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RUMOS DO DIREITO POLÍTICO BRASILEIRO ATÉ A CONSTITUIÇÃO DE 1988 Maria Fernanda Valverde* 1. Metodologia de Análise; 2. Etapas evolutivas da polltica brasileira; 3. Análise do quadro constitucional de 1988; 4. Conclusões. 1. Metodologia de am1lise Antes de tentannos sintetizar num breve ensaio um tema tão vasto, inesgotável em seus enfoques e desdobramentos, toma-se imprescindível estabelecer-se uma me todologia de análise precisando o que pretendemos expor e como a faremos. Por se tratar de um enfoque de direito político, empregaremos o método cra tológico, centrado nos fenômenos do poder e, como adiante se exporá, destacando àeles apenas três aspectos. 1.1 Os discursos analíticos Partimos da irrecusável premissa da integralidade do processo histórico evoiutivo da política. A decomposição desse todo é expediente meramente didático, necessá rio à exposição e compreensão dos elementos causais eleitos como critérios, mas isso não significa que a realidade se atomiza; a análise social, gênero em que se inclui a an4lise polltica, procura valer-se do conhecimento amealhado por várias ciências sociais, integrando-o à luz daqueles critérios escolhidos. Num sentido geral, nas análises sociais predomina um critério funcionalista, is to é, procura-se identificar o papel que determinado valor ou determinada idéia, operando em um grupo social, desempenha no processo de mudança e na alteração de sua estrutura. Até mesmo as recentíssimas abordagens sistêmicas acolhem o funcionalismo ao dar destaque às interações inter e intra-sistêmicas. Certos valores ou idéias, como se sabe, constituem o cerne das instituições, ex pressões cristalizadas de poder que, da mesma forma, desempenham - não s6 pelo seu conteúdo de valor mas pela dinâmica própria que lhes confere o poder de que se revestem - um papel protagonístico nas mudanças sociais, determinando suas correspectivas estruturas e seus decorrentes processos políticos. Destarte, as análises parciais são úteis na medida em que satisfazem indagações políticas. O critério sociol6gico nos dará um discurso predominantemente institu cional; o jurídico, um discurso predominantemente juspositivo; o econômico, um discurso predominantemente voltado aos interesses e bens materiais; o critério fi los6fico, como derradeiro exemplo, dilatará o espectro investigat6rio para incluir a dimensão axiol6gica. A lista poderia prosseguir, mas esses exemplos parecem-nos suficientes para introduzir o critério central do discurso político, tal como nos propomos apresentar: o critério cratol6gico, isto é, o critério do poder. A justificação desse método parece-nos, a esta altura, desnecessária, depois que mestres do porte de Georges Burdeau enfatizaram exaustivamente sua excelência e sua imprescindibilidade para realizar obra de síntese, pois, como afirma, "a vida política por inteiro se articula em tomo deste complexo de elementos materiais e espirituais que é o poder político".' , Procuradora do Estado e professora do INDIPO. 1 Trailé de science poürique. 2 ed. Paris, Librairie Générale de Droit e de Jurisprudence, 1966. t. I, p. 10. R.C. P'lJ., Rio de Janeiro, 32(4)82-97, ago.lout. 1989 Fizemos repousar e articular-se, portanto, nossa interpretação da evolução polf tica do Brasil sobre os fenômenos do poder, ainda porque o método cratológico apresenta inegáveis vantagens didáticas, mormente quando se nos depara a tarefa de ensaiar uma interpretação de 166 anos de evolução polftica brasileira, desde a independência a nossos dias. 1.2 Parâmetros do discurso cratológico o poder, difuso em todos os grupos humanos, concentra-se institucionalmente num estádio evolutivo definido como sociedade; esse fenômeno é crucial para a passagem do estádio de comunidade para o da sociedade, resultado da emergência da consciência de um interesse coletivo, como aquele interesse diferenciado que somente a "sinergização" da vontade e da capacidade do grupo poderá satisfazer. Essa concepção, como se pode perceber, segue de perto a clássica distinção entre comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft) creditada a Ferdinand Tõnnies. À medida que essa concentração de poder se dá no grupo social e o reforça, a fenomenologia do poder começa a se desenhar desdobrada em vários modos de ser e de atuar: a destinação, a atribuição, o emprego, a distribuição, a contenção e a detenção do poder. 2 Sucintamente, a destinação do poder responde à questão fundamental: para que concentrar-se o poder difuso? A atribuição do poder responde às conseqüentes indagações: como se partilha o poder concentrado e como ficam os difusos? O emprego do poder responde à questão: como se exerce o poder? A distribuição do poder, à questão da sua partilha entre órgãos e entidades da sociedade organi zada, como os estatais. A contenção do poder responde à questão: como se limita e controla o poder concentrado (predominantemente, o concentrado no Estado). E, por fim, a detenção do poder, ao problema do acesso ao poder já concentrado e institucionalizado (predominantemente, o concentrado no Estado). Para a presente exposição, basta-nos sintetizar em três os fenômenos do poder sobre os quais nos debruçamos: a destinação, a organização e o exercício, interes sando-nos acompanhar esses três aspectos no evolver político da sociedade brasi leira. Esse tríplice referencial nos conduz, necessariamente, aos três parâmetros do discurso cratológico, escolhidos para servir de guia à nossa análise: o valor, a es trutura e o processo. O valor é a expressão tinalCstica da destinação do poder. Seu estudo põe-nos diante da dialética da liberdade e da igualdade. A estrutura é a expressão estática da organização do poder. Seu estudo con duz-nos a uma predominante visão institucional, abrangendo, simultaneainente, a concentração, a atribuição e a distribuição do poder, dentro da sociedade, no Es tado. O processo é a expressão dinâmica da atuação do poder. Seu exercCcio, seus objetivos e seus resultados podem ser estudados tanto no que diz respeito à pre dominante ação do poder do Estado - ação de governo - quanto no que se refere à predominante ação do poder reservado à sociedade - ação de participação polftica. 2 A respeito, publicamos um artigo denominado Metodologia constitucional, na Revista de Informação Le gislativa do Senado Federal, 23(91):99-110,1986. C omtituição de 1988 83 Com a fixação desses três parâmetros, estamos preparados para incursionar em nossa hist6ria da evolução política nacional, partindo da antiga herança colonial lusitana até estes primeiros dias da Constituição de 1988. 