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BRUNA CAROLINA MARINO RODRIGUES NAVEGANDO PELO PASSADO: AS REDES SOCIAIS E OS PROBLEMAS DA HISTORIOGRAFIA NA ERA DIGITAL Londrina 2019 BRUNA CAROLINA MARINO RODRIGUES NAVEGANDO PELO PASSADO: AS REDES SOCIAIS E OS PROBLEMAS DA HISTORIOGRAFIA NA ERA DIGITAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História Social do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina, como requisito à obtenção do título de mestre em História Social. Orientadora: Maria Renata da Cruz Duran Londrina 2019 Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática do Sistema de Bibliotecas da UEL Rodrigues, Bruna Carolina Marino. NAVEGANDO PELO PASSADO: REDES SOCIAIS E OS PROBLEMAS DA HISTORIOGRAFIA NA ERA DIGITAL / Bruna Carolina Marino Rodrigues. - Londrina, 2019. 244 f.: il. Orientador: Maria Renata da Cruz Duran. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Estadual de Londrina, Centro de Letras e Ciências Humanas, 2019. Inclui bibliografia. 1. História - Tese. 2. Redes Sociais - Tese. 3. História Digital - Tese. 4. Historiografia - Tese. I. Duran, Maria Renata da Cruz. II. Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas. III. Título. BRUNA CAROLINA MARINO RODRIGUES NAVEGANDO PELO PASSADO: AS REDES SOCIAIS E OS PROBLEMAS DA HISTORIOGRAFIA NA ERA DIGITAL BANCA EXAMINADORA ____________________________________ Orientador: Prof. Drª Maria Renata da Cruz Duran Universidade Estadual de Londrina - UEL ____________________________________ Prof. Drª Márcia Elisa Teté Ramos Universidade Estadual de Maringá- UEM ____________________________________ Prof. Drº Sérgio Amadeu da Silveira Universidade Federal do ABC– UFABC Londrina, 9 de agosto de 2019. Dedico esta dissertação a Fábio Tuani, Marta Lúcia, José Luiz e Rafael. AGRADECIMENTOS Agradeço a minha orientadora Maria Renata da Cruz Duran pelo incentivo, pelas trocas de ideias e pela confiança que depositou no meu trabalho. Por isso, meu muito obrigada por estar comigo nesses anos enriquecendo meus conhecimentos com sua experiência e pela dedicação que sempre teve comigo. Agradeço também a Bruno Leal Pastor de Carvalho pelas trocas de ideias que foram inspiradoras e contribuíram muito para realização dessa pesquisa. À Marcia Teté Ramos e Francisco Ferraz pelas sugestões que contribuíram para o amadurecimento e enriquecimento do trabalho. E a Sérgio Amadeu da Silveira pelas discussões e sugestões inspiradoras para essa dissertação que certamente contribuirão para a sua continuação. Agradeço também a cada um dos docentes(a) do curso de História da Universidade Estadual de Londrina que me acompanharam na graduação e no mestrado, sem vocês eu não seria a pesquisadora que sou hoje. Muito Obrigada. A minha família meu pai José e minha mãe Marta por terem acreditado no meu sonho de cursar a graduação e o mestrado em História em uma universidade pública e por terem investido nesse sonho. - Eu sei que não foi fácil para vocês, mas mesmo com dificuldades acreditaram no meu potencial me apoiando em todos os momentos. Agradeço especialmente minha mãe Marta Lúcia que me ensinou que o conhecimento nos liberta das amarras que a vida nos impõe e me ensinou que na vida vamos travar muitas batalhas, sobretudo porque ser mulher nesse mundo é lutar duas vezes mais. Ao meu irmão Rafael Marino que com sua curiosidade de criança me motiva todos os dias e claro que estudar tecnologia sem ele não teria a mesma graça e motivação, é muito inspirador aprender com ele, pois a vida é uma aprendizado constante! A minha vó Chica (in memorian) e o vô Lando ( in memorian) por terem cativado desde criança o meu gosto pela leitura . E por fim, agradeço a meu amor Fábio Tuani por ter estado ao meu lado nessa caminhada de angústias e de anseios do universo acadêmico e por acreditar nos meus ideais. E também a todos que desacreditaram, vocês também foram importantes nessa jornada ! No final do século XX, neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues (Donna Haraway, 1985). RODRIGUES, Bruna Carolina Marino. Navegando pelo passado: as Redes Sociais e os problemas da Historiografia na Era Digital. 2019. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Estadual de Londrina, LONDRINA, 2019. RESUMO Esta pesquisa tem por objetivo investigar as transformações que estão se processando no campo da História com o impacto da “virada digital” na primeira metade do século XXI. Contudo, o relacionamento entre História e tecnologia não nos remente apenas ao tempo presente e às transformações da cultura digital no ofício dos historiadores, mas também está articulada as mudanças de paradigma que estão se processando na cultura ocidental. Por isso, apresentamos um debate teórico sobre o conceito de tecnologia como um problema histórico no campo das ciências humanas. Assim, guiados pelas reflexões desses teóricos, veremos como questões relacionadas as práticas sociais no trabalho, nas sociabilidades, na cultura de massas ao entretenimento e na transmissão e recepção do conhecimento na sociedade foram sendo ressignificadas a partir das tecnologias digitais e do advento da internet. Por sua vez, como constatamos, a História foi impactada pela “virada digital” e a tecnologia não será vista somente como ferramenta de pesquisa, mas como categoria analítica que modifica o conhecimento e produz a cultura digital transformando a História e a sociedade. Dessa forma, discorremos sobre as modificações que as mídias e redes sociais estão provocando na cultura contemporânea, a fim de compreender como essas transformações se projetam nos modos de emissão e recepção da História através da internet na web e na configuração de novas práticas sociais. Com isso, analisaremos como o ofício dos historiadores foi impactado a partir do caso da rede social criada no âmbito da internet brasileira intitulada Café História (2008-2017), que atualmente transformou-se em um Portal de divulgação da História e não se encontra mais online, estando disponível apenas através de um arquivo da web, intitulado The Internet Archive (1996). De todo modo, essa pesquisa só foi possível pelo arquivo da web, The Internet Archive (1996), que recuperou e preservou o passado digital da rede social pela interferência de agentes não humanos na produção da evidência histórica. Consoante, foi necessário empreender uma discussão que demonstrasse como a tecnologia ou social machines têm interferido nas relações dos historiadores digitais e de suas fontes digitais. Sendo assim, investigaremos as novas práticas sociais que surgiram da cultura digital e que foram materializadas na rede social Café História (2008-2017) por historiadores e pelo público não especialista. Nesta análise buscamos compreender como essas novas práticas transformaram a produção e divulgação do conhecimento histórico na cultura contemporânea, criando novas sociabilidades e práticas de pesquisa digitais no contexto brasileiro. RODRIGUES, Bruna Carolina Marino. Surfing through the past: Social Networks and the issues of Historiography in the Digital Era. 2019. Thesis (Master’s degree in Social History) – Universidade Estadual de Londrina, LONDRINA, 2019. ABSTRACT This research aims at investigatingthe changes that are being processed in the field of History given the impact of the “digital turn” in the first half of the 21st century. However, the relationship between history and technology not only brings us back to the present time and the transformations of digital culture in the craft of historians, but also articulates the paradigm shifts that are taking place in Western culture. Therefore, we present a theoretical debate on the concept of technology as a historical problem in the field of human sciences. Thus, guided by the reflections of these theorists, we will see how issues related to social practices at work, sociability, mass culture to entertainment and the transmission and reception of knowledge in society have been resignified from digital technologies and the advent of the internet. In turn, as we have seen, history has been impacted by the “digital turn” and technology will not only be seen as a research tool, but as an analytical category that modifies knowledge and produces digital culture transforming history and society. Accordingly, we shall address the changes that social media and networks are causing in contemporary culture in order to understand how these transformations are projected in the means for conveying and receiving History through the Internet on the Web, as well as in the molding of new social practices. From there, we shall analyze how the work of historians was impacted from the perspective of the social networking website, created in the scope of the Brazilian Web, named Café História [History Coffeehouse] (2008-2017), which is currently a Web Portal for disseminating History and is no longer online, and it is only available through a Web archive, named The Internet Archive (1997). Anyway, this research was only possible due to the Web archive The Internet Archive (1996), which retrieved and maintained the digital records of the social networking website through interference of non-human agents in the production of historical evidence. Accordingly, it was necessary to promote a discussion that would demonstrate how technology or social machines have been interfering in the relationships of digital historians and their digital sources. Hence, we investigated the new social practices that emerged from the digital culture and that were materialized on the social networking Café História (2008- 2017) by historians and by the non-specialist general public. Through this analysis we seek to understand how these new practices have transformed the production and dissemination of historical knowledge in contemporary culture, creating new sociabilities and digital research practices within the Brazilian context. LISTA DE FIGURAS Figura 1 -Página inicial The Internet Archive ........................................................................ 