Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
TEORIA E PRÁTICA EM ANTROPOLOGIA AULA 6 Prof. Everson Araujo Nauroski 2 CONVERSA INICIAL Ao longo desta aula refletiremos sobre a globalização e alguns de seus efeitos, como a padronização cultural e o risco da homogeneização das culturas. Além desse assunto, trataremos do problema da desigualdade social como uma consequência sistêmica do capitalismo. Ainda outros temas de relevância serão abordados, como a relação entre tecnologia e cultura dos povos tradicionais, diversidade cultural e reconhecimento como pauta global na luta pelos direitos humanos. Bons estudos! TEMA 1 – CULTURA E GLOBALIZAÇÃO O processo de globalização é antigo e remonta à formação dos grandes impérios da Antiguidade. As antigas potências mantinham sob seus domínios um vasto território, como ocorreu com os impérios pérsio, macedônico, romano e tantos outros. No final da Idade Média, a globalização passou por uma nova fase com as grandes navegações e a colonização da África, Ásia e Américas pela Europa. Na modernidade, ela tem avançado principalmente pelo desenvolvimento tecnológico, ampliação dos mercados e trocas culturais. Sob influxo do capitalismo, a indústria cultural, principalmente norte-americana, tem sido propalada por todo o planeta. Alguns autores como Warnier (2003) falam em um processo de americanização no mundo. O sucesso ou não da estratégia de universalização dos valores capitalistas e dos produtos culturais norte- americanos tem dependido, em maior ou menor grau, da capacidade de outros povos e nações na assimilação ou resistência a esse processo de imposição cultural. Seria possível identificar diferenças no modo como isso se dá em diferentes regiões do mundo. Em países europeus, com uma tradição cultural já consolidada − poderíamos pensar na França, Alemanha e Inglaterra −, é pouca a penetração da indústria cultural americana, diferentemente do que ocorre em países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, em que a assimilação é muito maior. São marcas de empresas, franquias, músicas, cinema e literatura amplamente aceitos e consumidos pela população brasileira. 3 Figura 1 – Globo terrestre Crédito: Thorsten Schmitt/Shutterstock. É notório que a globalização ampliou as facilidades de comunicação e interação entre pessoas, grupos e instituições. No entanto, as assimetrias existentes no plano do domínio dos conhecimentos tecnológicos fazem com que esse processo de transmissão e disseminação cultural também seja assimétrico. A influência da cultura brasileira nos Estados Unidos, se é que existe, deve ser infinitamente menor do que a exercida por eles em nosso país. Claro que, além das questões tecnológicas e culturais, existe o poder político e econômico como um fator determinante desse processo (Nauroski, 2017). É inegável que a indústria cultural opera com grande influência ao disseminar ideias, valores, crenças e comportamentos, via de regra alinhados à ideologia capitalista. Contudo, não se pode inferir que se trata de algo monolítico, já que as pessoas não são passivas e inertes à tentativa de homogeneização cultural. Estudos contemporâneos da antropologia (Hall, 2005; Castells, 2002) indicam que os indivíduos têm a capacidade de interpretar as informações e os conteúdos que recebem. Obviamente, essa demanda cognitiva possui maior ou menor eficácia conforme o nível cultural e intelectual das pessoas; entretanto, mesmo com limitações, elas tendem a interpretar os diversos conteúdos que 4 recebem com base nas próprias experiências e saberes, mantendo, em maior ou menor grau, seu sistema de valores e tradições. As assimetrias globais existentes entre os povos, com suas sociedades e economias ricas, pobres ou em desenvolvimento, refletem uma profunda desigualdade na capacidade de reação ante a homogeneização cultural. Trata- se de uma conjuntura decorrente do fato de que na atualidade a globalização segue um ritmo acelerado e com viés fortemente competitivo. Um aspecto ambivalente da globalização salta aos olhos. Mesmo que em condições diferenciadas, cada vez mais o próprio sistema capitalista depende de que as pessoas ao redor do mundo tenham maior acesso às tecnologias de comunicação e informação, sobretudo às redes sociais e aos processos de monetização que potencializam. A ambivalência dessa situação se