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Mario Quintana Da preguiça como método de trabalho da-preguica.indd 3da-preguica.indd 3 6/21/07 10:46:31 AM6/21/07 10:46:31 AM 47 D A P R E G U I Ç A C O M O M É T O D O D E T R A B A L H O Crônica atmosférica Quando começo estas poucas e mal traçadas, está fazendo 35 graus à sombra, e vai piorar, graças ao Diabo. Isso é mesmo literalmente infernal, por- que estiola o verde das esperanças novas, planti- nhas frágeis e sentimentais e que, como sabeis, apenas dão flor uns poucos dias por ano, de 24 de dezembro a 6 de janeiro. Como vedes vim a cair nessa comum vulgaridade de comentar o tempo... E a primeira conseqüência dessa pressão atmosfé- rica foi que não me animei a ir passar os telegra- mas de feliz Natal e ano-novo. Não, não quer dizer que me haja esquecido de quem quer que seja... Pois na falta de telegrafia apelei para a telepatia. De modo que se o Aristarco, o Goida, o Lewgoy, o João, a Nega Fulô, a Elizabeth, a Terceira, a Eurídice, a Única, a Vera, la de los ojos color de uva, o nosso querido diretor, o Ribeiro, o Austregésilo de Athayde “o Eterno”, a Bruna, com sus ojos color de sulfato de cobre, a Nídia, a Adriana, se nenhuma dessas pessoas chegou a receber o meu telepatograma é que deve haver algum desar- ranjo na sua aparelhagem de recepção e não na minha transmissora. Mas, graças a Deus, nem tudo me foram espi- nhos e suor neste fim de ano. Pois acabo de descobrir uma volúpia nova. da-preguica.indd 47da-preguica.indd 47 6/21/07 10:46:46 AM6/21/07 10:46:46 AM 48 M A R I O Q U I N T A N A Sosseguem, velhinhos, não é nada disso do que vocês estão antegozando... Foi simplesmente que, estando eu aparelhado com um vigésimo da “bru- ta” da Federal, procuro-o no bolso interno esquer- do do paletó para namorá-lo mais uma vez, talvez para hipnotizá-lo... Procuro-o no bolso interno direito, procuro-o até naquele bolso de cima re- servado para o clássico lencinho de ponta virada que eu nunca usei porque acho isso uma bestei- ra... e nada! Procuro-o por todos os bolsos de todas as cal- ças, no fundo, dentro e embaixo dos móveis, até que, com uma máscara de tragédia grega, chego à conclusão fatal: perdi-o! Aconselho-te, pois, paciente leitor, a comprar um bilhete inteiro da próxima extração. Compra-o e rasga-o em pedacinhos. E lança-os aos quatro ventos do Destino. Verás o que é sensação, verás como sacodes a alma dessa medíocre mesmice de sempre, e verás como vibras, como vives a vida! da-preguica.indd 48da-preguica.indd 48 6/21/07 10:46:46 AM6/21/07 10:46:46 AM 49 D A P R E G U I Ç A C O M O M É T O D O D E T R A B A L H O Inscrição para um portão de cemitério A morte não melhora ninguém... Desconfiança Mas quem sabe se o Diabo não será o Mister Hyde de Deus? Segunda-feira Esta segunda-feira está parecidíssima com Robert Mitchum: está com uma cara sonolenta e oca, uma ca ra de teia de aranha. da-preguica.indd 49da-preguica.indd 49 6/21/07 10:46:46 AM6/21/07 10:46:46 AM 50 M A R I O Q U I N T A N A Antigamente e agora Antigamente, era preciso virar todos os retratos dos nossos antepassados contra a parede, para não continuarem espiando a gente. Espiando ou espionando, nunca se sabe... Mas agora, alheios a tudo o mais, eles ficam olhando juntamente conosco, noite adentro, as in- termináveis novelas da TV. Adolescência Idade em que a gente lê sem estar pensando noutras coisas. da-preguica.indd 50da-preguica.indd 50 6/21/07 10:46:47 AM6/21/07 10:46:47 AM 51 D A P R E G U I Ç A C O M O M É T O D O D E T R A B A L H O As três moças de Encruzilhada Era uma vez três moças que moravam na flores- cente cidade de Encruzilhada. E, como eram três moças muito sérias, faltava-lhes o senso de humor e tomavam ao pé da letra o nome de sua cidade natal. E