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Rumos do direito político brasileiro até a Constituição de 1988

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RUMOS DO DIREITO POLÍTICO BRASILEIRO 
ATÉ A CONSTITUIÇÃO DE 1988 
Maria Fernanda Valverde* 
1. Metodologia de Análise; 2. Etapas evolutivas da polltica 
brasileira; 3. Análise do quadro constitucional de 1988; 4. 
Conclusões. 
1. Metodologia de am1lise 
Antes de tentannos sintetizar num breve ensaio um tema tão vasto, inesgotável em 
seus enfoques e desdobramentos, toma-se imprescindível estabelecer-se uma me­
todologia de análise precisando o que pretendemos expor e como a faremos. 
Por se tratar de um enfoque de direito político, empregaremos o método cra­
tológico, centrado nos fenômenos do poder e, como adiante se exporá, destacando 
àeles apenas três aspectos. 
1.1 Os discursos analíticos 
Partimos da irrecusável premissa da integralidade do processo histórico evoiutivo 
da política. A decomposição desse todo é expediente meramente didático, necessá­
rio à exposição e compreensão dos elementos causais eleitos como critérios, mas 
isso não significa que a realidade se atomiza; a análise social, gênero em que se 
inclui a an4lise polltica, procura valer-se do conhecimento amealhado por várias 
ciências sociais, integrando-o à luz daqueles critérios escolhidos. 
Num sentido geral, nas análises sociais predomina um critério funcionalista, is­
to é, procura-se identificar o papel que determinado valor ou determinada idéia, 
operando em um grupo social, desempenha no processo de mudança e na alteração 
de sua estrutura. Até mesmo as recentíssimas abordagens sistêmicas acolhem o 
funcionalismo ao dar destaque às interações inter e intra-sistêmicas. 
Certos valores ou idéias, como se sabe, constituem o cerne das instituições, ex­
pressões cristalizadas de poder que, da mesma forma, desempenham - não s6 pelo 
seu conteúdo de valor mas pela dinâmica própria que lhes confere o poder de que 
se revestem - um papel protagonístico nas mudanças sociais, determinando suas 
correspectivas estruturas e seus decorrentes processos políticos. 
Destarte, as análises parciais são úteis na medida em que satisfazem indagações 
políticas. O critério sociol6gico nos dará um discurso predominantemente institu­
cional; o jurídico, um discurso predominantemente juspositivo; o econômico, um 
discurso predominantemente voltado aos interesses e bens materiais; o critério fi­
los6fico, como derradeiro exemplo, dilatará o espectro investigat6rio para incluir a 
dimensão axiol6gica. A lista poderia prosseguir, mas esses exemplos parecem-nos 
suficientes para introduzir o critério central do discurso político, tal como nos 
propomos apresentar: o critério cratol6gico, isto é, o critério do poder. 
A justificação desse método parece-nos, a esta altura, desnecessária, depois que 
mestres do porte de Georges Burdeau enfatizaram exaustivamente sua excelência e 
sua imprescindibilidade para realizar obra de síntese, pois, como afirma, "a vida 
política por inteiro se articula em tomo deste complexo de elementos materiais e 
espirituais que é o poder político".' 
, Procuradora do Estado e professora do INDIPO. 
1 Trailé de science poürique. 2 ed. Paris, Librairie Générale de Droit e de Jurisprudence, 1966. t. I, p. 10. 
R.C. P'lJ., Rio de Janeiro, 32(4)82-97, ago.lout. 1989 
Fizemos repousar e articular-se, portanto, nossa interpretação da evolução polf­
tica do Brasil sobre os fenômenos do poder, ainda porque o método cratológico 
apresenta inegáveis vantagens didáticas, mormente quando se nos depara a tarefa 
de ensaiar uma interpretação de 166 anos de evolução polftica brasileira, desde a 
independência a nossos dias. 
1.2 Parâmetros do discurso cratológico 
o poder, difuso em todos os grupos humanos, concentra-se institucionalmente 
num estádio evolutivo definido como sociedade; esse fenômeno é crucial para a 
passagem do estádio de comunidade para o da sociedade, resultado da emergência 
da consciência de um interesse coletivo, como aquele interesse diferenciado que 
somente a "sinergização" da vontade e da capacidade do grupo poderá satisfazer. 
Essa concepção, como se pode perceber, segue de perto a clássica distinção entre 
comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft) creditada a Ferdinand 
Tõnnies. 
À medida que essa concentração de poder se dá no grupo social e o reforça, a 
fenomenologia do poder começa a se desenhar desdobrada em vários modos de ser 
e de atuar: a destinação, a atribuição, o emprego, a distribuição, a contenção e a 
detenção do poder. 2 
Sucintamente, a destinação do poder responde à questão fundamental: para que 
concentrar-se o poder difuso? A atribuição do poder responde às conseqüentes 
indagações: como se partilha o poder concentrado e como ficam os difusos? 
O emprego do poder responde à questão: como se exerce o poder? A distribuição 
do poder, à questão da sua partilha entre órgãos e entidades da sociedade organi­
zada, como os estatais. A contenção do poder responde à questão: como se limita 
e controla o poder concentrado (predominantemente, o concentrado no Estado). E, 
por fim, a detenção do poder, ao problema do acesso ao poder já concentrado e 
institucionalizado (predominantemente, o concentrado no Estado). 
Para a presente exposição, basta-nos sintetizar em três os fenômenos do poder 
sobre os quais nos debruçamos: a destinação, a organização e o exercício, interes­
sando-nos acompanhar esses três aspectos no evolver político da sociedade brasi­
leira. 
Esse tríplice referencial nos conduz, necessariamente, aos três parâmetros do 
discurso cratológico, escolhidos para servir de guia à nossa análise: o valor, a es­
trutura e o processo. 
O valor é a expressão tinalCstica da destinação do poder. Seu estudo põe-nos 
diante da dialética da liberdade e da igualdade. 
A estrutura é a expressão estática da organização do poder. Seu estudo con­
duz-nos a uma predominante visão institucional, abrangendo, simultaneainente, a 
concentração, a atribuição e a distribuição do poder, dentro da sociedade, no Es­
tado. 
O processo é a expressão dinâmica da atuação do poder. Seu exercCcio, seus 
objetivos e seus resultados podem ser estudados tanto no que diz respeito à pre­
dominante ação do poder do Estado - ação de governo - quanto no que se refere à 
predominante ação do poder reservado à sociedade - ação de participação polftica. 
2 A respeito, publicamos um artigo denominado Metodologia constitucional, na Revista de Informação Le­
gislativa do Senado Federal, 23(91):99-110,1986. 
C omtituição de 1988 83 
Com a fixação desses três parâmetros, estamos preparados para incursionar em 
nossa hist6ria da evolução política nacional, partindo da antiga herança colonial 
lusitana até estes primeiros dias da Constituição de 1988. 
