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ESTUDOS DE LITERATURA - ANÁLISE DA NARRATIVA EM SUAS DIVERSAS MANIFESTAÇÕES Elisa Lima Abrantes Estudos de gênero nos textos em prosa Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Diferenciar gênero e sexo com base em sua desconstrução pela crítica atual. Avaliar as repercussões dos estudos de gênero na interpretação de textos literários. Desenvolver uma reflexão crítica sobre narrativas literárias que envol- vem gênero e sexualidade. Introdução A biologia por muito tempo determinou que a categoria sexo era binária, ou seja, que haveria o sexo masculino e o feminino; na espécie humana, o homem e a mulher. Porém, sabe-se há um tempo que a categoria gênero é construída social e culturalmente, ou seja, não é determinada apenas pelo sexo do indivíduo e tampouco determina seu comportamento social, seus modos de se vestir ou agir, por exemplo. Essa dicotomia serviu de base para a crítica desenvolvida pelas teorias feministas e foi bastante útil para a denúncia de preconceitos voltados ao sujeito feminino e a sujeitos que não se encaixassem nessa visão de mundo binária. Essas questões de gênero, de sexo e de sexualidade estão presentes na literatura, e os estudos de gênero ampliam as possibilidades interpretati- vas das obras literárias. Sob esse prisma, pode-se abordar textos literários por meio da crítica literária feminista, que leva em consideração o gênero de autoria das obras, do leitor e questões relativas ao papel da mulher na sociedade, inclusive como leitora e escritora; ou por meio dos estudos queer, chamados também de estudos sobre diversidade sexual, que contemplam questões sobre orientação sexual e identidade de gênero. Neste capítulo, você será apresentado aos conceitos de gênero e sexo, que foram desconstruídos pela crítica literária contemporânea. Além disso, verá como os estudos de gênero repercutem na interpretação de textos literários e examinará narrativas literárias que envolvem gênero e sexualidade. 1 Gênero e sexo na crítica literária contemporânea Em 1990, a teórica Judith Butler chamou a atenção para o fato de que “a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos se- xuados e gêneros culturalmente construídos” (2003, p. 24). Butler esclarece que essa cisão entre as categorias de sexo e gênero leva ao entendimento de que a construção do gênero “homem” não se aplica necessariamente a corpos masculinos, da mesma forma que o gênero “mulher” não se aplica somente a corpos femininos. Sendo assim, Butler destaca a fl uidez dos gêneros e as diversas possibilidades dessa categoria, que não abrange apenas duas opções. Butler sugere a possibilidade de questionar até mesmo o sexo como categoria binária. Para essa autora, o sexo também possui um espectro de possibilida- des. Além disso, é difícil determinar como ou quando se defi ne o sexo de um sujeito. Seria pelo critério anatômico, cromossômico, hormonal, biológico? Assim, em sua obra Problemas de gênero, Judith Butler (2003) esclarece a diferença entre sexo e gênero, que em inglês também são representados por dois vocábulos diferentes, sex e gender. Na língua portuguesa, na linguagem cotidiana, não costumamos fazer essa diferenciação e os termos “masculino” e “feminino” muitas vezes são usados para sexo e para gênero, o que dificulta a marcação dessa diferença. Butler (2003) sustenta que, enquanto o sexo biológico é visto como inato e binário, como feminino e masculino, o gênero não o é. Trata-se de uma categoria construída pela cultura, que designa os papéis sociais ligados a cada gênero ou a forma como cada sujeito expressa seu gênero. A constituição do gênero se dá a partir de atos, gestos e represen- tações, ou seja, por meio da performatividade. Ademais, Butler argumenta que nem mesmo o sexo é binário, já que existem indivíduos que não se encaixam simplesmente em feminino ou masculino, e que são intersexuais, por exemplo. A autora chega a sugerir que talvez até o sexo, assim como o gênero, poderia ser pensado como culturalmente construído. Essa independência entre as categorias sexo e gênero explica o fato dos gêneros feminino ou masculino não necessariamente se acoplarem a um corpo de homem ou de mulher. A partir daí, podemos pensar a identidade de gênero e a orientação sexual. A identidade de gênero se refere ao gênero Estudos de gênero nos textos em prosa2 com o qual a pessoa se identifica, que nem sempre corresponde ao seu sexo