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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PPRROOGGRRAAMMAA DDEE PPÓÓSS--GGRRAADDUUAAÇÇÃÃOO EEMM PPSSIICCAANNÁÁLLIISSEE MMEESSTTRRAADDOO Pesquisa e Clínica em Psicanálise ÉRICA DE SÁ EARP SIQUEIRA A depressão e o desejo na Psicanálise Dissertação de Mestrado 1 IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO O presente trabalho foi inspirado em questões derivadas do atendimento psicanalítico a uma paciente idosa, acompanhada por, aproximadamente, um ano, no Núcleo de Atenção ao Idoso da Universidade Aberta da Terceira Idade (NAI/UNATI), durante a Residência em Psicologia Clínico-Institucional no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ), no período de 2001 a 2003. A paciente, que chamaremos D., tinha setenta e quatro anos e foi encaminhada pela triagem do NAI para a equipe de psicologia, apresentando uma demanda de atendimento individual. Desde as primeiras entrevistas, falava, insistentemente, sobre estar deprimida e, também, de suicídio, o que nos preocupou e levou a refletir sobre as possibilidades de uma intervenção psicanalítica. No decorrer de seu percurso clínico, no entanto, a paciente começou a elaborar e questionar sua queixa inicial, a "depressão", demonstrando uma abertura ao trabalho analítico e, mais especificamente, ao trabalho de luto, como veremos, posteriormente, na discussão do caso. Assim, foi o próprio trabalho clínico que nos instigou a retomar e discutir alguns conceitos psicanalíticos, afirmando o legado de Freud em sua ênfase na indicação de que, na psicanálise, a teoria e a prática são indissociáveis. Em Psicanálise: clínica e pesquisa, Luciano Elia enfatiza que toda e qualquer pesquisa em psicanálise é, necessariamente, uma pesquisa clínica, não apenas pelo fato 2 de utilizar, como “campo”, um espaço terapêutico, que pode ser o consultório, o ambulatório ou o hospital. O “campo de pesquisa”, no contexto da psicanálise, é o inconsciente, mais propriamente, o sujeito do inconsciente. Logo, “a clínica psicanalítica, como forma de acesso ao sujeito do inconsciente, é sempre o campo da pesquisa”.1 No primeiro capítulo, intitulado "Depressão: fenômeno ou estrutura?", pretendemos discutir a questão do diagnóstico em psicanálise e em psiquiatria, a fim de delimitar algumas diferenças no enfoque da depressão, termo eminentemente vinculado à psiquiatria e não à psicanálise. Entre o olhar clínico da psiquiatria e a escuta psicanalítica, procuramos destacar as contribuições da psiquiatria e da psicanálise na discussão do diagnóstico de “depressão”. Num segundo momento, propomos aproximar a psicanálise e a psiquiatria dos discursos formalizados por Lacan, o discurso do analista e o discurso do mestre, respectivamente. Buscamos, ainda, circunscrever, no âmbito da psicanálise, a questão da depressão como fenômeno ou estrutura. No segundo capítulo, nomeado “A depressão na velhice”, apresentamos um relato clínico do caso acima referido, ressaltando alguns aspectos peculiares da depressão na velhice, assim como as questões daí extraídas. Esboçamos, também, considerações sobre o discurso capitalista, articulando-as com a depressão na velhice. 1 ELIA, L. “Psicanálise: clínica & pesquisa” In: ALBERTI, S. & ELIA, L. (org.) Clínica e pesquisa em psicanálise, p. 23. 3 Já no terceiro capítulo, intitulado "Luto, melancolia, depressão", tomamos, como ponto de partida, o texto de Freud, “Luto e melancolia” (1917 [1915]), a fim de percorrer, em outros de seus textos, assim como nas contribuições de Lacan e de Melanie Klein, um caminho de delimitação de cada termo em articulação com aspectos do caso clínico apresentado. Encaminhamos a discussão de algumas questões, que podem ser assim formuladas: o que se perde ao perder o outro? Quais são os fatores em jogo no processo peculiar de cada reação à perda? Pois tanto o luto quanto a melancolia são “reações” diante de uma perda significativa, que pode ser de um ideal ou mesmo de uma “abstração”, como afirmava Freud. O luto, porém, diz respeito a um trabalho de elaboração diante de uma perda significativa, o que não é patológico. Já no caso da melancolia, não há a possibilidade de simbolizar a perda, que remete mais a um ideal. Abordamos, no mesmo capítulo, algumas semelhanças e diferenças entre a melancolia e a neurose obsessiva, tecendo considerações sobre a pulsão de morte, que se manifesta de forma diversa em ambas as estruturas clínicas, respectivamente, como pulsão de destruição e pulsão de dominação. Discutimos a relação entre depressão e melancolia, a partir de autores contemporâneos, como Urania Tourinho Peres e Antonio Quinet, uma vez que, ao longo 4 da obra de Freud, estes termos aparecem, muitas vezes, empregados como sinônimos ou acoplados em uma única expressão: "depressão melancólica”2. De acordo com Peres, podemos dizer que a melancolia é um termo que aparece, com freqüência, no mundo grego – em Hipócrates e em Aristóteles –, sendo também utilizado pelos autores clássicos da psiquiatria. Já o termo depressão surge mais tarde, juntamente com a psiquiatria clássica alemã, advinda do francês a partir do latim. Podemos constatar que, atualmente, o termo depressão vem ocupando um espaço cada vez maior em nossa cultura, na medida em que toda e qualquer tristeza passa a ser chamada de “depressão”. Ainda no terceiro capítulo, tomamos a depressão como “covardia moral”, tese de Lacan (1974), a partir de Dante e Espinosa, que consideramos central para nossa discussão: “A tristeza, por exemplo, é qualificada de depressão ao lhe conferir como suporte a alma; ou a tensão psicológica do filósofo Pierre Janet. Não se trata, porém, de um estado d’alma, é simplesmente uma falta moral, como se expressa Dante e até mesmo Espinosa: um pecado, o que quer dizer, covardia 2 Termos utilizados em: - FREUD, S. “Rascunho N”, AE, v. I, p. 298; ESB, v. I, p.307; “O método psicanalítico de Freud”, AE, v. VII, p. 241; ESB, v. VII, p. 240. “Uma neurose demoníaca do século XVII”, AE, v. XIX, p. 82; ESB, v. XIX, p. 96. 5 moral, que só se situa, em última instância, a partir do pensamento, ou seja, do dever de bem-dizer ou de orientar-se no inconsciente, na estrutura”3. Incluímos, também, um breve comentário sobre o conceito de posição depressiva de Melanie Klein, associando-o ao trabalho do luto, uma vez que tal teorização aponta para um processo inerente à constituição subjetiva, com efeitos sobre a maneira pela qual o sujeito irá lidar com perdas futuras, portanto, longe de ser considerado meramente patológico. No quarto e último capítulo, "O desejo, a falta e a lei", retomamos o grafo do desejo, conforme proposto por Lacan, para discutir a relação entre desejo e demanda e, por fim, entre depressão e desejo, já que, na depressão, o sujeito cede de seu desejo e, conseqüentemente, burla a falta. Finalmente, nos dedicamos a articular psicanálise e desejo, no sentido da ética do bem-dizer o próprio desejo e, mais propriamente, a contribuição do discurso do analista na consideração do sujeito “deprimido” na clínica dos dias de hoje. Acreditamos que, através da psicanálise, mais precisamente do discurso do analista, podemos resgatar algo da ordem do desejo, na medida em que, estando o 3 LACAN, J. Televisão, p.44. O grifo é nosso. 6 objeto a 4 no lugar de agente, o sujeito é instigado a falar e a produzir significantes. Operando através da ética do bem-dizer, a falta pode ser reintroduzida e o sujeito vir a se deparar com o seu desejo. É, justamente, nessa direção que Lacan propõe “o discurso do psicanalista como única saída para a ausência de saída do discurso capitalista”5. Indagamo-nos se a depressãonão seria justamente uma forma do sujeito de dizer “estou fora” dessa cultura que toma ares de maníaca e onipotente no contexto do discurso capitalista. Em “O mal estar na cultura” (1930), podemos reconhecer que o “mal-estar” é inerente ao sujeito, manifestando-se através da angústia, da tristeza e, até mesmo, da própria “dor de existir”6. Atualmente, o sujeito, ao dizer “estou deprimido”, é como se nada mais tivesse a dizer, não precisando deparar-se com o próprio desejo e, conseqüentemente, com a falta que lhe é estrutural. Consideramos que a tendência à “medicalização” da depressão é enganosa, no que diz respeito aos “sujeitos deprimidos”, na medida em que se trata de uma promessa ilusória de retorno a um estado de “felicidade absoluta”, ou seja, em que nada falta. 4 Este conceito será abordado no decorrer da dissertação. 5 ALBERTI, S. “Psicanálise: a última flor da medicina”. In: ALBERTI, S & ELIA, L. (org.) Clínica e pesquisa em psicanálise, p.46. 6 Este conceito será abordado no decorrer da dissertação. 7 A questão que resta é: se, para Lacan, o desejo advém da falta, o que acontece com o sujeito que se diz “deprimido” e que evita lidar com a falta que lhe constitui? Se não há falta, ou melhor, se a falta vem a faltar, como o desejo pode se fazer presente? 8 CCAAPPÍÍTTUULLOO II DDEEPPRREESSSSÃÃOO:: FFEENNÔÔMMEENNOO OOUU EESSTTRRUUTTUURRAA?? 