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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Vitor Pereira dos Santos A ADEQUAÇÃO DA CULTURA NEGRA À INDÚSTRIA CULTURAL: UM ESTUDO DE CASO DA CANTORA LUDMILLA E DO DJ RENNAN DA PENHA RIO DE JANEIRO 2019 CIP - Catalogação na Publicação Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283. S237a Santos, Vitor Pereira dos A ADEQUAÇÃO DA CULTURA NEGRA À INDÚSTRIA CULTURAL: UM ESTUDO DE CASO DA CANTORA LUDMILLA E DO DJ RENNAN DA PENHA / Vitor Pereira dos Santos. -- Rio de Janeiro, 2019. 73 f. Orientador: João Freire Filho. Trabalho de conclusão de curso (graduação) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola da Comunicação, Bacharel em Comunicação Social: Publicidade e Propaganda, 2019. 1. Celebridades negras. 2. Indústria Cultural. 3. Funk. 4. Representação. I. Freire Filho, João, orient. II. Título. A ADEQUAÇÃO DA CULTURA NEGRA À INDÚSTRIA CULTURAL: UM ESTUDO DE CASO DA CANTORA LUDMILLA E DO DJ RENNAN DA PENHA Vitor Pereira dos Santos Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social. Habilitação em Publicidade e Propaganda. Aprovado por Prof. Dr. João Freire Filho – Orientador Doutor em Literatura Brasileira pela PUC-Rio Prof. Associado ao Departamento de Fundamentos da Comunicação da ECO-UFRJ Prof. Dr./ Drª/ Ms. / Esp. Nome Completo Prof. Dr./ Drª/ Ms. / Esp. Nome Completo . Aprovada em: Grau: RIO DE JANEIRO 2019 AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço à minha mãe por sempre ter me apoiado em minhas escolhas acadêmicas e por, muitas vezes, ter acreditado em meus sonhos mais do que eu mesmo. Sem o seu suporte e puxões de orelha, eu jamais teria chegado onde estou. Às minhas avós Antônia e Darcy, que me mostraram o amor e carinho incondicional. Vocês duas são o meu maior exemplo de força e coragem. Suas histórias de vida me inspiram todo dia a ser alguém melhor. Se hoje eu tenho completa noção de que sou o dono da minha história e tenho o poder de, através do trabalho árduo, me tornar quem eu quiser, é por causa de vocês. Ao meu pai, que desde cedo me ensinou o quão importante são o nosso caráter e as nossas intenções. Quando pequeno, eu não compreendia suas lições e conselhos, mas hoje eu vejo que se eu conheço e valorizo as minhas raízes, é por sua causa. Obrigado por ser o primeiro a me incentivar a ser um homem negro mais forte e consciente. Aos meus queridos avôs Balbino e Manoel. Eu espero, um dia, ter o coração tão grande e puro quanto o de vocês. À minha irmã Larissa, que mesmo tão nova, me ensina tanto. Você é a pessoa mais inteligente que eu conheço. Me alivia pensar que, no futuro, o mundo poderá estar em mãos de adultos iguais a quem você está prestes a se tornar. Eu te amo de verdade! Aos meus irmãos Vitor e Andrei. Eu acho bacana, fico muito feliz em saber que tem pessoas como vocês, que mesmo não sendo meus parentes consanguíneos, são a minha família. Muito obrigado por todas as piadas, conselhos e momentos incríveis que já passamos juntos. Sem vocês, os primeiros anos da minha vida adulta não teriam tido a menor graça. Eu me recuso a viver uma vida sem a presença de vocês dois. Às minhas amigas tão feinhas, mas tão lindas e incríveis, Iara e Gabi. A nossa amizade é a prova de que a vida é tão aleatória, louca e, ainda assim, maravilhosa. O apoio que vocês me deram foi fundamental para a realização desse trabalho. Agradeço à Thaís, que já me atura há tanto tempo. Eu tenho muito orgulho de ter você como uma das minhas amigas mais antigas. Eu te admiro muito, desde os meus 13 anos de idade. Obrigado por todas as histórias que já passamos juntos. Aos meus colegas de curso, que tornaram esses últimos anos muito mais leves e suportáveis. Eu agradeço por todas as festas, as conversas durante os intervalos das aulas e as madrugadas que passamos acordados juntos finalizando trabalhos que pareciam ser intermináveis. Eu quis tanto que a faculdade acabasse logo e agora que chegou ao fim, eu gostaria que ela durasse só um pouco mais, por causa de vocês. Luana, Bia, William, Gustavo, Mari Russo, Mari Saguias e Thaís, obrigado por fazerem parte dessa caminhada cheia de altos e baixos comigo. Também agradeço ao meu professor, João Freire, que ainda em meu terceiro período da faculdade, me deu a certeza de que estou seguindo o caminho profissional e acadêmico certo, exercendo um trabalho que amo. Como orientador desta monografia, você me deu dicas valiosíssimas e muito enriquecedoras que serão levadas para além da minha vida universitária. Não posso deixar de agradecer ao meu amigo mais lindo e carinhoso de todos, que também é o cão mais gatinho que eu já conheci. Jacaré, você me ensina o que é o amor incondicional todos os dias. Meu coração se enche de alegria toda vez que eu abro a porta do nosso apartamento e você vem me cumprimentar com seus saltos e lambidas. Obrigado por deixar eu cuidar de você! RESUMO Este trabalho tem como objetivo definir os limites impostos para que as imagens de artistas negros de funk, assim como as suas obras, tornem-se adequadas às demandas do mercado e, consequentemente, sejam bem recebidas pela mídia. No decorrer da pesquisa, foram abordados conceitos tais quais os de representação, estereótipo e poder, discutidos por Stuart Hall (2016), ao mesmo tempo em que foram relacionados com a obra Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer (1947), onde os autores discorreram sobre a indústria cultural e seus produtos. O funk como música de massa e as imagens de celebridades negras, resultados de um processo intenso de celebrização, foram analisados segundo às imposições mercadológicas para que ao fim da monografia seja realizado um breve estudo de caso acerca das carreiras da cantora Ludmilla, uma das maiores da atualidade no Brasil, e do produtor musical DJ Rennan da Penha, idealizador do maior baile funk do Rio de Janeiro, condenado a seis anos e oito meses de prisão por “associação ao tráfico”. Palavras-Chave: Celebridades negras; Indústria Cultural; Funk; Representação. ABSTRACT This study aims to define the limits imposed to the images of black funk artists, as well as their works, so they can become adequate to the demands of the market and, consequently, can be well received by the media. In the course of the research, concepts such as “representation”, “stereotype” and “power”, discussed by Stuart Hall (2016), were addressed, at the same time as they were related to Adorno and Horkheimer's Dialectic of Enlightenment (1947), where the authors discussed the concept of cultural industry and its products. Funk music as popular genre and the images of black celebrities, products of an intense process of the creation of celebrities, were analyzed according to the market impositions so that by the end of this thesis it is possible to make a brief case study about the careers of singer Ludmilla, one of the biggest nowadays in Brazil, and DJ Rennan da Penha, creator of one of the biggest funk parties in Rio de Janeiro, sentenced to six years and eight months in prison for "criminal association." Keywords: Black celebrities; Cultural Industry; Funk; Representation. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – MC Beyoncé antes da fama ................................................................................50 Figura 2 – MC Beyoncé após sua primeira transformação, como MC Ludmilla ................... 53 Figura 3 - Ludmilla após sua renovação de visual ................................................................ 54 Figura 4 – Rennan e sua namorada Lorenna no Egito .......................................................... 58 Figura 5 – Rennan segurando as supostas armas de brinquedo ............................................. 59 Figura 6 – Rennan, na segunda imagem, cumprimentando o grupo de traficantes ................ 60 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10 2 DO SOUL AO 150 BPM: UM BREVE HISTÓRICO DO FUNK NO BRASIL ............... 14 3 A CELEBRIDADE NEGRA E A INDÚSTRIA CULTURAL .......................................... 22 3.1 O BRANQUEAMENTO DE INDIVÍDUOS NEGROS .......................................................... 24 4 O FUNK E A INDÚSTRIA CULTURAL ........................................................................ 37 4.1 A CRIMINALIZAÇÃO DO FUNK ....................................................................................... 40 5 LUDMILLA E RENNAN ................................................................................................ 49 5.1 DE MC BEYONCÉ A LUDMILLA ...................................................................................... 49 5.2 DA GAIOLA PARA O MUNDO: A TRAJETÓRIA DE DJ RENNAN ......................... 56 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 66 10 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho examina um fenômeno relativamente recente no Brasil, por isso não muito estudado e abordado em estudos acadêmicos realizados no país, apesar de tratar-se de um tema que compõe e rodeia cotidianamente a vida de qualquer indivíduo, uma vez que é um objeto estreitamente ligado à cultura de massa e à indústria cultural: celebridades. Sendo fortemente influenciado pela minha vivência como homem negro, fui levado a criar recortes no tema levando em consideração questões de raça, portanto nas páginas a seguir serão discutidos assuntos que permeiam as vidas de celebridades negras brasileiras. O propósito inicial desta monografia era analisar e debater as vias seguidas para a construção da imagem da celebridade negra no Brasil, focando em artistas que operam principalmente na indústria fonográfica, porém ao consultar o livro Cultura e Representação, de Stuart Hall (2016), e explorar mais detalhadamente sua análise acerca da representação, estereótipo e poder, fui levado a questões relacionadas ao controle hegemônico dos meios de comunicação no Brasil: (a) “de que maneira a celebridade negra é representada no Brasil?” e (b) “como o funk, enquanto instrumento de trabalho dessas celebridades, é recebido e retratado pela mídia?”