encontra na via de mão dupla do acesso às tecnologias de comunicação usadas também por comunidades, grupos e indivíduos para divulgar e defender suas pautas, suas culturas e identidades (Nauroski, 2017). Mesmo numa condição desigual em relação aos conteúdos dominantes veiculados nas redes sociais e nos meios de comunicação de massa como rádio e TVs, existe espaço para que a sociedade civil organizada (ONGs, sindicatos, associações e coletivos diversos), além de pessoas, grupos e instituições, se contraponham. TEMA 2 – O CAPITALISMO NO SÉCULO XXI Embora o capitalismo tenha se tornado um sistema hegemônico, as condições nacionais de inserção de cada país na divisão internacional do trabalho e na balança comercial são bastante assimétricas. Estudos mais recentes da economia mundial têm recebido importantes contribuições de pesquisadores de mais de 153 países, conforme relatório publicado no Observatório Mundial das Desigualdades em 2020. Um mapeamento mundial do fluxo de capitais e da conjuntura econômica de mais de 173 países envolvendo os cinco continentes apontou dados alarmantes sobre a desigualdade social e a distribuição de renda entre ricos e pobres. Nas últimas décadas, o processo de concentração de riqueza tem crescido inversamente proporcional ao aumento da desigualdade e da pobreza. Os estudos indicam que 1% da população mundial detém e controla quase 50% de toda a riqueza mundial. 5 Para compreender as reais condições da desigualdade econômica e social de um país, é preciso ir além da avaliação contábil do Produto Interno Bruto (PIB), que representa a soma de toda a movimentação econômica medida ao longo de um ano. Se considerarmos os 50% mais pobres de um país, a participação via rendimentos (salário/trabalho) pode variar entre 5% e 25% da renda total. Isso quer dizer que a condição de metade da população estará na proporção de 1 a 5. Trata-se de um dado de enorme gravidade, indicando que os números da macroeconomia em relação ao aumento e à diminuição do PIB não alcançam os efeitos mais perversos da desigualdade na vida concreta da população. Quanto mais o olhar se aproxima da segmentação social e econômica que vai desde aqueles que estão numa condição de miserabilidade, sobrevivendo com menos de R$ 5 por dia, até o segmento C, B e A dos grupos de baixa renda, que varia entre 1/5 salário até dois salários por mês. Figura 2 – Desigualdade social Crédito: Cryptographer/Shutterstock. A situação de desigualdade socioeconômica está presente entre todos os países capitalistas. Os 10% mais ricos correspondem na média a 70% da renda total. Mesmo em nações tidas como desenvolvidas e menos desiguais, se verifica um aumento da distância entre ricos e pobres. Na América Latina, um continente com um longo histórico de colonização violenta, a desigualdade tende a ser agravada, verificando-se a existência de fortes variações conforme o país. 6 Se comparados Brasil, México e Peru, verifica-se maior desigualdade em relação à situação da Argentina e do Uruguai, visto que nesses países existiu a presença duradoura de políticas de distribuição de renda e maior equidade fiscal. Em relação a países da África, as desigualdades são ainda mais extremas, devido a inúmeros fatores, como disputas étnicas e uma herança colonial violenta e extrativista. Segundo Thomas Piketty (2020), De modo geral, o mapa das desigualdades mundiais reflete ao mesmo tempo os efeitos da antiga discriminação raciale colonial e o impacto do hipercapitalismo contemporâneo e de processos sociopolíticos mais recentes. Em vários dos países mais desiguais do planeta, como Chile e Líbano, os movimentos sociais dos últimos anos têm alimentado a esperança de profundas transformações. O Oriente Médio aparece como a região mais desigual do planeta, tanto por um sistema de fronteiras que concentra recursos em territórios petromonárquicos, como por um sistema bancário internacional que permite transformar a renda do petróleo em renda financeira eterna. Na ausência de um novo modelo de desenvolvimento regional mais equilibrado, social- federativo e democrático, o temor é que as ideologias totalitárias e reacionárias em ação continuem a ocupar o terreno, como na Europa há um século. A desigualdade se tornou um fenômeno geral e sistêmico, uma consequência inelutável da própria economia de mercado. Associado a esse