1.1 - Diagnóstico psiquiátrico e psicanalítico da depressão Gostaríamos, inicialmente, de destacar a diferença entre o diagnóstico psiquiátrico e o diagnóstico em psicanálise, delimitando seus efeitos no enfoque específico da depressão. Passamos, em seguida, a discutir o lugar da “depressão” na clínica analítica em termos de sua definição como fenômeno ou estrutura. Quando falamos no estabelecimento de um diagnóstico psiquiátrico, está implícita a referência a um conjunto de sinais e sintomas observáveis, que, por sua vez, devem ser agrupados em um determinado quadro psiquiátrico. De acordo com Harold Kaplan, em Compêndio de psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica, a psiquiatria privilegia a fenomenologia. Nesse sentido, “os psiquiatras aprendem a dominar com mestria a técnica da observação precisa e da descrição evocativa, envolvendo o reconhecimento e a definição de sinais e 9 sintomas observáveis” 7. Os sinais comportamentais são achados objetivos, observados pelo médico e observáveis pela verificação direta do paciente, como por exemplo, o afeto rígido e o retardo psicomotor. Os sintomas seriam, por outro lado, as experiências subjetivas relatadas pelo paciente, como, por exemplo, o humor deprimido, também avaliados objetivamente pelo médico em seu olhar clínico, ou seja, na medida em que sejam confirmados por dados observáveis. Através da entrevista de anamnese 8, o psiquiatra realiza um diagnóstico diferencial e o referencia a uma etiologia, na qual prevalece uma relação linear entre causa e efeito, muitas vezes empiricamente comprovada. O paciente é, então, tratado através de medicamentos e condutas em acordo com a etiologia de sua doença. O saber médico, especialmente o saber psiquiátrico, é responsável pelo estabelecimento e reconhecimento da especificidade de sinais e sintomas que determinam uma boa avaliação diagnóstica. 7 KAPLAN, H. Compêndio de psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica, p. 289. 8 Anamnese – histórico de sinais e sintomas apresentados ao longo da vida, antecedentes pessoais e familiares, assim como os do meio social. Inclui: identificação do paciente, queixa principal e história da doença atual, sintomas, antecedentes mórbidos pessoais, hábitos, antecedentes familiares, relacionamento e dinâmica familiar, exame físico, exame neurológico, exame psíquico, história de vida e resultado das avaliações complementares. (DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais, p.45). 10 A concepção psiquiátrica da depressão é definida em termos de sinais e sintomas, que associados, conforme as descrições do CID 10 9, DSM IV 10 e Compêndios Médicos, poderão apontar na direção do estabelecimento de um diagnóstico, que orientará a conduta terapêutica, usualmente, a indicação de medicamentos antidepressivos. Ao tratamento psicanalítico, quando e se considerado como indicação, resta, geralmente, um papel coadjuvante, no âmbito do saber médico. Não deixamos de indagar sobre o lugar do tratamento medicamentoso da depressão no contexto do trabalho psicanalítico. Podemos dizer que, quando utilizados, os medicamentos antidepressivos deveriam, em princípio, viabilizar o tratamento e não ‘tamponar’ o sintoma e ‘calar’ a dor. Certamente, esta é uma crítica dirigida ao excesso de medicalização, principalmente no caso da indicação constituir uma resposta “automática” para abafar o mal-estar do sujeito e lhe prometer uma felicidade absoluta, da qual a falta é foracluída 11. 9 CID 10 – Classificação dos Transtornos Mentais e de Comportamento, no Código Internacional de Doenças 10 DSM IV – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, 4ªed.,1994. 11 Foraclusão – forclusion – termo francês, retirado do âmbito jurídico, que designa um processo prescrito, sobre qual não se pode falar mais, pois já não existe legalmente. Estaria “incluído fora”, logo, foracluído, sem registro. 11 De acordo com Paulo Dalgalarrondo, as síndromes 12 depressivas são, atualmente, reconhecidas como um problema prioritário de saúde pública, já que um levantamento realizado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) mostrou que a "depressão maior” afeta cerca de cinqüenta milhões de pessoas no mundo, sendo considerada a primeira causa de “incapacidade” entre todos os problemas de saúde. Do ponto de vista psicopatológico, os quadros depressivos têm, como elemento central, o “humor triste”, ainda que possam abarcar uma multiplicidade de sintomas afetivos, neurovegetativos, ideativos e cognitivos, incluindo sintomas psicóticos e fenômenos biológicos associados. Dalgalarrondo apresenta a seguinte classificação psiquiátrica no que tange às síndromes depressivas: 1) episódio ou fase depressiva e transtorno depressivo recorrente; 2) distimia; 3) depressão atípica; 4) depressão tipo melancólica ou endógena; 5) depressão psicótica; 6) estupor depressivo; 7) depressão agitada ou ansiosa; e 8) depressão secundária. No episódio ou fase depressiva e transtorno depressivo recorrente, aparecem evidentes sintomas depressivos, tais como: “humor deprimido, anedonia (ausência de vontade), fadigabilidade, diminuição da concentração e da auto-estima, idéias de culpa, 12 Síndromes – “agrupamentos relativamente constantes e estáveis de determinados sinais e sintomas; é uma definição puramente descritiva de um conjunto momentâneo e recorrente de sinais e sintomas”. In: DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais, p.21. 12 de inutilidade e transtornos do sono e do apetite” 13; os mesmos devem estar presentes por, pelo menos, duas semanas e não mais do que dois anos, de forma ininterrupta. Os episódios duram, geralmente, entre três a doze meses. O episódio depressivo também é classificado em leve, moderado ou grave, de acordo com o número, intensidade e importância clínica dos sintomas. Já o transtorno depressivo recorrente implicaria a apresentação de vários episódios depressivos, nunca intercalados por episódios maníacos. A distimia é uma forma de depressão crônica, geralmente de intensidade leve, muito duradoura, começando no início da vida adulta e durando vários anos.Seus sintomas mais comuns são diminuição da auto-estima, fadigabilidade aumentada, dificuldade em tomar decisões ou se concentrar, mau humor crônico, irritabilidade e sentimentos de desesperança. Tais sintomas devem estar presentes, de forma ininterrupta, por, pelo menos, dois anos. A depressão atípica é um subtipo de depressão, que pode ocorrer em episódios depressivos, de intensidade leve a grave, e no transtorno unipolar ou bipolar. Além dos sintomas depressivos gerais, ocorrem também: “aumento de apetite, hipersonia, 13 DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais, p.192. 13 sensação de corpo muito pesado, sensibilidade exacerbada a indicativos de rejeição, reatividade do humor aumentada, fobias e aspecto histriônico – teatralidade” 14 . A depressão de tipo melancólica ou endógena é um subtipo de depressão, na qual predominam os sintomas classicamente endógenos, sendo sua natureza mais “neurobiológica”, ou seja, mais independente dos fatores psicológicos. Os sintomas típicos são: “anedonia, hiporreatividade geral, tristeza vital, lentificação psicomotora, perda do apetite e de peso corporal, depressão pior pela manhã, insônia terminal, diminuição da latência do sono REM e ideação de culpa” 15. Já a depressão psicótica é uma depressão grave, na qual ocorrem, associados aos sintomas depressivos, sintomas psicóticos, como “delírio de ruína ou culpa, delírio hipocondríaco ou de negação de órgãos e alucinações com conteúdos depressivos”16. O estupor depressivo é um estado depressivo grave, no qual o paciente permanece, durante dias, imóvel e rígido, apresentando um negativismo que se exprime pela ausência de respostas às solicitações ambientais, via de regra em estado de mutismo, recusando até mesmo o alimento. A depressão agitada ou ansiosa é uma depressão com forte componente de ansiedade e inquietação psicomotora, na qual o paciente pode se queixar de uma 14 Idem, p.192. 15 Ibidem, p. 193. 16 DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais, p. 193. 14 “angústia intensa” associada aos sintomas depressivos. Em tal quadro, há um sério risco de suicídio. E, por fim, a depressão secundária é definida como uma síndrome depressiva causada, ou fortemente associada, a uma doença ou quadro clínico somático, seja ele primariamente cerebral ou sistêmico. Acompanham, com relativa freqüência, síndromes e doenças como o hipo ou hipertireodismo, lúpus eritematoso sistêmico, doença de Parkinson e acidente vascular cerebral (AVC). A classificação das “síndromes depressivas”, acima brevemente retomada, é trazida por Dalgalarrondo, existindo, ainda, outras classificações psicopatológicas e psiquiátricas sobre a depressão – “transtorno afetivo bipolar, ciclotimia, mania mista (sintomas maníacos e depressivos)”17. No DSM IV, “os transtornos depressivos” são assim listados: 1) transtorno maior (depressão maior); 2) transtorno dístímico (distimia); e 3) transtorno depressivo, sem outra especificação. Já no CID 10, encontramos os “transtornos do humor ou afetivos”, dentre eles: 1) transtorno afetivo bipolar; 2) episódio depressivo; 3) transtorno depressivo recorrente; 4) transtornos persistentes do humor (afetivos) – ciclotimia, distimia etc; 5) outros transtornos do humor (afetivos). 17 Termos extraídos da Psiquiatria geral (Kaplan & outros). 