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neves_-_parasitologia_humana_-_11ed-81

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Médicos militares que tinham que tratar de soldados com 
ferimentos necrosados e infestados por larvas de moscas já 
haviam notada esse fenômeno. Os mecanismos de atuação 
das larvas podem ser resumidos em: remoção mecânica de 
bactérias causada pelo aumento acentuado do exsudato se- 
roso produzido pelo efeito irritativo das larvas sobre o te- 
cido sadio; proliferação rápida do tecido de granulação re- 
sultante do estímulo constante produzido pela movimenta- 
ção das larvas sobre o tecido sadio; liquefação enzimática 
do tecido necrosado; destruição de bactérias no tubo diges- 
tivo das larvas; presença de alantoína, uma substância an- 
tibacteriana produzida pelas larvas; alcalinização do meio 
devido a liberação de amônia e carbonato de cálcio, o que 
inibe a proliferação bacteriana. 
Com o descobrimento dos antibióticos, esse método de 
limpeza e tratamento de feridas foi abandonado. Entretanto, 
com o aparecimento de resistência generalizada de bactérias 
a antibióticos, associado ao fato de que a antibioticoterapia 
tem eficácia muito comprometida nos casos de osteomielite 
crônica, tumores necrosados e também certas úlceras crôni- 
cas, larvas de Califondeos têm sido novamente usadas no tra- 
tamento dessas afecções. Três espécies são as mais comu- 
mente utilizadas: Lucilia sericata, Lucilia ilustris e Phonnia 
regina. Destas, apenas a i? sericata ocorre no Brasil. Entre- 
tanto, algumas espécies locais são candidatas em potencial 
para esse tipo de utilização, como Cochliomyia macellaria e 
Lucilia eximia. Para isso, são necessários estudos mais deta- 
lhados da biologia dessas espécies. 
Capitulo 48 
 
A ordem Siphonaptera (siphon = tubo; aptera = sem 
asas) compreende insetos hematófagos de ambos os sexos, 
vulgarmente conhecidos como pulgas e bichos-de-pé. Esses 
insetos são encontrados em todo o mundo, com aproximada- 
mente 3.000 espécies conhecidas. Dessas, pouco mais de 250 
ocorrem na América do Sul, e no Brasil já foram assinaladas 
60 espécies elou subespécies. Estudos filogenéticos apontam 
a ordem Mecoptera como a mais próxima de Siphonaptera, 
embora as larvas de pulgas sejam semelhantes as larvas dos 
dípteros. Suctoria e Aphaniptera são nomes que anteriormen- 
te foram dados à ordem das pulgas. 
As pulgas na fase adulta são ectoparasitos de aves e ma- 
míferos, em especial destes últimos, enquanto, na fase larvária, 
apresentam vida livre e aparelho bucal do tipo mastigador. Al- 
gumas espécies apresentam especificidades de hospedeiro. 
Quase todas as ordens de mamíferos já foram encontradas 
parasitadas por sifonápteros, embora as mais fiequentes sejam 
Rodentia, Insectivora, Marsupialia, Chiroptera, Carnivora, 
Lagomolpha e Edentata. Entre os primatas, apenas o homem 
é hospedeiro habitual. Do ponto de vista epidemiológico, os 
roedores são os hospedeiros mais importantes, pelo fato de 
suas espécies serem incriminadas como reservatórios de vári- 
as infecções (peste, tularemia, tifo murino). 
Com relação à duração do parasitismo ou ao tempo de as- 
sociação com o hospedeiro, as pulgas podem viver sobre um 
determinado hospedeiro ou então, fora dele, geralmente em 
seu ninho. A maioria das espécies de pulgas enquadra-se no 
primeiro tipo, vivendo sobre a pelagem dos hospedeiros e 
neles alimentam-se intermitentemente (Xenopsylla spp, 
Ctenocephalides spp, Polygenis spp etc.) ou então, pene- 
trando sob a pele dos hospedeiros, aí se alimentando perma- 
nentemente (Emeas fertilizadas de Tunga spp). Outras es- 
pécies não vivem sobre o hospedeiro, só o procurando para 
exercer a hematofagia, como, por exemplo, Pulex irritans. 