biológico ou aos padrões sociais a ele atribuídos. Quando a identificação não coincide com o sexo biológico, temos a categoria transgênero, e quando a identificação coincide com o sexo biológico temos a categoria cisgênero. Temos ainda a identidade não binária, quando a identificação não se dá apenas como puramente masculina ou feminina, mas pode ser neutra ou agênero, fluida, intergênero, poligênero, bigênero, etc. Já a orientação sexual diz respeito ao desejo e à atração física, romântica e sexual entre gêneros. Essas diferenças entre sexo e gênero variam histori- camente no tempo, como nas palavras de Louro (2003, p. 21): É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos. O debate vai se constituir, então, através de uma nova linguagem, na qual gênero será um conceito fundamental. As representações de gênero e convenções estéticas presentes nos textos literários se relacionam com valores e atitudes enraizadas em cada sociedade. As pessoas falam a partir de um lugar de enunciação, ou lugar de fala, que depende da sua própria vivência, regida pelo gênero, características étnico- -raciais e classe social. Uma leitura interessante e esclarecedora para a reflexão acerca dos discursos a partir da posição social de onde se fala é a obra Lugar de fala: feminismos plurais (2017), de Djamila Ribeiro. Na análise das obras literárias, a crítica que utiliza o gênero como cate- goria de análise oferece possibilidades de interpretação de textos ficcionais a partir da compreensão da sua produção e recepção, organizadas a partir de configurações de gênero. Além disso, o gênero também organiza o enredo e a construção dos personagens. Quando se faz uso da categoria gênero na 3Estudos de gênero nos textos em prosa análise literária, o texto adquire um significado político, pois é lido à luz de ações políticas relacionadas à ideologia e às relações de poder da sociedade. Adicionalmente, devemos lembrar que as convenções estéticas são produtos sociais e dizem muito sobre a época em que foram produzidas, tal qual a idealização dos índios retratados pela fase romântica da literatura brasileira. Cabe ressaltar que falamos aqui de utilizar gênero como categoria de análise quando se trata de uma produção que será examinada pela crítica feminista, pois a escolha da categoria gênero e não sexo, como seria comum há alguns anos — em que se analisava uma escritura feminina, contextos de produção autoral de mulheres, recepção do texto por mulheres — rejeita a imposição do determinismo biológico sobre “ser mulher” ou “ser homem”. O viés do gênero destaca o seu caráter de construto social e problematiza o “ser mulher” e a posição dessa mulher — seja ela branca, negra, de classe alta, média ou baixa, cis ou transgênero — na sociedade. Essa pluralidade é necessária para que se tenha uma noção mais precisa de lugares de fala e questões suscitadas pela obra literária. Tomando como exemplo o feminismo de segunda onda, em que as ideias de sororidade e universalidade são discutidas, principalmentenas décadas de 1960 e 1970, percebe-se como ainda não se leva em consideração, neste momento, que a pauta das mulheres brancas de classes média e alta não é a mesma das mulheres negras de periferias e comunidades, por exemplo. Gênero passa a ser então uma categoria de análise que permite “[...] fazer perguntas históricas, um convite a se pensar criticamente como os corpos sexuados são produzidos, implantados, modificados, e também como sobrevivem” (SCOTT, 2010, p. 9). A introdução do gênero como categoria de análise no debate acadêmico foi possível graças ao impacto ideológico do feminismo, que, de acordo com Felski (2003, p. 142), trouxe uma nova forma de ler e interpretar a literatura: As críticas feministas acreditam que a dimensão estética inclui tanto os temas quanto as formas, tanto os significados sociais quanto os anseios psíquicos. Elas são céticas em relação à visão de que a experiência estética possa ser completamente desinteressada, despida de qualquer referência ao mundo ou de fortes sensações prazerosas. Podemos apreciar na literatura o que não apreciaríamos na vida; a arte não é um mero espelho ou documento do mundo social. Ainda assim nossos gostos estéticos e inclinações não podem ser completamente separados de nossas vidas e interesses como seres sociais. As críticas feministas concordariam com a observação de que a experiência estética é inseparável da memória, do contexto, do significado, e