2. Etapas evolutivas da polftica brasileira 2.1 Características dominantes e suas expressões juspolíticas Tão artificial quanto escandir o processo evolutivo em etapas, é também rotulá-lo. Artificial, por certo, mas I1til, se queremos enfatizar uma característica dominante que, até certo ponto, pode servir de referencial interpretativo de um certo período. Com efeito, valores, estruturas e processos estão sempre em mudança, mas, ainda assim, no espaço de algumas décadas, apresentam uma certa estabilidade no es sencial, permitindo-nos destacar certas características e dar-lhes uma etiqueta, al go assim como a intitulação de um capCtulo de um livro. Ao fazê-lo, po~ém, manter-nos-emos rigorosamente fiéis à metodologia preco nizada: em cada uma das etapas procuraremos identificar os valores, as estruturas e os processos dominantes e, complementarmente, apresentaremos suas expressões juspolCticas - as Constituições e os atos da natureza constitucional que intentaram juridicamente aqueles três aspectos centrais do poder. Com efeito, em todos os seus anos de independência, o PaCs, embora com al guns interregnos sem vida constitucional regular, perfilhou o ideal do constitucio nalismo. Em outros termos: a sociedade polCtica brasileira, desde os prim6rdios de sua emancipação política, absorveu e adotou a organização constitucionalcomo solução polCtico-jurídica para disciplinar o poder do Estado e no Estado ou, se se preferir, dos e nos sucessivos Estados que esta nação constituiu, nesses 162 anos, neste lado do mundo. Não nos esqueçamos que o constitucionalismo foi um produto do liberalismo, a sua expressão jurídica mais autêntica, ao erigir barreiras ao poder absoluto do so berano e ao deslocar a pr6pria soberania para a sociedade. Essa característica, apontada por muitos investigadores da hist6ria do constitucionalismo,3 revela-se nitidamente na coincidência de seu amadurecimento polCtico, no século XVIII, tanto na sua expressão norte-americana, com Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, quanto na sua expressão francesa, com Benjamin Constant e Ernrna nuel Joseph Sieyês, e repercute no nascimento formal da nacionalidade brasileira - a independência política, em 1822, e sua primeira Carta, em 1824. Essas origens de apego ao constitucionalismo explicam por que as grandes mu danças polCticas brasileiras acabaram transfundidas em Cartas constitucionais. De certa forma, com seus erros e acertos, incoerências e coincidências, esses diplo mas são reflexo dos valores, estruturas e processos que vigeram e marcaram as su cessivas fases que, a seguir, estudaremos. 2.2 Os seis momentos da evolução polCtica brasileira O primeiro momento - Do absolutismo ao liberalismo - parte do tmal do período colonial e vai até o ocaso do Segundo Império. É o período da constituição e da consolidação do Estado brasileiro. São seus documentos constitucionais a Consti tuição de 1824 e o Ato Adicional de 1834. 3 Melo Franco, Afonso Arinos de. Direito con.;ritucional. Rio de Janeiro, Forense, 1981. p. 12. 84 R.C.P.4/89 o segundo momento - O bacharelismo liberal - inicia-se com a Proclamação da Rep\1blica e vai até a Revolução de 30. O liberalismo é reinterpretado à luz do po sitivismo. São seus documentos constitucionais a Constituição de 1891 e a Emen da de 1926. O terceiro momento - O autoritarismo nacional-corporativo - é a era de Var gas' de 1930 até a redemocratização do segundo p6s-guerra. As idéias sociais chegam ao Brasil e deixam suas primeiras marcas na legislação. São seus docu mentos constitucionais o Decreto n~ 19.398 de 11 de novembro de 1930, insti tuidor do Governo Provisório, e as Constituições de 1934 e de 1937. O quarto momento - O neoliberalismo democrático· - estende-se desde a queda da ditadura getuliana até a Revolução de 1964. Um interregno democrático entre dois períodos autoritários, que procurou conciliar o liberal com o social. São seus documentos constitucionais a Constituição de 1946 e suas seis emendas promul gadas até janeiro de 1963. O quinto momento - O autoritarismo estatizante - vai da Revolução de 1964 à convocação da Assembléia Nacional Constituinte, em 1985. Marcou-se pelo pro gresso econômico e pela paralisia nos campos político e social. São seus docu mentos constitucionais o Ato Institucional, de 9 de abril de 1964, a Constituição de 1967, a Emenda Constitucional n~ 1, de 1969, e suas 25 sucessivas emendas. O sexto momento - O atual - iniciou-se com a convocação da Assembléia Na cional Constituinte, pela Emenda n~ 26, de 27 de novembro de 1985, e adquiriu sua expressão pr6pria com a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988. Passemos a analisá-los sucintamente. 2.2.1 Primeiro momento - do absolutismo ao liberalismo O rigoroso absolutismo português, dominante em todo o período colonial e forte mente fincado na penfusula, explica a opção liberal da pequena elite de estadistas que criou o Estado nacional brasileiro. 2.2.1.1 Valor - A tese política do liberalismo é a liberdade, a ser alcançada, prin cipalmente, pela constitucionalização do Estado e abolição dos privilégios; a igualdade, nesse contexto, seria a mera igualdade jurídica perante a lei. As idéias liberais, foram nossos pr6ceres colher em Coimbra, renovada pelas idéias do Pe. Luiz Antonio Verney,' o pensador oratoriano que propugnava uma revolução metodol6gica ao estilo de Francis Bacon para varrer a filosofia escolás tica e suas sebentas. Indiretamente, o iluminismo científico baconiano atrairia o pensador político. O Marquês de Pombal, entusiasmado seguidor de Verney, pon do em prática suas idéias nos Novos Estatutos da Universidade de Coimbra, em 1772, desferiu um duro golpe no poder da Inquisição, dos jesuítas e da pr6pria Igreja, acabando com o chamado "saber de salvação", nem por isso permitiu que se estudasse Locke, curiosamente, uma das assíduas leituras do pr6prio Verney. 5 Esse processo, que Vicente Barretto denominou de "abertura da cultura metro politana portuguesa para as idéias da cultura européia do Século XVill", teve pro- • Verdadeiro mitodo de estudar. Lisboa, 1746. 