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******ebook converter DEMO Watermarks******* ******ebook converter DEMO Watermarks******* Em memória de Elisa Regina Kreimer, por ter colocado à prova a sinceridade desta obra. ******ebook converter DEMO Watermarks******* Sumário Para pular o Sumário, clique aqui. Introdução I - Ordens e desordens Ocultamento – o meu, o seu, o nosso desespero Aié e Malé – Velamento e revelação Preservação – Distinguindo as dimensões de verdade e amor A concordata (nunca a falência) da consciência A entrega antes da entrega Estéticas fora do caos A estética das coisas no seu tempo certo (Davar Be-itó) A estética das coisas no seu lugar certo (Ba-asher Hu Sham) II - Ordens além da ordem “E viu que era bom.” Bom o quê? A morte A dinâmica das pausas 1/60 de morte 1/7 de morte Sabendo perder para o universo Ruim, não... amargo Amargo, não... bom Tachlis – Objetivamente, sem rodeios Lidando com o que não nos diz respeito Alegria como receptáculo A incomunicabilidade da visão – Nós não temos luz própria III - Desordem – Expansão por contração Com medo do conhecido Teria sido melhor não ter nascido! Os incríveis momentos em que não temos saída O maior de todos os terrores (leia em particular, se tem medo) ******ebook converter DEMO Watermarks******* O direito de pedir (Aquele que Ordenou que o Óleo Ardesse, que Diga ao Vinagre que Queime) IV - Abraçando a desordem A “esgotabilidade” da tristeza Saudades como falta de si mesmo Aprendendo a se salvar O ensinamento deste exato momento (Ora’at ha-sha’á) V - Segredos da desordem Os atrativos de se ficar Purezas e impurezas Montepios e previdências para mortais Consolo e con-todos Surdo, sim. Cego, não! Enumera teus dias Mostra-nos um amor que possamos compreender (Reb Nachman de Bratslav) Rastreando os limites A impermanência da morte Quando Deus for um Epílogo de outra dimensão Créditos O Autor ******ebook converter DEMO Watermarks******* A certeza é como uma fina camada de gelo sobre um lago. É o efeito de borda sob o qual os seres humanos experimentam sua vida. Por um lado, atravessam o lago os simplórios; caminham seguros sobre o lago congelado, tendo uma vaga sensação do que há sob os pés. Por outro, atravessam os alegoristas e os místicos; caminham pela superfície já semidegelada, saltando de um bloco de gelo a outro. É possível chegar à margem de ambas as formas. Para os primeiros, a incerteza é um fantasma, e sua ignorância os protege de qualquer vertigem. Para os últimos, a incerteza é a rachadura, que é vista apenas quando o pé já está sobre o bloco de gelo seguinte. Apesar de um mero efeito, o gelo é real, e sua solidez instável é suficiente para suportar a vida e tudo o que a ela diz respeito. Felizes daqueles que vão de margem a margem com algo sob os pés. ******ebook converter DEMO Watermarks******* Introdução Este livro é um desejo antigo. Muito antes de assumir esta forma, ainda ao sabor de uma questão existencial, já existia como desejo. Nascia do choro infantil que no passado não encontrou acolhimento e conheceu a resignação, ou do período de tempo que transcorria já em braços calorosos para recobrar o gosto pela vida tentando dar conta de um descaso que assumira proporções cósmicas; ou da solidão de minhas quedas recompostas por impotentes curativos que não davam garantias para outros tropeços. De todas essas experiências de dor permanecia um misterioso senso de encontro. Um encontro que na vida adulta assume contornos oníricos, esquecidos que ficamos daquilo que sempre nos visitará. Encontros que na velhice e na perda se fazem reais, como a temida ânsia de vômito da infância que revela um eu involuntário, convulsão de tudo o que é real e irá mais cedo ou mais tarde externar-se e comparecer. Mundo do hálito, e não da estética. Mundo onde o que é vivo não conta com outro parceiro senão a própria vida. Mundo-referência, onde o que está em jogo na espera não é a chegada, mas a qualidade da própria espera. Mundo em que pais nos acariciam para que durmamos, enquanto seus olhos estão cheios das mesmas dúvidas que nos fazem temer o escuro. Instante em que nos deixam, semiadormecidos, numa fração de tempo em que não sabemos se choramos ou se nos entregamos ao torpor do sono. Momentos de resistir ou de se entregar à dor. Tempos bons, que nos subjugam em lágrima pela saudade do que ainda não sentimos falta. Tempos difíceis que se diluem no próprio tempo, deixando a incômoda sensação da cicatrização. Bendito sangue, que coagula e nos preserva! Maldito sangue, que coagula e nos faz mais fortes do que o próprio ferimento, marca do caráter dispensável de tudo o que gostaríamos que fosse indispensável. Anos mais tarde, quando prestei assistência espiritual em um hospital, minha alma voltaria a dissimular seu desconforto ao mimetizar pacientes que, ora de lado, ora de bruços, ora com o olhar perdido no teto, buscavam uma posição de vida. Reencontrava o antigo jogo de velar e desvelar meu companheiro. Jogo que fazia de mão dada a meu avô – apalpar sua mão calejada pela força da vida e olhá-lo de soslaio, fazendo uso de minha precária compreensão de que, em linha sucessória, seria ele o primeiro a abandonar-me. Dúvidas que se esclareciam à medida que me acostumava com elas. ******ebook converter DEMO Watermarks******* Seria esse meu amigo, cujo nome não se deve nunca pronunciar, real ou ilusório? Esse amigo, que abraçava ao dormir junto de meus objetos transicionais, seria ele imaginário ou não? Um amigo que eu, apesar do medo, não exorcizava completamente, pelo prazer que me proporcionava fitá-lo nos olhos. Prazer daquele que, por ser vivo, não pode se dar ao luxo de abandonar qualquer aspecto da existência. Prazer de quem quer tudo a que tem direito, mesmo sua dor numa ousadia que é a própria definição e contradição da vida. Mas um mestre do passado teve a coragem de expor à luz esse amigo, ao preço do dia. Um mestre que sem propor novos tempos ou novas eras, desde seu pequeno mundo, teve coragem de olhar de frente seu “amigo monstro” e dizer: o desespero é uma ilusão. Sob sua cabeça, o monstro fez rugir do seu mais cruel uivo, debatendo-se e revelando-se mais e mais. E quanto mais se fazia visível, mais era desmascarado e friamente negado. Seu poder de rasgar a pele, de sufocar a alma na perda mais inaceitável que se possa imaginar, permitia ao mestre que ofertasse mais e mais material desse monstro em holocausto. Quanto mais lhe fazia ver as profundezas que a dor pode atingir, mais se regozijava na confirmação de sua descoberta – é uma ilusão. Tudo isso ao custo real da época, como custaria hoje a cada um de nós. Para a frustração daqueles que sonham com finais felizes, o monstro não se desfez nem se desmaterializou. Permaneceu ali, executando sua função vital, apesar de rebaixado a uma categoria não absoluta. Machucado, como humano que honrava em ser, o mestre estava tranquilo para entregar-se à dor, qualquer que esta fosse, sem a companhia do monstro. A dor não é uma ilusão, é sintoma de vida. Onde quer que haja vida, haverá dor; onde quer que haja vida, será possível desmascarar o desespero. Este livro traz várias das ideias que mapearam o caminho desse mestre rumo ao centro do seu ser, onde habita o desespero. As que não têm origem direta em suas palavras também se inspiram nesse mestre, que, apesar de pouco conhecido fora dos círculos judaicos, acredita ser parceiro em grandeza metodológica de outras importantes figuras do final de seu século. Freud quis ter acesso ao avesso da mente, Marx ao avesso do social, Einstein ao avesso da ciência; e ele, Reb Nachman de Bratslav, quis ver o avesso da existência. Seu estudo foi uma tentativa de estruturar a noção de caos a partir do melhor aparato de que dispunha – a perspectiva da existência. O resultado de sua pesquisa foi a descoberta arcaica de que a existência desafiava a lei da entropia. Sua percepção realista do mundo associada à obsessão pela alegria e o desdém pelo desespero, fizeram dele um dos ******ebook converter DEMO Watermarks*******primeiros a esboçar categorias de ordem e desordem nas quais o ser humano e tudo o que é vivo estão na contramão do cosmos. Por isso, tudo é tão perigosamente frio e alienante – estamos plantados num universo que postula contra nós. Para Reb Nachman, devemos ter a coragem de rejeitar o universo e de sustentar nossa esperança. “Este universo é apenas uma ponte muito estreita; o fundamental é não sentir medo.” Lançado que estava de braços abertos por sobre seu destino, a experiência de “cair” não o impressionava. Nada mais óbvio que, num mundo dessa natureza, a queda seja uma experiência constante daquilo que é vivo. Por sobre o caminho pavimentado por essa alma sem vertigens é que este trabalho se constrói. Visa mediar o encontro com aquele que, por estar adormecido e latente, é tão poderoso. Sua proposta, já em si muito pretensiosa, não anuncia alternativas de cura, mas medidas “sanitárias” no combate aos focos de desespero. ******ebook converter DEMO Watermarks******* I ORDENS E DESORDENS ******ebook converter DEMO Watermarks******* Ocultamento – o meu, o seu, o nosso desespero O desespero é um sentimento que nas diversas línguas foi expresso como “a perda de algo”. Em português, representa a perda da esperança. Em hebraico, a palavra “desespero” é expressa por um verbo reflexivo, construído a partir da raiz y-a-sh, que significa “desistência da busca de um objeto perdido”. Produto talvez da sabedoria popular, reconhecia-se que após buscar exaustivamente havia um momento derradeiro de desistência. Até então, acreditava-se na possibilidade de “encontro”; a partir daquele momento, porém, abre-se mão e se desiste. Algo semelhante à situação em que, por ocasião de um acidente, encerram-se as buscas por parte das autoridades e considera-se a tarefa impossível, ou que não vale mais a pena ou o custo. Colocada de maneira tão concreta, a forma reflexiva hebraica utilizada para significar “desespero” poderia muito bem ser traduzida como “desistir-se”. A partir dessa