As pulgas ocupam um lugar de destaque em Parasitolo- 
gia pelos diversos nichos que desempenham na interação 
entre organismos, atuando como parasitos, como transmis- 
sores (vetores) ou como hospedeiros intermediários. 
são agentes espoliadores sanguíneos (machos e fême- 
as), com várias espécies continuando a exercer a he- 
matofagia, mesmo após repletas; 
provocam irritação da pele devido à picada, oca- 
sionando dermatite e reações alérgicas de intensidade 
variada @. ex., prurigo de Hebra); 
causam lesões cutâneas nos locais de parasitismo por 
Tunga penetrans (bicho-de-pé), com a possível veicu- 
lação mecânica do tétano (Clostridium tetani), de gan- 
grenas gasosas (Clostridium perfrigens) e de esporos 
de fungos (Paracoccidioides brasiliensis). 
Em altas infestações, alguns animais de pequeno por- 
te podem apresentar-se anêmicos, pelas sucessivas hema- 
to fagias. 
Antígenos preparados de pulgas podem induzir hipos- 
sensibilidade ao hospedeiro, quando injetados intradermica- 
mente em concentrações graduais. Reações cmzadas entre 
antígenos de Ctenocephalides e Pulex ou entre os de 
Xenopsylla e Nosopsyllus (pulgas de roedores sinantrópi- 
cos mas que picam o homem) podem ocorrer. 
A tungíase apresenta alta prevalência no Brasil, es- 
pecialmente nos meses quentes e secos, ocasionando, en- 
tre os portadores, dificuldades de postura e locomoção, ne- 
crose óssea e tendinosa e até perda de dedos dos pés. 
viroses (Mixoma mollitor, agente da mixomatose em 
coelhos); 
doenças bacterianas: Yersinia pestis (anteriormente 
denominada Pasteurella pestis), agente da peste bu- 
bônica; Francisella tularensis, agente da tularemia; 
Salmonella enteritidis e Salmonella typhimurium, 
agentes de salmoneloses. Rickettsia mooseri, agente 
do tifo murino, que atinge humanos também. Recente- 
mente, usando-se técnicas moleculares, Rickettsia 
Capitulo 49 397 
felis foi diagnosticada em pulgas Ctenocephalides, em 
Minas Gerais. Esta espécie de bactéria é agente etio- 
lógico de uma nova riquetsiose que infecta humanos 
no México, EUA e Brasil. A técnica da PCR tem tam- 
bém permitido reconhecer DNA de Leishmania 
chagasi em Ctenocephalides, retiradas de cães natu- 
ralmente infectadas, levantando, assim, a possibilida- 
de da transmissão mecânica do calazar canino por meio 
de pulgas. 
Protozoa: Trypanosoma lewisi, com evolução em roe- 
dores sinantrópicos; 
Cestoda: Dypilidium caninum, com evolução no cão 
(ou acidental no homem); Hymenolepis nana e 
Hymenolepis diminuta, que se desenvolvem pos- 
teriormente no homem elou roedores; 
Nematoda: Dipetalonema reconditum, verme filaria1 
com posterior desenvolvimento em cães (ver Capítu- 
lo 58 - Exame de Vetores). 
De todos esses fatores, o mais importante é a transmis- 
são da peste bubônica. Essa é uma doença grave, co- 
nhecida-desde a Antiguidade, tendo sido responsabilizada 
por grandes pandemias, com milhões de mortes, na Europa 
e Asia, principalmente nos séculos VI e XIV. Nessa época, 
a doença era conhecida como "peste negra". Atualmente, 
existem certos focos isolados em várias partes do mundo, 
principalmente na Ásia, África e Américas (sudoeste dos 
EUA, Venemela, Peru, Equador, Bolívia, Argentina e Brasil). 
Alguns destes focos são considerados persistentes, pois a 
ocorrência dos surtos da doença é cíclica. 
No período de 197711 99 1 foram registrados 14.752 casos 
de Deste humana em todo o mundo. com cerca de 1.391 óbi- 
tos (9,42%). Discriminadamente por continentes, o nQ de ca- 
s,os/nQ de mortes assim se evidenciou neste mesmo período: 
Aíiica: 7.93911.010; Américas: 1.8741143; Asia: 4.9391238. 
Apenas em 1983 registraram-se 40 casos de peste huma- 
na no sudoeste dos EUA, o maior número desde 1920. 
