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o ORA TORIANO, O JESUIT A E A DIALÉTICA Djacir Menezes "Nur ein Atheist kann ein guter Christ seio, gewiss aber auch: nur eio Christ kann ein guter Atherist seio." (Ernst Bloch) Não tenho a pretensão de ter arquivo. Portanto, direi modesta e veridicamente: na maçaroca de papéis e cadernos (que são a parte oculta de minha personalidade literária), encontrei, por obra e graça do acaso, uma longa carta ao Padre Bastos d'Ávila comentando e agradecendo seu livro O pensamento social cristão antes de Marx, editado em 1972. É uma seleção de 13 autores cujos textos são precedidos de exímios comentários. Já lá se vão 16 anos da carta perdida no báratro de meus papéis. S6 agora, entretanto, me desculpo da indelicadeza.da omissão. O que dizia, porém, vale a pena repetir, pois minha admiração s6 fez crescer nesses três lustros de invariável e afetuosa convivência neste conselho. Ora pro ximos, ora distantes, doutrinariamente falando, nem o padre se preocupou com as veleidades de um dos maiores fil6sofos do município de Maranguape, nem min guou o valor daquela trezena de autores que o sacerdote convocou a discuti-los na sua antologia à volta das barbas proféticas de Karl Marx. Aconteceu que o autor que lia no momento era precisamente o Padre Gratry e minha atenção convergia para sua lição sobre dialética, em diversas passagens dos dois tomos de Lógica, edição de 1908. Informa-nos Bastos d'Ávila que o "fil6so fo alemão Hegel admirava Gratry com certa ironia por sua engenhos idade em construir sistemas mentais". As leituras de Hegel foram inconseqüentes para Gra try. pois um hábil catequista levou-o ao sacerdócio, ao magistério e à direção da Escola Normal Superior. E nas suas classes passaram Durkheim, Levy-Bruhl, Heori Bergson, Charles Blondel, Jean Jaures, Pierre Janet e tantos mais. Gratry deixou a direção da escola para escrever um livro contra Vacherot, que ia nas pe gadas de Hegel e negava as fontes sobrenaturais do cristianismo. Grande era então a fermentação religiosa - e o padre Gratry participava da polêmica. Às vésperas do Concílio Vaticano I, acaloravam-se os debates sobre o dogma da infalibilidade do papa. Em carta ao Ndncio Ruffi Scella, Ignaz von 001- linger declarava, amargurado, que "recusava mudar minha fé, recusava crer e pro fessar um novo dogma ao que me tinham ensinado na juventude e do qual conhe cia a falsidade por 56 anos de estudos e de pesquisa". E, logo adiante, continua va: "Fui professor ativo de religião durante 47 anos ( ... ) Durante esse longo período, sempre ensinei o contrário do que foi decidido por Pio XI em 1870". En tre n6s, a ressonância veio através do Papa e do Concflio, na tradução de Rui, en comendada pela maçonaria graças à ação de Saldanha Marinho. Era uma época de tremenda agitação. O cenário europeu ressoava com o revi goramento das correntes do proletariado industrial, conflitos de classes se agrava vam, a unidade bismarckiana se i~punha contra as dinastias alemãs, o liberalismo weimariano mascarava antagonismos que moviam a velha Prussia, a Kulturkampf batalhava pela civilização no enchevêtrement de questões poUticas, econômicas e religiosas onde o grande capital enfrentava já as primeiras grandes organizações do sindicalismo revolucionário, a doutrina de Monroe soltava seus primeiros pro testos contra o colonialismo ... Desde 1848, em Bruxelas, o Manifesto comunista entrara em circulação. O Padre Gratry lançava seu Catecismo social, que o Padre R. C. pol., Rio de Janeiro, 32(3)62-6, maio/jul. 1989 Bastos d'Ãvila considera vasado "em método socrático", isto é, o processo maiêu tico de partejamento da verdade imortalizado na obra de Platão. No fundo, uma mensagem social em estilo de catecismo bem acessível às massas. Note-se, de pas sagem, que o rascunho originário de Engels, antes de passar às mãos de