157 Figura 2 - Sede do The Internet Archive. Biblioteca Alexandrina. São Francisco, Califórnia .. 158 Figura 3- Hardware do The Internet Archive exposto na sede ................................................ 160 Figura 4 - Espaço onde se guarda o Hardware com 35 petabytes de dados ............................. 161 Figura 5- Wabac Machine ..................................................................................................... 162 Figura 6 - Pesquisa preliminar rede social Café História........................................................ 163 Figura 7 -Calendário de Snapshots Café História .................................................................. 164 Figura 8 -Arquivo da web e perfil da autora Brunacmr .......................................................... 166 Figura 9 - Site buscador Cadê? .............................................................................................. 175 Figura 10 Canal mIRC #RioPreto .......................................................................................... 177 Figura 11- Primeiro Design da rede social Café História ....................................................... 184 Figura 12 - Página da rede social Café História, The Internet Archive. .................................. 185 Figura 13- Página da rede social Café História ...................................................................... 188 Figura 14 - Página principal do Café História........................................................................ 190 Figura 15 - Página do Café História em 2010 ........................................................................ 191 Figura 16 - Página inicial Café História, 2013 ....................................................................... 192 Figura 17 - Página inicial, 2013 ............................................................................................. 194 Figura 18- Registrando seu perfil na rede .............................................................................. 198 Figura 19 - Perfil usuário - blog ............................................................................................ 199 Figura 20 -Página 1 Fórum “Como era construído a imagem da mulher no Brasil Colônia ..... 202 Figura 21 - Página 2 Fórum “Como era construído a imagem da mulher no Brasil Colônia” .. 202 Figura 22- Perfil do historiador Jurandir Malerba .................................................................. 206 Figura 23 Perfil de José D’ Assunção Barros ......................................................................... 207 Figura 24 Portal Café História, 2017. .................................................................................... 217 Figura 25- Representação de um grafo de relações da rede social Café História, onde os nós (esfera azul) são as pessoas e as arestas significam os laços sociais que as unem ................... 219 file:///D:/Dissertação/Dissertação%20Bruna%20C%20M%20Rodrigues.doc%23_Toc18162696 file:///D:/Dissertação/Dissertação%20Bruna%20C%20M%20Rodrigues.doc%23_Toc18162696 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Crítica hermenêutica da fonte digital.................................................................... 150 Quadro 2 - Procedimentos para a análise de um documento da web ....................................... 153 Quadro 3 - Tipo de laços e interações no Café História ......................................................... 204 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Crescimento dos usuários da rede (2008-2017) ........................................ 200 Gráfico 2 – Crescimento das Páginas arquivadas pela Wayback Machine .................. 214 LISTA SIGLAS E ABREVIATURAS Bit Net Because It’s Time Network BNCC Base Nacional Comum Curricular CETIC Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico EaD Educação à Distância Embratel Empresas Brasileiras de Telecomunicações FAPESP Fundação do Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo IBOPE Instituto Brasileiro de Opinião Pública LNCC Laborátorio de Ciência e Computação Rea Recursos Educacionais Abertos ONU Organização das Nações Unidas OCDE Organizações para Cooperação do Desenvolvimento Econômico TICs Tecnologias da Informação e Comunicação USP Universidade de São Paulo UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora SUMÁRIO INTRODUÇÃO .........................................................................................................17 CAPÍTULO 1: TECNOLOGIA: UM PROBLEMA HISTÓRICO? ...................... 23 1.1 HISTÓRIA E TECNOLOGIA: MODOS DE PRODUÇÃO, TRABALHO E CIÊNCIA .................. 25 1.1.2. TECNOLOGIA E INDÚSTRIA CULTURAL: A MISTIFICAÇÃO DAS MASSAS ........................ 31 1.1.3. MUDANÇA TECNOLÓGICA E CIENTÍFICA: CAPITALISMO E TRABALHO NO SÉCULO XX . 41 1.1.4. MODERNIDADE/ MODERNISMO E PÓS-MODERNIDADE/ PÓS-MODERNISMOS ................. 53 1.1.5 DA SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL À SOCIEDADE EM REDE ............................................. 66 1.2 TECNOLOGIA, HISTÓRIA E CULTURA .............................................................................. 75 1.2.1 MEIOS DE COMUNICAÇÃO, TECNOLOGIA E HISTÓRIA ................................................... 77 1.2.2 TECNOLOGIA E CIBERCULTURA: A REALIDADE CONSTRUÍDA EM AMBIENTES DIGITAIS . 88 1.2.3 DAS PRÁTICAS ESCRITAS ÀS DIGITAIS: A TEXTUALIDADE ELETRÔNICA E A HISTÓRIA. 102 CAPÍTULO 2: Redes Sociais: uma nova historiografia ? ..................................... 123 2.1 AS MÍDIAS SOCIAIS NA CULTURA CONTEMPORÂNEA ..................................................... 125 2.1.2 REDES SOCIAIS ONLINE E A CULTURA DE MASSAS ...................................................... 131 2.1.3 O PÚBLICO/ PRIVADO NAS REDES SOCIAIS.................................................................. 134 2.1.4 SOCIABILIDADES DIGITAIS: A EMERGÊNCIA DE NOVAS PRÁTICAS SOCIAIS ONLINE ..... 137 2.1.5 A MEMÓRIA ONLINE NAS REDES SOCIAIS ................................................................... 140 2.1.6 REDES SOCIAIS: ESPAÇOS DE DIVULGAÇÃO DO CONHECIMENTO E DA CIÊNCIA ONLINE ......................................................................................................................................... 143 2.2 RUMO A UM NOVO HISTORICISMO DIGITAL? ................................................................. 148 CAPÍTULO 3: MEMÓRIA DA REDE X MEMÓRIA NA REDE: DO THE INTERNET ARCHIVE AO CAFÉ HISTÓRIA ..................................................... 156 3.1 THE INTERNET ARCHIVE COMO FERRAMENTA DE PESQUISA HISTÓRICA: RECUPERANDO E RECRIANDO O PASSADO DIGITAL ....................................................................................... 156 3.2 A REDE SOCIAL CAFÉ HISTÓRIA: DO ONLINE PARA O PASSADO DIGITAL ...................... 167 3.2.1 CULTURA DIGITAL NO BRASIL .................................................................................. 170 3.2.2 AS INTERFACES DA REDE SOCIAL CAFÉ HISTÓRIA ..................................................... 183 3.2.3 OS USUÁRIOS E AS DINÂMICAS NA REDE SOCIAL CAFÉ HISTÓRIA............................... 197 3.2.4 A ESFERA PÚBLICA NA REDE SOCIAL CAFÉ HISTÓRIA ................................................ 208 3.2.5 A DESATIVAÇÃO DA REDE SOCIAL CAFÉ HISTÓRIA: DE REDE SOCIAL PARA PORTAL DE DIVULGAÇÃO DA HISTÓRIA ................................................................................................ 212 2.3.6 A REDE SOCIAL CAFÉ HISTÓRIA: REDES DE SOCIABILIDADE E PRÁTICAS DIGITAIS ENTRE OS HISTORIADORES BRASILEIROS ONLINE .......................................................................... 217 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 225 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 231 FONTES .................................................................................................................. 