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A INDEPENDt:NCIA COMO FATO POLíTICO 
CANDIDO MOTTA FILHO 
Se a independência deu a impressão de um desquite amigável 
entre Portugal e o Brasil é porque nela prevaleceu, sobre a força 
das armas, o critério político. 
Um estudioso dos assuntos da América Latina, Leopoldo Zea, 
em seu livro America en la historia, realçou bem esse aspecto, ao 
mostrar que o triunfo, na Europa, da modernidade, deu, como 
resultado, a formação de uma consciência própria a cada país sul­
americano. 
O liberalismo e o constitucionalismo conseqüente significaram, 
para esses países, uma forma de libertação. José Bonifácio, Bolivar, 
Miranda, O'Higgins e Artigas expressaram a força desse ideal. 
Homens carregados de acontecimentos não tiveram em conta aqui­
lo que Sidney Hook denomina "o poderia ter sido na História".1 
José Bonifácio preferiu ao "poderia ter sido", fazer a história. 
É o que mostram os seus gestos, os seus sacrifícios e os seus escri­
tos. Nele habitou sempre a preocupação de reunir, numa conjun­
ção harmônica, o material indispensável para que o Brasil se tor­
nasse, ao invés de uma nação rebelde, uma nação livre. 
Com suas convicções iluministas, confiava muito mais na efi­
cácia do que numa luta nascida de desentendimentos sangrentos. 
Em julho de 1822, dizia ao cônsul americano que o "Brasil é uma 
nação e, como tal, ocupará o seu posto, sem ter que esperar ou 
solicitar o reconhecimento das demais potências". Afirmava, desse 
modo, a força interior do País para ser livre. 
Sabia José Bonifácio que a política exige, antes de tudo, "uma 
capacidade para o poder". Ela possuía campos de manobra para 
1 Hook, Sidney. Os heróis através da história. 
R. Cio pol., Rio de Janeiro, 6 (3) 29-42, jul./set. 1972 
que o espírito precavido substituísse o idealismo apaixonado e 
para que estivesse alerta ao sentido da oportunidade da ação ou 
da reação. 
Um país independente é realmente aquele que possui governo 
próprio ou aquilo que Gaston Bouthroul chama de "l'inventaire 
des ressources". 
Ao escrever José Bonifácio o manifesto de 6 de agosto de 1822 
ou a circular de 14 de setembro desse ano, ao redigir cartas e 
instruções, ao defender o uso da vacina ou ao examinar as possi­
bilidades da meteorologia, ao pleitear a proteção da agricultura, 
do comércio, da indústria, da educação, da Universidade, da pro­
teção ao índio, a liberdade ao escravo, a assistência à criança aban­
donada, a organização das Forças Armadas, tentava somar todos 
os valores e todas as consciências para que o Brasil se impusesse 
pelo seu próprio valor. 
É que a terra conquistada tinha conquistado o conquistador. 
a colono que a explorava ia semeando, sem o saber, a semente 
de sua libertação. À medida que penetrava pelos desertões ou se 
acomodava no litoral, provocando os reparos de Frei Vicente do 
Salvador, o colono ia sendo envolvido pela energia telúrica, pela 
magia da paisagem, pela resistência das águas, das matas, dos 
animais ferozes, dos insetos e dos índios, por uma natureza enfim 
que o obrigava a falar uma língua diferente daquela falada nos 
centros europeus. 
A mentalidade do colono, dominada, como diz Paulo Prado, 
pela cobiça, modificava-se sob a pressão de uma terra sem com­
promissos com a civilização estilizada pela expansão comercial. 2 
Emília Viotti da Costa diz que os colonos, que a princípio se 
consideravam "os portugueses do Brasil", acreditando que a dife­
rença entre eles e os habitantes do império era de área geográfica, 
percebem, cada vez mais claramente, a incompatibilidade entre 
seus interesses e os da metrópole. 3 
E acrescenta: "As críticas feitas na Europa, pelo pensamento 
ilustrado, ao absolutismo, assumem, no Brasil, sentido de crítica 
ao sistema colonial. No Brasil, a ilustração é, antes de mais nada, 
anticolonialismo. Criticar a realeza, o poder absoluto do rei, signi­
fica lutar pela emancipação dos laços coloniais". 
2 Prado, Paulo. Retrato do Brasil. 
3 Costa, Emília Viotti da. Introdução ao estudo da emancipação política do 
Brasil. In: Brasil em Perspectiva. 