15 Devemos lembrar que nossa intenção é, sobretudo, destacar a orientação geral da tradição psiquiátrica de classificação da depressão. Se o termo depressão tem sua origem e afirmação no terreno da psiquiatria, é com a psicanálise que a questão de sua referência, ao fenômeno ou à estrutura, se impõe, na medida em que se privilegia a escuta e o sujeito, sempre do inconsciente. A classificação psicopatológica que escolhemos explorar brevemente serviu-nos de apoio para demarcar a forma da psiquiatria conceber e abordar a depressão e possibilitar um certo diálogo com a psicanálise, um entrosamento maior entre os dois discursos – do mestre e do analista. Antes de passarmos ao enfoque psicanalítico da depressão, devemos considerar o modo de operação da psicanálise no que diz respeito ao diagnóstico no âmbito da clínica. Um dos grandes traços distintivos da psicanálise é trabalhar com a escuta e, através do discurso do sujeito, decifrar o sentido de seu sintoma. É a partir do efeito, conforme este se apresenta na clínica (a paralisia histérica, por exemplo), que podemos questionar algo sobre o sintoma, na medida em que este aponta para o sujeito. O acesso ao inconsciente, via de operação da psicanálise, só é possível com a participação ativa do sujeito, mais especificamente, através de seu discurso, de suas palavras, de um engajamento subjetivo. Logo, é a dimensão subjetiva que é levada em consideração. 16 Se a escuta do analista orienta o diagnóstico clínico, trata-se de uma escuta particular, que não é meramente objetiva, no sentido de coletar dados, nem subjetiva, no sentido de um envolvimento emocional. De acordo com Ana Cristina Figueiredo, “o analista deve escutar o seu paciente, sendo chamado a cada intervenção, a cada movimento, a decidir sobre a destinação, e, conseqüentemente, sobre o rumo das produções discursivas que acolhe” 18. A escuta analítica deve ser flutuante, não valorizando a priori nenhum dos elementos do discurso do sujeito: é através da atenção flutuante – “atenção ao nível sempre igual (ou flutuante) – que Freud procurava seguir a via do inconsciente, aquela que só se ouve e só se acompanha entre linhas”19. Em As 4+1 condições de análise, ao retomar o texto freudiano “Sobre o início do tratamento” (1913), Antonio Quinet (1998) afirma que há quatro condições para a realização de uma análise: o tratamento de ensaio, o uso do divã, a questão do tempo e do dinheiro. Seriam apenas “condições” e não regras, já que Freud estabelece apenas uma regra para a psicanálise: a regra da associação livre, que consiste em deixar o 18 FIGUEIREDO, A.C. & MACHADO, O.M.R. “O diagnóstico em psicanálise: do fenômeno à estrutura”, p. 68. 19 ALBERTI, S. “Psicanálise: a última flor da medicina”. In: ALBERTI, S & ELIA, L. (org.) Clínica e pesquisa em psicanálise, p. 53. 17 sujeito falar tudo aquilo que lhe vier à cabeça, já que através dessa livre associação podemos ter acesso ao inconsciente. Em seu trabalho clínico, Freud começou a perceber que precisava deixar falar seus pacientes, sem fazer-lhes muitas indagações ou interpretá-los a todo instante. Ao indagar a sua paciente Emmy Von N. sobre a origem de suas dores gástricas, ela retrucou que ele não deveria perguntar tanto de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar o que tinha a dizer. A partir de então, Freud começou a perceber que era importante e fundamental deixar os seus pacientes associarem livremente, expressando tudo aquilo que quisessem, pois tal expressão estava sujeita à influência do inconsciente. Freud dizia a seus pacientes, logo no início do tratamento: “diga tudo o que lhe passa pela mente. Aja como se, por exemplo, você fosse um viajante sentado à janela de um vagão ferroviário, a descrever para alguém que se encontra dentro as vistas cambiantes do que vê lá fora. Finalmente, jamais esqueça que prometeu ser absolutamente honesto e nunca deixar nada de fora porque, por uma razão ou outra, é desagradável dizê- lo.”20 20 FREUD, S. “Sobre o Início do Tratamento”, AE, v. XII, p. 136; ESB, v. XII, p.150. 18 Dessa forma, propor ao paciente falar tudo aquilo que lhe ocorrer, sem qualquer julgamento de valor, delimita, assim,uma regra fundamental do trabalho analítico. A atualização do inconsciente na superfície do discurso indica que um trabalho psicanalítico foi instaurado, quando, por exemplo, o paciente começa a trazer seus sonhos para a análise. E é, justamente, a partir do discurso do sujeito, no que este mostra de sua posição subjetiva, que o analista pode fazer uma suposição diagnóstica. Os ‘tropeços e atos falhos’21 apontam para a presentificação do inconsciente, constituindo suas formações. Se a psicanálise trabalha com o discurso do sujeito, o que abre a uma pluralidade de sentidos, a interpretação é uma ferramenta que permite destacar os significantes – “aquilo que representa um sujeito para outro significante” 22. Nesse sentido, não há apenas um significante que possa representar o sujeito como um todo, mas significantes que se associam à cadeia simbólica, produzindo novos significantes. Retomaremos a definição de sujeito mais adiante. 21 Os ‘tropeços’ e os ‘atos falhos’ irrompem, quando o sujeito, ao falar, percebe que algo saiu sem que ele tivesse percebido, soando como algo estranho, não pensado. É esta estranheza que permite que o paciente comece a se questionar e a trabalhar em análise. (Vide Freud – “Sobre a Psicopatologia da vida cotidiana” –1901). 22 LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, p.11. Excluído: , 19 De acordo com Joel Dor, “é no desdobramento do dizer que se manifestam essas referências diagnósticas estruturais, tais quais incisões significativas do desejo que se exprimem naquele que fala”23. Segundo o autor, tais referências diagnósticas seriam codificadas pelos traços da estrutura, ou seja, semelhantes trajetórias estereotipadas, que se apresentam como sendo testemunhas da economia do desejo do sujeito. A estrutura do sujeito tem, como característica, um perfil que é determinado pela sua economia do desejo. Nesse sentido, a ética da psicanálise estaria relacionada com a ética do bem- dizer a relação do sujeito com o seu desejo. No fim da análise, este deve poder bem- dizer o seu desejo, ou seja, reconhecê-lo e, ao mesmo tempo, poder pagar seu preço. Ou seja, há uma perda de gozo na análise, que resulta do sujeito poder se deparar com a falta e fazer algo com esta. No decorrer de uma análise, ao falar, o sujeito também tende a transferir, para a figura do analista, o investimento libidinal parcialmente insatisfeito, introduzindo-o em uma das suas séries psíquicas. É a transferência, como campo de trabalho do inconsciente, que vai habilitar o analista a formular um diagnóstico estrutural. Figueiredo estabelece que devemos entender o diagnóstico estrutural como um “diagnóstico que se dá a partir da fala dirigida ao analista, logo, sob transferência, na qual os fenômenos vão se orientar com referência ao analista como um operador e não 23 DOR, J. Estruturas e clínica psicanalítica, p.21. 20 como pessoa”24. O analista opera, portanto, através da transferência, não como um leitor dos fenômenos, mas como um “nomeador” do modo de incidência do sujeito na linguagem. O diagnóstico é estrutural e não fenomenológico. Somente a partir da posição em que é colocado, pela fala do paciente, na transferência, é que o analista pode formular uma idéia diagnóstica. Existindo a transferência, a fala do sujeito desdobra a sua estrutura. A transferência atualiza, no decorrer da análise, um modo de relação do sujeito com o seu desejo, permitindo ao analista traçar um diagnóstico. Na verdade, é na transferência que o analista opera e pode direcionar uma análise do início ao fim. Cabe ao analista facilitar e acolher a instalação da transferência no início de uma análise e realizar uma suposição diagnóstica. Para Quinet, a demanda de análise é um produto da oferta do analista, pois Lacan afirmava: “com a oferta, criei a demanda”25. Nesse sentido, é preciso que a queixa, inicialmente trazida, se transforme em uma demanda endereçada ao analista. Ocorre que nem sempre a transferência é facilmente instalada, demandando um certo tempo, que pode variar de acordo com a subjetividade de cada paciente. Freud denominou esse tempo de “tratamento de ensaio” e, posteriormente, Lacan o nomeou 24 FIGUEIREDO, A.C. & MACHADO, O.M.R. “O diagnóstico em Psicanálise: do fenômeno à estrutura”, p. 67. 25 LACAN, J. Écrits, Seuil, Paris, p.617. apud: QUINET, A. As 4 + 1 Condições de análise. p. 20. 21 como “entrevistas preliminares”. Trata-se de um tempo necessário e anterior ao processo analítico, durante o qual a relação transferencial ainda não está instaurada. Nas entrevistas preliminares, o diagnóstico deve permanecer em aberto, já que a transferência analítica está em processo de instauração. Só se pode falar em diagnóstico sob transferência, ou seja, quando a análise já foi iniciada. Segundo Joel Dor: “o ato diagnóstico é necessariamente, de partida, um ato deliberadamente posto em suspenso e relegado a um devir. É quase impossível determinar, com segurança, uma avaliação diagnóstica sem o apoio de um certo tempo de análise. Mas, é preciso, no entanto, circunscrever, o mais rápido possível, uma posição diagnóstica para decidir quanto à orientação da cura.”26 A realização de um diagnóstico, em psicanálise, desenrola-se através de uma certa suspensão do mesmo (no tempo das entrevistas preliminares) até que possa ser melhor circunscrito em um a posteriori, quando a transferência se instaurou. Certamente, uma hipótese diagnóstica deve ser delineada o mais breve possível, para que a análise não fique desgovernada. 26 DOR, J. Estruturas e clínica psicanalítica, p. 15. 22 O que autoriza o analista a estabelecer um diagnóstico é a transferência, que permite ao inconsciente emergir na própria atualidade da sessão, demonstrando a forma de relação do sujeito com o seu desejo. 