242 17 INTRODUÇÃO Marc Bloch no livro Apologia da História: ou ofício do historiador (1949) buscou definir o trabalho do historiador como um ofício, mas também investigar suas práticas e seus objetivos científicos para além da ciência, preocupando-se em questionar o fazer histórico e quanto ao método, aos objetos e a documentação histórica, refutando à ideia de história objetiva construída no século XIX pelos historiadores1. Bloch demonstrou que os objetos históricos só têm movimento nas sociedades humanas pelas significações que os homens lhes atribuem, isto é, para Bloch são as questões que condicionam os objetos e não o oposto. Com isso, “a história é busca, portanto escolha. Seu objeto não é o passado: a própria noção segundo a qual o passado enquanto tal possa ser objeto de ciência é absurda. Seu objeto é o homem, ou melhor, os homens, e mais precisamente homens no tempo” (BLOCH, 1949, p.54). Para o autor, que renovou a historiografia com seus trabalhos, a busca por novos objetos a partir de questões contemporâneas seria essencial para a atualização, se não para a legitimação, da História como campo de saber. Não por acaso, o tempo de Bloch não era tão diferente do nosso e a busca por uma historiografia reflexiva, bem como a crítica aos métodos e às práticas do seu ofício se encontram tão vivas no presente como em sua época. Mediante movimentos sucessivos, mas nem sempre lineares, a historiografia contemporânea tem se renovado constantemente ampliando seus objetos de estudos e trazendo para seu campo de pesquisa métodos e abordagens interdisciplinares aliadas a outras ciências humanas, a saber: sociologia, antropologia, filosofia, linguística, comunicação etc. (LE GOFF, 1990). Todavia, na medida em que a historiografia adquiria uma “consciência” histórica de sua historicidade e relatividade, a descrença nas utopias criadas pela modernidade, que acompanhadas das catástrofes políticas e sociais geradas por duas grandes guerras no século XX instauraram uma crise da razão e das certezas que se afirmavam na produção da História durante as décadas de 1970 a 1980. Crise está que incidiu na descrença dos modelos explicativos teleológicos, das 1 Não é raro classificar esses historiadores como positivistas. Nesse sentido, há duas distinções correntes para o uso do conceito História. Primeiramente o termo história significa a experiência da passagem do tempo de homens e mulheres no mundo e que se relaciona com a sociedade e a natureza criando modos de viver. Já a segunda remete a História enquanto campo do conhecimento e de pesquisa e de interpretação desenvolvida pelo historiador (MALADIAN, 2018). De todo modo, queremos explicitar que, neste texto, quando utilizamos o termo História nos referimos a um campo do conhecimento científico que compreende métodos e práticas de pesquisa. 18 metanarrativas, da perda de historicidade, fragmentação do tempo e da história e do modelo de análise serial e quantitativo dos Annales. Por sua vez, a crise também esteve associada a uma crise mais geral e que para além das ciências humanas esteve relacionada a uma crise do conhecimento científico na sociedade, onde as utopias científicas não davam conta de estabelecer a harmonia e o progresso dela esperados em um mundo em colapso (BARROS, 2010). De todo modo, a crise que se vislumbrava no mundo no final do século XX também desenhava o começo de um novo mundo social, cultural e econômico, que devido aos avanços científicos e tecnológicos engendrava a formação de redes informacionais de comunicação, reconfigurando as estruturas sociais a partir de um novo modo de produção, de relações de trabalho, comunicação e sociabilidades. A tecnologia e seus avanços através da internet e das tecnologias digitais possibilitaram, portanto, o surgimento da cultura digital2 no tempo presente empreendendo uma transformação na cultura ocidental. Nesses termos, a tecnologia se tornou uma dimensão essencial no mundo contemporâneo estendendo suas influências em todas as esferas da vida social, de tal forma que o modus operandi desse novo mundo que surge é orquestrado pelas tecnologias digitais e pela virtualização da realidade. Essa mudança tecnológica gerou um novo universo de significados e uma nova ordem do realque desestabilizou as antigas formas de comunicação, de trabalho e de relações sociais. Essas modificações se tornaram mais evidentes quando se trata da circulação da informação e produção do conhecimento, que a partir da ruptura com os antigos formatos de transmissão do conhecimento, dos suportes de escrita, das práticas de leitura estão produzindo uma “revolução cultural” na cultura escrita e nas práticas de leitura, bem como no modo de recepção desse conhecimento na sociedade contemporânea (CHARTIER, 2010). Por conseguinte, como assinalado por José D´Assunção Barros (2010) no artigo As crises recentes na historiografia (2010) se a crise da História nos anos de 1980 decorria das rupturas que advinham do final do século, com a constatação do surgimento de um novo mundo social, a História também foi impactada, na medida em 2 Não há consenso na literatura sobre a definição do conceito de cultura digital, porém, compartilhamos da visão de Manuel Castells (2008) no qual demonstra que a cultura digital é caracterizada pela globalização e digitalização das informações e do conhecimento por meio da microeletrônica digitalizada, bases de dados e redes informáticas criando um universo interconectado por redes de comunicação e interações virtuais. 19 que a natureza do conjunto de suas práticas e representações estava sendo transformado por esse novo mundo social e cultural, que ao mesmo tempo em que provocava uma crise no sistema de pensamento ocidental, também modificava as condições de produção do conhecimento com o advento da internet e das tecnologias digitais. Neste contexto, a fonte que é a base material de produção do conhecimento histórico tem se transformando de modo decisivo na era digital. Com os novos suportes de armazenamento da informação as fontes foram alienadas de sua materialidade e transfiguradas para o ambiente da web. A fonte digitalizada no arquivo digital rompeu com a materialidade do documento impactando as práticas de pesquisa dos historiadores, tais como: autenticidade, manipulação dos dados e crítica da fonte na era digital. Para Elizabeth Roudinesco (2001), os arquivos onde se guardam as fontes são a essência da escrita da História e das práticas de pesquisa, pois nesses espaços se encontram materializadas as tensões vividas na escrita da história e a fantasia do arquivo total, que transformado em saber absoluto anularia a história como criação ou do arquivo vazio que por sua vez não forneceria as fontes primárias para o historiador, o que não garantiria uma história confiável sendo pura projeção do historiador. Portanto, nos termos de Roudinesco o arquivo é a condição da História e tendo essa condição se transformando, a História também o teria. Para o historiador Andreas Fickers (2012) a “virada digital” tem impactado a produção do conhecimento de tal forma que estamos nos aproximando de uma nova forma de crítica de fonte em um novo historicismo, o digital. O “desejo arquivístico” do historicismo do século XIX foi caracterizado pela ambivalente missão de criar coleções de fontes editadas cientificamente, como evidência visível de uma abordagem profissional do historiador às fontes históricas, que seriam utilizadas para a escrita da história e matéria prima para a prática da História profissional e científica. Por sua vez, para Fickers, um silêncio entre os historiadores em relação à digitalização das fontes, sua transmissão e crítica se tornou problemático. Para o autor, estamos em uma crise da prática histórica. Por isso, Fickers evidencia que um novo historicismo digital poderá auxiliar os historiadores na hermenêutica da crítica das fontes online e digital, o que engendraria, portanto, uma nova prática histórica que deverá lidar com o problema da abundância e da falta de informação contextual no futuro. Segundo Aleida Assmann (2013) o arquivo não é somente repositório para documentos do passado, mas também um lugar onde o passado é construído e produzido. Essa construção não depende apenas dos interesses sociais, políticos e 20 culturais, mas é essencialmente co-determinada pelos meios de comunicação e pelas tecnologias de registro. Para Roudinesco (2001) estamos em um momento que o sujeito desprovido de sentido histórico tende a “arquivar tudo”, a fim de preservar sua história em um passado sem futuro. Nessa cultura obcecada pela memória e pelo esquecimento, o arquivo tem se transformado e já não se restringe aos lugares de armazenamento do passado, mas ampliando-se como espaços de criação e de redescoberta do passado, a partir de novas formas de se representar o relacionamento entre indivíduo, sociedade e o passado (SILVEIRA, 2016). Se o modo como pesquisamos está se transformando a partir de novos suportes de armazenamento a escrita da História também se adaptou a esse universo digital. Segundo Serge Noiret (2015), quase todas as problemáticas tradicionais do ofício dos historiadores, tais como a delimitação das hipóteses de pesquisa, o acesso e a gestão das fontes históricas, a construção da narrativa e a comunicação dos resultados da pesquisa passam em grande parte pela tela do computador. Além disso, a internet configurou um novo espaço de divulgação do conhecimento histórico, que mais acessível as populações têm reconfigurado não apenas os modos de se chegar até a História, mas a relação entre público e a comunidade de historiadores. Por outro lado, se a acessibilidade torna a História mais acessível ao público, a questão dos repositórios e arquivos digitais fechados suscitam ainda questionamentos acerca do monopólio da informação, do conhecimento e da própria História na sociedade. Isto posto, nossa intenção é compreender como a tecnologia têm transformado o conhecimento histórico manifesto nas práticas e representações do ofício dos historiadores brasileiros no tempo presente através da rede social Café História (2008- 2017). Pretende-se assim investigar os modos como a cultura digital modificou a operação historiográfica a partir de um novo universo de significados que, engedrados pela cibercultura, reconfiguraram as práticas de pesquisa impactando no modo como, pesquisamos, ensinamos e divulgamos a História. Essas mutações se inserem em um período de curta duração no tempo presente, o que coloca o problema de se saber como o presente é construído no tempo investigando o passado incorporado no presente (FERREIRA, 2000). Assim, a história do tempo presente não seria apenas mais um período da história contemporânea, mas uma nova forma de se compreender a operação historiográfica no presente (DOSSE, 2012). 