2. Etapas evolutivas da polftica brasileira 
2.1 Características dominantes e suas expressões juspolíticas 
Tão artificial quanto escandir o processo evolutivo em etapas, é também rotulá-lo. 
Artificial, por certo, mas I1til, se queremos enfatizar uma característica dominante 
que, até certo ponto, pode servir de referencial interpretativo de um certo período. 
Com efeito, valores, estruturas e processos estão sempre em mudança, mas, ainda 
assim, no espaço de algumas décadas, apresentam uma certa estabilidade no es­
sencial, permitindo-nos destacar certas características e dar-lhes uma etiqueta, al­
go assim como a intitulação de um capCtulo de um livro. 
Ao fazê-lo, po~ém, manter-nos-emos rigorosamente fiéis à metodologia preco­
nizada: em cada uma das etapas procuraremos identificar os valores, as estruturas 
e os processos dominantes e, complementarmente, apresentaremos suas expressões 
juspolCticas - as Constituições e os atos da natureza constitucional que intentaram 
juridicamente aqueles três aspectos centrais do poder. 
Com efeito, em todos os seus anos de independência, o PaCs, embora com al­
guns interregnos sem vida constitucional regular, perfilhou o ideal do constitucio­
nalismo. Em outros termos: a sociedade polCtica brasileira, desde os prim6rdios de 
sua emancipação política, absorveu e adotou a organização constitucionalcomo 
solução polCtico-jurídica para disciplinar o poder do Estado e no Estado ou, se se 
preferir, dos e nos sucessivos Estados que esta nação constituiu, nesses 162 anos, 
neste lado do mundo. 
Não nos esqueçamos que o constitucionalismo foi um produto do liberalismo, a 
sua expressão jurídica mais autêntica, ao erigir barreiras ao poder absoluto do so­
berano e ao deslocar a pr6pria soberania para a sociedade. Essa característica, 
apontada por muitos investigadores da hist6ria do constitucionalismo,3 revela-se 
nitidamente na coincidência de seu amadurecimento polCtico, no século XVIII, 
tanto na sua expressão norte-americana, com Alexander Hamilton, James Madison 
e John Jay, quanto na sua expressão francesa, com Benjamin Constant e Ernrna­
nuel Joseph Sieyês, e repercute no nascimento formal da nacionalidade brasileira 
- a independência política, em 1822, e sua primeira Carta, em 1824. 
Essas origens de apego ao constitucionalismo explicam por que as grandes mu­
danças polCticas brasileiras acabaram transfundidas em Cartas constitucionais. De 
certa forma, com seus erros e acertos, incoerências e coincidências, esses diplo­
mas são reflexo dos valores, estruturas e processos que vigeram e marcaram as su­
cessivas fases que, a seguir, estudaremos. 
2.2 Os seis momentos da evolução polCtica brasileira 
O primeiro momento - Do absolutismo ao liberalismo - parte do tmal do período 
colonial e vai até o ocaso do Segundo Império. É o período da constituição e da 
consolidação do Estado brasileiro. São seus documentos constitucionais a Consti­
tuição de 1824 e o Ato Adicional de 1834. 
3 Melo Franco, Afonso Arinos de. Direito con.;ritucional. Rio de Janeiro, Forense, 1981. p. 12. 
84 R.C.P.4/89 
o segundo momento - O bacharelismo liberal - inicia-se com a Proclamação da 
Rep\1blica e vai até a Revolução de 30. O liberalismo é reinterpretado à luz do po­
sitivismo. São seus documentos constitucionais a Constituição de 1891 e a Emen­
da de 1926. 
O terceiro momento - O autoritarismo nacional-corporativo - é a era de Var­
gas' de 1930 até a redemocratização do segundo p6s-guerra. As idéias sociais 
chegam ao Brasil e deixam suas primeiras marcas na legislação. São seus docu­
mentos constitucionais o Decreto n~ 19.398 de 11 de novembro de 1930, insti­
tuidor do Governo Provisório, e as Constituições de 1934 e de 1937. 
O quarto momento - O neoliberalismo democrático· - estende-se desde a queda 
da ditadura getuliana até a Revolução de 1964. Um interregno democrático entre 
dois períodos autoritários, que procurou conciliar o liberal com o social. São seus 
documentos constitucionais a Constituição de 1946 e suas seis emendas promul­
gadas até janeiro de 1963. 
O quinto momento - O autoritarismo estatizante - vai da Revolução de 1964 à 
convocação da Assembléia Nacional Constituinte, em 1985. Marcou-se pelo pro­
gresso econômico e pela paralisia nos campos político e social. São seus docu­
mentos constitucionais o Ato Institucional, de 9 de abril de 1964, a Constituição 
de 1967, a Emenda Constitucional n~ 1, de 1969, e suas 25 sucessivas emendas. 
O sexto momento - O atual - iniciou-se com a convocação da Assembléia Na­
cional Constituinte, pela Emenda n~ 26, de 27 de novembro de 1985, e adquiriu 
sua expressão pr6pria com a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988. 
Passemos a analisá-los sucintamente. 
2.2.1 Primeiro momento - do absolutismo ao liberalismo 
O rigoroso absolutismo português, dominante em todo o período colonial e forte­
mente fincado na penfusula, explica a opção liberal da pequena elite de estadistas 
que criou o Estado nacional brasileiro. 
2.2.1.1 Valor - A tese política do liberalismo é a liberdade, a ser alcançada, prin­
cipalmente, pela constitucionalização do Estado e abolição dos privilégios; 
a igualdade, nesse contexto, seria a mera igualdade jurídica perante a lei. 
As idéias liberais, foram nossos pr6ceres colher em Coimbra, renovada pelas 
idéias do Pe. Luiz Antonio Verney,' o pensador oratoriano que propugnava uma 
revolução metodol6gica ao estilo de Francis Bacon para varrer a filosofia escolás­
tica e suas sebentas. Indiretamente, o iluminismo científico baconiano atrairia o 
pensador político. O Marquês de Pombal, entusiasmado seguidor de Verney, pon­
do em prática suas idéias nos Novos Estatutos da Universidade de Coimbra, em 
1772, desferiu um duro golpe no poder da Inquisição, dos jesuítas e da pr6pria 
Igreja, acabando com o chamado "saber de salvação", nem por isso permitiu que 
se estudasse Locke, curiosamente, uma das assíduas leituras do pr6prio Verney. 5 
Esse processo, que Vicente Barretto denominou de "abertura da cultura metro­
politana portuguesa para as idéias da cultura européia do Século XVill", teve pro-
• Verdadeiro mitodo de estudar. Lisboa, 1746. 
5 Moura, Oclimo Dom. O iluminismo e a política pombalina. In: As idéias polfticas no Brasa. São Paulo, 
Convívio, 1979. p. 71. 