1.2 - A psicanálise e a psiquiatria – os discursos do analista e do mestre “A Psicanálise é, antes, o avesso da Medicina” 27. Marco Antonio Coutinho Jorge (1983) afirma que há, no discurso médico, uma objetividade científica que exclui a subjetividade do sujeito, tanto daquele que o enuncia como daquele que o escuta. A fala do sujeito é ouvida para ser descartada em seguida, depreendendo-se daí a função silenciadora do discurso médico, que, ao se valer apenas de seus próprios elementos, abole tudo o que nele não possa se inscrever. Ou seja, o discurso médico opera reduzindo o sentido dos diferentes ditos do sujeito àquilo que é 27 CLAVREUL, J. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico, p.9. 23 passível de ser neste inscrito. Uma "falta de ar”, juntamente com uma “dor no peito” e “uma angústia por dentro”, podem ser reduzidos ao sinal clínico da dispnéia. Do mesmo modo, “um peso na cabeça”, “uma ardência na testa” e “um latejamento na cabeça”, “um pensamento que não pára de martelar” são reduzidos ao sinal clínico da cefaléia. Lacan já afirmava que “não existe relação médico-doente”, pois, assim como o doente é definido, no discurso médico, como “homem + doença” 28, o homem torna-se o “doente – doença”; aliás, não haveria, nem mesmo, a "relação médico-doença”. Apenas seria possível a “relação instituição médica–doença”, na medida em que médico e doente são destituídos de sua subjetividade. A instituição médica – lugar da totalidade do discurso médico – prevalece sobre a figura do médico, que é apenas seu anônimo representante, bem como a doença – objeto constituído pelo discurso médico –, enquanto o homem seria, unicamente, o "anônimo terreno no qual a doença se instala”29. Dessa forma, o médico não se dirigeao doente, mas ao homem presumidamente “normal” e “são” que ele era e que deve voltar a ser. Se há uma dessubjetivação presente na relação entre médico e doente, o primeiro somente intervém e fala enquanto lugar-tenente da instituição médica, ou seja, enquanto instrumento do discurso médico. O médico só existe, portanto, em sua 28 JORGE, M. A. C. “Discurso médico e discurso psicanalítico”. In: CLAVREUL, J. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico, p. 13 29 Idem, p. 13. 24 referência constante ao saber médico e à instituição médica. Sendo assim, Jorge (1983) afirma que o médico se anula enquanto sujeito perante a exigência de objetividade científica, na qual só se autoriza por ser “ele próprio o menos possível”30. Posteriormente, veremos que o analista tampouco está implicado como sujeito, mas sim como objeto a, diferença fundamental da posição de objetividade científica adotada pelo médico. O apagamento da subjetividade do médico31 pode ser melhor percebido na lógica institucional asilar, no caso da psiquiatria, considerando que o estilo das observações do prontuário do doente é impessoal, independente do sujeito que o entrevistou. A dessubjetivação também é revelada pela rareza do encontro entre médico e doente, este último ficando sob os cuidados de uma equipe médica. Jorge afirma que a receita médica é, também, uma ordem médica, no sentido em que prescreve um enunciado dogmático: “coma isso, não beba aquilo, não fume, 30 CLAVREUL, Jean. “Nosologies et strustures”. In: Lettres de l’ École freudienne, nº 21. Les mathèmes de la psychanalyse, Paris, 1977, p.261, apud: JORGE, M. A. C. “Discurso médico e discurso psicanalítico”. In: CLAVREUL, J. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico, p.11. 31 Certamente, nem todos os médicos (psiquiatras) agem dessa forma. O que pretendemos enfatizar é a oposição radical entre os discursos do mestre e do analista. E, como veremos mais adiante, o discurso do mestre não eqüivale, necessariamente, ao do psiquiatra, mas aquele que, no lugar de agente, adota a posição de mestria frente ao outro. O discurso do mestre é mais comum entre os médicos “cientificista”. 25 repouse, faça exercícios...”32. A ordem médica é, sobretudo, uma ordem jurídica, eqüivalendo a uma sanção legal no campo jurídico – aquele cujo organismo se afasta da norma instituída pela ordem médica recebe uma sanção, que se destina a fazer com que retorne para o interior da mesma, assim como o criminoso, que sofre uma sanção penal ao cometer um delito. O discurso médico/psiquiátrico é, portanto, um discurso dominante, utilizando o outro para impor seus ditames, suas leis e seus ideais – posição de mestria. É justamente aí que se estabelece uma distinção radical entre a psicanálise e a psiquiatria, pois a psicanálise põe em questão o princípio superegóico de uma ordem perante a qual se deve curvar, tanto na relação com os poderes públicos quanto na cura individual. A posição assumida pelo médico-psiquiatra seria a do sujeito que "sabe", base da sugestão hipnótica. A psicanálise não propõe esse discurso de mestria, portanto, não decide ou impõe o que é melhor para cada sujeito em particular. No decorrer de sua obra, Freud passa a valorizar, não mais a sugestão hipnótica, mas a escuta do sujeito em sua associação livre, regra fundamental da psicanálise. É a passagem de uma posição de compreensão para a de interpretação, e ainda de um “sujeito que sabe”, própria do médico, para a do sujeito suposto saber, lugar do psicanalista. 32 JORGE, M. A. C. “Discurso médico e discurso psicanalítico”. In: CLAVREUL, J. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico, p.14. 26 Em As 4 + 1 condições de análise, Quinet afirma que o sujeito suposto saber é definido, por Lacan, “como uma subjetividade correlata ao saber como efeito constituinte de uma transferência estabelecida” 33. E ainda, no início de seu ensino, como “aquele que é constituído pelo analisante na figura de seu analista”34. Ou seja, podemos dizer que o sujeito suposto saber diz respeito a uma suposição do analisando de que o analista é aquele que sabe tudo ou que detém todas as respostas para quaisquer questões. Porém, o analista não deve identificar-se com essa posição de saber, o que seria um erro, um equívoco, visto que “a posição do analista não é a de saber, nem tampouco a de compreender o paciente, pois se há algo que ele deve saber é que a comunicação é baseada no mal-entendido” 35. Portanto, “sua posição, muito mais do que a posição de saber é uma posição de ignorância, não a simples ignorância ignara, mas a ignorância douta” 36. Esta última seria um convite não apenas à prudência, mas também à humildade, de se precaver contra o que seria a posição de um saber absoluto. Para Lacan, segundo Clavreul, o discurso médico está próximo do discurso do mestre. Configurando a produção de um discurso totalitário, exclui a diferença, único modo pelo qual a subjetividade pode se manifestar. Por meio de um vocabulário ao qual 33 LACAN, J. “La méprise du sujet supposé savoir”, Scilicet, nº 1, Seuil, 1968, p.39. apud: QUINET, A. As 4 + 1 Condições de análise, p.31 34 Idem, p.31. 35 Ibidem, p.31. 36 Idibidem, p.31. 27 o doente não tem acesso, o discurso médico opera reduzindo o sentido dos diferentes ditos do sujeito àquilo que é passível de ser inscrito no mesmo. Tal operação visa estabelecer uma identidade e podemos pensar no quanto o discurso em torno da “depressão” apaga as diferenças entre sujeitos, englobando-os em uma mesma categoria – “deprimidos” –, que deve ser tratada da mesma forma. Para a psicanálise, por outro lado, é a singularidade que está em jogo, devendo a queixa de “depressão" ser escutada em sua dimensão significante. A psicanálise privilegia a alteridade, já que o sujeito está sempre na relação com o Outro 37 – sejam seus pais, a lei, o laço social – desde seu advento. Já o discurso médico/psiquiátrico é baseado na univocidade, em detrimento da pluralidade de sentido – característica da língua e, portanto, da psicanálise. A medicina utiliza-se dos signos – “aquilo que representa alguma coisa para alguém que saiba lê-lo”38 – e precisa, portanto, do médico para decifrá-los em sua relação com um código que remete a uma compreensão unívoca. Os sinais e sintomas significam, assim, alguma coisa apenas para o médico, que sabe ler, olhar e decodificar o que significam. 37 O Outro é um termo utilizado por Lacan a fim de designar um lugar simbólico – o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente – que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra- subjetiva em sua relação com o desejo. O Outro, com letra maiúscula, é o grande Outro (A), opondo-se ao pequeno outro (a), lugar da alteridade especular, referindo-se, portanto, ao outro imaginário. 