21 Segundo Philippe Tétart (2000) a midiatização do século XX trouxe consequências que complicaram a trama histórica para os pesquisadores do tempo presente, haja vista que eles devem refletir sobre o seu papel na escrita de uma história ainda recente. O historiador deve reconhecer a subjetividade que o acompanha e o lugar de sua fala, bem como o momento em que está inserida sua prática de pesquisa (CERTEAU apud DOSSE, 2012). Assim, como foi evidenciado por François Dosse, a história do tempo presente “deve ser guiada por uma pesquisa no sentido de não ser mais um Telos, mas um Kairos, não mais um sentido preestabelecido, mas um sentido que emerge do fato que lhe da origem” (DOSSE, 2012, p.20). De acordo com Hartog (2015), a história recente marcada pela queda do muro de Berlim em 1989 e a expansão dos meios de comunicação estremeceram nossas relações com o tempo configurando um novo regime de historicidade. Esse novo regime de historicidade é caracterizado pelo presentismo de uma mobilidade valorizada da permanência do transitório em desaceleração, reconfigurando nosso espaço de experiência e horizonte de expectativas (KOSELLECK, 1979). Portanto, investigar as práticas e representaçõesque surgiram com a cultura digital no ofício dos historiadores nos permitiu também tecer questionamentos sobre as condições de nossa prática de pesquisa possibilitando a realização de uma crítica historiografica sobre a utilização do digital no percurso de nossa análise. No primeiro capítulo trataremos da tecnologia enquanto geradora de problemáticas para o campo das Ciências Humanas e, especialmente da História investigando como alguns autores buscaram historicizar a tecnologia circunscrevendo-a em seus campos de pesquisa. Desse modo, ao analisar como a tecnologia foi pensada pelo mundo intelectual, no contexto da cultura ocidental identificaremos os enunciados que constituíram as representações sobre a tecnologia e as concepções de cultura digital e internet no tempo presente. Neste sentido, ao tratar da tecnologia na cultura ocidental estaremos também fundamentando nosso objeto de pesquisa nos domínios teóricos em que a relação entre tecnologia e conhecimento histórico deram corpo ao movimento da História Digital e História Pública no Brasil recentemente. No segundo capítulo trataremos da análise das mídias sociais e das redes sociais no contexto da cibercultura e cultura digital visando compreender o modo como essas novas mídias têm configurado novos espaços de memória, sociabilidades e práticas sociais impactando nas formas de emissão e recepção do conhecimento histórico na sociedade e transformando o ofício dos historiadores com o que foi denominado “virada 22 digital”. As redes sociais na web tem se configurado como espaços de formação da opinião pública e de novas práticas sociais tornando-se uma importante fonte para pesquisa histórica e social. Com isso, é de suma relevância para os historiadores compreenderem como o passado digital na web está sendo recuperado e armazenado por agentes automatizados através dos arquivos da internet, de modo que na última década a produção da História que nasce/renasce digital se cruza com os sistemas e processos sociotécnicos próprios da cultura digital. Portanto, a web tem história! No terceiro capítulo analisaremos especificamente o caso da rede social criada no âmbito da internet brasileira intitulada Café História (2008-2017). Para efetivar essa análise foi necessário recorrer a um arquivo da web conhecido como The Internet Archive (1996), isso porque a rede social já não se encontrava mais online quando iniciamos nosso estudo. Desse modo investigaremos as novas práticas sociais que surgiram da cultura digital e que foram materializadas na rede social Café História (2008-2017) por historiadores e não historiadores. Nesta análise buscaremos compreender como essas práticas digitais transformaram a produção e divulgação do conhecimento histórico na cultura contemporânea e o ofício dos historiadores brasileiros pelas memórias registradas na web. 23 CAPÍTULO 1: TECNOLOGIA: UM PROBLEMA HISTÓRICO? Na cultura ocidental contemporânea a tecnologia3 e a ciência se tornaram formas de conhecimento inter-relacionadas e que sofrem influências mútuas, uma vez que o discurso tecnológico foi legitimado na sociedade através da ciência. A definição de tecnologia, portanto, aparece na literatura acadêmica e na sociedade representada pela aplicação do conhecimento científico materializada em objetos ou em práticas científicas que repercutem de maneira positiva ou não na sociedade. A etimologia da palavra tecnologia remonta ao mundo antigo, especificamente ao sistema de pensamento da cultura grega em que a palavra techné significava “artes” ou “ofício” e logia, que remontava a logos como conhecimento pela razão4. Ofício ou arte do conhecimento pela razão, a tecnologia renasce como prática de saber no início da época moderna, quando o amálgama entre o antigo e o coetâneo gerou a modernidade (BURKE, 2012). Na modernidade, a sistematização metodológica do saber propiciou o cálculo da novidade e aplicabilidade das ideias, situando nesses gradientes, inovação e aplicação prática e a indexação da qualidade da ciência (RODRIGUES, 2001). No entanto, como demonstrou Simon Schwartzman (1980) empregar esses conceitos de maneira que os torne sinônimos é problemático porque as suas fronteiras variam de uma cultura para outra e de um período histórico para outro. Não há etapas que determinem a relação entre desenvolvimento tecnológico e científico, pois, ao mesmo tempo em que o conhecimento prático (tecnológico) pode se desenvolver a partir do conhecimento científico ele também pode ser constituído sem a ciência. Como no caso da máquina a vapor de James Watt que foi desenvolvida em 1769, mas explicada pelas leis da termodinâmica somente com Rudolph Clausius e Maxwell depois de 1850. A partir do que foi explicitado definiremos o conceito de tecnologia como forma de conhecimento que gera práticas e objetos que possibilitam que os seres humanos intervenham no seu mundo material e simbólico (KRANZBERG; DAVENPORT, 3 Para Simon Schwartzman (1980) o que é ciência e o que é tecnologia e como esses saberes se influenciam são problemas conceituais, já que a maioria dos cientistas não se importam em utilizar estes termos de maneira ampla para cobrir o campo do conhecimento técnico e suas aplicações imediatas, por exemplo, para os economistas a ciência é uma dimensão preliminar da tecnologia. Dessa forma, estas significações demonstram a complexidade do emprego desses conceitos, como também nos revelam muitos aspectos da realidade da ciência e tecnologia na contemporaneidade. 4A palavra referida foi mencionada a partir do Dicionário online Aurélio (https://dicionariodoaurelio.com) e do Oxford Dictionaries (https://www.oxforddictionaries.com/ ). Acesso em 2 /4/ 2018. https://dicionariodoaurelio.com/ https://www.oxforddictionaries.com/ 24 1975). Para Melvin Kranzberg e Willian Davenport (1975) a tecnologia não seria somente a história dos objetos técnicos e de processos tecnológicos, isto porque, ela está relacionada aos elementos da cultura e da sociedade, pois, ela é em si uma das capacidades mais distintas e significativas produzidas pelos seres humanos para transformar a si mesmos e seu mundo. Nas últimas décadas podemos constatar que a tecnologia foi sendo cada vez mais incorporada ao discurso das ciências humanas fazendo com que as novas aplicações tecnológicas reconfigurassem as práticas disciplinares nesses campos5. Essas transformações proporcionaram o surgimento de campos como o das humanidades digitais que buscam na interdisciplinaridade dos saberes humanísticos as ferramentas heurísticas/hermenêuticas para se compreender as transformações do conhecimento através da cultura digital. A História também tem se apropriado da tecnologia produzindo novas formas de discurso e de transmissão do conhecimento histórico para a sociedade, a partir da conformação de áreas dos estudos como a História Digital e História Pública. No entanto, o relacionamento entre História e tecnologia não nos remente apenas ao tempo presente e às transformações da cultura digital no ofício dos historiadores, mas está também articulada as mudanças de paradigma6 que estão se processando na cultura ocidental7. 5 Assim, quando mencionamos a história do conhecimento científico e dos sistemas de pensamento nos embasaremos nos estudos de Michel Foucault (1971) partindo de sua noção de episteme para identificar as singularidades nos enunciados discursivos que definem a cientificidade da ciência histórica na contemporaneidade. Para Foucault “a episteme é um dispositivo estratégico que permite escolher entre todos os enunciados possíveis, aqueles que poderão ser aceitáveis no interior, não digo de uma teoria científica, mas de um campo de cientificidade” (FOUCAULT,1979, p.247). Segundo Eduardo Bento (2016) a episteme abrange muito mais do que uma estrutura do campo científico de uma única teoria, pois ela configura a rede em que a totalidade do saber se fundamenta, a qual é determinada e qualificada pela epistemologia e pela cultura em certo período. 