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A Arte de Se Salvar - Nilton Bonder

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******ebook converter DEMO Watermarks*******
******ebook converter DEMO Watermarks*******
Em memória de
Elisa Regina Kreimer,
por ter colocado à prova a sinceridade desta obra.
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Sumário
Para pular o Sumário, clique aqui.
Introdução
I - Ordens e desordens
Ocultamento – o meu, o seu, o nosso desespero
Aié e Malé – Velamento e revelação
Preservação – Distinguindo as dimensões de verdade e amor
A concordata (nunca a falência) da consciência
A entrega antes da entrega
Estéticas fora do caos
A estética das coisas no seu tempo certo (Davar Be-itó)
A estética das coisas no seu lugar certo (Ba-asher Hu Sham)
II - Ordens além da ordem
“E viu que era bom.” Bom o quê? A morte
A dinâmica das pausas
1/60 de morte
1/7 de morte
Sabendo perder para o universo
Ruim, não... amargo
Amargo, não... bom
Tachlis – Objetivamente, sem rodeios
Lidando com o que não nos diz respeito
Alegria como receptáculo
A incomunicabilidade da visão – Nós não temos luz própria
III - Desordem – Expansão por contração
Com medo do conhecido
Teria sido melhor não ter nascido!
Os incríveis momentos em que não temos saída
O maior de todos os terrores (leia em particular, se tem medo)
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O direito de pedir (Aquele que Ordenou que o Óleo Ardesse, que Diga ao
Vinagre que Queime)
IV - Abraçando a desordem
A “esgotabilidade” da tristeza
Saudades como falta de si mesmo
Aprendendo a se salvar
O ensinamento deste exato momento (Ora’at ha-sha’á)
V - Segredos da desordem
Os atrativos de se ficar
Purezas e impurezas
Montepios e previdências para mortais
Consolo e con-todos
Surdo, sim. Cego, não!
Enumera teus dias
Mostra-nos um amor que possamos compreender (Reb Nachman de
Bratslav)
Rastreando os limites
A impermanência da morte
Quando Deus for um
Epílogo de outra dimensão
Créditos
O Autor
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A certeza é como uma fina camada de gelo sobre um lago. É o efeito de
borda sob o qual os seres humanos experimentam sua vida. Por um lado,
atravessam o lago os simplórios; caminham seguros sobre o lago congelado,
tendo uma vaga sensação do que há sob os pés. Por outro, atravessam os
alegoristas e os místicos; caminham pela superfície já semidegelada,
saltando de um bloco de gelo a outro. É possível chegar à margem de ambas
as formas. Para os primeiros, a incerteza é um fantasma, e sua ignorância os
protege de qualquer vertigem. Para os últimos, a incerteza é a rachadura,
que é vista apenas quando o pé já está sobre o bloco de gelo seguinte.
Apesar de um mero efeito, o gelo é real, e sua solidez instável é suficiente
para suportar a vida e tudo o que a ela diz respeito.
Felizes daqueles que vão de margem a margem com algo sob os pés.
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Introdução
Este livro é um desejo antigo. Muito antes de assumir esta forma, ainda ao
sabor de uma questão existencial, já existia como desejo. Nascia do choro
infantil que no passado não encontrou acolhimento e conheceu a
resignação, ou do período de tempo que transcorria já em braços calorosos
para recobrar o gosto pela vida tentando dar conta de um descaso que
assumira proporções cósmicas; ou da solidão de minhas quedas
recompostas por impotentes curativos que não davam garantias para outros
tropeços. De todas essas experiências de dor permanecia um misterioso
senso de encontro. Um encontro que na vida adulta assume contornos
oníricos, esquecidos que ficamos daquilo que sempre nos visitará.
Encontros que na velhice e na perda se fazem reais, como a temida ânsia de
vômito da infância que revela um eu involuntário, convulsão de tudo o que
é real e irá mais cedo ou mais tarde externar-se e comparecer.
Mundo do hálito, e não da estética. Mundo onde o que é vivo não conta
com outro parceiro senão a própria vida. Mundo-referência, onde o que está
em jogo na espera não é a chegada, mas a qualidade da própria espera.
Mundo em que pais nos acariciam para que durmamos, enquanto seus olhos
estão cheios das mesmas dúvidas que nos fazem temer o escuro. Instante
em que nos deixam, semiadormecidos, numa fração de tempo em que não
sabemos se choramos ou se nos entregamos ao torpor do sono. Momentos
de resistir ou de se entregar à dor. Tempos bons, que nos subjugam em
lágrima pela saudade do que ainda não sentimos falta. Tempos difíceis que
se diluem no próprio tempo, deixando a incômoda sensação da cicatrização.
Bendito sangue, que coagula e nos preserva! Maldito sangue, que coagula e
nos faz mais fortes do que o próprio ferimento, marca do caráter
dispensável de tudo o que gostaríamos que fosse indispensável.
Anos mais tarde, quando prestei assistência espiritual em um hospital,
minha alma voltaria a dissimular seu desconforto ao mimetizar pacientes
que, ora de lado, ora de bruços, ora com o olhar perdido no teto, buscavam
uma posição de vida. Reencontrava o antigo jogo de velar e desvelar meu
companheiro. Jogo que fazia de mão dada a meu avô – apalpar sua mão
calejada pela força da vida e olhá-lo de soslaio, fazendo uso de minha
precária compreensão de que, em linha sucessória, seria ele o primeiro a
abandonar-me. Dúvidas que se esclareciam à medida que me acostumava
com elas.
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Seria esse meu amigo, cujo nome não se deve nunca pronunciar, real ou
ilusório? Esse amigo, que abraçava ao dormir junto de meus objetos
transicionais, seria ele imaginário ou não? Um amigo que eu, apesar do
medo, não exorcizava completamente, pelo prazer que me proporcionava
fitá-lo nos olhos. Prazer daquele que, por ser vivo, não pode se dar ao luxo
de abandonar qualquer aspecto da existência. Prazer de quem quer tudo a
que tem direito, mesmo sua dor numa ousadia que é a própria definição e
contradição da vida.
Mas um mestre do passado teve a coragem de expor à luz esse amigo, ao
preço do dia. Um mestre que sem propor novos tempos ou novas eras,
desde seu pequeno mundo, teve coragem de olhar de frente seu “amigo
monstro” e dizer: o desespero é uma ilusão. Sob sua cabeça, o monstro fez
rugir do seu mais cruel uivo, debatendo-se e revelando-se mais e mais. E
quanto mais se fazia visível, mais era desmascarado e friamente negado.
Seu poder de rasgar a pele, de sufocar a alma na perda mais inaceitável que
se possa imaginar, permitia ao mestre que ofertasse mais e mais material
desse monstro em holocausto. Quanto mais lhe fazia ver as profundezas que
a dor pode atingir, mais se regozijava na confirmação de sua descoberta – é
uma ilusão. Tudo isso ao custo real da época, como custaria hoje a cada um
de nós.
Para a frustração daqueles que sonham com finais felizes, o monstro não se
desfez nem se desmaterializou. Permaneceu ali, executando sua função
vital, apesar de rebaixado a uma categoria não absoluta. Machucado, como
humano que honrava em ser, o mestre estava tranquilo para entregar-se à
dor, qualquer que esta fosse, sem a companhia do monstro. A dor não é uma
ilusão, é sintoma de vida. Onde quer que haja vida, haverá dor; onde quer
que haja vida, será possível desmascarar o desespero.
Este livro traz várias das ideias que mapearam o caminho desse mestre
rumo ao centro do seu ser, onde habita o desespero. As que não têm origem
direta em suas palavras também se inspiram nesse mestre, que, apesar de
pouco conhecido fora dos círculos judaicos, acredita ser parceiro em
grandeza metodológica de outras importantes figuras do final de seu século.
Freud quis ter acesso ao avesso da mente, Marx ao avesso do social,
Einstein ao avesso da ciência; e ele, Reb Nachman de Bratslav, quis ver o
avesso da existência.
Seu estudo foi uma tentativa de estruturar a noção de caos a partir do
melhor aparato de que dispunha – a perspectiva da existência.
O resultado de sua pesquisa foi a descoberta arcaica de que a existência
desafiava a lei da entropia. Sua percepção realista do mundo associada à
obsessão pela alegria e o desdém pelo desespero, fizeram dele um dos
******ebook converter DEMO Watermarks*******primeiros a esboçar categorias de ordem e desordem nas quais o ser
humano e tudo o que é vivo estão na contramão do cosmos. Por isso, tudo é
tão perigosamente frio e alienante – estamos plantados num universo que
postula contra nós. Para Reb Nachman, devemos ter a coragem de rejeitar o
universo e de sustentar nossa esperança. “Este universo é apenas uma ponte
muito estreita; o fundamental é não sentir medo.” Lançado que estava de
braços abertos por sobre seu destino, a experiência de “cair” não o
impressionava.
Nada mais óbvio que, num mundo dessa natureza, a queda seja uma
experiência constante daquilo que é vivo.
Por sobre o caminho pavimentado por essa alma sem vertigens é que este
trabalho se constrói. Visa mediar o encontro com aquele que, por estar
adormecido e latente, é tão poderoso. Sua proposta, já em si muito
pretensiosa, não anuncia alternativas de cura, mas medidas “sanitárias” no
combate aos focos de desespero.
******ebook converter DEMO Watermarks*******
I
ORDENS E DESORDENS
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Ocultamento
– o meu, o seu, o nosso desespero
O desespero é um sentimento que nas diversas línguas foi expresso como “a
perda de algo”. Em português, representa a perda da esperança. Em
hebraico, a palavra “desespero” é expressa por um verbo reflexivo,
construído a partir da raiz y-a-sh, que significa “desistência da busca de um
objeto perdido”.
Produto talvez da sabedoria popular, reconhecia-se que após buscar
exaustivamente havia um momento derradeiro de desistência. Até então,
acreditava-se na possibilidade de “encontro”; a partir daquele momento,
porém, abre-se mão e se desiste. Algo semelhante à situação em que, por
ocasião de um acidente, encerram-se as buscas por parte das autoridades e
considera-se a tarefa impossível, ou que não vale mais a pena ou o custo.