38 LACAN, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, p. 11. Excluído: – O 28 Para aprofundar a compreensão da diferença entre o discurso da psicanálise – discurso do analista – e o da psiquiatria – discurso do mestre –, é preciso retomar uma importante contribuição de Lacan. No Seminário 17, o autor formaliza os quatro discursos – “teoria dos quatro discursos” – como reguladores do laço social: 1) discurso do mestre; 2) discurso da histérica; 3) discurso da universidade; e 4) discurso do psicanalista. Segundo Sonia Alberti (2000), com essa formulação, o psicanalista tem ao seu alcance um importante referencial com consistência teórica e que lhe permite, de dentro de seu próprio campo, examinar e dialetizar sua função no campo social. Em cada umdos discursos, há o lugar do agente, que leva um outro a agir por aquele, produzindo algo, o produto. O agente está sempre sustentado em uma verdade, que é particular a cada um dos discursos. Estes lugares são, assim, distribuídos: __agente__ _outro__ verdade produto 29 É a verdade que sustenta o agente do discurso e o agente só faz discurso, quando se dirige a um outro, fazendo-o trabalhar. Se o resultado é um produto, há também algo que se perde desta produção, que é o gozo ou, mais especificamente, o objeto a, do qual abordaremos logo em seguida. A partir das construções de Lacan, podemos pensar que, na realidade, existem nada menos que dezesseis posições que podem ser tomadas pelo sujeito nos diferentes laços sociais em que transita, na medida em que o sujeito pode estar em qualquer uma das posições de cada discurso. Analisaremos, brevemente, os discursos do mestre e do analista, a fim de confirmar sua associação com a psiquiatria e a psicanálise, respectivamente. O discurso do mestre: S1 S2 S a Quando o mestre fala no lugar do agente (S1), ele precisa do outro (S2), do escravo (Hegel) – que detém o saber sobre sua posição para produzir a mais-valia (Marx) – o 30 objeto a, o resto, ou o gozo que o mestre retira do trabalho do outro. Segundo Alberti, o lugar do escravo seria o de identificar-se com o lugar do outro, ou seja, ocupando-se do saber, trabalhando e estudando para o mestre. O sujeito aparece no lugar da verdade, porém, através do sujeito barrado, dividido. A existência do discurso do mestre implica em que o sujeito, por definição barrado, tenha, no laço social, o lugar da verdade – “não a verdade única, mas sim uma verdade que surge no instante em que desaparece em um intervalo de significantes (S1-S2)” 39. A noção de sujeito barrado, fendido ou dividido, é bastante utilizada por Lacan, pois, para o autor, o sujeito não é senão sua própria divisão 40. Freud já falava em clivagem do eu, termo introduzido em 1927 para designar um fenômeno próprio do fetichismo e da psicose. Designa a coexistência de duas atitudes contraditórias no eu, uma que leva em conta a realidade e outra que a nega, colocando, em seu lugar, a produção do desejo. Não é raro utilizarmos a expressão sujeito do desejo, quando nos referimos ao sujeito da psicanálise – o sujeito é o desejo, na medida em que ele é determinado pelos seus desejos, pelo inconsciente, fundado pelo Outro. O sujeito aparece, para Lacan, no intervalo entre dois significantes, sendo impossível destacar apenas um significante que o determine – o sujeito se encontra no ‘pequeno’ espaço que separa o S1 do S2. 39 ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p. 166. 40 FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo, p. 67. 31 Através da associação entre o discurso médico/psiquiátrico e o discurso do mestre, podemos entender que é, justamente, a tomada de posição de mestria que os aproxima. Ou seja, muitas vezes, o psiquiatra se identifica com esse lugar de saber e de poder absoluto, tal como o agente do discurso do mestre na teoria de Lacan. O discurso do analista: a S S2 S1 O analista no lugar de agente, como objeto a, causa de desejo – “falta-a-ser”41 –, dirige-se ao sujeito barrado, instigando-o a falar a fim de produzir um discurso – significantes mestres (S1) –, sendo sustentado em um saber (S2), que está no lugar da verdade – não-toda, pois, segundo Lacan, as palavras sempre faltam. O lugar da verdade é o lugar marcado pelo real, conceito este que discutiremos mais adiante. 41 “falta-a-ser” – lugar ético, que diz respeito ao desejo do analista e implica que sempre há algo a saber. In: ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p.169. 32 O objeto a foi considerado pelo próprio Lacan como sua única e verdadeira invenção. Designado pela primeira letra do alfabeto, nomeação mínima que se pode dar a algo42, é o objeto essencialmente perdido, impossível de ser simbolizado e pertencente ao real. Instaura a falta estrutural do sujeito, advinda de sua entrada no campo da linguagem, em que algo se perde, ocorrendo a interdição da plena satisfação, limitando a libido à legalização do desejo. O objeto a circunscreve a perda, sendo a condição para o surgimento do desejo, pois, para Lacan, é da falta que o desejo pode advir. A falta, como objeto a, é “apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável, nos diz Freud, por não importa que objeto, e cuja instância só conhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo”43. A partir de então, tal objeto passa a ser o objeto causa de desejo, pois é esta falta fundamental e instituinte que movimenta o ser humano a estar sempre desejando. Segundo Alberti, ao situar o saber no lugar da verdade, no discurso do analista, Lacan coloca que “este saber tem a estrutura da ficção, como toda e qualquer verdade, pois o saber que efetivamente está em jogo é o discurso do analista, que é o saber do próprio sujeito, que questionado, fabrica o produto: significantes seus, próprios, que no 42 JORGE, M.A.C. Seminário Teórico-Clínico de Psicanálise do Mestrado da UERJ, no segundo semestre de 2004. 43 LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 170. 33 percurso vai deixando cair” 44. É, por essa razão, que a psicanálise só pode ser realizada através da fala, já que supõe o sujeito falante. Ou ainda: “O analista fica no lugar de ‘simples’ objeto, ou seja, é o analisando, o verdadeiro sujeito da operação” 45. É importante ressaltarmos que o analista não está no lugar de qualquer objeto, mas de um objeto causa de desejo, já que se ocupa do objeto a. Segundo Alberti, “o desejo do analista é exclusivamente o de fazer com que a análise se produza, tal como um artista que, através de sua obra, quer produzir efeitos em seu leitor ou observador” 46. O desejo do psicanalista implica que sempre há um saber a ser construído pelo sujeito. O discurso do analista é constituído e fundamentado no fato de se dirigir ao sujeito, pois “o sujeito é o outro ao qual o agente do discurso endereça seu ato” 47, ou seja, o sujeito em questão é o próprio analisando. Podemos considerar que “a função eminentemente silenciosa do analista não apenas faculta, mas também promove a proliferação da fala do sujeito, o analista não constituindo, pois, obstáculo à emergência do desejo”48. Pois, o analista deve instigar o 44 ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p 168. 45 Idem, p 168. 46 Ibidem, p. 168. 47 ALBERTI, S. “Psicanálise: a última flor da medicina”. In: ALBERTI, S & ELIA, L. (org.) Clínica e Pesquisa em Psicanálise, p.51. 48 JORGE, M.A.C. O discurso médico e discurso psicanalítico. In: CLAVREUL, Jean. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico, p. 19. 34 sujeito a produzir suas próprias associações, operando pela via do desejo – ética da psicanálise – ética de bem-dizer a relação do sujeito com o seu desejo. É o discurso do analista o avesso do discurso do mestre, ou, como é possível dizer, a psicanálise é, antes, o avesso da medicina 49, não apenas pelas suas posições (agente, outro, produto e verdade) literalmente ao avesso nos discursos, nas quais o discurso do analista é o avesso do discurso do mestre, mas, porque essa ‘inversão’ produz resultados divergentes e opostos. É importante ressaltar que tanto o discurso do mestre, aqui tomado como referência do médico psiquiatra, como o discurso do psicanalista, têm sua importância, lembrando que a psicanálise nasceu da medicina, conformeafirmava Lacan: “Freud pensava que ele fazia ciência. Ele não fazia ciência, ele estava produzindo certa prática que pode ser caracterizada como a última flor da medicina. Essa última flor encontrou refúgio aqui porque a medicina tinha tantos meios de operar, inteiramente repertoriados de saída, regrados, que ela teve que se encontrar com o fato de que havia sintomas que não tinham nada a ver com o corpo, mas somente com o fato de que o ser humano é afligido, se eu posso dizer, pela linguagem50”. 49 Idem, p. 9. 50LACAN, J. “Entretien avec des étudiants”, p. 18. apud: ALBERTI, S. “Psicanálise: a última flor da medicina”. In: ALBERTI, S & ELIA, L. (org.) Clínica e Pesquisa em Psicanálise, p. 49. 35 Certamente, a psicanálise nasce de um certo “resto” da medicina, no sentido do que não encontrava resposta, quando situado no âmbito da explicação médica. É o caso do sintoma histérico, que Freud irá delimitar, posteriormente e de maneira original, como psíquico e ligado ao mecanismo da conversão. 1.3 - Depressão: fenômeno ou estrutura? Devemos voltar à questão que orienta este capítulo e que diz respeito ao enfoque da depressão como um fenômeno ou como uma estrutura propriamente dita. Nossa proposta é explorar, inicialmente, o que entendemos por fenômeno em psicanálise. Freud parte do fenômeno, mas este não está no fundamento de sua teorização, ao menos não exclusivamente. Em “As pulsões e suas vicissitudes”, Freud afirma que o “verdadeiro início da atividade científica consiste sobretudo na descrição dos fenômenos que são em seguida reunidos, ordenados e inseridos em relações”51. Em “Construções em análise”, Freud também assinala que: 51 FREUD, S. “As pulsões e suas vicissitudes”, AE, v. XIV, p. 113 ; ESB, v. XIV, p. 123. Excluído: In: FIGUEIREDO, A.C. & MACHADO, O.M.R. “O diagnóstico em Psicanálise: do fenômeno à estrutura”, p. 68. Excluído: In: FIGUEIREDO, A.C. & MACHADO, O.M.R. “O diagnóstico em Psicanálise: do fenômeno à estrutura”, p. 68. 