6 Desse modo, quando falamos de paradigma estamos tratando do conceito formulado por Thomas Kuhn no livro “A estrutura das revoluções científicas” (1975) e que compreende as mudanças de paradigma como consequências de uma série de decisões promovidas pela comunidade científica a partir das anomalias presentes em um paradigma vigente, a fim de resolver outra série de questões quando há uma espécie de crise na ciência (BENTO, 2016). Neste contexto, a noção de paradigma de Thomas Kuhn pode ser definida como “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modulares para a comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1975, p.13). Queremos ressaltar que sabemos que as análises de Thomas Kuhn acerca da noção de paradigma se encontram no âmbito das ciências naturais, no entanto, não nos impossibilita de utilizar essa noção adaptada as necessidades do nosso objeto de pesquisa. Para saber mais ver: BARROS, José D’ Assunção. Sobre a noção de Paradigma e o seu uso nas ciências humanas (2010). 7 O estudo sobre as interfaces entre História e tecnologia, bem como das novas práticas que surgem no universo de pesquisa dos historiadores nos leva a percorrer uma abordagem cultural dessas relações e que se inserem nos estudos da nova história cultural. De todo modo, ao investigar as práticas culturais advindas da cultura digital e do ciberespaço que buscam compreender o impacto dessas práticas na produção do conhecimento histórico nos circunscreve nos domínios de uma História da leitura e da 25 Segundo Melvin Kranzberg e Willian Davenport (1975) o mundo da erudição concentrou sua atenção nas humanidades clássicas, deixando de relacionar a cultura e à sociedade à tecnologia. As humanidades tendiam a degenerar a tecnologia qualificando- a como destruidora da vida metafísica e da natureza. Em tais circunstâncias, os estudos da tecnologia se aproximavam das ciências naturais e exatas. Não obstante, foi no campo das ciências sociais que a tecnologia se tornou elemento de estudos para as ciências humanas. A partir dos estudos de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) a tecnologia e seus artefatos não poderiam mais ser pensados separados da economia capitalista e dos modos de produção. A concepção materialista também produziu efeitos nas análises sobre os meios de comunicação, que ao adentrar do século XX produziram estudos importantes sobre a cultura de massas e a indústria cultural. Por outro lado, os estudos culturais ligados à semiótica, filosofia, antropologia e comunicação, bem como os da historiografia da arte e da arquitetura da cultura moderna fizeram com que a tecnologia não fosse mais apartada da cultura, mas sim em suas relações. Destarte, é na análise das ideias de alguns pensadores da cultura ocidental que situaremos a tecnologia nesse debate e na sua relação com os estudos históricos, desde quando a tecnologia deixou de ser encarada apenas como ferramenta, mas sim como categoria analítica que modifica o conhecimento e produz a cultura digital transformando a História e a sociedade. 1.1 HISTÓRIA E TECNOLOGIA: MODOS DE PRODUÇÃO, TRABALHO E CIÊNCIA No campo da História a tecnologia foi ganhando espaço no ramo da história do trabalho e dos modos de produção, uma vez que o materialismo histórico introduziu novos paradigmas para a ciência da História. Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels8(1820-1895) foram os principais expoentes do materialismo histórico, como cultura escrita, caminho esse que percorrermos ao longo dessa pesquisa. Todavia, a relação entre História e tecnologia no Brasil ja foi destrinchada por diversos autores, que no campo da história da ciência e tecnologia produziram pesquisas tomando como ponto de partida o entrelaçamento entre economia, ciência e desenvolvimento tecnológico na sociedade brasileira. Para consultar a bibliográfia sobre a relação entre ciência, tecnologia e economia no Brasil ver: VARGAS, Milton. História da Técnica e da Tecnologia no Brasil (1995) e MOTOYAMA, Shozo. Prelúdio para uma História da Ciência e Tecnologia no Brasil (2004). 8 Karl Marx nasceu na Alemanha na cidade de Trévis em 1818 e faleceu em Londres em 1883. A contribuição de Marx à história do pensamento ocidental é difícil de mensurar, pois, além de ser considerado economista, sociólogo, historiador e filósofo, Marx foi um ativista político preocupado com as causas dos trabalhadores, o que levou a teoria marxista à revolução proletária. Já Friedrich Engels 26 método de compreensão histórica sua repercussão nas ciências humanas provocou mudanças de paradigmas não apenas nas correntes historiográficas, que se apropriaram do seu repertório teórico, mas também transformou a visão da teoria econômica, política e, sobretudo da sociologia (BARROS, 2013). Vejamos, pois, como esse pensamento se liga ao conceito de tecnologia e dos estudos históricos. Segundo Barros (2013) a teoria elaborada por Marx tem no conceito de modo de produção uma das ferramentas analíticas para se compreender a materialidade de determinada formação social. Por isso, ao considerar o modo de produção como ponto de partida para análise histórica, Marx utilizou o conceito de dialética, como princípio norteador da compreensão do movimento da história, para então examinar a historicidade que determina cada período histórico e os seus modos de produção. A práxis social também aparece como conceito para se analisar a formação de uma sociedade, já que coloca o trabalho como categoria central do materialismo, sendo a unidade dialética da práxis que agrega teoria e prática (pensamento e ação) possibilitando que o homem transforme seu mundo pelo trabalho. Para compreender como o homem modifica o seu meio pelo trabalho Marx opera a partir da noção de natureza em si, isto é, a relação homem e natureza acontece por meio da materialização da realidade por processos tecnicamente possíveis. O trabalho, por sua vez, é uma categoria de mediação entre a natureza objetiva e da natureza subjetiva que se torna o mecanismo de desenvolvimento da espécie humana. Ao mesmo tempo em que o homem transforma a sua relação com a natureza por meio do trabalho, ele, dialeticamente, transforma a si mesmo na (re)produção das relações sociais (HABERMAS, 2014). A tecnologia transitou nos escritos de Marx a partir da concepção de transformação do trabalho pelas categorias de modo de produção, forças de produção e de relações de produção de certa formação social. Assim, nas forças de produção encontram-se os meios materiais e a tecnologia necessária para que se provoquem modificações nos meios materiais da sociedade, isto é, nos instrumentos e as técnicas para a apropriação da natureza pelo homem e na otimização do trabalho que podem gerar ou não transformações no modo de produção. Para Marx, o desenvolvimento técnico varia de acordo com os modos de produção que podem se desenvolver em ritmo nasceu na Alemanha em 1829 na cidade de Wuppertal e faleceu em 1895 em Londres. Ao lado de Marx Engels se consagrou como um dos principais teóricos do marxismo tendo escrito inúmeros textos sobre economia, política e sobre a situação do proletariado nas fábricas inglesas (BARROS, 2013, p.19-20). 27mais lento ou acelerado alterando assim as relações de produção que se reproduzem nas relações sociais. Por conseguinte, Karl Marx (1818-1893) e Friedrich Engels (1820-1895) desvelaram em suas análises sobre a formação do capitalismo uma dimensão particular da industrialização da sociedade no século XIX: a relação intrínseca entre desenvolvimento tecnológico e progresso científico. Na obra O Capital (1867), que é um livro de crítica à economia política e às relações de produção, Marx e Engels apresentaram a tecnologia como fator preponderante para a mecanização da indústria e das transformações das relações de trabalho sendo a força motriz para o desenvolvimento capitalista. Diferentemente do que acontecia no sistema de manufatura, quando o trabalhador detinha os meios de produção, na grande indústria ele perdia esse meio para as máquinas, que criam as bases técnicas para o desenvolvimento do modo de produção capitalista. Como apontado por Marx, a relação entre homem e máquina acontece, sobretudo no âmbito do trabalho: Como maquinaria, o meio de trabalho adquire um modo de existência material que condiciona a substituição da força humana por forças naturais e da rotina baseada na experiência pela aplicação consciente da ciência natural. Na manufatura, a articulação do processo social de trabalho é puramente subjetiva, combinação de trabalhadores parciais; no sistema da Maquinaria, a grande indústria é dotada de um organismo de produção inteiramente objetivo, que o trabalhador encontra já dado como condição material da produção (MARX, 2013, p.566). A mecanização da indústria provocou uma revolução tecnológica nos processos produtivos acarretando efeitos imediatos sobre o trabalhador, ou seja, na medida em que a máquina substituiu a força muscular à força de trabalho, essa se desvalorizou e ficou submetida ao capital. A introdução da máquina barateou a força de trabalho deixando os trabalhadores cada vez mais alienados aos processos produtivos. Com a degradação das condições de trabalho o antagonismo entre as classes sociais se exacerbou. A atividade produtiva se transformou em mercadoria acarretando o fetichismo das relações sociais e uma maior divisão entre as classes. Para Marx e Engels esse antagonismo entre as classes só seria superado a partir da luta de classes e da revolução proletária. Portanto, a revolução no modo de produção industrial com a introdução das máquinas provocou mudanças significativas nas condições do processo de produção do social (MARX, 2013, p.562). 