Colocada de maneira tão concreta, a forma reflexiva hebraica utilizada para
significar “desespero” poderia muito bem ser traduzida como “desistir-se”.
A partir dessa definição, se poderia classificar o desespero como uma
anomalia – não faz parte do jogo da vida a possibilidade de se desistir de si
mesmo. Por outro lado, dir-se-ia que o terror, associado ao desespero, não é
produto de um iminente sofrimento, mas que se origina na própria dor de se
abrir mão de si mesmo e suas implicações.
É interessante notar que “desistir” é um ato de entrega, da mesma forma
que a fé e a esperança são também atos de entrega. Quando os indivíduos
perdem o fôlego da juventude ou dos interesses temporais, experimentam
um afastamento da sensação de controle, que é uma estrutura artificial de
“fé”, convencionada para gerar ordem. Tal crise surge pelo fato de a
realidade biológica esgarçar de maneira irreversível a relação entre corpo e
mente, tornando a entrega a única opção possível. Essa entrega pode então
ser o desespero ou a fé. Por desespero não devemos conceber
necessariamente o estereótipo de alguém em pânico, mas a situação em que
um indivíduo é tomado por um cinismo rascante, pouco se importando se
com sua perda arrasta consigo outras perdas. Tampouco devemos tomar
como exemplo de fé a imagem do mestre espiritualizado ou a imagem da
carola entorpecida, mas uma atitude de considerável serenidade diante do
envelhecimento, das perdas e da valência de outras visões de mundo que
não a nossa.
Portanto, consideraremos o controle o patamar de vida onde o desejo do
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corpo impõe à alma uma sensação de estabilidade artificial. Enquanto essa
sensação puder ser sustentada, ela se preservará; quando não for mais
possível, a alma se porá em movimento. No controle, a alma fica estática,
ou com a mobilidade extremamente reduzida. Como no fenômeno da
obesidade,
“inchamos” em vez de nos tornarmos maiores e mais fortes. No universo do
controle, a vida não se afirma pela ordem percebida ou criada: a vida
“incha”.
A ordem não é uma estrutura visível a todos os momentos e muitas vezes
não coincide com nossa particular percepção de ordem.
Nosso interesse, por assim dizer, se volta para o momento em que “a alma
se coloca em movimento”. O desespero e a esperança seriam,
aparentemente, as duas únicas posturas de vida que poderiam conter em si a
dimensão desses
“deslocamentos”. O que é revolucionário em linguagem e ousadia no
trabalho de Reb Nachman é negar que os deslocamentos do desespero e da
fé se deem em sentidos opostos. Pela sua frase relativa à alma – ieridá
tsorech aliá hí (a descida é uma necessidade intrínseca da ascensão) –, Reb
Nachman se utiliza do modelo de vasos comunicantes com um fluxo na
direção da ordem e da fé. Assim, o próprio desespero é um movimento
momentâneo de descida cujo deslocamento se dá no mesmo sentido da fé e
da esperança.
O que ele descreve como o “fenômeno do ocultamento” é a sensação real de
descida que se constitui, no entanto, de uma etapa da ascensão. A falta de
compreensão dessas descidas por parte dos seres humanos é que constrange
a percepção de uma realidade de ordem.
Na linguagem de Reb Nachman, esta ordem é a divindade; a descida é seu
ocultamento. O desconforto do desespero e a vertigem na queda são
sintomas d’ alma, tal como a febre é sintoma do corpo. Cada causa
identificada e vencida deste sintoma aumenta a imunidade do indivíduo. O
desespero, ou a queda, é parte intrínseca de um “sistema imunológico
existencial” – é parte da subida.
A questão que se coloca, no entanto, é a seguinte: até que ponto se podem
relativizar essas descidas sem transgredir nossa própria humanidade? De
onde adviria a certeza de que há fundo no poço? Como esperar que nossa
experiência passada possa resistir às dúvidas quando a vida se apresenta
nova, diferente de tudo o que já vivemos? Como lidar com a morte e sua
expectativa se a extensão dessa “descida” é imensurável?
O desespero é construído de experiências que são o oposto do puro.
Sensações de estarmos fazendo uma incursão em um território imundo... um
lugar onde não há luz, onde não há natureza para trilharmos qualquer
caminho. Nas palavras de Reb Nachman são lugares do vazio, onde não há
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Torá . Para os judeus, a Torá, a Revelação divina, é um ato de amor do
Criador, porque dá orientação ao “nada”, oferecendo direção e sentido.
Segundo ele, o caos original que é maculado pelo ato da Criação não foi
extinto, mas tornou-se o próprio contexto onde a ordem se planta. A ordem
que se havia estabelecido para as estruturas vivas conviveria com o caos
latente da realidade. O segundo movimento de ordem, por sua vez, teria
sido a Revelação, que buscava estendê-la não só à vida, mas também à
esfera existencial. Nossa origem, nosso destino e a quem devemos prestar
contas são a essência da busca de ordem existencial através da Revelação.
A Revelação, ao contrário da Criação, é um ato inacabado, a espera da
transcendência espiritual que instauraria ordem também na esfera
existencial.
Nesta dimensão, o caos e o vazio coexistem com a Revelação. Onde não
houver a Torá, haverá vazio e carência de ordem na dimensão da existência.
Isto tudo, no entanto, ainda não se constitui na experiência de desespero. O
ocultamento não é a essência do desespero. O desespero é instaurado pela
sedução que o ocultamento exerce sobre a criação.
O ocultamento, o caos na experiência existencial, é parte intrínseca de um
processo de Revelação ainda em andamento. Para esse processo, o próprio
ocultamento, a própria sombra, tem uma função essencial, como veremos
adiante. O véu que cobre a ordem ou o ocultamento da ordem seria
imprescindível, porque a “luz absoluta” é de uma intensidade destrutiva.
Para que tal luz pudesse existir no mundo da Criação, onde as criaturas, as
diferenças e as integridades devem ser preservadas, se fez necessária a
existência do ocultamento. O ocultamento contém a luz, sob a forma de
uma klipá – uma casca ou uma pele.
Mas por que a ordem e a vida teriam de se estruturar sob formas recobertas
por algum tipo de couraça? Por que tudo e todos têm pele,cascas ou
superfícies?
Se repararmos, perceberemos que tudo o que existe é limitado por algum
tipo de borda. Se assim não fosse, deixariam de “servir” à Criação com sua
existência. Essas cascas, portanto, revestem uma essência que na sua
limitação se faz específica. Há uma “limitação-banana”, uma “limitação-
vaca” e uma
“limitação-bromélia”, sem as quais não haveria neste mundo nenhuma
dessas manifestações da Criação.
A expectativa de dar conta do ocultamento, de eliminar as klipot, as cascas,
é concebível apenas sob uma nova ordem, expressa em muitas tradições
pela ideia milenar da Salvação. Para que esse processo se estabeleça, é
prioridade básica conter o “encantamento” que a dimensão oculta exerce
sobre o
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“mundo das cascas”. Isso porque as cascas não só nos preservam, mas têm
como efeito colateral o desejo de mais cascas. Como se a ordem fosse
alcançada produzindo mais couraças. As “cascas”, por servirem de proteção
à individualidade e à diferença, tendem a fazer com que tudo o que é vivo
deseje engrossá-las ou multiplicá-las. Na busca por ordem, se produz mais
desordem.
Para os seres humanos, a facilidade da mente em criar cascas representa um
enorme risco de nos fazermos prisioneiros do mundo do ocultamento.
Nossa consciência é um mundo de cascas; um espaço onde as coisas se
fazem claras pela limitação, pela definição e pela diferenciação. É a
dimensão do
“ou” – “ou isto ou aquilo”. As cascas tentam eliminar toda forma de
contradição e dão origem a todos os tipos de ciência neste mundo. Tal
hábito de crescimento em direção ao ocultamento tem como custo maior a
possibilidade do desespero. Acabamos, assim, por arquitetar um mundo
sem saída, um labirinto de sofrimentos, perdas e angústias.
Como podemos tratar as questões fundamentais da vida que não encontram
resposta sem nos tornarmos presas da dimensão do desespero?
Como abordá-las desde uma perspectiva de não desesperança sem trair
nossa consciência e inteligência?
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Aié e Malé
– Velamento e revelação
Tanto a entrega ao desespero como a esperança estão intimamente
relacionadas com a forma pela qual respondemos às nossas questões
existenciais. No entanto, fica difícil compreender por que os indivíduos que
possuem aparatos lógicos e de reflexão semelhantes possam chegar a visões
de mundo marcadas tão distintas. Quando respostas existenciais diferem em
essência, torna-se evidente que as questões iniciais foram entendidas de
forma distinta.
Reb Nachman conhecia essa realidade e pôs-se a enunciar duas estruturas
de questionamento humano que são fundamentais para a compreensão da
esperança e do desespero. Utilizando-se de duas formas nas quais a glória
divina é mencionada na liturgia e nas Escrituras, Reb Nachman enuncia
essa distinção. Tais menções falam da ordem de “Aié” – “Onde está o lugar
de sua glória?” ( Aié mekom kevodó? ) e “Malé” – “Toda a Terra está
repleta de Sua glória!” ( Malé ét kól ha-arets kevodó! ). A primeira expressa
dúvida e angústia, e a segunda, certeza e fé.
A palavra Aié (“onde?”) denota busca existencial. A mesma palavra –
aieka, “onde estás” – é utilizada na Bíblia, no episódio em que o Criador
procura por Adão no Paraíso, logo após este ter provado da Árvore da
Sabedoria. “Aieka? ” significa: “Onde está você, Adão”, no sentido
existencial (em vez de espacial) “neste momento? Por onde anda a tua
alma?”