Constituição de 19RR 
funda repercussão na fonnação da elite brasileira que, àquela época, fonnava-se 
em Coimbra. Nomes como José Alvares Maciel, José Joaquim da Mata, Domingos 
Vidal Barbosa, Mosé Mariano Leal e Silvestre Pinheiro Ferreira, este óltimo mi­
nistro de D. João VI, trouxeram o que de melhor havia na modernidade européia 
iluminista e liberal para lançar as bases de pensamento sobre as quais se ergueria a 
construção doutrinária da Independência. e 
Os valores dominantes na época da Independência, tão bem representados nas 
idéias do Patriarca, permeararn a Constituição de 1824 e apontavam o declínio do 
absolutismo e a aftrmação do liberalismo. 
2.2.1.2 Estrutura - A estrutura colonial, aos influxos das novas idéias, começou a 
diferençar a sociedade (o conceito francês de povo), como titular da SQberania; o 
Estado, sua organização; e a realeza, sua instituição fundamental. Essa tripartição 
foi útil durante todo o período da consolidação da vida independente do Brasil e 
se manifestou em instituições políticas muito peculiares, como o Poder Modera­
dor. 
2.2.1.3 Processo - Embora fossem muito lentos, os processos políticos já revela­
vam alguma responsividade da sociedade brasileira. Já nos tempos coloniais, os 
movimentos separatistas e independizadores davam conta da fermentação das 
idéias liberais, como, para exempliftcar, no curioso movimento panfletário deno­
minado Conjuração Baiana, de 1798, também denominado de Revolta dos Alfaia­
tes, sem falar na her6ica Inconftdência Mineira, o mais notável marco dessa in­
fluência. 
2.2.1.4 A Constituição de 1824 - Embora outorgada e com seus precedentes na 
Carta de Restauração monárquica francesa, de 1814, a primeira Constituição bra­
sileira foi, sem dúvida, um documento liberal e adiantado para o seu tempo. Sua 
originalidade estava, sobretudo, no pragmatismo que lhe conferia o seu art. 178, 
introduzindo um mecanismo de emenda semiflexível, além da instituição do Poder 
Moderador, um instrumento que, durante muitas décadas, equilibrou os partidos e 
amenizou os ânimos, servindo à pacificação e à unidade, dádivas do Segundo 
Império à sociedade brasileira. A partir do Ato Adicional de 1834, a Constituição 
Imperial perdeu o seu caráter autocrático e tomou-se, pelo consenso, um docu­
mento democrático, tanto quanto o poderia ser qualquer outro congênere de sua 
época. 
2.2.2 Segundo momento - o bacharelismo liberal 
O liberalismo iluminista, que fundara e cimentara o Império, cedeu a vez ao libe­
ralismo positivista e juridicista da República. Por isso, ninguém melhor que Rui 
Barbosa simboliza esse momento, com sua profunda influência juspolítica na or­
ganização republicana. 
2.2.2.1 Valor - Na Europa, o liberalismo produzira o idealismo juridicizante, mas, 
em resposta, o velho absolutismo autocrático produzira o realismo sociologista. Os 
primeiros ainda eram liberais porque continuavam a crer no primado do homem e 
da sociedade; os segundos eram antiliberais porque estavam comprometidos com a 
6 Ferreira, V. Silvestre Pinheiro. Idéias polfticas, com introdução de VicenteBarreto. Rio de Janeiro, 1 (,. 
R.C.P.4/89 
dependência da ordem à autoridade e, esta, à existência de um Estado forte. Em­
bora prevalecesse a vertente liberal, de uma certa maneira, a sementeira autocráti­
ca estava lançada. 
No Brasil, ao lado do bacharelismo liberal juridicista, o realismo sociologista 
contava com nomes da envergadura de Euclides da Cunha e Alfredo Varella e 
com o poderio do caudilhismo positivista de Júlio De Castilhos e Pinheiro Machado 
que, numa fase posterior, chegaria ao nacionalismo radical de Alberto Torres, ao 
integralismo de Plínio Salgado e, mais adiante, ao estadonovismo corporativo de 
Getulio Vargas. 
Por outro lado, os valores do positivismo, que Benjamm Constant instilaria na 
&cola Militar, além de fermentar a Repáblica, produziriam um Exército politica­
mente conscientizado, atributo que não mais perderia, com tanta relevância na 
História política do País. Tanto quanto nesses influxos, o positivismo teria ainda 
fundamental importância para pôr em voga a chamada "questão social", eufemis­
mo com que se denominou, por várias décadas, o problema da marginalização 
crescente da população das benesses da educação, da medicina e da economia. 
Temas como a escravidão, a imigração, a federação, a repáblica, a laicização do 
Estado e a elitização popular pela educação, interpretados à luz dos "três está­
gios" de Augusto Comte, passaram a ser tratados em todos os cfrculos e a empol­
gar a sociedade. 
2.2.2.2 Estrutura - A derrocada da estrutura tradicional do Império abriu campo a 
um modelo republicano e federativo calcado nas instituições anglo-norte-america­
nas. Ampliou-se a participação eleitoral, mas se manteve uma presidência regalia­
na, à semelhança do modelo estadunidense, confessadamente adotado, até na de­
nominação do novo Estado. Foi, todavia, a ascensão do Exército e sua inserção na 
arena política, não por seus grandes ~hefes, como ocorrera no Império, mas insti­
tucionalmente, a nota marcante da nova configuração do poder. 
2.2.2.3 Processo - Embora permanecesse, em seu conjunto, elitista, o processo 
político recebeu do bacharelismo a preocupação com a legalidade e com a edu­
cação. Rui, por exemplo, tinha, precursoramente, a opinião páblica em alta conta, 
considerando-a imprescindível ao processo democrático. Pela primeira vez COme­
çava-~ a pensar no fato concreto da opinião páblica em vez do recurso ao povo, 
categoria abstrata que influenciou profudamente o discurso retórico que até hoje é 
praticado. 7 
2.2.2.4 A Constituição de 1891 - O projeto, de Saldanha Marinho, Rangel Pesta­
na, Santos Werneck, Américo Brasiliense e Magalhães Castro, teve em Rui Barbo­
sa seu cuidadoso revisor, apaixonado pela perspectiva de trasladar para o Brasil a 
experiência constitucional norte-americana, que tanto admirava. Seu idealismo te­
ve um preço. Mesmo reformada em 1926, na 12!! Legislatura, por iniciativa de Ar­
tur Bemardes, inaugurando o nacionalismo econômico e iniciando o processo de 
hipertrofia do Poder Executivo nos moldes europeus, para solucionar os proble­
mas econômicos e sociais que se acumulavam, a Carta de 1891 estava profunda­
mente divorciada de nossos costumes e tradições políticos. No plano do processo, 
essa Constituição abriria via para o movimento nacionalista e autoritário que triun­
faria com a Revolução de 30. 
