, de outra forma, a palavra, de tão semelhante à coisa que designa, poderia ser um substituto da coisa em si, o que ele reconhece ser inadmissível. Alguns comentadores desse diálogo platônico chegam a dizer que no �nal Sócrates se mostra convencionalista, mas a nossa leitura é a de que ele é fundamentalmente um naturalista (SEDLEY, 2003). Em termos saussureanos, quando o assunto é o signo linguístico, resultante da associação de um signi�cante a um signi�cado, “[...] o signi�cante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao signi�cado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade” (SAUSSURE, 2006 [1916], p. 83, grifos no original). Mas muito antes de Saussure elaborar, de uma maneira clara e precisa, o conceito de arbitrariedade do signo linguístico, o �lósofo Descartes já havia sustentado que as palavras se ligam arbitrariamente às coisas que elas denotam. O argumento dele é �losó�co e é um dos fundamentos da revolução cientí�ca que ocorreu no século XVII. Descartes argumentou que para estudar a natureza é preciso separar a percepção sensorial feita pelo ser humano e a realidade das coisas naturais. Tradicionalmente, acreditava-se que as coisas eram essencialmente o que pareciam ser para nós, através de nossos sentidos (CLARKE, 2006, p. 115). Isso leva a erros curiosos: não há nenhuma propriedade em uma pena de pássaro que seja similar à sensação causada em uma criança, quando alguém roça a pena nela. Ela sente cócegas, mas essa sensação é totalmente diferente da natureza da pena em si. Para estudar a pena, é preciso esquecer as cócegas e atentar para a estrutura físico-química que a compõe. Ora, as palavras e as coisas também pertencem a categorias diferentes, e é um erro, conforme essa visão, buscar nas palavras semelhanças com as coisas que elas representam, assim como é um erro buscar nas coisas as mesmas sensações que elas nos causam. Outro �lósofo do século XVII, Leibniz, também criticou a visão tradicional de que as coisas são aquilo que parecem para nós. Ao caracterizar o que seria uma �loso�a racional e distingui-la do que sarcasticamente chama �loso�a fanática, ele até mesmo ironizou a posição de pensadores que [...] salvaram as aparências forjando expressamente qualidades ocultas ou faculdades que imaginavam semelhantes a pequenos demônios ou duendes capazes de fazer o que se pede, como se os relógios de bolso assinalassem as horas por uma certa faculdade horodeítica [que aponta as horas] sem necessidade de engrenagens de rodas, ou como se os moinhos triturassem os grãos por uma faculdade fractiva sem ter necessidade de nada que se assemelhe às mós (LEIBNIZ, 1972 [1765], p. 129). Não existe, é claro, essa propriedade de dar as horas, assim como não existe nas palavras nenhuma propriedade que as ligue às coisas que representam. Mas a �loso�a platônica aponta na direção contrária, para uma essência das coisas re�etida pela exatidão dos nomes – essa propriedade essencial seria a verdade segundo a qual se pode provar que as coisas possuem um nome natural e certo que viemos a conhecer, mas cuja origem nem sempre sabemos revelar e tampouco podemos modi�car. Para chegar a ela, Sócrates invoca o argumento de autoridade de deuses, de sujeitos judiciosos (representados por Homero) e de legisladores por eles compreenderem as relações entre as coisas e os nomes e por estarem à frente dos insensatos (“alguns homens e todas as mulheres”, conforme a visão platônica), para quem essa verdade não transparece. Sinuosamente, a argumentação naturalista de Sócrates busca inspiração mesmo em domínios que não são da linguagem; a�nal, para tudo existe um modo natural de acontecimento: ser bem-sucedido ao cortar as coisas exige que a ação se faça como manda a natureza, pelo modo apropriado de cortá- las, e não do jeito que bem se desejar;ao decidirmos incendiar alguma coisa, não precisamos ser imaginativos, basta que sigamos o modo certo que nos é