. Levando-se em consideração que os detentores do poder dos meios de comunicação brasileiros são entidades brancas, corpos negros adentram o imaginário popular sendo constantemente classificados como os “outros”, e por isso é comum que o discurso midiático em torno de celebridades afrodescendentes seja carregado de conotação de exotismo, desvalorização e empobrecimento destes mesmos. Como resultado, o negro no Brasil é representado de maneira falha e escassa; existe um processo de invisibilização do negro junto à publicidade e produtos culturais da nossa sociedade, que é resultado da negação da possibilidade de que o mesmo se integre aos meios de comunicação. A imagem do indivíduo negro raramente está presente nos meios de comunicação, mas quando isso ocorre, é de modo caricato e padronizado, o que contribui para a perpetuação e naturalização desses estereótipos, que quase sempre são utilizados negativamente. Dessa forma, as características que constroem a identidade da população negra no Brasil são atribuídas a noções antônimas à valorização da sua etnia. Com o avanço atual dos movimentos sociais, grupos minoritários que até então eram silenciados e ocultados na mídia, passaram a ocupar espaços que antes lhe eram negados e reivindicaram questões acerca de sua valorização e reconhecimento. A noção mercadológica 11 de que tais grupos desejam se ver representados para então consumir também foi um fator importante para a nova forma de construção e representação da imagem de corpos negros que, apesar de lenta e progressivamente, ocorre nos dias atuais. É notável um limitado esforço para que o negro passe a ocupar papéis de protagonismo na publicidade, por exemplo, sem necessariamente exercer funções empobrecedoras, apesar desse acontecimento ainda não ser relativamente comum e indivíduos brancos ainda ocuparem posições privilegiadas nas mídias em que são representados, na maioria dos casos. Usando-se da reflexão dos tópicos mencionados anteriormente, foi possível criar a problematização onde reside a questão final e principal desse trabalho: quais são as condições estabelecidas para que um indivíduo negro possa se tornar uma celebridade, na mídia brasileira? Até que ponto as características pertencentes à negritude e cultura negra são exaltadas no Brasil? Para responder às perguntas previamente mencionadas, foi feita uma análise de dois casos que se assemelham em seus inícios e meios mas são opostos em seus resultados: a construção da carreira e imagem da cantora Ludmilla, que surgiu no cenário musical como uma jovem negra periférica, MC de funk, e que aos poucos alcançou aclamação nacional, se tornando uma das maiores cantoras do país; e do DJ Rennan da Penha, que cresceu na periferia do Rio de Janeiro, se lançou como produtor musical para MCs de funk e viu sua carreira crescer progressivamente, fazendo repercutir não só nos famosos bailes realizados nas favelas carioca mas em todo o Brasil, perpassando por diferentes classes sociais. Apesar de os dois artistas em questão terem alcançado o sucesso comercial traçando caminhos parecidos e de seus trabalhos também serem muito semelhantes (vale notar que os dois já trabalharam conjuntamente mais de uma vez), enquanto Ludmilla se consolida como uma das principais representantes da música popular brasileira da atualidade, Rennan da Penha foi acusado de associação ao tráfico de drogas pelo conteúdo das músicas que produzia e pela sua atuação em um dos bailes funk mais famosos do Rio de Janeiro, o que o levou a ser condenado a seis anos e oito meses de prisão, em regime fechado. Para que as lacunas encontradas durante a pesquisa sejam preenchidas, o método utilizado foi a análise crítica de arquivos, que consiste no estudo de materiais já existentes, provenientes tanto de livros quanto de artigos científicos. Também foram analisados anais de eventos, imagens publicitárias, entrevistas para a mídia impressa ou audiovisual e documentários disponibilizados no YouTube, sendo esses três últimos fundamentais para a elaboração do último capítulo deste trabalho. 12 A bibliografia desta monografia é composta principalmente por estudos raciais acerca da midiatização de indivíduos negros, que em sua maioria pautam a má representação dos mesmos e trabalham em cima de conceitos como negritude e branqueamento, assim como pesquisas nas quais seus autores discorreram sobre os processos de celebrização de artistas negros e participantes da cena do funk. O primeiro capítulo deste trabalho foi dedicado a um breve histórico do principal instrumento que levou Rennan da Penha e Ludmilla à fama: o funk. O termo estrangeiro, dado a um dos principais movimentos etnoculturais da música norte-americana, também foi adotado porbrasileiros, após um processo repleto de ressignificações do termo e da reestruturação da forma como se propagava a black music no Brasil, como indicador de um dos gêneros musicais mais populares do país, na atualidade. Para traçar a história do ritmo, teve-se como base principalmente os trabalhos de Fornaciari (2011) e Vianna (1997), que se dedicaram a analisar a história do movimento, seus entraves e a relação do mesmo com o público. As noções de celebrização também foram traçadas no segundo capítulo, levando-se em conta os conceitos estudados por Hall (2016) para que fosse compreendido quais são os empecilhos enfrentados por pessoas negras no processo de representação simbólica realizado nos meios de comunicação, como a exclusão e demonização de indivíduos negros, assim como o branqueamento de suas características, guiados pelo ideal historicamente estabelecido do colorismo. A discussão de ideias apresentadas nos textos de Navarro (2014), D’avila e Perera (2017), Nascimento (2011), Martins (2015) e Strozenberg (2006) foram úteis para a composição desse capítulo pois abordam as condições impostas para que a população negra seja representada, nos raros casos em que isso ocorre. No terceiro capítulo, foi analisada a relação do funk e do artista de funk com a indústria cultural. A maneira a qual o ritmo vindo das periferias se adequou ao mainstream e possibilitou o diálogo das classes subalternas com toda a sociedade foi um dos principais tópicos desse segmento do trabalho, tendo-se o respaldo dos textos de de Trotta (2005), Viana (2010) e do trabalho conjunto de Brittos e Oliveira (2005). Ao final deste segmento foram apresentadas as repressões que o funk ainda sofre, levando-se em conta a criminalização não só do ritmo, mas também da pobreza e da negritude. As obras de Barbosa (2011), Cymrot (2011) e Novaes e Palombini (2017) foram usadas para que tal problemática fosse discutida. No quarto e último capítulo foram delineadas brevemente as carreiras de Ludmilla e DJ Rennan da Penha, com base em reportagens e entrevistas dadas pelos dois artistas, relacionando suas trajetórias com os conceitos e discussões realizados previamente neste trabalho. 13 Por fim, nas considerações finais, será chegada a conclusão a respeito dos limites que as celebridades negras e o funk devem estar dentro para tornarem-se relevantes e serem bem recebidos pela mídia. O corpus teórico deste trabalho é baseado, em sua maior parte, na obra Cultura e Representação de Stuart Hall (2016), que discutiu os conceitos de representação levando em conta o controle hegemônico da mídia que não apenas define mas também racializa o “outro”, ponto que está fortemente presente na atual monografia, uma vez que pretende-se entender a maneira que celebridades negras são representadas dentro de um sistema controlado majoritariamente por indivíduos brancos, onde o racismo é comercializado. Também será considerado o conceito de indústria cultural, discutido nas obras de Adorno e Horkheimer A Dialética do Esclarecimento (1947) e Indústria Cultural e Sociedade (2002) para que se possa compreender melhor como a chamada música de massa se enquadra no mercado, assim como indivíduos e suas imagens tornam-se produtos consumíveis pelo público. 