Em outra instância, a mesma palavra aparece no relato dramático do quase-
sacrifício de Isaque. Ao acompanhar seu pai ao que seria seu próprio
sacrifício, Isaque desconfia de todo o preparativo e ritual da jornada e
questiona: “Ve-Aié ha-sé le-olá” [“Vejo tudo o que é necessário para a
realização de um sacrifício, mas onde está o cordeiro?”]. Nesse instante, o
“onde está” é puro drama existencial – “onde está aquilo que é fundamental
para eu compreender o que já começo a compreender?”. Há um tom
retórico em Aié, por representar uma dúvida profunda d’alma que talvez
não aguarda resposta, mas manifesta sua angústia. Quando alguém se
pergunta “onde está a glória divina?”, expressa a mais sofisticada tentativa
humana de lidar com o caos e a dúvida.
Por sua vez, o conceito de Malé (a Terra está repleta de Sua glória)
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representa o mágico momento em que a ordem se decodifica de maneira
clara e cristalina. Como na visão do profeta Isaías (6:3), de onde a frase é
retirada, os seres celestes anunciam a presença da glória divina sem
máscaras ou véus.
Tal conceito representa os momentos em que somos tocados pela existência,
em que não temos dúvida sobre a existência da ordem, ou os momentos nos
quais o prazer e a alegria de se estar vivo são tão sólidos que nos fazem
perceber o mundo como calçado por um chão de paz e certeza.
As questões de vida do tipo Aié (onde está a glória divina?) são, por assim
dizer, relativas a perguntas que não possuem resposta objetiva neste mundo,
mas tão somente direcionamentos. Já as questões do tipo Malé (o mundo
repleto da glória divina) são as que possuem, sim, resposta objetiva, ou seja,
que estão ao alcance do conhecimento humano. Ambas são questões
características dos seres humanos; todos nós chegamos a este mundo
buscando compreensões do tipo “onde está?” e “aqui está!”. Nossa
perspectiva inicial, por natureza, é sempre de ordem, seja ao buscar saber
ou ao constatar. É a vida que nos torna céticos com relação à ordem.
Assim, o desespero pareceria ser primordialmente definido pela ausência
das percepções Malé (repleto). No entanto, é da carência de Aié (“onde
está?”), na falta da busca em momentos de ocultamento, que se instala e de
que se nutre o desespero. A existência de uma única busca do tipo Aié, de
uma procura, basta para que se afaste o desespero. O desespero é instituído
pela desistência, que é a incapacidade de lidar com o mundo sob o prisma
de Aié (“onde está?”).
Nesse sentido, a relação com as questões de Malé (repleto) também pode
propiciar o desenvolvimento de condições adequadas ao desespero. A
dimensão de Malé deveria ser sempre da ordem da gratidão, e nunca uma
expectativa de que, para os seres humanos, todas as questões sejam
contempladas com uma sensação de Malé. Muito ao contrário, reconhecer a
existência de Aié é poder suportar o fato de que o mundo e a vida não
podem ser reduzidos à ordem de Malé. Essa dimensão de Malé absoluto
configura a esfera da Salvação, que não deve ser confundida com a esfera
da Revelação –
caracterizada pelo esforço para se esboçar formulações Malé e Aié, onde a
dúvida enobrece o saber e a sabedoria supre a dúvida de fé.
Os indivíduos que desafiam a legitimidade da Revelação (ou da ordem) pela
expectativa de que tudo seja explicável, de que tudo possa existir para nós
como Malé, não compreendem esse conceito. O que é revelado é tanto o
“desvelado” (tornado claro, ofuscantemente claro) como o velado (o que é
visto de maneira nebulosa, mas cuja luz é “opticamente apropriada”). Uma
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pessoa que tem esperança não é alguém que compreende tudo de maneira
objetiva e explícita, mas que aceita respostas sob a forma velada.
O justo na tradição judaica é aquele que tem maestria sobre a realidade de
Aié, que pode enfrentar as situações aparentemente mais caóticas e
inaceitáveis do ponto de vista humano, buscando saber “onde estaria a
glória divina”. Ele consegue, portanto, lidar artisticamente com algo
“ruim”, inferindo não respostas, mas perspectivas. Legitima, assim, as
situações para as quais não encontramos respostas objetivas na dimensão
humana, ao mesmo tempo que não permite que fiquem à mercê do
ocultamento. Sabe que trata-se de situações potenciais de Malé em outra
dimensão que não a humana, as quais existem, portanto, neste nosso mundo
sob uma forma velada. Os véus não ocultam nada, apenas tornam algo
indistinto ou nebuloso. Similarmente ao que se dá com nossos sonhos
quando temos a impressão de viver e ao mesmo tempo não viver nossas
experiências,a ordem em Aié é também embaçada, enevoada.
Saber reconhecer se uma questão é da ordem de Malé ou de Aié e poder
diferenciá-las é o grande segredo para desmascarar o desespero como
ilusão.
Cada vez que tratamos uma questão Aié como tal, fortalecemos nossa
gratidão por aquilo que percebemos ser da dimensão Malé. Cada vez que
tratamos uma situação Malé com o reconhecimento de que “o mundo está
repleto, neste instante, da Ordem”, fortalecemos mais a nossa fé para aceitar
respostas do tipo Aié.
A não percepção de Malé, a incapacidade de reconhecer bênção, mágica ou
alegria profunda em nossa vida abre espaço ao desespero. Da mesma forma
que a expectativa de que o mundo de Aié far-se-á Malé evolui da frustração
ao cinismo desesperado. O desespero, portanto, se sustenta da expectativa
com relação às respostas, e não objetivamente das respostas.
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Preservação – Distinguindo as dimensões de verdade e amor
“Uma tomada elétrica não é moral ou ética...”
Ao tentarmos definir a estrutura dos questionamentos e a maneira com que
propiciam ou não o desespero, acabamos por esboçar duas estruturas de
realidade – a do Amor e a da Verdade. Assumiremos Amor como sendo a
ordem visível: cada vez em que o sol nasce, qualquer momento em que
somos agraciados pela vida com saúde, sustento, sucesso ou realização
pessoal. Nesses momentos de gratidão, compreendemos que Deus, a vida, a
Natureza (ou qualquer que seja a denominação preferida) nos amam e nos
protegem. Porém, quando nos deparamos com uma situação real de perda,
como a morte de um ente querido ou a destruição de alguma coisa que nos
seja sagrada, precisamos fazer contato com uma dimensão bastante distinta.
Na tradição judaica, todos os momentos relevantes da vida são, por
definição, exprimíveis sob a forma de uma bênção. É comum usar-se a
expressão “deve haver uma bruche (uma bênção) para isso” quando algo
importante nos acontece. Até mesmo no caso do luto, quando uma pessoa
se encontra sob a indescritível sensação de estar à margem de qualquer
prazer, há uma bênção a ser dita. Sua especificidade é dizer “abençoado és
Tu, Deus, Soberano da Realidade, Juiz da Verdade”. Nesse momento, a
forma de expressar a ordem é por meio do atributo da Verdade. E o que é a
Verdade?
Quando olhamos o mar e este nos inspira um poema, quando surfamos em
suas ondas tomados pelo senso de soberania e liberdade, quando o mar nos
aplaca o calor com sua refrescante consistência, ele é percebido como
instrumento do Amor. No entanto, o mesmo mar pode nos afogar. Sua
propriedade de poder afogar é parte de sua Verdade latente. Nós vivemos
constantemente nossa realidade de Amor em meio a realidades latentes de
Verdade.
A tradição é muito sábia ao mudar a perspectiva, fazendo com que o
enlutado e o magoado se transfiram para a dimensão da Verdade, em vez de
buscarem traduzir sua experiência na dimensão do Amor. Cada vez que
dizemos “foi melhor assim”, na tentativa de expressarmos sob a forma de
Amor o que na realidade é da ordem da Verdade, estimulamos o cinismo.
Na ordem do Amor, a tentativa de dizer que poderia ser sempre pior apenas
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“empurra com a barriga” essa grande pergunta: por que mesmo tinha de
acontecer este “mal menor”?
Esta é a razão pela qual a tradição judaica tem como oração aos mortos uma
prece que pode parecer ao desavisado um total contrassenso. O kadish (a
santificação), que é recitado no momento do enterro e nos meses
subsequentes, é uma exaltação à grandiosidade e santidade de Deus. Sua
função maior é trazer à comunidade que presencia e experimenta tal
acontecimento a dimensão da Verdade. Se alguém, num instante de tamanha
“violência”, se põe a louvar o Responsável por aquele momento, torna-se
óbvio o equívoco de se tomar essa cena como relacionada com a realidade
do Amor.
É comum, porém, que se estabeleçam ruídos na comunicação e mal-
entendidos toda vez que mencionamos que algo não pertence à realidade do
Amor. É claro que, para os não desesperados, a realidade do que aqui
chamamos de Verdade representará sempre alguma forma de Amor oculta,
velada. No entanto, para que não haja manipulação ou atentado ao
discernimento humano, é fundamental que se saiba diferenciar essas duas
realidades. A Verdade não pode ser traduzida sob a ordem da gratidão; não
pode ser Malé, totalmente revelada, porque, apesar de estarmos
mergulhados nessa “ordem”, não somos essa “ordem”. O processo em
andamento dessa ordem não salvaguarda nossas expectativas de um Amor
que nos seja compreensível – pertence apenas ao mundo da fé e de
percepções do tipo Aié.
Compreender isto é fundamental. Pessoas expostas à realidade da Verdade,
em particular aquelas realidades que se apresentam sob a forma calamitosa,
devem cuidar para que não se tornem cínicas. O cinismo é produzido como
um efeito colateral do contato entre a expectativa humana de constante
Amor e a realidade da Verdade. É como se esse contato produzisse
“resíduos de cinismo”, que a tudo aderem e desvirtuam. O luto nada mais é
do que a quarentena necessária para que tais “resíduos de cinismo” possam
baixar, para que não venham a aderir e causar destruição na realidade do
Amor. Todo aquele que penetra na realidade da Verdade deve ficar muito
atento, a fim de perceber os níveis pelos quais contamina seu mundo do
Amor. Isto porque a Verdade não depõe contra o Amor; em realidade, ela é
o pano de fundo onde este se faz possível. A Verdade depõe, outrossim,
contra o mundo do controle – a compreensível, mas perigosa dimensão de
esperar que a realidade possa ser reduzida apenas ao Amor.