indicado pela natureza e conseguiremos queimá-la; uma pessoa não fala como bem entende, mas seguindo o caminho natural da fala, pronunciando as palavras como devem ser pronunciadas, ou ela falhará por não respeitar o modo natural de falar. São analogias de intenção clara: conduzir o interlocutor para a verdade da natureza das coisas, o que inclui a exata aplicação dos nomes. Ao chegar à abordagem da fala como ação de curso claramente natural e coletivo, insubordinada às vontades individuais, Sócrates afronta a ideia de Hermógenes de que, independente de qual nome seja dado a uma coisa, esse será o nome certo, pois entre o nome e a coisa só habita a convenção. Assim, na visão de Hermógenes, um indivíduo poderia chamar a um objeto rastelo ainda que todos os outros indivíduos chamem a esse objeto garfo, sem ter prejuízo para denominação. O levante de Sócrates, por outro lado, acusa: caso essa seja a verdade sobre as coisas, como se justi�caria esse mesmo indivíduo estar sujeito a obedecer ao caminho natural da fala? Se essa exigência se coloca, a justeza dos nomes é parte dela e não podemos chamar um garfo de rastelo. O naturalismo de Platão, por estranho que possa parecer aos olhos modernos, está ligado a uma série de crenças e ideias do platonismo, que passamos a discutir mais pontualmente. 1) As coisas e seres têm uma essência permanente. Nada mais natural que cada palavra, visando a representar as coisas, tente caracterizar pelo menos uma das propriedades da coisa ou ser por ela representada. Portanto, a ligação mais natural não é exatamente entre som e sentido, mas entre o sentido da palavra e a essência atribuída à coisa. O som apenas ajuda a chegar a esse sentido que leva à essência. No exemplo detalhado no Quadro 3, se o corpo (sôma) está ligado à sepultura (sêma), é porque o corpo é a sepultura da alma, e essa é a essência do corpo. Note-se que essa explicação é quase poética e cabalística; mas o que importa a Platão é investigar o que um conceito, como “corpo” ou “justiça”, realmente signi�ca. A forma fonológica das palavras (sôma- sêma), tomada por semelhança, pode ajudar nessa investigação das essências. Quadro 3 Esquema naturalista Fonte: Exemplos extraídos de Platão (2001). Há, entretanto, uma fenda na argumentação de Crátilo. Ao discutir o nome Orestes (personagem mitológico), na análise de sua justeza em relação ao indivíduo que nomeia, o debatedor a�rma a possibilidade de seu nome não obedecer à ordem natural: o “[...] nome me parece bem aplicado, quer o tenha ele recebido por acaso, quer o denominasse desse modo algum poeta, para indicar seu caráter feroz e selvagem, e a aspereza das montanhas (oreinòn), como o nome está a indicar” (PLATÃO, 2001, 394e, negrito acrescentado)[11]. A obra do acaso poderia ter lugar em uma visão naturalista da origem da linguagem? Sendo o legislador aquele que responde pela astuta tarefa de dar às coisas o nome exato para que lhes expresse a essência que possuem, o poeta que nomeia Orestes não poderia ser guiado pela mão do acaso, ou seja, não poderia adotar uma ação não motivada, o que seria o mesmo que sofrer incidência da convenção ou do costume. Contudo, Sócrates resguarda o argumento, ao considerar que os nomes dos heróis não são boa amostra para a sua re�exão, pois podem resultar de decisões acidentais. Melhor enfocar os nomes de coisas gerais ou alusivas à natureza. 