14 2 DO SOUL AO 150 BPM: UM BREVE HISTÓRICO DO FUNK NO BRASIL O termo funk, na verdade, surgiu como uma gíria pejorativa (funky), que tinha como significado “algo que não cheira bem”, comumente usada para insultar pessoas negras. Com o tempo, o termo foi ressignificado pelos próprios negros, que a transformaram em representação e orgulho de sua etnia (FORNACIARI, 2011, p. 15). Em suma, o termo passou a ser relacionado com o engajamento político intrínseco à luta de valorização da cultura negra. O funk carioca teve sua origem nos Estados Unidos, como um gênero musical criado por escravos que trabalhavam em ferrovias chamado de Rhythm & Blues, também conhecido como R&B. Tal estilo musical passou a ser considerado um forte traço na identidade da cultura negra na região sul do país e desdobrou-se, resultando na criação de outros gêneros como o rock e o soul. Por fim, o R&B se estabeleceu como gênero musical, sendo comercial e popularmente conhecido como black music. A black music passou a ser amplamente repercutida no decorrer dos anos 70, nas ruas do Bronx, em Nova Iorque, onde os DJs reproduziam as músicas em caixas de som montadas umas sobre as outras, influenciados pela onda jamaicana do sound system. Influenciado por esse movimento oriundo dos Estados Unidos, a primeira geração do funk teve sua ascensão entre os anos 70 e 80, sendo caracterizada por uma onda musical ligada ao conceito de negritude e que produzia um ritmo parecido com o soul (FORNACIARI, 2011, p. 15). Os primeiros bailes destinados ao público engajado em ouvir funk, conhecidos como “Bailes da Pesada”, surgiram primeiramente na Zona Sul do Rio de Janeiro, promovidos por Ademir Lemos e Newton Alvarenga Duarte, o Big Boy, e aconteciam na casa noturna “Canecão”, nas noites de domingo. Foi somente anos depois, quando outros movimentos não ligados à negritude surgiram e ganharam notoriedade, que essas festas migraram para os subúrbios da cidade, principalmente para a Zona Norte do Rio, onde passaram a ser organizados por equipes de som, o que também será discutido mais à frente. Os bailes da pesada ganharam demasiada atenção e, consequentemente, tomaram espaço na imprensa, onde eram divulgados, o que trouxe resultados tanto positivos quanto negativos para seus organizadores, tendo-se em mente que o regime da ditadura militar era vigente na época. Integrantes influentes do movimento foram investigados pelo DOPS (Departamento de Ordem Policial e Social) pois acreditava-se que as equipes de som eram organizadas por grupos clandestinos de esquerda. Por outro lado, a banda Black Rio, uma das 15 grandes representantes do movimento recebeu apoio de entidades do movimento negro da época, o que serviu como base para a exaltação do ritmo soul como um instrumento de apoio para a superação do racismo, deixando de ser visto somente como música para entretenimento (FORNACIARI, 2011, p. 17). No início dos anos 80, a conscientização negra já não era mais uma das características principais do movimento funk, que após grande divulgação na imprensa se saturou ao mesmo passo em que migrou para o mercado fonográfico, devido à criação de obras cinematográficas que abordavam o tema sem levar em consideração o seu apelo político, como o famoso “Embalos de Sábado à Noite”, o que fez a moda das discotecas se tornar ainda maior. O funk caracterizado majoritariamente pelo entretenimento e como um ritmo musical voltado simplesmente para a diversão de grupos sociais periféricos ao invés de possuir uma simbologia cultural e étnica é uma das principais marcas da segunda geração do funk, conhecida como new funk, que também foi marcada pela chegada de um novo gênero musical vindo da Flórida: o Miami Bass. Também conhecido como Booty Music (traduzido como “música da bunda”), o Miami Bass surgiu na década de 80. Suas principais características são as letras com conotação sexual explícita e batidas mais rápidas, que refletiam a linguagem das ruas de bairros negros de Miami (SILVA, 2017, p. 16). A proximidade geográfica da região com o Brasil facilitou que o ritmo logo fosse adotado por DJs brasileiros e tocado pelos mesmos nos bailes de soul. Os bailes da pesada e o funk passaram a receber uma notoriedade que até então era inédita junto à imprensa, em 1986. Segundo Fornaciari: Rádios como a FM Tropical passou a manter em sua programação um programa totalmente dedicado ao funk, tendo excelente repercussão e alcançando liderança de audiência na região metropolitana do Rio de Janeiro. Equipes como a Soul GrandPrix e a Furacão 2000 bateram recordes de vendas, sendo a primeira equipe contemplada com o Prêmio Disco de Ouro (100 mil cópias vendidas, 70% delas no Rio de Janeiro) (FORNACIARI, 2011, p. 19). A chegada do Miami Bass, que era um gênero musicalmente mais agressivo, trouxe também o aumento da violência dentro dos bailes, que passam a ser fiscalizados mais intensamente pela polícia e imprensa. Nessa mesma época, o movimento funk se fundiu com um outro que já estava dominando os guetos norte-americanos, que poderia ser descrito como “a mistura do movimento negro, da black music, do rap, da dança break, do grafite nas cidades americanas e a adoção de marcas esportivas” (SILVA, 2017, p. 15). Tal fenômeno recebeu o nome de Hip- Hop. 16 O funk e o hip-hop assemelham-se no ponto em que ambos possuem batidas dançantes e letras provocativas. Outro ponto importante a ser analisado é que os dois ritmos não eram cantados; seus artistas fazem o rap (Rhythm and Poetry), que eram usados de maneiras distintas em cada gênero: enquanto no hip-hop, o rap revelava uma grande preocupação com o conteúdo conscientizador na mensagem passada, no funk isso já não é tão importante e valoriza-se a diversão. Foi na era do new funk que o ritmo alcançou uma ampla popularidade nacional, quando já havia se espalhado pelo país, conquistando lugares que até então eram dominados por outros ritmos e as gravadoras do país passaram a investir no gênero musical, por mais que as músicas em sua maioria fossem paródias de antigas músicas famosas. Enquanto as músicas da primeira fase do funk eram, em sua maioria, cantadas em inglês, já na sua segunda fase as letras passaram gradativamente para o português e descreviam o cotidiano da população marginalizada do Rio de Janeiro, que tinham como tópicos principais a violência, pobreza, uso de drogas, armas e criminalidade, embora também não fosse incomum que as músicas retratassem temas relacionados ao amor e outros assuntos. Nos anos 90, influenciado pelo DJ Malboro, a estética do funk passou a ser reestruturada e elementos do dance e electro foram introduzidos em sua composição. A mistura desses gêneros foi aderida por demais DJs nos bailes ao redor do Rio de Janeiro e foi assim que o funk se estabeleceu como o gênero musical que é conhecido até os dias de hoje, também sendo “oficializado” como o Funk Carioca, tendo como uma das suas marcas principais uma batida característica que estava presente em quase todas as suas músicas, que foi apelidada de tamborzão. O tamborzão, elemento introduzido no funk pelo DJ Luciano Oliveira, na canção “Rap do Comari”, se tornou o fator que distinguia o funk dos demais gêneros musicais e também ficou conhecido como o principal motivo pelo qual o público ia ao êxtase ao som das canções tocadas nesse ritmo. O sampling, que é a prática de utilizar amostras de sons oriundos de outras músicas que já existem e até mesmo de elementos da natureza, como o barulho da chuva ou de cachorros latindo, também marcou a sonoridade do funk na década de 1990 e permanece sendo uma técnica presente nas músicas dos dias de hoje. Foi a partir dos samples que surgiu outro elemento que também define a estética do funk carioca: a montagem, que é a “colagem sonora de material oriundo de fontes inusitadas” (BESCHIZZA, 2015, p. 9), onde os DJs muitas vezes combinam duas ou mais músicas diferentes criando outra completamente nova ou 17 simplesmente alteram a musicalidade de uma canção ao adicionar novos elementos sonoros a ela. O funk carioca desdobrou-se em diversos subgêneros que variam de acordo com os elementos presentes nas músicas, que podem ser os assuntos retratados nas mesmas (funk putaria, funk consciente e funk ostentação, por exemplo) e as batidas e ritmos presentes na composição da obra (pagofunk, funk melody e eletrofunk). Devido ao avanço do gênero por todo o país, o funk também passou a ser reproduzido com combinações de estilos musicais regionais como o brega (funk brega) e a música sertaneja (funknejo), por exemplo. Dentre os subgêneros do funk, destaca-se o Ostentação, que devido sua imensa popularidade e propagação na mídia, descentralizou o gênero e dividiu a atenção do seu público ao redor de todo o país, que até então tinham o Rio de Janeiro como maior “fonte” de sucessos e novas vozes do ritmo. Esse subgênero aborda como temática principal a realização pessoal de quem canta, que é explicitada através do poder aquisitivo do eu-lírico, que se vangloria por viver uma vida de luxo, repleta de dinheiro, carros importados, bebidas caras, roupas de grife e joias. Criada nos anos 90, na baixada santista, em São Paulo, essa vertente também impactou e reestruturou o funk carioca, o que será discutido posteriormente neste trabalho. Ainda nos anos 90, o funk passou a ocupar cada vez mais espaços no Rio de Janeiro e se configurou como uma das principais formas de lazer das classes mais baixas da cidade. Consequentemente, o ritmo também se tornou uma das maiores formas de expressão das pessoas que viviam essa realidade. (FORNACIARI, 2011, p. 22) Ao mesmo tempo em que se tornava popular, o funk passou a ser associado aos arrastões no Rio de Janeiro, o que resultou em sua criminalização. O período foi marcado pela expansão do ritmo que acontecia paralelamente com a sua repressão, o que culminou na proibição dos bailes em virtude da Legislação. A mídia passou a retratar o funk como um instrumento utilizado por criminosos para atrair mais jovens à vida do crime e do uso de drogas (COUTINHO, 2015, p. 522). Isso aconteceu devido à grande repercussão do funk pelo país, que se tornou um ritmo cada vez mais aceito por variados segmentos sociais da juventude. A atenção que o funk vinha recebendo somado com a repressão à violência deu origem a terceira fase do gênero, que se iniciou nos anos 2000. Os bailes já não eram mais tão violentos e seu público era composto por pessoas interessadas unicamente em dançar e flertar entre si, ao som de músicas com conteúdo erótico e coreografias sensuais. Embora no funk ainda prevaleça o conteúdo erótico, o movimento ainda traz consigo a preocupação com assuntos políticos e ideológicos através de canções que reivindicam melhores 18 espaços para a população que ocupa o subúrbio carioca e também fazem denúncias à truculência policial e preconceito racial. Em