problema surgem diversos outros, com alto potencial danoso à sobrevivência dos marginalizados e da própria sociedade, na medida em que o tecido social sofre um esgarçamento. Quanto maiores a desigualdade e a exclusão, tanto maiores são os índices de criminalidade, delinquência, fome e desnutrição, desemprego e violência. A situação tende a ser agravada no contexto da revolução tecnológica, de uma indústria que emprega cada vez menos, e ainda da impossibilidade de que o setor de serviços possa absorver a massa de desempregados. Na última década têm se aventado algumas alternativas a esses problemas. Cresce a consciência entre membros mais esclarecidos da elite, líderes políticos e da sociedade civil sobre a urgência de soluções. Uma ideia que vem ganhando força e adesão, mesmo entre os ricos, é a criação de uma renda básica universal (RBU), um valor que todos os cidadãos em condição de vulnerabilidade deveriam receber do governo com o qual pudessem sobreviver com alguma dignidade. Seria uma solução por dentro do sistema, uma medida paliativa, sem que fossem necessárias mudanças estruturais na sociedade. Esse tema tem provocado enorme polêmica entre defensores e opositores. Questões sobre fontes de financiamento da RBU, critérios para ter 7 direito, valores, implementação e fiscalização têm levantado diversos obstáculos até para operacionalizar projetos-piloto de RBU que poderiam servir de laboratório visando analisar sua viabilidade. TEMA 3 – CULTURA DOS POVOS TRADICIONAIS E TECNOLOGIA Atualmente o conjunto das tecnologias de comunicação e conhecimento representa o progresso da sociedade e da cultura. Como um legado humano, os avanços tecnológicos deveriam estar disponíveis a todas as pessoas, não sendo aceitável a continuidade da marginalização social. A inclusão digital é um atributo constitutivo da cidadania plena, cabendo aos governos estabelecer políticas públicas que garantam o acesso de todos ao mundo digital, inclusive das comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhos e povos da floresta. Considerando as devidas mediações e aproximações, o mundo digital pode vir a ser uma ferramenta eficiente na luta pela preservação das culturas originárias, de seus direitos, seus valores, sua visão de mundo. Para Derani (2002, p. 150), o processo de inclusão digital deve possibilitar a participação das comunidades tradicionais e a preservação de sua cultura. Esse autor propõe cinco características para identificar uma comunidade tradicional: 1. propriedade comunal (ausência da ideia de propriedade privada); 2. produção voltada para dentro (valor de uso); 3. distribuição comunitária do trabalho não assalariado; 4. tecnologia desenvolvida e transmitida por processo comunitário, a partir da disposição de adaptação ao meio em que se estabelece; 5. transmissão da propriedade, conhecimento, pela tradição comunitária, intergeracional. 8 Figura 3 − Crianças indígenas Crédito: ESB Professional/Shutterstock. O modo de relação que essas comunidades desenvolvem com a natureza é de equilíbrio e preservação, de tal forma que a preservação da identidade e da cultura delas contribui diretamente para fortalecer os saberes e práticas indispensáveis ao desenvolvimento sustentável. Além desse aspecto, é preciso assegurar na forma de lei a proteção dos seus territórios e de suas reservas, bem como implementar políticas permanentes que garantam novas demarcações de terra. A isso se soma a efetiva fiscalização e controle contra invasores e a depredação de seu mundo, tanto por empresas quanto por grupos ou indivíduos. A inclusão digital a ser oferecida às comunidades tradicionais não pode ser impositiva, mas apresentada como um convite, uma iniciativa de adesão livre, de construção de um diálogo aberto, até com a possibilidade de não acontecer, como um ato de escolha a ser respeitado. No Brasil, as comunidades tradicionais podem fazer uso comercial da internet, empregando-a para a divulgação (devidamente respeitados os direitos de propriedade intelectual) de alguns produtos naturais ou manufaturados, tais como: ervas medicinais, artesanato, alimentos (guaraná, cupuaçu, urucum) etc. Diante dos demais meios de comunicação, a internet possibilita maior liberdade de expressão, os sujeitos são os protagonistas do seu próprio discurso e de suas reivindicações, apresentando um novo