30 R.C.P. 3/72 
Era aquele cenário um mundo sem regras. E na própria carta­
foral que regulava as relações entre o Rei, o donatário e os habi­
tantes das capitanias, está escrito: "Nas terras da capitania não 
entrarão, em tempo algum, nem corregedor, nem alçada, nem al­
guma espécie de justiça para exercitar jurisdição de qualquer 
modo em nome do Rei". Por sua vez, o regimento de Tomé de 
Sousa, de 17 de dezembro de 1548, que Basílio de Magalhães en­
tendia ser a primeira carta magna de nossa nacionalidade, procura 
regular o encontro do colono com a terra e com seus nativos habi­
tantes, realizando compras, vendas e escambos. 
Falando do trabalho e da aventura, Sérgio Buarque de Ho­
landa escreveu que o espírito de aventura teve influência decisiva 
em nossa vida colonial. "Num conjunto de fatores tão diversos, 
como as raças que aqui se chocaram, diz ele, os costumes e padrões 
de existência climatéricas que exigiam longo processo de adapta­
ção, foi o elemento orquestrador por excelência. Favorecendo a 
mobilidade social, estimulou os homens, além disso, a enfrentar, 
com denodo, as asperezas ou resistências da natureza e criou para 
eles, as condições adequadas a tal empresa". 4 
E mostra que onde lhes faltasse o pão de trigo, aprendiam 
a comer o da terra e com tal requinte que, afirmava Gabriel Soa­
res, a gente de tratamento só comia farinha de mandioca fresca, 
feita no dia. Habituaram-se também a dormir em redes, à maneira 
dos índios. Alguns, como Vasco Coutinho, o donatário do Espírito 
Santo, iam ao ponto de beber e mascar fumo, segundo nos referem 
testemunhas do tempo. 
No esplendor e na miséria da sociedade colonial, enquanto a 
nobreza de fora perde em significado, realça-se o homem comum, 
como soma de todo os iguais que se concentram nas cidades e vilas. 
Vasques de Mello, no seu estudo sobre a Espanha, fixa movimento 
semelhante numa imagem: "um rio formado por afluentes que 
son las regiones". 5 Esse rio, que reflete a paisagem nacional, é 
que oferece os fundamentos políticos da independência. 
Oliveira Viana, que sustenta a preponderância, entre nós, do 
tipo rural, assinala a fusão de todos no todo brasileiro. As três 
classes terminam em uma síntese: derrota do elemento estrangeiro, 
representado no fidalgo adventício ou no luso comerciante; triunfo 
completo do elemento nacional, representado principalmente na 
4 Buarque de Holanda, Sérgio. Raízes do Brasil. 
li Agesta, Luis Sanches. Derecho político. 
A independência 31 
alta nobreza fazendeira. 6 Essa nobreza fazendeira, ao utilizar-se 
do povo-massa, confunde-se com ele. 
Mesmo que se aceite a tese de que o urbanismo colonial tenha 
sua origem política administrativa na Colônia, a cidade não surge 
como uma oposição no campo, mas como uma expressão da inter­
dependência entre ambos. Assim, Piratininga foi "a porta do ser­
tão", estação de embarque para a aventura sertaneja. 
Mesmo a ostentação dos fazendeiros não esconde o sentido da 
riqueza local, diversa da riqueza colonial, como acontecia com as 
comemorações de 8 de dezembro, com festança por dias e missa 
cantada. 
Lembra Capistrano de Abreu, que o beneditino pernambucano 
Loreto Couto, encontrava o "exaltamento, a glorificação do indí­
gena em confronto com a antiga gente de Portugal, numa signifi­
cativa exibição de nativismo". 7 Em Cayá, ouvindo o discurso de 
um cacique, o governador geral Francisco Mendonça Furtado, 
chegou a exclamar: "E estes são os homens de quem se diz que 
não tem juízo nem são capazes de nada. Deles se pode fazer uma 
nação como qualquer outra de que se pode tirar grande interesse". 
Chegando D. João VI, em 22 de janeiro de 1808, a Salvador, 
assinava a carta régia, abrindo os portos às nações amigas e, com 
isso, mantinha o comércio com a Inglaterra com quem Portugal 
assinava um tratado em 1810, proporcionando facilidades para a 
instalação no país de comerciante ingleses. 
