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ESTUDOS DE 
LITERATURA - 
ANÁLISE DA 
NARRATIVA EM SUAS 
DIVERSAS 
MANIFESTAÇÕES
Elisa Lima Abrantes
Estudos de gênero nos 
textos em prosa
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
  Diferenciar gênero e sexo com base em sua desconstrução pela crítica 
atual. 
  Avaliar as repercussões dos estudos de gênero na interpretação de 
textos literários.
  Desenvolver uma reflexão crítica sobre narrativas literárias que envol-
vem gênero e sexualidade. 
Introdução
A biologia por muito tempo determinou que a categoria sexo era binária, 
ou seja, que haveria o sexo masculino e o feminino; na espécie humana, o 
homem e a mulher. Porém, sabe-se há um tempo que a categoria gênero 
é construída social e culturalmente, ou seja, não é determinada apenas 
pelo sexo do indivíduo e tampouco determina seu comportamento social, 
seus modos de se vestir ou agir, por exemplo. Essa dicotomia serviu de 
base para a crítica desenvolvida pelas teorias feministas e foi bastante útil 
para a denúncia de preconceitos voltados ao sujeito feminino e a sujeitos 
que não se encaixassem nessa visão de mundo binária. 
Essas questões de gênero, de sexo e de sexualidade estão presentes na 
literatura, e os estudos de gênero ampliam as possibilidades interpretati-
vas das obras literárias. Sob esse prisma, pode-se abordar textos literários 
por meio da crítica literária feminista, que leva em consideração o gênero 
de autoria das obras, do leitor e questões relativas ao papel da mulher na 
sociedade, inclusive como leitora e escritora; ou por meio dos estudos 
queer, chamados também de estudos sobre diversidade sexual, que 
contemplam questões sobre orientação sexual e identidade de gênero.
Neste capítulo, você será apresentado aos conceitos de gênero e sexo, 
que foram desconstruídos pela crítica literária contemporânea. Além 
disso, verá como os estudos de gênero repercutem na interpretação de 
textos literários e examinará narrativas literárias que envolvem gênero 
e sexualidade. 
1 Gênero e sexo na crítica literária 
contemporânea 
Em 1990, a teórica Judith Butler chamou a atenção para o fato de que “a 
distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos se-
xuados e gêneros culturalmente construídos” (2003, p. 24). Butler esclarece 
que essa cisão entre as categorias de sexo e gênero leva ao entendimento de 
que a construção do gênero “homem” não se aplica necessariamente a corpos 
masculinos, da mesma forma que o gênero “mulher” não se aplica somente 
a corpos femininos. Sendo assim, Butler destaca a fl uidez dos gêneros e as 
diversas possibilidades dessa categoria, que não abrange apenas duas opções. 
Butler sugere a possibilidade de questionar até mesmo o sexo como categoria 
binária. Para essa autora, o sexo também possui um espectro de possibilida-
des. Além disso, é difícil determinar como ou quando se defi ne o sexo de um 
sujeito. Seria pelo critério anatômico, cromossômico, hormonal, biológico?
Assim, em sua obra Problemas de gênero, Judith Butler (2003) esclarece 
a diferença entre sexo e gênero, que em inglês também são representados por 
dois vocábulos diferentes, sex e gender. Na língua portuguesa, na linguagem 
cotidiana, não costumamos fazer essa diferenciação e os termos “masculino” 
e “feminino” muitas vezes são usados para sexo e para gênero, o que dificulta 
a marcação dessa diferença. Butler (2003) sustenta que, enquanto o sexo 
biológico é visto como inato e binário, como feminino e masculino, o gênero 
não o é. Trata-se de uma categoria construída pela cultura, que designa os 
papéis sociais ligados a cada gênero ou a forma como cada sujeito expressa 
seu gênero. A constituição do gênero se dá a partir de atos, gestos e represen-
tações, ou seja, por meio da performatividade. Ademais, Butler argumenta que 
nem mesmo o sexo é binário, já que existem indivíduos que não se encaixam 
simplesmente em feminino ou masculino, e que são intersexuais, por exemplo. 
