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A INDEPENDt:NCIA COMO FATO POLíTICO CANDIDO MOTTA FILHO Se a independência deu a impressão de um desquite amigável entre Portugal e o Brasil é porque nela prevaleceu, sobre a força das armas, o critério político. Um estudioso dos assuntos da América Latina, Leopoldo Zea, em seu livro America en la historia, realçou bem esse aspecto, ao mostrar que o triunfo, na Europa, da modernidade, deu, como resultado, a formação de uma consciência própria a cada país sul americano. O liberalismo e o constitucionalismo conseqüente significaram, para esses países, uma forma de libertação. José Bonifácio, Bolivar, Miranda, O'Higgins e Artigas expressaram a força desse ideal. Homens carregados de acontecimentos não tiveram em conta aqui lo que Sidney Hook denomina "o poderia ter sido na História".1 José Bonifácio preferiu ao "poderia ter sido", fazer a história. É o que mostram os seus gestos, os seus sacrifícios e os seus escri tos. Nele habitou sempre a preocupação de reunir, numa conjun ção harmônica, o material indispensável para que o Brasil se tor nasse, ao invés de uma nação rebelde, uma nação livre. Com suas convicções iluministas, confiava muito mais na efi cácia do que numa luta nascida de desentendimentos sangrentos. Em julho de 1822, dizia ao cônsul americano que o "Brasil é uma nação e, como tal, ocupará o seu posto, sem ter que esperar ou solicitar o reconhecimento das demais potências". Afirmava, desse modo, a força interior do País para ser livre. Sabia José Bonifácio que a política exige, antes de tudo, "uma capacidade para o poder". Ela possuía campos de manobra para 1 Hook, Sidney. Os heróis através da história. R. Cio pol., Rio de Janeiro, 6 (3) 29-42, jul./set. 1972 que o espírito precavido substituísse o idealismo apaixonado e para que estivesse alerta ao sentido da oportunidade da ação ou da reação. Um país independente é realmente aquele que possui governo próprio ou aquilo que Gaston Bouthroul chama de "l'inventaire des ressources". Ao escrever José Bonifácio o manifesto de 6 de agosto de 1822 ou a circular de 14 de setembro desse ano, ao redigir cartas e instruções, ao defender o uso da vacina ou ao examinar as possi bilidades da meteorologia, ao pleitear a proteção da agricultura, do comércio, da indústria, da educação, da Universidade, da pro teção ao índio, a liberdade ao escravo, a assistência à criança aban donada, a organização das Forças Armadas, tentava somar todos os valores e todas as consciências para que o Brasil se impusesse pelo seu próprio valor. É que a terra conquistada tinha conquistado o conquistador. a colono que a explorava ia semeando, sem o saber, a semente de sua libertação. À medida que penetrava pelos desertões ou se acomodava no litoral, provocando os reparos de Frei Vicente do Salvador, o colono ia sendo envolvido pela energia telúrica, pela magia da paisagem, pela resistência das águas, das matas, dos animais ferozes, dos insetos e dos índios, por uma natureza enfim que o obrigava a falar uma língua diferente daquela falada nos centros europeus. A mentalidade do colono, dominada, como diz Paulo Prado, pela cobiça, modificava-se sob a pressão de uma terra sem com promissos com a civilização estilizada pela expansão comercial. 2 Emília Viotti da Costa diz que os colonos, que a princípio se consideravam "os portugueses do Brasil", acreditando que a dife rença entre eles e os habitantes do império era de área geográfica, percebem, cada vez mais claramente, a incompatibilidade entre seus interesses e os da metrópole. 3 E acrescenta: "As críticas feitas na Europa, pelo pensamento ilustrado, ao absolutismo, assumem, no Brasil, sentido de crítica ao sistema colonial. No Brasil, a ilustração é, antes de mais nada, anticolonialismo. Criticar a realeza, o poder absoluto do rei, signi fica lutar pela emancipação dos laços coloniais". 2 Prado, Paulo. Retrato do Brasil. 3 Costa, Emília Viotti da. Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil. In: Brasil em Perspectiva. 