Marx, adotava a mesma forma didática. Eu ainda não lera o Padre Gratry quando encontrei () trecho em Bastos d'Ávila, o extrato do opt1sculo Les SOUTces de la régenérati6n sociale (1871), texto que re produz o Cathecisme sociale, Demandes et responses sur les devoirs sociaux (1848). O diálogo tem passagens de uma cristalinidade quase evangélica, laivos que são réstias de sonho fraternal de um socialismo palingenésico, reminiscente às eras hist6ricas, se me permitam a estranheza da idéia. Ao ouvir a pergunta do inquiridor, se o progresso social era 6bvio e inevitável, obtempera Gratry: se gênios como Platão e Arist6teles reconheceram a "escrava tura como absolutamente normal e imutavelmente fundada na pr6pria natureza das coisas". O perguntador, porém, não é tão burro como lhe aconselharia a prudência. Ele quer saber do oratoriano sagac(ssimo se porventura seria impossível abolir o pau perismo. O oratoriano não cai no laço: "pobres sempre os tereis convosco" - dis sera Cristo. A resposta de Gratry vem afiada na exegese mosaica: enfermos, velhos, mente captos, toda a esc6ria das desditas e do sofrimento não desaparecerá da sociedade a não ser pela vontade de Deus. O progresso não é carismático, nem catártico, nem linear. A violência das guerras acelera duas coisas que afligem a consciência socialista e representam o ritmo dialético da pr6pria evolução social: o excesso de riqueza de poucos implicando o aumento da miséria de muitos. É a verdade que está gritando no seio da convivência contemporânea. Tenhamos coragem de dizer: a violência que nasce desse antagonismo é um imperativo ético, o mais alto impe rativo que começa a ressoar na consciência universal. Diante da violência, o Padre Gratry fulmina, radical: "É um mal, uma loucura, um crime". Resposta. que tranca o passo, perempt6rio, siderando o argüido. E quando Santo Tomás admitiu o direito de derrubar a tirania? Então, Gratry, numa tática clerical, responde sem responder. Responde que Santo Tomás desautoriza a guerra civil. O povo tem o direito de depor e destituir os detentores do poder sem violência privada, unicamente por via da autoridade pt1blica. Nessa altura, incapaz e alannado, ensarilhou as armas, recusando as soluções das cavilaçóes soffsticas. Ou que tal nos parecem, por falta de engenho e arte. Ainda restam, todavia, alguns pontos de arremate. Disse que Gratry foi à cata de Vacherot no intuito de curá-lo do hegelianismo, que o levara a negar as fontes sobrenaturais do Histianismo. Gratry, professor de teologia na Sorbonne, sacerdo te do Orat6rio da Imaculada Conceição, acusa Vacherot de padecer de ateísmo hegeliano, perpetrado numa obra coroada pelo Instituto e divulgad(ssima entre os universitários. O Prof. Pimenta tinha-o na mais alta conta. O ataque de Gratry tinha dois patamares: a crítica teol6gica e a crítica ftlos6fi ca. Deles se desentranhavam suas reses de Vacherot contidas na obra Histoire cri tique de [' École d' Alexandrie. Vacherot não era homem que fugisse ao desafio. Não pretende entrar no mérito da polêmica. O que, entretanto, parece irritar mais o Padre Gratry é a deferência que seu adversário tem por Proudhon, "um disc(pu lo da sofística alemã, isto é, do hegelianismo". Em toda a obra de Vacherot, o oratoriano s6 enxerga a "soffstica hegeliana", Oratoriano 63 que endereça seu colega ao ateísmo. Da pág. 130 a 160 o estribilho não muda. E sentencia: "É a barbaria que se aproxima." Suponho que o método dialético representaria aos olhos aristotélicos do orato riano certa barbaridade dissonante que motivava o qualificativo. Aliás, a crítica de Gratry contra a "sofística alemã de Vacherot", isto é, o seu hegelianismo, não aborda o problema senão resvaladamente. Escasseiam-me provas. É nos seus dois volumes da Lógica que faz algumas sutis referências ao pensamento infinitesimal, cujas raízes dialéticas que acusam