A autora chega a sugerir que talvez até o sexo, assim como o gênero, poderia 
ser pensado como culturalmente construído. 
Essa independência entre as categorias sexo e gênero explica o fato dos 
gêneros feminino ou masculino não necessariamente se acoplarem a um 
corpo de homem ou de mulher. A partir daí, podemos pensar a identidade 
de gênero e a orientação sexual. A identidade de gênero se refere ao gênero 
Estudos de gênero nos textos em prosa2
com o qual a pessoa se identifica, que nem sempre corresponde ao seu sexo 
biológico ou aos padrões sociais a ele atribuídos. Quando a identificação não 
coincide com o sexo biológico, temos a categoria transgênero, e quando a 
identificação coincide com o sexo biológico temos a categoria cisgênero. Temos 
ainda a identidade não binária, quando a identificação não se dá apenas como 
puramente masculina ou feminina, mas pode ser neutra ou agênero, fluida, 
intergênero, poligênero, bigênero, etc.
Já a orientação sexual diz respeito ao desejo e à atração física, romântica 
e sexual entre gêneros. Essas diferenças entre sexo e gênero variam histori-
camente no tempo, como nas palavras de Louro (2003, p. 21):
É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, 
mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, 
aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o 
que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento 
histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres 
numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o 
que socialmente se construiu sobre os sexos. O debate vai se constituir, então, 
através de uma nova linguagem, na qual gênero será um conceito fundamental.
As representações de gênero e convenções estéticas presentes nos textos 
literários se relacionam com valores e atitudes enraizadas em cada sociedade. 
As pessoas falam a partir de um lugar de enunciação, ou lugar de fala, que 
depende da sua própria vivência, regida pelo gênero, características étnico-
-raciais e classe social. 
Uma leitura interessante e esclarecedora para a reflexão acerca dos discursos a partir 
da posição social de onde se fala é a obra Lugar de fala: feminismos plurais (2017), de 
Djamila Ribeiro.
Na análise das obras literárias, a crítica que utiliza o gênero como cate-
goria de análise oferece possibilidades de interpretação de textos ficcionais 
a partir da compreensão da sua produção e recepção, organizadas a partir de 
configurações de gênero. Além disso, o gênero também organiza o enredo 
e a construção dos personagens. Quando se faz uso da categoria gênero na 
3Estudos de gênero nos textos em prosa
análise literária, o texto adquire um significado político, pois é lido à luz de 
ações políticas relacionadas à ideologia e às relações de poder da sociedade. 
Adicionalmente, devemos lembrar que as convenções estéticas são produtos 
sociais e dizem muito sobre a época em que foram produzidas, tal qual a 
idealização dos índios retratados pela fase romântica da literatura brasileira.
Cabe ressaltar que falamos aqui de utilizar gênero como categoria de análise 
quando se trata de uma produção que será examinada pela crítica feminista, 
pois a escolha da categoria gênero e não sexo, como seria comum há alguns 
anos — em que se analisava uma escritura feminina, contextos de produção 
autoral de mulheres, recepção do texto por mulheres — rejeita a imposição 
do determinismo biológico sobre “ser mulher” ou “ser homem”. O viés do 
gênero destaca o seu caráter de construto social e problematiza o “ser mulher” 
e a posição dessa mulher — seja ela branca, negra, de classe alta, média ou 
baixa, cis ou transgênero — na sociedade. Essa pluralidade é necessária para 
que se tenha uma noção mais precisa de lugares de fala e questões suscitadas 
pela obra literária. 