Aliás, o alvará de 1.0 de abril de 1808, propiciando aliberdade 
para as indústrias, ao referir-se às manufaturas, à indústria, aos 
gêneros e produtos da agricultura e das artes, lembra a preocupa­
ção de José Bonifácio. 
O que proclamava Bolívar e que coincidia com o Manifesto 
de Miranda, já era sugerido por um ministro de Carlos 111, em 
1783: a formação na América de uma monarquia sob a égide do 
Rei da Espanha. Também D. Rodrigo de Souza Coutinho procla­
mava a possibliidade de ser transferida a sede definitiva da monar­
quia portuguesa para o Brasil. 
A independência não era o fruto de sonhos e ideais livrescos. 
la sendo construída pela realidade, num jogo político lógico e con­
seqüente. E ela começa a se mostrar politicamente no plano do 
interesse público quando, por exemplo, no começo de 1611, os 
oficiais da Câmara de São Paulo de Piratininga se mostravam 
6 Viana, Oliveira. Populações meridionais. 
Abreu, Capistrano. Capítulos da História Colonial. 
32 R.C.P. 3/72 
zelosos na defesa do povo "alvorotado pela ameaça de muitos ban­
dos e corrilhos". 
As câmaras, aos conquistarem legitillÚdade representativa, as­
seguram sólido prestígio e incontestável autoridade e chegam a 
suspender governadores e nomear seus substitutos. 8 
Em 1685, Manuel Guedes Aranha, procurador da Câmara de 
São Luiz do Maranhão, dizia: "Se os governadores representam 
as pessoas reais, as repúblicas, isto é, as câmaras e senados, repre­
sentam o primeiro governo do mundo". 
No regime colonial, para João Lisboa, um dos mais extraordi­
nários fenômenos que oferece a História é a grande expansão do 
regime municipal na Colônia ... E Oliveira Lima afirma a mesma 
coisa, ao dizer que "as municipalidades constituem, em suma, a 
sementeira colonial das franquias liberais"9 
Nos preâmbulos da Independência, quando ainda repercutia 
a notícia trazida pelo brique Providência, já se encontravam em 
mãos do Príncipe D. Pedro a representação da Junta de São Paulo, 
com adesão de outras juntas e câmaras, sobre sua permanência 
no País. A maneira pctla qual se comportavam as câmaras já re­
percutia na Europa, tanto que Marshal dizia, em carta, a Metter­
nich, que "essa massa que representa aproximadamente dois llÚ­
lhões de habitantes, é bastante forte para resistir aos esforços da 
Coroa e promover, com o correr dos tempos, a união das demais 
províncias" . 
Pelas câmaras, em meio às exigências locais, ia-se impondo o 
interesse nacional. 
Numa sociedade que ainda não chegara a definir, em sua inte­
gridade, seu corpo político, a representação do que existe se avan­
tajqva a qualquer tentativa de seleção ou de formação de classe. 
Oliveira Viana reconhece esse fato, quando escreve que, apesar 
da regra de que quem não fosse fidalgo não podia exercer a ve­
'l"eança, "a função seletiva não se exerceu com o rigor exigido 
pelas Ordenações. Muita gente conseguiu ter o seu nome inscrito 
nos pelouros e chegar a vereador, inclusive mestiços e gente vinda 
do povo e mesmo da plebe. E se, em São Luiz, a Câmara recebia 
homens do povo disfarçados em nobres, em Piratininga, no quadro 
de vereadores e juízes e nos altos postos da governança, tinha 
gente do povo-massa". "Freqüentemente", diz Oliveira Viana, ci­
tando Cassiano Ricardo, "o povo-massa, a plebe citadina, aparecem 
8 Lisboa, João & Silva, Ferreira da. Obras. v. 1. 
9 Lima, Oliveira. América Latina e América inglesa. 
A independência 33 
com seus procuradores reclamando, protestando, ameaçando, rei­
vindicando direitos ou pedindo providências de interesse local". 
C. R. Boxerr, em seu estudo sobre as relações raciais no impé­
rio colonial português, diz que "o fato dos paulistas terem grande 
parcela de sangue índio e de, por muitas gerações falarem entre 
si o tupi, preferindo-o ao português, não os impedia de ter opinião 
favorável da capacidade dos índios como os missionários jesuítas". 
Domingo Jorge Velho explicava à Coroa, em 1649, porque o 
seu "regimento" era constituído de índios, mais de 800 e com mui­
tos brancos que provavelmente tinham grande porcentagem de 
sangue índio: "Não é de gente matriculada nos livros de V. Mag.", 
esclarece ele. E engrossa suas tropas com os índios e com eles 
guerreavam "a obstinados e renitentes". 