nas meditações de Newton e Leibniz, consoante genialmente anteviu Hegel (matheseos pars sublimior, ipsa scilicet scientia infini ta), reparos que ressurgem por vezes na ruminação do Padre Gratry e nalguns me tafísicos arredios à matemática. Anotareiaqui apenas que o artifício 16gico de des tacar certos aspectos ou fatores negativos, insulando-os do processus, como "ca tegorias", encaminha ao raciocínio formalizante e abstratizante das construções escolásticas. Porque não atende à verdade que resulta da reciprocidade captável na práxis capaz de totalizar, invalidando, os paralogismos traiçoeiros do racionalis mo. Longa foi a evolução do conceitualismo até elucidar quanto o particular abstrai e o universal concretiza, no processo deveniente. Ora, a digressão ilustrativa do Padre Gratry (Lógica, t. 2, 1. 4) tentou efetuar a análise da dialética sinonimizan do-a com a indução e apurando-a nas primeiras inspirações do pensamento infmi tesimal. É, porem, na carta a Vacherot, ao criticar seu grande livro, que Gratry manifesta a plena incompreensão da dialética hegeliana. Fulmina-a nesta sentença: "Suas obras [de Hegel] não passam de uma urdidura de contradições nos tennos". Para o oratoriano, todo o vigor dialético se resume "no passar do fmito ao infi nito pelo apagamento dos limites do fmito". E acrescenta, categ6rico: "é o nome que damos, caso queiram, ao processo infinitesimal, ou, para tomar nome mais clássico, mais antigo e mais geral, é () processo dialético, comparado ao processo silogfstico. A raiz das duas palavras dialética e silogfstica exprime assaz bem que o primeiro dos dois processos é transcendente, isto é, eleva-se acima de seu ponto de partida e vai do mesmo ao diferente, enquanto o outro encadeia suas deduções por um laço contínuo, indo apenas do mesmo ao mesmo e não se pode deduzir senão por via da identidade". "Cremos ter estabelecido" - prossegue Gratry - "que o processo dialético é o processo fundamental da razão". Assentara previamente que a análise infInitesi mal reforça a antiga demonstração de Deus mediante o movimento. Na percepção, ele reconhece um ato de fé, que afmna o Ser. "A indução implica outro ato de fé, a fé nas leis, isto é, a fé da unidade na variedade, a estabilidade do movimento na natureza. "Em tal processo, que Gratry qualifica de infinitesimal, a razão busca o infinito [p. 174]. Essa idéia abstrata do infInito, ou melhor, esse 'infInito abstrato', seria Deus?", interroga. A pergunta é para efeito ret6rico, porque atalha-a vitorio samente: "Não, não é nada. É o Deus de Hegel, que é ateu" (p. 159). Deus, aliás, s6 pode ser ateu, pois não poderia aceitar um Igual. Em todo esse girosc6pio, acabamos distanciando-nos da teoria hegeliana da dialética. Tão distante que não há como travar o diálogo de uma contestação. São como dois duelistas que brandissem os floretes a dez metros de intervalo um do outro. O gênio de Hegel vai intuir a raiz da contradireção, não na diferença, mas na identidade onde se dilui a antinomia, desaparecendo as determinações ultrapassa das graças ao nível superior atingido no processo. Tal explicação real exprime 64 R.C.P.3/89 a negatividade d~ concretamente, ativamente, na práxis inelutável das coi sas advenientes. É, contudo, notável a perspicácia de Gratry, discemindo o papel intuitivo da indução "que conclui do polígono às curvas ou do finito ao infinito ou de uma sé rie a seu limite". Não teve, porém, a percepção clara de que a dialética desse pr0- cesso supera a esterilidade dedutiva que se traduz no formalismo silogístico. Nos Principiae naturalis philosophia mathematica, bem como na Optica, Newton de nominou muitas vezes a indução de an4lise, sinonímia que Remusat anotou aten tamente. "In hac philosopbia propositiones deducuntur ex phenomenis et reddun tur generales per inductionem" - escreveu Newton. E concluiu incisivo: "Sic