Tomando como exemplo o feminismo de segunda onda, em que as ideias de 
sororidade e universalidade são discutidas, principalmentenas décadas de 1960 
e 1970, percebe-se como ainda não se leva em consideração, neste momento, 
que a pauta das mulheres brancas de classes média e alta não é a mesma das 
mulheres negras de periferias e comunidades, por exemplo. Gênero passa a 
ser então uma categoria de análise que permite “[...] fazer perguntas históricas, 
um convite a se pensar criticamente como os corpos sexuados são produzidos, 
implantados, modificados, e também como sobrevivem” (SCOTT, 2010, p. 9).
A introdução do gênero como categoria de análise no debate acadêmico 
foi possível graças ao impacto ideológico do feminismo, que, de acordo com 
Felski (2003, p. 142), trouxe uma nova forma de ler e interpretar a literatura: 
As críticas feministas acreditam que a dimensão estética inclui tanto os temas 
quanto as formas, tanto os significados sociais quanto os anseios psíquicos. 
Elas são céticas em relação à visão de que a experiência estética possa ser 
completamente desinteressada, despida de qualquer referência ao mundo 
ou de fortes sensações prazerosas. Podemos apreciar na literatura o que 
não apreciaríamos na vida; a arte não é um mero espelho ou documento do 
mundo social. Ainda assim nossos gostos estéticos e inclinações não podem 
ser completamente separados de nossas vidas e interesses como seres sociais. 
As críticas feministas concordariam com a observação de que a experiência 
estética é inseparável da memória, do contexto, do significado, e também do 
que somos, onde estamos, e de tudo o que já aconteceu conosco.
Estudos de gênero nos textos em prosa4
A citação de Felski chama a atenção para a recepção dos textos literários por 
leitores de diferentes gêneros, orientações sexuais, classes sociais, repertórios 
culturais e contextos, com percepções diferentes de como ser e estar no mundo. 
Essas considerações valem também para se refletir sobre a produção das 
escritoras, negligenciada por muito tempo pela crítica e historiografia, e para 
a representação de personagens na literatura, relacionada indiscutivelmente 
a questões históricas, sociais e culturais.
Para saber mais sobre alguns pressupostos dos estudos de gênero e sexualidade, 
consulte o artigo “Prolegomena queer: gênero e sexualidade nos estudos literários” 
(2011), de Anselmo Peres Alós.
2 Estudos de gênero na interpretação de textos 
literários 
Os estudos de gênero repercutem na literatura por meio da crítica feminista e 
da teoria queer. A primeira refere-se às análises literárias que se ocupam de 
compreender as condições de vida das mulheres na sociedade, especialmente 
como leitoras e escritoras, assim como a construção de personagens e compo-
sição temática de obras literárias. A segunda refl ete uma atitude que se observa 
no comportamento transgressivo que não se alinha à heteronormatividade e 
afi rma que a orientação e a identidade sexuais ou de gênero são construtos 
sociais, e que, por essa razão, não existem papeis sexuais essenciais, próprios 
da natureza humana, e sim formas socialmente variáveis de se desempenhar 
um ou vários papéis sexuais.
Comecemos então a refletir sobre a crítica literária feminista, que se compõe 
de variadas propostas temáticas, ideológicas e metodológicas aplicadas ao 
estudo da literatura. Dentre todas as vertentes, temos um ponto em comum: 
não se pode pensar o texto literário desvinculado do seu contexto de produção 
e recepção. Essas leituras feministas se constituem a partir dos movimentos 
sociais feministas que tiveram lugar no Ocidente desde o fim do século XIX. 
Para fins de estudos, esses movimentos são classificados em três ondas: 
a primeira tem início no final do século XIX e segue até meados do século 
XX. A segunda tem início nos anos 1950, com o fim da Segunda Guerra 
5Estudos de gênero nos textos em prosa
Mundial, e tem como marco a publicação do livro O segundo sexo (1949), da 
intelectual francesa Simone de Beauvoir. Fortaleceu-se bastante nas décadas 
de 1960 e 1970 com os movimentos de direitos civis. A terceira onda surge a 
partir dos anos de 1990 com a pós-modernidade e a contestação dos discursos 
universalizantes sobre a mulher, trazendo à cena a teoria queer, os feminismos 
negros e uma pluralidade de sujeitos, com realidades diferentes, engajados em 
lutas contra o patriarcado e tendo o gênero como categoria. 