meados dos anos 2000, o funk já era propagado no horário mais nobre da televisão brasileira, assim como nas rádios, mas ainda era visto como o ritmo das favelas, pertencente somente às classes mais baixas. Entretanto, foi nessa mesma época que a equipe Furacão 2000 criou um programa televisivo exclusivamente dedicado a temas relacionados ao funk, que foi transmitido em rede nacional pelo canal CNT e que o ritmo foi exposto para as massas, quando o DJ Malboro se tornou atração residente do programa da Xuxa, na Rede Globo, a maior emissora televisiva do Brasil. Também seguindo esse processo, o baile funk deixa de ser uma atração exclusivamente dedicada às camadas periféricas da sociedade e passa a ser frequentado também por jovens de classe média e alta, fenômeno que se estende até os dias atuais. A popularização do gênero também gerou forte influência sobre o termo “funkeiro”, que se tornou comumente usado; a princípio pejorativamente, como um equivalente ao termo “pivete”, mas depois utilizado para distinguir as pessoas que viviam as realidades retratadas nas músicas. Os MCs de funk ainda não possuíam contratos com gravadoras e também não eram gerenciados por agências, mas faziam parte de equipes de som que possuíam características semelhantes, de forma embrionária. Conforme iam crescendo, os artistas de funk desligavam- se de tais equipes e passavam a integrar espaços maiores e mais visados. Foi no governo de Marcello Alencar que os recursos para a realização dos bailes passaram a ser limitadospor meio da não circulação de ônibus que poderiam levar a população às festas, assim como a falta de policiamento em suas redondezas, sem mencionar que os alvarás que davam permissão para que os bailes acontecessem eram dificilmente liberados. Em maio de 2000 foi criada uma lei que “delimitou as condições em que poderiam ser realizados os bailes funk, que são o principal meio de divulgação dos artistas deste movimento” (COUTINHO, 2015, p. 522). Oito anos depois, tendo como base essa primeira lei, foi instaurada a proibição de bailes funk em todo o estado do Rio de Janeiro, por meio da Lei Álvaro Lins, que recebeu o nome do redator de seu projeto. Foi apenas no ano seguinte, em setembro de 2009, que a Lei Álvaro Lins foi revogada, no mesmo dia em que foi aprovado outro projeto de lei que passou a caracterizar o funk como um movimento cultural legítimo de caráter musical e popular. O surgimento do YouTube, em 2005, caracterizou-se como uma virada importante no gênero, uma vez que o site passou a ser usado como uma potente plataforma para a divulgação dos trabalhos de artistas de funk, que até então tinham suas músicas divulgadas em rádios com 19 a programação voltada para o ritmo ou então em sites relacionados ao assunto que disponibilizavam o download de suas obras. Foi na nova plataforma onde iniciou-se o atual cenário do funk no Brasil, liderado por artistas independentes que subiam seus trabalhos no site para alcançar maior reconhecimento. O uso do YouTube no cenário do funk reestruturou a forma como as músicas são consumidas, uma vez que canais do site serviram como uma alternativa de distribuição das músicas, que é em sua grande parte feita por grandes empresas capitalizadoras de lucro. O funk até então centralizado no Rio de Janeiro alcançou a Baixada Santista, em São Paulo, onde se popularizou aos poucos nas periferias da região. Apesar da discriminação do ritmo em meados da década de 1990, um pequeno grupo de DJs de Santos disseminaram o funk nas discotecas, também contando com o apoio das rádios, que potencializaram o gênero pela Baixada. O Bonde da Juju, formado por Bio G3 e Backdi, ao lançarem a canção que levava o mesmo título do nome da dupla, se tornaram pioneiros em um novo subgênero do funk, que foi chamado de ostentação. Por ter sido um estilo musical difundido por festivais musicais, onde não era permitido o uso de palavrões durante as performances, esse novo segmento se firmou tendo como sua principal característica a exaltação de marcas famosas de roupa e de bens materiais como carros, joias e propriedades imobiliárias, trilhando o caminho oposto do proibidão e do funk consciente. O novo estilo foi disseminado pelas demais cidades do estado até alcançar a capital, onde o rap passou a se adaptar ao funk. Por retratar uma realidade que remetia ao sucesso e realização pessoal, o funk ostentação logo se popularizou entre os jovens das periferias das cidades da Baixada Santista, que se dedicavam a comprar produtos replicados dos que eram descritos nas letras das músicas para se enquadrarem ao estilo de vida enaltecido pelo subgênero. Um elemento fundamental para a popularização do funk ostentação foi o videoclipe. Através do audiovisual os MCs exibem os carros, motos, relógios, roupas, entre outros produtos de marcas de luxo. Konrad Dantas se dedicou a estudar cinema e, influenciado pelos videoclipes de hip-hop estadunidenses, viu uma oportunidade de investimento nessa área, o que resultou na criação da empresa Kondzilla, uma produtora de videoclipes de funk ostentação. Ao se juntar a MC Boy do Charmes para lançar o videoclipe de “Megane”, seu terceiro trabalho como produtor, o empresário alcançou o sucesso, uma vez que o trabalho foi o primeiro do segmento a atingir mais de um milhão de visualizações na plataforma YouTube. Com o crescimento constante de seu sucesso, a Kondzilla se tornou a principal agente do campo de videoclipes de funk ostentação e por estar diretamente inserida no meio 20 cibernético, logo se expandiu para os demais estados brasileiros além de São Paulo. Com a ampliação do público de tais videoclipes, que alcançaram milhões de visualizações por todo o país e consolidaram o canal no YouTube de Kondzilla um dos maiores do Brasil, o funk ostentação se tornou referência nacional e passou a ocupar o espaço uma vez dominado pelo funk carioca (BELO, 2016, p. 104). Após a descentralização do funk, que foi tomado por DJs e MCs da baixada santista, que deram ao ritmo uma nova sonoridade e estética com o subgênero ostentação, o gênero foi aos poucos reorganizado em sua cidade natal, onde o baile de favela voltou a ser exaltado e o funk retomou a sua essência original, com seus paredões e equipes de som. A principal característica que marcou esse novo momento do movimento funk foi a aceleração do ritmo musical, que passou a ser executado em 150 batidas por minuto, substituindo o 130 BPM (beats per minute). O “ritmo louco”, como ficou popularmente conhecido o funk mais acelerado, foi criado pelo DJ Polyvox, que ao aumentar o pitch de uma de suas músicas, viu a oportunidade de tornar o gênero ainda mais dançante. O principal canal de divulgação do funk 150 BPM foi o YouTube, de onde surgiram alguns de seus maiores nomes como Iasmin Turbininha, FP do Trem Bala e DJ Rennan da Penha. Nota-se que nessa nova era do funk, o DJ ou produtor em muitos casos se sobressai ao MC ou cantor ou então se iguala a este. Seja qual for o caso, a pessoa que assina a produção da música ganha um destaque que até então não era comum. O funk 150 BPM demarca a fase mais atual do movimento funk no Brasil. Mesmo tendo como um de seus intuitos resgatar ao ritmo a sua essência original, de um gênero criado dentro das favelas, o mesmo se popularizou e avançou pelos demais estados brasileiros, além do Rio de Janeiro. Não é raro observar artistas de outros segmentos lançarem suas versões do 150 BPM, como é o que ocorre no Nordeste, onde instrumentos de percussão e eletrônicos típicos da região são mesclados com a batida do funk. O movimento funk teve seu início no Brasil sendo respaldado em um cunho majoritariamente ideológico de afirmação e valorização da cultura negra e com o tempo passou a sofrer influência de outros fatores, que redirecionaram suas pautas para assuntos relacionados ao lazer, entretenimento e direitos de jovens periféricos no Rio de Janeiro, para novamente voltar a retratar assuntos pertencentes ao ideário de politização e organização social (FORNACIARI, 2011, p. 26), o que ainda será mais detalhadamente discutido no presente trabalho. A propagação do funk e a sua chegada às mídias convencionais demarca o rompimento de fronteiras que o ritmo conseguiu atingir, deixando de ser só da favela e ingressando ao 21 asfalto também, migrando da periferia para áreas elitizadas, podendo ser encontrado tanto nos famosos bailes como em festas da alta sociedade por todo o país. Entretanto, ainda é preciso ser discutido de que forma o gênero se molda ao mercado e quais são as condições estabelecidas para que o ritmo das periferias ultrapasse as repressões criadas. 