le ges motuum et gravitatis innotuerunt." Isso realça a aguçada ponderação do Padre Gratry: Newton identificou a in dução como uma forma de analysim ILItentem. Mediante a análise da teoria das fluxóes, a indução facultou a Newton estabele cer os teoremas fundamentais, dissimulando os processos empregados nas técnicas da anáIise geométrica. Gratry assevera, com swpreendente finura, que "o princí pio do cálculo infinitesimal é a indução sob forma geométrica". Aliás, grandes ló gicas, v. g. um Sigwart ou Heinrich Mayer, entreviram formas mais completas de fundamentação indutiva da dialética. Para Sigwart, o grande significado da in dução científica não se restringe a simples método de persuasão, mas relevante via do conhecimento objetivo (sondem em Weg zu objektiver Erkenntnis) na obtenção de plena validade conceitual. Não esqueçamos que Reichenbacb destacava o princípio de indução como im portante critério para julgar da veracidade das teorias científicas - e que eliminá lo seria "dispensar qualquer decisão sobre a verdade ou falsidade delas", relegan do-as a meras fantasias. Princípio que nos permite conceituar escala gradativa de valores, graus de probabilidade entre os limites polares do verdadeiro e do falso. Apesar de tantas divergências assinaladas, quer no que tange ao oratoriano ou ao jesuíta, ambos à altura de nossa admiração pela seriedade especulativa, o pre sente comentário confirma o juízo do eminente sociólogo nosso companheiro Pa dre Bastos d' Á vila: como pensador, Gratry é um dos sagazes e seguros autores es tudados no compêndio O pensamento social cristão antes de Marx. O ângulo dou trinário em que nos colocamos discorda nitidamente de toda a metaffsica teológica que inspira o Padre Gratry e seus êmulos e nada adianta no esclarecimento do pr0- blema das relações entre a dialética e o silogismo e dedutivismo· formal. En pas sant, invocamos a opinião, que nos surpreendeu, do Padre Lima Vaz, quando en cara as ideologias políticas (e nelas incluiu a teologia medieval) como "matriz de tantos grandes temas e que imprime ainda seu sinete visível "na face de nossa pre tensa cultura secularizada". Destarte, nós, educados na cosmovisão de Galileu Newton-Einstein, consideramos superstições de séculos atrasados, pensamentos revogados, indagamos: Até quando a modernidade continuará sob o signo da te0- logia? Quem poderá dizê-lo? Ignoramus. Ignorabimus? O que timidamente suspeitamos é que o "caráter teológico de nossa cultura" pervive no desenvolvimento da ciência e da filosofia à custa de esforços de metafísicos sobreviventes e filosofantes. Resta-me, finalmente, confessar que o intuito dessa digressão nasce de um ato de sinceridade em face de problemas que me magnetizam desde a adolescência até as portas da senectude. Um acaso do itinerário estudioso levou-me a essas duas grandes figuras do pensamento cristão. Uma, que assinala o limiar do século do socialismo e de Einstein; outra, presente entre nós, neste conselho, expressão de Oratoriano 65 inteligência, autor de uma obra que se revela mui rica daquele "leite de humana bondade", de que falava Dickens. Referéncias bibliogrdficas Gratry, A. Logique. Paris, Ancienne Maison Charles Douniol, 1908. Lima Vaz, H. C. de. Escritos defilosofia. São Paulo, Loiola, 1986. p. 71, passim. Une étude sur la sophistique contemporaine ou lettre à M. Vacherot, par r abbé Gratry. 2. ed. Paris, Charles Douniol, Libraire Editeur, 1951. Vacherot. H istoire critique dei r École d' Alexandrie (1846-1851). A propósito desta obra, Gratry denunciou-lhe o ateísmo hegeliano, acima comentado. Restaurou o oratório, mas, opondo-se ao dogma da infabilidade papal, teve de demissionar-se em 1870. von Dõllinger, Ignaz. Briefe und Erkliirung ueber die Vatikani - schen Dekrete de 1869-1887. Darmstadt, 1968. 66 R.C.P.3/89
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