Sabemos que ações isoladas ou coletivas contra a opressão feminina ocor-
reram em diversos momentos da história, mas, ao nos referirmos ao feminismo 
como reconhecido no Ocidente, o fazemos a partir do final do século XIX, com 
as manifestações que reivindicaram o direito ao voto, no chamado sufragismo, 
e maior participação na vida pública e política do Estado. Essa primeira fase 
buscava a igualdade de direitos políticos e da vida pública com os homens, 
como a oportunidade de estudos e o acesso a determinadas profissões. Des-
tacamos aqui os ensaios da autora inglesa Virginia Woolf (1882–1841), dentre 
eles “Um teto todo seu” (“A room of one’s own”), publicado em 1929, que tecia 
considerações sobre as condições sociais da mulher e a influência dessas na 
produção literária feminina, tratada com indiferença pela crítica da época.
Essa primeira onda, cujos interesses estavam ligados às questões das 
mulheres brancas de classe média, deixando de fora dessa pauta as mulheres 
negras das camadas populares, por exemplo, alcançou suas metas em alguns 
países, o que causou uma certa acomodação do movimento. Seu desdobramento 
na segunda onda ocorreu em meados do século XX, com o fim da guerra e a 
publicação do livro de Beauvoir, como mencionado anteriormente, ganhando 
força no final da década de 1960, com os movimentos de direitos civis, em 
que o feminismo, além de suas preocupações sociais e políticas, voltou-se para 
as construções teóricas. “No âmbito do debate que a partir de então se trava, 
entre estudiosas e militantes, de um lado, e seus críticos ou suas críticas, de 
outro, será engendrado e problematizado o conceito de gênero” (LOURO, 
2003, p. 22). 
Nesse momento de efervescência social e política, o movimento feminista 
se expressa por meio de grupos de conscientização, marchas e protestos, e 
também via livros, jornais e revistas. Militantes feministas que transitavam 
no mundo acadêmico levaram para o interior das universidades e das escolas 
questões que as mobilizavam. Dessas leituras e discussões surgem os estudos 
da mulher, tornando visível a segregação social e política a que as mulheres 
foram historicamente submetidas. Leituras de textos literários canônicos de 
autores homens identificavam estereótipos sexuais e provocavam reflexões 
enriquecedoras sobre a representação da mulher e sua associação a aspectos 
Estudos de gênero nos textos em prosa6
históricos, sociais e culturais. Posteriormente, os estudos se voltaram para as 
obras de escritoras e sua expressão criativa, moldadas pela condição da mulher 
na sociedade, marginalizada por séculos. Nessa segunda onda do feminismo, a 
palavra de ordem era sisterhood, ou sororidade, e buscava a universalidade de 
direitos, o que também não contemplava as diferentes realidades e categorias 
que se encaixavam na categoria “mulher”.
A terceira onda do feminismo, surgida nos anos de 1990, é marcada pela 
questão do gênero para as discussões que se seguem. O livro Problemas de 
gênero, de Judith Butler, publicado originalmente em 1990, foi um marco para 
o movimento, embora contrariasse alguns dogmas ao questionar a distinção 
sexo/gênero e: 
[...] problematizar a razão de o sujeito do feminismo ser ‘as mulheres’. Butler 
apontava para a chamada ‘heterossexualidade compulsória’ imposta pelas 
instâncias de poder, ou seja, pelo discurso hegemônico. Dessa forma, ela vi-
sava abrir caminho para uma construção variável de identidade, que incluiria 
não só as lésbicas, como também transexuais e intersexuais. Ela sinalizava, 
assim, o caráter construído de todas as identidades (FIGUEIREDO, 2018, 
documento on-line). 