36 “não são os fenômenos que são confirmados ou infirmados pela clínica, mas sim as construções do analista, naquilo que elas têm de uma certa apreensão do que acontece com o paciente e naquilo em que elas, como toda construção, são obra também do analista e estão sujeitas à revisão”52. Segundo Antonio Quinet, Lacan foi considerado um psiquiatra fenomenológico no sentido jaspersiano – relação de compreensão da fenomenologia de Jaspers –, que seria “dar seu sentido humano às condutas que observamos nos nossos doentes e aos fenômenos mentais que eles nos apresentam” 53. A noção de compreensão seria efetivada a partir da vivência do doente, base da própria da fenomenologia, ou seja, “aquilo pelo qual se manifesta a vivência particular dos doentes tal como ela se apresenta à consciência deles: o que o indivíduo sente” 54. Quando Lacan começa em 1953 o que intitula como seu "ensino” inicia sua reflexão sobre a psicanálise a partir da função da fala e do campo da linguagem, deixando de ser considerado jaspersiano. Desde então, começa a elaborar a tese do 52 FREUD, S. “Construções em análise”. apud: FIGUEIREDO, A.C. & MACHADO, O.M.R. “O diagnóstico em Psicanálise: do fenômeno à estrutura”, p. 69/70. 53 QUINET, A. “Fenomenologia e psicanálise” In: LIMA, J.C. Psicoses entre nós, p. 37. 54 Idem, p.37. Excluído: P 37 inconsciente estruturado como uma linguagem, estabelecendo, dessa maneira, a noção de estrutura que determina o sujeito. A própria noção de compreensão não pode ser aplicada à psicanálise, que opera, justamente, a partir de um “mal-entendido”, não cabendo ao analista compreender seu paciente. No Seminário sobre as psicoses, Lacan afirma de forma veemente: “comecem por não compreender, partam da idéia de que existe um mal entendido fundamental” 55. Quanto a isso, Quinet reafirma igualmente que “só a partir dessa posição será possível fazer o paciente nos dar o sentido que ele atribui ao que está dizendo” 56. Assim, podemos entender que, no discurso do analista, cabe ao analisando trabalhar, produzir os próprios significantes e não ao analista, que, no lugar de objeto a, deve instigar o sujeito a trabalhar em análise. Lacan enfatiza a noção de estrutura – estrutura da linguagem – e o inconsciente como sendo estruturado como uma linguagem, verdadeiro “tesouro dos significantes”, no qual um significante se atrela a um outro significante, produzindo diferentes amarrações simbólicas. Não devemos, entretanto, descartar o fenômeno, conforme indica Quinet, pois este está interligado à estrutura. Diz o autor sobre o fenômeno: “longe de ser uma questão que não interessa para a psicanálise, é uma questão fundamental na medida em que o 55 Ibidem, p.37. 56 Idibidem, p.37. 38 fenômeno remete à própria estrutura” 57. Exemplifica com um caso de psicose, no qual a alucinação verbal – “aparição do significante no real”58 – é um fenômeno que remete à estrutura psicótica, baseada na foraclusão do Nome-do-Pai 59, uma vez que o que foi foracluído do simbólico retorna no real. Assim, é a partir do fenômeno que podemos pensar em uma estrutura. Retomaremos tal elo, quando discutirmos a depressão como um estado ou um fenômeno, distinção que remete, em última instância, a uma determinada estrutura clínica – neurose ou psicose. Lacan propõe uma maneira de pensar e fazer o diagnóstico a partir dos modos de amarração dos três registros - real- simbólico-imaginário - no nó borromeano. Sua teorização referente a uma tripartição estrutural – real, simbólico, imaginário (RSI) –, presente desde uma conferência de 1953, realizada na fundação da Sociedade Francesa de Psicanálise e intitulada “O simbólico, o imaginário e o real”, foi objeto de contínua investigação e reelaboração até o fim de seu ensino. Vale ressaltar que a ordem 57Idibidem, p. 43. 58Idibidem, p. 39. 59 Foraclusão (forclusion) - termo francês usado no âmbito jurídico para designar um processo prescrito (preclusão - preclusion), do qual não se pode mais falar, pois o mesmo não mais existe legalmente. Conceito utilizado por Lacan para designar um mecanismo específico da psicose, através do qual se produz a rejeição de um significante (Nome-do-Pai), que está, portanto, foracluído. Vide página 6. 39 de apresentação dos três registros foi alterada desde a conferência inicial (SIR) até o seminário de 1974-75, (RSI). Em RSI, Lacan mostra que os três registros não podem ser isolados, pois são indissociáveis entre si, trazendo, portanto, um novo conceito: o nó borromeano ou cadeia borromeana. Delimita a propriedade borromeana da estrutura psíquica como um tipo de nodulação entre os elos. São pelo menos três elos e amarrados uns aos outros de forma tal que, se cortarmos apenas um, os demais se desligam simultaneamente. O nó borromeano serve para demonstrar o caráter indissociável dos três registros e sua articulação na estrutura. Lacan afirmou que o nó borromeano lhe caiu como um “anel no dedo”, “na medida em que, através dele, pôde demonstrar algo que seria impossível expressar com palavras: a propriedade (ou a qualidade) borromeana demonstra o fato de que tudo começa no três, de que é preciso pelo menos três para que a estrutura se dê”60. O real é um termo utilizado como substantivo por Lacan, introduzido em 1953 e extraído, simultaneamente, do vocabulário da filosofia e do conceito freudiano de realidade psíquica, para designar uma realidade fenomênica, que é imanente à representação e impossível de simbolizar. O real designa a realidade própria da psicose, na medida em que é composto dos significantesforacluídos do simbólico. Ele diz respeito ao que não possui representação possível, que está fora do simbólico, não 60 JORGE, M.A.C. “Inconsciente e linguagem: o simbólico”. In: Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan: as bases conceituais, p. 94/95. 40 havendo, portanto, palavras para dizê-lo – remete ao excesso inassimilável, ao traumático e ao impossível, sendo, portanto, aquilo que escapa à análise e constitui os limites da nossa experiência. É aquilo que “retorna sempre no mesmo lugar”61. Em outras palavras, o real é da ordem do não-sentido, do nonsense. O simbólico é um termo extraído da antropologia e empregado como substantivo masculino por Lacan (1936-1953) para designar um sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em signos e significações que determinam o sujeito à sua revelia. Remete à própria psicanálise, que está fundamentada na eficácia de um tratamento que se apoia na fala e no inconsciente como tesouro dos significantes. É a amarração simbólica que permite que um significante se atrele a um outro significante, produzindo um sentido. O simbólico diz respeito ao "saber em jogo na própria experiência analítica”62 e é responsável, portanto, pelas “transformações mais profundas para o sujeito”63. É simbólico aquilo que é da ordem do duplo-sentido, da ambigüidade. O imaginário é um termo derivado do latim imago (imagem) e empregado como um substantivo na filosofia e na psicologia para designar aquilo que se relaciona com a imaginação, isto é, com a faculdade de representar coisas em pensamento, 61 JORGE, M.A.C. “Inconsciente e linguagem: o simbólico”. In: Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan: as bases conceituais, p. 96. 62 Idem, p. 94. 63 Ibidem, p. 94. 41 independentemente da realidade. Utilizado por Lacan, a partir de 1936, o termo é correlato da expressão estádio do espelho e designa uma relação dual com a imagem do semelhante e de si mesmo. Lacan concebe o estádio do espelho partindo da observação do psicólogo Henri Wallon (1879-1962), como uma teoria que revela o papel da alteridade na constituição do eu. Situado entre os seis e os dezoito primeiros meses de vida, é um momento no qual a criança antecipa o domínio da sua unidade corporal através de uma identificação com a imagem do semelhante, que, geralmente, é a mãe, e pela percepção de sua imagem no espelho. Ocorre, portanto, quando ainda não há a representação de um corpo unificado. É por ocasião da entrada nesse estádio que se estabelece um tipo de relação com o outro (a) – chamada imaginária. O corpo do outro, então unificado, torna-se modelo de representação para si mesmo, um eu-ideal. É o terreno que prepara o advento do corpo simbólico. O estádio do espelho de Lacan pode ser relacionado ao conceito de narcisismo em Freud, ou seja, a captura amorosa do sujeito pela sua imagem é uma experiência formadora do eu. A partir dessa concepção, Lacan afirma que “o eu é um outro”, na medida em que se funda a partir da relação com o outro. 