28 O capitalismo provocou a aceleração do tempo histórico a partir da mecanização da produção nas fábricas que fizeram com que o tempo se diluísse no tempo de serviço em que o trabalhador emprega sua força de trabalho submetendo-se a um tempo regulado e mediado pelo tempo de produção. Marx (1867/2013) demonstrou que o tempo de produção imposto pelo modo de produção capitalista e pelo desenvolvimento tecnológico transformou a própria noção de tempo na sociedade, haja vista que o tempo exerceu um papel de dominação e domesticação dos homens incidindo nas relações sociais. O tempo no início da Revolução Industrial começava a se submeter à lógica do capital e um novo modo de vida social surgia com o capitalismo a partir de uma nova concepção de tempo que agora era investida pela racionalização, medição e regulação. Portanto, o tempo do trabalho possibilitou o desenvolvimento do capitalismo na medida em que por meio da reprodução das relações sociais o tempo se diluía nas relações de produção a partir do trabalho (MARX, 1867/2013). Neste contexto, para Marx a tecnologia está associada aos modos de produção que incidem sobre a determinação da ordem socioeconômica em cada período histórico. Marx (1867/2013) também demonstrou que a forças sociais tiveram um papel no avanço da tecnologia, pois, a ascensão do modo de produção capitalista dependeu de um mercado organizado a partir da iniciativa privada estimulando a tecnologia industrial entre os séculos XVIII e XIX. De todo modo, para Marx (1867/2013) há uma relação marcante entre a ascensão e consolidação do capitalismo como modo de produção e o desenvolvimento e crescimento da atividade científica em toda a Europa. A expansão da investigação científica dedicada à exploração da natureza e seu controle para utilização na vida material estimulou cada vez mais o avanço tecnológico no século XIX. A ciência converteu-se em força histórica primordial e condição prévia para o desenvolvimento da tecnologia. A tecnologia adquiriu um significado especial no contexto do capitalismo, já que os progressos técnicos e sua difusão na sociedade assumiram características de um processo autônomo (HEILBRONER, 1975, p.39). A tecnologia é para Marx um dos fatores determinantes do sistema capitalista porque a partir da mecanização dos processos produtivos o capital avançou e se legitimou na sociedade. Todavia, Marx e Engels revelaram sua visão positiva da tecnologia ao demonstrarem que o proletariado poderia fazer uma revolução ao se apropriarem dos meios de produção e assim dominar o poder que emana do desenvolvimento tecnológico. 29 A visão marxista acerca da tecnologia teve um papel importante no pensamento de alguns expoentes do materialismo histórico, por exemplo, Georg Lukács (1885- 1971). Segundo Barros (2013) no livro História e Consciência de Classe (1923), especificamente no capítulo a “Reificação e a Consciência do Proletariado”, Lukács empreendeu sua análise a partir do conceito de modo de produção, visando compreender o funcionamento da sociedade capitalista e a dimensão subjetiva da realidade humana. Neste sentido, o pensamento de Lukács foi influenciado pelo reportório teórico de Marx, sendo que a noção de fetiche da mercadoria é um dos conceitos norteadores de sua pesquisa e que demonstram como a organização do capitalismo afetou os indivíduos dando origem ao fenômeno da reificação e sua manifestação em todas as esferas da sociedade (LUKÁCS, 1989, p.97). Segundo Lukács (1923/1989) o fenômeno da reificação foi inaugurado no âmbito das relações sociais quando o modo de produção capitalista transformou as relações entre as pessoas em objetividade ilusória coisificada. Dessa forma, o fetichismo da mercadoria revelava a forma como a reificação se manifestava na consciência do proletariado. Assim, a partir das relações dos homens com os processos produtivos as características reificadas do seu trabalho se evidenciavam. A relação entre trabalho e processo produtivo rompeu com a relação entre os homens e seu trabalho criando então uma relação mediada por objetos a serviço do capital. Por este motivo, os produtos do trabalho tornaram-se mercadorias, já que com a industrialização o processo de trabalho foi retalhado em operações parciais e abstratamente racionais numa proporção que destruiu a relação entre o trabalhador e o produto como totalidade, reduzindo seu trabalho a uma função alienante que se repete mecanicamente. Para Lukács (1923/1989) a subordinação do homem à máquina criou um estado em que eles se “apagam” diante do trabalho reificando sua consciência, isto é, sua subjetividade opera agora a partir das relações de produção capitalista impossibilitando- os de agir em favor da superação dessas relações. Assim, a sociedade capitalista produziu uma estrutura unificada por meio da economia e do desenvolvimento tecnológico. Neste sentido, percebemos que o conceito de tecnologia atribuído por Lukács no entendimento da sociedade capitalista se conecta ao pensamento de Marx e Engels. O determinismo tecnológico sob a sociedade e suas relações permanecem, mas agora Lukács o amplia tendo o fator da reificação da consciência de classe pelo trabalho como ponto de partida para a análise do capitalismo. O pensamento de Lukács 30 influenciou as teorias dos estudiosos da Escola deFrankfurt9 e toda uma corrente de pensamento marxista ao longo do século XX. Na esteira da teoria social marxista temos a contribuição do pensador brasileiro, o filósofo Álvaro Vieira Pinto (1909-1983), que discorreu em seu livro O conceito de tecnologia (1973) sobre a relação entre homem e tecnologia. A análise de Vieira Pinto, assim como na de Marx, Engels e Lukács, compreende uma visão totalizadora no qual a relação entre tecnologia e sociedade foi investigada como meio no qual os seres humanos dão sentido e constroem o seu mundo, todavia, a tecnologia para Vieira Pinto também seria uma forma de dominação sob os homens a partir das relações econômicas. Entretanto, apesar de Vieira Pinto tratar das condições de um capitalismo tardio, que será melhor abordado com os pensadores da Escola de Frankfurt, ao discorrermos sobre sua visão neste tópico, pretendemos demonstrar que a tecnologia a partir do trabalho foi analisada por meio uma visão que a enxerga enquanto condição primordial para a mediação das relações entre homem e natureza. Para Vieira Pinto (1973/2005) o senso comum tende a confundir esses conceitos como sinônimos, todavia, a técnica e a tecnologia apresentam características diferentes. Para esse autor, a técnica seria imanente à espécie humana por estar relacionada ao processo de autocriação do homem. Por sua vez, a tecnologia seria a ciência da técnica, que surgiu como uma necessidade da sociedade industrial em ordenar os conhecimentos técnicos (CORONEL; SILVA, 2010). Segundo Vieira Pinto (1973/2005) a relação homem e tecnologia deveria ser pensada a partir do seu caráter de encantamento e de dominação. O encantamento acontece porque a tecnologia oferece ao homem a possibilidade de transformar a natureza e seu mundo, em um processo de “ideologização da técnica” em que são atribuídos à tecnologia e aos seus objetos técnicos o poder de salvaguardar o futuro da humanidade. Além disso, Vieira Pinto (1975/2005) teceu inúmeras críticas às posições maniqueístas como a de Heidegger10, pois para Viera Pinto a tecnologia não é boa, nem tampouco má, já que se configura como ferramenta que possibilita ao homem transformar a si mesmo e seu meio. Vieira Pinto, foi um crítico do sistema capitalista e dos modos de dominação técnica exercido pelos países “desenvolvidos” aos países 9 Para saber mais consultar: Max Horkheimer (1895-1973) Materialismo e Moral (1933) e Eclipse da Razão (1947). 10O filósofo Martin Heidegger (1889-1976) em A questão da técnica (1953) buscou compreender a tecnologia a partir uma manifestação da nossa existência, todavia, a técnica para esse autor levaria a humanidade a sua própria destruição. Neste contexto, o filósofo brasileiro propõe um diálogo com Heidegger pela filosofia da técnica. 31 atrasados tecnologicamente. Neste caso, Viera Pinto tinha preocupação da dependência tecnológica dos países da América Latina em relação aos países da Europa e dos Estados Unidos. Na análise de Vieira Pinto, assim como na de Marx, Engels e Lukács a tecnologia foi tomada enquanto mediadora das relações entre homem e natureza. Para esses autores, toda tecnologia estabelece relações sociais pelos seus objetos técnicos conformando os modos de produzir a vida. Como forma de mediação entre os homens, a técnica e a tecnologia podem modificar as condições de relação e de existência dos homens no mundo (CARVALHO, 2017). Por fim, assim como para Marx, Engels e Lukács, Vieira Pinto acredita que se os homens se tornarem possuidores do poder da tecnologia poderão utilizá-la em favor de suas necessidades, isto é, ainda está presente na concepção desses autores uma visão romântica do que é a tecnologia em si. Neste sentido, vejamos como alguns pensadores da Escola de Frankfurt analisaram as transformações tecnológicas e seu impacto na cultura no capitalismo moderno. 