7 Entre as leituras, abundantíssimas e atualizadl'ssimas, de Rui Barbosa, dão-nos conta seus bi6grafos, esta­
va a avançada obra de Albert Dicey, Law and opinion in Eng/and during the nineteenth century (London, 
1905), trabalho pioneiro sobre a opinião pública e seu papel. 
Constituição de 1988 87 
2.2.3 Terceiro momento - o autoritarismo nacional-corporativo 
A "questão social" teria, nesse período conturbado da hist6ria do mundo, uma 
resposta autoritária, muito à maneira do que ocorria na Europa. O Estado Novo, 
produto estrutural do modelo autoritário, nacionalista e corporativo que se instalou 
com a Revolução de 30, levaria adiante a estatização e renovaria o paternalismo, 
esse vício hist6rico da sociedade brasileira, sempre a pretexto de resgatar as mas­
sas, em expansão, da marginalização s6ci~onômica. 
2.2.3.1 Valor - A igualdade estava no bojo da questão social, mas sua busca não 
era considerada um problema de estímulo mas de proteção. O Estado provedor era 
o modelo das ideologias que disputavam as massas, com as armas da propaganda e 
as falácias da demagogia. O getulismo, versão cabocla das nacional-ideologias eu­
ropéias, arregimentava a massa trabalhadora, assumindo, pela estatização dos sin­
dicatos, o seu controle. 
2.2.3.2 Estrutura - O poder autoritário, do tipo caudilhesco, encontrou no casti­
lhismo gaúcho sua mais perfeita expressão. Severino Sombra situa Getulio Vargas 
como legítimo herdeiro dessas tradições do mandonismo pampeiro, na linha de Jú­
lio de Castilhos, de Borges de Medeiros e de Flores da Cunha, levando a nível na­
cional o tipo de estrutura clientelista e paternalista do modelo platino, a gosto de 
Rosas e de Oribe. A federação desaparece e ressurge o Estado unitário e o Con­
gresso cede à figura do chefe da nação: foi a concentração máxima de poder num 
s6 6rgão e num s6 homem. 
2.2.3.3 Processo - O processo centrípeto era temperado apenas pelas concessões 
táticas de Getulio Vargas. O desenvolvimento controlado do populismo trabalhista 
foi o mais eloqüente exemplo disto. Aparentemente havia preocupação com o so­
cal; a nível propagandístico, as massas identificavam o ditador com suas reivindi­
cações. Havia, no entanto, baixa prioridade para o desenvolvimento econômico. A 
11 Guerra Mundial temÚDara, o Brasil estava entre os vitoriosos, mas sua econo­
mia continuava atrasada e sem dinamismo. A resposta viria pela atuação das For­
ças Armadas, buscando coerência entre seu papel externo, no combate ao nazi­
fascismo, e sua submissão interna ao arremedo nacional-corporativista da era getu­
liana. 
2.2.3.4 Constituição de 1934 - Da Revolução de 30 até 16 de julho de 1934, o 
Brasil teve um documento institucional atípico, o Decreto n!? 19.398, de 11 de no­
vembro de 1930, que instituiu o Governo Provis6rio de Vargas, fechou o Con­
gresso e manteve, precariamente, a Carta de 1891. Uma ilustre Comissão, presidi­
da por Afrânio de Melo Franco, da qual fizeram parte Assis Brasil, João Manga­
beira, Carlos Maximiliano, José Américo e Oswaldo Aranha, redigiu um dos me­
lhores projetos de Constituição jamais elaborado entre n6s, seguindo o exitoso 
modelo weimariano, que conciliava o político, o econômico e o social. Posta em 
vigor em 16 de julho de 1934, teve uma vigência extremamente curta e não che­
gou a ser plenamente vivida, substituída, em 10 de novembro de 1937, pela Carta 
do Estado Novo. 
2.2.3.5 Constituição de 1937 - Redigida por Francisco Campos, fielmente obe­
diente às posições políticas de Getulio Vargas, foi um documento típico do nacio-
88 R.C.P.4/89 
nal-corporativismo autoritário; mas o proprio ditador dela não se utilizou realmen­
te, tal a soma de poderes de fato por ele exercidos. 
2.2.4 Quarto momento - o neoliberalismo democrático 
Se a "questão social" havia tido alguma resposta durante o período anterior, a 
questão política somente viria com a redemocratização, sobrevinda como reper­
cussão da vit6ria aliada na 11 Guerra Mundial. Do mesmo modo, a questão econô­
mica receberia uma resposta com os movimentos desenvolvimentistas e modemi­
zadores que foram concebidos para reconstruir os palses devastados pela longa 
conflagração. 
2.2.4.1 Valor - Com a vit6ria aliada, as liberdades democráticas voltaram a primar 
sobre os demais valores. A força de trabalho já se havia organizado no período 
anterior, embora em bases dirigistas, mas, mesmo assim, ou talvez mesmo por is­
so, estavam disponíveis para os assaltos do populismo ideol6gico e da demagogia, 
que encontravam campo livre para atuarem no clima de abertura democrática pr0-
piciado pela Constituição neoliberal de 1946. Em pouco tempo, o conflito voltaria 
a eclodir com grande violência:de um lado, grupos urbanos pregando abertamente 
a revolução armada e, de outro, os valores da estabilidade. 
2.2.4.2 Estrutura - O Poder Executivo ainda tinha muito poder, mas o avanço do 
populismo acabou produzindo um regime parlamentar que se destruiu a si próprio 
e, com ele, a possibilidade de conter a subversão. O Exército, que se retralra de­
pois da democratização iniciada em 1945, somente em 1964 se prestaria a nova in­
tervenção, dessa vez, quando o País beirava o caos e a desagregação nacional; 
continuava, portanto, como a mais coesa e organizada expressão de poder no Es­
tado. 
2.2.4.3 Processo - A organização das massas para a democracia não foi satisfat6-
ria. Ao contrário, a manipulação populista apontava para um processo caótico. 
Sobrevém, no período, a internacionalização de movimentos contestat6rios, quase 
todos perseguindo mudanças violentas do regime e a instituição de poderes parale­
los. Os instrumentos democráticos da Constituição de 1946 não resistem a essa si­
tuação, demonstrando a inviabilidade do modelo político introduzido. 
2.2.4.4 Constituição de 1946 - Ainda uma Carta de cunho liberal, não obstante os 
dispositivos da ordem econômica e social. Sua fisionomia política era muito seme­
lhante às Constituições que entre 1936 e 1949 foram promulgadas em mais de 20 
palses, em todo o mundo: no zênite do nacionalismo, do estatismo e do preconcei­
to xen6fobo, tristes heranças de três décadas na inquietação e guerras totais. 