Dois relatos bíblicos me parecem particularmente sintonizados com esse
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tipo de classificação da realidade. O primeiro deles, a história de Jó, tornou-
se um clássico para a abordagem das questões da ordem da “calamidade”.
Para quem não recorda, Jó, um homem íntegro e justo, é submetido a
inúmeras provações do “destino”. Coisas ruins acontecem a este homem
bom, que propõe a si mesmo a tarefa de esgotar sua reflexão baseada no
mundo do Amor para compreender a realidade. Do ponto de vista da ordem
do Amor, só poderiam estar ocorrendo duas coisas; ou ele, Jó, não era bom
como imaginara ou (o que era inaceitável para Jó) estava diante de uma
ordem que
“faz coisas ruins a quem é bom”.
No transcorrer do relato, o texto bíblico acaba revelando que as conjecturas
de Jó estavam equivocadas, algo que o próprio Jó talvez intuísse, quando se
negou a aceitar que “Deus pudesse incluir a dimensão de ruim para quem é
bom”. Jó olhava seu mundo com instrumentos da dimensão do Amor, e para
não deixar de honrar sua sensibilidade e integridade só conseguia não
entender.
Na conclusão da história de Jó, a própria Divindade lhe revela que ele está
no caminho errado. Apenas na dimensão da Verdade encontraria respostas –
respostas veladas. Deus formulava outra hipótese: a de que o ruim que
acontecia a pessoas boas não era “ruim”. Porém, para que Ele fizesse isso
sem ao mesmo tempo violentar a humanidade de Jó (que, sim, sofria, que
real e indiscutivelmente estava exposto a algo que lhe era ruim na realidade
do Amor), Deus evocava a dimensão da Verdade.
É curioso ressaltar que, nessa dimensão, a figura de Satã, o Obstruidor,
torna-se uma presença necessária. A densidade satânica, ou a densidade de
obstrução, é que determina se uma questão velada possui uma dimensão de
resposta ou se é puro e simples ocultamento. Satã (do verbo listam,
“obstruir”) é a densidade-limite, onde o véu não mais permite observar algo
sob o questionamento de Aié. Satã imobiliza os seres humanos na dimensão
do Amor e os torna cínicos. Faz isso não porque quer, como se fosse uma
entidade, mas sob a perspectiva da Verdade enquanto um fenômeno, é o
carcereiro que confina as pessoas unicamente à dimensão do Amor. Sem
acesso à consciência e percepção da Verdade, um ser humano luta de
maneira selvagem, como Jó, para não se entregar ao cinismo e ao
desespero. Essa luta, porém,é das mais insidiosas, pois apenas na dimensão
do Amor a presa é fácil.
Outro relato bíblico menos conhecido, que também é bastante contundente
na apresentação dessa classificação, diz respeito aos dois filhos de Aarão, o
sacerdote irmão de Moisés. A pequena e inquietante passagem
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incide indiretamente na questão da “natureza da lógica divina”. Relata o
texto (Lv 10:1-3):
E os filhos de Aarão, Nadab e Abiú, tomaram cada um seu incensário e
puseram fogo neles e ofereceram diante do Eterno um fogo estranho que
não lhes ordenara. E saiu fogo diante do Eterno e os queimou e morreram
diante do Eterno. E disse Moisés a Aarão: “Deus disse: ‘Por meus
escolhidos me santificarei e ante a face do povo serei glorificado.’” E
calou-se Aarão.
Essa passagem evoca nos comentaristas o mesmo questionamento que
expressava Jó: o que teriam feito de errado os dois filhos de Aarão para que
as coisas assim sucedessem? Qualquer tentativa de classificar os filhos de
Aarão como perversos traduz-se no perigoso intuito de restabelecer a ordem
no mundo do Amor a qualquer custo. Eram ruins e pagaram. A “violência”
da reação divina parece aplacada pelo fato de que “ofereceram um fogo
estranho”. Tal tentativa de conter na realidade do Amor, da justiça, das
recompensas e punições a compreensão desse incidente apenas intensifica a
violência da situação. Torna-se absolutamente insuportável a possibilidade
de não terem feito nada de errado do ponto de vista humano que justificasse
tão severa reação.
Esta, porém, parece ser a intenção dessa passagem. Deus é também a
dimensão da Verdade, e lidar com o que é sagrado pressupõe estar exposto a
esta realidade. O “fogo estranho” parece ser uma constatação divina que
não é óbvia para a escala humana e, justamente por isso, o texto não se
preocupa em esclarecer a natureza do que foi feito de “estranho”. Talvez
fosse desumano esperar que Nadab e Abiú tivessem total controle sobre a
situação, e que apenas a possibilidade de um erro viesse a ser capaz de
expô-los à realidade da Verdade. A dimensão da Verdade não é o “custo”
(na perspectiva humana) de um erro, mas o “custo” da possibilidade de as
coisas existirem como são.
Façamos uma comparação. Digamos que a forma de lidar com um reator
atômico é tal que a chance de ocorrer um desastre é uma em dez milhões.
Digamos também que por dez milhões e uma vez o reator é manipulado.
Quando o desastre ocorrer após tal amostragem será ele de que ordem? A
ordem que estabelece que os acidentes sejam tão raros e a ordem que
permite segurança e critério são manifestações da realidade do Amor. O
desastre ou o erro, por sua vez, não pode ser encampado por essa dimensão
do Amor. Era
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sabido que parte da Verdade daquele reator era que, estando ele em
interação com características humanas, tais como a capacidade de
concentração e atenção ou a corrupção e a irresponsabilidade, ela produzia
uma possibilidade de erro em dez milhões. Assim sendo, apesar de se poder
identificar um erro humano da parte daqueles que lidaram erroneamente
com o reator, o erro não é de um indivíduo, mas da própria natureza
humana. Para questionar o trágico incidente, teríamos de nos perguntar: por
que a natureza do ser humano é tal que isso possa acontecer uma vez a cada
dez milhões de vezes e não uma a cada vinte milhões de vezes? Essa
condição de Verdade teria salvado a equipe que erra na conduta com o
reator. No entanto, esta é apenas uma constatação de que a mente humana
apreende da experiência de integração de sua natureza com outras
naturezas.
Voltando ao relato bíblico, vemos que Moisés se recusa a observar o
incidente por um olhar catastrófico (perspectiva da ordem do Amor), e
busca, pela glorificação divina, estabelecer contato com a realidade da
Verdade.
Moisés, como descrito no texto, mostra apenas o aspecto da Verdade,
porquanto nos são ocultos o choque e o abalo pela morte súbita dos
sobrinhos. É por evocar essa realidade que se cala Aarão, o próprio pai.
Para que um indivíduo se entregue à esperança e não ao desespero, é
imprescindível algum nível de integração da realidade da Verdade à do
Amor.
Como céus e terra que se beijam suavemente no horizonte, a Verdade é
irredutível ao Amor, mas a partir de um se pode chegar ao outro. O simples
conhecimento da realidade da Verdade não é em si um antídoto para o
desespero. Muitas vezes essa dimensão é confundida como sendo a própria
dimensão da desordem, do caos. Somente através da integração e
incorporação da dimensão da Verdade à nossa vida, como a expressão de
uma ordem de natureza distinta, é que se consegue conter o impulso ao
desespero. A fé, portanto, não é a capacidade de esperar por aquilo que
gostaríamos que acontecesse, mas a capacidade de integração daquilo que
está além de nosso querer. É a quase impossível tarefa de encontrar alegria
na concretização daquilo que deve ser. É um nível de entrega que não se
alcança pela reflexão, mas pela constante arte de saber honrar e celebrar as
perdas e os ganhos da vida.
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A concordata (nunca a falência) da consciência
A consciência para a espécie humana representa o mais importante
investimento no processo de preservação e manutenção da individualidade
ou da própria vida. Da mesma forma que o instinto é um mecanismo
essencial para o reino animal, uma espécie de programa que gerencia a
vida, a consciência é também um aparato humano fundamental de
sobrevivência.
Sua diferença em relação ao instinto é marcada pelo fato de não ser apenas
fonte de reações a determinados estímulos, mas de ser também
determinadora de significado.
A partir da descoberta da ferramenta, da causalidade e de padrões na
realidade à sua volta, o ser humano desenvolveu uma íntima relação com o
conceito de controle, e originou-se a consciência. O controle, diferente do
ato reflexo, no esforço de dar conta de uma situação específica, confere
significados ao mundo à sua volta. Esses significados, no entanto, ficam
comprometidos com a própria motivação original, que é de preservação e
sobrevivência. O controle faz, portanto, com que os seres humanos
atravessem a rua com cuidado, e o resultado desse ato de controle que é
eficiente na preservação da vida é percebido como uma estrutura de ordem.
Ou seja, o controle torna mais provável que aconteça aquilo que é “bom”
para a preservação da vida e da individualidade.
No entanto, se por um lado o controle otimiza a preservação da vida, por
outro estabelece uma rígida construção de ordem. Essa percepção de ordens
exacerbadas pelo controle gera expectativas de que ela seja, além de
corriqueira, também um direito em nossa vida. Libere um animal ou uma
criança, ou uma pessoa incapacitada mentalmente em um apartamento, e o
que deveria refrigerar não refrigerará, o que deveria conter não conterá, o
que deveria estar aberto estará fechado e o que deveria permanecer fechado
se abrirá, e assim por diante. Aquele ambiente organizado de
eletrodomésticos, de engenharia e reflexão arquitetônica se tornará um local
perigoso. A ordem que os seres humanos “costuram” por entre sua
realidade tem na consciência e na característica controladora um
instrumento fundamental de sobrevivência para lidar com a própria ordem.
Enquanto houver alguma margem de controle, haverá alguma escala de
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ordem a ser percebida, ou alguma forma “ordenada” de tratar a ordem. No
entanto, quando o controle é rompido por algum tipo de perda profunda,
nossa consciência não consegue dar conta da tarefa de atribuir significado a
nossas experiências. Sua única opção para não ir contra a própria
programação interna é negar ao mundo exatamente o atributo que constitui
sua essência – o significado e a ordem. De maneira quase ingênua, a mente
prefere declarar a falência do mundo da ordem e do significado a admitir
qualquer incongruência de sua própria lógica. A consciência opta pelo
desespero para preservar-se, o qual,portanto, é uma construção sua. O
poder da consciência está no fato de ser ela o somatório das experiências de
cada um de nós; ou seja, nossa história pessoal e que confundimos com a
própria individualidade. A consciência humana diante do descontrole se
sente mais à vontade de abrir mão de seu futuro do que de seu passado.