também do que somos, onde estamos, e de tudo o que já aconteceu conosco. Estudos de gênero nos textos em prosa4 A citação de Felski chama a atenção para a recepção dos textos literários por leitores de diferentes gêneros, orientações sexuais, classes sociais, repertórios culturais e contextos, com percepções diferentes de como ser e estar no mundo. Essas considerações valem também para se refletir sobre a produção das escritoras, negligenciada por muito tempo pela crítica e historiografia, e para a representação de personagens na literatura, relacionada indiscutivelmente a questões históricas, sociais e culturais. Para saber mais sobre alguns pressupostos dos estudos de gênero e sexualidade, consulte o artigo “Prolegomena queer: gênero e sexualidade nos estudos literários” (2011), de Anselmo Peres Alós. 2 Estudos de gênero na interpretação de textos literários Os estudos de gênero repercutem na literatura por meio da crítica feminista e da teoria queer. A primeira refere-se às análises literárias que se ocupam de compreender as condições de vida das mulheres na sociedade, especialmente como leitoras e escritoras, assim como a construção de personagens e compo- sição temática de obras literárias. A segunda refl ete uma atitude que se observa no comportamento transgressivo que não se alinha à heteronormatividade e afi rma que a orientação e a identidade sexuais ou de gênero são construtos sociais, e que, por essa razão, não existem papeis sexuais essenciais, próprios da natureza humana, e sim formas socialmente variáveis de se desempenhar um ou vários papéis sexuais. Comecemos então a refletir sobre a crítica literária feminista, que se compõe de variadas propostas temáticas, ideológicas e metodológicas aplicadas ao estudo da literatura. Dentre todas as vertentes, temos um ponto em comum: não se pode pensar o texto literário desvinculado do seu contexto de produção e recepção. Essas leituras feministas se constituem a partir dos movimentos sociais feministas que tiveram lugar no Ocidente desde o fim do século XIX. Para fins de estudos, esses movimentos são classificados em três ondas: a primeira tem início no final do século XIX e segue até meados do século XX. A segunda tem início nos anos 1950, com o fim da Segunda Guerra 5Estudos de gênero nos textos em prosa Mundial, e tem como marco a publicação do livro O segundo sexo (1949), da intelectual francesa Simone de Beauvoir. Fortaleceu-se bastante nas décadas de 1960 e 1970 com os movimentos de direitos civis. A terceira onda surge a partir dos anos de 1990 com a pós-modernidade e a contestação dos discursos universalizantes sobre a mulher, trazendo à cena a teoria queer, os feminismos negros e uma pluralidade de sujeitos, com realidades diferentes, engajados em lutas contra o patriarcado e tendo o gênero como categoria. Sabemos que ações isoladas ou coletivas contra a opressão feminina ocor- reram em diversos momentos da história, mas, ao nos referirmos ao feminismo como reconhecido no Ocidente, o fazemos a partir do final do século XIX, com as manifestações que reivindicaram o direito ao voto, no chamado sufragismo, e maior participação na vida pública e política do Estado. Essa primeira fase buscava a igualdade de direitos políticos e da vida pública com os homens, como a oportunidade de estudos e o acesso a determinadas profissões. Des- tacamos aqui os ensaios da autora inglesa Virginia Woolf (1882–1841), dentre eles “Um teto todo seu” (“A room of one’s own”), publicado em 1929, que tecia considerações sobre as condições sociais da mulher e a influência dessas na produção literária feminina, tratada com indiferença pela crítica da época. Essa primeira onda, cujos interesses estavam ligados às questões das mulheres brancas de classe média, deixando de fora dessa pauta as mulheres negras das camadas populares, por exemplo, alcançou suas metas em alguns países, o que causou uma certa acomodação do movimento. Seu desdobramento na segunda onda ocorreu em meados do século XX, com o fim da guerra e a publicação do livro de Beauvoir, como mencionado anteriormente, ganhando força no final da década de 1960, com os movimentos de direitos civis, em que o feminismo, além de suas preocupações sociais e políticas, voltou-se para as construções teóricas. “No âmbito do debate que a partir de então se trava, entre estudiosas e militantes, de um lado, e seus críticos ou suas críticas, de outro, será engendrado e problematizado o