nunca sabiam onde ir, o que fazer, o que responder... Para acabar com essa dúvida atroz, depois de infindáveis hesitações, resolveram o seguinte: a primeira sempre diria “sim”, a segunda que não e a terceira responderia com ar sonhador: — Talvez... Ora, um dia a Morte apareceu à primeira, e a moça disse que sim. A Morte a levou. No outro dia a Morte apareceu à segunda e esta disse que não. — Como ousas contrariar-me? — a Morte retru- cou. — Eu sou a única Potestade do Céu e da Terra a quem ninguém pode dizer “não”. E levou a moça. Enfim, no terceiro dia, a Morte apresentou-se à última das três — e a moça ficou olhando, olhando a cara da Morte e finalmente suspirou: — Talvez... E a Morte retirou-se, danada da vida. da-preguica.indd 51da-preguica.indd 51 6/21/07 10:46:47 AM6/21/07 10:46:47 AM 52 M A R I O Q U I N T A N A O velho O que eu mais temo — escrevi eu em um dos meus agás — não é o Sono Eterno, mas a possibi- lidade de uma insônia eterna — o que seria uma verdadeira estopada, um suplício sem fim. Porém, em uma das minhas costumeiras noites de sonho acordado, o meu amigo morto me pediu um cigar- ro, e disse-me: — Não é como tu pensas, todos nós trabalha- mos numa série infinita de escritórios (cada gera- ção de mortos num deles) onde a gente se entrega a um sério trabalho de estatística: tem-se de anotar a chegada de cada um e comunicar-lhe o respecti- vo número, pois isso de nomes é mera convenção terrena. O pior são os que atrapalham a escrita, morrendo antes do tempo — ou porque se mata- ram ou por culpa dos médicos, e estes ainda são culpados quando fazem os doentes morrer depois da hora, numa espécie de sobrevida artificial, já que os médicos (diga-se em sua honra) julgam cri- minosa a prática da eutanásia... Uma pena! — E fora do expediente, o que fazem vocês? — Bem, a hora do almoço não deixa de ser di- vertida por causa dos Santos: põem-se a discutir acaloradamente qual deles fez na Terra o maior número de milagres e outras futilidades. — E nos serões, eles jogam prenda? da-preguica.indd 52da-preguica.indd 52 6/21/07 10:46:47 AM6/21/07 10:46:47 AM 53 D A P R E G U I Ç A C O M O M É T O D O D E T R A B A L H O — Mais respeito, seu vivo!... Bem! nos serões eles fazem concursos para ver quem é que diz de cor mais versículos da Bíblia. Uma bobagem! Todo mundo sabe que o único que sabe a Bíblia de cor, tintim por tintim, é o Diabo. — E Deus? Me conta como é Ele... — Ah, o Velho? Desconfio que certa vez O vi... — Só certa vez? Mas Ele não está sempre no Céu? — Bem, tu deves compreender que Ele se preo- cupa principalmente com os vivos. O Velho está quase sempre é na Terra, lidando com os assuntos humanos. Ele e o Diabo. Sim, os dois vivem a maior parte do tempo na Terra. — Ora, eu pensava que vocês soubessem mais do que nós... Mas conta-me lá como foi que des- confiaste de ter visto o Velho? — Foi há tempos, eu era recém-chegado, quan- do uma tarde apareceu de surpresa no escritório um velhinho muito simpático. Com as mãos às cos- tas, curvava-se sobre cada mesa, inspecionando o nosso trabalho, por sinal que me atrapalhei, errei uma palavra. Ele bateu-me confortadoramente no ombro, como quem diz: “Não foi nada... não foi nada...” Ao retirar-se, já com a mão no trinco da porta, virou-se para nós e abanou: “Até outra vez se Eu quiser!” da-preguica.indd 53da-preguica.indd 53 6/21/07 10:46:48 AM6/21/07 10:46:48 AM 54 M A R I O Q U I N T A N A Olhinhos azuis As menininhas não devem sair sozinhas à noite. É perigoso. Podem encontrar o conde Drácula e é sabido o amor que ele tem pelas menininhas, sen- timento por elas correspondido, pois o conde, com aquele seu amplo manto negro, lhes faz lembrar o Superman, o Batman, os heróis das histórias em quadrinhos. Ora, no último sábado uma delas