22 3 A CELEBRIDADE NEGRA E A INDÚSTRIA CULTURAL Os artistas de funk adentram a esfera mainstream por meio da construção de personas, processo que leva um indivíduo comum a se tornar uma celebridade, e da consequente adesão ao star system. Segundo Rojek (2001, p. 12), as celebridades são fabricações culturais, criadas pela mídia com viés mercadológico pela indústria cultural e são oferecidos ao público em espetáculo. As celebridades são pessoas as quais foi atribuído status de glamour e notoriedade dentro da esfera pública, e pelas quais o público possui uma grande curiosidade por atributos de suas vidas pessoais, seja a sua fama, talentoou imagem (MARSHALL, 1997 apud SILVA, 2017, p. 38). Contrariando o conceito de heróis, as celebridades tornam-se indivíduos fora do comum e conquistam a atenção do público por estarem em evidência midiática e publicitária. O impacto causado pela imagem de uma celebridade deve-se aos agentes “intermediários culturais mediáticos”, que são os “agentes, os publicitários, o pessoal de marketing, os promoters, os fotógrafos, os figurinistas, os maquiadores, os personal trainners e os assistentes de imagem” (PEREIRA, 2018, p. 13). À medida em que as celebridades, indivíduos extraordinários, são criadas, também surge uma discrepância social e cultural entre pessoas e grupos. Dessa forma, a vida célebre se torna um produto midiático da indústria cultural, idealizada como um elemento irreal pela grande massa, que o consome enquanto considera a vida cotidiana como simples e medíocre. Em outras palavras, pode-se afirmar que a indústria cultural, inserida na sociedade do espetáculo, cria indivíduos que, na verdade, possuem aspectos consumíveis, portanto devem atender às demandas do mercado e dos consumidores. Segundo Morin (1989), a massa se identifica com as personalidades célebres e por isso projeta nelas seus desejos a respeito do que gostariam de ter ou de quem gostariam de ser, transformando esse indivíduo num referencial a ser seguido. É principalmente desse modo que a indústria cultural transforma o sentimento gerado pelo endeusamento a celebridades em mercadoria e os aplica em interesses comerciais, já que as celebridades são capazes de vender tudo aquilo que entra em vínculo com a sua imagem. A transição da comunicação de massa dos meios tradicionais para o ambiente virtual resultou no advento da internet e, consequentemente, tornou fácil o acesso a redes sociais, que passaram a estabelecer novos canais de relacionamento entre organizações e públicos, principalmente quando é levado em conta a quantidade de informações que circulam nestes meios diariamente. Tais avanços tecnológicos alteraram a forma de consumo de serviços e bens 23 culturais, que hoje em dia tem as redes sociais e as plataformas de streaming e circulação de produtos audiovisuais como seus principais meios de divulgação (PEREIRA, 2018, p. 13). Essas mudanças também são responsáveis pela alteração do sentido da relevância nas imagens de celebridades, assim como também estreitaram o contato entre o público com as celebridades. A criação das novas tecnologias e a reinvenção das formas de mediação geradas com os avanços dos meios de comunicação teve como resultado a produção de conteúdo e compartilhamento de ideias e opiniões em uma estrutura mais dinâmica, em tempo real, uma vez que “seus canais de publicação e suas plataformas de visibilidade, como o lugar onde personagens anônimos são transformados em celebridades pelo meio web, de maneira quase instantânea” (PEREIRA, 2018, p. 13). As mídias tradicionais também foram reestruturadas devido a popularização da internet, uma vez que os métodos e estratégias utilizados por estas precisaram ser adequados com a finalidade de manterem suas audiências e hegemonia. As imagens das celebridades são associadas às de grandes empresas com o intuito de seja conferida à última e aos seus serviços e produtos as características provenientes do indivíduo célebre. As celebridades fazem parte do conjunto de figuras públicas que ocupam posições que dizem respeito à vida coletiva da sociedade (FRANÇA, 2014 apud SILVA, 2017, p. 46), portanto tornam-se figuras que influenciam campos que não necessariamente estão ligados à cultura e entretenimento, como a economia, religião e política. O desenvolvimento dos meios de comunicação audiovisuais combinados ao star system, a indústria cultural, a liquidez e o imediatismo nas sociedades conferiu às celebridades o status de ídolos da indústria do entretenimento e consumo, o que lhes torna figuras de culto (LOWENTHAL, 1984 apud SILVA, 2017, p. 46). As imagens públicas são essenciais na classificação da representatividade das celebridades como positiva ou negativa, sendo influenciada por diferentes opiniões públicas que ao serem potencializadas pela rede midiática, denotam credibilidade e legitimidade. Enquanto agente atuante na esfera do entretenimento, a imagem pública interfere diretamente a “percepção de sucesso” das celebridades (SILVA, 2017, p. 48). A importância da imagem pública manifesta-se com a necessidade do trabalho da mesma no processo de personal branding, o que contribui para que as celebridades não percam sua relevância no mercado. O termo branding é definido por Kotler e Keller (2006) como o processo da construção de uma marca para a diferenciação de produtos ou serviços desenvolvidos com o objetivo de satisfazer a mesma. Esse conceito é fundamental no momento do consumo, já que é pela marca que o público identifica sinais de qualidade nos produtos da indústria cultural. A identidade de uma marca quando é bem definida, permite que o público a 24 compreenda bem ao mesmo tempo em que causa influência direta no desenvolvimento da confiança do consumidor com o produto. Assim, o sucesso de uma organização está estritamente relacionado com os benefícios emocionais, causadores de sentimentos tais como a felicidade e satisfação, e de autoexpressão que que as marcas proporcionam aos seus consumidores (DAL BÓ; MILAN; TONI, 2012, p. 683). 3.1 O BRANQUEAMENTO DE INDIVÍDUOS NEGROS Como já foi mencionado anteriormente, o indivíduo ao se tornar célebre tem a sua imagem e percepção pública transformada em um produto que, uma vez inserido na indústria cultural, precisa se adequar às demandas do mercado para então tornar-se comercializável e ser bem aceito pelo público consumidor. Quando o conceito de indústria cultural é contextualizado na história do Brasil, um país que ainda apresenta marcas do racismo, e as celebridades negras são levadas em consideração, surge a primeira problemática do atual trabalho: como são representadas as celebridades negras no Brasil? Stuart Hall (2016), em sua obra Cultura e Representação, discorreu sobre o impacto que o conceito de representação tem sobre a cultura. Segundo o autor, “representação significa utilizar a linguagem para, inteligivelmente, expressar algo sobre o mundo ou representá-lo a outras pessoas” (HALL, 2016, p. 31). É por meio da linguagem, de signos e imagens que se confere significado e representação aos objetos, ou seja, a linguagem dá sentido ao mundo. Assim, pode-se interpretar que a representação atua essencialmente no processo em que os significados são produzidos e difundidos entre membros de uma determinada cultura. Na representação, ocorrem dois tipos de processos, ou “sistemas de representação” distintos, sendo o primeiro ligado ao sistema de correlação a um grupo de representações mentais que os indivíduos possuem, enquanto o segundo se relaciona à linguagem que possibilita a existência de “mapa conceitual” partilhado entre os integrantes de uma cultura, através do qual é possível representar ou compartilhar significados ou conceitos (HALL, 2016, p. 35). Segundo Hall (2016), “um mapa conceitual compartilhado não é o bastante”, pois também é necessário que as pessoas possam representar e trocar sentidos e conceitos entre si, o que só acontece quando é estabelecida uma linguagem comum entre estes indivíduos (HALL, 2016, p. 36-37). Sendo assim, os sistemas de representação são traduzidos por meio de um processo mental que consiste na maneira a qual os seres humanos foram ensinados a referir o mundo, as pessoas e os eventos: a construção de signos. Tais signos significam ou representam 25 os conceitos e as relações conceituais que, quando associados, formam os sistemas de significado de uma cultura. A relação entre signo, conceito e objeto nos sistemas de representação citados é arbitrária, uma vez queestá ligada a uma determinada construção social aceita e reconhecida como tal, embora pudesse possuir uma estrutura oposta. Como exemplo, o autor se aproveita do uso da palavra “árvore” – as letras Á, R, V, O, R, E em nada se assemelham a uma árvore na natureza, da mesma forma como a fonética da palavra também não possui relação alguma com este objeto, mas ainda assim esta palavra é designada para representar uma “planta grande que cresce na natureza”. Quando comparamos o uso da palavra “árvore” no idioma português com as de outros idiomas, como a do inglês (tree) ou francês (arbre), podemos perceber que as letras, assim como a pronuncia, das palavras são distintas, mas servem para se referir o mesmo objeto (HALL, 2016, p. 40-41). Quando os sistemas conceituais e linguísticos são mesclados arbitrariamente, são estabelecidos códigos que possibilitam os sujeitos a falarem e ouvirem inteligivelmente e estabelecer a tradução entre os conceitos criados e as línguas. Segundo Hall (2016), é dessa forma que o “sentido passe do enunciador ao ouvinte e seja efetivamente comunicado dentro de uma cultura” (HALL, 2016, p. 42). Esse método de tradução não é inato ao ser humano e nem constitui a sua genética; ele é criado como resultado de um conjunto de convenções sociais. É dessa maneira que os seres humanos, desde a sua infância, já não podem ser considerados somente como indivíduos biológicos, mas sim como sujeitos culturais que, segundo Hall, aprendem o sistema de convenções e representação, os códigos de sua língua e cultura, o que as equipa com uma habilidade cultural e permite que elas atuem como sujeitos culturalmente competentes. Não porque esse conhecimento esteja impresso em seus genes, mas porque elas aprendem suas convenções e, então, gradualmente se tornam “pessoas cultas” – ou seja, membros de sua cultura. (HALL, 2016, p. 43) O conceito de representação é abordado por três diferentes teorias: a reflexiva, a intencional e a construtivista. Na primeira, a linguagem atua como um espelho que reflete o sentido tal qual ele já existe no mundo; a segunda sugere que é o interlocutor quem, por meio da linguagem, impõe