A distinção entre sexo e gênero é de fundamental importância para essa fasedo movimento, que também abarca as questões relativas à pós-modernidade, à 
globalização, à contestação dos discursos totalizantes. O mundo fragmentado, 
incerto, com identidades deslocadas e fluidas é o cenário que se apresenta 
para que se recoloque o debate do gênero no campo do social, onde se cons-
troem e reproduzem as relações desiguais entre os sujeitos. As desigualdades 
deveriam ser buscadas na história, no acesso aos recursos da sociedade, nas 
formas de representação. Aqui os conceitos de sororidade e de universalidade 
se atomizam e individualizam em liberdade de escolhas, interseccionalidades 
(gênero, aspectos étnico-raciais, classe social) e politicas transversais. 
A pretensão aqui é entender o gênero como constituinte da identidade dos 
sujeitos, o que é complexo, pois os sujeitos têm identidades plurais, múltiplas, 
que se transformam, e não são fixas ou permanentes. “Assim, o sentido de 
pertencimento a diferentes grupos — étnicos, sexuais, de classe, gênero, etc. 
— constitui o sujeito e pode levá-lo a se perceber como se fosse empurrado 
em diferentes direções” (HALL 1992, p. 4 apud LOURO, 2003, p. 25). Ou 
seja, para além de estar no âmbito dos papéis e convenções sociais, o gênero 
também constitui o sujeito, faz parte dele. 
A teoria queer e os estudos queer se concentram nos processos de catego-
rização sexual e na sua desconstrução, e se alinham à proposta foucaultiana 
7Estudos de gênero nos textos em prosa
de que o sexo é uma categoria a ser historicizada, para que se compreenda 
a sua regulação nas sociedades modernas. A análise queer é coerente com a 
proposta foucaultiana, sobretudo, na afirmação:
 Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é 
preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são 
distribuídos os que podem e os que não podem falar, que tipo de discurso é 
autorizado ou que forma de discrição é exigida a uns e outros. Não existe um 
só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apoiam e 
atravessam os discursos (FOUCAULT, 2005, p. 30). 
Deve-se então atentar para as conexões entre o poder e o saber, e as varia-
ções que as relações de poder apresentam nos diferentes contextos das esferas 
sociais. Cada sociedade define o que é sexual ou não, e avalia o que é aceito ou 
rejeitado a partir dos critérios da sua estrutura de poder. Ao analisarmos obras 
literárias sob uma perspectiva queer, podemos compreender como emergiu a 
ordem social presente, ou seja, como se deu o processo de naturalização e de 
normatização de comportamentos e discursos e que o artista registra o processo 
social que deu origem à sua expressão artística. Assim, essa perspectiva permite 
analisar como a literatura retrata e é parte de uma experiência histórica. 
Conforme Louro (2003), os discursos de gênero englobam também questões sobre 
a sexualidade. As identidades sexuais se constituiriam, pois, pelas formas como se 
vive a sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os 
sexos ou sem parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos também se identificam, social e 
historicamente, como masculinos ou femininos (sendo cis ou transgênero), ou como 
gênero não binário, e assim constroem suas identidades de gênero. Ora, é evidente 
que essas identidades (sexuais e de gênero) estão profundamente inter-relacionadas; 
nossa linguagem e nossas práticas muito frequentemente as confundem, tornando 
difícil pensá-las distintivamente. No entanto, elas não são a mesma coisa. Sujeitos 
masculinos, femininos ou de gênero não binário podem ser heterossexuais, homos-
sexuais, bissexuais, pansexuais ou assexuados (e, ao mesmo tempo, também podem 
ser negros, brancos, ou índios, ricos ou pobres, etc.). 
O que importa aqui considerar é que — tanto na dinâmica do gênero quanto na dinâmica 
da sexualidade — as identidades são sempre construídas, pois não são dadas ou acabadas 
num determinado momento. Não é possível fixar um momento — seja o nascimento, a 
adolescência ou a maturidade — que possa ser tomado como aquele em que a orientação 
sexual e/ou a identidade de gênero seja “assentada” ou estabelecida. As identidades estão 
sempre se constituindo, são instáveis e, portanto, passíveis de transformação.
