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Razões para reeditar Manuel Bomfim

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RAZÕES PARA REEDITAR MANUEL BOMFIM 
DJ ACIR MENEZES 
Vários historiadores já disseram que a Vlsao de grandes episódios de 
nosso passado foi inspirada nos interesses da casa de Bragança, quase 
sempre confundidos com os interesses da nação que alvorecia no passa­
do colonial. Resguardamos a afirmativa naquele quase sempre, não por­
que pretendamos abrir escapatória para uma posição evasiva, tirando 
aquela linha de imparcialidade que se prego a como a verdadeira atitude 
do historiador pairando sereno aCima das rivalidades. Esse historiador de 
conflitos situado no famoso ponto de vista de Sirius, que não enxerga 
nos acontecimentos o fio da justiça e do porvir, é, para nós, uma expres­
são da tática que, mesmo no cemitério dos heroísmos já calados, procura 
uma bacia de Pilatos para eximir-se do compromisso com a verdade ou 
com o que, num determinado meio histórico, parece ser a verdade. 
Esses imparciais são apenas variantes do aulicismo de todos os tempos 
à volta de todos os poderes. Este pronunciamento é provocado pela relei­
tura da obra de Manuel Bomfim, o Brasil na história. 
Bem sabemos que a ilustre plêiade de defensores da estirpe bragantina, 
assanhada 40 anos atrás com as críticas do sergipano, empenhou-se em 
demonstrar-lhe os erros e as iniqüidades cometidas contra a energia imensa 
do pequeno país de pequena população, que soube conservar com bravu­
ra a integridade territorial e política do Brasil nascente. O que, porém, de­
sejamos destacar agora é que nem todas as teses levantadas por Bomfim 
podem ser relegadas e afastadas do caminho com simples gesto de enfado, 
sem discutir-lhes o mérito, as fontes informativas e, sobretudo, a refle­
xão interpretativa, que em todas as suas páginas se entranha na aprecia­
ção dos fatos. 
O que falta nos historiadores ditos imparciais é o que sobra em Bom­
fim: a honesta e máscula parcialidade. Nenhum grande historiador foi 
neutro diante das lutas que teve de narrar - porque a narrativa se inte­
gra num pensamento interpretativo inevitável. Ora, vão buscar imparciali­
dade nas páginas de Tácito ou de Suetônio! 
Voltamos a Manuel Bomfim. O que impressiona na ética de seu his­
toriar é, antes de tudo, a admirável parcialidade, que lhe dá a mais quente 
vibração patriótica. Quantas vezes não temos lido e ouvido, desde os 
bancos escolares, a narrativa das lutas contra a invasão holandesa ou a 
revolução de 1817 e 24, no Nordeste! Acontece, porém, que as figuras 
heróicas são neutralizadas nos seus objetivos patrióticos, desfilando, im­
parciais, na mente do estudante como seres que se sacrificaram por ideais 
R. Ci. pai., Rio de Janeiro, 22( 4): 143-144, out./dez. 1979 
desidratados. O mesmo livro que elogia os mártires Frei Caneca ou Tris­
tão de Alencar ou Pinto Madeira - elogia a reação bragantina. Nem 
conta a estupidez da reação: o chefe da Comissão Niemayer, fuzilando 
Bolão, quando este ainda escabujava na areia, deu-lhe o tiro da graça; o:; 
miolos do encéfalo saltaram. Então ele assobiou, chamando seu cão 
para comê-los. 
Detalhes? Sim, bárbaros detalhes, que compõem o quadro da repres­
são bragantina. Que impressão fariam num livro didático? Péssima. Talvez 
correspondente à impressão que transmitem o cinema e as tevês aos 
cérebros dos jovens, todos os dias, nos interiores domésticos. Portanto, 
se queremos inspirar delicadeza na formação dos sentimentos, o argu­
mento cai fora da pauta. Metam a viola no saco e deixem-se de hi­
pocrisias. 
Relemos todo o longo capítulo de Bornfim sobre a invasão holandesa, 
do seu Brasl na história. Reavivou-se-nos a admiração pela calidez cívica 
com que o historiador nos apresenta o desenrolar dos episód;os, destacan­
do-se, em André Vidal de Negreiros, o já vigoroso sentimento (por que 
não dizer patriótico?) contra o invasor. Sentimento tão forte que o faz 
desobedecer às ordens de D. João IV, que fazia negociatas traiçoeiras 
com a Holanda, prometendo-lhe a entrega de largo trecho da colônia em 
troca de auxílio contra Espanha. Em carta ao Marquês de Niza, dizia o 
rei: "O Padre Antônio Vieira levou ordem a Francisco de Souza Couti­
nho para fazer conveniência à Holanda, restituindo-lhe Pernambuco, 
sem nenhuma condição mais que a faz com este reino . .. " 
Já o papel de João Fernandes Vieira é oscilante, ao sabor de uns tantos 
propósitos comerciais, patriotismo de ricaço, senhor de engenhos e pre­
cisava ver melhor para que lado soprariam os ventos. Não tinha 2quele 
robusto sentimento da independência, que fervia no peito de um André 
Vidal, de um Henrique Dias ou' de um Camarão. "Portugal restaurado -
resume Bomfim causticamente - é o mísero pedinte, súplice aos pés 
do antigo e inexorável inimigo. Tolhido e apavorado, ele não passa de 
joguete, nas tricas da Europa, nos meados do século XVII." 
Nosso intuito aqui não é suscitar debates históricos para os quais nos 
falecem competência e tempo. O intuito é bem outro, que nos apressa.. 
mos a declarar. O Conselho de Cultura, com abundantes razões conhe­
cidas, tem contribuído para a maior divulgação dos nossos historiadores 
mediante a reedição de obras dificilmente acessíveis ao grande público. 
Os mais interessados são obrigados a freqüentar bibliotecas, mesmo pu­
blicações mais destinadas às estantes particulares dos estudiosos, como 
instrumentos de seu métier, livros de consulta permanente e de anotações. 
A obra histórica de Manuel Bomfim está neste caso. g um pensamento 
heterodoxo em relação à história apologética da casa de Bragança. que 
merece estudo e meditação. Sobretudo porque a paixão que anima o 
historiador sergipano é clara, límpida e do mais vivo teor patriótico e 
cívico. 
144 R.C.P.4179

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