o sentido no mundo; a teoria construtivista reside na ideia de que os objetos não significam por si só, mas são as pessoas quem constroem seus sentidos através dos sistemas de representação (HALL, 2016, p. 48). Para o autor, a terceira teoria é a mais adequada para definir a sua percepção de representação, uma vez que é nesta mesma onde reside a ideia de que o mundo material não deve ser confundido com os processos simbólicos “pelos quais representação, sentido e linguagem operam” (HALL, 2016, p. 48). O mundo material é incapaz 26 de transmitir sentido e para tal o uso do sistema de linguagens ou qualquer outro que represente os conceitos torna-se necessário. A conexão entre o mundo real, material, e a linguagem não ocorre por uma ligação simples de reflexão, imitação ou correspondência. Na verdade, o significado só acontece por meio das convenções associadas à linguagem que, por sua vez, opera como um sistema de tradução de códigos do mundo, que é adotado comunitariamente pelas culturas, guiando-se por suas características específicas. Portanto, pode-se afirmar que o significado é produzido pelo trabalho da representação. O sentido é produzido pela conexão entre o mundo conceitual, material e significante com os códigos culturais e linguísticos de uma sociedade. Para ilustrar melhor como esse sistema de representação funciona, Stuart Hall utilizou o modelo construtivista de Ferdinand de Saussure, que consiste na construção do signo a partir de dois elementos: o elemento significante (a palavra, a imagem, o objeto material) e o significado (o conceito concedido ao objeto). A correlação desses dois elementos produz signos que, por sua vez, produzem sentido que são utilizados para referenciar objetos, pessoas e eventos no mundo real (HALL, 2016, p. 65). O estudo dos signos, a semiótica, se desenvolve a partir dos estudos de Saussure, o que é apontado por Hall (2016) como fundamento para a abordagem da língua e do significado ao mesmo tempo em que torna possível a aplicação de um modelo de representação numa ampla cadeia de objetos e práticas culturais. Saussure teria sido o responsável pela ampliação da compreensão do conceito de significado, assim como também aprimorou o conceito de signo e estruturou as noções de denotação (o nível descritivo de um objeto) e conotação (o nível que liga o objeto a um determinado tema, conceito ou sentido mais abrangente e cultural), fomentando a interpretação cultural dos processos sociais (HALL, 2016, p. 70). A interpretação do sentido conotativo não é óbvia e os signos são interpretados como fragmentos de uma ideologia – sejam crenças, sistemas conceituais e de valor da sociedade – e, portanto, são mais generalizados e difundidos pelo mundo. Tais significados se relacionam diretamente com a cultura, o conhecimento e a história. Por meio deles a cultura se mescla ao sistema de representação. O nível denotativo se eleva ao conotativo a partir do momento em que se interpreta um objeto levando em consideração a contextualização política, filosófica e história dos signos que o compõem. Os conceitos apresentados até aqui estão relacionados com a maneira pela qual ocorre o processo de celebrização de um indivíduo, que tem a sua imagem pública manipulada e atribuída a características que possam elevar a sua reputação ou então simplesmente conferir a 27 esta mesma um determinado estereótipo, ou seja, uma definição simplista, naturalista e reducionista acerca de seu ser. A estereotipagem pode ser compreendida como o uso de tipos utilizados para a interpretação do mundo, que ocorre por meio de um regime de classificações regidas pela cultura para a decodificação de um objeto seja efetuada. Dessa forma, todas as características “simples, vividas, memoráveis, facilmente compreendidas e amplamente reconhecidas” são levadas em conta primordialmente no momento de análise e interpretação de um determinado objeto, o que resulta na redução, essencialização e naturalização do mesmo e também o torna diferente. A estereotipagem também funciona como um método de distinção entre o “normal e aceitável” e o “anormal e inaceitável”, o que ocasiona a exclusão de tudo aquilo que é diferente. Hall (2016) descreve esse fenômeno da seguinte maneira: A estereotipagem facilita a “vinculação”, os lações, de todos nós que somos “normais” em uma “comunidade imaginária”; e envia para o exílio simbólico todos Eles, “os Outros”, que são de alguma forma diferentes, “que estão fora dos limites”. Mary Douglas (2014), por exemplo, argumentou que qualquer coisa que esteja “fora de lugar” é considerada contaminada, perigosa, tabu. Os sentimentos negativos agrupam-se ao seu redor, é algo que deve ser simbolicamente excluído para que a “pureza” da cultura seja restaurada. (HALL, 2016, p. 192) Este funcionamento da estereotipagem se torna fundamental para a compreensão do terceiro método ponto a respeito deste conceito: a estereotipagem se manifesta em lugares onde é estabelecida uma grande desigualdade de poder. O estereótipo é conferido a um grupo excluído ou subordinado e age em função de simplificar e reduzir a existência do “Outro”. O estabelecimento da normalidade (ou seja, o que é aceito como “normal”) através de tipos sociais e estereótipos é um aspecto do hábito de grupos de decisão (...) que tentam moldar toda a sociedade de acordo com sua própria visão de mundo, sistema de valores, sensibilidade e ideologia. Essa concepção de mundo está tão clara para esses grupos, que fazem com que ela pareça (como realmente parece para eles) “natural” e “inevitável” para todos e, na medida em que têm sucesso nessa empreitada, eles estabelecem sua hegemonia. (DYER, 1977, p. 30 apud HALL, 2016, p. 193)Como fruto do racismo no Brasil que foi fundamentado na prática da escravidão, a qual durou por mais de três séculos e foi abolida a pouco mais de cem anos, o grupo que mantém a hegemonia é constituído majoritariamente por indivíduos brancos e pertencentes a elite. A Lei Aurea, assinada em 1888, libertou os escravos negros do país, mas não os isentou da marginalização na sociedade, assim como manteve o acesso ao trabalho distribuído desigualmente, deixando as posições subalternas para serem ocupadas pela população negra. Ao mesmo passo em que os escravos negros conquistavam sua liberdade, surgia no Brasil a necessidade da construção de uma identidade que representasse o país como uma nação 28 civilizada. As elites nacionais se basearam em teorias racialistas para criar uma imagem do país na qual a população negra não fazia parte. Dessa forma, foi difundida a inferioridade da etnia negra, que era apresentada como animalesca e incivilizada, o que levou os negros a ocuparem as posições mais desprivilegiadas da sociedade. Diante do cenário apresentado, deu-se início ao desenvolvimento do processo de branqueamento da população brasileira, o que teve como consequência o investimento das elites na imigração de trabalhadores europeus para o Brasil para que esses colaborassem com o clareamento da nação (WINCH; ESCOBAR, 2012, p. 229). A premissa de que uma cultura se sobrepõe à outra resulta na sobreposição de indivíduos entre si. Segundo Navarro (2014), a estrutura dessa hierarquia social “determina lugares sociais pouco (ou nada) alinháveis justamente porque a ideia de uma supremacia cultural branca aloja o negro nos extratos sociais inferiores e nos lugares culturais menos valorizados” (NAVARRO, 2014, p. 4). É a partir dessa ideia que se desdobra a síntese colonialista, planejada pelas elites brasileiras, que confere à população negra a imagem bestializada, relacionada ao atraso e degradação social. “O bandido, o degenerado, o vagabundo, o sujo e o bruxo foram apenas alguns dos estereótipos vinculados aos ex-escravos” (WINCH; ESCOBAR, 2012, p. 230). Em contraposição a imagem do negro, as teorias racialistas pregavam que os europeus se desempenhavam melhor em atividades políticas, econômicas e sociais por estarem situados em uma posição geográfica favorável, com um clima que era considerado ideal, o que resultava em seu sucesso social e econômico (RANGEL, 2005 apud D’AVILA; PERERA, 2017, p. 3). Com base nessas ideias foi constituído o racismo, uma teoria pseudocientífica racionalizada que considerava os povos não brancos como incapazes de ascensão nos campos de importância para o desenvolvimento de uma sociedade (D’AVILA; PERERA, 2017, p.3). Enquanto a miscigenação e a mestiçagem eram consideradas males a serem evitados na Europa, no Brasil elas já existiam em grande escala e, portanto, já não era possível distinguir tão claramente a população negra da branca. Assim, com a presença do mestiço em solo brasileiro impediu o avanço das teorias deterministas no país, o que não impediu que tais teorias fossem absorvidas pelos pensadores brasileiros que tinham como objetivo resolver o problema racial que retardava a prosperidade econômica e social do Brasil (MUNANGA, 2008 apud D’AVILA; PERERA, 2017, p. 4). Foi encontrada na miscigenação uma esperança para o desenvolvimento da sociedade, baseado no clareamento da nação, que tinha o mulato como símbolo do progresso nacional. Foi assim que o branqueamento passou a ser considerado 29 um problema do negro, que descontente e desconfortável com sua condição de negro, procura identificar-se como branco, miscigenar-se com ele para diluir suas características raciais. Através deste trecho percebe-se a necessidade do negro em miscigenar-se com o objetivo de embranquecer sua descendência (BENTO, 2002 apud D’AVILA; PERERA, 2017, p. 5). Com base nesses moldes, a identidade nacional foi construída, demarcando diferenças entre os indivíduos