Se o anticolonialismo se mostrava na ostentação dos fazendei­
ros, mostrava-se também em outras ostentações. O Visconde Ponte 
Lima aparece, numa praça de touros, com mais de 20 negros ves­
tidos à mourisca, com asseio e custo, e todos com suas cartas de 
alforria atadas nos braços. lU 
No planalto de Piratininga, em plena ofensiva colonial, Bar­
tolomeu Bueno, antigo açougueiro, ou Pais Leme antigo carpin­
teiro, não cuidavam de exibir suas nobrezas pelos dobres e lati­
fúndios que possuíam. "O prestígio que eles exerciam sobre a 
massa," diz Oliveira Viana, "na ágora rústica do Anhangabaú, ou 
os títulos de nobreza que lhes justificavam a fascinação sobre a 
plebe aldeã, estavam em seu bacamarte erguida no pulso encardido 
pelas fráguas do sertão e na indiaria escravizada pelo poder de 
sua lança". 11 
A conquista da terra, a penetração pelas áreas difíceis e agres­
sivas dos sertões, selecionavam os mais audaciosos e mais destemi­
dos. Não era o nobre pela tradição portuguesa o vencedor, pois 
era ele posto em pé de igualdade com o plebeu. 
A transferência da família real portuguesa serve para que 
descubram, como se subisse o pano de boca do teatro, o panorama 
de um Império. Conforme o parecer de M. Manchester, "a mudan­
ça da Corte para o Rio de Janeiro não foi apenas a transferência 
dos elementos de um Estado soberano. Revestiu a colônia da forma 
de um sistema novo, muito embora antigo e familiar. Através desse 
10 Silva, José Soares da. Gazeta, forma de carta, 1701-1776. 
11 Viana, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. v. 1. 
34 R.C.P.3/72 
processo, o governo português no Brasil tornou-se um governo 
brasileiro" . 12 
Aparentemente, a ordem administrativa da Colônia continuava 
com todos os estigmas coloniais, mas estava, na realidade, estreme­
cida pela nova vontade de ser, que se expressava principalmente 
pelas câmaras, que eram, no dizer de Melo Morais, "as únicas 
corporações populares no Brasil". 13 
O episódio do "Fico" comprova ainda mais essa conclusão. 
O "Fico" foi o reconhecimento de uma vontade nacional. O apelo 
era um convite para a fundação de um Império Brasileiro. Nesse 
ano de 1821, deveria D. Pedro voltar a Portugal e concluir sua 
educação. Foi então que José Mariano e Joaquim da Rocha, enten­
dendo-se com Clemente Pereira na presidência do Senado da Câ­
mara do Rio de Janeiro, pediram a este que fizesse valer sua re­
conhecida influência para que D. Pedro não deixasse o país. 
Surgiram representações dos povos das diversas regiões pe­
dindo a D. Pedro que convocasse, quanto antes, uma assembléia 
geral, porque nada mais se esperava da Corte de Lisboa. 14 
"As câmaras", como evidencia Carvalho Mourão, não se ma­
nifestam contra a situação colonial por mera rebeldia ou tuburlên­
cia, mas porque nelas estava "a consciência, cada vez mais desen­
volvida, dos legítimos interesses do povo" .15 
As barreiras para que a vontade do Príncipe fosse apenas a 
vontade do povo, fez-se protesto em 1817, com a revolução per­
nambucana, quando a Constituição revolucionária de março de 
1817 estabelecia em seu preâmbulo que o governo, revestido da 
soberania do povo, em quem ela só reside, desejava corresponder 
à confiança do próprio povo ... 
O Comendador Antonio Joaquim de Melo, na notícia que dá 
de Frei Caneca, reconhece como um documento importantíssimo 
de profissão de fé política como o primeiro e imprescritível fun­
damento do nosso direito público constitucional, o termo de acla­
mação de Pedro I, redigido nestes termos: "Aos oitos dias do mes 
de dezembro de 1822 nesta vila do Recife e paços do concelho dela, 
onde se achava o juiz de fora pela lei, vereadores e procurador da 
câmara comigo, escrivão da câmara, aí compareceram a excelen-
12 Manchester, M. Conflito e continuidade da sociedade brasileira. 
13 Morais, Melo.História da transladação da Corte portuguesa para o Brasil 
1807-1808. 