1.1.2. TECNOLOGIA E INDÚSTRIA CULTURAL: A MISTIFICAÇÃO DAS MASSAS No rumo da imaterialidade e da volatilidade impressa ao capitalismo pela tecnologia, esforçaram-se, ainda, aqueles autores que procuraram entender a tecnologia no contexto da comunicação. Os pensadores da Escola de Frankfurt, expoentes do materialismo histórico11, reuniam pesquisas de diversas áreas do conhecimento como da psicologia, sociologia, crítica da arte, crítica literária, filosofia e psicanálise. Durante os anos de 1930, Theodor Adorno (1903-1969), Max Horkheimer (1895-1973), Eric From (1900-1980), Jürgen Habermas (1929) e Walter Benjamin (1892-1940) produziram importantes reflexões filosóficas e sobre a teoria social. Em suas reflexões buscaram construir uma teoria crítica da sociedade para emancipação humana que os unisse pela concepção teórica e não por uma unidade doutrinária, seu programa de pesquisa estava baseado no materialismo interdisciplinar. Para os pensadores da teoria crítica a nova situação da sociedade capitalista moderna fez com que algumas das teses da teoria crítica de Marx se tornassem ultrapassadas, sendo necessário atualizar a sua crítica da economia política sob um viés interdisciplinar entre as ciências humanas. Todavia, eles não negaram a teoria marxista, mas a atualizaram e 11 A teoria crítica da Escola de Frankfurt também está embasada na teoria de Kant, Hegel, Max Weber e Freud. Dessa forma, queremos ressaltar a importância desses pensadores para a teoria social e para a filosofia, no entanto, nos concentraremos somente nas reflexões acerca do materialismo histórico. 32 tomaram como objeto de investigação a questão entre a relação da vida econômica e da sociedade, da evolução psíquica dos indivíduos e das transformações nos diversos âmbitos da cultura, como ciência, arte, costumes, opinião pública, modos de divertimento e os meios de comunicação (REPA, 2008, p.11). No que tange aos rumos da padronização da cultura e dos mecanismos de controle operados a partir da indústria do entretenimento e forjados nas novas características do capitalismo no século XX, Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) escreveram A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas (1947). Neste ensaio, eles buscaram compreender o alcance da produção e consumo de produtos culturais em larga escala relacionando esses fenômenos com os mecanismos de funcionamento do modo de produção capitalista. Adorno e Horkheimer perceberam então que esses fenômenos não poderiam mais ser identificados apenas no contexto da cultura de massas e do entretenimento como uma expressão da arte popular e cunharam o termo indústria cultural12 (GATTI, 2008, p.26). Assim, a indústria cultural passou a definir um novo fenômeno do capitalismo monopolista que surgia nas primeiras décadas do século XX: a racionalização da cultura pelo capitalismo, a mistificação das massas pelos meios de comunicação e a reificação de sua consciência. Nesse sentido, a tecnologia propiciou que a cultura se racionalizasse pela produção e divulgação de bens de consumo de entretenimento. Neste caso, a introdução das máquinas no processo de trabalho gerou um conflito entre artistas e os detentores do poder do capital, a obra de arte agora dependia, mas do que nunca do mercado. A racionalização da produção também criou o recurso ao planejamento e à antecipação das regras de produção da obra, característica inerente ao caráter fetichista da mercadoria. Por fim, o termo indústria cultural remete à racionalização das técnicas de divulgação dessa mercadoria pelo rádio, cinema, televisão e imprensa, o que demonstra a relação intrínseca entre mercado econômico e indústria cultural (GATTI, 2008, p.26). Para Adorno e Horkheimer, a indústria cultural impossibilita a emancipação humana na medida em que integra as massas ao sistema capitalista pelo consumo debens culturais, neste caso: 12 O conceito indústria cultural compreende a produção de produtos culturais com o intuito de adaptar e integrar seus consumidores a ordem socioeconômica, diferente do que acontece com as formas tradicionais de entretenimento e lazer, a indústria cultural centraliza a disseminação dos produtos culturais por meio dos meios de comunicação. O termo cultura empregado por esses autores remonta a duas questões a autonomia da arte e o estilo artístico (GATTI, 2008). 33 A violência da sociedade industrial opera nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria cultural podem estar certos de serem jovialmente consumidos, mesmo em estado de distração. Mas cada um destes é um modelo do gigantesco mecanismo econômico que desde o início mantém tudo sob pressão tanto no trabalho quanto no lazer que lhe é semelhante. De cada filme sonoro, de cada transmissão radiofônica, pode-se deduzir aquilo que não se poderia atribuir como efeito de cada um em particular, mas só de todos em conjunto na sociedade. Infalivelmente, cada manifestação particular da indústria cultural reproduz os homens como aquilo que foi já produzido por toda a indústria cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 2011, p.6). Nesse contexto, a indústria cultural atua na consciência dos indivíduos a partir do mecanismo da reificação das relações sociais como proposto por Lukács. Desse modo, os produtos da indústria cultural retiraram dos indivíduos o poder de criticidade incidindo nas suas escolhas/preferências sob determinados bens de consumo. Por sua vez, a mistificação das massas não está no fato da indústria cultural manipular as distrações, mas sim no modo que ela estraga o prazer da novidade e do diferente, permanecendo voluntariamente ligada aos clichês ideológicos da cultura em vias de liquidação (ADORNO; HORKHEIMER, 1947/2011). Para Adorno e Horkheimer a técnica adquiriu uma característica particular na sociedade, a saber: o poder encarnado nas classes economicamente dominantes. O desenvolvimento tecnológico possibilitou a configuração do modo de produção capitalista monopolista, a tecnologia ganhou maior notoriedade na sociedade transformando não apenas as relações de produção, mas também as relações sociais por meio da cultura. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação, é o caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena. Automóveis, bombas e filmes mantêm o todo até que seu elemento nivelador repercuta sobre a própria injustiça a que servia. Por hora a técnica da indústria cultural só chegou à estandardização e à produção em série, sacrificando aquilo pelo qual a lógica da obra se distinguia da lógica do sistema social. Mas isso não deve ser atribuído a uma lei de desenvolvimento da técnica enquanto tal, mas à sua função na economia contemporânea. A necessidade, que talvez pudesse fugir ao controle central, já está reprimida pelo controle da consciência individual (ADORNO; HORKHEIMER, 2011, p.6). 34 Segundo Adorno e Horkheimer (1947/2011), as conquistas da ciência e do progresso técnico não possibilitaram o esclarecimento13 da humanidade, mas sim desencadearam o processo de um novo estado de barbárie, uma vez que o conhecimento científico dominou a natureza pela técnica e a técnica dominou a vida humana pelos processos de racionalização da vida através do trabalho e da indústria cultural. Neste sentido, temos a configuração de uma economia planejada pela burocracia das empresas e do Estado, por sua vez, o poder que emana da tecnologia se concentra nas mãos de poucos possibilitando a criação de novas ideologias e métodos de controle social conformando sociedades tecnocráticas.14 Neste sentido, Herbert Marcuse (1898-1979) escreveu o livro A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional (1964) elaborando uma teoria crítica para superação das formas de dominação na sociedade. Para Marcuse (1964) o desenvolvimento tecnológico criou todo um sistema de dominação e coordenação das formas de vida apaziguando as forças que se opõem ao sistema. Nesse tipo de sociedade, a tecnologia produz formas eficazes e agradáveis de controle e coesão social. Assim, o sistema produtivo tende a impor um modo de produção guiado pelo progresso técnico e que determina as relações de trabalho e do sistema econômico imposto aos indivíduos. Na sociedade tecnológica a cultura, a política e a economia se fundem dando origem ao que Marcuse chamou de “Homem unidimensional”. Nesse sistema, os homens internalizam as formas de dominação pelo trabalho e pelo lazer a partir de sistemas de controle que administram suas habilidades, atitudes e aspirações individuais. Segundo Marcuse temos a formação de uma sociedade totalitária construída por uma racionalidade tecnológica, que impõe sobre os corpos e as mentes dos indivíduos valores e verdades padronizadas, disseminadas através de instituições políticas, ensino e meios de comunicação de massa que determinam as relações sociais. Com isso, o consumismo em massa promove uma falsa satisfação das necessidades humanas que se sentem realizadas com a variedade de produtos e serviços que tem a seu dispor. Assim, da irracionalidade da sociedade racional que controla e domestica os 13 O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber contribuindo para a emancipação humana (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). 14 Esse debate sobre a sociedade tecnocrática pode ser encontrado no texto de Marcuse A Ideologia da Sociedade Industrial (1964) e de Habermas Técnica e Ciência como Ideologia (1968). 