da sociedade. Os estereótipos criados no período colonial, derivados das teorias de branqueamento, ainda resistem no imaginário da população brasileira, não somente como um elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente que age ativamente na cultura do país. Entretanto são apresentados subjetiva e veladamente, tendo se transformado e adaptado à contemporaneidade enquanto se propagam pelos meios de comunicação da atualidade e encontram-se presentes nos campos da indústria cultura, sendo a mídia e publicidade alguns deles. A hierarquia socioeconômica do período colonial brasileiro, baseada principalmente nas teorias racialistas já citadas, prolongou-se até os dias atuais. O atual cenário da nossa sociedade ainda é análogo ao dos séculos passados e ainda é marcado por “representações residuais hegemônicas do sujeito masculino-branco-ocidental” (NAVARRO, 2014, p. 2). Como consequência disso, os discursos midiáticos são controlados por esse grupo que conquistou o poder historicamente. A publicidade atua como agente persuasivo no campo da comunicação, sendo um dos principais meios pelo qual grupos hegemônicos possam estimular e modificar comportamentos e consumos da sociedade. Quando é levado em consideração o perfil do grupo que detém o domínio dos grupos que controlam os veículos de comunicação e os resquícios históricos que ainda posicionam determinados grupos socioeconômicos abaixo de outros, observamos que enquanto os negros ainda ocupam as margens da sociedade, a etnia branca é constantemente valorizada em relação às demais e ocupa os espaços mais privilegiados na publicidade (NAVARRO, 2014, p.2). As imagens publicitárias são ideologicamente marcadas e deixam transparecer as relações de poder hegemônico, seja no campo político, econômico, cultural ou social. A mídia, por sua vez, torna-se um dos fatores principais no estabelecimento e perpetuação das relações hierárquicas na sociedade brasileira. As grandes empresas utilizam o mercado publicitário para anunciar seus produtos e serviços com a finalidade de que a venda ocorra de forma rápida e constante até que se alcance o limite do que é possível ser produzido e o limite numérico dos segmentos de consumidores 30 que visam. Torna-se papel principal das agências de publicidade desenvolver campanhas que atinjam e sensibilizem o público alvo da melhor forma possível para que este seja convencido a comprar o que está sendo anunciado. Dessa forma a propaganda de tais serviços e produtos colabora não só para que as mercadorias circulem por menos tempo, mas age como produtora e reprodutora de identidades segmentadas. A circulação de uma imagem publicitária, seja por qual veículo for, atua significativamente na construção de identidades. Tal imagem será proveniente da indústria publicitária, cujo o discurso não se limite somente à venda de bens e símbolos, mas também acaba por resultar na propagação de uma ideologia. Todo indivíduo ao se deparar e ser efetivamente atingido por uma determinada peça publicitária, não somente consome o produto ou a imagem que está sendo anunciada, mas também acaba por consumir e produzir as mensagens contidas em tal peça. Isso ocorre pois quando se reconhece que ao consumir também se pensa, se escolhe e reelabora o sentido social, é preciso se analisar como esta área de apropriação de bens e signos intervém em formas mais ativas de participação do que aquelas que habitualmente recebem o rótulo de consumo. Em outros termos, devemos nos perguntar se ao consumir não estamos fazendo algo que sustenta, nutre e, até certo ponto, constitui uma nova maneira de ser cidadão. (CANCLINI, 1999, p. 54-55 apud NASCIMENTO, 2011, p. 19) Ou seja, o indivíduo ao consumir tais mensagens carregadas de ideologias, pode adotá- las como suas ideologias próprias e tê-las como agentes interventores nos seus hábitos cotidianos. O mesmo ocorre na criação, reforço e difusãode estereótipos relacionados à população negra. Por muito tempo, principalmente na década de 1980, pessoas negras foram excluídas do processo de divulgação publicitária, seja como os indivíduos representados ou como consumidores em potencial. As grandes empresas, “por mais que escondam os preconceitos étnico-raciais enraizados na sociedade brasileira” (NASCIMENTO, 2011, p. 20), não associam suas marcas e a imagem de suas mercadorias à pessoas negras pois correlaciona a negritude ao conceito de pobreza e, consequentemente, não enxergam no povo negro um mercado próspero, uma força econômica (MARTINS, 2015, p. 44). Martins (2015), ao analisar entrevistas publicadas em uma edição de 1988 da Revista Propaganda, concluiu que o negro ainda não era visto como um cidadão. Apesar dos publicitários da época reconhecerem a existência do racismo vindo das agências e empresas anunciantes, eles não se preocupavam com a temática e, como consequência, não abordavam temas relacionados aos direitos fundamentais ou tratamento igualitário, uma vez que a associação do negro à pobreza era mais relevante (MARTINS, 2015, p. 45). 31 A negritude atrelada à pobreza se torna um item classificatório no momento da escolha dos (as) modelos que atuarão nos anúncios publicitários, sendo que a não preferência pela cor escura (preta e parda) pode ocorrer em decorrência do racismo camuflado presente na sociedade brasileira (NASCIMENTO, 2011, p. 21). Em detrimento do que foi discutido nos parágrafos anteriores, o conceito de raça, originalmente desenvolvido pelas ciências, perde o seu sentido biológico e passa a ser carregado de ideologia. O termo raça expressa subjetivamente a relação de poder e dominação da etnia branca sobre negros e é usado como justificativa às violências contra a população negra, tendo como base a superioridade intelectual e física do povo branco em detrimento aos demais, que foram colonizados. A compreensão do real significado intrínseco ao termo raça é útil para a maneira a qual o racismo opera na sociedade. A mídia brasileira não é abertamente racista, uma vez que o racismo no Brasil não acontece nitidamente. A ideia de hierarquia racial é camuflada pela ideologia de que o Brasil é um país onde não existem conflitos étnico-raciais e a “democracia racial” prevalece. No entanto, a prática do racismo pode ser observada em pequenos modos do cotidiano, como Couceiro de Lima (2006) observou: “O racismo, como camaleão, raras vezes ganha contornos explícitos (...) Em outras ocasiões, bem mais frequentes, ele tem uma conotação mais sutil, se insinua de um jeitinho mais escondido, mais à moda brasileira e, por isso, permanece impune” (COUCEIRO DE LIMA, 2006, pp. 57 apud NASCIMENTO, 2011, p. 18). A negação do racismo também pode ser interpretada como um mecanismo de manutenção do poder da população branca ao mesmo tempo em que dificulta a mobilidade social do povo negro. Segundo Francisco (2018), Essa dificuldade se dá por meio da discriminação racial que utilizada como mecanismo da branquitude atribui valores diferenciados a indivíduos de descendência negra em que a gradação de cores presentes na negritude servem ao racismo como instrumento de desvalorização quanto maior sua aproximação com a raça negra (FRANCISCO, 2018, p. 107). A ideia de que quanto maior for a aproximação da etnia de um indivíduo com a raça branca, mais alta é a posição que ele irá ocupar na hierarquia social recebe o nome de colorismo. Essa teoria se baseia na ideia de que o conjunto de características (o fenótipo) do povo europeu é o normal. Portanto, indivíduos altos, de olhos e pele claras e que possuem traços que remetem à “raça ariana” são considerados superiores. Quanto maior for a aproximação das características de um indivíduo a esse perfil, maior se torna a percepção de competência e beleza do mesmo. Mais especificamente, a “ocracia” na pigmentocracia traz consigo noções de valor hierárquico que os espectadores colocam em tais tons de pele. Tons de pele mais 32 claros são, portanto, mais valorizados do que tons de pele mais escuros. Tais preferências têm implicações sociais, econômicas e políticas, já que pessoas de tons de pele mais claros eram freqüentemente - e estereotipicamente - vistas como mais inteligentes, talentosas e socialmente graciosas do que suas contrapartes negras mais escuras. Negros mais escuros eram vistos como não atraentes, de fato feios e geralmente considerados de menor valor. Os padrões europeus de beleza dominaram um povo africano durante a maior parte. (HARRIS, 2008, p.32 apud FRANCISCO, 2018, p. 103). No cenário atual da publicidade, o padrão de beleza exclui a população negra, uma vez que suas características não são associadas ao conceito de beleza. Isso ocorre como resultado da construção social e histórica do Brasil, fundamentada nos conceitos do racismo e colorismo. Além disso, a sociedade brasileira reproduz o que é chamado de “mito das três raças”, que classifica seu povo como pertencentes a três raças diferentes: branca, negra e índia. A primeira assume uma posição privilegiada na hierarquia étnico-social, em contraposição as demais, que estão em constante desprivilegio e compõem as camadas sociais mais baixas (NAVARRO, 2014, p. 7). A exclusão da população negra no mercado publicitário não é o único empecilho no que diz respeito a representatividade desta etnia – o apagamento da identidade negra também é uma questão problemática que sonda a pauta. Por meio da manipulação de imagens ou da maquiagem em modelos negros de peças publicitárias, ocorre a aproximação estética destes à etnia branca. Em outras palavras, a imagem negra é branqueada para que, assim, se torne mais aceitável (NAVARRO, 2014, p. 7). Por