30 R.C.P. 3/72 Era aquele cenário um mundo sem regras. E na própria carta foral que regulava as relações entre o Rei, o donatário e os habi tantes das capitanias, está escrito: "Nas terras da capitania não entrarão, em tempo algum, nem corregedor, nem alçada, nem al guma espécie de justiça para exercitar jurisdição de qualquer modo em nome do Rei". Por sua vez, o regimento de Tomé de Sousa, de 17 de dezembro de 1548, que Basílio de Magalhães en tendia ser a primeira carta magna de nossa nacionalidade, procura regular o encontro do colono com a terra e com seus nativos habi tantes, realizando compras, vendas e escambos. Falando do trabalho e da aventura, Sérgio Buarque de Ho landa escreveu que o espírito de aventura teve influência decisiva em nossa vida colonial. "Num conjunto de fatores tão diversos, como as raças que aqui se chocaram, diz ele, os costumes e padrões de existência climatéricas que exigiam longo processo de adapta ção, foi o elemento orquestrador por excelência. Favorecendo a mobilidade social, estimulou os homens, além disso, a enfrentar, com denodo, as asperezas ou resistências da natureza e criou para eles, as condições adequadas a tal empresa". 4 E mostra que onde lhes faltasse o pão de trigo, aprendiam a comer o da terra e com tal requinte que, afirmava Gabriel Soa res, a gente de tratamento só comia farinha de mandioca fresca, feita no dia. Habituaram-se também a dormir em redes, à maneira dos índios. Alguns, como Vasco Coutinho, o donatário do Espírito Santo, iam ao ponto de beber e mascar fumo, segundo nos referem testemunhas do tempo. No esplendor e na miséria da sociedade colonial, enquanto a nobreza de fora perde em significado, realça-se o homem comum, como soma de todo os iguais que se concentram nas cidades e vilas. Vasques de Mello, no seu estudo sobre a Espanha, fixa movimento semelhante numa imagem: "um rio formado por afluentes que son las regiones". 5 Esse rio, que reflete a paisagem nacional, é que oferece os fundamentos políticos da independência. Oliveira Viana, que sustenta a preponderância, entre nós, do tipo rural, assinala a fusão de todos no todo brasileiro. As três classes terminam em uma síntese: derrota do elemento estrangeiro, representado no fidalgo adventício ou no luso comerciante; triunfo completo do elemento nacional, representado principalmente na 4 Buarque de Holanda, Sérgio. Raízes do Brasil. li Agesta, Luis Sanches. Derecho político. A independência 31 alta nobreza fazendeira. 6 Essa nobreza fazendeira, ao utilizar-se do povo-massa, confunde-se com ele. Mesmo que se aceite a tese de que o urbanismo colonial tenha sua origem política administrativa na Colônia, a cidade não surge como uma oposição no campo, mas como uma expressão da inter dependência entre ambos. Assim, Piratininga foi "a porta do ser tão", estação de embarque para a aventura sertaneja. Mesmo a ostentação dos fazendeiros não esconde o sentido da riqueza local, diversa da riqueza colonial, como acontecia com as comemorações de 8 de dezembro, com festança por dias e missa cantada. Lembra Capistrano de Abreu, que o beneditino pernambucano Loreto Couto, encontrava o "exaltamento, a glorificação do indí gena em confronto com a antiga gente de Portugal, numa signifi cativa exibição de nativismo". 7 Em Cayá, ouvindo o discurso de um cacique, o governador geral Francisco Mendonça Furtado, chegou a exclamar: "E estes são os homens de quem se diz que não tem juízo nem são capazes de nada. Deles se pode fazer uma nação como qualquer outra de que se pode tirar grande interesse". Chegando D. João VI, em 22 de janeiro de 1808, a Salvador, assinava a carta régia, abrindo os portos às nações amigas e, com isso, mantinha o comércio com a Inglaterra com quem Portugal assinava um tratado em 1810, proporcionando facilidades para a instalação no país de comerciante ingleses. Aliás, o alvará de 1.0 de abril de 1808, propiciando aliberdade para as indústrias, ao referir-se às manufaturas, à indústria, aos gêneros e produtos da agricultura e das artes, lembra a preocupa ção de José Bonifácio. O que proclamava Bolívar e que coincidia com o Manifesto de Miranda, já era