35 homens pela uniformização do pensamento advém do processo característico de funcionamento das máquinas. Desse modo, há uma razão instrumental, imposta a todos, que constitui a ideologia da sociedade tecnológica. Essa ideologia controla a natureza, o corpo e a mente humana suprimindo as liberdades individuais (GABRIEL, 2003). Para Marcuse a tecnologia produziu efeitos psíquicos sob a vida dos seres humanos, na medida em que estabeleceu um modo de vida unidimensional não transcendendo a racionalidade tecnológica em uma racionalidade crítica. Portanto, o progresso tecnológico seria o responsável pelo sistema de dominação da natureza e da consciência humana que se impõe na sociedade industrial. Ao tratar da relação entre tecnologia e cultura não poderíamos deixar de mencionar, Walter Benjamin, um dos intelectuais mais significativos para a teoria crítica da Escola de Frankfurt. Walter Benjamim vivenciou uma época de muitos dilemas da sociedade moderna como a ascensão do fascismo/nazismo e a crise política e social do começo do século XX. Para Benjamin o século XIX tinha sido marcado pela promessa do progresso da sociedade e do avanço tecnológico configurando assim um período de sonho para a modernidade, todavia, já nas primeiras décadas do século XX, o sonho transformou-se em pesadelo, sendo que a experiência autêntica da vida tinha cedido lugar a um modo empobrecido da vida. Neste sentido, Benjamin buscou compreender a modernidade e as contradições de sua época pela cultura no âmbito das artes visuais tendo como repertório teórico o materialismo histórico e as teorias de Freud (PALHARES, 2006). Como crítica às condições de produção e reprodução artísticas nas primeiras décadas do século XX, Walter Benjamin escreveu o ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1936). Neste ensaio Walter Benjamin elaborou sua teoria materialista das artes e crítica da cultura com vistas a analisar as condições de percepção dos seres humanos em relação a sua vida partir do desenvolvimento técnico e dos meios de comunicação. Para Benjamin (1936/2000), o processo de reprodução técnicaaconteceu ao longo da história: A obra de arte, por princípio, foi sempre suscetível de reprodução. O que alguns homens fizeram podia ser refeito por outros. Assistiu-se, em todos os tempos, a discípulos copiarem obras de arte, a título de exercício, os mestres reproduzirem-nas a fim de garantir sua difusão e os falsários imitá-las com o fim de extrair proveito material. As técnicas de reprodução são, todavia, um fenômeno novo, de fato, que nasceu e se desenvolveu no curso da história, mediante saltos 36 sucessivos, separados por longos intervalos, mas num ritmo cada vez mais rápido (BENJAMIN, 2000, p.11). Neste contexto, os gregos realizavam a fundição e a cunhagem como processos técnicos de reprodução em série. As moedas, os bronzes e as terracotas foram as obras de artes que os gregos reproduziram em série, já que as outras obras de artes só tinham um único exemplar. A gravura em madeira pela primeira vez conseguiu a reprodução de um desenho, muito antes da reprodução da escrita pela imprensa. Na Idade Média foi a técnica de combinar água-forte, para cobrir a madeira ou o bronze que possibilitaram a reprodução da xilogravura e gravuras impressas em papel. A tipografia, por sua vez, permitiu a reprodução técnica da literatura possibilitando a disseminação da cultura escrita na Europa Moderna. (BENJAMIN, 2000, p.11-12). No início do século XIX a litografia permitiu o progresso das técnicas de reprodução possibilitando a reprodução em série de desenhos e a criação de novas obras de arte, graças a nova técnica de submeter o desenho a pedra calcária, ao invés de entalhá-la. A fotografia no século XIX surgiu provocando rupturas em todas as formas de reprodução e disseminação das artes até então inventadas. A reprodução fotográfica possibilitou uma rápida reprodução de imagens, as mãos que antes executavam as tarefas artísticas, foram reconfiguradas para o olho fixo aos objetos, de tal modo que a técnica de captação e reprodução fotográfica permitiu o surgimento das técnicas de reprodução de sons e imagens dando origem ao cinema no século XX (BENJAMIN, 2000, p.11-12). De todo modo, para Benjamin (1936/2000) foi no século XX que o desenvolvimento técnico modificou os meios de produção artísticos interferindo não apenas nas artes tradicionais, mas criando agora um modo de experiência entre artes e sociedade. Com o advento do século XX, as técnicas de reprodução atingiram a tal nível, em decorrência, ficaram em condições de não apenas se dedicar a todas as obras de arte do passado e de modificar de modo bem profundo os seus meios de influência, mas elas próprias de se imporem, como formas de artes originais (BENJAMIN, 2000, p. 12). A reprodutibilidade técnica da arte representou um dos aspectos mais característicos da vida moderna, sendo mais um elemento da reificação das relações sociais e da vivência alienante dos homens em sociedade. Dessa forma, a arte produzida 37 em série e distribuída na sociedade segundo as leis do mercado gerou um empobrecimento da recepção da arte pelo público, isto é, as antigas relações que estabeleciam os modos de percepção do público para com a obra de arte e com o artista se modificaram. Neste caso, para denominar essa nova relação, Benjamin (1936/2000) criou o conceito de “aura”, que seria uma experiência temporal e espacial que caracteriza a recepção das obras de arte tradicionais pelo público. Essa forma de percepção foi denominada por Benjamin de contemplação, como ato de significação no qual o espectador emprega sua criatividade contemplando a obra de arte no seu sentido místico e ritualístico (PALHARES, 2006). Consoante, o que ocorreu na modernidade com a reprodução técnica das artes visuais foi a perda da dita aura, na medida em que esse processo significou a separação do objeto produzido da sua tradição, pela reprodutibilidade tecnológica, ou seja: Pode ser que as novas condições criadas pelas técnicas de reprodução, em paralelo, deixem intacto o conteúdo da obra de arte; mas, de qualquer maneira, desvalorizam seu hic et nunc. Acontece o mesmo, sem dúvida, com outras coisas além da obra de arte, por exemplo, com a paisagem representada pela película cinematográfica; porém, quando se trata da obra de arte, tal desvalorização atinge-a no ponto mais sensível, onde ela é vulnerável como não o são os objetos naturais: em sua autenticidade. O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico. Como este próprio testemunho baseia-se naquela duração, na hipótese de reprodução, onde o primeiro elemento (duração) escapa aos homens, o segundo – o testemunho histórico da coisa fica – fica identicamente abalado. Nada demais certamente, mas o que fica assim abalado é a própria autoridade da coisa (BENJAMIN, 2000, p.13-14) A mecanização dos processos artísticos fizeram com que a obra de arte se transformasse em mercadoria perdendo sua singularidade e autenticidade alterando seu valor de culto, por exemplo, a fotografia e o cinema retiraram a experiência de originalidade e autenticidade que sustentava a recepção contemplativa, como na escultura e pintura, a arte perdeu sua razão de ser. No cinema não há diferença entre a cópia e o original, assim como a fotografia pode reproduzir em imagem uma obra de arte sem distinção, a função de arte ficou subvertida fundamentando-se sobre outra prática, a política. Para Benjamin, essa nova situação foi vista de maneira positiva, vindo a se tornar promissora na sociedade a partir de uma nova atitude do espectador diante das artes. Essa nova atitude poderia levar a uma maior conscientização e crítica dos espectadores, na medida em que a reprodução técnica substitui o olhar histórico 38 sobre os conjuntos de bens culturais do passado para o olhar político, essa nova percepção pode ser observada na obra de poetas surrealistas e na consagração do cinema mudo pelas massas (PALHARES, 2006). A multiplicação das cópias, da reprodução radiofônica e cinematográfica dos objetos culturais a reprodução técnica transformou o evento produzido pela vivência de uma obra de arte em um fenômeno de massas. A reprodução técnica permitiu uma atualidade permanente conduzindo a uma ruptura da realidade transmitida com a tradição caracterizando a crise da modernidade. (BENJAMIN, 2000, p.14). A ruptura da herança cultural de uma época a partir da crise da modernidade provocou a “perda da aura” dos homens em suas relações na vida moderna. Por isso, Walter Benjamim ao analisar o hic et nun (o tempo do agora) a partir da atualidade permanente da obra de arte, demonstrou também as transformações que ocorreram na concepção de tempo. Neste sentido, ao analisar a relação dialética entre o Então e o Agora ou entre o contínuo e o momentâneo, Benjamin assinalou que o presente histórico seria o agora reconhecível. Assim, a partir desse contexto, surge a noção de tempo histórico em Benjamin, que está ligada à concepção de Baudelaire sobre um tempo que leva a efemeridade descontínua, de modo que a experiência instantânea não permanece no passado, ela é sempre replicada na forma de uma imagem do agora, como assinalado na ruptura com a tradição da obra de arte na era da reprodutibilidade técnica (KANG, 2009). Portanto, o tempo do agora de Benjamin é a atualidade do tempo vivido, diferente do tempo linear do continuum em História, o tempo se transformou na conformação de um mosaico de imagens em que o passado inunda o presente e o presente inunda o passado (CROMBERG, 2002) Segundo Jaeho Kang (2009) as análises de Walter Benjamin sobre a cultura refletem as condições de transformação pelas quais o espetáculo se transformou em um fenômeno de massas. A cultura crítica de Benjamin anunciou as tensões e conflitos entre o potencial revolucionário
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