H Sales, Alberto. Política republicana. 
1;; Mourão, Carvalho. Revista do Instituto Histórico, t. especial, 1921. 
A independência 35 
tíssima junta provisória, o governador das armas, a relação, clero, 
nobreza e povo, os homens bons que no mesmo Senado tem servi­
do, os misteres e mais cidadãos de todas as classes, civis e militares 
para o fim de se aclamar ao senhor D. Pedro I, Imperador Consti­
tucional e Perpetuo Defensor do Brasil, o que sendo-lhes proposto, 
responderam que esta medida tomada pelos povos do Rio de J a­
neiro e por eles transmitida às mais províncias do Brasil, por só 
competir ao rei constitucional os atributos do poder". 
O que manifestava esse documento pernambucano era o que, 
por várias formas e diferentes argumentos e tons, se manifestavam 
as forças políticas do Brasil, desde o clero até a maçonaria, desde 
a imprensa até o Imperador. 
Após 1789, em 1798, na Bahia, como em 1817, em Pernambuco, 
o que se desejava era o regime democrático constitucional, como 
forma de assegurar a Independência. 
O grito do Ipiranga pode então ser visto como um brado 
coletivo, provindo não do capricho individual de um príncipe, mas 
das entranhas de um povo com capacidade de ser livre. 
Ê verdade que Pedro I era um expansivo, uma vocação para 
a luta, um ledor dos livros libertários. Em 23 de julho de 1822, 
a Princesa Leopoldina inquietava-se com as atitudes de seu ma­
rido e escrevia ao pai, o Imperador Francisco I da Áustria: "Aqui 
tudo é confusão, por toda parte dominam os princípios novos, da 
afamada Liberdade e Independência. Estão trabalhando para for­
mar uma Confederação de Povos, no sistema democrático, como 
nos Estados livres da América do Norte. O meu marido que, infe­
lizmente, ama tudo o que é novidade, está entusiasmado, como 
me parece, e terá no fim que espiar tudo; de mim desconfiam o 
que fundo me regozija porque, mercê de Deus, não tenho que 
dar minha opinião e ao tempo fico fora das lutas. Podeis estar 
descansado, caro papai, que não esquecerei, aconteça o que acon­
tecer, o que devo à religião e aos meus princípios de austríaca; 
e que não vos inquieteis por mim, porque confio no Onipotente 
que nunca abandona aqueles que n'Ele se apoiamo Quando tudo 
andar mal e tomar a feição da Revolução Francesa, irei com os 
meus filhos para a minha pátria, pois, quanto ao meu marido, estou 
convencida, a meu grande pesar, que a venda da cegueira não 
lhes sairá dos olhos". 
Essa carta assinala a temperatura do clima político existente, 
a situação de D. Pedro entusiasmado com as novidades, quando 
se cogita estabelecer no país uma confederação, à semelhança dos 
Estados Unidos. 
36 R.C.P.3/72 
No plano jurídico, tudo o que existia era distante da realidade. 
As relações na Colônia faziam-se entre a aventura e trabalho, e 
uma burocracia completamente estranha ao mesmo. A não ser as 
instituições municipais, que se transformaram em órgãos das as­
pirações do país, o acordo de vontades dentro das condições exis­
tentes, ainda não se fazia valer de forma legal. Como escreve 
Martins Junior,16 desde as doações das capitanias que se abria 
uma brecha na concepção do direito português. "O Direito que 
ia vigorar na Colônia não decorria dos interesses das populações. 
Era um direito que estava feito, que precisaria simplesmente ser 
aplicado, depois de importado". E diz Martins Junior: "conseqüen­
temente, nós brasileiros temos, porque deveríamos ter, um direito 
de origem peregrina, de procedência estrangeira, alienígena". 
Mas, como o direito não se aplicava como devia ser, ao invés 
dele se criava uma interpretação mais adequada de suas normas. 
Em suas tentativas iniciais de adaptação, tendo em conta fidalgos, 
peões e gentios, aperava à lógica jurídica, como que contrariando 
a sistemática portuguesa, diminuído pelos plenos poderes que eram 
dados aos donatários das capitanias. "Um território vastíssimo", 
escreve João Francisco Lisboa, "foi dividido sem critério em uma 
dúzia de capitanias, maiores algumas que os maiores reinos da 
Europa e enfeudados perpetuamente a alguns validos e capitães, 
homens da Corte e de guerra, a cuja amplíssima jurisdição ficou 
pertencendo a distribuição e a exploração do solo, a povoação e 
a defesa dos campos e cidades, o exercício da justiça e a maior 
parte dos outros atributos da soberania". 