42 O registro do imaginário está diretamente vinculado ao simbólico, na medida em que preenche as lacunas entre um significante e o outro, permitindo uma significação particular a cada sujeito, e, portanto, sendo responsável pela produção de sentido. Lacan utiliza as categorias psiquiátricas de forma peculiar, tratando-as estruturalmente. Dos tipos descritivos, busca extrair a estrutura do sujeito, cernindo no discurso de cada paciente aquilo que, funcionando como um operador estrutural, organiza o modo de cada sujeito lidar com a castração simbólica. À luz dos postulados psicanalíticos, Lacan busca reduzir as categorias nosológicas da psiquiatria, inicialmente, a dois grandes campos – neurose e psicose - e, posteriormente, com a topologia dos nós, faz uma única concepção de estrutura com diferentes modos de amarração. De acordo com Quinet, em As 4 + 1 condições de análise, é a partir do simbólico que podemos fazer o diagnóstico diferencial estrutural, considerando os três modos de negação do Édipo, correspondentes às estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão. Partindo do legado de Freud, Lacan considera a castração como o ponto a partir do qual a estrutura se organiza e toma o complexo de Édipo como um ‘operador da estrutura’. A castração passa a ser vista como uma lei e o falo como um significante – da falta. A lei à qual o significante está submetido é a lei da castração simbólica, que 43 instaura a falta estrutural, presente para cada sujeito a partir de sua entrada no mundo da linguagem – com exceção do psicótico, para o qual a falta está foracluída. Assim, é em torno da falta na estrutura que o sujeito se organiza. É no contexto do complexo de Édipo que, dependendo de como o sujeito lida com a castração, o resultado será distinto e se delimitarão as diferentes estruturas clínicas na psicanálise. Logo, é importante retomar, brevemente, os três tempos do Édipo, divisão proposta por Lacan no Seminário 5, na seção intitulada "A lógica da castração”. No primeiro tempo do Édipo, há uma atribuição fálica da criança pela mãe, que a toma como “objeto de desejo”. Reconhecida na posição fálica, a criança assim se identifica imaginariamente como objeto de desejo materno, tentando satisfazer o desejo da mãe. Ao mesmo tempo, a criança vai realizando uma atribuição fálica ao mundo que lhe cerca – primazia do falo. A castração remete à descoberta progressiva da criança de que é insuficiente para recobrir totalmente o desejo materno. Se a criança se identifica ao "ser o falo” para a mãe, é, somente, em um momento posterior, através do Nome-do- Pai 64, que a criança terá acesso à referência fálica. 64 Nome-do-pai: termo criado por Lacan em 1953 e conceituado em 1956, designando o significante da função paterna. É o significante primordial que representa a função paterna, que barra o acesso ao gozo entre mãe e filho, delimita uma lei, um inscrição que implica em uma subtração do gozo. O sujeito passa a ser marcado pela falta, pela impossibilidade de ter tudo, de gozar de tudo, o que viabiliza, paradoxalmente, o acesso ao próprio desejo. 44 O segundo tempo é o que Lacan chama de “momento privativo do complexo de Édipo”, quando o pai intervém efetivamente como privador da mãe. O pai aparece, agora, como onipotente, já que é aquele que priva a mãe do objeto de seu desejo, ou seja, regula a relação da criança com a mãe. Se interdita a mãe de tomar a criança como objeto de seu desejo, “o que é castrado, no caso, não é o sujeito e sim a mãe”65. Trata-se do estádio nodal do Édipo, pois a lei do pai aparece de forma semivelada, através do discurso da mãe. Há o primeiro aparecimento da lei, onde “a mãe é dependente de um objeto, que já não é simplesmente o objeto de seu desejo, mas um objeto que o Outro tem ou não tem”.66 Em “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, de 1925, Freud assinala que o complexo de castração é dissimétrico na menina e no menino. A menina “viu, sabe que não tem e quer tê-lo”, o que explicaria o “complexo de masculinidade”. É possível dizer que a diferença anatômica entre os sexos é importante, mas não dispensa sua subjetivação, ou seja, só é inscrita no a posteriori, quando a criança simboliza esta distinção, posicionando-se ativa ou passivamente. A atividade, segundo Freud, estaria ligada à posição masculina e a passividade, à feminina. 65 LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente, p. 191. 66 Idem, p. 199. Excluído: – Excluído: - As 45 Não obstante, tanto para a menina quanto para o menino, é preciso a ‘aceitação’ de que não se tem:“... para tê-lo, primeiro é preciso que tenha sido instaurado que não se pode tê-lo, de modo que a possibilidade de ser castrado é essencial na assunção do fato de ter o falo”.67 A ameaça de castração é, portanto, um ato simbólico que diz respeito a uma ameaça imaginária, onde o agente é real – o pai ou a mãe. Freud ressalta que: “enquanto que nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido pelo complexo de castração”.68 Ou seja, o menino sai do complexo de Édipo pela ameaça da castração – de ser castrado pelo pai – e a menina entra, justamente, após constatar o “não ter” e dirigir seu apelo ao pai. A saída da menina do complexo de Édipo seria, então, algo mais enigmático, “obscuro e cheio de lacunas”69. Lacan postula que “a terceira etapa é tão importante quanto a segunda, pois é dela que depende a saída do Édipo” 70. Aqui, o falo aparece como o objeto desejado pela mãe 67 Ibidem, p. 200. 68 FREUD, S. “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, AE, v. XIX, p. 275; ESB, v. XIX, p. 285. 69 FREUD, S. “A dissolução do complexo de Édipo”, AE, v. XIX, p. 185; ESB, v. XIX, p. 197. 70 LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente, p. 200. Excluído: – Excluído: - A 46 e não apenas como objeto do qual o pai pode privar. Nesse sentido, “o pai pode dar à mãe o que ela deseja e pode dar porque o possui”71. O pai aparece aqui como um pai potente e real, como aquele que tem. A saída do Édipo ocorre pela identificação com o pai, como aquele que tem o falo. Lacan afirma: “É por intervir como aquele que tem o falo que o pai é internalizado no sujeito como Ideal do eu – I(A), e que, a partir daí, não nos esqueçamos, o complexo de Édipo declina” 72. O desfecho é distinto na menina e no menino. Para Lacan, o caso da menina é mais simples: “Ela não tem que fazer uma identificação, nem guardar esse título de direito à virilidade (menino). Ela, a mulher, sabe onde ele está, sabe onde deve ir buscá- lo, o que é do lado do pai, e vai em direção àquele que o tem”73. O menino, por sua vez, se identifica com o pai como o “possuidor de pênis” e sua saída do complexo de Édipo se faz possível pela ameaça de ser castrado pelo pai. Para Lacan, o “não-ter” da mulher lhe confere certas vantagens no amor, situando- a na ordem da sublimação ou da criação. Esta teria uma facilidade maior para criar algo em torno do nada, sendo a sublimação ligada à capacidade de “elevar o objeto à dignidade da Coisa” (1959/60). 71 Idem, p. 200. 72 Ibidem, p. 201. 73 Idibidem, p. 202. 47 A posição feminina é situada, por Lacan, no lugar do indecidível entre o que é “para todo homem” – a castração possível – e o que lhe advém de sua “particularidade negativa” – impossível a castrar –, no sentido de que já é castrada, logo, não se pode castrar o que não tem. A castração é, portanto, uma função simbólica e real na constituição do sujeito, encaminhando-o em direção ao seu desejo. É porque algo falta ao sujeito, que este pode vir a desejar. A partir da castração, três estruturas clínicas são possíveis – neurose, psicose e perversão – três modos de negação do Édipo. Para a psicanálise, as estruturas clínicas demonstram o modo de relação do sujeito com o seu desejo. Na neurose, o sujeito nega a castração através do recalque74 (Verdrängung), ou seja, há uma separação entre afeto e idéia, sendo que esta última é mantida afastada da consciência por ser “indesejável”; o sintoma neurótico seria, justamente, o retorno do recalcado em uma forma simbolizada. Na perversão, o sujeito desmente a castração (Verleugnung) – recusa, renegação –, isto é, refuta a inexistência do falo na mãe; o menino, por exemplo, recusa-se a reconhecer a percepção já que esta o levaria a aceitar sua própria castração, sendo o fetichismo um substituto possível do 74 Recalque – designa o processo que visa a manter, no inconsciente, todas as idéias e representações ligadas às pulsões e cuja realização, produtora de prazer, afetaria o equilíbrio do funcionamento psíquico, transformando-se, portanto, em uma fonte de desprazer. Para Freud, o recalque é constitutivo do núcleo original do inconsciente. 48 falo materno. Já no caso da psicose, há a foraclusão do Nome-do-pai, mecanismo específico que remete à rejeição desse significante (Verwerfung) – “o eu rechaça a representação insuportável ao mesmo tempo que o seu afeto” 75. Nenhum traço é conservado e a falta permanece foracluída. De acordo com essa leitura, podemos considerar alguns pontos principais: 1) o diagnóstico em psicanálise é um diagnóstico estrutural, que se baseia ‘nos ditos dos pacientes articulados ao dizer’76, estando o analista aí incluído a partir da transferência; 2) há apenas uma estrutura – a estrutura da linguagem, que provoca diferentes ‘efeitos’ no sujeito; 3) o sintoma seria o ponto de amarração, ou ainda, uma modalidade de amarração por onde o sujeito se situa na estrutura; 4) para que possamos realizar um diagnóstico diferencial entre as estruturas clínicas – neurose, psicose e perversão –, devemos conhecer as possíveis formas de amarração do sujeito na estrutura: recalque (Verdrängung), foraclusão (Verwerfung) e renegação (Verleugnung), respectivamente. A partir do percurso realizado em nossa discussão, podemos dizer que a depressão não é, por si mesma, uma estrutura, apresentando-se mais como um fenômeno ou um estado – ‘estado depressivo’ –, que pode se manifestar tanto em sujeitos neuróticos quanto psicóticos. 75 LIMA, J.C.S. Psicoses entre nós, p. 15. 76FIGUEIREDO, A.C. & MACHADO, O.M.R. “O diagnóstico em psicanálise: do fenômeno à estrutura”, p. 81. 