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A lida com a morte na era da técnica - morte ou mamba

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
Centro de Educação e Humanidades 
Instituto de Psicologia 
 
 
 
 
Priscila de Barcellos Adler Teixeira 
 
 
 
 
A Lida com a Morte na era da Técnica: Morte ou Mamba? 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2014 
 
 
 
PRISCILA DE BARCELLOS ADLER TEIXEIRA 
 
 
 
A Lida com a Morte na era da Técnica: Morte ou Mamba? 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada como requisito 
parcial para obtenção do titulo de Mestre, ao 
Programa de Pós Graduação Psicologia 
Social da Universidade do Estado do Rio de 
Janeiro. 
 
 
 
 
 
Orientadora: Prof. Dr. Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2014 
 
 
 
 
 
 
 
CATALOGAÇÃO NA FONTE 
 UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A 
 
 
 
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou 
parcial desta dissertação, desde que citada a fonte. 
 
 
___________________________________ _______________ 
 Assinatura Data 
 
T266 Teixeira, Priscila de Barcellos Adler. 
 A Lida com a Morte na era da Técnica: Morte ou Mamba? / Priscila de 
Barcellos Adler Teixeira. – 2013. 
 84 f. 
 
 Orientadora: Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo. 
 Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 
Instituto de Psicologia. 
 
 
 1. Morte – Teses. 2. Psicologia – História –Teses. 3. Heidegger, 
Martin, 1889-1976– Teses. I. Feijoo, Ana Maria Lopez Calvo de. II. 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. 
Título. 
 
 es CDU 159.9(091)::2-264(38) 
 
 
 
 
Priscila de Barcellos Adler Teixeira 
 
 
 
A Lida com a Morte na era da Técnica: Morte ou Mamba? 
 
 
Dissertação apresentada como requisito parcial 
para obtenção do titulo de Mestre, ao Programa 
de Pós Graduação Psicologia Social da 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 
 
 
 
Aprovado em 17 de março de 2014 
 
Orientadora: 
_____________________________________________ 
Profª. Dra. Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 
Instituto de Psicologia - UERJ 
 
Banca Examinadora: 
 
 
_________________________________________ 
Prof. Dr. Cristine Monteiro Mattar 
Instituto de Psicologia – UFF 
 
_____________________________________________ 
Prof. Dr. Alexandre Marques Cabral 
Instituto de Filosofia – UERJ 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2014
 
 
 
DEDICATÓRIA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para meu pai, Alexandre Adler Pereira (In Memorian), com infinito amor. 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 
A Deus, por me guiar, iluminar e proteger, a cada passo. 
À minha orientadora Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo, por ter acreditado 
neste projeto e pela disponibilidade de compartilhar seus conhecimentos. 
À banca examinadora, Alexandre Marques Cabral, Cristine Monteiro Mattar e 
Joelson Tavares Rodrigues, por terem aceito o convite para participar deste trabalho, 
por suas valiosíssimas contribuições e gentileza. 
À minha mãe, Maria Lucia de Barcellos Pereira, por ter me ensinado a ser 
firme e persistente na busca pelos meus sonhos e por todo seu amor e dedicação ao 
longo da minha vida. 
Ao meu esposo Daniel dos Santos Teixeira, por fazer meus dias muito mais 
felizes. 
 
 
 
 
RESUMO 
 
 
TEIXEIRA, Priscila de Barcellos Adler. A lida com a morte na era da técnica: morte 
ou mamba?. 2014. 84f. Dissertação. (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de 
Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. 
 
