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Literatura_Portuguesa_II_Impresso-150

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quebreira, uma vontade de adormecer encostada ao seu ombro e de 
ficar assim muitos anos, confortável, sem receio de nada. Que 
sensação quando ele lhe disse: “Vamos casar, hem!” Viu de repente 
o rosto barbado, com os olhos muito luzidios, sobre o mesmo 
travesseiro, ao pé do seu! Fez-se escarlate. Jorge tinha-lhe tomado a 
mão: ela sentia o calor daquela palma penetrá-la, tomar posse dela; 
disse que sim. Ficou como idiota, e sentia debaixo do vestido de 
merino dilatarem-se docemente os seios. Estava noiva, enfim! Que 
alegria, que descanso para a mamã! 
Casaram às oito horas, numa manhã de nevoeiro. Foi necessário 
acender luz para lhe pôr a coroa e o véu de tule. Todo aquele dia lhe 
aparecia como enevoado, sem contornos, à maneira dum sonho 
antigo [...] 
(QUEIRÓS, 1981, p. 21)
Luísa aceitara o casamento com Jorge para garantir a sobrevivência para si e para a 
mãe e também para conquistar a respeitabilidade social, apesar de não estar enamorada de 
Jorge. A conveniência do matrimônio une o desejo de conforto ao status social. Nesse 
contexto codificado por uma organização de interesse que exige fidelidade feminina, a 
amiga Leopoldina, conhecida pelas aventuras amorosas adúlteras, representa uma ameaça 
à autoridade do marido. Não por acaso a informação de que o casal mora na rua Patriarcal é 
dada logo após a discussão entre Jorge e Luísa por causa da visita da amiga de infância.  Os 
olhares da vizinhança e da sociedade vigiam as personagens e também funcionam como 
ferramentas eficazes para que o leitor possa conhecê-las, assim como o olhar de certas 
personagens por meio da focalização interna é utilizado de forma criteriosa por Eça como 
filtro de representação narrativa. Um exemplo pode ser visto no trecho de conversa entre 
Luísa e Leopoldina, quando a primeira medita sobre as diferenças de comportamento entre 
elas:
Às vezes na sua consciência achava Leopoldina “indecente”; 
mas tinha um fraco por ela: sempre admirara muito a beleza do seu 
corpo, que quase lhe inspirava uma atração física. Depois 
desculpava-a; era tão infeliz com o marido! Ia atrás da paixão, 
coitada! E aquela grande palavra, faiscante e misteriosa, de onde a 
felicidade escorre como a água de uma taça muito cheia, satisfazia 
Luísa como uma justificação suficiente: quase parecia uma heroína; 
e olhava-a com espanto como se consideram os que chegam de 
alguma viagem maravilhosa e difícil, de episódios excitantes.
(QUEIRÓS, 1981, p.23)
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