definição, se poderia classificar o desespero como uma anomalia – não faz parte do jogo da vida a possibilidade de se desistir de si mesmo. Por outro lado, dir-se-ia que o terror, associado ao desespero, não é produto de um iminente sofrimento, mas que se origina na própria dor de se abrir mão de si mesmo e suas implicações. É interessante notar que “desistir” é um ato de entrega, da mesma forma que a fé e a esperança são também atos de entrega. Quando os indivíduos perdem o fôlego da juventude ou dos interesses temporais, experimentam um afastamento da sensação de controle, que é uma estrutura artificial de “fé”, convencionada para gerar ordem. Tal crise surge pelo fato de a realidade biológica esgarçar de maneira irreversível a relação entre corpo e mente, tornando a entrega a única opção possível. Essa entrega pode então ser o desespero ou a fé. Por desespero não devemos conceber necessariamente o estereótipo de alguém em pânico, mas a situação em que um indivíduo é tomado por um cinismo rascante, pouco se importando se com sua perda arrasta consigo outras perdas. Tampouco devemos tomar como exemplo de fé a imagem do mestre espiritualizado ou a imagem da carola entorpecida, mas uma atitude de considerável serenidade diante do envelhecimento, das perdas e da valência de outras visões de mundo que não a nossa. Portanto, consideraremos o controle o patamar de vida onde o desejo do ******ebook converter DEMO Watermarks******* corpo impõe à alma uma sensação de estabilidade artificial. Enquanto essa sensação puder ser sustentada, ela se preservará; quando não for mais possível, a alma se porá em movimento. No controle, a alma fica estática, ou com a mobilidade extremamente reduzida. Como no fenômeno da obesidade, “inchamos” em vez de nos tornarmos maiores e mais fortes. No universo do controle, a vida não se afirma pela ordem percebida ou criada: a vida “incha”. A ordem não é uma estrutura visível a todos os momentos e muitas vezes não coincide com nossa particular percepção de ordem. Nosso interesse, por assim dizer, se volta para o momento em que “a alma se coloca em movimento”. O desespero e a esperança seriam, aparentemente, as duas únicas posturas de vida que poderiam conter em si a dimensão desses “deslocamentos”. O que é revolucionário em linguagem e ousadia no trabalho de Reb Nachman é negar que os deslocamentos do desespero e da fé se deem em sentidos opostos. Pela sua frase relativa à alma – ieridá tsorech aliá hí (a descida é uma necessidade intrínseca da ascensão) –, Reb Nachman se utiliza do modelo de vasos comunicantes com um fluxo na direção da ordem e da fé. Assim, o próprio desespero é um movimento momentâneo de descida cujo deslocamento se dá no mesmo sentido da fé e da esperança. O que ele descreve como o “fenômeno do ocultamento” é a sensação real de descida que se constitui, no entanto, de uma etapa da ascensão. A falta de compreensão dessas descidas por parte dos seres humanos é que constrange a percepção de uma realidade de ordem. Na linguagem de Reb Nachman, esta ordem é a divindade; a descida é seu ocultamento. O desconforto do desespero e a vertigem na queda são sintomas d’ alma, tal como a febre é sintoma do corpo. Cada causa identificada e vencida deste sintoma aumenta a imunidade do indivíduo. O desespero, ou a queda, é parte intrínseca de um “sistema imunológico existencial” – é parte da subida. A questão que se coloca, no entanto, é a seguinte: até que ponto se podem relativizar essas descidas sem transgredir nossa própria humanidade? De onde adviria a certeza de que há fundo no poço? Como esperar que nossa experiência passada possa resistir às dúvidas quando a vida se apresenta nova, diferente de tudo o que já vivemos? Como lidar com a morte e sua expectativa se a extensão dessa “descida” é imensurável? O desespero é construído de experiências que são o oposto do puro. Sensações de estarmos fazendo uma incursão em um território imundo... um lugar onde não há luz, onde não há natureza para trilharmos qualquer caminho. Nas palavras de Reb Nachman são lugares do vazio, onde não há ******ebook converter DEMO Watermarks******* Torá . Para os judeus, a Torá, a Revelação divina, é um ato de amor do Criador, porque dá orientação ao “nada”, oferecendo direção e sentido. Segundo ele, o caos original que é maculado pelo ato da Criação não foi extinto, mas tornou-se o próprio contexto onde a ordem se planta. A ordem que se havia estabelecido para as estruturas vivas conviveria com o caos latente da realidade. O segundo movimento de ordem, por sua vez, teria sido a Revelação, que buscava estendê-la não só à vida, mas também à esfera existencial. Nossa origem, nosso destino e a quem devemos prestar contas são a essência da busca de ordem existencial através da Revelação. A Revelação, ao contrário da Criação, é um ato inacabado, a espera da transcendência espiritual que instauraria ordem também na esfera existencial. Nesta dimensão, o caos e o vazio coexistem com a Revelação. Onde não houver a Torá, haverá vazio e carência de ordem na dimensão da existência. Isto tudo, no entanto, ainda não se constitui na experiência de desespero. O ocultamento não é a essência do desespero. O desespero é instaurado pela sedução que o ocultamento exerce sobre a criação. O ocultamento, o caos na experiência existencial, é parte intrínseca de um processo de Revelação ainda em andamento. Para esse processo, o próprio ocultamento, a própria sombra, tem uma função essencial, como veremos adiante. O véu que cobre a ordem ou o ocultamento da ordem seria imprescindível, porque a “luz absoluta” é de uma intensidade destrutiva. Para que tal luz pudesse existir no mundo da Criação, onde as criaturas, as diferenças e as integridades devem ser preservadas, se fez necessária a existência do ocultamento. O ocultamento contém a luz, sob a forma de uma klipá – uma casca ou uma pele. Mas por que a ordem e a vida teriam de se estruturar sob formas recobertas por algum tipo de couraça? Por que tudo e todos têm pele,cascas ou superfícies? Se repararmos, perceberemos que tudo o que existe é limitado por algum tipo de borda. Se assim não fosse, deixariam de “servir” à Criação com sua existência. Essas cascas, portanto, revestem uma essência que na sua limitação se faz específica. Há uma “limitação-banana”, uma “limitação- vaca” e uma “limitação-bromélia”, sem as quais não haveria neste mundo nenhuma dessas manifestações da Criação. A expectativa de dar conta do ocultamento, de eliminar as klipot, as cascas, é concebível apenas sob uma nova ordem, expressa em muitas tradições pela ideia milenar da Salvação. Para que esse processo se estabeleça, é prioridade básica conter o “encantamento” que a dimensão oculta exerce sobre o ******ebook converter DEMO Watermarks******* “mundo das cascas”. Isso porque as cascas não só nos preservam, mas têm como efeito colateral o desejo de mais cascas. Como se a ordem fosse alcançada produzindo mais couraças. As “cascas”, por servirem de proteção à individualidade e à diferença, tendem a fazer com que tudo o que é vivo deseje engrossá-las ou multiplicá-las. Na busca por ordem, se produz mais desordem. Para os seres humanos, a facilidade da mente em criar cascas representa um enorme risco de nos fazermos prisioneiros do mundo do ocultamento. Nossa consciência é um mundo de cascas; um espaço onde as coisas se fazem claras pela limitação, pela definição e pela diferenciação. É a dimensão do “ou” – “ou isto ou aquilo”. As cascas tentam eliminar toda forma de contradição e dão origem a todos os tipos de ciência neste mundo. Tal hábito de crescimento em direção ao ocultamento tem como custo maior a possibilidade do desespero. Acabamos, assim, por arquitetar um mundo sem saída, um labirinto de sofrimentos, perdas e angústias. Como podemos tratar as questões fundamentais da vida que não encontram resposta sem nos tornarmos presas da dimensão do desespero? Como abordá-las desde uma perspectiva de não desesperança sem trair nossa consciência e inteligência? ******ebook converter DEMO Watermarks******* Aié e Malé – Velamento e revelação Tanto a entrega ao desespero como a esperança estão intimamente relacionadas com a forma pela qual respondemos às nossas questões existenciais. No entanto, fica difícil compreender por que os indivíduos que possuem aparatos lógicos e de reflexão semelhantes possam chegar a visões de mundo marcadas tão distintas. Quando respostas existenciais diferem em essência, torna-se evidente que as questões iniciais foram entendidas de forma distinta. Reb Nachman conhecia essa realidade e pôs-se a enunciar duas estruturas de questionamento humano que são fundamentais para a compreensão da esperança e do desespero. Utilizando-se de duas formas nas quais a glória divina é mencionada na liturgia e nas Escrituras, Reb Nachman enuncia essa distinção. Tais menções falam da ordem de “Aié” – “Onde está o lugar de sua glória?” ( Aié mekom kevodó? ) e “Malé” – “Toda a Terra está repleta de Sua glória!” ( Malé ét kól ha-arets kevodó! ). A primeira expressa dúvida e angústia, e a segunda, certeza e fé. A palavra Aié (“onde?”) denota busca existencial. A mesma palavra – aieka, “onde estás” – é utilizada na Bíblia, no episódio em que o Criador procura por Adão no Paraíso, logo após este ter provado da Árvore da Sabedoria. “Aieka? ” significa: “Onde está você, Adão”, no sentido existencial (em vez de espacial) “neste momento? Por onde anda a tua alma?” Em outra instância, a mesma palavra aparece no relato dramático do quase- sacrifício de Isaque. Ao acompanhar seu pai ao que seria seu próprio sacrifício, Isaque desconfia de todo o preparativo e ritual da jornada e questiona: “Ve-Aié ha-sé le-olá” [“Vejo tudo o que é necessário para a realização de um sacrifício, mas onde está o cordeiro?”]. Nesse instante, o “onde está” é puro drama existencial – “onde está aquilo que é fundamental para eu compreender o que já começo a compreender?”