conceito de gênero” (LOURO, 2003, p. 22). Nesse momento de efervescência social e política, o movimento feminista se expressa por meio de grupos de conscientização, marchas e protestos, e também via livros, jornais e revistas. Militantes feministas que transitavam no mundo acadêmico levaram para o interior das universidades e das escolas questões que as mobilizavam. Dessas leituras e discussões surgem os estudos da mulher, tornando visível a segregação social e política a que as mulheres foram historicamente submetidas. Leituras de textos literários canônicos de autores homens identificavam estereótipos sexuais e provocavam reflexões enriquecedoras sobre a representação da mulher e sua associação a aspectos Estudos de gênero nos textos em prosa6 históricos, sociais e culturais. Posteriormente, os estudos se voltaram para as obras de escritoras e sua expressão criativa, moldadas pela condição da mulher na sociedade, marginalizada por séculos. Nessa segunda onda do feminismo, a palavra de ordem era sisterhood, ou sororidade, e buscava a universalidade de direitos, o que também não contemplava as diferentes realidades e categorias que se encaixavam na categoria “mulher”. A terceira onda do feminismo, surgida nos anos de 1990, é marcada pela questão do gênero para as discussões que se seguem. O livro Problemas de gênero, de Judith Butler, publicado originalmente em 1990, foi um marco para o movimento, embora contrariasse alguns dogmas ao questionar a distinção sexo/gênero e: [...] problematizar a razão de o sujeito do feminismo ser ‘as mulheres’. Butler apontava para a chamada ‘heterossexualidade compulsória’ imposta pelas instâncias de poder, ou seja, pelo discurso hegemônico. Dessa forma, ela vi- sava abrir caminho para uma construção variável de identidade, que incluiria não só as lésbicas, como também transexuais e intersexuais. Ela sinalizava, assim, o caráter construído de todas as identidades (FIGUEIREDO, 2018, documento on-line). A distinção entre sexo e gênero é de fundamental importância para essa fasedo movimento, que também abarca as questões relativas à pós-modernidade, à globalização, à contestação dos discursos totalizantes. O mundo fragmentado, incerto, com identidades deslocadas e fluidas é o cenário que se apresenta para que se recoloque o debate do gênero no campo do social, onde se cons- troem e reproduzem as relações desiguais entre os sujeitos. As desigualdades deveriam ser buscadas na história, no acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representação. Aqui os conceitos de sororidade e de universalidade se atomizam e individualizam em liberdade de escolhas, interseccionalidades (gênero, aspectos étnico-raciais, classe social) e politicas transversais. A pretensão aqui é entender o gênero como constituinte da identidade dos sujeitos, o que é complexo, pois os sujeitos têm identidades plurais, múltiplas, que se transformam, e não são fixas ou permanentes. “Assim, o sentido de pertencimento a diferentes grupos — étnicos, sexuais, de classe, gênero, etc. — constitui o sujeito e pode levá-lo a se perceber como se fosse empurrado em diferentes direções” (HALL 1992, p. 4 apud LOURO, 2003, p. 25). Ou seja, para além de estar no âmbito dos papéis e convenções sociais, o gênero também constitui o sujeito, faz parte dele. A teoria queer e os estudos queer se concentram nos processos de catego- rização sexual e na sua desconstrução, e se alinham à proposta foucaultiana 7Estudos de gênero nos textos em prosa de que o sexo é uma categoria a ser historicizada, para que se compreenda a sua regulação nas sociedades modernas. A análise queer é coerente com a proposta foucaultiana, sobretudo, na afirmação: Não se deve fazer divisão binária entre o que se diz e o que não se diz; é preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são distribuídos os que podem e os que não podem falar, que tipo de discurso é autorizado ou que forma de discrição é exigida a uns e outros. Não existe um só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apoiam e atravessam os discursos (FOUCAULT, 2005, p. 30). Deve-se então atentar para as conexões entre o poder e o saber, e as varia- ções que as relações de poder apresentam nos diferentes contextos das esferas sociais. Cada sociedade define o que é sexual ou não, e avalia o que é aceito ou rejeitado a partir dos critérios da sua estrutura de poder. Ao analisarmos obras literárias sob uma perspectiva queer, podemos