No Brasil, a Assembléia Nacional Constituinte, eleita a 2 de dezembro de 1945, 
e instalada a 2 de fevereiro de 1946, promulga a Carta redemocratizadora em 18 
de setembro de 1946. Não obstante ter sido, em linhas gerais, um bom documento 
para sua época, os seus anacronismos em matéria política, não corrigidos eficien­
temente, selaram seu destino sem que tivesse alcançado a "maioridade". Em 1961, 
um Ato Adicional tenta salvar o regime, à beira da ruptura, com um frágil sistema 
parlamentar de governo; mera resposta casuística, de hist6ria curta e infeliz, que 
só agravou os problemas e tomou inevitável a intervenção militar. 
Constituição de 1988 89 
2.2.5 Quinto momento - o autoritarismo estatizante 
o regime autocrático instituído com a Revolução de 1964 busca, desde o início, 
autolimitar-se e conter-se em padrões constitucionais. Ainda assim, é indisfarçável 
o autoritarismo político, exigido pelas circunstâncias, para os fms a que se havia 
proposto o movimento de 31 de março. No campo econômico, o autoritarismo 
proporcionou unidade de decisão e concentração de meios necessários à rápida in­
dustrialização ocorrida no périodo; em razão dessa liderança do governo no pro­
cesso de desenvolvimento econômico, a estatização alcançou seus mais elevados 
níveis. Foi a era dos capitais pdblicos mas, também, da implantação de "cartó­
rios" empresariais, que acabariam deformando a competição e contribuindo para 
concentrar a renda nacional de forma altamente distorcida e preocupante. No cam­
po social, foi baixa a prioridade, com a crescente marginalização de imensos con­
tingentes populacionais nos campos e, principalmente, nas cidades. O período 
marca, também, o zênite da política de substituição de importações, sem apresen­
tar soluções para sua superação. O mundo se internacionalizava, enquanto o Brasil, 
fiel ao modelo nacional-protecionista, salvo no campo das exportações, manteve­
se relativamente isolado. O quad (J c1eu ensejo ao nascimento de novos tipos de 
poder: o da empresa estatal e o da tecnocracia, ambos aliados do poder militar, 
dominante em todo o período. 
2.2.5.1 Valor - A liberdade, em tudo o que não fosse poICtico, foi respeitada. No 
campo político, foi vigiada e dirigida. O paternalismo ressurge com a empresa es­
tatal e com os "cart6rios" empresariais. O crescimento econômico é considerado o 
valor supremo da sociedade nacional, juntamente com a sua segurança. Embora, 
teoricamente, o desenvolvimento houvesse sido considerado em seu aspecto glo­
bal, abrangendo o poICtico e o social, na prática, a prioridade dada a esses campos 
retardou de muito o retomo aos quadros constitucionais democráticos. No final do 
período, pressionados pela opinião pdblica, os dois dItimos governos autoritários 
cedem à então denominada "abertura política", mas, por inabilidade, perdem o 
controle do processo de redemocratização, com not6rios prejuízos para o País, 
mormente com a incerteza no campo econômico. O final do período marca, por is­
so, o retomo do populismo e das manifestações radicalizantes. 
2.2.5.2 Estrutura - O poder, durante toda a duração do regime instaurado em 
1964, concentra-se nas Forças Armadas, lideradas pelo Exército. Pouco a pouco, 
o declínio do êxito econômico, principal responsável pela permanência dessa es­
trutura desbastada, dá origem a uma estrutura oposicionista, com sede na classe 
polCtica e tribuna, no Congresso Nacional. A sucessão presidencial, vencida por 
Tancredo Neves, é a culminância da afmnação desse poder da oposição. 
2.2.5.3 Processo - O controle polCtico, econômico e social tem seu ciclo de cres­
cimento, fastígio e declínio, claramente identificável, de 1964 a 1983. Na tentativa 
de sustar a perda de poder poICtico, o governo autocrático vale-se de casuísmos 
eleitorais que, como seria de se esperar, s6 dão resultados momentâneos e acabam 
por se voltarem contra seus idealizadores. Há um palpável desgaste das insti­
tuições militares durante o processo, atempadamente detectado e habilmente con­
trolado e contra-restado por uma cuidadosa estratégia de recuo e de low profile, 
sem perder-se, entretanto, a devida atenção ao revanchismo radicalizante. O pro­
cesso tem seu desfecho com a reviravolta do Colégio Eleitoral e a eleição do ICder 
da oposição. 
90 R.C.P.4/89 
2.2.5.4 Constituição de 1967 e 1969 - Estas Cartas, que são, a rigor, uma SÓ, com 
uma Emenda que a reviu totalmente, são marcadamente analíticas e detalhistas; 
antecessoras, por isso, da de 1988. Estes defeitos, mais que os dispositivos de 
procedência autoritmia, prejudicaram-nas durante todo o tempo em que estiveram 
vigentes. Estão expressos em dezenas de Emendas, mais de uma, em média, por 
ano, denotando a preocupação com o casuísmo e com a resposta conjuntural. A 
forte concentração de poderes no Executivo e o baixo grau de participação políti­
ca que estas Cartas ensejavam, tomaram-nas isntrumentos inadequados para las­
trear uma democracia moderna, em que a legitimidade fosse, ao lado da legalida­
de, o fundamental valor do Estado. Nessa falha, a nosso ver, a semente das res­
postas que, comedida ou desmedidamente, surgiram na Carta que as sucedeu, ora 
em vigor, como adiante exporemos mais detalhadamente. 
2.2.6 Sexto momento - quadro atual 
Qualquer r6tulo seria agora prematuro. Algumas características, todavia, exsurgem 
com nitidez: o desgaste do poder militar, a deterioração do suporte econômico do 
regime, o nascimento do revanchismo, a exigência de aberturas política e social, 
um surto tardio de nacionalismo xen6fobo e a ressurgência de várias modalidades 
de populismo. 
2.2.6.1 Valor - Os anos de contenção política e social dão lugar à prevalência da 
participação e da igualdade, a todo transe. No político, recuperar o atraso da legi­
timidade; no social, recuperar o atraso criado pelas muitas desigualdades e injusti­
ças. A preocupação com estes dois valores exacerba o emocionalismo dos discur­
sos e as soluções chegam às raias da utopia. Perde-se o pragmatismo econômico 
em meio à disputa eleitoral e à ret6rica demag6gica, retomada com atraso de 20 
anos. O ILodelo estatizante mantém, entretanto, surpreendentemente, com o apoio 
do populismo, sua hegemonia paternalista e clientelista. Dá-se uma estranha alian­
ça entre o chamado "progressismo" social e o "conservadorismo" econômico: en­
tre os que reivindicam melhores condições de emprego e os que lutam por manter 
seus privilégios cartoriais. Neste embate, o pragmatismo econômico perde terreno, 
como, conseqüentemente, também o perdem as massasmarginalirndas de qualquer 
processo econômico: os 66 milhões de brasileiros sem emprego que dependem, 
tão-só, de que o desenvolvimento econômico venha resgatá-los da miséria. 