. Há um tom retórico em Aié, por representar uma dúvida profunda d’alma que talvez não aguarda resposta, mas manifesta sua angústia. Quando alguém se pergunta “onde está a glória divina?”, expressa a mais sofisticada tentativa humana de lidar com o caos e a dúvida. Por sua vez, o conceito de Malé (a Terra está repleta de Sua glória) ******ebook converter DEMO Watermarks******* representa o mágico momento em que a ordem se decodifica de maneira clara e cristalina. Como na visão do profeta Isaías (6:3), de onde a frase é retirada, os seres celestes anunciam a presença da glória divina sem máscaras ou véus. Tal conceito representa os momentos em que somos tocados pela existência, em que não temos dúvida sobre a existência da ordem, ou os momentos nos quais o prazer e a alegria de se estar vivo são tão sólidos que nos fazem perceber o mundo como calçado por um chão de paz e certeza. As questões de vida do tipo Aié (onde está a glória divina?) são, por assim dizer, relativas a perguntas que não possuem resposta objetiva neste mundo, mas tão somente direcionamentos. Já as questões do tipo Malé (o mundo repleto da glória divina) são as que possuem, sim, resposta objetiva, ou seja, que estão ao alcance do conhecimento humano. Ambas são questões características dos seres humanos; todos nós chegamos a este mundo buscando compreensões do tipo “onde está?” e “aqui está!”. Nossa perspectiva inicial, por natureza, é sempre de ordem, seja ao buscar saber ou ao constatar. É a vida que nos torna céticos com relação à ordem. Assim, o desespero pareceria ser primordialmente definido pela ausência das percepções Malé (repleto). No entanto, é da carência de Aié (“onde está?”), na falta da busca em momentos de ocultamento, que se instala e de que se nutre o desespero. A existência de uma única busca do tipo Aié, de uma procura, basta para que se afaste o desespero. O desespero é instituído pela desistência, que é a incapacidade de lidar com o mundo sob o prisma de Aié (“onde está?”). Nesse sentido, a relação com as questões de Malé (repleto) também pode propiciar o desenvolvimento de condições adequadas ao desespero. A dimensão de Malé deveria ser sempre da ordem da gratidão, e nunca uma expectativa de que, para os seres humanos, todas as questões sejam contempladas com uma sensação de Malé. Muito ao contrário, reconhecer a existência de Aié é poder suportar o fato de que o mundo e a vida não podem ser reduzidos à ordem de Malé. Essa dimensão de Malé absoluto configura a esfera da Salvação, que não deve ser confundida com a esfera da Revelação – caracterizada pelo esforço para se esboçar formulações Malé e Aié, onde a dúvida enobrece o saber e a sabedoria supre a dúvida de fé. Os indivíduos que desafiam a legitimidade da Revelação (ou da ordem) pela expectativa de que tudo seja explicável, de que tudo possa existir para nós como Malé, não compreendem esse conceito. O que é revelado é tanto o “desvelado” (tornado claro, ofuscantemente claro) como o velado (o que é visto de maneira nebulosa, mas cuja luz é “opticamente apropriada”). Uma ******ebook converter DEMO Watermarks******* pessoa que tem esperança não é alguém que compreende tudo de maneira objetiva e explícita, mas que aceita respostas sob a forma velada. O justo na tradição judaica é aquele que tem maestria sobre a realidade de Aié, que pode enfrentar as situações aparentemente mais caóticas e inaceitáveis do ponto de vista humano, buscando saber “onde estaria a glória divina”. Ele consegue, portanto, lidar artisticamente com algo “ruim”, inferindo não respostas, mas perspectivas. Legitima, assim, as situações para as quais não encontramos respostas objetivas na dimensão humana, ao mesmo tempo que não permite que fiquem à mercê do ocultamento. Sabe que trata-se de situações potenciais de Malé em outra dimensão que não a humana, as quais existem, portanto, neste nosso mundo sob uma forma velada. Os véus não ocultam nada, apenas tornam algo indistinto ou nebuloso. Similarmente ao que se dá com nossos sonhos quando temos a impressão de viver e ao mesmo tempo não viver nossas experiências,a ordem em Aié é também embaçada, enevoada. Saber reconhecer se uma questão é da ordem de Malé ou de Aié e poder diferenciá-las é o grande segredo para desmascarar o desespero como ilusão. Cada vez que tratamos uma questão Aié como tal, fortalecemos nossa gratidão por aquilo que percebemos ser da dimensão Malé. Cada vez que tratamos uma situação Malé com o reconhecimento de que “o mundo está repleto, neste instante, da Ordem”, fortalecemos mais a nossa fé para aceitar respostas do tipo Aié. A não percepção de Malé, a incapacidade de reconhecer bênção, mágica ou alegria profunda em nossa vida abre espaço ao desespero. Da mesma forma que a expectativa de que o mundo de Aié far-se-á Malé evolui da frustração ao cinismo desesperado. O desespero, portanto, se sustenta da expectativa com relação às respostas, e não objetivamente das respostas. ******ebook converter DEMO Watermarks******* Preservação – Distinguindo as dimensões de verdade e amor “Uma tomada elétrica não é moral ou ética...” Ao tentarmos definir a estrutura dos questionamentos e a maneira com que propiciam ou não o desespero, acabamos por esboçar duas estruturas de realidade – a do Amor e a da Verdade. Assumiremos Amor como sendo a ordem visível: cada vez em que o sol nasce, qualquer momento em que somos agraciados pela vida com saúde, sustento, sucesso ou realização pessoal. Nesses momentos de gratidão, compreendemos que Deus, a vida, a Natureza (ou qualquer que seja a denominação preferida) nos amam e nos protegem. Porém, quando nos deparamos com uma situação real de perda, como a morte de um ente querido ou a destruição de alguma coisa que nos seja sagrada, precisamos fazer contato com uma dimensão bastante distinta. Na tradição judaica, todos os momentos relevantes da vida são, por definição, exprimíveis sob a forma de uma bênção. É comum usar-se a expressão “deve haver uma bruche (uma bênção) para isso” quando algo importante nos acontece. Até mesmo no caso do luto, quando uma pessoa se encontra sob a indescritível sensação de estar à margem de qualquer prazer, há uma bênção a ser dita. Sua especificidade é dizer “abençoado és Tu, Deus, Soberano da Realidade, Juiz da Verdade”. Nesse momento, a forma de expressar a ordem é por meio do atributo da Verdade. E o que é a Verdade? Quando olhamos o mar e este nos inspira um poema, quando surfamos em suas ondas tomados pelo senso de soberania e liberdade, quando o mar nos aplaca o calor com sua refrescante consistência, ele é percebido como instrumento do Amor. No entanto, o mesmo mar pode nos afogar. Sua propriedade de poder afogar é parte de sua Verdade latente. Nós vivemos constantemente nossa realidade de Amor em meio a realidades latentes de Verdade. A tradição é muito sábia ao mudar a perspectiva, fazendo com que o enlutado e o magoado se transfiram para a dimensão da Verdade, em vez de buscarem traduzir sua experiência na dimensão do Amor. Cada vez que dizemos “foi melhor assim”, na tentativa de expressarmos sob a forma de Amor o que na realidade é da ordem da Verdade, estimulamos o cinismo. Na ordem do Amor, a tentativa de dizer que poderia ser sempre pior apenas ******ebook converter DEMO Watermarks******* “empurra com a barriga” essa grande pergunta: por que mesmo tinha de acontecer este “mal menor”? Esta é a razão pela qual a tradição judaica tem como oração aos mortos uma prece que pode parecer ao desavisado um total contrassenso. O kadish (a santificação), que é recitado no momento do enterro e nos meses subsequentes, é uma exaltação à grandiosidade e santidade de Deus. Sua função maior é trazer à comunidade que presencia e experimenta tal acontecimento a dimensão da Verdade. Se alguém, num instante de tamanha “violência”, se põe a louvar o Responsável por aquele momento, torna-se óbvio o equívoco de se tomar essa cena como relacionada com a realidade do Amor. É comum, porém, que se estabeleçam ruídos na comunicação e mal- entendidos toda vez que mencionamos que algo não pertence à realidade do Amor. É claro que, para os não desesperados, a realidade do que aqui chamamos de Verdade representará sempre alguma forma de Amor oculta, velada. No entanto, para que não haja manipulação ou atentado ao discernimento humano, é fundamental que se saiba diferenciar essas duas realidades. A Verdade não pode ser traduzida sob a ordem da gratidão; não pode ser Malé, totalmente revelada, porque, apesar de estarmos mergulhados nessa “ordem”, não somos essa “ordem”. O processo em andamento dessa ordem não salvaguarda nossas expectativas de um Amor que nos seja compreensível – pertence apenas ao mundo da fé e de percepções do tipo Aié. Compreender isto é fundamental. Pessoas expostas à realidade da Verdade, em particular aquelas realidades que se apresentam sob a forma calamitosa, devem cuidar para que não se tornem cínicas. O cinismo é produzido como um efeito colateral do contato entre a expectativa humana de constante Amor e a realidade da Verdade. É como se esse contato produzisse “resíduos de cinismo”, que a tudo aderem e desvirtuam. O luto nada mais é do que a quarentena necessária para que tais “resíduos de cinismo” possam baixar, para que não venham a aderir e causar destruição na realidade do Amor. Todo aquele que penetra na realidade da Verdade deve ficar muito atento, a fim de perceber os níveis pelos quais contamina seu mundo do Amor. Isto porque a Verdade não depõe contra o Amor; em realidade, ela é o pano de fundo onde este se faz possível. A Verdade depõe, outrossim, contra o mundo do controle – a compreensível, mas perigosa dimensão de esperar que a realidade possa ser reduzida apenas ao Amor. Dois relatos bíblicos me parecem particularmente sintonizados com esse ******ebook converter DEMO Watermarks******* tipo de classificação da realidade. O primeiro deles, a história de Jó, tornou- se um clássico para a abordagem das questões da ordem da “calamidade”. Para quem não recorda, Jó, um homem íntegro e justo, é submetido a inúmeras provações do “destino”. Coisas ruins acontecem a este homem