exemplo, pessoas negras com a pigmentação da pele mais clara, lábios e narizes finos são representadas com uma imagem mais dócil e educada, enquanto as que apresentam características marcantes da negritude como a boca carnuda, cabelos crespos e pele escura aparecem como indivíduos agressivos ou desprovidos de inteligência. O cabelo, por exemplo, é uma parte do corpo que ganha muito destaque na construção do discurso racista e invisibilizador da negritude, uma vez que ele representa significativamente marcas identitárias do fenótipo de um indivíduo e, por essa razão, também é usado para distinguir negros e brancos, não só no Brasil, mas em outros países também. Por esse motivo, o uso de palavras negativas e positivas se torna comum ao se referenciar a penteados e textura capilar, como observa Gomes (2002): o cabelo crespo é sempre visto como um problema a ser solucionado. Por quê? Porque, no processo histórico, político e cultural brasileiro, ele passou a ser considerado um dos sinais diferenciadores que mais atestam a referência negra e africana (GOMES, 2002, p. 321 apud CORRÊA, 2006, p. 90). O processo desvalorizador da população negra e de suas características age, nesse ponto, associando o cabelo crespo, comum a pessoas negras, como uma característica negativa, 33 o que deu surgimento ao termo popular “cabelo ruim”. Por outro lado, o cabelo liso ou até mesmo definidamente cacheado passa a ser considerado como o “cabelo bom”. Essas classificações expõem, mais uma vez, a estrutura hierárquica na qual o branco, detentor do discurso hegemônico, assume a posição privilegiada e “atribui um julgamento de qualidade (bom ou ruim) a algo que deveria ser denominado por critérios descritivos e mais “objetivos” do fio de cabelo (liso ou crespo)” (CORRÊA, 2006, p. 90). Seguindo essa lógica, as identidades nacionais são formadas sem embasamento demográfico. Na verdade, elas são formadas e transformadas de acordo com as representações da sociedade. Dessa forma, o conceito de nação pode ser definido como um sistema de representação cultural, criado a partir das identidades que são apagadas oureforçadas. Segundo Hall, As identidades parecem invocar uma origem que residiria no passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização de recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões ‘quem somos nós’ ou ‘de onde nós viemos’, mas muito mais com questões ‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios’. (HALL, 2000, p. 108-109 apud NAVARRO, 2014, p. 12). O branqueamento da imagem de indivíduos negros na publicidade evidencia ao mesmo tempo em que afeta a forma a qual estes são representados e representam a si mesmos. A publicidade, assim, atua como um instrumento eficaz de perpetuação da normatização da estética branca acompanhada de implicações racistas. Com a priorização da representação da população branca, restaram aos povos negros os as funções subalternas nas imagens divulgadas por meio dos veículos midiáticos. Os negros e mestiços eram representados somente como escravos ou em funções que independem do exercício intelectual. A presença de pessoas negras nas imagens publicitárias não é sinônima ao desejo das empresas de direcionar seus produtos a esse público; o uso do negro, nesse caso, acontece para representar papéis secundários, como o de serviçais que entram em cena para servir seus patrões, os reais alvos das campanhas. Strozenberg (2006) comenta que o negro é geralmente visto como comprador em potencial para marcas de produtos do ramo de cosméticos que servem para “corrigir” traços característicos da negritude. Por exemplo, o hené, indicado dar ao cabelo crespo, considerado “ruim”, a textura do cabelo liso, o cabelo “bom” (STROZENBERG, 2006, p. 1). Outro ponto pertinente na análise de imagens de pessoas negras e suas características por veículos midiáticos é o oposto do que foi visto até aqui, que seria a valorização de traços 34 negros em indivíduos brancos ou mestiços de pele clara. A boca grossa, a pele bronzeada e os olhos amendoados, nesse caso, são evidenciados e exaltados como aspectos belos, porém isso só ocorre quando tais características enaltecem a “branquitude”. Em outras palavras, esses traços são bem vistos contanto que não sejam diretamente remetidos a negritude (STROZENBERG, 2006, p. 2). Apesar do discurso hegemônico racista associar a negritude à feiura, faz parte do senso comum admitir e ressaltar características do corpo negro, que passam a ser consideradas bonitas. Levando em consideração que, historicamente, enquanto atributos relacionados a intelectualidade e a expressão humana (observar, apontar e falar) foram atribuídos aos brancos, os negros eram associados a animais e a características puramente instintivas e sensoriais. Dessa forma, passou a ser relacionado aos negros as habilidades ditas “naturais”, como a força e a sexualidade, portanto as formas dos corpos negros são exaltadas em determinados casos: o corpo masculino musculoso e o feminino formoso e curvilíneo, por exemplo, são características bem vistas em pessoas negras. As percepções negativas a respeito dos corpos negros e a classificação explícita entre bonito/feio e bom/ruim não são bem aceitas em espaços públicos, como a própria mídia. Essas associações a etnias são feitas dentro de um complexo sistema de representações que exibe ao público suas ideias sem que estas sejam evidenciadas. Por outro lado, é comum que em atitudes corriqueiras os atributos negros e brancos sejam colocados em oposição, sendo o primeiro relacionado a conceitos negativos, diferente do segundo. Isso evidencia que as mensagens racistas transmitidas no discurso hegemônico atingem a sociedade e são assimiladas, mesmo que subjetivamente. O combate e estudo do racismo no Brasil se torna difícil pois suas expressões acontecem cotidianamente, em situações habituais, reservadas no íntimo de cada pessoa. A popularização da Internet trouxe consigo a democratização dos meios de consumo. Tornou-se possível que o consumidor produza o seu próprio conteúdo e manifeste novas formas de comunicação comunitária, que pesam significativamente na alteração da maneira como o sistema de representações midiáticas funcionando. Dessa forma, grupos minoritários conquistaram seus espaços e tornaram-se detentores de um discurso potente, capaz de constranger a grande mídia e fazê-la rever a maneira a qual as representações sociais vinham sido feitas e as adequem às novas demandas mercadológicas, criadas por meio de protestos de tais grupos (FREIRE FILHO, 2005, p. 27). 35 Como consequência disso, as grandes empresas precisaram se adequar à nova realidade ao mesmo passo em que atender as demandas do público-produtor adquiriu uma urgência maior, com o objetivo de que a comunicação se tornasse mais diversificada. Dentro desse contexto, pessoas engajadas com as causas do Movimento Negro e com questões relacionadas à negritude e ao combate do racismo ganharam voz e, por meio das novas tecnologias, deram visibilidade a problemas étnico-sociais que até então não eram levados em consideração como alarmantes para a opinião pública. É assim que começa a mobilização a respeito desse tema e as grandes empresas veem-se pressionadas a incluir o negro no cenário midiático, como consumidor e indivíduo representado. Hoje em dia já é possível observar uma crescente, porém lenta, onda de valorização da etnia negra e de suas características. As marcas passam a adotar um novo posicionamento que não somente inclui o negro em sua comunicação, mas também demonstra a preocupação social com assuntos que dizem respeito a diversidade e questões raciais. Como consequência, mais rostos e corpos negros protagonizam positivamente o discurso hegemônico e o sistema de representação ganha, gradativamente, uma nova configuração: a estética “afro” conquista espaços nos quais tem seus aspectos relacionados ao conceito de beleza, intelectualidade e até mesmo poder aquisitivo. A conquista de novos âmbitos e a produção de novos discursos, que se opõem ao hegemónico, revelam um problema acerca dos conceitos de estereótipo e representação retratados nos estudos de Hall (2016), que levavam em consideração apenas levantamentos amplos, objetivos e sistemáticos, tirados da análise de conteúdos históricos sem o exercício de problematizações mais profundas. Tais estudos, por sua vez, caem em contradição e, assim como os discursos neles contestados, reduzem e essencializam a imagem de grupos minoritários (FREIRE FILHO, 2005, p. 26). Apesar dos discursos moldados em ideais racistas e elitistas serem falhos e trazerem consigo outras questões problemáticas, como o branqueamento, é preciso atentar-se ao fato de que eles também são responsáveis pela criação de novos sentidos socioculturais por indivíduos negros que, a partir disso, ressignificam e criam narrativas inéditas que incidem na maneira a qual suas representações serão efetuadas. As alterações geradas dentro da grande mídia, afetando o sistema de representação em relação a população negra, denunciam também a incapacidade de uma representação “absoluta”, “correta”, a respeito de qualquer objeto que for posto em questão. As expressões da contracultura, intensificadas com a massificação do meio cibernético como plataforma política, possibilitam que a sociedade observe e analise determinados conceitos sob uma nova 36 perspectiva, que não é necessariamente a mais próxima da realidade, mas nos dá a possibilidade de compreendermos com mais clareza a natureza dessas imagens que são constantemente divulgadas pelos meios de comunicação. 37 4 O
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