sugerido por um ministro de Carlos 111, em 1783: a formação na América de uma monarquia sob a égide do Rei da Espanha. Também D. Rodrigo de Souza Coutinho procla mava a possibliidade de ser transferida a sede definitiva da monar quia portuguesa para o Brasil. A independência não era o fruto de sonhos e ideais livrescos. la sendo construída pela realidade, num jogo político lógico e con seqüente. E ela começa a se mostrar politicamente no plano do interesse público quando, por exemplo, no começo de 1611, os oficiais da Câmara de São Paulo de Piratininga se mostravam 6 Viana, Oliveira. Populações meridionais. Abreu, Capistrano. Capítulos da História Colonial. 32 R.C.P. 3/72 zelosos na defesa do povo "alvorotado pela ameaça de muitos ban dos e corrilhos". As câmaras, aos conquistarem legitillÚdade representativa, as seguram sólido prestígio e incontestável autoridade e chegam a suspender governadores e nomear seus substitutos. 8 Em 1685, Manuel Guedes Aranha, procurador da Câmara de São Luiz do Maranhão, dizia: "Se os governadores representam as pessoas reais, as repúblicas, isto é, as câmaras e senados, repre sentam o primeiro governo do mundo". No regime colonial, para João Lisboa, um dos mais extraordi nários fenômenos que oferece a História é a grande expansão do regime municipal na Colônia ... E Oliveira Lima afirma a mesma coisa, ao dizer que "as municipalidades constituem, em suma, a sementeira colonial das franquias liberais"9 Nos preâmbulos da Independência, quando ainda repercutia a notícia trazida pelo brique Providência, já se encontravam em mãos do Príncipe D. Pedro a representação da Junta de São Paulo, com adesão de outras juntas e câmaras, sobre sua permanência no País. A maneira pctla qual se comportavam as câmaras já re percutia na Europa, tanto que Marshal dizia, em carta, a Metter nich, que "essa massa que representa aproximadamente dois llÚ lhões de habitantes, é bastante forte para resistir aos esforços da Coroa e promover, com o correr dos tempos, a união das demais províncias" . Pelas câmaras, em meio às exigências locais, ia-se impondo o interesse nacional. Numa sociedade que ainda não chegara a definir, em sua inte gridade, seu corpo político, a representação do que existe se avan tajqva a qualquer tentativa de seleção ou de formação de classe. Oliveira Viana reconhece esse fato, quando escreve que, apesar da regra de que quem não fosse fidalgo não podia exercer a ve 'l"eança, "a função seletiva não se exerceu com o rigor exigido pelas Ordenações. Muita gente conseguiu ter o seu nome inscrito nos pelouros e chegar a vereador, inclusive mestiços e gente vinda do povo e mesmo da plebe. E se, em São Luiz, a Câmara recebia homens do povo disfarçados em nobres, em Piratininga, no quadro de vereadores e juízes e nos altos postos da governança, tinha gente do povo-massa". "Freqüentemente", diz Oliveira Viana, ci tando Cassiano Ricardo, "o povo-massa, a plebe citadina, aparecem 8 Lisboa, João & Silva, Ferreira da. Obras. v. 1. 9 Lima, Oliveira. América Latina e América inglesa. A independência 33 com seus procuradores reclamando, protestando, ameaçando, rei vindicando direitos ou pedindo providências de interesse local". C. R. Boxerr, em seu estudo sobre as relações raciais no impé rio colonial português, diz que "o fato dos paulistas terem grande parcela de sangue índio e de, por muitas gerações falarem entre si o tupi, preferindo-o ao português, não os impedia de ter opinião favorável da capacidade dos índios como os missionários jesuítas". Domingo Jorge Velho explicava à Coroa, em 1649, porque o seu "regimento" era constituído de índios, mais de 800 e com mui tos brancos que provavelmente tinham grande porcentagem de sangue índio: "Não é de gente matriculada nos livros de V. Mag.", esclarece ele. E engrossa suas tropas com os índios e com eles guerreavam "a obstinados e renitentes". Se o anticolonialismo se mostrava na ostentação dos fazendei ros, mostrava-se também em outras ostentações. O Visconde Ponte Lima aparece, numa praça de touros, com mais de 20 negros ves tidos à mourisca, com asseio e custo, e todos com suas cartas de alforria atadas nos braços. lU No planalto de Piratininga, em plena ofensiva colonial, Bar tolomeu Bueno, antigo açougueiro, ou Pais Leme antigo carpin teiro, não cuidavam de exibir suas nobrezas pelos dobres e lati fúndios que possuíam. "O prestígio que eles exerciam sobre a massa," diz Oliveira Viana, "na ágora rústica do Anhangabaú, ou os títulos de nobreza que lhes justificavam a fascinação sobre a plebe aldeã, estavam em seu bacamarte erguida no pulso encardido pelas fráguas do sertão e na indiaria escravizada pelo poder de sua lança". 