bom, que propõe a si mesmo a tarefa de esgotar sua reflexão baseada no mundo do Amor para compreender a realidade. Do ponto de vista da ordem do Amor, só poderiam estar ocorrendo duas coisas; ou ele, Jó, não era bom como imaginara ou (o que era inaceitável para Jó) estava diante de uma ordem que “faz coisas ruins a quem é bom”. No transcorrer do relato, o texto bíblico acaba revelando que as conjecturas de Jó estavam equivocadas, algo que o próprio Jó talvez intuísse, quando se negou a aceitar que “Deus pudesse incluir a dimensão de ruim para quem é bom”. Jó olhava seu mundo com instrumentos da dimensão do Amor, e para não deixar de honrar sua sensibilidade e integridade só conseguia não entender. Na conclusão da história de Jó, a própria Divindade lhe revela que ele está no caminho errado. Apenas na dimensão da Verdade encontraria respostas – respostas veladas. Deus formulava outra hipótese: a de que o ruim que acontecia a pessoas boas não era “ruim”. Porém, para que Ele fizesse isso sem ao mesmo tempo violentar a humanidade de Jó (que, sim, sofria, que real e indiscutivelmente estava exposto a algo que lhe era ruim na realidade do Amor), Deus evocava a dimensão da Verdade. É curioso ressaltar que, nessa dimensão, a figura de Satã, o Obstruidor, torna-se uma presença necessária. A densidade satânica, ou a densidade de obstrução, é que determina se uma questão velada possui uma dimensão de resposta ou se é puro e simples ocultamento. Satã (do verbo listam, “obstruir”) é a densidade-limite, onde o véu não mais permite observar algo sob o questionamento de Aié. Satã imobiliza os seres humanos na dimensão do Amor e os torna cínicos. Faz isso não porque quer, como se fosse uma entidade, mas sob a perspectiva da Verdade enquanto um fenômeno, é o carcereiro que confina as pessoas unicamente à dimensão do Amor. Sem acesso à consciência e percepção da Verdade, um ser humano luta de maneira selvagem, como Jó, para não se entregar ao cinismo e ao desespero. Essa luta, porém,é das mais insidiosas, pois apenas na dimensão do Amor a presa é fácil. Outro relato bíblico menos conhecido, que também é bastante contundente na apresentação dessa classificação, diz respeito aos dois filhos de Aarão, o sacerdote irmão de Moisés. A pequena e inquietante passagem ******ebook converter DEMO Watermarks******* incide indiretamente na questão da “natureza da lógica divina”. Relata o texto (Lv 10:1-3): E os filhos de Aarão, Nadab e Abiú, tomaram cada um seu incensário e puseram fogo neles e ofereceram diante do Eterno um fogo estranho que não lhes ordenara. E saiu fogo diante do Eterno e os queimou e morreram diante do Eterno. E disse Moisés a Aarão: “Deus disse: ‘Por meus escolhidos me santificarei e ante a face do povo serei glorificado.’” E calou-se Aarão. Essa passagem evoca nos comentaristas o mesmo questionamento que expressava Jó: o que teriam feito de errado os dois filhos de Aarão para que as coisas assim sucedessem? Qualquer tentativa de classificar os filhos de Aarão como perversos traduz-se no perigoso intuito de restabelecer a ordem no mundo do Amor a qualquer custo. Eram ruins e pagaram. A “violência” da reação divina parece aplacada pelo fato de que “ofereceram um fogo estranho”. Tal tentativa de conter na realidade do Amor, da justiça, das recompensas e punições a compreensão desse incidente apenas intensifica a violência da situação. Torna-se absolutamente insuportável a possibilidade de não terem feito nada de errado do ponto de vista humano que justificasse tão severa reação. Esta, porém, parece ser a intenção dessa passagem. Deus é também a dimensão da Verdade, e lidar com o que é sagrado pressupõe estar exposto a esta realidade. O “fogo estranho” parece ser uma constatação divina que não é óbvia para a escala humana e, justamente por isso, o texto não se preocupa em esclarecer a natureza do que foi feito de “estranho”. Talvez fosse desumano esperar que Nadab e Abiú tivessem total controle sobre a situação, e que apenas a possibilidade de um erro viesse a ser capaz de expô-los à realidade da Verdade. A dimensão da Verdade não é o “custo” (na perspectiva humana) de um erro, mas o “custo” da possibilidade de as coisas existirem como são. Façamos uma comparação. Digamos que a forma de lidar com um reator atômico é tal que a chance de ocorrer um desastre é uma em dez milhões. Digamos também que por dez milhões e uma vez o reator é manipulado. Quando o desastre ocorrer após tal amostragem será ele de que ordem? A ordem que estabelece que os acidentes sejam tão raros e a ordem que permite segurança e critério são manifestações da realidade do Amor. O desastre ou o erro, por sua vez, não pode ser encampado por essa dimensão do Amor. Era ******ebook converter DEMO Watermarks******* sabido que parte da Verdade daquele reator era que, estando ele em interação com características humanas, tais como a capacidade de concentração e atenção ou a corrupção e a irresponsabilidade, ela produzia uma possibilidade de erro em dez milhões. Assim sendo, apesar de se poder identificar um erro humano da parte daqueles que lidaram erroneamente com o reator, o erro não é de um indivíduo, mas da própria natureza humana. Para questionar o trágico incidente, teríamos de nos perguntar: por que a natureza do ser humano é tal que isso possa acontecer uma vez a cada dez milhões de vezes e não uma a cada vinte milhões de vezes? Essa condição de Verdade teria salvado a equipe que erra na conduta com o reator. No entanto, esta é apenas uma constatação de que a mente humana apreende da experiência de integração de sua natureza com outras naturezas. Voltando ao relato bíblico, vemos que Moisés se recusa a observar o incidente por um olhar catastrófico (perspectiva da ordem do Amor), e busca, pela glorificação divina, estabelecer contato com a realidade da Verdade. Moisés, como descrito no texto, mostra apenas o aspecto da Verdade, porquanto nos são ocultos o choque e o abalo pela morte súbita dos sobrinhos. É por evocar essa realidade que se cala Aarão, o próprio pai. Para que um indivíduo se entregue à esperança e não ao desespero, é imprescindível algum nível de integração da realidade da Verdade à do Amor. Como céus e terra que se beijam suavemente no horizonte, a Verdade é irredutível ao Amor, mas a partir de um se pode chegar ao outro. O simples conhecimento da realidade da Verdade não é em si um antídoto para o desespero. Muitas vezes essa dimensão é confundida como sendo a própria dimensão da desordem, do caos. Somente através da integração e incorporação da dimensão da Verdade à nossa vida, como a expressão de uma ordem de natureza distinta, é que se consegue conter o impulso ao desespero. A fé, portanto, não é a capacidade de esperar por aquilo que gostaríamos que acontecesse, mas a capacidade de integração daquilo que está além de nosso querer. É a quase impossível tarefa de encontrar alegria na concretização daquilo que deve ser. É um nível de entrega que não se alcança pela reflexão, mas pela constante arte de saber honrar e celebrar as perdas e os ganhos da vida. ******ebook converter DEMO Watermarks******* A concordata (nunca a falência) da consciência A consciência para a espécie humana representa o mais importante investimento no processo de preservação e manutenção da individualidade ou da própria vida. Da mesma forma que o instinto é um mecanismo essencial para o reino animal, uma espécie de programa que gerencia a vida, a consciência é também um aparato humano fundamental de sobrevivência. Sua diferença em relação ao instinto é marcada pelo fato de não ser apenas fonte de reações a determinados estímulos, mas de ser também determinadora de significado. A partir da descoberta da ferramenta, da causalidade e de padrões na realidade à sua volta, o ser humano desenvolveu uma íntima relação com o conceito de controle, e originou-se a consciência. O controle, diferente do ato reflexo, no esforço de dar conta de uma situação específica, confere significados ao mundo à sua volta. Esses significados, no entanto, ficam comprometidos com a própria motivação original, que é de preservação e sobrevivência. O controle faz, portanto, com que os seres humanos atravessem a rua com cuidado, e o resultado desse ato de controle que é eficiente na preservação da vida é percebido como uma estrutura de ordem. Ou seja, o controle torna mais provável que aconteça aquilo que é “bom” para a preservação da vida e da individualidade. No entanto, se por um lado o controle otimiza a preservação da vida, por outro estabelece uma rígida construção de ordem. Essa percepção de ordens exacerbadas pelo controle gera expectativas de que ela seja, além de corriqueira, também um direito em nossa vida. Libere um animal ou uma criança, ou uma pessoa incapacitada mentalmente em um apartamento, e o que deveria refrigerar não refrigerará, o que deveria conter não conterá, o que deveria estar aberto estará fechado e o que deveria permanecer fechado se abrirá, e assim por diante. Aquele ambiente organizado de eletrodomésticos, de engenharia e reflexão arquitetônica se tornará um local perigoso. A ordem que os seres humanos “costuram” por entre sua realidade tem na consciência e na característica controladora um instrumento fundamental de sobrevivência para lidar com a própria ordem. Enquanto houver alguma margem de controle, haverá alguma escala de ******ebook converter DEMO Watermarks******* ordem a ser percebida, ou alguma forma “ordenada” de tratar a ordem. No entanto, quando o controle é rompido por algum tipo de perda profunda, nossa consciência não consegue dar conta da tarefa de atribuir significado a nossas experiências. Sua única opção para não ir contra a própria programação interna é negar ao mundo exatamente o atributo que constitui sua essência – o significado e a ordem. De maneira quase ingênua, a mente prefere declarar a falência do mundo da ordem e do significado a admitir qualquer incongruência de sua própria lógica. A consciência opta pelo desespero para preservar-se, o qual,portanto, é