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DESCRIÇÃO O Humanismo, o teatro de Gil Vicente, a lírica e a épica de Camões e suas contribuições para a historiografia literária de Portugal. PROPÓSITO Compreender o contexto e as diferentes manifestações literárias do Humanismo e do Classicismo em Portugal permite ampliar os estudos sobre arte, literatura e história cultural em língua portuguesa. PREPARAÇÃO Tenha em mãos um dicionário de literatura para compreender o vocabulário específico da área. Na internet você acessa gratuitamente o E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, e o Dicionário de Cultura Básica, de Salvatore D’Onofrio. No Portal Domínio Público na internet, você pode ter acesso às principais obras estudadas neste conteúdo. OBJETIVOS MÓDULO 1 Identificar as características do Humanismo português e do teatro vicentino MÓDULO 2 Reconhecer aspectos ecdóticos, estilísticos e temáticos da lírica camoniana MÓDULO 3 Identificar os planos e a estrutura de Os Lusíadas INTRODUÇÃO O estudo da literatura de um povo é uma das formas de compreender os valores de sua cultura, conhecer aspectos de sua identidade, revisitar sua formação histórica e perceber sua contribuição no campo da arte. No caso da literatura portuguesa, esse estudo permite também resgatarmos os laços históricos, culturais e literários entre nossa arte e a de Portugal. Ainda mais quando apreciamos autores como Luís de Camões e Gil Vicente. Por isso, vamos aprender acerca das vastas obras de Gil Vicente e de Luís de Camões, além do contexto histórico-cultural que permeou o universo literário desses dois grandes autores portugueses. Vamos, então, nos aventurar na leitura e nos estudos da literatura portuguesa durante o Humanismo e o Classicismo! MÓDULO 1 Identificar as características do Humanismo português e do teatro vicentino O CONTEXTO DO HUMANISMO EM PORTUGAL A CULTURA RENASCENTISTA PORTUGUESA De acordo com Francisco Falcon (1997), o Renascimento português corresponde cronologicamente ao período que vai da segunda metade do século XV às décadas iniciais do século XVI. É uma época de crise de valores de toda ordem, de rupturas e de continuidades, e pode ser dividida em três núcleos básicos: Escolástica Humanismo Racionalismo pragmático-experiencial Não há fronteiras nítidas entre esses três núcleos, e o mais atuante qualitativa e quantitativamente é o terceiro, por ser a Cultura dos Descobrimentos. Comecemos pelo segundo núcleo, o Humanismo Renascentista, já que a Escolástica é uma continuidade da cultura da Baixa Idade Média. Para nossa breve análise, vamos nos apoiar em Falcon (1997). ESCOLÁSTICA Corresponde ao período final da filosofia medieval. Pode ser entendida como um método para pensar e aprender que conciliava a fé cristã ao pensamento racional caracterizado pela leitura e pelo estudo críticos de obras selecionadas. javascript:void(0) O HUMANISMO RENASCENTISTA PORTUGUÊS O Humanismo Renascentista existiu em Portugal separado da estrutura social e da realidade da vida cotidiana, conseguindo adesões no seio da aristocracia política e dos intelectuais. A perspectiva humanista portuguesa ocorreu em um estado de permanente tensão em face da cultura medieval. Na maior parte das vezes, tentou-se fugir a esse dilema através da superação dialética capaz de eliminar conservando. No início, a conservação prevaleceu sobre a eliminação; só a partir de 1540 é que surgiram condições favoráveis à ruptura, mesmo assim, os humanistas carregavam o estigma de uma suspeita conivência com os hereges. A mentalidade humanística portuguesa, semelhante à do restante da Europa, interessava-se em restaurar textos latinos conhecidos na Idade Média e revelar outros textos, inclusive gregos, desconhecidos ou mal conhecidos pelos medievais. Em Portugal, o Humanismo apresentou um restrito interesse pela Física, buscando quase somente comentários da doutrina aristotélica; fora isso, nutriu um desdém pela prática, cultuando o amor aos ensinamentos da erudição livresca. O espírito renascentista português foi um fenômeno tardio, mas na primeira metade do século XVI, 800 estudantes portugueses, que frequentaram universidades tais como as de Paris, Louvain e Oxford, compuseram uma nata intelectual e desse grupo surgiu o Humanismo Português. Cabe destacar Francisco de Melo, D. Miguel da Silva, D. Jerónimo Osório e os Gouveias. A criação do Real Colégio das Artes, em Coimbra, em 1537, teve para esses novos humanistas um papel de relevante importância. Colégio das Artes em Coimbra (2017). CONTRARREFORMA E O FIM DO HUMANISMO RENASCENTISTA Portugal não conheceu diretamente a Reforma Protestante. A Inquisição e o primeiro Index tiveram um alvo certo: os cristãos-novos (as práticas judaizantes). A Inquisição, a censura e a Companhia de Jesus afastaram os portugueses das principais correntes do progresso científico europeu, o que significou que o ensino escolástico se sobrepôs à cultura humanista do século XVI. Os rumos negativos dessas mudanças tiveram seus tristes efeitos evidenciados no século XVII. INDEX O Index ou Index Librorum Prohibitorum (Índice de Livros Proibidos) era a lista das obras proibidas pela Igreja, como reação à Reforma Protestante e à invenção da prensa. O Index teve sua primeira edição oficial em 1559, com 550 obras proibidas, sendo atualizado à medida que novas publicações consideradas hereges surgiam. javascript:void(0) DIANTE DA INTENÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS DE ASSUMIR O CONTROLE DA EDUCAÇÃO EM TODOS OS NÍVEIS, A RESISTÊNCIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA SOMOU-SE À DOS AGOSTINIANOS E DOMINICANOS. AS CORTES DE 1562 PROTESTARAM CONTRA ESSA INFLUÊNCIA CRESCENTE DOS JESUÍTAS, ESPECIALMENTE QUANTO À ENTREGA DO COLÉGIO DAS ARTES À SUA DIREÇÃO. MAS FOI INÚTIL, POIS O FANTASMA DA HERESIA PARECIA JUSTIFICAR AS CONSTANTES PERSEGUIÇÕES CONTRA OS PROFESSORES, BEM COMO A ESTAGNAÇÃO DO ENSINO, COMPLETAMENTE ENQUADRADO NA METODOLOGIA ESCOLÁSTICA [...]. (FALCON, 1997, p.35). A CULTURA DOS DESCOBRIMENTOS “A SABEDORIA DO MAR”, CAMPOS E REGIÕES DO SABER Terra Brasilis, mapa por Pedro Reinel e Lopo Homem, Atlas Miller, 1519. A “cultura dos descobrimentos”, um núcleo racionalista pragmático da Cultura Renascentista, também nomeado de “Sabedoria do Mar”, divide-se em dois campos: um de linguagem e o outro de pensamento. Em linhas gerais temos, sobretudo, o “campo técnico-prático” com a ciência náutica e o desenvolvimento de instrumentos de precisão; o “campo teórico-positivo”, com estudos sobre Matemática, Astronomia, Geografia, Medicina, Zoologia, Botânica; e o “campo etnológico-prático colonial” com os seus inúmeros quadros informativos sobre Antropologia e Geografia colonial. OS DESCOBRIMENTOS PORTUGUESES Nesse aspecto, cabe ressaltar os estudos socioculturais de Luis Felipe Barreto, ao argumentar que os Descobrimentos portugueses compõem uma parte importante da expansão planetária da Europa. Os antigos conheciam o mar. Os renascentistas, sobretudo os portugueses, enfrentaram os oceanos. Os portugueses dos séculos XV e XVI transformaram “o obstáculo de silêncio e medo que é o grande mar oceano em via de comunicação planetária” (BARRETO, 1989, p. 11-12), e converteram o impossível em possível. OS PORTUGUESES DO RENASCIMENTO SÃO O CORPO E O OLHAR DO PLANETA, O INSTRUMENTO E O SISTEMA COMUNICATIVO QUE ABRE OS HORIZONTES DA HUMANIDADE À HUMANIDADE EUROPEIA (E VICE- VERSA). OS PORTUGUESES DO SÉCULO XVI DESEMPENHAM, NA LÓGICA DA HISTORICIDADE UNIVERSAL, A MISSÃO DE TROCA DO MUNDO E MUNDO DA TROCA [...]