Declarar daqui para a frente a falência da ordem é mais fácil (por mais
difícil que seja) do que declarar falida toda a experiência de nosso passado.
Assim como é mais fácil morrer do que destruir o que nos é sagrado, nossa
consciência prefere morrer
– sabotar a noção de ordem de nosso futuro – a matar –, reduzir nossa
existência passada à insignificância (eliminar o que nos é próximo).
Em outras palavras, nossa individualidade está sempre mais comprometida
com nosso passado do que com nosso futuro. Eis a razão pela qual nos é tão
difícil e dolorosa a mudança ou nossa transformação pessoal –
o compromisso com o luto por aquilo que estamos deixando de ser nos
parece maior do que o desejo de redenção daquilo que no futuro nos
tornaremos. E isto é, do ponto de vista afetivo, bastante compreensível.
Afinal, o que fomos até agora é da escala do conhecido, do familiar e do
íntimo; o que seremos, por sua vez, é da escala do desconhecido, do
estranho e do distante. Somente a vida e o descontrole são capazes de
romper essa aliança da consciência com seu passado de controles. Sua
resistência em fazer contato com uma realidade que não possui ainda uma
dimensão de significado é da mesma grandeza que a resistência instintiva
de um animal ao cruzar uma barreira de fogo ou um descampado aberto que
o torne visível e vulnerável.
Para podermos preservar a fé, deveremos ser capazes de declarar nossas
consciências momentânea e esporadicamente como em processo de
insolvência, e pedir concordata. Essa medida, que reconhece a incapacidade
da consciência de nos representar plenamente na arena da existência, tem
também como objetivo não permitir sua falência final. Dependemos dessa
consciência em infinitas situações de sobrevivência; sua falência é nossa
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própria extinção.
Para podermos honrar a consciência e a experiência existencial, temos de
conhecer a arte de pedir “concordata” para nosso empreendimento na
dimensão da consciência. Tal concordata tem como parte de seu objetivo
salvaguardar a própria consciência de uma possível falência, que
representaria a alienação total. Essa concordata é comumente chamada de
entrega.
Popularmente, dizemos coisas como “está nas mãos de Deus”, “está
entregue à sorte”, para expressar um estado em que abrimos mão da
perspectiva de controle, sem que ao mesmo tempo faça-se espaço para o
caos e para a desesperança. É um estado de fé, um estado de graça, onde,
após termos feito sem sucesso tudo o que poderíamos fazer em dada
situação, ainda assim preservamos a noção (Aié) de ordem no
reconhecimento de que aquilo que tiver de ser, será. Essas frases traduzem
instantes em que temos coragem para assumir a insolvência de nossa
consciência para preservar a ordem no mundo à nossa volta. Essa ordem,
obtida como se fosse um
“gerador” ao apagar das luzes da dimensão do controle, é de uma natureza
não objetiva. Ela é resultante da ordem circundante, que cria em torno da
experiência existencial um clarão, mesmo quando se instala a escuridão.
Uma ilustração desse fenômeno poderia ser obtida de um conceito da
Cabala, segundo o qual o texto bíblico teria sido formado por dois
diferentes fogos que incrustaram as Tábuas da Lei. De acordo com esse
conceito, um fogo negro inscreveu o formato das letras, enquanto um fogo
branco criou o contorno branco que delimita o negro da tinta e que mais
nitidamente percebemos como a escrita. Assim, a escrita não é apenas a
marca negra deixada pelas letras registradas no papel, mas também o
branco que as circunda. Da mesma forma, a ordem não é apenas a situação
objetiva (as letras), mas um fundo ou uma moldura de vida (o branco
circundante), que delimita nossas experiências e é real. É como se
imaginássemos, por exemplo, que o texto escrito pudesse perder o sentido
ao ter suas letras dispostas de maneira aleatória, mas mesmo assim
preservasse alguma estrutura de ordem.
O branco de um texto, mesmo que não faça sentido, é evidência de
sofisticados níveis de ordem.
O tal clarão que pode iluminar uma desordem, fazendo com que pareça
adquirir um sentido de ordem, depende de uma percepção que raramente
conseguimos capturar sob a forma de consciência. Acaso reconhecêssemos
que a proporção daquilo que podendo sair mal e não sai é bastante superior
à proporção daquilo que poderia sair bem e não sai, perceberíamos uma
moldura de ordem pela simples existência de limites às desordens. Se
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pudéssemos perceber a constância de uma lei “anti-Murphy”, ou seja, que
nos fosse tão impactante a situação em que o pão cai no chão com a face da
manteiga voltada para cima quanto nos é a situação em que cai voltada para
baixo, a vida seria uma constante celebração da ordem.
No entanto, isto é impossível, pois a consciência é um instrumento
rastreador de ordem e não da percepção das possíveis desordens que não se
concretizam como tal. Tal dimensão é resgatada exatamente nessa
“insolvência” da consciência, na entrega. Entregar-se é possuir alguma
noção da magnitude da ordem existente nas infinitas possibilidades de
aleatoriedade e caos que não se concretizam e que não são registradas
sistematicamente por nossa consciência. A entrega reconhece formas de
ordem no branco que circunda a própria desordem.
A entrega, por sua vez, não é uma resignação. É a persistência de fé na
ordem, mesmo quando esta se faz oculta à nossa consciência. A entrega não
é uma aceitação passiva, como a resignação. É um ato, um esforço de
grande sofisticação, cujo impacto não incide apenas sobre o indivíduo, mas
também sobre o mundo à sua volta. Por exemplo, se alguém se expressa
sinceramente dizendo “não sei mais o que fazer e preciso de ajuda”, se
abandonar a expectativa de equacionar uma situação de forma Malé e
conseguir transitar por formas de Aié (“onde está a glória?”), tal pessoa se
posiciona em relação à vida de maneira favorável para que a própria
natureza da vida desencadeie resultados práticos e concretos. Como se no
mundo exterior nos fosse dado evocar forças “mágicas” do universo
próximo a nós antes ocultas, que nos abrem caminhos e oportunidades pelo
simples fato de não mais estarmos na contramão da Verdade. Em outras
palavras, aventurar-se pela dimensão da Verdade não apenas pode trazer
“compreensão”, como pode resultar em manifestações reais na dimensão do
Amor.
A entrega, no entanto, não visa seduzir ou subornar a realidade da Verdade
para que se expresse sob a forma de Amor. É o próprio ato de honrar a
Verdade que traz em si uma experiência na dimensão do Amor.
A arte da entrega é a capacidade de se enveredar pela dimensão da Verdade
sem perder a fé. Diz respeito ao que é vivenciado de forma velada, sem
permitir ocultamento. Essa arte, como todas, é desenvolvida de modo a não
ser percebida como uma tecnologia passível de ser dominada.
Este livro tratará de diversas dimensões onde a entrega pode ser
experimentada no cotidiano, de maneira a gradualmente desmascarar o
desespero. O resgate da condição do desespero como sendo uma mera
sensação, impossibilitando-o de se instalar como realidade, é a função
maior
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da entrega.
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A entrega antes da entrega
Um último conceito nos é importante antes de iniciarmos um tour por nossa
realidade distinguindo as dimensões de Amor e Verdade contidas em todas
as situações de vida. Trata-se de identificar a última fronteira, a “alfândega”
que separa o território da esperança do território do desespero. Referimo-
nos às instâncias quando não estamos em condições de assumir nossa
entrega, quando não dispomos dos meios ou da autoridade para declarar a
insolvênciamomentânea de nossas consciências. Tais situações são comuns,
devido ao comportamento persistente de evadir-nos dos encontros com a
dimensão da Verdade e pela resistência que temos ao descontrole.
Essa última fronteira é a espera. Para revelar esse segredo, Reb Nachman
cita um versículo dos Salmos (31:25), que diz: “Sejai fortes, firmai vossos
corações, vós que esperais o Eterno...” Aqueles que não conseguem
entregar-se, por qualquer que seja a razão, devem poder, pelo menos,
esperar por Deus. Como um ensinamento, “esperar por Deus” significa uma
entrega preliminar que não é ainda uma entrega definitiva e ativa. Por
exemplo, pessoas sob o impacto de uma realidade muito dolorosa diante de
sua perplexidade e incapacidade de “digerir” os acontecimentos podem
optar por
“esperar por Deus”.
O próprio versículo dos Salmos utiliza-se da imagem de uma tempestade,
em que aqueles que esperam devem agarrar-se fortemente e firmar o
coração para que não sejam levados pela intensidade avassaladora dos
acontecimentos. Quando não há forma humana de assimilar uma realidade
da dimensão da Verdade, os que conseguem esperar realizam o esforço
mínimo necessário para não serem levados ao desespero. Conseguem,
portanto, dimensionar sua perplexidade como transitória e momentânea e
não elevá-la à perigosa categoria do conclusivo e definitivo. Esta é a razão
pela qual a palavra desespero traz em sua raiz a antítese da espera.
A entrega antes da entrega, ou a espera, não é idêntica a uma postura Aié
(“onde está a glória?”). Aié é uma busca e aceitação ativa daquilo que não
será revelado, apenas mostrado sob sua forma velada. A entrega antes da
entrega é traduzida na escala coletiva pela ideia messiânica pela qual, seja
qual for a realidade que se apresente diante de uma geração, sua postura
será de espera.
A salvação, para decepção de muitos, não será o mundo da ordem Malé
(“aqui está a glória”), nem da ordem do controle e da consciência, nem um
mundo
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composto unicamente pela realidade do Amor. Será, sim, o mundo onde
existem as condições necessárias para que haja entrega. Uma realidade em
que a entrega ativa será universalmente parte do comportamento humano –
em que tudo o que é oculto passará a ser velado.