2) A verdade sobre as essências das coisas é absoluta e não relativa de acordo com a crença de cada pessoa. O relativismo era defendido pelos so�stas, que Sócrates e Platão combatiam. Uma frase famosa de um so�sta, Protágoras, é citada no Crátilo (386a): “[...] o homem é a medida de todas as coisas, e por isso, conforme me parecerem as coisas, tais serão elas, realmente, para mim, como serão para ti conforme te parecerem”. Sócrates se insurgia contra esse tipo de a�rmação e então imaginou que as palavras devem representar necessariamente a essência das coisas. A relação som-sentido não pode ser arbitrária ou convencional, pois dessa forma cada pessoa teria uma apreensão diferente da essência das coisas, o que equivaleria a recair no relativismo sofístico. Como diz Sócrates (386e): as coisas “[...] não estão em relação conosco, nem na nossa dependência, nem podem ser deslocadas em todos os sentidos por nossa fantasia, porém, existem por si mesmas, de acordo com sua essência natural”. E nomear as coisas é designá-las de acordo com sua essência: “[...] convirá nomear as coisas pelo modo natural de nomeá-las e serem nomeadas, e pelo meio adequado, não como imaginamos que devemos fazê-lo [...]” (387d). E sobre tudo aquilo que não se pode explicar de forma natural, o que Sócrates tem a dizer? “Declarar que se trata de expressão bárbara” (416a) ou a�rmar que podem ser “[...] de origem estrangeira os nomes cujo sentido nos escapa” (421d) ou, ainda, considerar que “[...] a idade dos vocábulos é que os deixa indecifráveis” (421d). Sobre os nomes primitivos, aqueles que constituem a unidade primeira e pela qual muitos outros nomes derivados se explicam, não se considera que advêm de um estabelecimento operado pelos deuses, cuja palavra é inquestionável, pois não explicar um nome primitivo é o mesmo que invalidar a explicação de todos os seus derivados. Para os naturalistas, os nomes primitivos, como imitação das coisas nomeadas, formam-se por letras e sílabas que se assemelham aos objetos, re�etem propriedades e revelam alguns de seus aspectos mais característicos. No entanto, essa posição ainda não anula a dúvida que se tem acerca do primeiro nome ou nome original, pois o legislador, ao conceber o primeiro nome, detinha um conhecimento sobre a coisa nomeada que não pôde se construir por meio de outras palavras, não tinha outros nomes em que se apoiar para concebê-lo. Daí deriva a constatação platônica de que o conhecimento verdadeiro sobre as coisas não vem dos nomes, mas do ato de se conhecer a verdade sobre as coisas. O conhecimento antecede e independe do nome, conforme a posição naturalista. Isso é o mesmo que a�rmarmos que o legislador, para exercer a arte de fazedor de nomes, antes de qualquer coisa, é alguém que enxerga e conhece com clareza a natureza das coisas, inclusive abdica da linguagem para conhecê-las, uma vez que a linguagem (o nome) é mera imitação do mundo. Mas quem é esse legislador a quem tanto fazemos referência? 3) Segundo a opinião de Sócrates e Platão, a verdade e a essência das coisas devem ser estabelecidas pelas pessoas mais justas e mais razoáveis de uma comunidade. Essa é ideia por trás da República ideal de Platão, que seria governada por um conselho de sábios, com todos os poderes para legislar (uma estrutura absolutista e androcentrista de sábios, na verdade). Bem, só os sábios podem saber com justeza o que as palavras devem signi�car, para representar da melhor maneira possível as coisas que designam (por exemplo, a relação entre corpo e sepultura, sôma e sêma, já citada). Assim, os sábios devem buscar e de�nir qual a relação natural entre som, sentido e coisa representada. A convenção seria um artifício dos tolos, que aceitariam qualquer relação arbitrária. Platão sustenta que os sábios de�nem o sentido original das palavras. Esse é um dos pontos que causam mais estranheza na leitura do Crátilo. Sócrates rea�rma várias vezes que há legisladores sábios que de�niram, em algum momento da história, a relação som-sentido das palavras de uma língua. Ou seja, essa é a explicação platônica para a criação da linguagem: os homens sábios se reuniram e de�niram a forma e o signi�cado das palavras. A alegoria de Crátilo permite ver a linguagem não como o resultado do trabalho de divindades, mas como negócio dos homens; quer dizer, não de todos os homens, mas dos sábios. Como ação de linguagem, nomear implica o uso de um instrumento adequado
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