. (BARRETO, 1989, p. 13). Os Descobrimentos renascentistas mostram a vanguarda ibérica com a força inovadora e pragmática do seu sistema de conhecimentos. Foram eles que permitiram à Europa uma universal acumulação de bens materiais e espirituais. SAIBA MAIS Podemos dizer que Gil Vicente e Camões não estavam separados dessa autêntica e profunda revolução sociocultural. De certo modo, entram em circuito, com as suas ideias, os três grandes núcleos da cultura do século XVI em Portugal. HUMANISMO E O TEATRODE GIL VICENTE GIL VICENTE Segundo Maria do Amparo Tavares Maleval (1992), os dados biográficos de Gil Vicente são imprecisos. De origem humilde, teria nascido por volta de 1465 em Guimarães e falecido à roda de 1536. Autor de vasta e intensa obra teatral, foi ator, ensaiador, cenógrafo e organizador de festas públicas e palacianas. Foi identificado com um ourives homônimo, autor da Custódia de Belém, com um “mestre de retórica” de D. Manuel, com um alfaiate e com um carpinteiro, mas nenhuma dessas profissões, não relacionadas ao teatro, é provável que lhe tenha pertencido. Seu nome era bastante vulgar à época. Nasceu no reinado de Afonso V, viveu na geração de D. João III e testemunhou a epopeia lusa dos descobrimentos e navegações. Seus autos abrilhantaram as cortes de D. Manuel, D. Leonor e D. João III, e deles recebeu doações e prêmios. Gil Vicente (c.1465 - c. 1536), dramaturgo e poeta português. Retrato no tecto do Salão Nobre dos Paços do Concelho de Lisboa. Sabemos que Gil Vicente trabalhou na preparação de uma edição completa de suas obras, porém, em 1562, veio a lume a Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, efetivada por seus filhos Luís e Paula Vicente. Há muitas falhas nesta “compilação”, omissões, emendas sem justificativas, inclusive algumas peças que se perderam, mas foram mencionadas em índices proibitivos da Inquisição. Sabemos que Gil Vicente publicou em vida as suas peças em folhas volantes, e dessas obras ainda temos impressões dos autos de Barca do Inferno, Inês Pereira, Dom Duardos, Físicos, Lusitânia, Clérigo da Beira, de Amadis de Gaula e do Pranto de Maria Parda; contudo, há autos que desapareceram. Antônio José Saraiva (1970) e I. S. Révah (1973) nos dão uma classificação aproximativa e genérica dos Autos – e uma cronologia, expurgando as falhas presentes na Copilaçam. Veja a seguir: CRONOLOGIA DA COPILAÇAM DE TODALAS OBRAS DE GIL VICENTE 1º) 1502 – Monólogo do vaqueiro ou Auto da visitação 2º) 1504 – Milagre de São Martinho 3º) 1506 – Sermão de Abrantes ou Sermão perante a rainha D. Leonor 4º) 1509 – Farsa da Índia 5º) 1509 – Écloga ou Pastoril Castelhano 6º) 1510 – Écloga dos Reis Magos 7º) 1510 – Moralidade da Fé 8º) 1512 – Farsa do Velho da horta 9º) Cerca de 1513 – Moralidade dos Quatro tempos 10º) 1513 – Moralidade da Sibila Cassandra 11º) 1514 – (reapresentada em 1521) – Fantasia alegórica da Exortação da guerra 12º) 1515 – Farsa Quem tem farelos 13º) 1515 – (reapresentada em 1534) – Mistérios da Virgem ou Auto da Mofina Mendes 14º) 1517 – Primeira moralidade das Barcas ou Barca do inferno 15º) 1518 – Moralidade da Alma 16º) 1518 – Segunda moralidade das Barcas ou Barca do purgatório 17º) 1519 – Terceira moralidade das Barcas ou Barca da glória 18º) 1519 ou 1520 – Moralidade de Deus padre, justiça e misericórdia 19º) 1520 – Fantasia alegórica da Fama 20º) 1520 ou 1521 – Moralidade da Obra da geração humana 21º) 1521 – Fantasia alegórica das Cortes de Júpiter 22º) 1521 – Comédia de Rubena 23º) 1521 – Jogos das Ciganas 24º) 1522 – Pranto de Maria Parda 25º) 1522 – Comédia de D. Duardos 26º) 1523 – Farsa de Inês Pereira 27º) 1523 – Écloga ou Pastoril Português 28º) 1523 – Comédia de Amadis de Gaula 29º) 1524 – Comédia do Viúvo 30º) 1524 – Fantasia alegórica da Frágua de amor 31º) 1524 – Farsa dos Físicos 32º) 1525 ou 1526 – Farsa do Juiz da Beira 33º) 1526 – Fantasia alegórica do Templo de Apolo 34º) 1526 – Moralidade da Feira 35º) 1527 – Fantasia alegórica da Nau de amores 36º) 1527 – Fantasia alegórica sobre a Divisa da cidade de Coimbra 37º) 1527 – Farsa dos almocreves 38º) 1527 – Écloga ou Pastoril da serra da Estrela 39º) 1527 – Mistério Breve sumário da história de Deus; seguido pelo Diálogo sobre a Ressureição de Cristo 40º) Cerca de 1527 – Jogos das Fadas 41º) 1527 ou 1528 – Farsa da Festa 42º) 1529 – Fantasia alegórica do Inverno e do Verão 43º) 1529 ou 1530 – Farsa do Clérigo da Beira 44º) 1532 – (reapresentada nos anos seguintes) – Fantasia alegórica da Lusitânia 45º) 1533 – Farsa da Romanagem de agravados 46º) 1534 – Mistério da Cananeia 47º) 1536 – Fantasia alegórica da Floresta de enganos Quanto à classificação das obras vicentinas, algumas propostas sistemáticas vêm sendo testadas. Proposta de Teófilo Braga (1843-1924) O escritor e político português propôs a seguinte esquematização: teatro hierático, teatro aristocrático e teatro popular. Proposta de Antônio José Saraiva e Oscar Lopes (2005) Restringiram a três grupos as obras de Gil Vicente: as farsas (episódicas), os autos de enredo (desde os cavaleirescos aos cômicos) e os autos de atualidade (satíricos e alegórico-críticos). A TRANSIÇÃO PARA O HUMANISMO: O TEATRO DE CORTES DE JUAN DEL ENCINA E LUCAS FERNANDES Obras de Garcia de Resende, na qual se inclui a Miscelânea onde se defende para Gil Vicente a paternidade do teatro português. Vejamos agora a influência do teatro de Juan del Encina (1468-1529) e Lucas Fernández (1474-1541) na obra de Gil Vicente. A Miscelânea de Garcia de Resende (1470-1536) evidencia o contraste entre Gil Vicente e o teatro pastoril do poeta espanhol Juan del Encina. Del Encina e Lucas Fernández eram rivais e de ascendência castelhana-leonesa. Nunca os estudiosos duvidaram do vínculo, em termos de influência, de Gil Vicente a esses dois autores. As semelhanças foram anotadas com frequência desde aspectos técnico-compositivos, até caracterizações relacionadas com aspectos linguísticos pelas formas dialetais que lhe serviam de suporte (BERNARDES, 1996). MISCELÂNEA Obra dedicada a D. João III, escrita provavelmente entre 1530 e 1533, retrata em versos importantes acontecimentos e personagens da Europa e de Portugal no período que corresponde à metade do século XV e primeiras décadas do século XVI. Partindo do pressuposto de que a influência de autores de expressão castelhana na obra vicentina é um dado consensual, cabe investigar a extensão dessa influência. Vamos aqui destacar três aspectos de confluências entre os autores leoneses e a obra de Gil Vicente. LEONESES Reino de Leão, nativo de León na Espanha. javascript:void(0) javascript:void(0) PRIMEIRO ASPECTO É a associação entre o cômico e o sério: “o pastor é portador de um discurso sério que, ora não se coaduna com o cômico da situação que envolve, ora emerge dele, através de um complexo jogo de ligações contrastivas” (BERNARDES, 1996, p. 110). SEGUNDO ASPECTO No teatro salmantino, o pastor é correlativo de dois temas: o Natal e o Amor. Mas Gil Vicente vai expandir esses âmbitos, “conferindo à figura do pastor todas as virtualidades de uma personagem aberta, oscilando entre os estatutos da metonímia e da metáfora [...]” (BERNARDES, 1996, p.111). SALMANTINO Referente à Salamanca na Espanha. javascript:void(0) TERCEIRO ASPECTO É o recurso a uma gama variada de processos técnico-musicais. Infelizmente, as partituras das obras vicentinas se perderam, o que de fato não ocorreu com as partituras dos dois autores leoneses. GIL VICENTE, UM HUMANISTA? De acordo com Celso Lafer (1978), Gil Vicente viveu em uma época de transição entre a Idade Média e o Renascimento. Porém, comportou-se como um autêntico espécie-medieval. Gil Vicente cita e utiliza a cultura greco-romana clássica de forma pobre e desconexa: marca modesta de um latinista, mas não de um humanista. Gil Vicente foi alheio às preocupações de seu tempo e da expansão marítima, só interessaram a ele os efeitos perniciosos, a desagregação da família, por exemplo. No Auto da Índia, uma das fortes contradições vicentinas é de ter percebido a espoliação dos camponeses, atacado e combatido tal fato, sem, no entanto, abandonar os valores do mundo feudal. O MUNDO SAGRADO E O MUNDO DOS HOMENS Quanto à posição crítica de Gil Vicente, Lafer (1978) a divide em dois aspectos: “mundo sagrado” e “mundo dos homens”. “MUNDO SAGRADO” Gil Vicente compartilha do pensamento medieval pós-manuelino em Portugal. Sabemos que D. João III, ao contrário de D. Manuel,era um fanático religioso. Por isso, sendo este um dos mecenas de Vicente, não estranhamos, por exemplo, que a figura do judeu não encontre espaço: o judeu é carregado de pecado, mau, diabólico e sem dignidade para chegar-se a Deus. A concepção que Gil Vicente apresenta em relação ao sagrado é platônica e implica dois mundos: um eterno e imutável, e outro perecível e finito. Essa Weltanschauung ele herdou provavelmente do escritor, filósofo e religioso espanhol Raimundo Lúlio (1232-1316). “MUNDO DOS HOMENS” Gil Vicente apresenta duas posições. A primeira é a da análise social vigente nas suas farsas: Inês Pereira, Juiz da Beira, Auto da Lusitânia. A segunda é encontrada nos dois textos em que expressa claramente suas ideias: O Sermão de 1506 e a Carta a D. João III (LAFER, 1978, p.30). OS PERSONAGENS OU TIPOS EM GIL VICENTE Na visão de Antônio José Saraiva (1942), os tipos vicentinos estão abaixo da alegoria e acima do caráter individual. Exemplos: A Morte aparece sob a forma de esqueleto, vestida de negro, com voz tumular. O Inverno coberto de agasalhos, o Verão tremendo de febres. A Serra de Sintra, vestida de Serrana. A evolução está na Farsa do Juiz da Beira. Exemplos: A Preguiça é representada por um Preguiçoso dormindo no palco. O folgazão ou brincalhão é representado pelo Bailarino. No Auto de Mofina Mendes, a alegoria já está no próprio nome, que significa entre outras coisas infortúnio. Outro tipo de alegoria é o Frei Paço da Romagem de Agravados (alegoria de Paço e caricatura de Frei). Mas há figuras típicas fortemente idealizadas, como é o caso da personagem Inês, em a Farsa de Inês Pereira. Inês é do latim Agnes: pura, santa. O que já é em si uma ironia em relação à personagem. ESTES VÁRIOS TIPOS SALTAM PARA O PALCO, COMO PERSONAGENS À PROCURA DE UM AUTOR, BUSCANDO QUALQUER OCASIÃO EM QUE POSSAM MANIFESTAR-SE. UM TIPO, COMO JÁ FOI DITO, NÃO É SUSCEPTÍVEL DE CRIAR UM CONJUNTO DRAMÁTICO. O DRAMA É O PROBLEMA, EM QUE O INDIVÍDUO SE DEBATE: O TIPO É O HÁBITO, A COISA FEITA, A CONDENSAÇÃO: É DO INDIVÍDUO A PARTE JÁ PETRIFICADA, EXTERIORIZADA. UM TEATRO DE TIPOS EXIGE, POIS, OU UMA SÍNTESE DE QUE AQUELES SEJAM ELEMENTOS, OU UM QUADRO, UM ARRANJO EXTERNO, OU AINDA UMA NARRATIVA. (SARAIVA, 1942, p.70). A UNIDADE DRAMÁTICA VICENTINA Segundo Saraiva (1942), Gil Vicente não consegue encontrar uma unidade dramática. No seu teatro, há tipos, mas faltam os caracteres; há casos, mas não há problemas ou dramas. O teatro romanesco vicentino se distingue do dramático. Vejamos essas diferenças conforme Saraiva (1942): O dramático Põe à prova um indivíduo ou certo caráter em uma determinada situação. O romanesco Narra sucessivos acontecimentos, ao longo dos quais o caráter ou o tipo são observados e descritos, mas sem implicar a situação. O dramático Supõe obrigatoriamente o indivíduo e o caráter, postos à prova pela situação. O romanesco Não supõe necessariamente o indivíduo e o caráter, no entanto, pode se satisfazer com o tipo. No teatro de Gil Vicente essa distinção se revela extremante verdadeira, já que em seu teatro romanesco não encontramos nem a situação, nem o caráter. SAIBA MAIS Nas peças de Gil Vicente, nem os personagens principais são os mesmos no decorrer das várias cenas. Porém, mesmo quando há coerência e permanência dos personagens principais, é o processo narrativo que prolonga a ação ao longo dos episódios. Este é o caso de a Farsa de Inês Pereira, em que há sucessivas fases, indo do namoro ao segundo casamento de Inês. Os processos narrativos nas obras vicentinas abarcam espaços grandes de tempo e acontecimentos que se engendram uns aos outros. OS SIMBOLISMOS O simbolismo na Idade Média era uma construção fechada e íntegra. O valor simbólico de cada coisa resultava de que fazia parte de uma construção. A unidade estava no todo. Na concepção simbólica partilhada pelo escritor florentino Dante Alighieri (1265- 1321), por exemplo, o universo visível é um reflexo da harmonia dos céus, como se fossem duas escalas de notas musicais, uma das quais é uma aproximação limitada da outra (SARAIVA, 1942). Para realizar no palco o universo simbólico, a técnica simbolista recorre à alegoria. O símbolo é um sinal, a alegoria é uma representação, uma plastificação do símbolo. Gil Vicente teve em mãos os recursos do teatro alegórico que herdou dos momos: a pompa retórica e as alegorias decorativas. MOMOS Tipo de representação teatral em que prevalecia a mímica e personagens mascarados e pomposos. EXEMPLO As peças de Vicente estão repletas de alegorias: A Fama aparece tendo predileção por Portugal. O deus Mercúrio, deus do comércio, dá a mão à Lusitânia. A Frágua do Amor é um auto em que se manifesta o crescimento dessas tendências à alegoria e ao simbolismo. Temos um castelo simbólico com cinco torres, cinco virtudes da princesa D. Catarina. Também temos a intervenção de cupido para o casamento de D. Catarina com D. Manuel. De dentro do castelo saem os quatro gozos do amor, que são quatro pares de galantes serranas. No momento culminante, os quatro pares se encarregam, com marteladas, do trabalho de refundição. A frágua é a fornalha do ferreiro. Mas chegam outros personagens à fornalha do Amor: a Justiça, por exemplo, na personagem de uma velha com algibeiras inchadas de galinhas e sacos de ouro. O que vem fazer a Justiça na fornalha do Amor? Nesse momento, o aspecto poético congela e vira um pretexto para a sátira. Os simbolismos são muito abstratos e, às vezes, diversamente complexos. As chaves simbólicas do mundo medieval só são utilizáveis mediante uma iniciação técnica. Porém, o que você já estudou até aqui deve servir de desafio e encorajamento para se aventurar na leitura das obras do teatro de Gil Vicente. javascript:void(0) O TEATRO DE GIL VICENTE A seguir, apresentaremos o teatro de Gil Vicente a partir de sua relação com o humanismo renascentista e comentaremos alguns aspectos formais e temáticos de seus autos. VERIFICANDO O APRENDIZADO MÓDULO 2 Reconhecer aspectos ecdóticos, estilísticos e temáticos da lírica camoniana CLASSICISMO EM PORTUGAL E A VIDA DE CAMÕES Tanto a lírica quanto a épica camoniana se situam no período literário identificado com o Classicismo em Portugal. O Classicismo surge como movimento artístico durante o período do Renascimento, no século XVI, por isso mesmo também recebe a denominação de Seiscentismo. Em Portugal, Camões é certamente o principal nome e tendência literária desse período. Assim, vamos agora ao estudo do poeta maior do Renascimento ibérico. LUÍS VAZ DE CAMÕES Pouco se sabe da vida de Luís Vaz de Camões. Sua data de nascimento: 1524 ou 1525? Local? Talvez em Lisboa, Alenquer, Coimbra ou Santarém. Acredita-se que tenha vindo de uma família aristocrática da Galiza e que teve acesso à vida palaciana na juventude, onde conseguiu algum benefício para a sua formação intelectual. Leu Homero, Horácio, Virgílio, Ovídio, Petrarca, Boscán, Garcilaso e muitos outros. Com o seu talento e sua cultura, dizem que provocou paixões em damas da Corte, entre elas a filha de D. Manuel e D. Catarina de Ataíde. Provavelmente esses amores proibidos o levaram ao exílio. Foi soldado raso em Ceuta (1549). Perdeu um olho e regressou a Lisboa. Em 1522, na procissão de Corpus Christi feriu um servidor do Paço e foi preso. Foi liberto com a condição de engajar no serviço militar ultramarino. Acredita-se que escreveu Os Lusíadas em Macau, naufragou na foz do rio Mekong, onde perdeu a sua companheira Dinamene. Acusado de prevaricação, foi preso em Goa e solto depois. A seguir, foi preso por dívidas em Moçambique. Levou, durante anos, uma vida miserável até que Diogo do Couto o levou de volta a Portugal. Em 1572, publicou Os Lusíadas e recebeu como recompensa uma pensão anual de 15 mil réis. Camões na gruta de Macau, em gravura de Desenne, 1817. Viveu na miséria, morreu pobre e abandonado a 10 de junho de 1580. Em linhas gerais, é isso que nos informa Massaud Moisés (1970)sobre Camões. O QUE SE SABE E NÃO SE SABE DA VIDA DE CAMÕES José Hermano Saraiva, em Vida ignorada de Camões: uma história que o tempo censurou (1994), diz que poucos são os documentos autênticos sobre a vida de Camões. Teríamos apenas: o perdão do rei pela cutilada na cabeça de um empregado do Paço em dia de Corpo de Deus de 1552; o privilégio da tença de 15 mil réis durante três anos; e quatro documentos que são prorrogações do prazo da tença. Esses são os fatos documentados e nos quais poderíamos crer. Todo o resto sobre a vida do poeta vem de fonte não límpida ou de tradições baseadas nos relatos dos primeiros biógrafos que teceram a seu gosto numerosas referências. Em síntese, o que se sabe ao certo é quase nada, o que se conjectura é quase tudo. Tudo nos leva a crer que os “primeiros biógrafos sabiam mais do que disseram, mas lá teriam suas razões para não falar” (SARAIVA, 1994, p.17). Monumento ao poeta na Praça de Luís de Camões, no Bairro Alto, em Lisboa. SAIBA MAIS Quem publicou pela primeira vez uma vida de Camões foi o historiador e escritor português Pedro de Mariz (1550-1615), em uma espécie de prefácio que antecede a primeira edição de Os Lusíadas. Aliás, a história dessa primeira edição é bem esquisita. Pedro de Mariz conta que havia um admirador de Camões chamado Manuel Correia, que passou muitos anos da vida a fazer comentários sobre Os Lusíadas, mas morreu sem o publicar. Pedro de Mariz teria comprado o livro em um leilão e o imprimiu; e o livro tinha um prefácio também do Manuel Correia (SARAIVA, 1994, p. 17). Pedro de Mariz escreve “ter pertencido Camões à nobreza de melhor sangue que Portugal produziu” (SARAIVA, 1994, p. 17). O editor do livro diz outra coisa, afirma que os heróis da obra são heroicos, mas “o autor humilde” (SARAIVA, 1994, p. 18). Essa edição já se deu 30 anos após a morte do poeta. Nessa época, da geração que conhecera Camões antes de embarcar para as Índias, poucos havia vivos. E as controvérsias sobre o autor já começavam aí. Aliás, nada é mais controvertido do que a lírica camoniana. PROBLEMAS ECDÓTICOS NA LÍRICA E NA ÉPICA DE CAMÕES Um esclarecimento inicial: Ecdótica é uma ciência que busca através de regras de hermenêutica e exegese restituir a forma mais próxima do que seria a redação inicial de um texto para estabelecer a sua edição definitiva; portanto, um trabalho de crítica documental. No Brasil, o filólogo e professor Leodegário de Azevedo Filho (1927-2011) foi um dos principais estudiosos da crítica documental da lírica de Camões. Segundo Azevedo Filho (1973), Rodrigues Lapa nos disse em 1945, no livro Luís de Camões – Líricas, que a obra de Camões passou por certo processo de deturpação, ainda que com a intenção de melhorá-la ou mesmo corrigi-la. Essa deturpação da obra camoniana teria se dado por não se respeitar uma ideia simples: empreender um esforço para compreender a língua do poeta ou a língua de seu próprio tempo, além de entender as regras de sua versificação e seus processos de estilo. Isso porque esses são aspectos que diferem do nosso tempo, de como se apresentam na produção literária dos nossos dias. O equívoco, então, foi aplicar o princípio de que Camões só poderia ser grande caso correspondesse ao gosto particular de cada época ou tempo. Assim, os textos foram alterados, palavras foram substituídas, a ordem foi invertida – tudo isso para agradar as pessoas de determinada época. Camões salvando Os Lusíadas, Francisco José Resende, 1867. Desse modo, há um problema sério em relação à crítica textual camoniana, não estando até hoje concluído definitivamente o trabalho de apuração da lírica de Camões. Consequentemente, há várias edições e variações do texto camoniano, resultando em miscelâneas e fragmentos de sua lírica. SAIBA MAIS Situação histórica do manuscrito de Os Lusíadas O manuscrito de Os Lusíadas perdeu-se inteiramente. Existem duas edições de 1572, dessas duas acredita-se que a edição princeps (primeira edição) seja exatamente aquela que apresenta, na portada, um pelicano com a cabeça virada para a esquerda do leitor, e a outra edição apresenta o mesmo pelicano com a cabeça virada para a direita do leitor (AZEVEDO FILHO, 1995). A PROPÓSITO DO CÂNONE LÍRICO A questão do cânone sempre foi de alguma forma debatida em razão da quantidade de textos atribuídos a Camões. Os únicos documentos de que realmente dispomos são os “livros de mão” da época. Suas obras líricas ficaram dispersas e fragmentadas, pois os textos autógrafos se perderam (AZEVEDO FILHO, 1995). Após edições sem rigor ecdótico e inserção de textos inautênticos na lírica de Camões, ao longo do tempo, em 1932, houve louvável esforço para estabelecer um corpus mais uniforme e coerente do vasto e heterogêneo universo lírico camoniano. Esse esforço foi realizado por José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, com o apoio dos estudos de Carolina Michaëlis de Vasconcelos e Wilhelm Storck. Outros trabalhos de grande valor foram feitos, mas cabe ressaltar o fato de o filólogo português Álvaro Júlio da Costa Pimpão (1902- 1984) e o crítico literário Hernâni Cidade (1887-1975) terem dado passos bem definitivos para o início do trabalho de revisão crítica, sistemática e necessária à análise dos manuscritos da época e dos textos impressos durante quatro séculos. Já o filólogo Emmanuel Pereira Filho partiu da evidência de que todas as tentativas de fixar um cânone máximo da lírica de Camões foram infrutíferas. Sendo assim, Pereira Filho partiu para o conceito de cânone mínimo como uma base segura; para o novo cânone, fixou o critério de tríplice testemunho quinhentista incontroverso. Em outras palavras, um texto atribuído a Camões teria que ser comprovadamente do século XVI com três testemunhos quinhentistas. Com isso, chegou com segurança a 65 textos em vários gêneros líricos (AZEVEDO FILHO, 1995). Apesar de tudo isso, no movediço terreno da lírica de Camões, os estudos dos manuscritos ainda prosseguem, atualmente. A FIGURA FEMININA PETRARQUISTA EM CAMÕES Quando falamos de um petrarquismo em Camões, é preciso entender que os critérios para “originalidade” no século XVI eram diferentes do que entendemos hoje em dia por originalidade. Rita Marnoto (1996) argumenta que o labor renascentista tinha como pedra de toque a imitação; qualquer obra de arte devia ser modelada por outras de reconhecido mérito. A originalidade não era entendida como invenção espontânea, mas como capacidade de fazer próprios os modelos instituídos e reorganizar novas sínteses. E, nesse sentido, o petrarquismo assumiu no século XVI, na poesia quinhentista, um papel essencial, como código para modelação das linhas de força da poesia de temática amorosa. PETRARQUISMO Referente ao poeta e humanista italiano Francesco Petrarca (1304-1374), considerado o pai do soneto em função da qualidade de suas composições e por ter influenciado vários poetas. O soneto regular, que também é chamado de petrarquiano, contém uma estrutura estrófica de dois quartetos (ou quadras) e dois tercetos. O petrarquismo, inspirado na temática amorosa, no estilo e no vocabulário de Petrarca, foi um movimento literário italiano que se estendeu do século XV ao XVII. O petrarquismo de Camões tem sua fonte, assim como para boa parte dos poetas quinhentistas, na obra de Pietro Bembo (1470- 1547), ou na chamada hipercodificação bembesca como uma depuração estilística. HIPERCODIFICAÇÃO BEMBESCA Corresponde ao ato de Pietro Bembo selecionar na poesia de Petrarca os elementos considerados mais perfeitos, resultando em um texto literário a ser produzido altamente refinado. SAIBA MAIS Podemos dizer que a “imitação” no Renascimento situava o poeta, tendo como antecedentes de mérito reconhecido: Homero, Virgílio, Petrônio, Ovídio, Ariosto, Tasso, Petrarca, Sannazaro, Pietro Bembo e Garcilaso. Esses eram os principais. javascript:void(0) javascript:void(0) Vejamos os versos de Ondados fios d’ouro reluzente, em que Camões imita o modelo bembesco demodo muito elegante. Primeiro, repare nestes dois versos de um poema de Pietro Bembo: “Crin d’oro crespo e d’ambra tersa e pura ch’a l’aura su la neve ondeggi e vole” (BEMBO, Pietro. Prose dela volgar lingua: Gli asolani. Rima. Ed. Carlo Dionisotti. Milano: TEA, 1989.) SAIBA MAIS Tradução livre dos versos: Cabelo de ouro nítido e âmbar claro e puro que a aura na neve ondula e voa Agora, compare com estes dois versos de um poema de Camões: “Ondados fios d’ouro reluzente, que, agora da mão bela recolhidos” (CAMÕES, Luís. Sonetos. [recurso eletrônico]. Jandira: Principis, 2020) Segundo Rita Marnoto (1996), os atributos femininos referidos por Bembo são os mesmos. A sequência é a mesma: cabelos, mão, faces, olhos, riso, dentes e lábios e os motivos de louvor com ligeiras alterações da effictio. Casa de Francesco Petrarca, Laura e o poeta. Effictio era um preceito medieval segundo o qual a enumeração dos atributos físicos seguia uma ordem descendente: cabelos, olhos, faces, boca, mão. A matriz é a representação literária da Laura de Petrarca. A figura feminina