uma construção sua. O poder da consciência está no fato de ser ela o somatório das experiências de cada um de nós; ou seja, nossa história pessoal e que confundimos com a própria individualidade. A consciência humana diante do descontrole se sente mais à vontade de abrir mão de seu futuro do que de seu passado. Declarar daqui para a frente a falência da ordem é mais fácil (por mais difícil que seja) do que declarar falida toda a experiência de nosso passado. Assim como é mais fácil morrer do que destruir o que nos é sagrado, nossa consciência prefere morrer – sabotar a noção de ordem de nosso futuro – a matar –, reduzir nossa existência passada à insignificância (eliminar o que nos é próximo). Em outras palavras, nossa individualidade está sempre mais comprometida com nosso passado do que com nosso futuro. Eis a razão pela qual nos é tão difícil e dolorosa a mudança ou nossa transformação pessoal – o compromisso com o luto por aquilo que estamos deixando de ser nos parece maior do que o desejo de redenção daquilo que no futuro nos tornaremos. E isto é, do ponto de vista afetivo, bastante compreensível. Afinal, o que fomos até agora é da escala do conhecido, do familiar e do íntimo; o que seremos, por sua vez, é da escala do desconhecido, do estranho e do distante. Somente a vida e o descontrole são capazes de romper essa aliança da consciência com seu passado de controles. Sua resistência em fazer contato com uma realidade que não possui ainda uma dimensão de significado é da mesma grandeza que a resistência instintiva de um animal ao cruzar uma barreira de fogo ou um descampado aberto que o torne visível e vulnerável. Para podermos preservar a fé, deveremos ser capazes de declarar nossas consciências momentânea e esporadicamente como em processo de insolvência, e pedir concordata. Essa medida, que reconhece a incapacidade da consciência de nos representar plenamente na arena da existência, tem também como objetivo não permitir sua falência final. Dependemos dessa consciência em infinitas situações de sobrevivência; sua falência é nossa ******ebook converter DEMO Watermarks******* própria extinção. Para podermos honrar a consciência e a experiência existencial, temos de conhecer a arte de pedir “concordata” para nosso empreendimento na dimensão da consciência. Tal concordata tem como parte de seu objetivo salvaguardar a própria consciência de uma possível falência, que representaria a alienação total. Essa concordata é comumente chamada de entrega. Popularmente, dizemos coisas como “está nas mãos de Deus”, “está entregue à sorte”, para expressar um estado em que abrimos mão da perspectiva de controle, sem que ao mesmo tempo faça-se espaço para o caos e para a desesperança. É um estado de fé, um estado de graça, onde, após termos feito sem sucesso tudo o que poderíamos fazer em dada situação, ainda assim preservamos a noção (Aié) de ordem no reconhecimento de que aquilo que tiver de ser, será. Essas frases traduzem instantes em que temos coragem para assumir a insolvência de nossa consciência para preservar a ordem no mundo à nossa volta. Essa ordem, obtida como se fosse um “gerador” ao apagar das luzes da dimensão do controle, é de uma natureza não objetiva. Ela é resultante da ordem circundante, que cria em torno da experiência existencial um clarão, mesmo quando se instala a escuridão. Uma ilustração desse fenômeno poderia ser obtida de um conceito da Cabala, segundo o qual o texto bíblico teria sido formado por dois diferentes fogos que incrustaram as Tábuas da Lei. De acordo com esse conceito, um fogo negro inscreveu o formato das letras, enquanto um fogo branco criou o contorno branco que delimita o negro da tinta e que mais nitidamente percebemos como a escrita. Assim, a escrita não é apenas a marca negra deixada pelas letras registradas no papel, mas também o branco que as circunda. Da mesma forma, a ordem não é apenas a situação objetiva (as letras), mas um fundo ou uma moldura de vida (o branco circundante), que delimita nossas experiências e é real. É como se imaginássemos, por exemplo, que o texto escrito pudesse perder o sentido ao ter suas letras dispostas de maneira aleatória, mas mesmo assim preservasse alguma estrutura de ordem. O branco de um texto, mesmo que não faça sentido, é evidência de sofisticados níveis de ordem. O tal clarão que pode iluminar uma desordem, fazendo com que pareça adquirir um sentido de ordem, depende de uma percepção que raramente conseguimos capturar sob a forma de consciência. Acaso reconhecêssemos que a proporção daquilo que podendo sair mal e não sai é bastante superior à proporção daquilo que poderia sair bem e não sai, perceberíamos uma moldura de ordem pela simples existência de limites às desordens. Se ******ebook converter DEMO Watermarks******* pudéssemos perceber a constância de uma lei “anti-Murphy”, ou seja, que nos fosse tão impactante a situação em que o pão cai no chão com a face da manteiga voltada para cima quanto nos é a situação em que cai voltada para baixo, a vida seria uma constante celebração da ordem. No entanto, isto é impossível, pois a consciência é um instrumento rastreador de ordem e não da percepção das possíveis desordens que não se concretizam como tal. Tal dimensão é resgatada exatamente nessa “insolvência” da consciência, na entrega. Entregar-se é possuir alguma noção da magnitude da ordem existente nas infinitas possibilidades de aleatoriedade e caos que não se concretizam e que não são registradas sistematicamente por nossa consciência. A entrega reconhece formas de ordem no branco que circunda a própria desordem. A entrega, por sua vez, não é uma resignação. É a persistência de fé na ordem, mesmo quando esta se faz oculta à nossa consciência. A entrega não é uma aceitação passiva, como a resignação. É um ato, um esforço de grande sofisticação, cujo impacto não incide apenas sobre o indivíduo, mas também sobre o mundo à sua volta. Por exemplo, se alguém se expressa sinceramente dizendo “não sei mais o que fazer e preciso de ajuda”, se abandonar a expectativa de equacionar uma situação de forma Malé e conseguir transitar por formas de Aié (“onde está a glória?”), tal pessoa se posiciona em relação à vida de maneira favorável para que a própria natureza da vida desencadeie resultados práticos e concretos. Como se no mundo exterior nos fosse dado evocar forças “mágicas” do universo próximo a nós antes ocultas, que nos abrem caminhos e oportunidades pelo simples fato de não mais estarmos na contramão da Verdade. Em outras palavras, aventurar-se pela dimensão da Verdade não apenas pode trazer “compreensão”, como pode resultar em manifestações reais na dimensão do Amor. A entrega, no entanto, não visa seduzir ou subornar a realidade da Verdade para que se expresse sob a forma de Amor. É o próprio ato de honrar a Verdade que traz em si uma experiência na dimensão do Amor. A arte da entrega é a capacidade de se enveredar pela dimensão da Verdade sem perder a fé. Diz respeito ao que é vivenciado de forma velada, sem permitir ocultamento. Essa arte, como todas, é desenvolvida de modo a não ser percebida como uma tecnologia passível de ser dominada. Este livro tratará de diversas dimensões onde a entrega pode ser experimentada no cotidiano, de maneira a gradualmente desmascarar o desespero. O resgate da condição do desespero como sendo uma mera sensação, impossibilitando-o de se instalar como realidade, é a função maior ******ebook converter DEMO Watermarks******* da entrega. ******ebook converter DEMO Watermarks******* A entrega antes da entrega Um último conceito nos é importante antes de iniciarmos um tour por nossa realidade distinguindo as dimensões de Amor e Verdade contidas em todas as situações de vida. Trata-se de identificar a última fronteira, a “alfândega” que separa o território da esperança do território do desespero. Referimo- nos às instâncias quando não estamos em condições de assumir nossa entrega, quando não dispomos dos meios ou da autoridade para declarar a insolvênciamomentânea de nossas consciências. Tais situações são comuns, devido ao comportamento persistente de evadir-nos dos encontros com a dimensão da Verdade e pela resistência que temos ao descontrole. Essa última fronteira é a espera. Para revelar esse segredo, Reb Nachman cita um versículo dos Salmos (31:25), que diz: “Sejai fortes, firmai vossos corações, vós que esperais o Eterno...” Aqueles que não conseguem entregar-se, por qualquer que seja a razão, devem poder, pelo menos, esperar por Deus. Como um ensinamento, “esperar por Deus” significa uma entrega preliminar que não é ainda uma entrega definitiva e ativa. Por exemplo, pessoas sob o impacto de uma realidade muito dolorosa diante de sua perplexidade e incapacidade de “digerir” os acontecimentos podem optar por “esperar por Deus”. O próprio versículo dos Salmos utiliza-se da imagem de uma tempestade, em que aqueles que esperam devem agarrar-se fortemente e firmar o coração para que não sejam levados pela intensidade avassaladora dos acontecimentos. Quando não há forma humana de assimilar uma realidade da dimensão da Verdade, os que conseguem esperar realizam o esforço mínimo necessário para não serem levados ao desespero. Conseguem, portanto, dimensionar sua perplexidade como transitória e momentânea e não elevá-la à perigosa categoria do conclusivo e definitivo. Esta é a razão pela qual a palavra desespero traz em sua raiz a antítese da espera. A entrega antes da entrega, ou a espera, não é idêntica a uma postura Aié (“onde está a glória?”). Aié é uma busca e aceitação ativa daquilo que não será revelado, apenas mostrado sob sua forma velada. A entrega antes da entrega é traduzida na escala coletiva pela ideia messiânica pela qual, seja qual for a realidade que se apresente diante de uma geração, sua postura será de espera. A salvação, para decepção de muitos, não será o mundo da ordem Malé (“aqui está a glória”), nem da ordem do controle e da consciência, nem um mundo ******ebook converter DEMO Watermarks******* composto