Estudos de gênero nos textos em prosa8
3 Narrativas literárias que envolvem gênero 
e sexualidade 
Analisar um texto literário usando os estudos de gênero, como já mencionamos 
nas seções anteriores, é sempre possível, mas alguns textos são mais alinhados 
a essa proposta, pois trazem em si representações de gênero que despertam 
refl exões e questionamentos logo à primeira vista. Vejamos alguns exemplos, 
para ilustrarmos do que se trata.
No romance brasileiro Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, 
a personagem Diadorim, cujo nome de batismo é Maria Deodorina, assume 
uma aparência masculina para poder explorar o sertão. Para isso, adota o 
nome de Reinaldo, já que sua condição de mulher não permitia que ela se 
dedicasse àquela atividade.
Em trajes masculinos, Diadorim conhece Riobaldo, o narrador do romance, 
e por ele se apaixona, amor que é visto como homossexual, e, portanto, proi-
bido. Embora renegasse Diadorim no início, o narrador explica que quando 
Diadorim se ausentou sentiu muita falta dele, e que, quando o jagunço voltou, 
Riobaldo reconheceu o seu amor.
Ao ver a alegria de Diadorim diante da chegada de Joca Ramiro, Riobaldo 
sente ciúmes, por não saber que se tratava do pai do amado: “[...] eu vinha 
tanto tempo me relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a 
claro, de um amigo se pertence gostar; e, agora àquela hora, eu não apurava 
vergonha de se me entender um ciúme amargoso” (ROSA, 1976, p. 26) A 
homossexualidade permeia todo o romance, e, em certa cena, o personagem 
Hermógenes se insinua para Riobaldo na ausência de Diadorim. 
Diadorim é um jagunço como os outros companheiros. Grande guerreiro, 
mata e se arrisca a morrer sem medo. Ao final do romance, seu segredo é 
revelado. Após a morte, Riobaldo descobre, ao ver o cadáver de Diadorim, 
que seria lavado, que se tratava de uma mulher, virgem.
Uma abordagem a partir do gênero permite algumas reflexões. Em pri-
meiro lugar, temos que a sociedade brasileira machista de meados da década 
de 1950 poderia rejeitar a obra se a homossexualidade se tornasse explícita. 
Guimarães Rosa preferiu fugir da indeterminação e da dúvida em relação 
ao personagem; no entanto, o tema da homossexualidade se apresenta na 
relação entre Riobaldo e Diadorim, quando o primeiro conta que o amigo 
o encantou, e que ele gostava mais do jagunço a cada dia. Mesmo sabendo 
da verdadeira identidade de Diadorim, Riobaldo o apresenta como jagunço, 
guerreiro e corajoso, e a identidade de mulher não se constitui explicitamente 
na narrativa. Entretanto, Riobaldo comenta certas sutilezas de Diadorim na 
9Estudos de gênero nos textos em prosa
forma de agir e de entender o mundo, que trazem certa indefinição quanto à 
sua identidade, motivada pelas atitudes e pelo comportamento esperado de 
homens e mulheres naquele momento histórico. 
O drama que se impõe no romance é a impossibilidade de aceitação do 
amor entre dois homens naquela sociedade. Riobaldo tem uma esposa e uma 
amante, que “atestam” sua heterossexualidade, e é essa confusão de desejos 
que problematiza as categorias de gênero e de sexualidade como estáveis. A 
expressão do amor e do desejo enfrenta interdições na trama, o que amplia a 
intensidade dramática da revelação final, que vem, de certa forma, restaurar a 
ordem vigente, como se Riobaldo pudesse perceber, para além das aparências, 
a identidade de Diadorim.