5 Moura, Oclimo Dom. O iluminismo e a política pombalina. In: As idéias polfticas no Brasa. São Paulo, Convívio, 1979. p. 71. Constituição de 19RR funda repercussão na fonnação da elite brasileira que, àquela época, fonnava-se em Coimbra. Nomes como José Alvares Maciel, José Joaquim da Mata, Domingos Vidal Barbosa, Mosé Mariano Leal e Silvestre Pinheiro Ferreira, este óltimo mi nistro de D. João VI, trouxeram o que de melhor havia na modernidade européia iluminista e liberal para lançar as bases de pensamento sobre as quais se ergueria a construção doutrinária da Independência. e Os valores dominantes na época da Independência, tão bem representados nas idéias do Patriarca, permeararn a Constituição de 1824 e apontavam o declínio do absolutismo e a aftrmação do liberalismo. 2.2.1.2 Estrutura - A estrutura colonial, aos influxos das novas idéias, começou a diferençar a sociedade (o conceito francês de povo), como titular da SQberania; o Estado, sua organização; e a realeza, sua instituição fundamental. Essa tripartição foi útil durante todo o período da consolidação da vida independente do Brasil e se manifestou em instituições políticas muito peculiares, como o Poder Modera dor. 2.2.1.3 Processo - Embora fossem muito lentos, os processos políticos já revela vam alguma responsividade da sociedade brasileira. Já nos tempos coloniais, os movimentos separatistas e independizadores davam conta da fermentação das idéias liberais, como, para exempliftcar, no curioso movimento panfletário deno minado Conjuração Baiana, de 1798, também denominado de Revolta dos Alfaia tes, sem falar na her6ica Inconftdência Mineira, o mais notável marco dessa in fluência. 2.2.1.4 A Constituição de 1824 - Embora outorgada e com seus precedentes na Carta de Restauração monárquica francesa, de 1814, a primeira Constituição bra sileira foi, sem dúvida, um documento liberal e adiantado para o seu tempo. Sua originalidade estava, sobretudo, no pragmatismo que lhe conferia o seu art. 178, introduzindo um mecanismo de emenda semiflexível, além da instituição do Poder Moderador, um instrumento que, durante muitas décadas, equilibrou os partidos e amenizou os ânimos, servindo à pacificação e à unidade, dádivas do Segundo Império à sociedade brasileira. A partir do Ato Adicional de 1834, a Constituição Imperial perdeu o seu caráter autocrático e tomou-se, pelo consenso, um docu mento democrático, tanto quanto o poderia ser qualquer outro congênere de sua época. 2.2.2 Segundo momento - o bacharelismo liberal O liberalismo iluminista, que fundara e cimentara o Império, cedeu a vez ao libe ralismo positivista e juridicista da República. Por isso, ninguém melhor que Rui Barbosa simboliza esse momento, com sua profunda influência juspolítica na or ganização republicana. 2.2.2.1 Valor - Na Europa, o liberalismo produzira o idealismo juridicizante, mas, em resposta, o velho absolutismo autocrático produzira o realismo sociologista. Os primeiros ainda eram liberais porque continuavam a crer no primado do homem e da sociedade; os segundos eram antiliberais porque estavam comprometidos com a 6 Ferreira, V. Silvestre Pinheiro. Idéias polfticas, com introdução de VicenteBarreto. Rio de Janeiro, 1 (,. R.C.P.4/89 dependência da ordem à autoridade e, esta, à existência de um Estado forte. Em bora prevalecesse a vertente liberal, de uma certa maneira, a sementeira autocráti ca estava lançada. No Brasil, ao lado do bacharelismo liberal juridicista, o realismo sociologista contava com nomes da envergadura de Euclides da Cunha e Alfredo Varella e com o poderio do caudilhismo positivista de Júlio De Castilhos e Pinheiro Machado que, numa fase posterior, chegaria ao nacionalismo radical de Alberto Torres, ao integralismo de Plínio Salgado e, mais adiante, ao estadonovismo corporativo de Getulio Vargas. Por outro lado, os valores do positivismo, que Benjamm Constant instilaria na &cola Militar, além de fermentar a Repáblica, produziriam um Exército politica mente conscientizado, atributo que não mais perderia, com tanta relevância na História política do País. Tanto quanto nesses influxos, o positivismo teria ainda fundamental importância para pôr em voga a chamada "questão social", eufemis mo com que se denominou, por várias décadas, o problema da marginalização crescente da população das benesses da educação, da medicina e da economia. Temas como a escravidão, a imigração, a federação, a repáblica, a laicização do Estado e a elitização popular pela educação, interpretados à luz dos "três está gios" de Augusto Comte, passaram a ser tratados em todos os cfrculos e a empol gar a sociedade. 2.2.2.2 Estrutura - A derrocada da estrutura tradicional do Império abriu campo a um modelo republicano e federativo calcado nas instituições anglo-norte-america nas. Ampliou-se a participação eleitoral, mas se manteve uma presidência regalia na, à semelhança do modelo estadunidense, confessadamente adotado, até na de nominação do novo Estado. Foi, todavia, a ascensão do Exército e sua inserção na arena política, não por seus grandes ~hefes, como ocorrera no Império, mas insti tucionalmente, a nota marcante da nova configuração do poder. 2.2.2.3 Processo - Embora permanecesse, em seu conjunto, elitista, o processo político recebeu do bacharelismo a preocupação com a legalidade e com a edu cação. Rui, por exemplo, tinha, precursoramente, a opinião páblica em alta conta, considerando-a imprescindível ao processo democrático. Pela primeira vez COme çava-~ a pensar no fato concreto da opinião páblica em vez do recurso ao povo, categoria abstrata que influenciou profudamente o discurso retórico que até hoje é praticado. 7 2.2.2.4 A Constituição de 1891 - O projeto, de Saldanha Marinho, Rangel Pesta na, Santos Werneck, Américo Brasiliense e Magalhães Castro, teve em Rui Barbo sa seu cuidadoso revisor, apaixonado pela perspectiva de trasladar para o Brasil a experiência constitucional norte-americana, que tanto admirava. Seu idealismo te ve um preço. Mesmo reformada em 1926, na 12!! Legislatura, por iniciativa de Ar tur Bemardes, inaugurando o nacionalismo econômico e iniciando o processo de hipertrofia do Poder Executivo nos moldes europeus, para solucionar os proble mas econômicos e sociais que se acumulavam, a Carta de 1891 estava profunda mente divorciada de nossos costumes e tradições políticos. No plano do processo, essa Constituição abriria via para o movimento nacionalista e autoritário que triun faria com a Revolução de 30. 