 
O objetivo deste trabalho é trazer à discussão o modo quase hegemônico 
como o homem na modernidade, lançando mão dos inúmeros avanços tecnológicos 
conquistados pela ciência, lida com o anúncio da morte, de modo a adiá-la a 
qualquer preço, sob a máxima de que a vida deve ser prolongada, mesmo à custa 
de todo e qualquer sofrimento. Heidegger, em sua obra Ser e Tempo, esclarece o 
modo como o homem na cotidianidade mediana lida com a morte. O homem se 
movimenta na nossa época, denominada por Heidegger de era da técnica, era esta 
em que, segundo o filósofo, o mundo é desvelado como fundo de reservas por meio 
da máxima do controle dos entes e da existência. A morte, tal como compreendida 
na cotidianidade mediana, passa a ser um fenômeno passível de adiamento, sobre o 
qual podemos ter controle e que, ao modo impessoal, encontra-se sempre referida à 
morte do outro. Ao tomar o fenômeno da morte ao modo do impessoal, Heidegger 
acena que acabamos por obscurecer aquilo que lhe é mais próprio, ou seja, seu 
caráter irremissível, certo, indeterminado e insuperável. Buscaremos a concepção do 
autor sobre a morte como indissociável da existência e discutiremos como, na 
maioria das vezes, o homem movimenta-se no horizonte da técnica em meio à 
impessoalidade, lidando com a morte de modo impróprio e encobrindo essa 
possibilidade. Para tanto, iremos apresentar como a lida com a morte, na 
modernidade, encontra-se mediada pelos saberes especializados, a partir dos quais 
se procura combater, gerenciar e controlar este fenômeno. Apontaremos alguns 
dilemas que confrontaram a medicina e a sociedade diante dessa tentativa e 
buscaremos compreender como estes saberes foram construídos historicamente. 
Para desvelar outras possibilidades de lida com a morte, buscaremos na Grécia 
antiga, através da análise de mitos, o modo como o grego do ciclo épico lidava com 
este fenômeno. Retornando ao homem grego do ciclo épico, mostraremos que as 
verdades sobre a lida com a morte, que se estabeleceram como absolutas no 
mundo atual, podem ser colocadas em questão e apontaremos a pertinência de 
pensarmos a morte para além da lógica de modelos atuais que buscam gerenciar 
este fenômeno. Recorreremos, finalmente, ao texto Serenidade, de Heidegger, para 
examinar o pensamento do homem moderno e refletir sobre as suas incessantes 
investidas na busca pelo controle e pelo gerenciamento da morte. Através do 
pensamento reflexivo, proposto pelo autor, acreditamos que se desvelam outras 
possibilidades de lida com a morte, antes obscurecidas por verdades tomadas como 
absolutas, e, deste modo, torna-se possível conquistar uma relação mais livre com 
este fenômeno. 
 
 
Palavras-chave: Era da técnica. Morte. Mundo grego. Serenidade. 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 
TEIXEIRA, Priscila de Barcellos Adler. Dealing with death in the age of technique: 
death or mamba? . 2014. 84f. Dissertação. (Mestrado em Psicologia Social) – 
Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 
2014. 
 
 
The objective of this work is to discuss about the almost hegemonic way that 
man in modernity deals with the announcement of the death, making use of 
numerous technological advances made by science for postponing it at any price, 
under the maxim that life should be prolonged, even at the expense of any suffering. 
Heidegger, in his work Being and Time, clarifies how the man deals with death. The 
man moves in the age we live in, called by Heidegger Age of technique, age in 
which, according to the philosopher, the world is unveiled as fund reserve through 
the maxim of control over beings and existence. As understood in our everyday lives, 
death becomes a phenomenon liable to postponement, over which we have control 
and, using an impersonal manner, we always refer to other’s people death. By taking 
the phenomenon of death in an impersonal manner, Heidegger shows we had just 
obscured what is most proper to it: its inevitable, fateful, indeterminate and 
insuperable character. We will use the author's conception of death as inseparable 
from the existence and discuss how, in most cases, the man moves on the horizon of 
the technique through the impersonality, dealing with death improperly, covering up 
this possibility.To this end, we will present how dealing with death in modernity is 
mediated by specialized knowledge, from which we seek to combat, manage and 
control this phenomenon. We will identify some dilemmas that confronted medicine 
and society in its tentative. Then we will seek to understand how this knowledge was 
historically constructed. To unveil other possibilities for dealing with death, we will 
seek in ancient Greece, through the analysis of myths, how the Greek man of the 
epic cycle dealt with this phenomenon. Returning to the Greek man of the epic cycle, 
we will show that the truths about dealing with death, which were settled as absolute 
in the present world can be called into question and we will point out the relevance of 
thinking about death beyond the logic of current models which seek to manage this 
phenomenon. We will resort to Heidegger’s text Serenity to examine modern thinking 
and reflect on its incessant rush in search, control and management of death. 
Through reflective thought, proposed by the author, we believe that other possibilities 
for dealing with death are unveiled, previously obscured by absolute truths, and thus 
it becomes possible to achieve a more free relationship with this phenomenon. 
 