compreender como emergiu a ordem social presente, ou seja, como se deu o processo de naturalização e de normatização de comportamentos e discursos e que o artista registra o processo social que deu origem à sua expressão artística. Assim, essa perspectiva permite analisar como a literatura retrata e é parte de uma experiência histórica. Conforme Louro (2003), os discursos de gênero englobam também questões sobre a sexualidade. As identidades sexuais se constituiriam, pois, pelas formas como se vive a sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos também se identificam, social e historicamente, como masculinos ou femininos (sendo cis ou transgênero), ou como gênero não binário, e assim constroem suas identidades de gênero. Ora, é evidente que essas identidades (sexuais e de gênero) estão profundamente inter-relacionadas; nossa linguagem e nossas práticas muito frequentemente as confundem, tornando difícil pensá-las distintivamente. No entanto, elas não são a mesma coisa. Sujeitos masculinos, femininos ou de gênero não binário podem ser heterossexuais, homos- sexuais, bissexuais, pansexuais ou assexuados (e, ao mesmo tempo, também podem ser negros, brancos, ou índios, ricos ou pobres, etc.). O que importa aqui considerar é que — tanto na dinâmica do gênero quanto na dinâmica da sexualidade — as identidades são sempre construídas, pois não são dadas ou acabadas num determinado momento. Não é possível fixar um momento — seja o nascimento, a adolescência ou a maturidade — que possa ser tomado como aquele em que a orientação sexual e/ou a identidade de gênero seja “assentada” ou estabelecida. As identidades estão sempre se constituindo, são instáveis e, portanto, passíveis de transformação. Estudos de gênero nos textos em prosa8 3 Narrativas literárias que envolvem gênero e sexualidade Analisar um texto literário usando os estudos de gênero, como já mencionamos nas seções anteriores, é sempre possível, mas alguns textos são mais alinhados a essa proposta, pois trazem em si representações de gênero que despertam refl exões e questionamentos logo à primeira vista. Vejamos alguns exemplos, para ilustrarmos do que se trata. No romance brasileiro Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, a personagem Diadorim, cujo nome de batismo é Maria Deodorina, assume uma aparência masculina para poder explorar o sertão. Para isso, adota o nome de Reinaldo, já que sua condição de mulher não permitia que ela se dedicasse àquela atividade. Em trajes masculinos, Diadorim conhece Riobaldo, o narrador do romance, e por ele se apaixona, amor que é visto como homossexual, e, portanto, proi- bido. Embora renegasse Diadorim no início, o narrador explica que quando Diadorim se ausentou sentiu muita falta dele, e que, quando o jagunço voltou, Riobaldo reconheceu o seu amor. Ao ver a alegria de Diadorim diante da chegada de Joca Ramiro, Riobaldo sente ciúmes, por não saber que se tratava do pai do amado: “[...] eu vinha tanto tempo me relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se pertence gostar; e, agora àquela hora, eu não apurava vergonha de se me entender um ciúme amargoso” (ROSA, 1976, p. 26) A homossexualidade permeia todo o romance, e, em certa cena, o personagem Hermógenes se insinua para Riobaldo na ausência de Diadorim. Diadorim é um jagunço como os outros companheiros. Grande guerreiro, mata e se arrisca a morrer sem medo. Ao final do romance, seu segredo é revelado. Após a morte, Riobaldo descobre, ao ver o cadáver de Diadorim, que seria lavado, que se tratava de uma mulher, virgem. Uma abordagem a partir do gênero permite algumas reflexões. Em pri- meiro lugar, temos que a sociedade brasileira machista de meados da década de 1950 poderia rejeitar a obra se a homossexualidade se tornasse explícita. Guimarães Rosa preferiu fugir da indeterminação e da dúvida em relação ao personagem; no entanto, o tema da homossexualidade se apresenta na relação entre Riobaldo e Diadorim, quando o primeiro conta que o amigo o encantou, e que ele gostava mais do jagunço a cada dia. Mesmo sabendo da verdadeira identidade de Diadorim, Riobaldo o apresenta como jagunço, guerreiro e corajoso, e a identidade de mulher não se constitui explicitamente na narrativa. Entretanto, Riobaldo comenta certas sutilezas de Diadorim na 9Estudos de gênero nos textos em prosa forma de agir e de entender o mundo, que trazem certa indefinição quanto à sua identidade, motivada pelas atitudes e