11 A conquista da terra, a penetração pelas áreas difíceis e agres sivas dos sertões, selecionavam os mais audaciosos e mais destemi dos. Não era o nobre pela tradição portuguesa o vencedor, pois era ele posto em pé de igualdade com o plebeu. A transferência da família real portuguesa serve para que descubram, como se subisse o pano de boca do teatro, o panorama de um Império. Conforme o parecer de M. Manchester, "a mudan ça da Corte para o Rio de Janeiro não foi apenas a transferência dos elementos de um Estado soberano. Revestiu a colônia da forma de um sistema novo, muito embora antigo e familiar. Através desse 10 Silva, José Soares da. Gazeta, forma de carta, 1701-1776. 11 Viana, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. v. 1. 34 R.C.P.3/72 processo, o governo português no Brasil tornou-se um governo brasileiro" . 12 Aparentemente, a ordem administrativa da Colônia continuava com todos os estigmas coloniais, mas estava, na realidade, estreme cida pela nova vontade de ser, que se expressava principalmente pelas câmaras, que eram, no dizer de Melo Morais, "as únicas corporações populares no Brasil". 13 O episódio do "Fico" comprova ainda mais essa conclusão. O "Fico" foi o reconhecimento de uma vontade nacional. O apelo era um convite para a fundação de um Império Brasileiro. Nesse ano de 1821, deveria D. Pedro voltar a Portugal e concluir sua educação. Foi então que José Mariano e Joaquim da Rocha, enten dendo-se com Clemente Pereira na presidência do Senado da Câ mara do Rio de Janeiro, pediram a este que fizesse valer sua re conhecida influência para que D. Pedro não deixasse o país. Surgiram representações dos povos das diversas regiões pe dindo a D. Pedro que convocasse, quanto antes, uma assembléia geral, porque nada mais se esperava da Corte de Lisboa. 14 "As câmaras", como evidencia Carvalho Mourão, não se ma nifestam contra a situação colonial por mera rebeldia ou tuburlên cia, mas porque nelas estava "a consciência, cada vez mais desen volvida, dos legítimos interesses do povo" .15 As barreiras para que a vontade do Príncipe fosse apenas a vontade do povo, fez-se protesto em 1817, com a revolução per nambucana, quando a Constituição revolucionária de março de 1817 estabelecia em seu preâmbulo que o governo, revestido da soberania do povo, em quem ela só reside, desejava corresponder à confiança do próprio povo ... O Comendador Antonio Joaquim de Melo, na notícia que dá de Frei Caneca, reconhece como um documento importantíssimo de profissão de fé política como o primeiro e imprescritível fun damento do nosso direito público constitucional, o termo de acla mação de Pedro I, redigido nestes termos: "Aos oitos dias do mes de dezembro de 1822 nesta vila do Recife e paços do concelho dela, onde se achava o juiz de fora pela lei, vereadores e procurador da câmara comigo, escrivão da câmara, aí compareceram a excelen- 12 Manchester, M. Conflito e continuidade da sociedade brasileira. 13 Morais, Melo.História da transladação da Corte portuguesa para o Brasil 1807-1808. H Sales, Alberto. Política republicana. 