Este é o final do processo para aqueles que trazem “circulando em seu
sistema” o fruto da Árvore da Sabedoria. A sabedoria permite a
compreensão exatamente porque está separada do objeto que ela
compreende. A consciência ou a sabedoria, por definição, vivem fora do
Paraíso e existem da distinção constante entre as manifestações de Amor e
Verdade. Apenas no Paraíso, o lugar da não consciência, é possível que a
Verdade e o Amor sejam equivalentes e vivenciados de maneira revelada.
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Estéticas fora do caos
Nos capítulos anteriores, buscamos algumas classificações que nos
possibilitassem identificar a essência do desafio e da ameaça que fustigam
os seres humanos. Reconhecemos que o nosso real inimigo não é o mal,
mas o caos. O caos não é a manifestação do mal, mas quando o mal se
mistura de forma indistinta com o bem. Quando a consciência não consegue
manter seus parâmetros de avaliação do mundo e dele abre mão em
depressão e desespero.
É interessante notar, no entanto, que a sociedade ocidental organizou-se
muito mais pela vertente que busca estruturar o mundo à nossa volta por
meio do controle – que visa distinguir o bem do mal expurgando o mal –,
do que pela entrega –, que visa distinguir o bem do mal, acolhendo o mal e
desobrigando-se do bem. É por isso que alguns modelos orientais que
preservaram um melhor equilíbrio entre essas duas formas de sabedoria
(refinar o bem excluindo o mal e refinar o mal excluindo o bem) tornaram-
se nas últimas décadas tão importantes na busca do Ocidente por
significado e ordem.
As estéticas do mundo ocidental revelam o grande espaço que o caos
conseguiu ganhar penetrando no cerne da percepção rotineira das massas.
Essas estéticas são bolsões onde a mistura do bem e do mal se dá
indiscriminadamente, resultando na montagem, diante de todos nós, de uma
realidade distorcida. Analisaremos, em especial, duas estéticas que
constantemente moldam nossa compreensão do mundo: as coisas na hora
certa e as coisas no lugar certo. A primeira dessas estéticas tornou forma na
linguagem pela palavra timing; a segunda chamaremos de spacing.
Inicialmente, porém, devemos nos perguntar: o que há de errado com essas
estéticas? Nada. Não há nada mais harmônico do que algo na hora certa e
algo no lugar certo. Mais do que isso: quando as duas estéticas se
combinam, acabam formando algo especial, que muitos denominam
“sorte”.
Sorte é uma forma de estética semelhante ao coringa do baralho, que, com
suas componentes de timing e de spacing, preenche de ordem qualquer
espaço e situação. Dificuldades, entretanto, vão aparecer, na medida em que
essas estéticas sejam experimentadas a partir da busca por controle. Na
dimensão pura da consciência, quando algo não existir no seu tempo
próprio e/ou no seu lugar próprio, deflagra-se o processo de percepção do
“azar”. Algo fora
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de seu tempo ou fora de seu lugar assume um espectro de algo que é feio,
antiestético. Na dimensão do Amor e da ordem, portanto, não há
possibilidade de que algo “fora do seu tempo” ou “fora do seu lugar” possa
ser percebido como estético. Na obsessão por compartimentar o belo como
pertinente a realidades objetivas (Malé), perdemos a habilidade de discernir
estruturas estéticas nas manifestações veladas de ordem.
Uma pequena história chassídica vai ajudar-nos a ilustrar a cultura estética
do Ocidente:
Contou o rabino de Dubnov:
Um médico prescreveu pílulas a um jovem paciente. As pílulas, como de
costume, eram recobertas por uma camada de açúcar e aromatizantes.
Com o passar do tempo, o paciente não demonstrou qualquer melhora, e o
médico resolveu investigar. Ao acompanhar o procedimento do rapaz, o
médico descobriu que o tolo lambia a cobertura adocicada e cuspia fora a
pílula.
Nossa atitude é análoga à do menino. Absorvemos nossas experiências do
dia a dia de maneira semelhante, pois integramos o doce (a estrutura do
Amor) e “cuspimos” a componente Verdade. Nossa “cura”, nosso
desenvolvimento como seres não desesperados, não é possível, porque nos
negamos a engolir a componente da vida que tem a possibilidade de sarar
futuros ferimentos causados pela dúvida e pela desorientação.
Com certeza, o açúcar da pílula foi elaborado para exercer uma função. É
ele que nos permite engolir a pílula como um todo. Isoladamente, o açúcar
não tem qualquer efeito ou eficácia.
Uma inscrição nos cemitérios judaicos é bastante reveladora dessas
estéticas que não vemos ou não queremos ver. Ela diz: “Abençoado é o
Eterno, que vos fez através da dimensão da Verdade (ba-din), e vos mantém
vivos pela dimensão da Verdade (ba-din), e vos alimenta pela dimensão da
Verdade... e vos fará reviver no futuro através da dimensão da Verdade.”
É incrível perceber que a realidade da Verdade, aquela que nos faz perder e
morrer, é a mesma que possibilita a nossa vida, o nosso sustento e a nossa
reciclagem no futuro. Aquilo que nos dói e tem um custo está incluído e faz
parte do somatório positivo que é a vida, por mais que tentemos torná-lo
estranho e externo a ela. Tão positivo é esse somatório que ninguém quer
abrir mão da vida; fosse a vida ruim e, portanto, o morrer fácil,
preferiríamos
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a realidade ora vigente. Não há como perceber a vida como boa sem que
sua perda tenha um componente que nos pareça “antiestético”.
Mas não deveria ser assim. Perceber a beleza contida na Verdade,
reconhecendo que, além de permitir, ela também mantém e reaviva a vida,
seria equivalente a descobrir uma nova dimensão estética.
A estética comum, avessa a qualquer ordem que não seja explícita, torna-se
campo fértil para o desenvolvimento do conceito de caos. A capacidade de
perceber estética noque é velado é a única saída para evitarmos que o
mundo se torne feio à medida que vivemos e amadurecemos para a vida.
Faremos a seguir um breve estudo do verdadeiro senso estético de algo em
seu tempo certo e de algo em seu lugar certo.
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A estética das coisas no seu tempo certo (Davar Be-itó)
Aos cinco anos – a idade do estudo das Escrituras Aos dez anos – o estudo
da Mishná
Aos treze anos – a responsabilidade de cumprir os mandamentos Aos
dezoito – a busca do casamento
Aos vinte – a procura do sustento
Aos trinta – o auge da força
Aos quarenta – a sabedoria
Aos cinquenta – a possibilidade de aconselhar
Aos sessenta – o início da velhice
Aos setenta – a plenitude dos anos
Aos oitenta – o corpo cansado
Aos cem – com um pé em cada mundo
Rabi Iehudá ben Tema
(“Ética dos Ancestrais”, 5:24)
A noção de que há uma estética no cumprimento de um ciclo está entre os
primeiros conceitos de ordem que desenvolvemos. Esta estética diz respeito
à descoberta do tempo, de sua aparente direção rumo ao futuro e das noções
a ele associadas – antes/depois e começo/fim. O tratado talmúdico que
versa sobre o luto (3:8) revela essa percepção de forma bastante concreta:
“quem quer que seja levado deste mundo antes dos cinquenta anos terá sido
levado antes de seu tempo.” Se uma pessoa vier a morrer antes do período
da possibilidade de aconselhar, será como se não tivesse tido oportunidade
de cumprir um ciclo, acima de tudo, estético.
A natureza dessa não estética da morte antes do tempo é construída a partir
da percepção de que a plenitude, como se esta fosse um objetivo, não foi
alcançada. No entanto, não há qualquer razão para termos tal expectativa,
uma vez que ninguém “completa” nada nem fecha qualquer ciclo por
controle próprio. Assim sendo, todo e qualquer ciclo que se fecha, seja
antes, durante ou depois do que esperaríamos, é sempre davar be-itó, uma
coisa a seu tempo. É claro que a aceitação disso é extremamente difícil. É
da mesma ordem de dificuldade de querermos crer em algo que viole nosso
senso de realidade e nossa experiência. Fica assim exposto nosso
despreparo para lidar com a vida e se evidencia o quão viciados somos pela
expectativa de ordem.
Por ordem entenda-se o desejo constante de que as coisas sejam do jeito que
gostaríamos que fossem e não do jeito que deveriam ser.
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Quando queremos que as coisas sejam da esfera de “como devem ser”,
estamos falando do mundo velado. Não podemos compreendê-lo plena e
explicitamente – Malé –, mas o aceitamos. Nesse instante, as coisas no seu
tempo certo ganham um novo sentido para além daquilo que gostaríamos
que acontecesse.
Certa vez, visitando uma pessoa gravemente doente, descobri o que apelidei
“síndrome da torta de queijo”. Devido ao tratamento a que era submetida,
essa pessoa havia perdido o paladar. Num de nossos encontros, ela
comentou sobre seu profundo desejo de sentir o gosto e a textura dessa torta
que ela tanto amava. Porém, ao mencionar que daria tudo para poder sentir
esse gosto apenas mais uma vez, a pessoa enferma parou e ponderou:
“que besteira... se me permitissem sentir tal sabor e depois me tirassem essa
possibilidade, continuaria a sentir a mesma nostalgia e o mesmo desejo de
agora. Quantas vezes comi essa torta, e veja... aqui estou, sentindo sua falta.
Tivesse eu provado mil vezes mais dela, ainda assim sentiria o desejo e a
tristeza que hoje experimento.”
Este é um sentimento com o qual podemos nos identificar. Não queremos
abandonar a possibilidade de sentir os gostos. Na verdade, tal possibilidade,
muito mais do que a própria torta, é que trazia prazer a essa pessoa.
Reparemos, porém, que, por meio dessa relação com o mundo, limitamos a
percepção de “algo a seu tempo” à dimensão daquilo que queremos, à
realidade do Amor. Essa “linha de lógica” leva diretamente ao desespero,
pois não há possibilidade real de que venhamos a fazer qualquer concessão
absoluta ao que queremos. Assim, as perdas permanecem para sempre
vinculadas a “algo que não é a seu tempo” e serão vividas como feias, como
uma intromissão do caos em nosso santuário particular de ordem.