pelo comportamento esperado de homens e mulheres naquele momento histórico. O drama que se impõe no romance é a impossibilidade de aceitação do amor entre dois homens naquela sociedade. Riobaldo tem uma esposa e uma amante, que “atestam” sua heterossexualidade, e é essa confusão de desejos que problematiza as categorias de gênero e de sexualidade como estáveis. A expressão do amor e do desejo enfrenta interdições na trama, o que amplia a intensidade dramática da revelação final, que vem, de certa forma, restaurar a ordem vigente, como se Riobaldo pudesse perceber, para além das aparências, a identidade de Diadorim. Comentemos agora um texto de autoria feminina, da escritora inglesa Virginia Woolf, Orlando: uma biografia (1928). Nessa obra, Woolf conta a história de Orlando, rapaz de 16 anos que tentava ser poeta na época elisabe- tana, no fim do século XVI, e cuja história termina apenas em 11 de outubro de 1928, com o protagonista como uma mulher madura.Dedicado a Vita Sackville-West, por quem a escritora esteve apaixonada, o livro retrata um protagonista sexualmente mutante ao longo de quatro séculos. O romance tem seis capítulos, numa narrativa em ordem cronológica, em que o narrador reconstrói a vida de Orlando. Como pano de fundo, temos a história literária inglesa e eventos históricos da Inglaterra. No início da narrativa, Orlando tem as atitudes esperadas de um comporta- mento masculino da época e se envolve com algumas mulheres, apesar de seu gosto pela poesia e pela solidão. Se apaixona pela princesa russa Sasha, que o abandona. Ao longo da narrativa, a personagem passa por alguns transes, quando cai em sono profundo durante dias e, ao acordar, age como se nada de estranho tivesse acontecido. Em um desses transes, no terceiro capitulo, acorda mulher no século XIX, e percebe a condição feminina: “Somente quando sentiu a saia enrolando em suas pernas e o capitão oferecendo-se com grande polidez para mandar armar-lhe um toldo no convés, que ela percebeu, sobressaltada, as desvantagens e os privilégios de sua posição” (WOOLF, 1972, p. 109). Seu corpo, agora de mulher, sabe o que é ser homem, sendo possível com- parar as duas condições. A mudança, em um primeiro momento, parece não perturbar Orlando: Orlando tinha se transformado numa mulher — não há como negar. Mas em todos os outros aspectos, Orlando permanecia exatamente como era antes. A mudança de sexo, embora alterando seu futuro, nada fizera para alterar sua identidade. Seu rosto permanecia, como provam os retratos, praticamente Estudos de gênero nos textos em prosa10 o mesmo. [...] A mudança parecia ter sido produzida completamente e sem sofrimentos, e de tal maneira que o próprio Orlando não demonstrava surpresa com ela. Muita gente, considerando isso, e sustentando que uma mudança de sexo é contra a natureza, esforçou-se para provar que (1) Orlando sempre tinha sido mulher, (2) Orlando é, neste momento, homem. Deixemos biólogos e psicólogos decidirem. Para nós é suficiente constatar o simples fato: Or- lando foi homem até os trinta anos; nessa ocasião tornou-se mulher e assim permaneceu daí por diante (WOOLF, 1972, p. 99–100). Na voz do biógrafo e da personagem aparecem qualidades e deveres típicos de cada gênero, além da diferença cultural entre homens e mulheres. Orlando percebe que a vida pública da política e dos negócios estavam restritas aos homens, enquanto as mulheres tinham as responsabilidades da vida doméstica. No século XX, Orlando tem um novo amor, um homem, com quem se casa, de quem engravida, tem um filho, e, abandonando as regras sociais impostas às mulheres nos anos de 1920, resolve se dedicar à poesia. Sente-se plena com a escolha. Ao finalizar o poema vê o marido, que passara um longo tempo no mar, retornar. A problematização das identidades sexuais e de gênero estão presentes por todo o livro, e a androginia desestabiliza as categorias de masculino e feminino. Woolf refuta o discurso essencialista e antecipa o conceito de fluidez das identidades. Essas questões abrem caminho para a desnaturalização e consequente prova de que as identidades e os gêneros são construções sociais e culturais. ALÓS, A. P. Prolegomena queer: gênero e sexualidade nos estudos literários. Cadernos de Letras da UFF, v. 42, p. 199–217, 2011. http://www.cadernosdeletras.uff.br/joomla/ images/stories/edicoes/42/cotidiano3.pdf. Acesso em: 10 jul. 2020. BUTLER, J. 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