No direito substantivo, em muitos pontos importantes da legis­
lação comum foram modificados, tais como os referentes à suces­
são e à propriedade material, definida no livro 2.°, título 17 da 
compilação manuelina. 
A mesma coisa aconteceu no direito processual, quer na parte 
criminal, quer na parte civil, dadas prerrogativas de alçada e ju­
risdição conferidas aos donatários. 
A adaptação de um certo direito a uma forma completamente 
estranha a ele, facilita a vitória de um direito próprio sobre esse 
direito. Entre muitas outras, uma situação difícil é a apontada por 
Luis de Gois, irmão do donatário Per o Gois, da Capitania de São 
Vicente, numa carta a EI-Rei D. João II: "Se com tempo e brevi­
dade V. A. não socorre estas capitanias e costas do Brasil, ainda 
que nos percamos as vidas e fazendas, V. A. perderá as terras". 
16 Martins Júnior. História do direito nacional. 
A independência 37 
Esse "perder as terras", que se ligava ao acumular das ambi­
ções de colonos, de franceses, de holandeses, dava, como resultado, 
uma terra que não seria mais de povos estranhos a ela, mas da­
queles que com ela viviam e conviviam. Na esfera do direito pú­
blico, sustentou então Martins Junior, "o poder onímodo, excep­
cional dos governadores proprietários, abria brecha no edifício le­
gislativo da mãe pátria". 
A abertura dos portos do Brasil ao comércio do mundo se 
deve ao maior jurisconsulto da era colonial, José da Silva Lisboa, 
autor dos Princípios de direito mercantil; é, para Clovis Bevilaqua, 
uma conquista do direito brasileiro. "Aparecendo no momento em 
que se iniciava transformação política, da qual havia de surgir a 
independência do país, exprimiu", diz Clovis, "com extraordinária 
felicidade, a orientação liberal do direito que melhor convinha ao 
Estado americano, cujos destinos elevados a sua aspiração patrió­
tica propiciava. Ainda não se assinalou, com justiça, o valor deste 
homem. Pode-se, porém dizem desassombradamente, que a sua 
influência, na formação das idéias políticas e jurídicas do Brasil 
de seu tempo, foi altamente benéfica e das mais eficazes". 
A Carta Régia, de 28 de janeiro de 1808, ao Conde da Ponte, 
facilitando a entrada nas alfândegas de todo o Brasil de gêneros, fa­
zendas e mercadorias, suspende todas as cartas régias ou outras 
ordens que proibiam, no Brasil, o recíproco comércio e navegação, 
transformava-o num amplo centro de interesses, trazendo-lhe mais 
benefícios do que ao Reino. 
Acontece o mesmo no plano literário, que aviva o sentimento 
nativista a partir da época de D. João VI, que já vinha de longe, 
com a literatura informativa ou com a literatura laudatória. Es­
trangeiros e brasileiros concorrem para a singularização de uma 
consciência nacional. 
Oliveira Lima, em Aspectos da literatura colonial brasileira 
engloba, num mesmo plano, os cronistas portugueses, os jesuítas 
e até os viajantes estrangeiros que escreveram sobre o Brasil, mui­
to embora se veja o começo de uma literatura brasileira em Bento 
Teixeira e Frei Vicente do Salvador. A verdade é que, a partir, 
principalmente, do século XVI, aparece uma "intenção particula­
rista", que foi ampliando o espaço cultural do país, numa expres­
siva continuidade, que se intensificou no século XVIII com o co­
mércio dos livros e a multiplicação das bibliotecas. Essa conquista, 
que vai da Prosopopéia, de Bento Teixeira até às Obras poéticas, 
de Cláudio Manuel da Costa, reflete a existência de uma intenção 
comum. 