Em nosso país, a peste bubônica entrou pelo porto de 
Santos em 1899, após ter sido introduzida na América do Sul 
através do porto fluvial de Assunção. Posteriormente, a pes- 
te se disseminou para várias cidades litorâneas e do interi- 
or. Passou a ser uma enzootia urbana, rural e silvestre. Com 
os combates sistemáticos feitos contra as pulgas (Xeno- 
psylla cheopis) e contra os ratos reservatórios (Rattus 
nowegicus - rato de esgoto; Rattus rattus - rato de te- 
lhados; Mus musculus - camundongos), a peste hoje se 
encontra no Brasil restrita a certos focos silvestres do Piauí, 
Ceará, Pemambuco, Bahia, Alagoas, norte de Minas e Rio 
de Janeiro (Teresópolis-Friburgo).Um total de 7 16 casos fo- 
ram notificados nos anos de 1974 e 1975. 
No Brasil, no período de 198011 993, foram registrados 736 
casos, com predominância para os Estados do Ceará (393), 
Bahia (274) e Paraíba (54). 
A Yersinia pestis é um bacilo Gram-negativo, extrema- 
mente patogênico para ratos, camundongos, cobaias, coe- 
lhos, macacos e homem. É capaz de sobreviver e conservar 
sua infectividade em fezes dessecadas de pulga, no solo e 
ninho de animais por longo tempo (cinco a 16 meses). 
Há evidências de que animais de estimação atuem tam- 
bém na transmissão, pelas pulgas de roedores infectados 
que eventualmente possam albergar. Em felinos, a doença 
também pode ser contraída por ingestão de roedores e coe- 
lhos infectados. 1. 
Em geral, a doença humana ocorre após um surto da 
doença entre os ratos. O aparecimento de numerosos ratos 
mortos é o primeiro sinal de peste, que deve ser tomado 
como alarma. Após a mortalidade dos ratos, as pulgas, 
necessitando de alimentos, procuram outros hospedeiros. 
Em certas regiões rurais do Nordeste, hospedeiros silvestres 
são atraídos para o interior ou proximidades das residênci- 
as (paióis abertos, casas de farinha), que abrigam algum ce- 
real colhido e armazenado sob a forma de grãos. Desta for- 
ma, os roedores silvestres elou campestres, bem como suas 
pulgas, são postos em contato íntimo com os moradores. 
Todavia, mais frequentemente, as pulgas de roedores silves- 
tres (Polygenis spp), intercambiando de hospedeiros, po- 
dem trazer a peste do meio rural ou silvestre para roedores 
domésticos. Estes, com suas pulgas próprias (Xenopsylla 
cheopis), mantêm a peste na zona urbana elou periurbana. 
Atingindo o homem, a pulga pode infectá-10 através da pi- 
cada; isto é, pela inoculação do bacilo (Fig. 49.1). Alcançan- 
do a via linfática, os bacilos são levados até os linfonodos 
regionais onde produzem uma inflamação dolorosa, denomi- 
nada bubão - forma bubônica. Deste ponto os bacilos po- 
dem cair na corrente sanguínea, atingindo vários órgãos 
(pulmões, figado, baço, meninges etc.). A forma pneumôni- 
ca pode ser adquirida dessa maneira ou por inalação de per- 
digotos e esputos provenientes de um paciente já com le- 
sões pulmonares. A forma pulmonar é a mais grave, com le- 
talidade próxima dos 100%. Outras formas clínicas co- 
nhecidas são: a forma septicêmica - menos frequente, ocor- 
rendo na fase terminal da peste bubônica ou pulmonar; for- 
ma ambulatória - também denominada "peste minor" -, 
que é uma forma abortiva da bubônica, com adenopatia mais 
discreta e pouco dolorosa, tendendo a cura completa. 
Uma razoável estimativa da infectibilidade pestosa em 
determinadas regiões poderá ser proporcionada através da 
observação da relação pulgalrato - índice pulicidianos. O 
índice pulicidiano global diz respeito a quantidade de pul- 
gas em ratos, enquanto o índice pulicidiano específico tra- 
ta da qualidade das pulgas capturadas. Geralmente, o índice 
específico mais utilizado é o cheopis, enquanto o número 
máximo de pulgas tolerado em ratos (p. ex., média mensal 
durante o período de um ano) é cinco. Desta forma, toda vez 
que a média de pulgas em ratos for superior a cinco, e a pul- 
ga prevalente for X cheopis, a coletividade estará altamen- 
te exposta a infecção. Ultimamente, tem-se admitido um ín- 
dice cheopis crítico de um (total de X cheopisltotal de ra- 
tos), segundo o qual, medidas de controle, em especial 
desinsetização, devem ser implementadas. 