1;; Mourão, Carvalho. Revista do Instituto Histórico, t. especial, 1921. A independência 35 tíssima junta provisória, o governador das armas, a relação, clero, nobreza e povo, os homens bons que no mesmo Senado tem servi do, os misteres e mais cidadãos de todas as classes, civis e militares para o fim de se aclamar ao senhor D. Pedro I, Imperador Consti tucional e Perpetuo Defensor do Brasil, o que sendo-lhes proposto, responderam que esta medida tomada pelos povos do Rio de J a neiro e por eles transmitida às mais províncias do Brasil, por só competir ao rei constitucional os atributos do poder". O que manifestava esse documento pernambucano era o que, por várias formas e diferentes argumentos e tons, se manifestavam as forças políticas do Brasil, desde o clero até a maçonaria, desde a imprensa até o Imperador. Após 1789, em 1798, na Bahia, como em 1817, em Pernambuco, o que se desejava era o regime democrático constitucional, como forma de assegurar a Independência. O grito do Ipiranga pode então ser visto como um brado coletivo, provindo não do capricho individual de um príncipe, mas das entranhas de um povo com capacidade de ser livre. Ê verdade que Pedro I era um expansivo, uma vocação para a luta, um ledor dos livros libertários. Em 23 de julho de 1822, a Princesa Leopoldina inquietava-se com as atitudes de seu ma rido e escrevia ao pai, o Imperador Francisco I da Áustria: "Aqui tudo é confusão, por toda parte dominam os princípios novos, da afamada Liberdade e Independência. Estão trabalhando para for mar uma Confederação de Povos, no sistema democrático, como nos Estados livres da América do Norte. O meu marido que, infe lizmente, ama tudo o que é novidade, está entusiasmado, como me parece, e terá no fim que espiar tudo; de mim desconfiam o que fundo me regozija porque, mercê de Deus, não tenho que dar minha opinião e ao tempo fico fora das lutas. Podeis estar descansado, caro papai, que não esquecerei, aconteça o que acon tecer, o que devo à religião e aos meus princípios de austríaca; e que não vos inquieteis por mim, porque confio no Onipotente que nunca abandona aqueles que n'Ele se apoiamo Quando tudo andar mal e tomar a feição da Revolução Francesa, irei com os meus filhos para a minha pátria, pois, quanto ao meu marido, estou convencida, a meu grande pesar, que a venda da cegueira não lhes sairá dos olhos". Essa carta assinala a temperatura do clima político existente, a situação de D. Pedro entusiasmado com as novidades, quando se cogita estabelecer no país uma confederação, à semelhança dos Estados Unidos. 36 R.C.P.3/72 No plano jurídico, tudo o que existia era distante da realidade. As relações na Colônia faziam-se entre a aventura e trabalho, e uma burocracia completamente estranha ao mesmo. A não ser as instituições municipais, que se transformaram em órgãos das as pirações do país, o acordo de vontades dentro das condições exis tentes, ainda não se fazia valer de forma legal. Como escreve Martins Junior,16 desde as doações das capitanias que se abria uma brecha na concepção do direito português. "O Direito que ia vigorar na Colônia não decorria dos interesses das populações. Era um direito que estava feito, que precisaria simplesmente ser aplicado, depois de importado". E diz Martins Junior: "conseqüen temente, nós brasileiros temos, porque deveríamos ter, um direito de origem peregrina, de procedência estrangeira, alienígena". Mas, como o direito não se aplicava como devia ser, ao invés dele se criava uma interpretação mais adequada de suas normas. Em suas tentativas iniciais de adaptação, tendo em conta fidalgos, peões e gentios, aperava à lógica jurídica, como que contrariando a sistemática portuguesa, diminuído pelos plenos poderes que eram dados aos donatários das capitanias. "Um território vastíssimo", escreve João Francisco Lisboa, "foi dividido sem critério em uma dúzia de capitanias, maiores algumas que os maiores reinos da Europa e enfeudados perpetuamente a alguns validos e capitães, homens da Corte e de guerra, a cuja amplíssima jurisdição ficou pertencendo a distribuição e a exploração do solo, a povoação e a defesa dos campos e cidades, o exercício da justiça e a maior parte dos outros atributos da soberania". No direito substantivo, em muitos pontos importantes da legis lação comum foram modificados, tais como os referentes à suces são e à propriedade material, definida no livro 2.