Um discípulo reclamou ao rabino de Ger: “Há vinte anos me esforço e não
alcanço a realização de um artesão que se torna mestre de sua arte, seja pela
criação de algo de melhor qualidade ou de algo que seja feito com maior
eficácia e rapidez. Da mesma forma que era há vinte anos, assim sou hoje.”
O rabino respondeu: “Veja o caso de um boi, por exemplo. Todo dia pela
manhã sai de seu estábulo, vai para o campo, ara a terra e é levado de volta
a seu estábulo. Isso é feito dia após dia e nada muda em relação ao boi –
porém, a cada ano, a terra arada dá sua colheita.”
Nossa vida não é celebrada por qualquer diplomação ao concluirmos o
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currículo que imaginamos para nossa vida. É um sonho, um desejo de
impor a ordem do Amor, queremos tornar a vida estética através da
expectativa de que tudo acontecerá em seu tempo certo. Certa vez oficiei o
funeral de uma senhora falecida aos 98 anos e seu filho não parava de me
perguntar por que aquilo tinha de acontecer logo naquele momento. No meu
íntimo, achei graça. “Se não ela, quem?”, pensei com meus botões. Mas
estava fazendo uso da mesma rejeição da verdade que aquele homem que
julgava patético. O que me parecia óbvio e ordenado – uma mulher quase
centenária morrer – minha estética que queria impor previsibilidade era tão
controladora como a dor do filho enlutado que exigia que as coisas fossem
do “jeito que ele queria”.
A possibilidade de uma pessoa encontrar razão para a própria vida ao comer
a torta de queijo de agora, não atribuindo unicamente sentido
exclusivamente à possibilidade de prosseguir tendo a chance de degustá-la,
é encontrar o caminho para davar be-itó, “o que acontece realmente em seu
tempo certo”.
O que é estético em nossa história sobre o boi são os campos reais, que são
arados, semeados e frutificam. No boi, em si, a vida não celebra –
regozija-se, sim, de seus campos. No desejo de dominar o poder de sentir o
gosto da torta, a vida não celebra – no degustar e no prazer de tê-la à boca,
sim, a vida se regozija.
O desejo do discípulo de estar aperfeiçoando a si mesmo, como se estivesse
esculpindo a si próprio, é uma ilusão. São os campos arados, ou seja, nossos
feitos, que terão impacto sobre nós mesmos e sobre o mundo. São eles a
nossa construção e não a construção de nós mesmos.
Seria, então, a vida regida pelo princípio do “aqui e agora”?
Sim, mas diferentemente do sentido hedonista ao qual a expressão é
comumente associada. “Aqui e agora” não significa uma vida destituída de
responsabilidades e projetos, mas a possibilidade de se usufruir a potência
da vida a cada instante. O depois será sempre objeto de controle; o “aqui e
agora” é o chão da entrega.
Resgatar o significado de cada momento de vida é exercício indispensável
para livrar-nos do cinismo. Saber reconhecer essa estética é poder ver além
desse mundo explícito. É descobrir no contentamento o supremo senso
estético da harmonia, e na busca obsessiva da felicidade, uma estética de
controle. Como é feio o afetado, o que quer preservar o que é perecível, ou
aquele que peca por excesso! A vida nada tem a ver com isso – algo a seu
tempo estará sempre associado a um sentimento de entrega, jamais a
expectativas de controle.
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É estético o contrário do que frequentemente acreditamos ser estético.
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A estética das coisas no seu lugar certo (Ba-asher Hu Sham)
Outra percepção estética que compartilhamos diz respeito aos momentos
em que nos sentimos entusiasmados e autoconfiantes. São períodos que nos
permitem sonhar e planejar; quando as coisas parecem mover-se para a
frente e ambicionamos crescer e nos expandir. Momentos em que Deus
parece estar do nosso lado e os mais tolos chegam a desenvolver teorias
sobre a predileçãoque acreditam gozar. Tal estética identifica a bem-
aventurança como uma manifestação pura da realidade do Amor. Deus é
então
“brasileiro”, do nosso time, da nossa religião ou simplesmente “está
conosco”.
Na famosa noite decisiva em que o Norte dos Estados Unidos resolveu
entrar em guerra com o Sul, conta-se que um general ergueu um brinde
dizendo: “Possa Deus estar conosco!”, ao que foi corrigido por Abraham
Lincoln: “Possamos nós estar com Deus.” Essa pequena inversão expressa a
possibilidade do “sucesso” como uma manifestação fundamentada não na
realidade do Amor, mas nesta que estamos chamando de Verdade.
Se você acha que está bem porque Deus o ama ou porque está com você
naquele instante, terá de admitir em outros momentos, quando você não
estiver num bom momento, que Deus não gosta mais de você. Tal
percepção do mundo, na mesma medida em que é atrativa, é também
destrutiva e fomentadora do desespero.
Reb Nachman ilustrava essa questão por uma passagem bíblica (Gn 21), em
que Agar, esposa de Abraão, é expulsa de casa. Agar estava às raias do
desespero, porque se encontrava com o filho Ismael abandonada no deserto.
Para não presenciar a morte da criança, ela tenta se afastar do menino.
Nesse instante Deus ouve o choro do menino e diz (v. 17): “‘O que tens,
Agar? Não temas’; pois escutou Deus a voz do menino de onde ele está! (
ba-asher hu sham).”
Quando uma pessoa percebe que “de onde quer que esteja” há uma estética
que lhe permite a percepção de estar “com Deus”, mesmo em meio a uma
experiência da esfera da Verdade, nada mais pode assustá-la. “Não tema”,
diz o Criador, aliás sua fala predileta, dita a todos os Patriarcas e a Moisés.
Não temer é o que nos salvaguarda do cinismo. Esse lugar (qualquer
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lugar) é o que nos retira o temor e nos permite buscar encontrar Deus, a
ordem e o estético, não apenas quando as coisas parecem ir de encontro ao
que esperamos e desejamos. Desde o próprio lugar onde nos encontramos,
seja na escuridão ou nas profundezas, de lá – e não de uma posição de
suborno, “se as coisas vierem a melhorar...” – devemos fazer contato com a
ordem, com o Eterno. “Desde lá procurarás o Eterno, teu Deus”, afirma o
texto bíblico (Dt 4:29) e Reb Nachman se pergunta, retoricamente: “Desde
lá onde?” Lá. Desde o lugar onde você se encontra. Deus não se encontra na
prova vencida, na cura obtida ou no sucesso alcançado, procure-O/A desde
o lugar onde você está.
Poder compreender o mundo desde o lugar onde você está, e não pelo lugar
onde você gostaria ou acha que mereceria estar, é buscar o beijo, a
confluência da realidade da Verdade e do Amor. Apenas “de onde você
está”
é que essa janela pode ser vista. Tal janela se faz na única possibilidade que
tem o “parcial” de compreender o “todo”.
Somos parte de um “todo” que nos despeja a realidade da Verdade; somos
também parte de um “particular” que concebe o mundo a partir da
dimensão do Amor e do não Amor. A noção de “onde quer que estejamos”
permite que percebamos existencialmente nossa realidade “particular”
como parte do
“todo”. Esperar que as coisas fossem apenas como gostaríamos é querer
reduzir tudo à esfera do “ particular” , o que nos leva ao encontro do
desespero. Por outro lado, ter a pretensão de apreender a realidade pela
perspectiva do “todo” é não conhecer as limitações de nossa humanidade e
é marcar encontro com uma vida destituída de significado, onde a morte é
certeza e fim absoluto.
O mundo da Verdade e o mundo do Amor devem estar constantemente se
acasalando e preservando uma relação não hierárquica. Toda vez que o
Amor buscar controle sobre a verdade – o particular sobre o todo –,
estaremos agindo de forma ilusória e assumindo todos os custos dessa
atitude. Toda vez que a Verdade tentar suprimir o Amor – e o “todo”
subjugar o “particular” –, estará nos colocando diante do desespero e do
cinismo.
O cinismo é, muitas vezes, tido como um antídoto contra o desespero.
Trata-se, porém, de uma noção falsa. O cinismo produz uma sensação
momentânea de que se está para além da realidade, como se estivéssemos
falando de um mundo na terceira pessoa e não na primeira. Avesso à dor, o
cínico mais cedo ou mais tarde terá de subir à tona de sua própria existência
ou se asfixiar nesse distanciamento de si mesmo. O seu grande problema é
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que na superfície, na superfície do mundo que criou para si não há oxigênio,
mas desespero.
Não há como fugir do desespero na fantasia (espaço restrito do Amor), mas
no abraço total à realidade de nosso momento. Devemos perceber que os
locais onde o Amor e a Verdade “se beijam” são aqueles “onde estamos”.
Nesses lugares onde nos encontramos, há a possibilidade pontual de lidar
com o Amor e com a Verdade.
Assim sendo, a estética de um “lugar certo” não é a experiência de quando
tudo vai bem ou sob controle, mas a possibilidade de vivermos
integralmente o que se nos apresenta num dado instante. É, portanto, o
ponto constante e permanente onde Deus ou a esperança nos encontram,
“onde quer que estejamos”. Uma estética muito distinta, portanto, daquela
que identifica o
“lugar certo” como uma posição no futuro, onde o “todo” se adequará ao
“particular”.
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II
ORDENS ALÉM DA ORDEM
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“E viu que era bom.”
Bom o quê? A morte
Muito do que compreendemos por desespero e por caos diz respeito à
morte. Para a experiência dos vivos, a descontinuidade gerada ao passar-se
pelos limites da vida e da morte é tão grotescamente real que se torna
temível e terrível.
Diante da morte, estamos diante da Verdade, e, como vimos anteriormente,
em tais situações, em vez de nossa consciência renunciar a si mesma,
prefere devastar a realidade e não abrir mão de seu controle.
Entre as formas de buscar controlar a morte, a consciência tem um truque
que lhe é predileto. Trata-se da artimanha de nos fazer oscilar entre duas
formas de corrupção da realidade. Uma dessas formas é o pessimismo cuja
estratégia é promover um verdadeiro festival de horrores e abrir o máximo
de espaço ao caos. Mas o pessimismo não passa de uma estratégia de
controle.