unicamente pela realidade do Amor. Será, sim, o mundo onde existem as condições necessárias para que haja entrega. Uma realidade em que a entrega ativa será universalmente parte do comportamento humano – em que tudo o que é oculto passará a ser velado. Este é o final do processo para aqueles que trazem “circulando em seu sistema” o fruto da Árvore da Sabedoria. A sabedoria permite a compreensão exatamente porque está separada do objeto que ela compreende. A consciência ou a sabedoria, por definição, vivem fora do Paraíso e existem da distinção constante entre as manifestações de Amor e Verdade. Apenas no Paraíso, o lugar da não consciência, é possível que a Verdade e o Amor sejam equivalentes e vivenciados de maneira revelada. ******ebook converter DEMO Watermarks******* Estéticas fora do caos Nos capítulos anteriores, buscamos algumas classificações que nos possibilitassem identificar a essência do desafio e da ameaça que fustigam os seres humanos. Reconhecemos que o nosso real inimigo não é o mal, mas o caos. O caos não é a manifestação do mal, mas quando o mal se mistura de forma indistinta com o bem. Quando a consciência não consegue manter seus parâmetros de avaliação do mundo e dele abre mão em depressão e desespero. É interessante notar, no entanto, que a sociedade ocidental organizou-se muito mais pela vertente que busca estruturar o mundo à nossa volta por meio do controle – que visa distinguir o bem do mal expurgando o mal –, do que pela entrega –, que visa distinguir o bem do mal, acolhendo o mal e desobrigando-se do bem. É por isso que alguns modelos orientais que preservaram um melhor equilíbrio entre essas duas formas de sabedoria (refinar o bem excluindo o mal e refinar o mal excluindo o bem) tornaram- se nas últimas décadas tão importantes na busca do Ocidente por significado e ordem. As estéticas do mundo ocidental revelam o grande espaço que o caos conseguiu ganhar penetrando no cerne da percepção rotineira das massas. Essas estéticas são bolsões onde a mistura do bem e do mal se dá indiscriminadamente, resultando na montagem, diante de todos nós, de uma realidade distorcida. Analisaremos, em especial, duas estéticas que constantemente moldam nossa compreensão do mundo: as coisas na hora certa e as coisas no lugar certo. A primeira dessas estéticas tornou forma na linguagem pela palavra timing; a segunda chamaremos de spacing. Inicialmente, porém, devemos nos perguntar: o que há de errado com essas estéticas? Nada. Não há nada mais harmônico do que algo na hora certa e algo no lugar certo. Mais do que isso: quando as duas estéticas se combinam, acabam formando algo especial, que muitos denominam “sorte”. Sorte é uma forma de estética semelhante ao coringa do baralho, que, com suas componentes de timing e de spacing, preenche de ordem qualquer espaço e situação. Dificuldades, entretanto, vão aparecer, na medida em que essas estéticas sejam experimentadas a partir da busca por controle. Na dimensão pura da consciência, quando algo não existir no seu tempo próprio e/ou no seu lugar próprio, deflagra-se o processo de percepção do “azar”. Algo fora ******ebook converter DEMO Watermarks******* de seu tempo ou fora de seu lugar assume um espectro de algo que é feio, antiestético. Na dimensão do Amor e da ordem, portanto, não há possibilidade de que algo “fora do seu tempo” ou “fora do seu lugar” possa ser percebido como estético. Na obsessão por compartimentar o belo como pertinente a realidades objetivas (Malé), perdemos a habilidade de discernir estruturas estéticas nas manifestações veladas de ordem. Uma pequena história chassídica vai ajudar-nos a ilustrar a cultura estética do Ocidente: Contou o rabino de Dubnov: Um médico prescreveu pílulas a um jovem paciente. As pílulas, como de costume, eram recobertas por uma camada de açúcar e aromatizantes. Com o passar do tempo, o paciente não demonstrou qualquer melhora, e o médico resolveu investigar. Ao acompanhar o procedimento do rapaz, o médico descobriu que o tolo lambia a cobertura adocicada e cuspia fora a pílula. Nossa atitude é análoga à do menino. Absorvemos nossas experiências do dia a dia de maneira semelhante, pois integramos o doce (a estrutura do Amor) e “cuspimos” a componente Verdade. Nossa “cura”, nosso desenvolvimento como seres não desesperados, não é possível, porque nos negamos a engolir a componente da vida que tem a possibilidade de sarar futuros ferimentos causados pela dúvida e pela desorientação. Com certeza, o açúcar da pílula foi elaborado para exercer uma função. É ele que nos permite engolir a pílula como um todo. Isoladamente, o açúcar não tem qualquer efeito ou eficácia. Uma inscrição nos cemitérios judaicos é bastante reveladora dessas estéticas que não vemos ou não queremos ver. Ela diz: “Abençoado é o Eterno, que vos fez através da dimensão da Verdade (ba-din), e vos mantém vivos pela dimensão da Verdade (ba-din), e vos alimenta pela dimensão da Verdade... e vos fará reviver no futuro através da dimensão da Verdade.” É incrível perceber que a realidade da Verdade, aquela que nos faz perder e morrer, é a mesma que possibilita a nossa vida, o nosso sustento e a nossa reciclagem no futuro. Aquilo que nos dói e tem um custo está incluído e faz parte do somatório positivo que é a vida, por mais que tentemos torná-lo estranho e externo a ela. Tão positivo é esse somatório que ninguém quer abrir mão da vida; fosse a vida ruim e, portanto, o morrer fácil, preferiríamos ******ebook converter DEMO Watermarks******* a realidade ora vigente. Não há como perceber a vida como boa sem que sua perda tenha um componente que nos pareça “antiestético”. Mas não deveria ser assim. Perceber a beleza contida na Verdade, reconhecendo que, além de permitir, ela também mantém e reaviva a vida, seria equivalente a descobrir uma nova dimensão estética. A estética comum, avessa a qualquer ordem que não seja explícita, torna-se campo fértil para o desenvolvimento do conceito de caos. A capacidade de perceber estética noque é velado é a única saída para evitarmos que o mundo se torne feio à medida que vivemos e amadurecemos para a vida. Faremos a seguir um breve estudo do verdadeiro senso estético de algo em seu tempo certo e de algo em seu lugar certo. ******ebook converter DEMO Watermarks******* A estética das coisas no seu tempo certo (Davar Be-itó) Aos cinco anos – a idade do estudo das Escrituras Aos dez anos – o estudo da Mishná Aos treze anos – a responsabilidade de cumprir os mandamentos Aos dezoito – a busca do casamento Aos vinte – a procura do sustento Aos trinta – o auge da força Aos quarenta – a sabedoria Aos cinquenta – a possibilidade de aconselhar Aos sessenta – o início da velhice Aos setenta – a plenitude dos anos Aos oitenta – o corpo cansado Aos cem – com um pé em cada mundo Rabi Iehudá ben Tema (“Ética dos Ancestrais”, 5:24) A noção de que há uma estética no cumprimento de um ciclo está entre os primeiros conceitos de ordem que desenvolvemos. Esta estética diz respeito à descoberta do tempo, de sua aparente direção rumo ao futuro e das noções a ele associadas – antes/depois e começo/fim. O tratado talmúdico que versa sobre o luto (3:8) revela essa percepção de forma bastante concreta: “quem quer que seja levado deste mundo antes dos cinquenta anos terá sido levado antes de seu tempo.” Se uma pessoa vier a morrer antes do período da possibilidade de aconselhar, será como se não tivesse tido oportunidade de cumprir um ciclo, acima de tudo, estético. A natureza dessa não estética da morte antes do tempo é construída a partir da percepção de que a plenitude, como se esta fosse um objetivo, não foi alcançada. No entanto, não há qualquer razão para termos tal expectativa, uma vez que ninguém “completa” nada nem fecha qualquer ciclo por controle próprio. Assim sendo, todo e qualquer ciclo que se fecha, seja antes, durante ou depois do que esperaríamos, é sempre davar be-itó, uma coisa a seu tempo. É claro que a aceitação disso é extremamente difícil. É da mesma ordem de dificuldade de querermos crer em algo que viole nosso senso de realidade e nossa experiência. Fica assim exposto nosso despreparo para lidar com a vida e se evidencia o quão viciados somos pela expectativa de ordem. Por ordem entenda-se o desejo constante de que as coisas sejam do jeito que gostaríamos que fossem e não do jeito que deveriam ser. ******ebook converter DEMO Watermarks******* Quando queremos que as coisas sejam da esfera de “como devem ser”, estamos falando do mundo velado. Não podemos compreendê-lo plena e explicitamente – Malé –, mas o aceitamos. Nesse instante, as coisas no seu tempo certo ganham um novo sentido para além daquilo que gostaríamos que acontecesse. Certa vez, visitando uma pessoa gravemente doente, descobri o que apelidei “síndrome da torta de queijo”. Devido ao tratamento a que era submetida, essa pessoa havia perdido o paladar. Num de nossos encontros, ela comentou sobre seu profundo desejo de sentir o gosto e a textura dessa torta que ela tanto amava. Porém, ao mencionar que daria tudo para poder sentir esse gosto apenas mais uma vez, a pessoa enferma parou e ponderou: “que besteira... se me permitissem sentir tal sabor e depois me tirassem essa possibilidade, continuaria a sentir a mesma nostalgia e o mesmo desejo de agora. Quantas vezes comi essa torta, e veja... aqui estou, sentindo sua falta. Tivesse eu provado mil vezes mais dela, ainda assim sentiria o desejo e a tristeza que hoje experimento.” Este é um sentimento com o qual podemos nos identificar. Não queremos abandonar a possibilidade de sentir os gostos. Na verdade, tal possibilidade, muito mais do que a própria torta, é que trazia prazer a essa pessoa. Reparemos, porém, que, por meio dessa relação com o mundo, limitamos a percepção de “algo a seu tempo” à dimensão daquilo que queremos, à realidade do Amor. Essa “linha de lógica” leva diretamente ao desespero, pois não há possibilidade real de que venhamos a fazer qualquer concessão absoluta ao que queremos. Assim, as perdas permanecem para