2.2.6.2 Estrutura - Há um nítido reforço do poder da sociedade, iniciando-se um 
processo de estruturação de seus canais. A concorrência das várias formas asso­
ciativas intituladas à participação poderá ser benéfica aos partidos políticos, não 
só levando-os a ganhar legitimidade como sustentando-os com reivindicações e 
idéias. Pode-se estar con:eçando uma fase bem rr ais pluralista e democrática, gra­
ças a essa abertura participativa. Enquanto essa canalização não ganha regularida­
de, a impressão é de fragilidade nas estruturas partidárias e de desgaste nas estru­
turas governamentais. O fracasso do Estado-empresário tambl':re põe em tela de 
juízo a grande estrutura de poder das empresas estatais, levando a sociedade a re­
pensar o modelo estatizante herdado do período autoritário. 
2.2.6.3 Processo - O processo de participação política ficou mais aberto, mas a 
resposta da sociedade está ainda prejudicada com o desânimo e cansaço provoca­
dos pelo mau desempenho econômico. Paradoxalmente, enquanto o Governo pro-
Constituição de 1988 91 
cura modernizar o processo econômico, segundo os modelos internacionalmente 
exitosos, o texto Constitucional se afera aos modelos nacionalistas, protecionistas, 
paternalistas, clientelistas e xen6fobos do passado. Esse confronto, por certo, su­
perará o próprio texto e dele surgirá a resposta dialética que detenninará os rumos 
do País nesse campo; o embate, entretanto, longe de ser ideol6gico, será cronol6-
gico: entre o passadismo e a modernização, entre o preconceito e o pragmatismo. 
2.2.6.4 A Carta de 1988 - Adiante, nos estenderemos sobre algumas característi­
cas juspolíticas da nova Constituição. Por ora, para encerrar esse alígero exame 
dos seis momentos da evolução política brasileira cumpre consignar algumas ob­
servações quanto à sua legitimidade. Ponderável parcela da opinião pública prefe­
ria um processo de emenda ao de reconstitucionalização. Também ponderável se­
tor da cidadania preferia uma Constituinte exclusiva ao modelo de Constituinte 
congressual. Outros segmentos, não menos importantes, inconfirmaram-se com a 
deformação representativa provocada pelo peso desigual do eleitorado. Outros 
mais culpam o sistema de eleição proporcional pela deformação da legitimidade 
originária, e alentada parcela da população, até hoje, entende que as eleições rea­
lizadas no calor do Plano Cruzado foram a maior causa da deformação da legiti­
midade da Assembléia Nacional Constituinte , pois outros seriam os resultados, se 
os partidos no poder não se houvessem beneficiado pela euforia causada pelo gi­
gantesco engodo. 
Seja como for, a questão da legitimidade terá seu foro próprio nas pr6ximas 
manifestações eleitorais, principalmente naquela que eleger o Congresso Nacional 
que, como poder constituinte, deverá fazer a revisão da Constituição de 1988, em 
1993. 
3. Aru:1lise do quadro cosntitucional de 1988 
3.10 enfoque 
A diversidade de opiniões sobre a mesma realidade política não só decorre da dis­
tinta escala de valores de cada analista, mas dos distintos enfoques científicos que 
podem ser dados a um mesmo fenômeno. 
O político, o cientista político e o jurista, ainda que compartilhando, em tese, 
idênticos valores, atribuindo-lhes idênticas prioridades, têm, sobre os fenômenos 
do poder, matéria-prima de suas atenções, diferentes apreciações. 
Um trabalho de avaliação política multidisciplinar é, não obstante, possível e 
desejável, se todos os que nele participem se ativeram a uma metodologia comum. 
Tal não é o caso dos painéis, geralmente improvisando debates sem prévios refe­
renciais. Daí a opção que fizemos por um erifoque juspolltico da Constituição de 
1988. 
As características multidisciplinares, nexuais e de síntese desse enfoque permi­
tirão, senão alguma originalidade no que temos a expor, pelo menos, um esforço 
prospectivo de maior abrangência. 
3.2 Excessos e radicalismos 
A n6s, nos parece inegável que se deu ao processo de elaboração constitucional 
um tratamento de comunicação de massa muito intenso; inédito mesmo. Se, por 
92 R.C.P.4/89 
um lado, essa grande abertura favoreceu a legitimação das opções, por outro, al­
gumas deformações emocionais sobrevalorizaram o papel de uma Carta constitu­
cional, deixando a frustrante impressão de que uma Constituição pode ser, por si, 
a salvação de um País. 
Por mais formalistas que possamos ser, parece-nos rematada tolice atribuir tal 
peso a um documento legal, levando o povo a crer na mágica mudancista de um 
papel, tanto quanto o seria o radicalismo oposto, de ver, na Carta de 1988, um do­
cumento inane, fadado ao descumprimento e ao descrédito, em razão das vicissi­
tudes e dificuldades que deverá enfrentar. 
Os céticos, possivelmente, estarão lembrando a precária historiografia do cons­
titucionalismo brasileiro, cheio de interregnos aconstitucionais entre dezenas de 
constituições, atos e emendas de curta vigência e reduzida eficácia. Aos eufóricos, 
certamente, basta-lhes a crença nas boas intenções e no papel pedagógico da Car­
ta. 
Essas posições radicais existem e, portanto, não nos devemos surpreender com 
afirmações duras, como a de que a Carta nada mudará, porque a sociedade não 
mudou, nem nos impacientar com declarações que raiam ao bombástico, como as 
que afirmam sua função redentora, capaz de verter a comuc6pia e terminar com a 
pobreza. Ficou conhecido certo prefácio, em que o ilustre presidente da Assem­
bléia Nacional Constituinte afirmava que "a Constituição luta contra os bolsóes de 
miséria que envergonham o País". 
Ainda que os políticos se permitam tais excessos, não por serem políticos, mas 
por sentirem necessidade de se aproximarem emocionalmente de seu eleitorado, os 
cientistas alimentam-se das aímnações infirmadas, diríamos popperianamente, pa­
ra construírem suas precárias, humildes e prudentes certezas provisórias. 
3.3 A questão da legitimidade 
Desvencilhando-nos dos excessos, dos céticos podemos ficar com o realismo e, 
dos deslumbrados, com o funcionalismo. O realismo nos indica que a influência 
ordenadora de uma Constituição vai até onde for legitima, isto é, represente os 
valores, os interesses, os anseios, as aspirações, as estruturas e procesos tidos co­
mo válidos e bons, pela maioria de uma determinada sociedade. O funcionalismo 
nos aponta o valor pedagógico da pr6pria prdtica constitucional. capaz de condi­
cionar o comportamento de certos setores da sociedade diretamente atingidos por 
normas cogentes e mais proximamente submetidos a qualquer sorte de fiscalização 
ou de tutela de desempenho. 