49 Para Quinet (1999), o que encontramos, na clínica, são “estados depressivos”, que ocorrem em algum momento na vida de um sujeito e apresentam uma história subjetiva precisa. Em outras palavras, não há como falar em “a depressão”, principalmente dentro da perspectiva estrutural da psicanálise. Freud, no entanto, não deixou de fazer alusão à depressão, como veremos no próximo capítulo. A depressão seria, assim, um fenômeno que pode ser analisável, na medida em que se apresente como um sintoma diante do qual o sujeito se interroga. Pode aparecer nas diferentes estruturas clínicas – neurose e psicose –, ligando-se a um momento significativo para o sujeito. Se a depressão, como fenômeno, pode remeter a uma determinada estrutura clínica, elegemos, em nossa pesquisa, tomar como ponto de partida a depressão, apresentando-se numa estrutura clínica vinculada à neurose, associando com o caso clínico, que relatamos no próximo capítulo. 50 CAPÍTULO II AA DDEEPPRREESSSSÃÃOO NNAA VVEELLHHIICCEE 51 2.1 - Apresentação do caso clínico: “ou eu mato meu marido ou ele me mata” D. tem 74 anos e foi encaminhada pela triagem do Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI) da Universidade Aberta da Terceira Idade (UNATI/UERJ), para a equipe de psicologia, apresentando, desde o início, uma demanda de atendimento individual. Comparece, em sua primeira entrevista, muito bem vestida e arrumada e fala de sua história de vida e da razão que a levou a buscar ajuda. Conta sobre o quanto vem se sentindo “deprimida” e sem vontade de fazer nada e que, há muito tempo, não acha “graça” na vida. Sente-se “desanimada” e sem disposição desde que seu marido faleceu, há sete anos. O marido morreu subitamente, devido a uma parada cardíaca que não pôde ser revertida pelos médicos. Até os dias atuais, D. refere que a perda lhe é inaceitável e queacredita que tenha sido um erro médico. Ressente-se por não ter tido tempo de se despedir do marido e reconhece que, desde então, não conseguiu mais chorar, tendo se tornado “uma pessoa fria e congelada”. As queixas trazidas por D., nas entrevistas preliminares, referiam-se a uma falta de vontade de viver, a um desânimo permanente, que fora nomeado, pela mesma, como uma “depressão”. 52 Inicialmente, a “depressão” constitui uma queixa sintomática, diante da qual a paciente não se implica subjetivamente. É um sintoma que lhe incomoda, fazendo com que se “sinta mal” e ela quer eliminá-lo sem saber por que se sente assim. Em certa ocasião, diz: “aqui é o único lugar onde posso me queixar”, indicando que começa a haver um certo endereçamento ao trabalho analítico, apesar de ainda não existir uma demanda de análise. Nesse momento, a paciente ia às sessões, sobretudo para se queixar, não se implicando ainda no que era trazido. A relação transferencial ainda não havia se instalado e é esta que assinala o início do trabalho da análise, pois atualiza o modo de relação do sujeito com o seu desejo. Ao longo de seu percurso clínico, questões importantes foram emergindo no discurso de D., possibilitando a instauração do trabalho analítico. Uma de suas falas é determinante: “ou eu mato meu marido ou ele me mata” 77. Pela primeira vez, seus olhos se enchem de lágrimas e ela diz o quanto se sente “sufocada” por não conseguir, até hoje, chorar pela morte do seu marido. A frase em questão aponta, inicialmente, para uma identificação narcísica com o marido morto: ao se matar, poderia matar o seu marido e tudo aquilo que o ligava a ele. Tratar-se-ia de uma melancolia, ou, mais especificamente, de traços melancólicos em uma histeria? Deixaremos a questão em suspenso até que possamos retornar a ela. 77 Essa frase da paciente será retomada posteriormente na discussão do caso. 53 D. relata que, inúmeras vezes, pensou em se suicidar, acreditando que esta seria a única forma de eliminar seu sofrimento. Ao ser indagada sobre se havia pensado em como realizaria este ato, ela responde que sim – com um tiro na cabeça, pois no coração poderia “errar”. O risco de um suicídio, remetendo a uma possível gravidade do caso, acarretava preocupação e instigava à reflexão. Uma pergunta começou a se impor: ao risco de suicídio, poderíamos contrapor a possibilidade de um trabalho pela palavra que viabilizasse uma mudança de posição? Outra pergunta surgiu posteriormente: até que ponto a preocupação com a gravidade do caso, ligada ao risco de suicídio, poderia ser articulada a própria insistência da paciente em torno deste tema? D. costumava perguntar à analista se a gravidade do seu caso lhe causava preocupação. Sua insistência no tema do suicídio também começou a sugerir uma estrutura neurótica – histérica, o que discutiremos mais adiante. Não descartada a gravidade de seu sofrimento, bem como o próprio risco de suicídio, a analista oferece sua escuta, deixando em suspenso as questões relacionadas ao tema. Se, no início de seu tratamento, D. apenas afirmava “estou deprimida", "a vida não tem graça e não tenho mais vontade de viver”, sem implicação subjetiva, 54 progressivamente, ela começa a indagar sobre a razão de sua depressão. Reconhecia que, mesmo tendo tudo na vida, continuava a se sentir “deprimida”. Com tal questionamento, que era, ao mesmo tempo, estranheza, começou a haver uma abertura ao trabalho. D. passa a se perguntar por que se sente “deprimida”, mudança que a conduz a trabalhar em análise. Ao falar da falta de vontade de viver, de sua “revolta” com o marido, que havia falecido, D. mostrava um sorriso, a princípio, misterioso, mas que parecia, às vezes, um sorriso gozador, irônico. Ao longo do trabalho analítico, este sorriso foi, aos poucos, sendo esclarecido, pois ela própria começa a indagar: “por que será que sorrio, quando é difícil falar?”. Em determinada sessão, diz: “sabe, às vezes, sorrio para fugir de mim, pois é muito difícil me encarar”. Afirma que acredita que, na vida, as pessoas devem se mostrar fortes diante dos outros, para que não percebam que não estão tão bem – chama isso de se fazer de “tartaruga”. A analista pontua a palavra “tartaruga” e ela diz que a tartaruga tem uma couraça protetora, que serve de escudo protetor e dá a idéia de força para quem olha. A associação livre, que começa a partir de seu sintoma, vai produzindo e revelando nexos valiosos em seu discurso. D. conta que sempre sentiu a obrigação de ser a “fortaleza” da família e que seus filhos e netos lhe cobram estar sempre bem. Relata que o marido sempre fora a sua 55 fortaleza e que este fazia tudo por ela. Logo que ele faleceu, havia depositado a mesma expectativa no neto, já que havia cortado relações com o seu filho. “Quem é a minha fortaleza agora?”, D. pergunta à analista, revelando o lugar desta na transferência, desejando que a analista viesse a ocupar este lugar de ser a sua “fortaleza”. Evidentemente, não cabe à analista responder ou oferecer qualquer asseguramento, mas acolher esta fala e poder fazer prosseguir o trabalho analítico. D. relata que tem uma neta, também psicóloga e, provavelmente, da mesma idade que a analista. Acha que deve ser muito difícil ouvir tantas “coisas pesadas” dos outros, sendo ainda tão jovem. Estaria a analista aberta a escutar aquilo que tinha a dizer, eis a indagação implícita. De início, a resistência era revelada pela falta de confiança na analista e, muitas vezes, por uma certa ironia presente na observação sobre a idade da analista, demonstrando não acreditar que alguém da idade da neta poderia tratá-la. Do lado da analista, houve, por algum tempo, uma preocupação relacionada à expectativa de demovê-la da idéia de suicídio, portanto, de salvá-la. Na medida em que estes aspectos foram sendo trabalhados tanto em supervisão como em análise pessoal, o trabalho analítico desliza da fala sobre suicídio para outras questões, até então não faladas. Em um momento delicado, quando D. faz girar, enfaticamente, seu discurso em torno do tema do suicídio e chega a afirmar que quer se matar para se juntar ao marido, 56 a analista a encaminha para atendimento psiquiátrico, que será mantido ao longo de seu percurso analítico. O psiquiatra receita um antidepressivo tricíclico (Nortriptilina) e mantém o acompanhamento médico em paralelo ao trabalho analítico. Durante o período mais crítico, o atendimento psicanalítico passa a ser realizado duas vezes por semana, assegurando à paciente um espaço de fala, em que pudesse ser acolhida. Sobre a consulta com o psiquiatra, D. diz que não conseguiu “enganá-lo”, pois este disse que ela não havia ainda enterrado o seu marido. Ela se emociona ao falar disso e acha que ele tem razão, que precisaria enterrá-lo. D. canaliza para sua análise a questão que surge no contato com o psiquiatra, cuja intervenção lhe faz enigma, questionando-se sobre o porquê de não conseguir ‘enterrar’ o seu marido. Até então, a morte do marido era encarada como um abandono, o qual tinha muita dificuldade de aceitar. Cabe dizer que a paciente sentiu-se acolhida pelo psiquiatra, que, além oferecer uma resposta medicamentosa (que veio a viabilizar, ainda mais, a análise), faz uma intervenção que lhe “faz questão”. Podemos dizer que o psiquiatra usou o discurso do analista, que instiga e causa desejo, e não o discurso do mestre, extremo do discurso do “médico cientificista” e da lógica da medicalização, que responde ao “mal-estar” do sujeito tentando tamponá-lo. 57 No caso de D., havia uma enorme dificuldade de elaboração do luto pela morte do marido, uma vez que esta não conseguia nem chorar sua perda. Estava sempre bem vestida e bonita, com um sorriso um pouco irônico,
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