sempre vinculadas a “algo que não é a seu tempo” e serão vividas como feias, como uma intromissão do caos em nosso santuário particular de ordem. Um discípulo reclamou ao rabino de Ger: “Há vinte anos me esforço e não alcanço a realização de um artesão que se torna mestre de sua arte, seja pela criação de algo de melhor qualidade ou de algo que seja feito com maior eficácia e rapidez. Da mesma forma que era há vinte anos, assim sou hoje.” O rabino respondeu: “Veja o caso de um boi, por exemplo. Todo dia pela manhã sai de seu estábulo, vai para o campo, ara a terra e é levado de volta a seu estábulo. Isso é feito dia após dia e nada muda em relação ao boi – porém, a cada ano, a terra arada dá sua colheita.” Nossa vida não é celebrada por qualquer diplomação ao concluirmos o ******ebook converter DEMO Watermarks******* currículo que imaginamos para nossa vida. É um sonho, um desejo de impor a ordem do Amor, queremos tornar a vida estética através da expectativa de que tudo acontecerá em seu tempo certo. Certa vez oficiei o funeral de uma senhora falecida aos 98 anos e seu filho não parava de me perguntar por que aquilo tinha de acontecer logo naquele momento. No meu íntimo, achei graça. “Se não ela, quem?”, pensei com meus botões. Mas estava fazendo uso da mesma rejeição da verdade que aquele homem que julgava patético. O que me parecia óbvio e ordenado – uma mulher quase centenária morrer – minha estética que queria impor previsibilidade era tão controladora como a dor do filho enlutado que exigia que as coisas fossem do “jeito que ele queria”. A possibilidade de uma pessoa encontrar razão para a própria vida ao comer a torta de queijo de agora, não atribuindo unicamente sentido exclusivamente à possibilidade de prosseguir tendo a chance de degustá-la, é encontrar o caminho para davar be-itó, “o que acontece realmente em seu tempo certo”. O que é estético em nossa história sobre o boi são os campos reais, que são arados, semeados e frutificam. No boi, em si, a vida não celebra – regozija-se, sim, de seus campos. No desejo de dominar o poder de sentir o gosto da torta, a vida não celebra – no degustar e no prazer de tê-la à boca, sim, a vida se regozija. O desejo do discípulo de estar aperfeiçoando a si mesmo, como se estivesse esculpindo a si próprio, é uma ilusão. São os campos arados, ou seja, nossos feitos, que terão impacto sobre nós mesmos e sobre o mundo. São eles a nossa construção e não a construção de nós mesmos. Seria, então, a vida regida pelo princípio do “aqui e agora”? Sim, mas diferentemente do sentido hedonista ao qual a expressão é comumente associada. “Aqui e agora” não significa uma vida destituída de responsabilidades e projetos, mas a possibilidade de se usufruir a potência da vida a cada instante. O depois será sempre objeto de controle; o “aqui e agora” é o chão da entrega. Resgatar o significado de cada momento de vida é exercício indispensável para livrar-nos do cinismo. Saber reconhecer essa estética é poder ver além desse mundo explícito. É descobrir no contentamento o supremo senso estético da harmonia, e na busca obsessiva da felicidade, uma estética de controle. Como é feio o afetado, o que quer preservar o que é perecível, ou aquele que peca por excesso! A vida nada tem a ver com isso – algo a seu tempo estará sempre associado a um sentimento de entrega, jamais a expectativas de controle. ******ebook converter DEMO Watermarks******* É estético o contrário do que frequentemente acreditamos ser estético. ******ebook converter DEMO Watermarks******* A estética das coisas no seu lugar certo (Ba-asher Hu Sham) Outra percepção estética que compartilhamos diz respeito aos momentos em que nos sentimos entusiasmados e autoconfiantes. São períodos que nos permitem sonhar e planejar; quando as coisas parecem mover-se para a frente e ambicionamos crescer e nos expandir. Momentos em que Deus parece estar do nosso lado e os mais tolos chegam a desenvolver teorias sobre a predileçãoque acreditam gozar. Tal estética identifica a bem- aventurança como uma manifestação pura da realidade do Amor. Deus é então “brasileiro”, do nosso time, da nossa religião ou simplesmente “está conosco”. Na famosa noite decisiva em que o Norte dos Estados Unidos resolveu entrar em guerra com o Sul, conta-se que um general ergueu um brinde dizendo: “Possa Deus estar conosco!”, ao que foi corrigido por Abraham Lincoln: “Possamos nós estar com Deus.” Essa pequena inversão expressa a possibilidade do “sucesso” como uma manifestação fundamentada não na realidade do Amor, mas nesta que estamos chamando de Verdade. Se você acha que está bem porque Deus o ama ou porque está com você naquele instante, terá de admitir em outros momentos, quando você não estiver num bom momento, que Deus não gosta mais de você. Tal percepção do mundo, na mesma medida em que é atrativa, é também destrutiva e fomentadora do desespero. Reb Nachman ilustrava essa questão por uma passagem bíblica (Gn 21), em que Agar, esposa de Abraão, é expulsa de casa. Agar estava às raias do desespero, porque se encontrava com o filho Ismael abandonada no deserto. Para não presenciar a morte da criança, ela tenta se afastar do menino. Nesse instante Deus ouve o choro do menino e diz (v. 17): “‘O que tens, Agar? Não temas’; pois escutou Deus a voz do menino de onde ele está! ( ba-asher hu sham).” Quando uma pessoa percebe que “de onde quer que esteja” há uma estética que lhe permite a percepção de estar “com Deus”, mesmo em meio a uma experiência da esfera da Verdade, nada mais pode assustá-la. “Não tema”, diz o Criador, aliás sua fala predileta, dita a todos os Patriarcas e a Moisés. Não temer é o que nos salvaguarda do cinismo. Esse lugar (qualquer ******ebook converter DEMO Watermarks******* lugar) é o que nos retira o temor e nos permite buscar encontrar Deus, a ordem e o estético, não apenas quando as coisas parecem ir de encontro ao que esperamos e desejamos. Desde o próprio lugar onde nos encontramos, seja na escuridão ou nas profundezas, de lá – e não de uma posição de suborno, “se as coisas vierem a melhorar...” – devemos fazer contato com a ordem, com o Eterno. “Desde lá procurarás o Eterno, teu Deus”, afirma o texto bíblico (Dt 4:29) e Reb Nachman se pergunta, retoricamente: “Desde lá onde?” Lá. Desde o lugar onde você se encontra. Deus não se encontra na prova vencida, na cura obtida ou no sucesso alcançado, procure-O/A desde o lugar onde você está. Poder compreender o mundo desde o lugar onde você está, e não pelo lugar onde você gostaria ou acha que mereceria estar, é buscar o beijo, a confluência da realidade da Verdade e do Amor. Apenas “de onde você está” é que essa janela pode ser vista. Tal janela se faz na única possibilidade que tem o “parcial” de compreender o “todo”. Somos parte de um “todo” que nos despeja a realidade da Verdade; somos também parte de um “particular” que concebe o mundo a partir da dimensão do Amor e do não Amor. A noção de “onde quer que estejamos” permite que percebamos existencialmente nossa realidade “particular” como parte do “todo”. Esperar que as coisas fossem apenas como gostaríamos é querer reduzir tudo à esfera do “ particular” , o que nos leva ao encontro do desespero. Por outro lado, ter a pretensão de apreender a realidade pela perspectiva do “todo” é não conhecer as limitações de nossa humanidade e é marcar encontro com uma vida destituída de significado, onde a morte é certeza e fim absoluto. O mundo da Verdade e o mundo do Amor devem estar constantemente se acasalando e preservando uma relação não hierárquica. Toda vez que o Amor buscar controle sobre a verdade – o particular sobre o todo –, estaremos agindo de forma ilusória e assumindo todos os custos dessa atitude. Toda vez que a Verdade tentar suprimir o Amor – e o “todo” subjugar o “particular” –, estará nos colocando diante do desespero e do cinismo. O cinismo é, muitas vezes, tido como um antídoto contra o desespero. Trata-se, porém, de uma noção falsa. O cinismo produz uma sensação momentânea de que se está para além da realidade, como se estivéssemos falando de um mundo na terceira pessoa e não na primeira. Avesso à dor, o cínico mais cedo ou mais tarde terá de subir à tona de sua própria existência ou se asfixiar nesse distanciamento de si mesmo. O seu grande problema é ******ebook converter DEMO Watermarks******* que na superfície, na superfície do mundo que criou para si não há oxigênio, mas desespero. Não há como fugir do desespero na fantasia (espaço restrito do Amor), mas no abraço total à realidade de nosso momento. Devemos perceber que os locais onde o Amor e a Verdade “se beijam” são aqueles “onde estamos”. Nesses lugares onde nos encontramos, há a possibilidade pontual de lidar com o Amor e com a Verdade. Assim sendo, a estética de um “lugar certo” não é a experiência de quando tudo vai bem ou sob controle, mas a possibilidade de vivermos integralmente o que se nos apresenta num dado instante. É, portanto, o ponto constante e permanente onde Deus ou a esperança nos encontram, “onde quer que estejamos”. Uma estética muito distinta, portanto, daquela que identifica o “lugar certo” como uma posição no futuro, onde o “todo” se adequará ao “particular”. ******ebook converter DEMO Watermarks******* II ORDENS ALÉM DA ORDEM ******ebook converter DEMO Watermarks******* “E viu que era bom.” Bom o quê? A morte Muito do que compreendemos por desespero e por caos diz respeito à morte. Para a experiência dos vivos, a descontinuidade gerada ao passar-se pelos limites da vida e da morte é tão grotescamente real que se torna temível e terrível. Diante da morte, estamos diante da Verdade, e, como vimos anteriormente, em tais situações, em vez de nossa consciência renunciar a si mesma, prefere devastar a realidade e não abrir mão de seu controle. Entre as formas de buscar controlar a morte, a consciência tem um truque que lhe é predileto. Trata-se da artimanha de nos fazer oscilar entre duas formas de corrupção da realidade. Uma dessas formas é o pessimismo cuja estratégia é