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[excerto] Natureza e modo de existência dos universais - Tomás de Aquino (1993)

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AQUINO, Tomás de. Natureza e modo de existência dos universais. In: DA COSTA, José Silveira. 
Tomás de Aquino: a razão a serviço da fé. São Paulo: Moderna, 1993. p.101-103. 
 
[Comentário ao De anima, L. II, i. XII] 
É necessário considerar porque o sentido tem por objeto o singular, enquanto a ciência só se ocupa 
dos universais e o modo como estes existem na alma. Quanto ao primeiro ponto é necessário saber 
que o sentido é uma faculdade que está em um órgão corporal, ao passo que o entendimento é uma 
faculdade imaterial cujo ato não pertence a nenhum órgão corpóreo. Ora, cada coisa que é recebida 
por outro o é de acordo com o modo de ser desse outro, e todo conhecimento se processa através de 
um certo modo de presença do objeto conhecido no sujeito cognoscente, a saber pela semelhança do 
objeto conhecido no cognoscente. Com efeito, o cognoscente em ato é o mesmo objeto conhecido em 
ato. É necessário, portanto, que o sentido receba corporal e materialmente a semelhança da coisa 
percebida. Porém, o entendimento recebe a semelhança do objeto compreendido de maneira 
incorpórea e imaterial. Acontece que a individuação da essência ou natureza comum nas coisas 
corpóreas e materiais se concretiza através da matéria corporal dotada de determinada dimensão, 
enquanto o universal abstrai dessa matéria e das condições materiais individualizantes. É, pois, 
evidente que a semelhança recebida pelo sentido representa a coisa singular, mas quando é recebida 
pelo entendimento representa a coisa sob o seu aspecto de natureza ou essência universal. É por isso 
que o sentido conhece os singulares e o entendimento os universais, sendo que só há ciência dos 
universais. 
É necessário, contudo, considerar que o universal pode ser entendido de duas maneiras. Primeiro, 
denomina-se universal a mesma essência ou natureza comum enquanto afetada pela intenção de 
universalidade. Segundo, em si mesmo. Assim, “branco” pode ser tomado sob um duplo aspecto: ou 
por aquilo que é branco, ou em si mesmo, enquanto afetado pela brancura. Porém essa essência ou 
natureza que recebe a intenção de universalidade, como, por exemplo, a natureza humana, possui um 
duplo modo de ser: um material, segundo o qual existe na realidade concreta, e outro imaterial, 
segundo o qual existe no entendimento. Segundo, pois, o modo como existe na realidade concreta, 
não pode receber a intenção de universalidade porque está individualizado pela matéria, uma vez que 
só é possível atribuir-lhe a intenção de universalidade na medida em que se abstrai da matéria 
individual. Com efeito, como afirmam os platônicos, não é possível que se abstraia realmente da 
matéria individual, pois não existe o homem natural, isto é, concreto, senão com determinada carne 
e determinados ossos, como ficou demonstrado por Aristóteles no livro VII da Metafísica. Deve-se, 
pois, concluir que a natureza humana não existe separada dos princípios individualizantes a não ser 
no entendimento. 
Nem se pode dizer que o entendimento seja falso por apresentar a natureza comum separada dos 
princípios individualizantes sem os quais não pode existir na realidade concreta. Com efeito, o 
entendimento não apreende a natureza comum como existente sem os princípios individualizantes, 
mas apreende a natureza comum sem apreender os princípios individualizantes, o que não é falso. O 
primeiro seria falso se eu separasse a brancura do homem branco, entendendo com isso que ele não é 
branco: seria uma apreensão falsa. Se eu, porém, separo a brancura do homem de maneira a apreendê-
lo sem apreender nada de sua brancura, nesse caso não ocorreria uma apreensão falsa. De fato, para 
que a apreensão seja verdadeira não se exige que, ao se apreender uma coisa, se apreenda tudo o que 
ela contém. Dessa forma o entendimento, sem ser falso, abstrai o gênero das espécies na medida em 
que entende a natureza do gênero não entendendo as diferenças específicas. E do mesmo modo abstrai 
a espécie dos indivíduos na medida em que entende a natureza da espécie não entendendo os 
princípios individuais. 
Dessa forma torna-se evidente que não se pode atribuir à natureza comum a intenção de 
universalidade, a não ser segundo o seu modo de existência no entendimento, pois somente pode ser 
considerada como “um que convém a muitos” enquanto entendida separada dos princípios pelos quais 
o um se divide em muitos. De onde se conclui que os universais enquanto universais só existem na 
alma, porém as naturezas ou essências afetadas pela intenção de universalidade existem 
concretamente1. É por isso que os nomes comuns, que exprimem essas mesmas naturezas, predicam 
dos indivíduos, não, porém, os nomes que significam as intenções, pois Sócrates é homem, mas não 
é a espécie humana, ainda que o homem seja uma espécie. 
 
 
1 Essa solução, dada por Tomás de Aquino ao problema dos universais, corresponde ao chamado “realismo moderado” e está em perfeita consonância 
com os princípios do aristotelismo e em clara oposição ao “idealismo platônico”.

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