7 Entre as leituras, abundantíssimas e atualizadl'ssimas, de Rui Barbosa, dão-nos conta seus bi6grafos, esta va a avançada obra de Albert Dicey, Law and opinion in Eng/and during the nineteenth century (London, 1905), trabalho pioneiro sobre a opinião pública e seu papel. Constituição de 1988 87 2.2.3 Terceiro momento - o autoritarismo nacional-corporativo A "questão social" teria, nesse período conturbado da hist6ria do mundo, uma resposta autoritária, muito à maneira do que ocorria na Europa. O Estado Novo, produto estrutural do modelo autoritário, nacionalista e corporativo que se instalou com a Revolução de 30, levaria adiante a estatização e renovaria o paternalismo, esse vício hist6rico da sociedade brasileira, sempre a pretexto de resgatar as mas sas, em expansão, da marginalização s6ci~onômica. 2.2.3.1 Valor - A igualdade estava no bojo da questão social, mas sua busca não era considerada um problema de estímulo mas de proteção. O Estado provedor era o modelo das ideologias que disputavam as massas, com as armas da propaganda e as falácias da demagogia. O getulismo, versão cabocla das nacional-ideologias eu ropéias, arregimentava a massa trabalhadora, assumindo, pela estatização dos sin dicatos, o seu controle. 2.2.3.2 Estrutura - O poder autoritário, do tipo caudilhesco, encontrou no casti lhismo gaúcho sua mais perfeita expressão. Severino Sombra situa Getulio Vargas como legítimo herdeiro dessas tradições do mandonismo pampeiro, na linha de Jú lio de Castilhos, de Borges de Medeiros e de Flores da Cunha, levando a nível na cional o tipo de estrutura clientelista e paternalista do modelo platino, a gosto de Rosas e de Oribe. A federação desaparece e ressurge o Estado unitário e o Con gresso cede à figura do chefe da nação: foi a concentração máxima de poder num s6 6rgão e num s6 homem. 2.2.3.3 Processo - O processo centrípeto era temperado apenas pelas concessões táticas de Getulio Vargas. O desenvolvimento controlado do populismo trabalhista foi o mais eloqüente exemplo disto. Aparentemente havia preocupação com o so cal; a nível propagandístico, as massas identificavam o ditador com suas reivindi cações. Havia, no entanto, baixa prioridade para o desenvolvimento econômico. A 11 Guerra Mundial temÚDara, o Brasil estava entre os vitoriosos, mas sua econo mia continuava atrasada e sem dinamismo. A resposta viria pela atuação das For ças Armadas, buscando coerência entre seu papel externo, no combate ao nazi fascismo, e sua submissão interna ao arremedo nacional-corporativista da era getu liana. 2.2.3.4 Constituição de 1934 - Da Revolução de 30 até 16 de julho de 1934, o Brasil teve um documento institucional atípico, o Decreto n!? 19.398, de 11 de no vembro de 1930, que instituiu o Governo Provis6rio de Vargas, fechou o Con gresso e manteve, precariamente, a Carta de 1891. Uma ilustre Comissão, presidi da por Afrânio de Melo Franco, da qual fizeram parte Assis Brasil, João Manga beira, Carlos Maximiliano, José Américo e Oswaldo Aranha, redigiu um dos me lhores projetos de Constituição jamais elaborado entre n6s, seguindo o exitoso modelo weimariano, que conciliava o político, o econômico e o social. Posta em vigor em 16 de julho de 1934, teve uma vigência extremamente curta e não che gou a ser plenamente vivida, substituída, em 10 de novembro de 1937, pela Carta do Estado Novo. 2.2.3.5 Constituição de 1937 - Redigida por Francisco Campos, fielmente obe diente às posições políticas de Getulio Vargas, foi um documento típico do nacio- 88 R.C.P.4/89 nal-corporativismo autoritário; mas o proprio ditador dela não se utilizou realmen te, tal a soma de poderes de fato por ele exercidos. 2.2.4 Quarto momento - o neoliberalismo democrático Se a "questão social" havia tido alguma resposta durante o período anterior, a questão política somente viria com a redemocratização, sobrevinda como reper cussão da vit6ria aliada na 11 Guerra Mundial. Do mesmo modo, a questão econô mica receberia uma resposta com os movimentos desenvolvimentistas e modemi zadores que foram concebidos para reconstruir os palses devastados pela longa conflagração. 2.2.4.1 Valor - Com a vit6ria aliada, as liberdades democráticas voltaram a primar sobre os demais valores. A força de trabalho já se havia organizado no período anterior, embora em bases dirigistas, mas, mesmo assim, ou talvez mesmo por is so, estavam disponíveis para os assaltos do populismo ideol6gico e da demagogia, que encontravam campo livre para atuarem no clima de abertura democrática pr0- piciado pela Constituição neoliberal de 1946. Em pouco tempo, o conflito voltaria a eclodir com grande violência:de um lado, grupos urbanos pregando abertamente a revolução armada e, de outro, os valores da estabilidade. 2.2.4.2 Estrutura - O Poder Executivo ainda tinha muito poder, mas o avanço do populismo acabou produzindo um regime parlamentar que se destruiu a si próprio e, com ele, a possibilidade de conter a subversão. O Exército, que se retralra de pois da democratização iniciada em 1945, somente em 1964 se prestaria a nova in tervenção, dessa vez, quando o País beirava o caos e a desagregação nacional; continuava, portanto, como a mais coesa e organizada expressão de poder no Es tado. 2.2.4.3 Processo - A organização das massas para a democracia não foi satisfat6- ria. Ao contrário, a manipulação populista apontava para um processo caótico. Sobrevém, no período, a internacionalização de movimentos contestat6rios, quase todos perseguindo mudanças violentas do regime e a instituição de poderes parale los. Os instrumentos democráticos da Constituição de 1946 não resistem a essa si tuação, demonstrando a inviabilidade do modelo político introduzido. 