Ora, sob tal enfoque, a Carta de 1988 nem é inl1til nem mágica. É uma resposta 
de ordem que determinado colegiado nacional, reunido conforme certas regras, 
achou a mais legítima possível de ser obtida através de negociações entre seus 
membros. 
A escolha deste colegiado foi, inquestionadamente, democrdtica, o que em 
termos de ciência política não significa que tenha sido legítima. O processo de 
trabalho deste colegiado, embora questionado, parece-nos ter sido também demo­
crdtico, até mesmo porque a negociação e as transigências recíprocas são instru­
mentos da democracia; mas, nem por isso está garantida, ipso facto, a sua legiti­
midade. 
Como sabemos, a legitimidade, em ciência política, não se esgota no processo 
de escolha nem no exercício corrente do poder: tem uma dimensão jinalfstica, que 
Constituição de 1988 93 
a integra e a coroa - essa é a legitimidade que é capaz de garantir a efetividade, a 
estabilidade e a durabilidade das Constituições. 
Não obstante, se queremos estudar a questão da legitimidade em sua integrida­
de, encontrá-Ia-emos intimamente vinculada à apreciação política da substância da 
Constituição. Deixemos de lado, por isso, os aspectos adjetivos ou processualísti­
cos da legitimidade e concentremo-nosnos substantivos: o contetldo da Consti­
tuição apresentada à Nação em 5 de outubro de 1988. 
3.4 Contraditoriedade e legitimidade 
Se uma Carta política hipotética afirmasse que determinado País é uma repliblica 
presidencialista, mas contivesse uma estrutura de monarquia parlamentar e apre­
sentasse um processo de aristocracia diretorial, estaria claríssimo que bastaria essa 
estapafUrdia contraditoriedade para comprometer a sua legitimidade. O exemplo 
caricato serve para enfatizar a premissa central dessa óltima parte de nossa expo­
sição: não é possfvel conciliar contraditoriedade e legitimidade. Logicamente 
não, embora a política não seja uma atividade preponderantemente racional, mas 
emocional: psicol6gica e não-l6gica, como sintetizaria Ney Prado. 
Ora, o tratamento político, social e econômico da Constituição de 1988, não 
tanto pelo desejo de seus redatores mas pela inspiração das circunstâncias e dos 
métodos regimentais adotados, produziu contradições logicamente irredutíveis, 
com grave comprometimento de sua legitimidade f"malística. 
O campo político, na Constituição de 1988, se caracteriza pela redução do p0-
der do Executivo, pela ampliação dos poderes congressuais, pela diversificação do 
controle de legalidade exercido pelo Judiciário, pela previsão da democracia parti­
cipativa e pelo reforço das entidades federativas menores. 
O campo social se caracteriza pela ampliação significativa dos direitos sociais 
laborais e pela estruturação de um Estado providencial, em termos de saóde, as­
sistência e previdência social. 
O campo econômico se caracteriza por uma afirmação principiol6gica de ec0-
nomia de mercado mas comprometida em seu desdobramento institucional por uma 
c6pia de nada menos que 38 institutos de intervenção estatal no domínio econômi­
co; três vezes mais, em nómero, que a Carta anterior, para ficarmos s6 no aspecto 
quantitativo. 
Abstendo-nos de qualquer juízo de valores político sobre tais normas constitu­
cionais, relativamente às necessidades brasileiras, vejamos suas intrínsecas con­
dições de desempenho e de permanência, isto é: se existem contradições compro­
metedoras de seu êxito, desgastando poder contra poder, levando à perplexidade, 
criando condições para a desmoralização e abandono do modelo. 
No político, o Executivo perde poder, mas, paradoxalmente, tem seus encargos 
muito aumentados. O Legislativo ganha poder, mas tantos são seus novos encar­
gos que não terá condições de exercê-los todos e bem. Acrescente-se a isso a riva­
lidade potencial entre o chefe do Executivo e o Legislativo fortalecido, como mo­
tivo de desgaste de poder. O Judiciário terá novos tribunais mas ficará caro e mais 
moroso com as quatro instâncias concebidas. As partilhas, de tributos e de produ­
tos, são ainda mais paradoxais, porque aquinhoam mais os estados e municípios, 
aos quais não se transferiu encargos proporcionais, enquanto a União, em qual­
quer dos seus três poderes, viu, aumentados, ponderáveis encargos de custeio. 
No social, a contradição está, de um lado, na criação de uma imensa carga pa­
ternalista para o Estado e, de outro, no desconhecimento da capacidade econômica 
94 R.C.P.4/89 
da sociedade. Como o Estado não produz riquezas, sua solução será, forçosamen­
te, aumentar a carga tributária, encarecendo os produtos e reduzindo os salários. 
Além disso, a Carta só aquinhoa o trabalhador, aquele privilegiado que, neste 
País, conseguiu emprego, enquanto a esmagadora maioria, de 66 milhões de habi­
tantes, ainda está à margem da economia, esperando, não as migalhas do Estado, 
mas a expansão das riquezas e a geração de empregos. Finalmente, num País m0-
derno, a Constituição não pode substituir-se à negociação, que deve ser livre, en­
tre as categorias da produção. A constitucionalização das chamadas "conquistas 
sociais" acaba sendo uma derrota igualmente dos trabalhadores e empresários. 
E aqui já estamos chegando ao econômico, o calcanhar-de-aquiles da Consti­
tuição de 1988, onde as ambigüidades são mais sérias porque, num país em desen­
volvimento, as crises econômicas não têm margem de segurança e tomam-se logo 
crises sociais e essas, políticas. Qual o sentido das aí1I1IlaçÕes principiológicas de 
livre iniciativa, livre empresa, livre mercado, se no texto predomina, a nível insti­
tucional, o estatismo, o xenofobismo, o intervencionismo, o protecionismo e o car­
torialismo, naqueles 38 instrumentos interventivos? Está claro que a resposta é o 
desinvestimento, o desestímulo, a recessão, o envelhecimento do parque indus­
trial, a obsolescência tecnológica, o aumento da carga tributária e outras reper­
cussões que poderão levar o Brasil à contra-mão da economia mundial, ao isola­
mento e ao empobrecimento. 
Por fun, a áltima e mais estranha contradição: toda Constituição deve ser, antes 
de tudo, um documento político que traga segurança e estabilidade: segurança 
jurídica e estabilidade política. A Carta de 1988 é incompleta e provis6ria. In­
completa, pois a ela elevou-se dezenas de assuntos, antes tratados em nível or­
dinário, mas para nada definir: devolveu-se a deftnição ao legislador ordinário, 
tornando-a indefmitória, incompleta e, por isso, insegura. Provis6ria, ainda, pois 
o próprio legislador constitucional, apologeticamente, detenninou sua revisão in­
tegral em cinco anos, tomando-a, portanto, instdvel. Como o que é inseguro e 
instável pode gerar segurança e estabilidade? Essas contradições estão no texto. 