A profilaxia consiste no combate sistemático aos ratos 
e ao transmissor habitual, isto é, a Xenopsylla cheopis, atra- 
vés de medidas como desratização e despulização. A anti- 
ratização pode ser também empregada, tendo-se em vista o 
afastamento dos roedores da habitação humana ou toman- 
do-a inadequada para a colonização dos mesmos (impermea- 
bilização dos pisos e rodapés, blindagem de embarcações e 
de prédios, limpeza e queima do lixo, acondicionamento dos 
gêneros alimentícios etc.). Além disso, em caso de surtos, 
pode-se empregar a vacinação em massa. 
Capitulo 49 
Epidemias pneumônicas 
Reservatório de peste urbana t 
Pulgas infectantes Pulgas infectantes 
Flg. 49.1 - Cadeia epidemiolbgia da peste: 1) peste urbana: transmissão da Yersinia pestis ao homem pela picada de Xenopsylla cheopis; 2) peste rural ou 
silvestre: manutenção da Y pestise entre medores silvestres (comum) e transmissão do bacilo ao homem pela picada de Polygenis spp (ocasional, seta ponti- 
lhada); 3) transmissão da peste de roedores silvestres e dom6sticos. A passagem de Polygenis spp para roedores domésticos é mais frequente do que a pas- 
sagem de X. cheopis para medores silvestres (modificado de Endemias Rurais - m6todos de trabalho adotados pelo DNERU - Rio de Janeiro, 1968). 
Quanto ao tratamento, é relativamente fácil, uma vez que 
o bacilo da peste é muito sensível a estreptomicina e sulfas. 
MORFOLOGIA 
As pulgas são insetos pequenos - 1 a 3rnm -, de cor 
castanho-escuro e corpo achatado lateralmente (para facili- 
tar a locomoção entre os pêlos). São ápteras; o último par 
de pernas é adaptado para saltar, o que lhes permite dar pu- 
los extraordinários, de várias vezes o seu tamanho. Apre- 
sentam aparelho bucal do tipo picador-sugador. Os machos, 
além de serem menores que as Emeas, diferenciam-se des- 
tas pela morfologia dos órgãos genitais: enquanto neles a 
extremidade posterior que alberga o órgão copulador es- 
piralado é pontuda e voltada para cima, nas Emeas a extre- 
midade posterior é arredondada, exibindo uma estrutura vi- 
sível após clarificação entre os segmentos VI1 e VI11 do ab- 
dome - espermateca - de paredes quitinizadas e com h- 
ção de reservatório de espermatozóides (Fig. 49.2B). As pul- 
gas possuem numerosas cerdas, de grande importância ta- 
xonômica. Dessas, as mais úteis para nós são as localizadas 
na cabeça, atrás das antenas, e as mais espessas, em forma 
de pente - ctenídio - presentes junto do aparelho bucal 
(gena) e no pronoto. Nas Figs. 49.2 e 49.3 são mostrados os 
detalhes mais importantes da morfologia desses insetos. 
BIOLOGIA 
mal, caso falte o seu preferido. Daí a possibilidade de 
transmissão de peste e outras doenças ao homem. A longe- 
vidade das pulgas é muito variável, dependendo da espécie, 
da atividade, da temperatura e umidade ambiente e do es- 
tado alimentar. Assim, certos experimentos sobre longevidade 
de algumas pulgas, alimentadas ou sem alimento, proporcio- 
naram os seguintes resultados: X cheopis (pulga do rato): 
alimentada, vive 100 dias; sem alimento, 38 dias; Pulex ir- 
ritans (pulga do homem): alimentada, 5 13 dias; sem alimen- 
to, 125 dias; Ctenophalides canis (pulga do cão e do gato): 
alimentada, 234 dias; sem alimento, 58 dias. A resistência ao 
As pulgas adultas são hematófagas obrigatórias. As lar- 
vas, que vivem no solo (frestas de assoalho) ou ninhos de Fig. 49.2 - Ctenocephalides felis felis - f6mea: A) sensilium; 8) es- 
animais, alimentam-se de dejeções ressecadas (sangue e fe- permateca; c ) tíbia posterior; D) peças bucais (palpos maxilares); E) ctenídio 
zes semidigeridas) das pulgas adultas. Cada espécie de pul- genal; F) olho; G) cerdas pds-antenais; H) ctenldio pronotal. 
ga tem um hospedeiro próprio, mas podem sugar outro ani- 
Capitulo: 49 399

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