2.2.4.4 Constituição de 1946 - Ainda uma Carta de cunho liberal, não obstante os dispositivos da ordem econômica e social. Sua fisionomia política era muito seme lhante às Constituições que entre 1936 e 1949 foram promulgadas em mais de 20 palses, em todo o mundo: no zênite do nacionalismo, do estatismo e do preconcei to xen6fobo, tristes heranças de três décadas na inquietação e guerras totais. No Brasil, a Assembléia Nacional Constituinte, eleita a 2 de dezembro de 1945, e instalada a 2 de fevereiro de 1946, promulga a Carta redemocratizadora em 18 de setembro de 1946. Não obstante ter sido, em linhas gerais, um bom documento para sua época, os seus anacronismos em matéria política, não corrigidos eficien temente, selaram seu destino sem que tivesse alcançado a "maioridade". Em 1961, um Ato Adicional tenta salvar o regime, à beira da ruptura, com um frágil sistema parlamentar de governo; mera resposta casuística, de hist6ria curta e infeliz, que só agravou os problemas e tomou inevitável a intervenção militar. Constituição de 1988 89 2.2.5 Quinto momento - o autoritarismo estatizante o regime autocrático instituído com a Revolução de 1964 busca, desde o início, autolimitar-se e conter-se em padrões constitucionais. Ainda assim, é indisfarçável o autoritarismo político, exigido pelas circunstâncias, para os fms a que se havia proposto o movimento de 31 de março. No campo econômico, o autoritarismo proporcionou unidade de decisão e concentração de meios necessários à rápida in dustrialização ocorrida no périodo; em razão dessa liderança do governo no pro cesso de desenvolvimento econômico, a estatização alcançou seus mais elevados níveis. Foi a era dos capitais pdblicos mas, também, da implantação de "cartó rios" empresariais, que acabariam deformando a competição e contribuindo para concentrar a renda nacional de forma altamente distorcida e preocupante. No cam po social, foi baixa a prioridade, com a crescente marginalização de imensos con tingentes populacionais nos campos e, principalmente, nas cidades. O período marca, também, o zênite da política de substituição de importações, sem apresen tar soluções para sua superação. O mundo se internacionalizava, enquanto o Brasil, fiel ao modelo nacional-protecionista, salvo no campo das exportações, manteve se relativamente isolado. O quad (J c1eu ensejo ao nascimento de novos tipos de poder: o da empresa estatal e o da tecnocracia, ambos aliados do poder militar, dominante em todo o período. 2.2.5.1 Valor - A liberdade, em tudo o que não fosse poICtico, foi respeitada. No campo político, foi vigiada e dirigida. O paternalismo ressurge com a empresa es tatal e com os "cart6rios" empresariais. O crescimento econômico é considerado o valor supremo da sociedade nacional, juntamente com a sua segurança. Embora, teoricamente, o desenvolvimento houvesse sido considerado em seu aspecto glo bal, abrangendo o poICtico e o social, na prática, a prioridade dada a esses campos retardou de muito o retomo aos quadros constitucionais democráticos. No final do período, pressionados pela opinião pdblica, os dois dItimos governos autoritários cedem à então denominada "abertura política", mas, por inabilidade, perdem o controle do processo de redemocratização, com not6rios prejuízos para o País, mormente com a incerteza no campo econômico. O final do período marca, por is so, o retomo do populismo e das manifestações radicalizantes. 2.2.5.2 Estrutura - O poder, durante toda a duração do regime instaurado em 1964, concentra-se nas Forças Armadas, lideradas pelo Exército. Pouco a pouco, o declínio do êxito econômico, principal responsável pela permanência dessa es trutura desbastada, dá origem a uma estrutura oposicionista, com sede na classe polCtica e tribuna, no Congresso Nacional. A sucessão presidencial, vencida por Tancredo Neves, é a culminância da afmnação desse poder da oposição. 2.2.5.3 Processo - O controle polCtico, econômico e social tem seu ciclo de cres cimento, fastígio e declínio, claramente identificável, de 1964 a 1983. Na tentativa de sustar a perda de poder poICtico, o governo autocrático vale-se de casuísmos eleitorais que, como seria de se esperar, s6 dão resultados momentâneos e acabam por se voltarem contra seus idealizadores. Há um palpável desgaste das insti tuições militares durante o processo, atempadamente detectado e habilmente con trolado e contra-restado por uma cuidadosa estratégia de recuo e de low profile, sem perder-se, entretanto, a devida atenção ao revanchismo radicalizante. O pro cesso tem seu desfecho com a reviravolta do Colégio Eleitoral e a eleição do ICder da oposição. 90 R.C.P.4/89 2.2.5.4 Constituição de 1967 e 1969 - Estas Cartas, que são, a rigor, uma SÓ, com uma Emenda que a reviu totalmente, são marcadamente analíticas e detalhistas; antecessoras, por isso, da de 1988. Estes defeitos, mais que os dispositivos de procedência autoritmia, prejudicaram-nas durante todo o tempo em que estiveram vigentes. Estão expressos em dezenas de Emendas, mais de uma, em média, por ano, denotando a preocupação com o casuísmo e com a resposta conjuntural. A forte concentração de poderes no Executivo e o baixo grau de participação políti ca que estas Cartas ensejavam, tomaram-nas isntrumentos inadequados para las trear uma democracia moderna, em que a legitimidade fosse, ao lado da legalida de, o fundamental valor do Estado. Nessa falha, a nosso ver, a semente das res postas que, comedida ou desmedidamente, surgiram na Carta que as sucedeu, ora em vigor, como adiante exporemos mais detalhadamente. 2.2.6 Sexto momento - quadro atual Qualquer r6tulo seria agora prematuro. Algumas características, todavia, exsurgem com nitidez: o desgaste do poder militar, a deterioração do suporte econômico do regime, o nascimento do revanchismo, a exigência de aberturas política e social, um surto tardio de nacionalismo xen6fobo e a ressurgência de várias modalidades de populismo. 2.2.6.1 Valor - Os anos de contenção política e social dão lugar à prevalência da participação e da igualdade, a todo transe. No político, recuperar o atraso da legi timidade; no social, recuperar o atraso criado pelas muitas desigualdades e injusti ças. A preocupação com estes dois valores exacerba o emocionalismo dos discur sos e as soluções chegam às raias da utopia. Perde-se o pragmatismo econômico em meio à disputa eleitoral e à ret6rica demag6gica, retomada com atraso de 20 anos. O ILodelo estatizante mantém, entretanto, surpreendentemente, com o apoio do populismo, sua hegemonia paternalista e clientelista. Dá-se uma estranha alian ça entre o chamado "progressismo" social e o "conservadorismo" econômico: en tre os que reivindicam melhores condições de emprego e os que lutam por manter seus privilégios cartoriais. Neste embate, o pragmatismo econômico perde terreno, como, conseqüentemente, também o perdem as massasmarginalirndas de qualquer processo econômico: os 66 milhões de brasileiros sem emprego que dependem, tão-só, de que o desenvolvimento econômico venha resgatá-los da miséria. 