 
Keywords: Age of technique. Death. Greek world. Serenity. 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
 INTRODUÇÃO …………………………………………………………. 08 
1 HEIDEGGER: TÉCNICA, VERDADE E FINITUDE ......................... 14 
1.1 Modernidade e Técnica .................................................................. 15 
1.2 A Essência da Verdade em Heidegger ......................................... 23 
1.3 Da-sein, Angústia e Ser-para-a-morte .......................................... 29 
2 A LIDA COM A MORTE NA MODERNIDADE ................................ 35 
2.1 A lida com a Morte no Mundo Moderno ....................................... 36 
2.2 Dilemas Diante da Tentativa de Gerenciamento da Morte .......... 40 
2.3 Bases Fundamentais da Medicina e da Bioética ......................... 46 
2.4 Olhar clínico e verdades médicas: contribuições de Foucault .. 53 
3 A LIDA COM A MORTE NO MUNDO GREGO ............................... 57 
3.1 O homem grego e as prescrições délficas .................................. 58 
3.2 A morte no horizonte de sentido grego ........................................ 60 
3.3 A morte e o destino ........................................................................ 63 
3.4 A lida com a morte por meio da honra e da glória ...................... 67 
4 SERENIDADE E A LIDA COM A MORTE ....................................... 71 
 REFERÊNCIAS ................................................................................ 79 
 
 
8 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
 
Em 1990, o médico intensivista John Hansen (1990) publicou um artigo no 
Washington Post, intitulado Escolhendo Morte ou Mamba em UTI: Onde Há Vida Há 
Esperança, Isso Não É Necessariamente Verdade. Nesse artigo, o médico, motivado 
pela observação de inúmeras internações de pacientes em unidades de tratamento 
intensivo (UTIs), promove a discussão sobre a distanásia, utilizando uma história 
ilustrativa. 
De acordo com Hansen (1990), mamba é o nome dado a uma serpente 
africana peçonhenta cuja picada gera grande sofrimento e é seguida da morte, 
quase certa. Ele conta que três missionários foram aprisionados por uma tribo de 
canibais. O chefe da tribo ofereceu a eles a seguinte escolha: morte ou mamba? 
Dois destes missionários, sem saber do que se tratava e acreditando que qualquer 
opção seria melhor do que a morte, optaram apressadamente por mamba. Assim, o 
chefe da tribo os expôs à serpente, cujo nome era mamba, que os picou provocando 
uma longa e intensa agonia e, somente depois de um longo tempo, veio a morte. O 
terceiro missionário, testemunhando o sofrimento dos amigos, optou pela morte, ao 
que o chefe respondeu que ele teria a morte, mas antes experimentaria um pouco 
do veneno de mamba. 
A história contada por Dr. Hansen, de modo metafórico, pode ser alusiva à 
forma como, muitas vezes, o homem experimenta a morte na modernidade, seja 
porque ele mesmo opta por mamba ou porque é dessa forma que as determinações 
do mundo moderno1, que Heidegger denominou de era da técnica, encaminham 
essa questão. Ocorre que o projeto de prolongamento da vida é oferecido quando a 
pessoa procura cuidados médicos. Na perspectiva moderna predomina a máxima de 
enquanto há vida há esperança, como uma verdade necessária e imprescindível, da 
qual compartilham tanto os profissionais de saúde, quanto aquele que se encontra 
doente e seus familiares. Cabe ressaltar que, nesse caso, escolher o prolongamento 
só é possível mediante o avanço da tecnologia e das ciências, que trouxeram uma 
gama de possibilidades de prolongamento da vida e, ao olhar do médico que tornou-
se cada vez mais especializado e objetivo, diagnosticando com precisão cada vez 
 