38 R.C.P. 3/72 
A ordem constitucional da Colônia, durante e após a presença 
de D. João VI, parece conservar os estigmas coloniais.Mas, as 
brechas no edifício colonial, que vinham de longe, alargam-se, 
realmente, objetivando uma ruptura definitiva. Desde as desco­
bertas das minas, a consciência da Colônia de que havia mais uma 
colonização do que uma civilização está patente. Quando começa 
a florescer no País, ao lado da agricultura, da pecuária e da mine­
ração, a indústria têxtil, surge, em 30 de julho de 1766, uma ordem 
da Coroa para que se estendesse para o Brasil todo a decisão que, 
em 1751, se tomara contra Minas Gerais - a destruição de todas 
as oficinas de ourives. Por sua vez, em 1785, ordenava-se que, "pela 
brandura ou violência, fossem exterminadas as manufaturas têx­
teis." 
A presença de D. João VI no País, ao provocar a melhoria 
em todos os setores, consegue até diminuir a corrupção que rei­
nava entre os magistrados, que só obedeciam aos empenhos e às 
peitas. Com as escolas que surgem, aparecem as imprensas e as 
tipografias, as fábricas e as fundições que aprimoram a consciên­
cia nacional. Para Oliveira Lima, em sua biografia de D. João VI, 
ele foi "o monarca que fundou a nacionalidade brasileira". Nesse 
quadro, o que se distingue é a Carta de Lei de 16 de dezembro 
de 1815, que elevou o Brasil à dignidade de Reino Unido ao de 
Portugal e de Algarve. A Carta, em seu preâmbulo, refere-se às 
potências reunidas no Congresso de Viena e dispõe em seu art. 1.0, 
que "desde a publicação desta Carta de Lei o Estado do Brasil 
seja elevado à dignidade de Reino do Brasil". 
Isso mostra que Oliveira Lima tem plena razão ao assinalar 
o papel político de D. João na escalada pela independência. Os 
novos valores que trazia se somavam a outros. E era isso que 
preocupava José Bonifácio, para quem era preciso que houvesse 
uma ordem de valores interna, capaz de impor-se no campo inter­
nacional. 
A constitucionalização surgia para isso. A Constituinte, con­
vocada em 1823, e a Carta Constitucional de 1824 propiciavam, 
pela mediação da Inglaterra, o Tratado de Paz e Aliança, com Por­
tugal, com a assinatura de três plenipotenciários em nome de 
D. João VI e D. Pedro I, e o inglês sir Charles Stuart. 
Aquilo que D. Pedro escrevera ao pai, em 22 de setembro de 
1822, pondo as carta na mesa, com sua impetuosa linguagem, ficou 
amortecido diante desse tratado, só ficando, sem sombras de dú­
vidas, este trecho: "se o povo de Portugal teve o direito de se 
constituir revolucionariamente, está claro que o povo do Brasil 
A independência 39 
o tem dobrado, porque vai se constituindo, respeitando a mim e 
às autoridades estabelecidas". 
Quando Gonçalves Ledo, numa sessão da maçonaria, um mês 
antes da Independência, considerava o Brasil um país livre, o ca­
minho já estava amplamente aberto por D. João VI, que viu de 
perto a realidade nacional. 
D. Pedro, ao dizer, na áspera carta citada, horrores das Cortes 
portuguesas, que tudo faziam contra o Brasil e ao afirmar que 
"de Portugal, nada; não queremos nada", mostrava-se "o condutor 
conduzido" de que falam certos historiadores, posto, sem medos, 
ao lado das circunstâncias. 
A constitucionalização iria dar contextura político-jurídica ao 
novo Estado. A política, como força criadora do poder ou da con­
quista do poder, acobertava-se nos mantos do direito, que é, por 
essência, conservador do poder. A "Fala do Trono", na Constituinte 
de 1823, é uma sinfonia de abertura, um cântico de esperanças: 
"Afinal raiou o grande dia para este vasto Império que fará 
época na sua História. Está junta a Assembléia para constituir 
a Nação. Que fortuna para todos nós". 
"Como Imperador constitucional e, mui especialmente, como 
Defensor Perpétuo deste Império, disse ao povo, no dia 1.0 de 
dezembro do ano passado, em que fui coroado e sagrado, que a 
minha espada defenderia a Pátria, a Nação, a Constituição, se fosse 
digna do Brasil e de mim. Ratifico hoje, mui solenemente, perante 
vós, essa promessa e espero que me ajudeis a desempenhá-la, fa­
zendo da Constituição, sábia, justa, adequada e executável, ditada 
pela razão e não pelos caprichos, que tenha em vista a felicidade 
geral que nunca pode ser grande, sem que esta Constituição tenha 
bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos tenha mostrado 
que são as verdadeiras para darem uma justa liberdade aos povos 
e toda força necessária ao Poder Executivo. Uma Constituição em 
que os três poderes sejam bem divididos, de modo que não pos­
sam arrogar direitos que lhe não competem, mas que sejam de 
tal modo organizados e harmonizados, que se lhes torne impossível, 
pelo decurso do tempo, fazerem-se inimigos e cada vez mais con­
corram de mãos dadas para a felicidade geral do Estado ... " 
"Todas as constituições que, à maneira das de 1791 e 92, têm 
estabelecido suas bases e se têm querido organizar, a experiência 
nos tem mostrado que são totalmente teóricas e metafísicas e, por 
isso, inexeqüíveis, assim o prova, a França, Espanha, e, ultima­
mente, Portugal". 