2.2.6.2 Estrutura - Há um nítido reforço do poder da sociedade, iniciando-se um processo de estruturação de seus canais. A concorrência das várias formas asso ciativas intituladas à participação poderá ser benéfica aos partidos políticos, não só levando-os a ganhar legitimidade como sustentando-os com reivindicações e idéias. Pode-se estar con:eçando uma fase bem rr ais pluralista e democrática, gra ças a essa abertura participativa. Enquanto essa canalização não ganha regularida de, a impressão é de fragilidade nas estruturas partidárias e de desgaste nas estru turas governamentais. O fracasso do Estado-empresário tambl':re põe em tela de juízo a grande estrutura de poder das empresas estatais, levando a sociedade a re pensar o modelo estatizante herdado do período autoritário. 2.2.6.3 Processo - O processo de participação política ficou mais aberto, mas a resposta da sociedade está ainda prejudicada com o desânimo e cansaço provoca dos pelo mau desempenho econômico. Paradoxalmente, enquanto o Governo pro- Constituição de 1988 91 cura modernizar o processo econômico, segundo os modelos internacionalmente exitosos, o texto Constitucional se afera aos modelos nacionalistas, protecionistas, paternalistas, clientelistas e xen6fobos do passado. Esse confronto, por certo, su perará o próprio texto e dele surgirá a resposta dialética que detenninará os rumos do País nesse campo; o embate, entretanto, longe de ser ideol6gico, será cronol6- gico: entre o passadismo e a modernização, entre o preconceito e o pragmatismo. 2.2.6.4 A Carta de 1988 - Adiante, nos estenderemos sobre algumas característi cas juspolíticas da nova Constituição. Por ora, para encerrar esse alígero exame dos seis momentos da evolução política brasileira cumpre consignar algumas ob servações quanto à sua legitimidade. Ponderável parcela da opinião pública prefe ria um processo de emenda ao de reconstitucionalização. Também ponderável se tor da cidadania preferia uma Constituinte exclusiva ao modelo de Constituinte congressual. Outros segmentos, não menos importantes, inconfirmaram-se com a deformação representativa provocada pelo peso desigual do eleitorado. Outros mais culpam o sistema de eleição proporcional pela deformação da legitimidade originária, e alentada parcela da população, até hoje, entende que as eleições rea lizadas no calor do Plano Cruzado foram a maior causa da deformação da legiti midade da Assembléia Nacional Constituinte , pois outros seriam os resultados, se os partidos no poder não se houvessem beneficiado pela euforia causada pelo gi gantesco engodo. Seja como for, a questão da legitimidade terá seu foro próprio nas pr6ximas manifestações eleitorais, principalmente naquela que eleger o Congresso Nacional que, como poder constituinte, deverá fazer a revisão da Constituição de 1988, em 1993. 3. Aru:1lise do quadro cosntitucional de 1988 3.10 enfoque A diversidade de opiniões sobre a mesma realidade política não só decorre da dis tinta escala de valores de cada analista, mas dos distintos enfoques científicos que podem ser dados a um mesmo fenômeno. O político, o cientista político e o jurista, ainda que compartilhando, em tese, idênticos valores, atribuindo-lhes idênticas prioridades, têm, sobre os fenômenos do poder, matéria-prima de suas atenções, diferentes apreciações. Um trabalho de avaliação política multidisciplinar é, não obstante, possível e desejável, se todos os que nele participem se ativeram a uma metodologia comum. Tal não é o caso dos painéis, geralmente improvisando debates sem prévios refe renciais. Daí a opção que fizemos por um erifoque juspolltico da Constituição de 1988. As características multidisciplinares, nexuais e de síntese desse enfoque permi tirão, senão alguma originalidade no que temos a expor, pelo menos, um esforço prospectivo de maior abrangência. 3.2 Excessos e radicalismos A n6s, nos parece inegável que se deu ao processo de elaboração constitucional um tratamento de comunicação de massa muito intenso; inédito mesmo. Se, por 92 R.C.P.4/89 um lado, essa grande abertura favoreceu a legitimação das opções, por outro, al gumas deformações emocionais sobrevalorizaram o papel de uma Carta constitu cional, deixando a frustrante impressão de que uma Constituição pode ser, por si, a salvação de um País. Por mais formalistas que possamos ser, parece-nos rematada tolice atribuir tal peso a um documento legal, levando o povo a crer na mágica mudancista de um papel, tanto quanto o seria o radicalismo oposto, de ver, na Carta de 1988, um do cumento inane, fadado ao descumprimento e ao descrédito, em razão das vicissi tudes e dificuldades que deverá enfrentar. Os céticos, possivelmente, estarão lembrando a precária historiografia do cons titucionalismo brasileiro, cheio de interregnos aconstitucionais entre dezenas de constituições, atos e emendas de curta vigência e reduzida eficácia. Aos eufóricos, certamente, basta-lhes a crença nas boas intenções e no papel pedagógico da Car ta. Essas posições radicais existem e, portanto, não nos devemos surpreender com afirmações duras, como a de que a Carta nada mudará, porque a sociedade não mudou, nem nos impacientar com declarações que raiam ao bombástico, como as que afirmam sua função redentora, capaz de verter a comuc6pia e terminar com a pobreza. Ficou conhecido certo prefácio, em que o ilustre presidente da Assem bléia Nacional Constituinte afirmava que "a Constituição luta contra os bolsóes de miséria que envergonham o País". Ainda que os políticos se permitam tais excessos, não por serem políticos, mas por sentirem necessidade de se aproximarem emocionalmente de seu eleitorado, os cientistas alimentam-se das aímnações infirmadas, diríamos popperianamente, pa ra construírem suas precárias, humildes e prudentes certezas provisórias. 