°, título 17 da compilação manuelina. A mesma coisa aconteceu no direito processual, quer na parte criminal, quer na parte civil, dadas prerrogativas de alçada e ju risdição conferidas aos donatários. A adaptação de um certo direito a uma forma completamente estranha a ele, facilita a vitória de um direito próprio sobre esse direito. Entre muitas outras, uma situação difícil é a apontada por Luis de Gois, irmão do donatário Per o Gois, da Capitania de São Vicente, numa carta a EI-Rei D. João II: "Se com tempo e brevi dade V. A. não socorre estas capitanias e costas do Brasil, ainda que nos percamos as vidas e fazendas, V. A. perderá as terras". 16 Martins Júnior. História do direito nacional. A independência 37 Esse "perder as terras", que se ligava ao acumular das ambi ções de colonos, de franceses, de holandeses, dava, como resultado, uma terra que não seria mais de povos estranhos a ela, mas da queles que com ela viviam e conviviam. Na esfera do direito pú blico, sustentou então Martins Junior, "o poder onímodo, excep cional dos governadores proprietários, abria brecha no edifício le gislativo da mãe pátria". A abertura dos portos do Brasil ao comércio do mundo se deve ao maior jurisconsulto da era colonial, José da Silva Lisboa, autor dos Princípios de direito mercantil; é, para Clovis Bevilaqua, uma conquista do direito brasileiro. "Aparecendo no momento em que se iniciava transformação política, da qual havia de surgir a independência do país, exprimiu", diz Clovis, "com extraordinária felicidade, a orientação liberal do direito que melhor convinha ao Estado americano, cujos destinos elevados a sua aspiração patrió tica propiciava. Ainda não se assinalou, com justiça, o valor deste homem. Pode-se, porém dizem desassombradamente, que a sua influência, na formação das idéias políticas e jurídicas do Brasil de seu tempo, foi altamente benéfica e das mais eficazes". A Carta Régia, de 28 de janeiro de 1808, ao Conde da Ponte, facilitando a entrada nas alfândegas de todo o Brasil de gêneros, fa zendas e mercadorias, suspende todas as cartas régias ou outras ordens que proibiam, no Brasil, o recíproco comércio e navegação, transformava-o num amplo centro de interesses, trazendo-lhe mais benefícios do que ao Reino. Acontece o mesmo no plano literário, que aviva o sentimento nativista a partir da época de D. João VI, que já vinha de longe, com a literatura informativa ou com a literatura laudatória. Es trangeiros e brasileiros concorrem para a singularização de uma consciência nacional. Oliveira Lima, em Aspectos da literatura colonial brasileira engloba, num mesmo plano, os cronistas portugueses, os jesuítas e até os viajantes estrangeiros que escreveram sobre o Brasil, mui to embora se veja o começo de uma literatura brasileira em Bento Teixeira e Frei Vicente do Salvador. A verdade é que, a partir, principalmente, do século XVI, aparece uma "intenção particula rista", que foi ampliando o espaço cultural do país, numa expres siva continuidade, que se intensificou no século XVIII com o co mércio dos livros e a multiplicação das bibliotecas. Essa conquista, que vai da Prosopopéia, de Bento Teixeira até às Obras poéticas, de Cláudio Manuel da Costa, reflete a existência de uma intenção comum. 38 R.C.P. 3/72 A ordem constitucional da Colônia, durante e após a presença de D. João VI, parece conservar os estigmas coloniais.Mas, as brechas no edifício colonial, que vinham de longe, alargam-se, realmente, objetivando uma ruptura definitiva. Desde as desco bertas das minas, a consciência da Colônia de que havia mais uma colonização do que uma civilização está patente. Quando começa a florescer no País, ao lado da agricultura, da pecuária e da mine ração, a indústria têxtil, surge, em 30 de julho de 1766, uma ordem da Coroa para que se estendesse para o Brasil todo a decisão que, em 1751, se tomara contra Minas Gerais - a destruição de todas as oficinas de ourives. Por sua vez, em 1785, ordenava-se que, "pela brandura ou violência, fossem exterminadas as manufaturas têx teis." A presença de D. João VI no País, ao provocar a melhoria em todos os setores, consegue até diminuir a corrupção que rei nava entre os magistrados, que só