fugiu de casa para ir gastar seus troquinhos na venda da esquina — enquanto os pais, os criados, os visitan- tes, todo o mundo se achava hipnotizado pela no- vela da TV. Eis senão quando surge inesperada- mente,diante da menininha, vocês já adivinharam quem: o irresistível conde! Mal deu tempo para a menininha respirar: desdobrou amplamente diante dela, como as asas de uma enorme borboleta no- turna, o seu manto negro forrado de veludo verme- lho, enquanto a menininha tremia ao mesmo tem- po de medo e prazer. Despediu-se da menininha com um paternal beijo na testa, olhou-a bem nos olhos, suspirou fundo e disse: — Sabes? Os teus olhinhos são duas jóias. (Eram na verdade duas jóias: de um azul-inocência, pare- cia até que o céu é que estava olhando por detrás deles para a gente...) — Mas como seria possível, meu velho — des- culpava-se Drácula naquela mesma noite com o da-preguica.indd 54da-preguica.indd 54 6/21/07 10:46:48 AM6/21/07 10:46:48 AM 55 D A P R E G U I Ç A C O M O M É T O D O D E T R A B A L H O seu amigo Frankstein —, como seria possível, com dois olhinhos só, fazer um par de abotoaduras? Diálogo Dois monólogos intercalados. da-preguica.indd 55da-preguica.indd 55 6/21/07 10:46:48 AM6/21/07 10:46:48 AM 56 M A R I O Q U I N T A N A Crônica platina Tento em vão desatar um nó cego do meu sapa- to. Heloísa aconselha-me: — Para desatar um nó cego basta pensar numa velha bem mexeriqueira. Dito e feito! O nó desata-se. — Em quem pensaste? — indaga Elena. — Ora, em quem mais havia de ser? Na tia Joaquina... A nossa querida tia Joaquina! A propósito: até inventei que tia Joaquina, todas as noites, antes de adormecer, pergunta-se, como uma boa escoteira: “Será que hoje não esqueci de fazer o meu bom mexerico?” Deus me perdoe, mas uma invenção não quer dizer que não seja verdadeira: às vezes uma anedo- ta popular, atribuída a alguém, define-lhe mais o caráter do que qualquer testemunho objetivo. Ora, ora! Estas mal traçadas eram para ser notas de viagem... e o leitor não podia adivinhar que vim a Buenos Aires para comprar livros e para uma visita prometida a Jorge Luis Borges. Ele não esta- va, fora fazer conferências em Tóquio e depois nos States, ninguém sabe ao certo. Procuraram, os da embaixada, ensejar-me um encontro com Ernesto Sábato. Esquivou-se. Decerto confundiu-me com um repórter. Não sou repórter, as informações aborrecem-me, não acredito na ob- da-preguica.indd 56da-preguica.indd 56 6/21/07 10:46:48 AM6/21/07 10:46:48 AM 57 D A P R E G U I Ç A C O M O M É T O D O D E T R A B A L H O servação direta, não sei o que fazer quando me apresentam a uma paisagem. Mas foi um oásis a visita à Cidade das Crianças, idealizada por Perón. Tudo ali é feito na medida da pequena estatura da criançada e da sua imen- surável fantasia. Vi ali mais uma das estátuas eqüestres do indefectível general San Martín. Mas em miniatura, cavalo e cavaleiro. Ele, o general, tinha a altura de um menino de oito anos. Assim, sim! Outro oásis: o reencontro com Berta Singerman, ainda em plena atividade no palco, com aquele seu velho sonho, tão bem realizado: ser o elo de liga- ção entre a poesia e o povo. Pois o povo não tem tempo ou não tem meios para comprar livros, ou simplesmente não tem o hábito da leitura. Este o sonho da Berta: a comunicação oral da poesia, ante milhares de pessoas (e não, como ho- je, a poesia impressa, para leitura a sós, nos gabi- netes), a poesia tal como se apresentava na Antigüidade e na Idade Média. E ainda hoje, nas regiões não alfabetizadas do Brasil, poetas do ser- tão cantam a sua poesia nos mafuás — quem foi que disse que o povão não gosta de poesia? da-preguica.indd 57da-preguica.indd 57 6/21/07 10:46:49 AM6/21/07 10:46:49 AM
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