3.3 A questão da legitimidade Desvencilhando-nos dos excessos, dos céticos podemos ficar com o realismo e, dos deslumbrados, com o funcionalismo. O realismo nos indica que a influência ordenadora de uma Constituição vai até onde for legitima, isto é, represente os valores, os interesses, os anseios, as aspirações, as estruturas e procesos tidos co mo válidos e bons, pela maioria de uma determinada sociedade. O funcionalismo nos aponta o valor pedagógico da pr6pria prdtica constitucional. capaz de condi cionar o comportamento de certos setores da sociedade diretamente atingidos por normas cogentes e mais proximamente submetidos a qualquer sorte de fiscalização ou de tutela de desempenho. Ora, sob tal enfoque, a Carta de 1988 nem é inl1til nem mágica. É uma resposta de ordem que determinado colegiado nacional, reunido conforme certas regras, achou a mais legítima possível de ser obtida através de negociações entre seus membros. A escolha deste colegiado foi, inquestionadamente, democrdtica, o que em termos de ciência política não significa que tenha sido legítima. O processo de trabalho deste colegiado, embora questionado, parece-nos ter sido também demo crdtico, até mesmo porque a negociação e as transigências recíprocas são instru mentos da democracia; mas, nem por isso está garantida, ipso facto, a sua legiti midade. Como sabemos, a legitimidade, em ciência política, não se esgota no processo de escolha nem no exercício corrente do poder: tem uma dimensão jinalfstica, que Constituição de 1988 93 a integra e a coroa - essa é a legitimidade que é capaz de garantir a efetividade, a estabilidade e a durabilidade das Constituições. Não obstante, se queremos estudar a questão da legitimidade em sua integrida de, encontrá-Ia-emos intimamente vinculada à apreciação política da substância da Constituição. Deixemos de lado, por isso, os aspectos adjetivos ou processualísti cos da legitimidade e concentremo-nosnos substantivos: o contetldo da Consti tuição apresentada à Nação em 5 de outubro de 1988. 3.4 Contraditoriedade e legitimidade Se uma Carta política hipotética afirmasse que determinado País é uma repliblica presidencialista, mas contivesse uma estrutura de monarquia parlamentar e apre sentasse um processo de aristocracia diretorial, estaria claríssimo que bastaria essa estapafUrdia contraditoriedade para comprometer a sua legitimidade. O exemplo caricato serve para enfatizar a premissa central dessa óltima parte de nossa expo sição: não é possfvel conciliar contraditoriedade e legitimidade. Logicamente não, embora a política não seja uma atividade preponderantemente racional, mas emocional: psicol6gica e não-l6gica, como sintetizaria Ney Prado. Ora, o tratamento político, social e econômico da Constituição de 1988, não tanto pelo desejo de seus redatores mas pela inspiração das circunstâncias e dos métodos regimentais adotados, produziu contradições logicamente irredutíveis, com grave comprometimento de sua legitimidade f"malística. O campo político, na Constituição de 1988, se caracteriza pela redução do p0- der do Executivo, pela ampliação dos poderes congressuais, pela diversificação do controle de legalidade exercido pelo Judiciário, pela previsão da democracia parti cipativa e pelo reforço das entidades federativas menores. O campo social se caracteriza pela ampliação significativa dos direitos sociais laborais e pela estruturação de um Estado providencial, em termos de saóde, as sistência e previdência social. O campo econômico se caracteriza por uma afirmação principiol6gica de ec0- nomia de mercado mas comprometida em seu desdobramento institucional por uma c6pia de nada menos que 38 institutos de intervenção estatal no domínio econômi co; três vezes mais, em nómero, que a Carta anterior, para ficarmos s6 no aspecto quantitativo. Abstendo-nos de qualquer juízo de valores político sobre tais normas constitu cionais, relativamente às necessidades brasileiras, vejamos suas intrínsecas con dições de desempenho e de permanência, isto é: se existem contradições compro metedoras de seu êxito, desgastando poder contra poder, levando à perplexidade, criando condições para a desmoralização e abandono do modelo. No político, o Executivo perde poder, mas, paradoxalmente, tem seus encargos muito aumentados. O Legislativo ganha poder, mas tantos são seus novos encar gos que não terá condições de exercê-los todos e bem. Acrescente-se a isso a riva lidade potencial entre o chefe do Executivo e o Legislativo fortalecido, como mo tivo de desgaste de poder. O Judiciário terá novos tribunais mas ficará caro e mais moroso com as quatro instâncias concebidas. As partilhas, de tributos e de produ tos, são ainda mais paradoxais, porque aquinhoam mais os estados e municípios, aos quais não se transferiu encargos proporcionais, enquanto a União, em qual quer dos seus três poderes, viu, aumentados, ponderáveis encargos de custeio. No social, a contradição está, de um lado, na criação de uma imensa carga pa ternalista para o Estado e, de outro, no desconhecimento da capacidade econômica 94 R.C.P.4/89 da sociedade. Como o Estado não produz riquezas, sua solução será, forçosamen te, aumentar a carga tributária, encarecendo os produtos e reduzindo os salários. Além disso, a Carta só aquinhoa o trabalhador, aquele privilegiado que, neste País, conseguiu emprego, enquanto a esmagadora maioria, de 66 milhões de habi tantes, ainda está à margem da economia, esperando, não as migalhas do Estado, mas a expansão das riquezas e a geração de empregos. Finalmente, num País m0- derno, a Constituição não pode substituir-se à negociação, que deve ser livre, en tre as categorias da produção. A constitucionalização das chamadas "conquistas sociais" acaba sendo uma derrota igualmente dos trabalhadores e empresários. E aqui já estamos chegando ao econômico, o calcanhar-de-aquiles da Consti tuição de 1988, onde as ambigüidades são mais sérias porque, num país em desen volvimento, as crises econômicas não têm margem de segurança e tomam-se logo crises sociais e essas, políticas. Qual o sentido das aí1I1IlaçÕes principiológicas de livre iniciativa, livre empresa, livre mercado, se no texto predomina, a nível insti tucional, o estatismo, o xenofobismo, o intervencionismo, o protecionismo e o car torialismo, naqueles 38 instrumentos interventivos? Está claro que a resposta é o desinvestimento, o desestímulo, a recessão, o envelhecimento do parque indus trial, a obsolescência tecnológica, o aumento da carga tributária e outras reper cussões que poderão levar o Brasil à contra-mão da economia mundial, ao isola mento e ao empobrecimento. Por fun, a áltima e mais estranha contradição: toda Constituição deve ser, antes de tudo, um documento político que traga segurança e estabilidade: segurança jurídica e estabilidade política. A Carta de 1988 é incompleta e provis6ria. In completa, pois a ela elevou-se dezenas de assuntos, antes tratados em nível or dinário, mas para nada definir: devolveu-se a deftnição ao legislador ordinário, tornando-a indefmitória, incompleta e, por isso, insegura. Provis6ria, ainda, pois o próprio legislador constitucional, apologeticamente, detenninou sua revisão in tegral em cinco anos, tomando-a, portanto, instdvel. Como o que é inseguro e instável pode gerar segurança e