obedeciam aos empenhos e às peitas. Com as escolas que surgem, aparecem as imprensas e as tipografias, as fábricas e as fundições que aprimoram a consciên cia nacional. Para Oliveira Lima, em sua biografia de D. João VI, ele foi "o monarca que fundou a nacionalidade brasileira". Nesse quadro, o que se distingue é a Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815, que elevou o Brasil à dignidade de Reino Unido ao de Portugal e de Algarve. A Carta, em seu preâmbulo, refere-se às potências reunidas no Congresso de Viena e dispõe em seu art. 1.0, que "desde a publicação desta Carta de Lei o Estado do Brasil seja elevado à dignidade de Reino do Brasil". Isso mostra que Oliveira Lima tem plena razão ao assinalar o papel político de D. João na escalada pela independência. Os novos valores que trazia se somavam a outros. E era isso que preocupava José Bonifácio, para quem era preciso que houvesse uma ordem de valores interna, capaz de impor-se no campo inter nacional. A constitucionalização surgia para isso. A Constituinte, con vocada em 1823, e a Carta Constitucional de 1824 propiciavam, pela mediação da Inglaterra, o Tratado de Paz e Aliança, com Por tugal, com a assinatura de três plenipotenciários em nome de D. João VI e D. Pedro I, e o inglês sir Charles Stuart. Aquilo que D. Pedro escrevera ao pai, em 22 de setembro de 1822, pondo as carta na mesa, com sua impetuosa linguagem, ficou amortecido diante desse tratado, só ficando, sem sombras de dú vidas, este trecho: "se o povo de Portugal teve o direito de se constituir revolucionariamente, está claro que o povo do Brasil A independência 39 o tem dobrado, porque vai se constituindo, respeitando a mim e às autoridades estabelecidas". Quando Gonçalves Ledo, numa sessão da maçonaria, um mês antes da Independência, considerava o Brasil um país livre, o ca minho já estava amplamente aberto por D. João VI, que viu de perto a realidade nacional. D. Pedro, ao dizer, na áspera carta citada, horrores das Cortes portuguesas, que tudo faziam contra o Brasil e ao afirmar que "de Portugal, nada; não queremos nada", mostrava-se "o condutor conduzido" de que falam certos historiadores, posto, sem medos, ao lado das circunstâncias. A constitucionalização iria dar contextura político-jurídica ao novo Estado. A política, como força criadora do poder ou da con quista do poder, acobertava-se nos mantos do direito, que é, por essência, conservador do poder. A "Fala do Trono", na Constituinte de 1823, é uma sinfonia de abertura, um cântico de esperanças: "Afinal raiou o grande dia para este vasto Império que fará época na sua História. Está junta a Assembléia para constituir a Nação. Que fortuna para todos nós". "Como Imperador constitucional e, mui especialmente, como Defensor Perpétuo deste Império, disse ao povo, no dia 1.0 de dezembro do ano passado, em que fui coroado e sagrado, que a minha espada defenderia a Pátria, a Nação, a Constituição, se fosse digna do Brasil e de mim. Ratifico hoje, mui solenemente, perante vós, essa promessa e espero que me ajudeis a desempenhá-la, fa zendo da Constituição, sábia, justa, adequada e executável, ditada pela razão e não pelos caprichos, que tenha em vista a felicidade geral que nunca pode ser grande, sem que esta Constituição tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos tenha mostrado que são as verdadeiras para darem uma justa liberdade aos povos e toda força necessária ao Poder Executivo. Uma Constituição em que os três poderes sejam bem divididos, de modo que não pos sam arrogar direitos que lhe não competem, mas que sejam de tal modo organizados e harmonizados, que se lhes torne impossível, pelo decurso do tempo, fazerem-se inimigos e cada vez mais con corram de mãos dadas para a felicidade geral do Estado ... " "Todas as constituições que, à maneira das de 1791 e 92, têm estabelecido suas bases e se têm querido organizar, a experiência nos tem mostrado que são totalmente teóricas e metafísicas e, por isso, inexeqüíveis, assim o prova, a França, Espanha, e, ultima mente, Portugal". 