1Em Heidegger, Modernidade é concebida em seu caráter epocal, isto é, em seu vínculo essencial 
com a ciência e a técnica. 
9 
 
 
maior as patologias. 
Deste modo, diante das múltiplas possibilidades de utilização dos recursos 
tecnológicos que estão ao seu dispor no mundo moderno, através da ciência e da 
medicina, o homem encontra a alternativa de optar por intervenções que prometem 
conquistar o domínio da morte e prolongar a vida. Porém, conforme explicitado por 
Hansen (1990), a escolha pelo prolongamento da vida, muitas vezes, pode recair na 
experiência de mamba, ou seja, a opção por manter a vida a qualquer preço, pode 
acabar por desconsiderar totalmente o prolongamento do sofrimento que daí pode 
advir. Estaria o homem, ao escolher indiscriminadamente pelo prolongamento da 
vida, alheio à possibilidade de sofrimento e, do mesmo modo que os personagens 
da metáfora de Hansen, ignoraram a diferença entre morte e mamba? E, ainda, 
acreditando que qualquer coisa é melhor do que a morte, escolhem a mamba? 
Como ocorre esse encaminhamento em direção à manutenção da vida a qualquer 
preço, compartilhada por médicos e pacientes, por meio de orientações de verdade 
sedimentadas do mundo moderno? E afinal, é possível escapar de mamba, ou seja, 
pode o homem escolher não utilizar-se de procedimentos que prolongam a vida? 
Para responder às questões propostas, travaremos um diálogo com o 
filósofo da existência Martin Heidegger, que tenta de alguma forma alertar o homem 
para as determinações presentes em nossa época que, muitas vezes, levam-no a 
esquecer-se de suas possibilidades. Estaria o homem de nossa época adormecido 
para outras possibilidades obscurecidas pelas orientações sedimentadas no nosso 
mundo com relação a que se deve prolongar a vida? Com relação à morte, seria 
uma verdade estabelecida a lida com a morte através da tentativa de prolongamento 
da vida a qualquer preço? Estaria tal verdade pautada na concepção, discutida por 
Heidegger (2012), de que o próprio homem torna-se recurso disponível na 
modernidade? 
Para responder às questões propostas, vamos primeiramente retomar a 
provocação de Hansen (1990). A metáfora sobre a mamba é proposta pelo autor 
para nos convocar a pensar sobre os casos de distanásia. Trata-se de um fenômeno 
de prolongamento da vida acompanhado do intenso sofrimento, que na modernidade 
passou a ocorrer com maior frequência entre pacientes internados em terapia 
intensiva. Assim, Hansen, em uma comunicação indireta, nos convoca a não tomar 
esse procedimento como uma verdade estabelecida e inquestionável. O fenômeno 
10 
 