estabilidade? Essas contradições estão no texto. Não necessariamente na vivência constitucional; por isso, poderemos superá-las. Dois critérios polarizados, portanto, podem se abrir: no primeiro, as contra dições passam do texto à realidade da convivência. Não é difícil imaginar-se o re sultado, e a Constituição de 1988 ftcaria na história como a "Carta da hiperin fiação", como já a denominou Ives Oandra Martins,' a ·Carta da recessão", a "Constituição do caos". No segundo, as contradições ftcam no texto, pelo menos até que venha a ser alterado. Tudo depende de sua prudente aplicação. Os três poderes devem contribuir para isso e, mais que todos, o Judiciário, que tem a ál tima palavra em termos de legalidade. O primeiro cenário é por demais triste e sombrio para que, sequer, assumamos o risco de enfrentá-Io. Mas o segundo, só pode ser alcançado com muito esforço. Muito mais trabalho de exegese e de criação do que aquele que foi necessário para elaborar a Carta de 1988, pois mais diffcil é corrigir do que errar. Somos, pes soalmente, otimista e, como cientista, ainda mais. Não vemos por que não possa mos fazer da Constituição formal uma Constituição real, no sentido que lhe deu Lassalle há 100 anos. Mas para que a Constituição seja o que dela esperamos, não podemos partir da ilusão. Daí o tom crítico que devemos assumir, em contraponto com sua eufórica propaganda, que a nada leva, senão a uma anticlimática decepção. • Intervenção do Prof. Ives Gandra Martins, no IX Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, São Paulo, 1988. Constituição de 1988 95 A crítica é necessária ao trabalho construtivo, imprescindível à estabilidade polftica do País. E este trabalho, de tomá-la viva, começou já no dia 5 de outubro, e se faz através de sua interpretação judiciária, de sua integração legislativa e de sua aplicação executiva. Afinal, o que numa Carta polftica importa, mais que seus im1meros e diversos preceitos, é o pr6prio princípio de ordem, de segurança e de estabilidade que dela dimana, de sua propria existência. 4. Conclusões Seremos breve nas conclusões, ainda porque todo este ensaio procurou ser conclu sivo, correndo todos os riscos inerentes a qualquer trabalho de progn6stico. A nível de valor, o problema que fica a ser resolvido ainda é o do justo equili brio entre liberdade e igualdade. O fatídico enfrentamento entre esses valores, tão afirmado na era das ideologias, cede cada vez mais terreno a uma dinâmica de ne gociação. Vários países, até mesmo algumas ditaduras do proletariado, já estão demonstrando a possibilidadee a excelência prática dessa nova colocação do pro blema. O declínio das ideologias e a redução de seu papel radicalizante nas socie dades modernas torna possível o paulatino avanço de polfticas guiadas pelo prag matismo e pela concertação, técnicas da convivência social que exon:izam os fan tasmas dos radicalismos ideol6gicos e das soluções violentas. A respeito do primado da eficiência polftica sobre os postulados ideol6gicos, parecem convergir lfderes contemporâneos dos mais diferentes países e das mais distintas filiações políticas, como Cavaco e Silva, Felipe Gonzales, Margareth Tatcher, Bettino Craxi, François Mitterrand, Mikhail Gorbachev e Deng Xiao Ping, pondo em triste evidência nosso atraso, no apego a f6rmulas e clichês ultra passados, explorados semanticamente sob um pretexto vagamente explicado como "progressismo" • A nível de estrutura, constata-se que nossos regimes continuam sendo copiados de modelos estrangeiros. Nesse sentido, somos até vítimas de estruturas ilegítimas de poder; como disse certa vez Octavio Paz, de seu país, o México: "Faltou o há bito de perguntar pela legitimidade do poder.'" Indubitavelmente, o Congresso recupera, na nova Constituição, competências antes concentradas no Executivo: da mesma maneira, estados e municípios têm ampliadas suas respectivas esferas de competência legislativa e administrativa; e, mais que tudo, há uma preocupação muito séria com a participação política. Essas alterações, todavia, terão que refletir-se na vida da Constituição de 1988 para que produzam câmbios políticos na estrutura de poder no Brasil; para que ela possa refletir maior legitimidade e elimine o pélago entre a sociedade e o Estado. De certa forma, essa distância entre o papel e a realidade é todq o drama do constitucionalismo e pode significar a diferença entre ser ou não ser, pois vivência é distinto de vigência, bem o sabemos desde Ferdinand Lassalle.1 o A nível de processo, a ddvida está na efetiva canalização e no controle jurídico . dos conflitos políticos, econômicos e sociais que abundam na sociedade brasileira de nossos dias. Pouco habituados às soluções regradas, os brasileiros não se acos tumaram com a distinção entre conflitos no regime e conflitos com o regime. Nessas condições, é natural que o processo, sem possibilidade de exprimir valo res, no jogo regrado das idéias, tenha decaído, tantas vezes, para a contestação, • Paz, o. Ellabirinto de kI sokdad. Apud Saldanha, Nelson. O liberalismo radical no lmplrio - compoTll!1Ites ideológicos, de Cipriano Barata. In: As idéias polfticas no Brasil, op. cito p. 179. 10 A refer8ncia é à seguinte passagem: "Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas de poder" (Uberdie Veifassung, 1863, trado LiberJuris, 1985, p. 49). 96 R.C.P.4/89 radicalizada e deletéria, em vez de manter-se como oposição, racional e construti va. Como resultado desse processo, a política brasileira tem vivido sob o signo da radicalização pendular entre o populismo e o autoritarismo, polarizando posições em vez de pluralizando-as. Nenhuma dessas aberrações radicalizantes, com que nos acostumamos a viver em nossa história republicana, tem condições de conter e de realizar o ónico valor politicamente aceitável: a legitimidade. A pr6pria Carta contém as soluções para realizá-la e devemos dar-lhe uma oportunidade, aperfeiçoando-a pelo uso de seus proprios instrumentos e esconju rando o risco de novos retrocessos juspolíticos. A sociedade, afinal, não necessita de que se diga o que é bom para ela. Pode mos prescindir de tutelas e dirigismo estatais. O rompimento do processo pendular não depende, é claro, da Constituição, mas a partir dela há possibilidade de de senvolver, pela prática da participação polftica, "o hábito de perguntar pela legi timidade do poder". Constituição de 1988 97
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