Comentemos agora um texto de autoria feminina, da escritora inglesa 
Virginia Woolf, Orlando: uma biografia (1928). Nessa obra, Woolf conta a 
história de Orlando, rapaz de 16 anos que tentava ser poeta na época elisabe-
tana, no fim do século XVI, e cuja história termina apenas em 11 de outubro 
de 1928, com o protagonista como uma mulher madura.Dedicado a Vita Sackville-West, por quem a escritora esteve apaixonada, o 
livro retrata um protagonista sexualmente mutante ao longo de quatro séculos. 
O romance tem seis capítulos, numa narrativa em ordem cronológica, em que 
o narrador reconstrói a vida de Orlando. Como pano de fundo, temos a história 
literária inglesa e eventos históricos da Inglaterra. 
No início da narrativa, Orlando tem as atitudes esperadas de um comporta-
mento masculino da época e se envolve com algumas mulheres, apesar de seu 
gosto pela poesia e pela solidão. Se apaixona pela princesa russa Sasha, que 
o abandona. Ao longo da narrativa, a personagem passa por alguns transes, 
quando cai em sono profundo durante dias e, ao acordar, age como se nada de 
estranho tivesse acontecido. Em um desses transes, no terceiro capitulo, acorda 
mulher no século XIX, e percebe a condição feminina: “Somente quando sentiu 
a saia enrolando em suas pernas e o capitão oferecendo-se com grande polidez 
para mandar armar-lhe um toldo no convés, que ela percebeu, sobressaltada, 
as desvantagens e os privilégios de sua posição” (WOOLF, 1972, p. 109).
Seu corpo, agora de mulher, sabe o que é ser homem, sendo possível com-
parar as duas condições. A mudança, em um primeiro momento, parece não 
perturbar Orlando: 
Orlando tinha se transformado numa mulher — não há como negar. Mas em 
todos os outros aspectos, Orlando permanecia exatamente como era antes. A 
mudança de sexo, embora alterando seu futuro, nada fizera para alterar sua 
identidade. Seu rosto permanecia, como provam os retratos, praticamente 
Estudos de gênero nos textos em prosa10
o mesmo. [...] A mudança parecia ter sido produzida completamente e sem 
sofrimentos, e de tal maneira que o próprio Orlando não demonstrava surpresa 
com ela. Muita gente, considerando isso, e sustentando que uma mudança 
de sexo é contra a natureza, esforçou-se para provar que (1) Orlando sempre 
tinha sido mulher, (2) Orlando é, neste momento, homem. Deixemos biólogos 
e psicólogos decidirem. Para nós é suficiente constatar o simples fato: Or-
lando foi homem até os trinta anos; nessa ocasião tornou-se mulher e assim 
permaneceu daí por diante (WOOLF, 1972, p. 99–100).
Na voz do biógrafo e da personagem aparecem qualidades e deveres típicos 
de cada gênero, além da diferença cultural entre homens e mulheres. Orlando 
percebe que a vida pública da política e dos negócios estavam restritas aos 
homens, enquanto as mulheres tinham as responsabilidades da vida doméstica. 
No século XX, Orlando tem um novo amor, um homem, com quem se casa, 
de quem engravida, tem um filho, e, abandonando as regras sociais impostas 
às mulheres nos anos de 1920, resolve se dedicar à poesia. Sente-se plena com 
a escolha. Ao finalizar o poema vê o marido, que passara um longo tempo 
no mar, retornar.
A problematização das identidades sexuais e de gênero estão presentes 
por todo o livro, e a androginia desestabiliza as categorias de masculino e 
feminino. Woolf refuta o discurso essencialista e antecipa o conceito de fluidez 
das identidades. Essas questões abrem caminho para a desnaturalização e 
consequente prova de que as identidades e os gêneros são construções sociais 
e culturais. 
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download/138143/139436/. Acesso em: 10 jul. 2020.
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11Estudos de gênero nos textos em prosa
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Leituras recomendadas
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Estudos de gênero nos textos em prosa12

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