promover um verdadeiro festival de horrores e abrir o máximo de espaço ao caos. Mas o pessimismo não passa de uma estratégia de controle. Ao produzir o pior cenário possível, parece nos proteger de surpresas indesejadas, além de buscar antecipar a dor para poder suportá-la. A segunda forma – o otimismo – projeta sobre a morte as mesmas condições da vida. A aparente descontinuidade da morte é reduzida e maquiada como uma distinta forma de continuidade. Nela, a individualidade não termina com a morte, mas persiste eternamente, se renovando e reciclando-se. São as reencarnações e os diversos sistemas de punição e recompensa que visam preservar os enredos do indivíduo. O pessimismo controla pelo cinismo e pelo sarcasmo. O otimismo controla se fazendo cúmplice e íntimo ao “todo”. Ambas as formas não representam a realidade, apesar da sedução que exercem sobre a consciência. Nessa confusão oscilante, a consciência encontra uma maneira para não admitir que sua condição está limitada a uma realidade que é “particular” e que não diz respeito ao “todo”. Salvaguarda, assim, a si própria, mas não a nós. Isso porque somos mais do que apenas nossa consciência, e preservar- nos não implica garantir a qualquer custo apenas a manutenção de sua coerência. Sentimos, intuímos e vivemos uma dimensão existencial. Quando falamos de nossa “integralidade”, não podemos reduzir a morte à questão “filosófica” de ser ela um momento final que desafia a nossa compreensão. Devemos, com grande sensibilidade, perceber que a vida está imersa e ******ebook converter DEMO Watermarks******* embebida no oceano da morte. Não há descontinuidade na morte; há um ruidoso e ofuscante revigoramento de algo que a vida, em sua também ruidosa e ofuscante dimensão, não nos permite perceber. A morte e a vida se beijam como a Verdade e o Amor, tal como na imagem que mencionamos sobre o texto das Escrituras em que as letras negras e o vazio branco que as envolve se tornamuma única coisa. Ou como nas ilustrações utilizadas na Gestalt, em que se percebe ora um jarro, ora um rosto, e que nos brindam graficamente com o conceito de “ver um é não ver o outro”. Ninguém, portanto, poderá determinar de maneira conclusiva se o desenho é um jarro ou se é um rosto. Tamanha é a convicção encontrada na tradição judaica de que a vida se entrelaça ou, melhor, se “estrela” (a estrela de Davi) com a morte, que o Midrash se permite fazer o mais ousado de todos os comentários. Em Gênesis Raba (9:3), na análise do versículo final da Criação, quando Deus se volta a tudo o que havia criado em admiração, lemos o seguinte: “E Deus viu tudo o que tinha feito e viu que era muito bom” (Gn 1:31). Rabi Meir disse: “‘e viu que era muito bom’ – muito bom o quê? Isso se refere ao Anjo da Morte.” É no mínimo surpreendente imaginar o Criador, Aquele/a que faz e diferencia tudo, que cria, dando identidade e especificidade a tudo, que possa apreciar sua obra como um artista e afirmar ser justamente o Anjo da Morte o seu toque de mestre. A Criação havia sido confeccionada sobre um fundo que Deus identifica como extremamente estético (e viu que era muito bom!). Talvez melhor do que a imagem de um “fundo” que induz a ideia de algo separado da própria obra nos valhamos de um modelo mais refinado. O processo gráfico conhecido como “retícula”, por exemplo, é uma ilustração mais adequada. Nesse processo, a intensidade da cor é formada pela variação do número de pontos dessa mesma cor contidos no papel. Por exemplo, a aplicação sobre um papel branco de milhares de pontinhos vermelhos resulta no efeito cromático do rosa. Se o número de pontos vermelhos fosse aumentado, perceberíamos o vermelho mais escuro. Digamos, para efeitos visuais, que a vida possa ser percebida como “rosa”. Ela nada mais seria do que o fenômeno de ter intercalados branco e vermelho em certa proporção. Assim é com a vida e com a morte – pigmentos de vida e morte se intercalam, produzindo a existência. Para que vivamos, é necessário que a própria estrutura de nossas células saiba morrer e se reciclar. Enquanto vivemos, milhões de mínimas partículas ******ebook converter DEMO Watermarks******* de nós mesmos estão constantemente morrendo. A morte e a vida são parceiras, não adversárias. Ora são parceiras para preservar a vida, ora para preservar a morte. O inverno se move em direção ao verão, e este ao inverno; o dia se move em direção à noite, e esta ao dia; a expiração, à inspiração, e esta, à expiração. Nem o dia, nem o verão, nem a inspiração isoladamente representam a vida; nós os experimentamos, respectivamente, como sendo claros, calorosos e revigorantes, e acabamos por confundi-los com a própria dimensão do Amor – aquilo que está a “nosso favor”. Fazemos isso sem perceber que a escuridão, o frio e o esvaziamento são da mesma forma indispensável e que também “estão a nosso favor”. Essa realidade de frio e escuridão, ou a dimensão da Verdade, não é “inimiga”, mas aliada. É parte importante da Criação e de sua estética – daquilo que viu como “muito bom”. Assim, vemos que a natureza pulsante, seja de nosso organismo ou do próprio cosmos em suas contrações e expansões, tem algo a nos dizer sobre a relação entre a vida e a morte. A cada batida, o coração pulsa aqui neste mundo e repulsa no mundo de lá, de volta para este mundo. A morte atua constantemente na realidade da vida, como faz o inverno com o verão, “empurrando” tudo o que é vivo de volta à vida. A vida faz o mesmo com a morte. Seu convênio é que nos permite existir e não existir. A estética que Deus percebe na morte ( tóv meod, “muito bom”) nos é uma realidade velada. Mas é nela que se encontra a salvação ou a arte de se salvar. ******ebook converter DEMO Watermarks******* A dinâmica das pausas Comentava uma amiga: “Estou preocupada, pois estou chegando à menopausa.” Ao que respondeu um senhor de idade, a seu lado: “Isto não é nada... e eu, que estou diante da grande pausa?” Há uma dinâmica de pausas em nossa vida que percebemos apenas em momentos de crise – como na meia-idade ou na velhice. No entanto, as pausas representam uma necessidade constante. De escuridão em escuridão, recobramos o senso da claridade; de silêncio em silêncio, resgatamos o sentido da mensagem. Uma pausa, diferente do ato de parar, é uma experiência. A pausa é situação existencial na qual hibernam nossas expectativas e ansiedades. Não possuímos uma memória ativa para nossas pausas, pelo menos não na intensidade com que retemos as atividades de nossa vida. No entanto, as pausas fazem parte da nossa história. Saber honrar nossas pausas constantes é uma maneira de estabelecer contato com a realidade da Verdade. Esse contato apropriado resulta numa relação sadia, que é experimentada também como Amor. Quando bem vividas, uma menopausa e até mesmo as vésperas da “grande pausa” podem tornar-se experiências em grande medida adoçadas. É possível se encontrar nessas situações de vida o ponto onde a realidade da Verdade beija a do Amor. No entanto, temos medo das pausas. Todos nós já tentamos dar conta das pausas buscando controlá-las, e a sensação resultante não é agradável. Uma pausa é uma corrente que já tem rumo. Ao contrário do que a palavra possa nos sugerir, uma pausa não é algo neutro. Trata-se de um trecho ou uma passagem de fluxo onde não temos por que controlar o leme – o rumo já é definido. Na pausa não há arbítrio ou livre-arbítrio. Entregar-se é a única forma de navegar pelas pausas, e quando não compreendemos essa lei de seu fluxo, ficamos bastante angustiados. Reagir a uma pausa é, portanto, remar contra a maré, é nadar contra a corrente de nossa própria vida. As pausas ficam assim associadas à perda de controle e às experiências e ao temor que estas nos incitam. Seja uma queda, uma força ou uma velocidade que nos surpreende ou um objeto que escapa das mãos, e confirmamos nosso temor. Essas quedas, esses deslocamentos silenciosos sem controle são pausas. A pausa, como dissemos, não é uma inatividade, mas a hibernação dos meios de controle da realidade à nossa volta. ******ebook converter DEMO Watermarks******* Quem se permite experimentar uma pausa, quem se permite descobrir que, para além da violência do descontrole, atingem-se trechos do percurso onde a vida retoma o controle (onde não há mais rumo, mas calmaria), acaba por encontrar uma nova forma de se relacionar com a própria vida. Quando a pausa for intensa ou quando se tratar da “grande pausa”, o indivíduo possuirá a experiência necessária para saboreá-la como parte integrante e não intrusa da vida. Nosso medo da dor é tão concreto que desenvolvemos como que uma infância permanente ao lidar com ela. Essa criança que existe dentro de nós é vivamente ilustrada pelo rabino de Mezeritch: Um homem, ao levantar o filho após este ter tropeçado e caído, percebeu que havia um espinho no pé do menino. Rapidamente, procurou extrair o espinho, sem dar atenção ao choro da criança. Logo após a experiência ambos, pai e filho, ficaram temerosos: o pai, pela possibilidade de uma infecção vir a instalar-se no pé do filho; o menino, por ter em algum momento futuro de sua vida de sentir a mesma dor. O pai temia a ferida, o menino temia a cura. Esse pai simboliza o indivíduo projetado na dimensão da Verdade e do Amor; o menino, por sua vez, representa nossa vida reduzida ao mundo do Amor. O adulto existencial em nós preocupa-se com a integração dessas realidades quando são perturbadas por nossas experiências. Para ele, a saúde e o equilíbrio restabelecidos são o objetivo primordial. Temer a ferida é reconhecer que está em risco um valor maior e há possibilidade de alastramento da Verdade de forma infecciosa. Já para a criança existencial em nós, a retirada do espinho e sua dor terapêutica serão lembradas como uma tormenta que o fará temer e fugir de processos de cura. As pausas são, dessa maneira, experiências assimiláveis pelo adulto existencial dentro de nós. Esse adulto busca reconhecê-las, render-se a elas e costurar pelas
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