petrarquista é ela uma essência ao mesmo tempo material e angelical, despojada de toda e qualquer conflitualidade. Ou seja, a poesia de Petrarca reúne os dois elementos sem colocá-los em conflito ou sem reproduzir o conflito tão comum. A célebre composição de Bembo, que citamos, é pautada pelo retrato de Laura, ela não inspira no amante qualquer inquietude. A ideia da amada vista como angelical e de elevação espiritual, na Itália do século XIII, recebeu o nome de dolce stil nuovo, que surgiu na Toscana com um grupo de poetas florentinos, entre eles: Guido Cavalcanti e Dante Alighieri. javascript:void(0) DOLCE STIL NUOVO O “doce estilo novo” foi um movimento poético italiano, entre o século XIII e XIV, na Toscana, que superou a escola trovadoresca com uma nova concepção de amor, de mulher amada, e de estado de espírito do amado, além de aspectos formais, como o refinamento da forma. TENSÕES NA LÍRICA DE CAMÕES: DO NEOPLATONISMO AO DESCONCERTO DO MUNDO Nas perspectivas de António José Saraiva e Oscar Lopes (2005), de um modo quase definitivo, tudo o que se manifestou na literatura quinhentista encontrou eco na lírica ou na épica de Camões. Camões fez a síntese entre a tradição peninsular representada pelo Cancioneiro Geral e o seiscentista: ponte entre o estilo clássico renascentista, o gótico dos quatrocentos e o Barroco dos seiscentos, aproveitando todos os materiais da escola petrarquista italiana, espanhola e portuguesa. Nesse sentido, Saraiva e Lopes destacam duas grandes linhas na poesia camoniana: o amor e o desconcerto do mundo. O AMOR De acordo com Saraiva e Lopes (2005), Camões interessava-se pelo neoplatonismo. Os primeiros teólogos cristãos foram neoplatonizantes e o Humanismo que ressuscitou a Antiguidade também teve no platonismo alguns de seus fundamentos. A concepção de amor trovadoresco era atravessada pelo platonismo. Essa visão é retomada no “doce estilo novo”, em que a mulher, como ser angélico, sublima e apura a alma do poeta. Beatriz conduz Dante pelas alturas do paraíso e Laura serve, depois de morta, de inspiração lírica amorosa a Petrarca. Camões herdou essa concepção Dante-Petrarquista de amor e de mulher. A mulher amada, pela luz sobrenatural, perde as suas feições carnais e tem o seu revestimento corpóreo recoberto por um ideal pleno de gravidade, serenidade e altura. No retrato da amada, Camões acompanha os padrões de Beatriz e Laura: javascript:void(0) BEATRIZ Beatriz, provável referência à Beatrice Portinari (1266-1290), musa de Dante e sua paixão platônica quando ainda muito novo. Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida descontente, Repousa lá no Céu eternamente E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente Que já nos olhos meus tão puro viste. E se vires que pode merecer-te Alguma cousa a dor que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te, Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou. (CAMÕES, Luís. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 116) SAIBA MAIS Esse soneto de Camões estaria relacionado com a figura de Dinamene, que ele teria perdido no naufrágio do Rio Mekong. Dizem que ele teria salvado no naufrágio Os Lusíadas, mas não conseguiu socorrer a namorada. Existe outra lenda em torno desse soneto. O poeta supostamente teria escrito à D. Joana Noronha de Andrade, uma dama nobre. Por não poder usar o nome da verdadeira musa inspiradora, o dedicou à “Dinamene”, designação de uma ninfa do mar. Este soneto é uma imitatio de um clássico de Petrarca. A alma minha gentil que agora parte Tão cedo deste mundo à outra vida, Terá certo no céu grata acolhida, Indo habitar sua mais beata parte. Ficando entre o terceiro lume e Marte, Será a vista do sol escurecida, Virá depois, muita alma ao céu subida, Vê-la – portento de natural e arte. E se pousasse entre Mercúrio e Luz, Brilhara mais do que eles nossa bela, Como só se espalhara a fama sua. A Marte certo não chegara ela. Mas se mais alto o seu vulto flutua, Vencera Jove e qualquer outra estrela. (PETRARCA. O cancioneiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 38) Em ambos os sonetos vemos a idealização neoplatônica da mulher. Camões faz essa idealização coincidir com um apelo. Vemos no poema dirigido à amada recém-desaparecida que a primeira quadra se refere à eufemística partida precoce do objeto desejado. E com os respectivos dêiticos “lá” e “cá” faz contrastar o Céu e a Terra, atravessando ambos pela ideia de eternidade. Na segunda quadra, formula mais que um desejo, elabora um pedido, um apelo à recordação do amor. Os tercetos formulam o novo e definitivo pedido. Seguindo a poética de Dante, suplica poder gozar ao lado do objeto perdido a graça da beatitude divina. Também seria possível reconhecer o neoplatonismo em Camões na concepção de amor que intensifica o dualismo platônico, tal qual no soneto iniciado pelo verso Amor é fogo que arde sem se ver, com suas oposições entre matéria e espírito, sensível e inteligível, finitude e infinito, mundano e divino etc. Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; É um andar solitário entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É um cuidar que ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor? (CAMÕES, Luís de. Lírica: redondilhas e sonetos. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997. p. 99) O DESCONCERTO DO MUNDO Nas visões de Saraiva e Lopes (2005), Camões apresenta uma tendência maneirista ao pensar a incomensurabilidade ou o desajuste entre as exigências íntimas da vida pessoal e os meios que lhe são dados satisfazer ou realizar a própria vida. Essa é uma temática que retorna constantemente tanto na lírica quanto na épica camoniana. Nosso bardo lusitano a nomeou muito bem em suas oitavas Ao desconcerto do mundo: MANEIRISTA Referente ao Maneirismo, movimento artístico que na literatura corresponde ao período entre o Renascimento e o Barroco, por volta da segunda metade do século XVI. Alguns autores consideram o Maneirismo um movimento autônomo, não apenas uma transição entre o Renascimento e o Barroco. Os bons vi sempre passar No Mundo graves tormentos; E para mais me espantar, Os maus vi sempre nadar Em mar de contentamentos. javascript:void(0) Cuidando alcançar assim O bem tão mal ordenado, Fui mau, mas fui castigado. Assim que, só para mim, Anda o Mundo concertado. (CAMÕES, Luís. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 116) Esse poema apresenta o desconcerto como produto de um destino confuso e irracional: desajustesentre valores e realidade, entre necessidade e satisfação. O problema central para Camões não são injustiças, que ele denuncia, mas a não correspondência entre valores, razões e o processo objeto. Cabe dizer que a temática do desconcerto está no âmago do próprio existir do poeta. Assim, o poeta reage cônscio da sua experiência e da sua relação com o destino que lhe é opaco, onde, às vezes, só os maus e medíocres “nadam num mar de contentamentos”. Como exemplo dessa cosmovisão do desconcerto, vejamos ainda o conhecido soneto O dia em que eu nasci, morra e pereça: O dia em que eu nasci, morra e pereça, Não o queira jamais o tempo dar, Não torne mais ao mundo e, se tornar, Eclipse nesse passo o sol padeça. A luz lhe falte, o sol se lhe escureça, Mostre o mundo sinais de se acabar, Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, A mãe ao próprio filho não conheça. As pessoas pasmadas, de ignorantes, As lágrimas no rosto, a cor perdida, Cuidem que o mundo já se destruiu. Ó gente temerosa, não te espantes, Que este dia deitou ao mundo a vida Mais desgraçada que jamais se viu! (CAMÕES, Luís. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 131) O soneto tematiza a desilusão e o desajuste diante do mundo, levando à atitude de amaldiçoar o próprio dia do nascimento. De acordo com Saraiva e Lopes (2005), esse soneto oscila entre uma inspiração platônica em que a felicidade surge como uma reminiscência de um mundo idealizado e o resgate do absurdo do mundo. A LÍRICA DE CAMÕES No vídeo, apresentaremos o contexto da lírica camoniana e comentaremos alguns sonetos a partir de aspectos como a figura feminina petrarquista, o amor neoplatônico e o tema do desconcerto do mundo. VERIFICANDO O APRENDIZADO MÓDULO 3 Identificar os planos e a estrutura de Os Lusíadas OS LUSÍADAS E ALGUNS DE SEUS PLANOS Inicialmente, vamos abordar Os Lusíadas a partir de dois planos: o plano da história e o plano do maravilhoso. Depois, examinaremos a estrutura da obra e seus aspectos formais. O PLANO DA HISTÓRIA Capa de Os Lusíadas, na edição de 1572. Silvério Benedito (1997) nos diz que, no período quinhentista, a concepção de história que vigorava em Portugal era a do gramático e historiador João de Barros (1496-1570), seguidor do historiador romano Tito Lívio (59 a.C. – 17 d.C.): a história seria uma verdade selecionada cujos bons aspectos conferissem dignidade aos seus personagens. A história deveria ter uma finalidade moralizante e ser escrita seguindo as regras da Retórica, com ordem, proporção e bom estilo. É esta visão de história dominante em Os Lusíadas, porém acrescentada de um tom épico e monumental. SAIBA MAIS O conceito de “guerra justa” Na Antiguidade Clássica, os historiadores romanos deram à guerra um papel de grande destaque; eles tornaram lendários os confrontos entre romanos e os bárbaros. Esse tom encomiástico encontramos nos escritos de Tito Lívio e no poema Eneida de Virgílio (BENEDITO, 1997). O tom supranacionalista e de exaltação da guerra atravessa a Itália e o reencontramos na nobreza medieval quinhentista ibérica. Trata-se do conceito de “guerra justa”, que exalta o ideal guerreiro e celebra os feitos de um povo. No caso específico de Portugal, em Os Lusíadas, surge na linha da guerra das cruzadas da Cristandade contra os infiéis. Vejamos alguns exemplos do que acabamos de expor, apoiados ainda em Benedito (1997). O nascimento de Portugal Portugal tem como passado a Lusitânia. Os lusitanos foram os seus “primeiros” habitantes. Nessa terra, Camões exalta o pastor Viriato, usando uma falsa etimologia que faz derivar de vir (homem, varão, viril). Viriato é o lendário guerreiro do povo luso que lutou contra a alta Roma. Ourique, a batalha fundadora Os Lusíadas fazem alusão à batalha de Ourique, ocorrida em 1139, considerada o fundamento da independência de Portugal. Ao narrar tal batalha, o poeta realiza os seguintes procedimentos: Descreve a desproporção entre o exército mouro e as forças portuguesas. Faz alusão ao Milagre: Cristo apareceu a Afonso Henriques e o aclamou rei legítimo. Narra a vitória dos portugueses, que gerou a simbologia do brasão de Portugal com os cinco escudetes, em sinal dos cinco reis mouros vencidos. Vejamos alguns fragmentos (CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 70): “Defronte do inimigo Sarraceno, posto que em força e gente tão pequeno” “Cinco reis mouros são os inimigos, dos quais o maior Ismar se chama” “[...], gritando o céu tocavam, dizendo em alta voz: - Real, real, por Afonso, alto Rei de Portugal!” A batalha de Aljubarrota Com a crise dinástica e revolucionária de 1383-1385, Portugal consolidou a sua independência em uma batalha frente aos castelhanos. Camões apresenta esse acontecimento em um grande quadro com diversas fases. Vejamos os seguintes excertos: – Como?! Da gente ilustre portuguesa Há de haver quem refuse o pátrio Marte?! [...] Quem negue a fé, o amor, o esforço e arte De português, e por nenhum respeito O próprio Reino queira ver sujeito?! Atai as mãos o vosso vão receio, Que eu só resistirei ao jugo alheio. (CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 75) A batalha de São Mamede D. Teresa, mãe do futuro primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, teria casado em segunda vez com o fidalgo galego Conde Fernão Peres de Trava, deserdando o filho. Camões compara essa mãe ignominiosa à Medeia da mitologia grega, mas não exalta a revolta do filho. É um fato histórico D. Afonso ter combatido e vencido a própria mãe na batalha de S. Mamede. Com ele posta em campo já se via, E não vê a soberba o muito que erra Contra Deus, contra o maternal amor; Mas nela o sensual era maior. Mas de Deus foi vingada em tempo breve Tanta veneração aos pais se deve! (CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 80) O episódio de Inês de Castro Após cantar a bravura de D. Afonso IV na vitória de Salado, Camões se volta para a carga sociotrágica da morte de Inês de Castro. Inês de Castro era filha de um fidalgo galego. D. Pedro apaixona-se e mais tarde declara ter casado com ela. Por interesses políticos, D. Afonso IV permite a execução de Inês de Castro, que mais tarde seria vingada por D. Pedro. Conta a lenda que D. Pedro teria coroado Inês depois de morta, “fato” que inspirou poetas, dramaturgos, artistas plásticos e músicos. Vamos conferir alguns trechos e elementos do episódio de Inês de Castro: Descrição de Inês em estado de felicidade e apaixonada, estado em que o épico e o lírico se confundem: Estavas, linda Inês, posta em sossego, De teus anos colhendo doce fruto, Naquele engano da alma, ledo e cego. (CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 84) Representação de Inês de Castro, século XIX, Quinta da Regaleira, Sintra, Portugal. O assassínio de Inês de Castro, de Karl Brjullow, 1834. A covardia dos carrascos que executaram Inês: Tais contra Inês os brutos matadores No colo de alabastro, que sustinha As obras com que Amor matou de amores Aquele que depois a fez Rainha; As espadas banhando, e as brancas flores, Que ela dos olhos seus regadas tinha, Se encarniçavam, férvidos e irosos, No futuro castigo não cuidosos. (CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 87) A alusão à “fonte dos amores”, na Quinta das Lágrimas, na margem esquerda do rio Mondego. As filhas do Mondego a morte escura Longo tempo chorando memoraram, E, por memória eterna, em fonte pura As lágrimas choradas transformaram; O nome lhe puseram, que inda dura, Dos amores de Inês que ali passaram. Vede que fresca fonte rega as flores, Que lágrimas são a água, e o nome amores (CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 89) Portal e janela neogóticos na "Fonte dos Amores". O PLANO DO MARAVILHOSO Segundo Silvério Benedito (1997), em Os Lusíadas, o plano do “maravilhoso” é apenas a utilização dos deuses greco-latinos. Vejamos alguns aspectos do plano do maravilhoso, apoiados em Aguiar e Silva (1994). A mitologia greco-latina A mitologia impôs-se no Renascimento, inclusive na arte protegida pela ação dos mecenas, por exemplo, pelos papas da Igreja Católica Júlio(1503 a 1513) e Leão X (1513 a 1521). A mitologia havia se tornado expressão privilegiada de valores ideais, sensuais e agradáveis à vida sensível. A mitologia é utilizada em Os Lusíadas muitas vezes como ornamentação e, em vários casos, com intenção irônica. São inúmeras as alusões ao universo dos mitos greco-latinos, porém vamos abordar a riqueza das visões polissêmicas do episódio da “Ilha dos amores”. A ilha dos amores De acordo com Aguiar e Silva (1994), o episódio da “ilha dos amores”, com as suas 220 estâncias (estrofes), constitui 20% de Os Lusíadas. Para muitos, esse episódio foi o “fruto proibido”, os adolescentes liam clandestinamente, os moralistas gostariam de retirá- lo em uma edição ad usum delphini. AD USUM DELPHINI Edições de clássicos latinos, destinados à educação do delfim (filho do rei francês Luís XIV), em que se omitiam trechos julgados impróprios. A posição dos escoliastas (comentadores) Os escoliastas, desde muito cedo, tentaram, através de dados do texto (astronomia, flora, fauna etc.) identificar a “ilha dos amores”. Várias foram as hipóteses: MANUEL CORREIA Ilha de Santa Helena javascript:void(0) FARIA DE SOUZA llha de Angediva GOMES MONTEIRO Ilha de Zanzibar FREIRE DE CARVALHO Ilha de Ceilão CUNHA GONÇALVES Ilha de Bombaim TEÓFILO BRAGA Arquipélago dos Açores SOUZA GOMES Ilha do Arquipélago do Cabo Verde Houve, porém, comentadores que preferiram considerá-la uma ilha fantástica, um produto de fecunda imaginação. Foram muitas e graves as falhas metodológicas que proliferaram nos estudos sobre tal episódio. Mas, de certo modo, há correspondências entre o episódio da “ilha dos amores” e alguns episódios que podemos retirar da tradição clássica: Ecos da descrição dos Jardins de Alcínoo, que figura no Canto VII da Odisseia. Uma imitação do Somnium Scipionis de Cícero e do Canto VI da Eneida. O episódio da Argonáutica de Apolônio de Rodes. Trechos das