40 R.C.P. 3/72 
Como se vê, o Imperador diz ao início dos trabalhos da Cons­
tituinte que esse "era o maior dia que o Brasil tem tido", dia em 
que ele, pela primeira vez, começa a mostrar que "é império 
e império livre!" 
É nessa "Fala do Trono" que se enuncia, desde logo, a neces­
sidade de harmonia entre os poderes e o reconhecimento de que 
o Imperador, que tinha, em suas mãos, o poder constituinte, por 
ser o Defensor Perpétuo do Brasil. Mas, por isso mesmo, armou-se 
o primeiro conflito sobre a competência constituinte, que se alme­
java com a amplitude ditada por Séyes. 
O presidente da Assembléia, cioso de suas prerrogativas, não 
rejeita o desafio imperial, dizendo na resposta à Sua Majestade: 
"A distinção dos poderes políticos é a primeira base de todo o 
edifício constitucional; estes poderes acham-se já distintamente no 
recinto desta sala: a sabedoria coletiva da Nação, a autoridade 
constituinte e legislativa, o chefe do Poder Executivo." 
E, assim, no amanhecer da nacionalidade, quando se propõe 
a cobertura constitucional de um império livre, é que se revela, 
bem nítida, a consciência do problema essencial da organização 
de poderes, como um aviso para os dias futuros! 
Os que estão presentes à Assembléia Constituinte invocam 
seus poderes originários: para começar, o Imperador, que alega 
o título de fundador do Império, de Defensor Perpétuo do Brasil 
e que, por isso, o poder constituinte nasce de suas mãos e se trans­
fere para a Assembléia, desde que esta não omita seus direitos 
orIgmarIos. A seguir, a Assembléia Constituinte e Legislativa 
afirma seu privilégio, pois é representativa do poder originário 
do povo. 
Esses dois poderes defendiam, cada um com suas razões ou 
desrazões, o processo de organização nacional. Por isso, o grande 
Antonio Carlos, no voto de graça que traçou, dizia: "a Assembléia 
não trairá os seus comitentes, oferecendo os direitos da nação em 
baixo holocausto ao trono de Vossa Magestade Imperial, nem terá 
o ardimento de invadir as prerrogativas da Coroa ... " 
Ao estudar o ano de 1823, Homem de Melo diz, com toda ra­
zão, que "é esse o período mais importante da nossa história cons­
titucional. É a primeira palavra do sistema representativo entre 
nós" .17 
Quem percorre o tomo 1 dos Anais do Parlamento brasileiro, 
de 1823, verifica, de pronto, que nele se debatem os grandes e os 
17 Melo, Homem de. A Constituinte perante a história. 
A independência 41 
pequenos problemas políticos. Na própria fala imperial, D. Pedro 
se mostra preocupado com os problemas urbanos do Rio de Ja­
neiro, como também com os da instrução pública, das bibliotecas, 
da assistência oferecida pela Santa Casa, quando se surpreendeu 
ao encontrar em uma roda de expostos, sete crianças com duas 
amas! 
Dissolvida a Constituinte, na tarde de 12 de novembro de 1823, 
logo o Imperador cuida da elaboração de um projeto de constitui­
ção que afinal, vencendo às relutâncias, foi legitimada pelas câ­
maras municipais. 
O jovem Nabuco de Araujo, testemunha de notáveis aconte­
cimentos políticos, escreveu: "Depoisde tantas convulsões, reite­
radas e funestas experiências (refere-se aos fatos de 1824), ade­
rimos finalmente à Constituição que nos rege; entrou em sua mar­
cha o governo representativo". 18 
j.' Araujo, Nabuco. Velho de 1817, n. 1. 
42 
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CAIO TÁCITO 
R.C.P. 3/72

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