40 R.C.P. 3/72 Como se vê, o Imperador diz ao início dos trabalhos da Cons tituinte que esse "era o maior dia que o Brasil tem tido", dia em que ele, pela primeira vez, começa a mostrar que "é império e império livre!" É nessa "Fala do Trono" que se enuncia, desde logo, a neces sidade de harmonia entre os poderes e o reconhecimento de que o Imperador, que tinha, em suas mãos, o poder constituinte, por ser o Defensor Perpétuo do Brasil. Mas, por isso mesmo, armou-se o primeiro conflito sobre a competência constituinte, que se alme java com a amplitude ditada por Séyes. O presidente da Assembléia, cioso de suas prerrogativas, não rejeita o desafio imperial, dizendo na resposta à Sua Majestade: "A distinção dos poderes políticos é a primeira base de todo o edifício constitucional; estes poderes acham-se já distintamente no recinto desta sala: a sabedoria coletiva da Nação, a autoridade constituinte e legislativa, o chefe do Poder Executivo." E, assim, no amanhecer da nacionalidade, quando se propõe a cobertura constitucional de um império livre, é que se revela, bem nítida, a consciência do problema essencial da organização de poderes, como um aviso para os dias futuros! Os que estão presentes à Assembléia Constituinte invocam seus poderes originários: para começar, o Imperador, que alega o título de fundador do Império, de Defensor Perpétuo do Brasil e que, por isso, o poder constituinte nasce de suas mãos e se trans fere para a Assembléia, desde que esta não omita seus direitos orIgmarIos. A seguir, a Assembléia Constituinte e Legislativa afirma seu privilégio, pois é representativa do poder originário do povo. Esses dois poderes defendiam, cada um com suas razões ou desrazões, o processo de organização nacional. Por isso, o grande Antonio Carlos, no voto de graça que traçou, dizia: "a Assembléia não trairá os seus comitentes, oferecendo os direitos da nação em baixo holocausto ao trono de Vossa Magestade Imperial, nem terá o ardimento de invadir as prerrogativas da Coroa ... " Ao estudar o ano de 1823, Homem de Melo diz, com toda ra zão, que "é esse o período mais importante da nossa história cons titucional. É a primeira palavra do sistema representativo entre nós" .17 Quem percorre o tomo 1 dos Anais do Parlamento brasileiro, de 1823, verifica, de pronto, que nele se debatem os grandes e os 17 Melo, Homem de. A Constituinte perante a história. A independência 41 pequenos problemas políticos. Na própria fala imperial, D. Pedro se mostra preocupado com os problemas urbanos do Rio de Ja neiro, como também com os da instrução pública, das bibliotecas, da assistência oferecida pela Santa Casa, quando se surpreendeu ao encontrar em uma roda de expostos, sete crianças com duas amas! Dissolvida a Constituinte, na tarde de 12 de novembro de 1823, logo o Imperador cuida da elaboração de um projeto de constitui ção que afinal, vencendo às relutâncias, foi legitimada pelas câ maras municipais. O jovem Nabuco de Araujo, testemunha de notáveis aconte cimentos políticos, escreveu: "Depoisde tantas convulsões, reite radas e funestas experiências (refere-se aos fatos de 1824), ade rimos finalmente à Constituição que nos rege; entrou em sua mar cha o governo representativo". 18 j.' Araujo, Nabuco. Velho de 1817, n. 1. 42 A Revista de Direito Administrativo representa, no meio brasileiro, o mais denso e categorizado veículo da doutrina, jurisprudência e legis lação nos vinte e seis anos de sua vida ininterrupta. ~ a bíblia dos administrativistas, na qual professores, advogados, juízes, homens de Governo e de empresa, estudantes e funcionários pÚblicos encontram a resposta adequada, a informação segura e a crientação científica nos temas de Direito Administrativo, Constitucional, Tributário e afins. o seu manuseio ilustra, edifica e esclarece, lastreando a cultura e abastecendo para a vida profissional. Suas páginas refletem, com atualidade e exatidão, as constantes mutações do Direito Público e da atividade administrativa brasileira, tendo lugar permanente em qual quer biblioteca jurídica. CAIO TÁCITO R.C.P. 3/72
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