Metamorfoses de Ovídio. A descrição de Vênus que Petrarca deixou nos Triumphus cupidinis. Há muitas outras possibilidades de influências que poderiam ser buscadas na Antiguidade Clássica. O início do episódio O episódio “ilha dos amores” começa na estância 25 do Canto IX, em que o amor aparece concebido como força ou princípio que corrige os desvios, erros e vícios da lei que impera no mundo: os homens idolatram coisas que deveriam ser somente instrumentos ou meios. Sendo assim, o amor deve reconduzir os homens até a Unidade Divina: Já sobre os Idálios montes pende, Onde o filho frecheiro estava então Ajuntando outros muitos, que pretende Fazer uma famosa expedição Contra o mundo rebelde, por que emende Erros grandes, que há dias nele estão, Amando coisas que nos foram dadas, Não para ser amadas, mas usadas. (CAMÕES, L. V. de. Os Lusíadas. Edição organizada por António José Saraiva. Porto: Padrão, 1978. p. 373.) Cupido à espreita, William-Adolphe Bouguereau, 1890. Nessa estância, o filho de Vênus, Cupido, baixa sobre os montes da Idália e organiza uma expedição com outros flecheiros para punirem os homens que amavam coisas que serviam apenas para serem usadas. Ao Amor (Cupido) cumpre assegurar a lei e a harmonia inscrita por Deus nos seres e nas coisas, desempenhando a função de princípio unificador do universo. Esse é um tema neoplatônico de primeira ordem. O significado alegórico da ilha A “ilha dos amores” trata do encontro de navegantes e ninfas em uma orgia desbragada. E Tétis, pela beleza e nobreza entre as ninfas, recebe o próprio Vasco da Gama e ambos gozam os seus amores. Silvério Benedito (1997) nos diz que essa concretização da experiência amorosa glorifica, pela memória da história, “a fama grande e o nome alto e subido”. Aqui, os modelos eram os deuses que se destacavam por suas façanhas. Cabe aos humanos alcançarem a glória e a fama, fugindo da indolência que torna as almas escravas. Assim, “as Ninfas... Tétis, e a ilha... os deleites” representam os prêmios que os navegantes receberão pelos altos feitos realizados; nitidamente uma imortalização pela glória (BENEDITO, 1997, p. 108). Ilha dos amores, José Malhoa, 1908. O IDEAL QUINHENTISTA No Canto VI, Estância 29, é apresentado o ideal português de virtu humana no quinhentismo: os barões, em espírito de cruzada, revisitados no tempo de Camões pelo movimento da Contrarreforma. Naquele momento, a cristandade (católica) tinha sua cabeça ameaçada pelos sarracenos e pelas facções protestantes e reformistas. OS SEGREDOS DO MUNDO AINDA IGNOTO Tétis não só entra em conúbio amoroso com o Gama, mas também “declara que a finalidade da sua presença naquela ilha era revelar à Nação portuguesa os segredos do mundo ainda ignoto” (AGUIAR E SILVA, 1994, p. 141). Isso ocorre no Canto IX, 86: Que, depois de lhe ter dito quem era, Cum alto exórdio, de alta graça ornado, Dando-lhe a entender que ali viera Por alta influição do imóvel fado, Pera lhe descobrir da unida esfera Da terra imensa e mar não navegado Os segredos, por alta profecia, O que esta sua nação só merecia. (CAMÕES, L. V. de. Os Lusíadas. Edição organizada por António José Saraiva. Porto: Padrão, 1978. p. 393) Tétis se apresenta, enquanto mãe do Oceano. Estava ali por influxo do Fado [Destino] para ensinar a Vasco da Gama os segredos da esfera do mundo, da terra e do mar. A MÁQUINA DO MUNDO Esse é um dos momentos mais importantes de Os Lusíadas. Tétis apresenta ao Gama o sistema geocêntrico ptolomaico e profeticamente as grandes conquistas que serão oriundas da expansão marítima portuguesa. É evidente que o profetizar só é javascript:void(0) possível porque o tempo histórico de Camões é posterior ao de Vasco da Gama. SISTEMA GEOCÊNTRICO PTOLOMAICO Sistema geocêntrico conforme o sábio grego Ptolomeu (90 d.C. – 168. d.C.). Somente na segunda metade do século XVIII, o sistema heliocêntrico é cientificamente aceito. O NOVO MAPA GEOGRÁFICO DA TERRA Tétis, no Canto X, apresentará ao Gama a imensidão das conquistas que serão realizadas pelos portugueses. É um grande canto épico em que futuras realizações portuguesas são indicadas, com referências a costumes e produtos estranhos, além de aspectos religiosos. A ESTRUTURA EXTERNA DE OS LUSÍADAS Vejamos, agora, alguns aspectos formais e estilísticos da obra, apoiados ainda em Benedito (1997). A epopeia de Os Lusíadas é estruturada em dez cantos constituído por estrofes em número variável. As estrofes são oitavas, com o esquema de rima ababcc. Predominantemente, os versos são decassílabos (acentuação tônica na 6a e 10a sílabas) e, às vezes, temos o verso sáfico (acentuação na 4a, na 8a e 10a sílabas). PERSONAGENS PRINCIPAIS DE OS LUSÍADAS DA VIAGEM Os portugueses (os Lusíadas), Velho do Restelo, Vasco da Gama, Paulo da Gama, Fernão Veloso, Monçaide, Catual e Samorim. DA HISTÓRIA D. Afonso Henriques, D. Nuno Alvares, Inês de Castro, os portugueses (os Lusíadas). DA MITOLOGIA Júpiter, Vênus, Baco, Marte, Netuno, Adamastor, Tétis, Ninfas, Cupido. DOS EXCURSOS (DIGRESSÕES) Personagens, grupos louvados ou criticados. NARRADORES – NARRATÁRIOS DE OS LUSÍADAS O narrador-poeta (supostamente Camões), Vasco da Gama, Paulo da Gama, Adamastor, Júpiter, Ninfa (canto), Tétis e outros. OS EXCURSOS DO POETA O excurso, na literatura, é o momento em que o narrador (ou personagem narrador) se desvia do tema principal. Talvez possamos ler um outro Os Lusíadas a partir dos excursos, nos quais a perspectiva encomiástica, de exaltação, de louvor aos feitos heroicos cede lugar a um narrador maneirista engajado em uma ácida crítica aos valores políticos e sociais de sua época. Gostaríamos aqui de fazer referência ao trabalho de José Madeira (2000), publicado no livro Camões contra a expansão e o Império, que lê Os Lusíadas a partir das contradições, das ironias e do humor fino do bardo lusitano destruidor dos “bons propósitos”, condenando, inclusive, as guerras com objetivos de conquistas. A complexidade de Os Lusíadas não está apenas no fato de possuir um caráter enciclopédico,distribuído em dez cantos com, em média, cem estâncias (estrofes) em cada canto. Os Lusíadas apresentam características tardo-góticas somadas a valores clássicos renascentistas e, em alguns aspectos, antecipa, pela visão crítica, o Maneirismo e o Barroco. Os primeiros excursos estão no Canto I: a Proposição, a Invocação e a Dedicatória. Vejamos, então, os excursos do Canto I e outros excursos importantes. Proposição (Canto I) Na proposição, o poeta expõe a matéria de que vai tratar o poema. O título Os Lusíadas significa os lusos ou os portugueses. Camões não canta um herói individual como fizeram os poetas da Antiguidade, aponta-nos um herói coletivo – o povo português. Uma personagem coletiva, todos os portugueses que se notabilizaram pelas ações de valor. A invocação (Canto I) Na mitologia clássica, as ninfas eram deusas filhas de Zeus e viviam nos campos e bosques. Por serem divindades secundárias, eram muito populares, as pessoas lhes dirigiam súplicas. No caso de Camões, o pedido de inspiração se dirige a uma ninfa do Tejo – “Tágides”. O poeta pede a ela um “som alto e sublimado”, “um estilo grandíloquo e corrente”. A criação dessa ninfa “Tágides” transfere a mítica Grécia para Portugal. Dedicatória (Canto I) Dedica ao rei D. Sebastião, dirigindo-lhe em tom epicamente encomiástico: “Vós, poderoso Rei, cujo alto Império [...] o deixa derradeiro” (CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 118) Declara que era evidente a importância do rei português em função do grande império que governava. E pede com humildade que lance um olhar protetor para a obra épica que ele não escreveu por interesses mesquinhos. Camões destaca que não irá cantar as façanhas fingidas e mentirosas das epopeias estrangeiras, mas oferecerá fatos verdadeiros. O homem, um “bicho da terra tão pequeno” (Canto I) Trata-se de um momento do Canto I em que o poeta reflete sobre a fragilidade e contingência da vida humana na sua pequenez. Note que o poeta se faz valer de frases e vocábulos curtos para expressar a ideia de um ser pequeno. Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida, Que não se arme, e se indigne o Céu sereno Contra um bicho da terra tão pequeno? (CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 119) Como se pode cantar o “louvor e a justa glória” dos heróis portugueses? (Canto V) Essa pergunta remete a uma questão no Renascimento. Os humanistas, em Flandres e na Itália, buscavam mecenas para o seu estatuto de doadores de glória. Os palácios, as sedes hierárquicas da Igreja, as cortes das monarquias contratavam para os seus serviços arquitetos, pintores, músicos e literatos. O artista se imortalizava pela sua arte; os mecenas retribuíam com diversas e generosas formas de doações. Em Portugal, alguns artistas ofereciam os seus préstimos e possuíam mecenas. Sabemos que Camões nunca encontrou, em vida, quem o julgasse digno de ser um poeta sustentado por mecenatismo. E Camões se queixa de não haver, entre os homens de poder em Portugal, apreciadores de poesias. Inclusive chega a acusar Vasco da Gama e seus descendentes de nunca terem apreciado a poesia épica. Mas não desiste de oferecer os seus dotes para ser um possível poeta oficial do rei D. Sebastião. Pera servir-vos, braço às armas feito, Pera cantar-vos, mente às Musas dada; Só me falece ser a vós aceito, De quem virtude deve ser prezada. (CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 123) A onipotência do dinheiro e os seus adoradores (Canto VIII) Neste momento do poema, Camões critica a ganância e a atitude interesseira do Catual, que troca Vasco da Gama por uma quantia em dinheiro. A cena serve de motivo para uma crítica à onipotência do dinheiro. Quanto no rico, assim como no pobre, Pode o vil interesse e sede inimiga Do dinheiro, que a tudo nos obriga. (CAMÕES apud BENEDITO, 1997, p. 125) O poeta assume o papel de conselheiro (Canto X) O poeta aconselha D. Sebastião a ser mais humano e aliviar os vassalos de “rigorosas leis”. Aconselha a cada um ocupar sua função específica, não exercendo funções que não lhe competem. Aconselha a fazer com que os “Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses” não olhem para Portugal como um país inferior. OS DEZ CANTOS DE OS LUSÍADAS E SEUS ARGUMENTOS O argumento de uma obra literária é um tipo de sumário do conteúdo. Vamos apresentar o argumento de um modo prático, por meio da síntese das ações: O Nascimento de Vênus, Bouguereau, 1879. CANTO I O poema inicia com a voz do poeta, o principal narrador de Os Lusíadas. Além dele, aparecem outros narradores. Neste Canto, temos a proposição do poema, a invocação às ninfas do Tejo e a dedicatória a D. Sebastião. Segundo o modelo épico, o poema começa in media res, ou seja, em plena ação. A armada de Vasco da Gama está a caminho de Moçambique. Com a história já iniciada, ocorre o Concílio dos Deuses. O deus Baco se opõe à chegada de Gama ao Oriente. Baco se considera o senhor do Oriente e não quer que o ilustre navegador diminua sua glória. Vênus, a deusa do amor, Marte, o deus da guerra, e Mercúrio, o mensageiro, se posicionam a favor dos portugueses. Baco incita o rei da ilha de Moçambique contra os navegantes. Vasco da Gama segue viagem até Mombaça (Quênia). CANTO II Baco continua influenciando os mouros contra os portugueses. Mas estes têm Vênus intercedendo a seu favor. A armada chega a Melinde, cujo rei pede ao Gama que lhe conte a história do seu país. Baco, Caravagigio, 1598. Tragédia de Inês de Castro, Columbano Bordalo Pinheiro, de 1901 a 1904. CANTO III Narração da história de Portugal ao rei de Melinde, indo do primeiro rei à batalha de Salado e ao episódio de Inês de Castro. CANTO IV Vasco da Gama narra ao rei de Melinde da história da segunda dinastia até o início da viagem de Vasco da Gama. Portanto, a ascensão do Mestre de Avis ao trono; os sonhos proféticos de Dom Manuel sobre a conquista das Índias. É neste capítulo que encontramos o célebre episódio do Velho do Restelo. Vasco da Gama em pé na proa de barco a remo, Ernesto Casanova, por volta de 1880. Adamastor, Júlio Vaz Júnior, por volta de 1927. CANTO V Continua a narração de Vasco da Gama ao rei de Melinde. Temos o episódio do fogo de Santelmo e o famoso episódio do gigante Adamastor. É neste canto que Camões lamenta que os grandes navegantes não gostem de poesia. CANTO VI A armada parte de Melinde com um piloto que os guiará à Índia. Baco pede ajuda a Netuno para que desencadeie uma tempestade. Vênus intervém com a ajuda das ninfas. A frota chega a Calicute. Há outro excurso do poeta sobre os caminhos da honra e a ociosidade dos nobres. Ilustração da nau de Vasco da Gama com os deuses nas nuvens, Ernesto Casanova, por volta de 1880. Armas de Manuel I de Portugal, Livro do Armeiro-Mor, 1509. CANTO VII Observações sobre a política de D. Manuel. Desembarque em Calicute, entrevista com o Samorim (rei de Calicute) e a visita do Catual (regedor) que pede a Paulo da Gama que explique a simbologia da bandeira de Portugal. Camões queixa-se da sua vida miserável. CANTO VIII Paulo da Gama explica as figuras do brasão de Portugal. Baco insufla os sacerdotes muçulmanos. Vasco da Gama é preso e resgatado a troco de mercadorias. Excurso de Camões sobre o poder e o dinheiro. Brasão de Armas da Casa Real de Aviz. Tétis preside o banquete para os portugueses na Ilha dos Amores, ilustração de Os Lusíadas, edição 1880. CANTO XIX Os catuais procuram retardar a armada portuguesa, mas a frota parte de volta. Vênus recompensa os feitos heroicos dos portugueses com uma ilha afrodisíaca. Os portugueses possuem as ninfas e Vasco da Gama, Tétis, a paixão do gigante Adamastor. CANTO X O banquete no palácio de Tétis. Tétis apresenta a Vasco da Gama a “Máquina do Mundo” (descrição do universo e da Terra de acordo com o sistema de Ptolomeu). Tétis mostra ao Gama quais seriam as futuras conquistas de Portugal. Camões exorta D. Sebastião, rei de Portugal, a ser um rei valoroso e conquistar o Marrocos. Representaçãoartística do modelo geocêntrico, de Ptolomeu (1660). OS LUSÍADAS No vídeo a seguir, apresentaremos os planos mitológico e histórico d’Os Lusíadas, destacando alguns episódios, além de comentarmos aspectos formais e estilísticos da obra. VERIFICANDO O APRENDIZADO CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Estudamos dois grandes autores da literatura portuguesa, começando por Gil Vicente, autor de aparente vocação catequética, mas que nos apresentou de uma forma muito singular elementos que configurariam uma gramática geral do teatro europeu. Na sequência, analisamos o caráter lírico e épico da poesia de Camões. Procuramos situar aspectos da sofisticada lírica camoniana, frente ao dolce stil novo, e o mundo multifacetado que nos abre Os Lusíadas, obra épica que apresenta um plano mitológico e outro histórico, consensualmente considerada o mais importante poema português, independentemente de qualquer circunstância estética ou histórica. PODCAST Agora, a professora Elaine Zeranze Bruno encerra o tema falando sobre Humanismo e Classicismo em Portugal. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Camões: labirintos e fascínios. Lisboa: Cotovia, 1994. AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Uma versão Brasileira da Literatura Portuguesa. Coimbra: Almedina, 1973. AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Camões, o Desconcerto do Mundo e a Estética da Utopia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. BARRETO, Luís Filipe. Os descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma análise sociocultural. Lisboa: Gradiva, 1989. BEMBO, Pietro. Prose dela volgar lingua: Gli asolani. Rima. Ed. Carlo Dionisotti. Milano: TEA, 1989. BENEDITO, Silvério. Para uma leitura de Os Lusíadas de Luís de Camões. Lisboa: Editorial Presença, 1997. BERNARDES, José Augusto Cardoso. Sátira e Lirismo: modelos de síntese no teatro de Gil Vicente. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1996. CAMÕES, Luís. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1976. CAMÕES, Luís de. Lírica: redondilhas e sonetos. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997. CAMÕES, L. V. de. Os Lusíadas. Edição organizada por António José Saraiva. Porto: Padrão, 1978. CAMÕES, Luís. Sonetos. [recurso eletrônico]. Jandira: Principis, 2020 FALCON, Francisco. 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CONTEUDISTA Mário Bruno CURRÍCULO LATTES javascript:void(0);
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