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As mudanças socioculturais do século XIX H o n o ré D a u m ie r/ W e b G a lle ry o f A rt ( D o m ín io p ú b lic o ) Fig. 3 Honoré Daumier, A revolta, óleo sobre tela, c. 1848, The Phillips Collection, Washington, Estados Unidos. A partir da segunda metade do século XIX, a sociedade e a cultura europeias apresentaram significativas transfor- mações. As ideias liberais se espalharam e provocaram rebeliões e protestos; a civilização materialista burguesa foi se firmando; e um número muito grande de operários foi atraído pelas cidades industriais em plena expansão e passou a viver nelas, ainda que em condições subumanas. Houve o desenvolvimento das ciências naturais, as quais começaram a vigorar como as únicas metodologias de ob- servação e experimentação que explicariam o mundo, o que fez com que a religião e as visões mais idealistas quan- to à natureza humana começassem a ser questionadas. A seguir, serão apresentados os cientistas e pensado- res que influenciaram a literatura da época, tanto na Europa quanto no Brasil. Karl Marx (1818-1883) O alemão Karl Marx desenvolveu a teoria marxista, que tem como núcleo o trabalho, visto como a grande expres- são da vida humana: é por intermédio dele que se modifica a relação homem-natureza e que o ser humano se transfor- ma. Essa teoria política explicaria a história humana como uma luta de classes, prevendo o fim do capitalismo como consequência de seus contrastes internos. Tantas contradi- ções resultariam na revolução do proletariado, que passaria ao poder. Junto a Engels, Marx escreveu obras como Ma- nifesto comunista e A ideologia alemã. Sua principal obra, O capital, data de 1867. Friedrich Engels (1820-1895) Socialista alemão, Engels foi parceiro de Karl Marx e denunciou a miséria e a condição precária na vida do operariado na primeira fase do capitalismo com o livro A situação das classes trabalhadoras na Inglaterra, de 1845. Charles Darwin (1809-1882) Charles Darwin foi um naturalista inglês que revolucionou o mundo com sua teoria sobre a evolução das espécies. Ele defendiam modificações na estrutura política – a substi- tuição da Monarquia pela República – e a introdução do trabalho assalariado no país. Por fim, os conflitos internos não se resolveram, já que ideias antitéticas forçavam a coexistência de dois lados: um deles, o ideário liberal, com conceitos modernos e republi- canos, e o outro, a vigência da estrutura político-econômica agrária, com características latifundiária e coronelista. Assim, ideias modernas advindas da Europa começam a despontar no Brasil, marcadas na literatura pelas doutrinas determi- nista e positivista que fundamentaram a era pós-romântica. O desenvolvimento dessas ideias aconteceu distintamente nas chamadas escolas realistas. A n g e lo A g o s ti n i. In : R e v is ta I llu s tr a d a . R io d e J a n e ir o , a n o 7 , n . 2 8 3 , 18 8 2 . (D o m ín io p ú b lic o ) Fig. 2 “As falhas do trono fabricadas pelos nossos governos parecem não ter outro fim senão abalar o próprio trono e colocar a monarquia em tristíssima po- sição.” Charge de 1882, de Angelo Agostini, apontando as falhas do governo real e indicando que a queda da monarquia se aproximava. Em alguns períodos, a literatura tende a refletir o ser humano na socie- dade e na história; por isso, o conhecimento de alguns fatos ocorridos no século XIX é importante para entendermos as motivações dos escritores do Naturalismo: y 1840-1889: vigência do Segundo Reinado no Brasil. y 1850: extinção do tráfico negreiro no Brasil. y Meados de 1870: aumento da imigração europeia e exportação de café. Expansão do comércio exterior e início da industrialização. y 1888: extinção da escravidão no Brasil pela Lei Áurea. y 1889: Proclamação da República. Marechal Deodoro da Fonseca no comando do Governo provisório. Atenção F R E N T E 2 241 propôs a teoria da seleção natural, a qual defendia que, na permanente competição entre os indivíduos, os mais capa- citados sobreviveriam e a natureza que se incumbiria dessa seleção. Assim, a espécie evoluiria graças às favoráveis heranças genéticas que os indivíduos mais aptos transmi- tiriam à sua