Ao produzir o pior cenário possível, parece nos proteger de surpresas
indesejadas, além de buscar antecipar a dor para poder suportá-la.
A segunda forma – o otimismo – projeta sobre a morte as mesmas
condições da vida. A aparente descontinuidade da morte é reduzida e
maquiada como uma distinta forma de continuidade. Nela, a
individualidade não termina com a morte, mas persiste eternamente, se
renovando e reciclando-se. São as reencarnações e os diversos sistemas de
punição e recompensa que visam preservar os enredos do indivíduo.
O pessimismo controla pelo cinismo e pelo sarcasmo. O otimismo controla
se fazendo cúmplice e íntimo ao “todo”. Ambas as formas não representam
a realidade, apesar da sedução que exercem sobre a consciência.
Nessa confusão oscilante, a consciência encontra uma maneira para não
admitir que sua condição está limitada a uma realidade que é “particular” e
que não diz respeito ao “todo”. Salvaguarda, assim, a si própria, mas não a
nós. Isso porque somos mais do que apenas nossa consciência, e preservar-
nos não implica garantir a qualquer custo apenas a manutenção de sua
coerência. Sentimos, intuímos e vivemos uma dimensão existencial.
Quando falamos de nossa “integralidade”, não podemos reduzir a morte à
questão
“filosófica” de ser ela um momento final que desafia a nossa compreensão.
Devemos, com grande sensibilidade, perceber que a vida está imersa e
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embebida no oceano da morte. Não há descontinuidade na morte; há um
ruidoso e ofuscante revigoramento de algo que a vida, em sua também
ruidosa e ofuscante dimensão, não nos permite perceber.
A morte e a vida se beijam como a Verdade e o Amor, tal como na imagem
que mencionamos sobre o texto das Escrituras em que as letras negras e o
vazio branco que as envolve se tornamuma única coisa. Ou como nas
ilustrações utilizadas na Gestalt, em que se percebe ora um jarro, ora um
rosto, e que nos brindam graficamente com o conceito de “ver um é não ver
o outro”. Ninguém, portanto, poderá determinar de maneira conclusiva se o
desenho é um jarro ou se é um rosto.
Tamanha é a convicção encontrada na tradição judaica de que a vida se
entrelaça ou, melhor, se “estrela” (a estrela de Davi) com a morte, que o
Midrash se permite fazer o mais ousado de todos os comentários. Em
Gênesis Raba (9:3), na análise do versículo final da Criação, quando Deus
se volta a tudo o que havia criado em admiração, lemos o seguinte: “E Deus
viu tudo o que tinha feito e viu que era muito bom” (Gn 1:31).
Rabi Meir disse: “‘e viu que era muito bom’ – muito bom o quê? Isso se
refere ao Anjo da Morte.”
É no mínimo surpreendente imaginar o Criador, Aquele/a que faz e
diferencia tudo, que cria, dando identidade e especificidade a tudo, que
possa apreciar sua obra como um artista e afirmar ser justamente o Anjo da
Morte o seu toque de mestre.
A Criação havia sido confeccionada sobre um fundo que Deus identifica
como extremamente estético (e viu que era muito bom!). Talvez melhor do
que a imagem de um “fundo” que induz a ideia de algo separado da própria
obra nos valhamos de um modelo mais refinado. O processo gráfico
conhecido como “retícula”, por exemplo, é uma ilustração mais adequada.
Nesse processo, a intensidade da cor é formada pela variação do número de
pontos dessa mesma cor contidos no papel. Por exemplo, a aplicação sobre
um papel branco de milhares de pontinhos vermelhos resulta no efeito
cromático do rosa. Se o número de pontos vermelhos fosse aumentado,
perceberíamos o vermelho mais escuro. Digamos, para efeitos visuais, que a
vida possa ser percebida como “rosa”. Ela nada mais seria do que o
fenômeno de ter intercalados branco e vermelho em certa proporção. Assim
é com a vida e com a morte – pigmentos de vida e morte se intercalam,
produzindo a existência.
Para que vivamos, é necessário que a própria estrutura de nossas células
saiba morrer e se reciclar. Enquanto vivemos, milhões de mínimas
partículas
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de nós mesmos estão constantemente morrendo. A morte e a vida são
parceiras, não adversárias. Ora são parceiras para preservar a vida, ora para
preservar a morte. O inverno se move em direção ao verão, e este ao
inverno; o dia se move em direção à noite, e esta ao dia; a expiração, à
inspiração, e esta, à expiração. Nem o dia, nem o verão, nem a inspiração
isoladamente representam a vida; nós os experimentamos, respectivamente,
como sendo claros, calorosos e revigorantes, e acabamos por confundi-los
com a própria dimensão do Amor – aquilo que está a “nosso favor”.
Fazemos isso sem perceber que a escuridão, o frio e o esvaziamento são da
mesma forma indispensável e que também “estão a nosso favor”. Essa
realidade de frio e escuridão, ou a dimensão da Verdade, não é “inimiga”,
mas aliada. É parte importante da Criação e de sua estética – daquilo que
viu como “muito bom”.
Assim, vemos que a natureza pulsante, seja de nosso organismo ou do
próprio cosmos em suas contrações e expansões, tem algo a nos dizer sobre
a relação entre a vida e a morte. A cada batida, o coração pulsa aqui neste
mundo e repulsa no mundo de lá, de volta para este mundo. A morte atua
constantemente na realidade da vida, como faz o inverno com o verão,
“empurrando” tudo o que é vivo de volta à vida. A vida faz o mesmo com a
morte. Seu convênio é que nos permite existir e não existir.
A estética que Deus percebe na morte ( tóv meod, “muito bom”) nos é uma
realidade velada. Mas é nela que se encontra a salvação ou a arte de se
salvar.
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A dinâmica das pausas
Comentava uma amiga: “Estou preocupada, pois estou chegando à
menopausa.” Ao que respondeu um senhor de idade, a seu lado: “Isto não é
nada... e eu, que estou diante da grande pausa?”
Há uma dinâmica de pausas em nossa vida que percebemos apenas em
momentos de crise – como na meia-idade ou na velhice. No entanto, as
pausas representam uma necessidade constante. De escuridão em escuridão,
recobramos o senso da claridade; de silêncio em silêncio, resgatamos o
sentido da mensagem.
Uma pausa, diferente do ato de parar, é uma experiência. A pausa é situação
existencial na qual hibernam nossas expectativas e ansiedades. Não
possuímos uma memória ativa para nossas pausas, pelo menos não na
intensidade com que retemos as atividades de nossa vida. No entanto, as
pausas fazem parte da nossa história. Saber honrar nossas pausas constantes
é uma maneira de estabelecer contato com a realidade da Verdade. Esse
contato apropriado resulta numa relação sadia, que é experimentada
também como Amor. Quando bem vividas, uma menopausa e até mesmo as
vésperas da “grande pausa” podem tornar-se experiências em grande
medida adoçadas.
É possível se encontrar nessas situações de vida o ponto onde a realidade da
Verdade beija a do Amor.
No entanto, temos medo das pausas. Todos nós já tentamos dar conta das
pausas buscando controlá-las, e a sensação resultante não é agradável. Uma
pausa é uma corrente que já tem rumo. Ao contrário do que a palavra possa
nos sugerir, uma pausa não é algo neutro. Trata-se de um trecho ou uma
passagem de fluxo onde não temos por que controlar o leme – o rumo já é
definido. Na pausa não há arbítrio ou livre-arbítrio. Entregar-se é a única
forma de navegar pelas pausas, e quando não compreendemos essa lei de
seu fluxo, ficamos bastante angustiados. Reagir a uma pausa é, portanto,
remar contra a maré, é nadar contra a corrente de nossa própria vida.
As pausas ficam assim associadas à perda de controle e às experiências e ao
temor que estas nos incitam. Seja uma queda, uma força ou uma velocidade
que nos surpreende ou um objeto que escapa das mãos, e confirmamos
nosso temor. Essas quedas, esses deslocamentos silenciosos sem controle
são pausas. A pausa, como dissemos, não é uma inatividade, mas a
hibernação dos meios de controle da realidade à nossa volta.
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Quem se permite experimentar uma pausa, quem se permite descobrir que,
para além da violência do descontrole, atingem-se trechos do percurso onde
a vida retoma o controle (onde não há mais rumo, mas calmaria), acaba por
encontrar uma nova forma de se relacionar com a própria vida. Quando a
pausa for intensa ou quando se tratar da “grande pausa”, o indivíduo
possuirá a experiência necessária para saboreá-la como parte integrante e
não intrusa da vida.
Nosso medo da dor é tão concreto que desenvolvemos como que uma
infância permanente ao lidar com ela. Essa criança que existe dentro de nós
é vivamente ilustrada pelo rabino de Mezeritch:
Um homem, ao levantar o filho após este ter tropeçado e caído, percebeu
que havia um espinho no pé do menino. Rapidamente, procurou extrair o
espinho, sem dar atenção ao choro da criança. Logo após a experiência
ambos, pai e filho, ficaram temerosos: o pai, pela possibilidade de uma
infecção vir a instalar-se no pé do filho; o menino, por ter em algum
momento futuro de sua vida de sentir a mesma dor. O pai temia a ferida, o
menino temia a cura.
Esse pai simboliza o indivíduo projetado na dimensão da Verdade e do
Amor; o menino, por sua vez, representa nossa vida reduzida ao mundo do
Amor. O adulto existencial em nós preocupa-se com a integração dessas
realidades quando são perturbadas por nossas experiências. Para ele, a
saúde e o equilíbrio restabelecidos são o objetivo primordial. Temer a ferida
é reconhecer que está em risco um valor maior e há possibilidade de
alastramento da Verdade de forma infecciosa. Já para a criança existencial
em nós, a retirada do espinho e sua dor terapêutica serão lembradas como
uma tormenta que o fará temer e fugir de processos de cura.
As pausas são, dessa maneira, experiências assimiláveis pelo adulto
existencial dentro de nós. Esse adulto busca reconhecê-las, render-se a elas
e costurar pelas

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