paradigma: o da “representação participativa”. O acesso à internet pelas comunidades tradicionais faz com que sejam eliminadas as distâncias, propiciando um novo tipo de organização, a chamada “cidade florestal”. Do interior da mata se mantém contato com o mundo. Ações de planejamento, monitoramento e vigilância dos crimes ambientais e invasões de terras 9 são favorecidas. A questão da segurança é muito importante, pois estas comunidades isoladas podem entrar em contato com as autoridades e pedir socorro em caso de necessidade. Ademais, nos casos de epidemias nas comunidades é possível a solicitação às autoridades competentes de atendimento médico especializado e medicamentos. (Colaço; Sparemberger, 2010, p. 221) O contato com a tecnologia e com o universo digital pode ser compreendido pelas comunidades tradicionais como aliado à sua causa. O fato de um indígena fazer uso de um telefone celular, ter uma conta de e-mail ou canal no YouTube não o destitui de sua identidade, de sua herança cultural; ao contrário, pode significar a oportunidade de mostrar ao mundo a beleza de sua cultura e de seu modo de vida. Uma sociedade em crise como a nossa talvez possa reaprender ensinamentos ancestrais como o amor e o cuidado com a família, com a comunidade e sobretudo com a “mãe terra” que prove e sustenta a vida. TEMA 4 – DIVERSIDADE CULTURAL E RECONHECIMENTO Falar em cultura é assumir que não existe uma cultura universal, mas culturas no plural, uma constelação múltipla e diversa da manifestação de indivíduos, grupos e povos, com suas línguas, costumes, tradições, práticas e saberes. A categoria de diversidade cultural assumiu contornos de uma narrativa de luta pelo reconhecimento, pelo direito de existir em sua singularidade. A luta pelos direitos humanos elevou a categoria da alteridade como atributo universal de reconhecimento da dignidade humana, independentemente de cor, gênero, etnia, credo, nível social e local geográfico. Ela é cosmopolita, mas ainda enfrenta obstáculos locais em diferentes regiões do planeta. Na esfera cultural, os direitos humanos assumem a forma de uma luta pelos direitos culturais de proteção às múltiplas identidades a compor um coletivo. Pelo reconhecimento das diversidades, se consagram o direito à igualdade, a compreensão de que somos igualmente diferentes e diferentemente iguais. Segundo Pedro (2011, p. 44), essa compreensão não é somente abstrata e conceitual, mas envolve a “totalidade dos direitos que têm a ver com os processos culturais: as liberdades de criação artística, científica e de comunicaçãocultural, os direitos autorais, o direito de acesso à cultura, o direito à identidade e à diferença cultural, o direito à conservação do patrimônio cultural”. 10 Em sentido histórico, as diferenças culturais vão ganhando espaço e reconhecimento, indicando identidades para além dos padrões eurocêntricos tidos como referência desde o século XVI em meio à expansão colonial. Será a partir da metade do século XX que irão eclodir inúmeras lutas políticas de afirmação e defesa da diversidade por diferentes grupos que compunham as sociedades multifacetadas dos países do norte, passaram a ocorrer reações culturais, comportamentais, políticas e filosóficas voltadas a propor noções mais inclusivas e, simultaneamente, respeitadoras da diversidade de concepções alternativas da dignidade humana que não mais se sustentavam sobre a ideia de igualdade, mas a criticavam a partir de novas visões de mundo, nas quais a diferença passou a ocupar um lugar destacado. (Lucas, 2015, p. 47) O que está em jogo nesse processo é a necessidade de reconhecimento da positividade das diferenças culturais, de romper com classificações binárias, inferior/superior, avançado/primitivo, civilizado/não civilizado. As pautas das lutas dos direitos humanos passam incorporar a ideia de que dignidade, identidade e multiculturalidade estão intimamente interligadas, compondo uma concepção ampliada e dignidade humana. Figura 4 – Direitos humanos Crédito: John Gomez/Shutterstock. De certa forma, a globalização contribuiu com esse processo. Para Santos (2009, p. 14), o rol dos temas dos direitos humanos pode ser concebido e praticado 11 quer como forma de localismo globalizado, quer como forma de cosmopolitismo ou, por outras palavras, quer como globalização hegemônica, quer como globalização