 
da distanásia é um dos desfechos possíveis que ocorre quando o homem chega a 
extremos na busca pelo controle sobre a morte, no entanto, não é o único e absoluto 
desfecho. A tentativa de prolongar a vida a todo custo não ocorre somente nos 
casos de internação em unidades de terapia intensiva, já que, na modernidade, 
somos interpelados a todo momento pela escolha entre morteou mamba, na 
esperança de prolongar a vida e afastar a morte. A investida em gerenciar a vida e 
adiar a morte ocorre quando o homem busca manter e prolongar a vida de modo 
artificial nas UTIs, mas também quando recorre a dietas, medicamentos e 
intervenções para potencializar as funções corporais, quando persegue a cura de 
doenças e utiliza fórmulas e tratamentos que prometem eternizar a juventude. 
O homem na modernidade, esteja ele ocupando o lugar de médico ou de 
paciente, encontra-se imerso num horizonte de sentidos no qual o controle da morte 
deve ser conquistado a cada instante e de que a busca por este controle deve ser 
radicalizada se necessário. Esta ideia não é exclusiva da medicina e nem dos 
médicos, estando presente em outros campos nos quais o homem transita. A 
nutrição, a farmacologia, a biologia e a educação física são algumas das 
especialidades que também foram convocadas a participar do projeto moderno de 
prolongar a vida ao máximo. Escolhemos aqui tratar especificamente da medicina e 
do saber médico por acreditar que a lida com a morte no mundo moderno, em última 
instância, foi delegada a esta especialidade, na esperança de que esta poderia 
gerenciá-la com eficiência, conquistando finalmente seu controle. 
Diante dos avanços das ciências e do saber médico, abriu-se para o homem a 
possibilidade de buscar conquistar o controle da morte e imaginou-se que poderia 
encontrar alívio para os sofrimentos que a acompanham. Entretanto, descobriu-se 
que as possibilidades oferecidas pela ciência moderna não aplacam a angústia de 
saber-se mortal, e, além disso, essas mesmas possibilidades confrontam o homem 
moderno com a chance de prolongar e potencializar seu sofrimento. 
Partindo da ideia de Heidegger (2012) de que a questão da técnica moderna 
não pode ser reduzida à medicina ou a quaisquer ciências aplicadas, pois a própria 
ciência moderna nasceu da vocação tecnológica da modernidade, procuraremos 
refletir para além de modelos históricos ou críticos, buscando alcançar também uma 
visão ontológica da técnica. Não temos a pretensão de avaliar se o modelo vigente, 
que ocorre hegemonicamente sob o saber médico-científico, está correto ou 
11 
 
 
equivocado, nem mesmo de apontar saídas ou soluções para a lida com a morte na 
modernidade. A nossa proposta consiste em pensar, de forma crítico-desconstrutiva, 
a lida com a morte na modernidade, através das visões sedimentadas da técnica e 
vislumbrar outras possibilidades além das perspectivas biológicas ou das soluções 
apontadas pela bioética. 
O objetivo deste trabalho é trazer à discussão o modo quase hegemônico 
como o homem na modernidade lida com o anúncio da morte, de modo a adiá-la a 
qualquer preço, sob a máxima de que a vida deve ser prolongada, mesmo que à 
custa de todo e qualquer sofrimento. Nessa dinâmica, o prolongamento da vida 
passa a ser tomado como a única e radical verdade da existência humana, não 
havendo espaço para se pensar que a negativa ao seu prolongamento possa 
despertar como uma possibilidade. 
Heidegger (2013), em Ser e Tempo, esclarece o modo como o homem refere-
se à morte na medianidade cotidiana. A morte, tal como compreendida na 
impessoalidade, passa a ser um fenômeno passível de adiamento, sobre o qual 
podemos ter controle, e sempre referido à morte do outro. Ao tomar o fenômeno da 
morte ao modo do impessoal, acabamos por obscurecer aquilo que lhe é mais 
próprio, ou seja, seu caráter irremissível, certo, indeterminado e insuperável. Frente 
a essas considerações, cabe também questionar: que verdades constituídas na era 
da técnica sustentam esse modo de lida com a morte que busca controlá-la e adiá-
la? Essas verdades que postulam que a morte é um fenômeno que deve ser 
gerenciado e afastado ao máximo, são universais e inquestionáveis? Existem outras 
possibilidades de lida com a morte que sejam diferentes das estabelecidas pelo 
homem no mundo moderno que postulam a morte como falha ou insuficiência da 
medicina? Como se mantém a verdade de que a morte é algo cujo controle deve ser 
conquistado? 
Para alcançar esses objetivos, buscaremos fundamentos na ontologia 
hermenêutica de Martin Heidegger: na discussão sobre a técnica e sua essência, 
encontrada em Ensaios e Conferências (2012), mais especificamente, no capítulo 
intitulado a Questão da Técnica (2012); sobre a questão da verdade em suas 
diversas acepções, desenvolvidas em diferentes obras do filósofo (Introdução à 
Filosofia, 2009; Carta sobre o Humanismo, 2010; Ser e Tempo, 2011; Ensaios e 
Conferências, 2012); e acerca da finitude da existência, que em Ser e Tempo 
12 
 