Não necessariamente na vivência constitucional; por isso, poderemos superá-las. 
Dois critérios polarizados, portanto, podem se abrir: no primeiro, as contra­
dições passam do texto à realidade da convivência. Não é difícil imaginar-se o re­
sultado, e a Constituição de 1988 ftcaria na história como a "Carta da hiperin­
fiação", como já a denominou Ives Oandra Martins,' a ·Carta da recessão", a 
"Constituição do caos". No segundo, as contradições ftcam no texto, pelo menos 
até que venha a ser alterado. Tudo depende de sua prudente aplicação. Os três 
poderes devem contribuir para isso e, mais que todos, o Judiciário, que tem a ál­
tima palavra em termos de legalidade. 
O primeiro cenário é por demais triste e sombrio para que, sequer, assumamos o 
risco de enfrentá-Io. Mas o segundo, só pode ser alcançado com muito esforço. 
Muito mais trabalho de exegese e de criação do que aquele que foi necessário para 
elaborar a Carta de 1988, pois mais diffcil é corrigir do que errar. Somos, pes­
soalmente, otimista e, como cientista, ainda mais. Não vemos por que não possa­
mos fazer da Constituição formal uma Constituição real, no sentido que lhe deu 
Lassalle há 100 anos. 
Mas para que a Constituição seja o que dela esperamos, não podemos partir da 
ilusão. Daí o tom crítico que devemos assumir, em contraponto com sua eufórica 
propaganda, que a nada leva, senão a uma anticlimática decepção. 
• Intervenção do Prof. Ives Gandra Martins, no IX Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, São 
Paulo, 1988. 
Constituição de 1988 95 
A crítica é necessária ao trabalho construtivo, imprescindível à estabilidade 
polftica do País. E este trabalho, de tomá-la viva, começou já no dia 5 de outubro, 
e se faz através de sua interpretação judiciária, de sua integração legislativa e de 
sua aplicação executiva. Afinal, o que numa Carta polftica importa, mais que seus 
im1meros e diversos preceitos, é o pr6prio princípio de ordem, de segurança e de 
estabilidade que dela dimana, de sua propria existência. 
4. Conclusões 
Seremos breve nas conclusões, ainda porque todo este ensaio procurou ser conclu­
sivo, correndo todos os riscos inerentes a qualquer trabalho de progn6stico. 
A nível de valor, o problema que fica a ser resolvido ainda é o do justo equili­
brio entre liberdade e igualdade. O fatídico enfrentamento entre esses valores, tão 
afirmado na era das ideologias, cede cada vez mais terreno a uma dinâmica de ne­
gociação. Vários países, até mesmo algumas ditaduras do proletariado, já estão 
demonstrando a possibilidadee a excelência prática dessa nova colocação do pro­
blema. O declínio das ideologias e a redução de seu papel radicalizante nas socie­
dades modernas torna possível o paulatino avanço de polfticas guiadas pelo prag­
matismo e pela concertação, técnicas da convivência social que exon:izam os fan­
tasmas dos radicalismos ideol6gicos e das soluções violentas. 
A respeito do primado da eficiência polftica sobre os postulados ideol6gicos, 
parecem convergir lfderes contemporâneos dos mais diferentes países e das mais 
distintas filiações políticas, como Cavaco e Silva, Felipe Gonzales, Margareth 
Tatcher, Bettino Craxi, François Mitterrand, Mikhail Gorbachev e Deng Xiao 
Ping, pondo em triste evidência nosso atraso, no apego a f6rmulas e clichês ultra­
passados, explorados semanticamente sob um pretexto vagamente explicado como 
"progressismo" • 
A nível de estrutura, constata-se que nossos regimes continuam sendo copiados 
de modelos estrangeiros. Nesse sentido, somos até vítimas de estruturas ilegítimas 
de poder; como disse certa vez Octavio Paz, de seu país, o México: "Faltou o há­
bito de perguntar pela legitimidade do poder.'" 
Indubitavelmente, o Congresso recupera, na nova Constituição, competências 
antes concentradas no Executivo: da mesma maneira, estados e municípios têm 
ampliadas suas respectivas esferas de competência legislativa e administrativa; e, 
mais que tudo, há uma preocupação muito séria com a participação política. Essas 
alterações, todavia, terão que refletir-se na vida da Constituição de 1988 para que 
produzam câmbios políticos na estrutura de poder no Brasil; para que ela possa 
refletir maior legitimidade e elimine o pélago entre a sociedade e o Estado. 
De certa forma, essa distância entre o papel e a realidade é todq o drama do 
constitucionalismo e pode significar a diferença entre ser ou não ser, pois vivência 
é distinto de vigência, bem o sabemos desde Ferdinand Lassalle.1 o 
A nível de processo, a ddvida está na efetiva canalização e no controle jurídico 
. dos conflitos políticos, econômicos e sociais que abundam na sociedade brasileira 
de nossos dias. Pouco habituados às soluções regradas, os brasileiros não se acos­
tumaram com a distinção entre conflitos no regime e conflitos com o regime. 
Nessas condições, é natural que o processo, sem possibilidade de exprimir valo­
res, no jogo regrado das idéias, tenha decaído, tantas vezes, para a contestação, 
• Paz, o. Ellabirinto de kI sokdad. Apud Saldanha, Nelson. O liberalismo radical no lmplrio - compoTll!1Ites 
ideológicos, de Cipriano Barata. In: As idéias polfticas no Brasil, op. cito p. 179. 
10 A refer8ncia é à seguinte passagem: "Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas de 
poder" (Uberdie Veifassung, 1863, trado LiberJuris, 1985, p. 49). 
96 R.C.P.4/89 
radicalizada e deletéria, em vez de manter-se como oposição, racional e construti­
va. 
Como resultado desse processo, a política brasileira tem vivido sob o signo da 
radicalização pendular entre o populismo e o autoritarismo, polarizando posições 
em vez de pluralizando-as. 
Nenhuma dessas aberrações radicalizantes, com que nos acostumamos a viver 
em nossa história republicana, tem condições de conter e de realizar o ónico valor 
politicamente aceitável: a legitimidade. 
A pr6pria Carta contém as soluções para realizá-la e devemos dar-lhe uma 
oportunidade, aperfeiçoando-a pelo uso de seus proprios instrumentos e esconju­
rando o risco de novos retrocessos juspolíticos. 
A sociedade, afinal, não necessita de que se diga o que é bom para ela. Pode­
mos prescindir de tutelas e dirigismo estatais. O rompimento do processo pendular 
não depende, é claro, da Constituição, mas a partir dela há possibilidade de de­
senvolver, pela prática da participação polftica, "o hábito de perguntar pela legi­
timidade do poder". 
Constituição de 1988 97

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