contra-hegemônica. O meu objetivo é especificar as condições culturais para que os Direitos Humanos constituam forma de globalização contra-hegemônica. A minha tese é que, enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os Direitos Humanos tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como forma de globalização hegemônica. Para poder operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemônica, os Direitos Humanos têm de ser reconceitualizados como multiculturais. As lutas por reconhecimento envolvendo o tema da diversidade cultural buscam romper tentativas de classificação e hierarquização cultural que ainda persistem. Nem o conceito nem as práticas etnocêntricas estão superadas. A bandeira da alteridade precisa ser cotidianamente levantada e defendida em diferentes espaços e por diferentes atores sociais, ou, como bem assinala Santos (2009, p. 16), a luta pelos direitos humanos, o que inclui a luta pelo reconhecimento das diversidades humanas, tende a ser mais efetiva ao transitar de “um localismo globalizado para um projeto cosmopolita”. TEMA 5 – POVOS ORIGINÁRIOS, DIREITOS E TERRITÓRIOS Quando falamos em povos originários, estamos nos referindo às pessoas que viviam no território brasileiro antes da invasão, conquista e colonização pelos portugueses. Já vimos anteriormente que o contato entre esses povos e o colonizador resultou em devastação e morte. Foi somente a partir da Constituição de 1988 que houve maior proteção legal aos indígenas e seus territórios. No entanto, desde o período colonial, a cobiça sobre esses territórios não diminuiu. É vasto o número de inimigos dos indígenas brasileiros que veem suas terras unicamente sob a ótica da exploração e do lucro. São diversos os conflitos envolvendo fazendeiros, grileiros, madeireiros, garimpeiros e empresas multinacionais da área de medicamentos interessadas não somente em seus recursos, mas em explorar saberes acumulados em milênios sobre a mãe natureza e seus remédios. Todos seguem sedentos de ganhar cada vez mais, mesmo que isso provoque a morte e a destruição. Na atualidade, a conjuntura política tem favorecido interesses antagônicos ao bem-estar dos povos originários. Em junho de 2021, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei n. 490 que altera a legislação da demarcação de terras indígenas. Essa mudança poderá extinguir comunidades originárias em diversas regiões do país. 12 A principal modificação no PL n. 490 é a criação do marco temporal para novas demarcações, colocando como limite a ser considerado o fato de as terras em questão estarem ocupadas por alguma comunidade ou tribo a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. O ano da promulgação da Carta Magna passa ser o período-limite a ser levado em conta como critério para definir se o território pleiteado é ou não de posse dos indígenas (Brasil, 2007). O mapeamento histórico feito pelo IBGE regista que desde a década de 1990 ocorreram diversas disputas e ações judicias que afetaram a presença de indígenas na região oeste do país, fazendo com que várias comunidades fossem forçadas a migrar, ocupar e desocupar diversas regiões diferentes. Todo esse processo seria desconsiderado e fatalmente prejudicaria o direito constitucional e ancestral dos indígenas brasileiros. É preciso lembrar que o PL n. 490 já passou pelo Senado, faltando ser aprovado em votação pela Câmara dos Deputados. Se isso ocorrer, a alteração fragilizará ainda mais as comunidades, visto que a região oeste tem sido palco de violentos conflitos, resultando em inúmeras mortes por parte dos indígenas e suas lideranças, que oferecem pouca resistência ante o poder de fogo de matadores e jagunços contratados pelos poderosos dali. Figura 5 – Lideranças indígenas protocolam carta aberta no STF Crédito: Erick Terena/Mídia Índia. Mesmo com medo e sob ameaças, os indígenas têm recebido apoio de diversos setores da sociedade brasileira que vêm se manifestando nas ruas e nas redes sociais. O impasse entre os direitos dos indígenas brasileiros e os interesses dos que querem lucrar com a ocupação de seus territórios acabou 13 indo parar no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do Recurso Extraordinário n. 1.107.365 impetrado pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), contra a Fundação Nacional do Índio (Funai), e por indígenas