prole. Esse processo, poderia, eventualmente, determinar o desenvolvimento de novas espécies. Porém, o surgimento dessas espécies a partir de um ancestral co- mum, conforme defendido por Darwin, contrapunha as ideias criacionistas da época, cujos princípios consideravam a diver- sidade de seres vivos o resultado da criação divina. Auguste Comte (1798-1857) Segundo esse pensador francês, considerado o pai da Sociologia, as verdades e os métodos positivos de ou- tras ciências – comparação, observação e experimentação – deveriam ser utilizados também na Sociologia. Apenas se conhecesse as leis naturais e sociais seria possível a intervenção do ser humano em certos fenômenos. Comte influenciou todo o Ocidente; no Brasil, vários republicanos eram positivistas, e nossa bandeira nacional tem como divi- sa uma inspiração comtiana – Ordem e Progresso. Assim, de acordo com Comte, a Ciência é a única religião possível – a “religião da humanidade”. Hippolyte Taine (1828-1893) Taine, historiador e filósofo positivista francês, é au- tor da teoria que assevera que o comportamento humano determina-se por três fatores: o meio ambiente, a raça (hereditariedade) e o momento histórico (circunstância) – fatores imprescindíveis para a compreensão da estética naturalista. Naturalismo: das origens O Realismo e o Naturalismo são movimentos concomi- tantes, inicialmente com as mesmas características; porém, o Naturalismo é um prolongamento, uma manifestação ex- trema do Realismo. Assim, a escola naturalista também é realista por apresentar princípios como: y descrição objetiva da realidade. y olhar sobre o presente. y observação, análise e reflexão. y busca da verdade. y racionalidade. y denúncias sociais. y crítica a instituições como Igreja e família. y verossimilhança. A esses aspectos, somam-se a busca pela análise cien- tífica da existência humana e o surgimento da visão de mundo do Naturalismo. Vimos que, na Europa, intelectuais disseminavam na sociedade novas ideias sociológicas e científicas, com des- taque para o evolucionismo de Darwin, o positivismo de Comte e o determinismo de Taine. O Naturalismo ergue-se, então, sobre os conceitos da hereditariedade biológica, o ideário positivista da razão e da ciência como verdades absolutas e as fontes que determinam o estado moral e elementar humano. No fazer literário, principalmente nas obras de tendência realista, é importante atentar-se à verossimilhança. A literatura realista é ficcional, mas transfigura o real em um mundo imaginário em seus textos, mantendo o enredo e as personagens dentro dos parâmetros equivalentes à verdade de modo que possam pertencer a um universo possível. Assim, a natureza e a verossimi- lhança de uma personagem dependem das intenções do autor e do modo como ele as concebe. Em suma, verossimilhança é a produção de um “sentimento de ver- dade” dentro do texto. Em um romance que prioriza o retrato da realidade, a verossimilhança representa o fator primordial na cons- tituição de personagens, ou seja, o ser fictício necessita parecer real. Saiba mais Émile Zola, precursor do romance naturalista europeu, compara o ofício do escritor ao do médico – ambos devem estar munidos de objetividade e rigor absolutos. Para Zola, o escritor é um “ilustrador” do que a ciência diz, o que leva à denominação “romance experimental”. Zola inaugura o romance experimental naturalista com Thérèse Raquin, de 1868, cujo enredo ilustra o postulado darwinista sobre a natureza do ser humano. O prólogo da obra é revelador, pois explicita tendências naturalistas do autor, como a crítica social, a comparação do ser humano aos animais, a visão do ser humano como expressão de paixões, os instintos, as taras e as patologias. E d o u a rd M a n e t/ W e b G a llery o f A rt ( D o m ín io p ú b lic o ) Fig. 4 Edouard Manet, Émile Zola, 1868, óleo sobre tela, Musée d’Orsay, Paris, França. LÍNGUA PORTUGUESA Capítulo 8 Naturalismo: o homem é bicho242 Naturalismo: principais características Determinismo e os instintos O ser humano retratado nas obras naturalistas traz em si instintos reveladores que determinam seu comportamento. A luxúria é uma característica recorrente nas personagens, as quais, com a sexualidade aflorada, exalam odores, re- produzem sons e têm atitudes “animalescas”. [...] Não era a inteligência nem a razão o que lhe aponta- va o perigo, mas o instinto, o faro sutil e desconfiado de toda fêmea pelas outras, quando sente seu ninho exposto. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Nobel, 2009. p. 79. Determinismo biológico Segundo teorias biológicas vigentes até então, as pessoas recebem hereditariamente características de tem- peramento. Para a literatura, o temperamento (índole, gênio) é fundamental para a formação do ser humano e de sua personalidade; dessa forma, no Naturalismo, o ser humano representa o resultado de forças ancestrais. Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica da sua fisionomia era os olhos – grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis; pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido; as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim [...] Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pre- tensão, falava em voz baixa, distintamente sem armar ao efeito; vestia-se com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciên- cias, a literatura e, um pouco menos, a política. AZEVEDO, Aluísio. O mulato. [livro eletrônico]. [s.l.]: Obliq Press, 2013. Determinismo de meio e de momento O ser humano é equiparado ao seu ambiente e torna- -se produto do seu meio. Assim, a personagem do romance é fruto das condições socioambientais – tanto as de ordem quanto as de desordem. Um ambiente enfermo faz com que as pessoas que estão nele também se tornem enfermas. O segundo andar vivia, pois, num brinco; nem um escarro seco no chão. Os móveis luziam, como se tivessem chegado na véspera da casa do marceneiro; as roupas da cama eram de uma brancura fresca e cheirosa; não havia teias de aranha nos tetos ou nos candeeiros e os globos de vidro não apresentavam sequer uma nódoa de uma mosca. E o Campos sentia-se bem no meio dessa ordem, desse método. [...] AZEVEDO, Aluísio. Casa de pensão. 5 ed. São Paulo: Ática, 1989. O quarto respirava todo um ar triste de desmazelo e boêmia. Fazia má impressão estar ali: o vômito de Amâncio secava-se no chão, azedando o ambiente; a louça, que servira ao último jantar, ainda coberta de gordura coalhada, aparecia dentro de uma lata abominável, cheia de contusões e comida de ferrugem. [...] AZEVEDO, Aluísio. Casa de pensão. 5 ed. São Paulo: Ática, 1989. Subversão romântica Os autores naturalistas criam personagens doen- tes, pérfidas, pervertidas sexuais, assassinas, bêbadas, incestuosas, entre outras, opondo-as, claramente, às do Romantismo. As mulheres em nada se parecem com as heroínas românticas: podem ser retratadas como infiéis, prostitutas, esposas e mães ruins, conforme os padrões da época. Assim, a postura realista/naturalista é, antes de tudo, antirromântica, não idealizada. O Naturalismo de Aluísio Azevedo: O cortiço Na Literatura, estuda-se o Naturalismo como um seg- mento acentuado e mais reforçado do Realismo, fortalecido por teorias científicas e por uma visão mais materialista do ser humano. No Brasil, o escritor Aluísio Azevedo se destaca por sua literatura de desvelamento das relações humanas, traçando personagens com variados perfis e influenciadas pelo meio em que vivem. Assim, o romance O cortiço é considerado o expoente de nossa literatura naturalista: o espaço é o protagonista, os seres humanos são representados com seus instintos primitivos aflorados, e, formalmente, somos surpreendidos por uma força vocabular geradora de ima- gens raramente imaginadas. Aluísio Azevedo: biografia In : M . J . G ar n ie r. S o n e to s b ra s ile ir o s : d e s e n h o s d o s s o n e to s . R io d e J an e iro : F . B rig u ie t & C ie . E d ito re s, [1 8 9 -]. B ib lio te ca N ac io n al d o R io d e J an e iro . ( D o m ín io p ú b lic o ) Fig. 5 O escritor brasileiro Aluísio Azevedo (1857-1913). Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (1857-1913) foi jornalista, romancista, caricaturista, diplomata e fundador da Cadeira 4 da Academia Brasileira de Letras. Maranhense de São Luís, teve uma vida atípica para a época, a começar F R E N T E 2 243
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