do povo Xokleng, quase dizimado no estado catarinense. O mérito da questão envolvendo o recurso atinge a tese central do PL n. 490 e a questão do marco temporal. A “Carta aberta aos ministros do Supremo Tribunal Federal” aponta que: O tratamento que a Justiça Brasileira tem dispensado às comunidades indígenas, aplicando a chamada “tese do marco temporal” para anular demarcações de terras, é sem dúvida um dos exemplos mais cristalinos de injustiça que se pode oferecer a alunos de um curso de teoria da justiça. Não há ângulo sob o qual se olhe e se encontre alguma sombra de justiça e legalidade. Este Supremo Tribunal tem em suas mãos a oportunidade de corrigir esse erro histórico e, finalmente, garantir a justiça que a Constituição determinou que se fizesse aos povos originários. (Cimi, 2021) O documento tem como objetivo contribuir com o convencimento dos ministros da Suprema Corte. Mais de 300 pessoas, entre personalidades, celebridades, artistas, líderes e cientistas, assinaram a carta tendo como assunto o referido recurso que poderá pacificar a discussão e estabelecer uma jurisprudência segura que resguarde os direitos sob ataque. NA PRÁTICA Considerando os estudos realizados, leia com atenção a reportagem a seguir. Xokleng: o povo indígena quase dizimado em Santa Catarina que protagoniza caso histórico no STF – link de acesso: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/06/29/xokleng-o-povo-indigena- quase-dizimado-em-santa-catarina-que-protagoniza-caso-historico-no- stf.ghtml>. Após a leitura, realize outras pesquisas sobre o assunto e em seguida elabore um paper (uma lauda) se posicionandosobre o PL n. 490. Compartilhe sua reflexão com os colegas participando do fórum de debates. FINALIZANDO Ao final desta aula, é importante retomarmos alguns tópicos: 14 • O processo de globalização com seu viés predominantemente competitivo afetou diferentes povos e culturas, impôs modelos culturais, mas também possibilitou movimentos de resistência. • O sistema capitalista tem provocado dois problemas sistêmicos de difícil resolução: a concentração de renda, por um lado, e a exclusão e a desigualdade, por outro. • Em face do avanço tecnológico e da luta pelos direitos humanos, muitos autores têm defendido a inclusão digital dos povos tradicionais e o uso de suas ferramentas na luta por suas causas. • Por fim, a diversidade cultural vem se tornando uma pauta global a integrar a luta por direitos humanos como um projeto cosmopolita. 15 REFERÊNCIAS BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 490, de 20 março de 2007. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao= 345311>. Acesso em: 15 jun. 2021. CASTELLS, M. O poder da identidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. COLAÇO, L. T.; SPAREMBERGER, R. F. L. Sociedade da informação: comunidades tradicionais, identidade cultural e inclusão tecnológica. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 207-230, jan./jun. 2010. Disponível em: <https://periodicos.pucpr.br/index.php/direitoeconomico/article/view/6323>. Acesso em: 15 jun. 2021. EM CARTA ao STF, artistas, jurídicos e acadêmicos manifestam-se contra marco temporal e pedem proteção a direitos indígenas. CIMI, 24 jun. 2021. Disponível em: <https://cimi.org.br/2021/06/carta-stf-artistas-juristas- manifestam-contra-marco-temporal-pedem-protecao-direitos-indigenas/>. Acesso em: 6 set. 2021. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. NAUROSKI, E. A. Teorias sociológicas e problemas sociais contemporâneos. Curitiba: InterSaberes, 2017. PIKETTY, T. Piketty expõe o escândalo das desigualdades globais. Outras Palavras, 23 nov. 2020. Disponível em: <https://outraspalavras.net/outrasmidias/piketty-expoe-o-escandalo-das- desigualdades-globais/>. Acesso em: 15 jun. 2021. SANTOS, A. L. C.; LUCAS, D. C. A (in)diferença no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. SANTOS, B. S. A globalização e as ciências sociais. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2009. XOKLENG: o povo indígena quase dizimado protagoniza caso histórico no STF. G1, 29 jun. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/06/29/xokleng-o-povo-indigena- 16 quase-dizimado-em-santa-catarina-que-protagoniza-caso-historico-no- stf.ghtml>. Acesso em: 6 set. 2021. WARNIER, J-P. A mundialização da cultura. Bauru: Edusc, 2003.
Compartilhar