 
(2011), encontra-se sob a denominação de ser-para-a-morte. Por esse caminho, 
pretendemos desvelar outras possibilidades de lida com a morte, além daquelas 
hegemonicamente marcadas por um tempo, que Heidegger denominou a era da 
técnica. 
Para alcançar o objetivo proposto, de refletir acerca do modo hegemônico de 
lida com a morte na era da técnica, através da tentativa de controle da morte e 
prolongamento da vida, seguiremos as seguintes etapas. No primeiro capítulo, 
recorreremos ao sociólogo Zigmunt Bauman para pensar sobre o modo como o 
homem se movimenta na modernidade e sobre como a verdade se desvela neste 
momento histórico. Em seguida, por meio do estudo das diferentes concepções de 
verdade investigadas por Heidegger, tentaremos identificar que concepção de 
verdade sustenta as referências da modernidade. Com isso, procuraremos 
esclarecer como o homem se movimenta nesta época que Heidegger chama de era 
da técnica, na qual busca estabelecer o controle sobre os entes e sobre a existência. 
A seguir procuraremos esclarecer a concepção do autor sobre a morte como 
indissociável da existência e discutiremos como, na maioria das vezes, o Da-sein 
movimenta-se no cotidiano em meio à impessoalidade, lidando com a morte de 
modo impróprio e encobrindo essa possibilidade. 
No segundo capítulo, iremos apresentar como a lida com a morte aparece na 
modernidade, mediada pelos saberes especializados que procuram combater, 
gerenciar e controlar este fenômeno e apontaremos alguns dilemas que 
confrontaram o homem moderno e o saber médico diante dessa tentativa. Na 
sequência, examinaremos as bases fundamentais da medicina e da bioética e 
utilizaremos a arqueologia do saber médico de Michel Foucault (2011) para 
compreender, a partir de sua reconstrução genealógica, como estes saberes foram 
construídos. 
No terceiro capítulo, vamos buscar como a lida com a morte ocorria na Grécia 
antiga, onde o mundo se articulava por meio de determinações não cristãs, e 
esclarecer o modo como o homem grego lidava com este fenômeno. Valendo-nos da 
comparação entre o modo que o homem grego e o homem contemporâneo lidam 
com a morte, concluímos que as verdades sobre a lida com a morte, que se 
estabeleceram como absolutas no mundo moderno, podem ser facilmente colocadas 
em questão. 
13 
 
 
Assim, apontaremos a pertinência de pensarmos a lida com a morte para 
além da lógica dos modelos atuais, que buscam gerenciar este fenômeno em meio 
ao poder conquistado pelas concepções de verdade e certeza e também da técnica 
como intervenção eficaz. Acreditamos que deste modo é possível alcançar uma 
relação mais livre com a técnica. Por meio do diálogo com o filósofo Martin 
Heidegger, pensamos que podem se desvelar outras possibilidades de lida com a 
morte, antes obscurecidas por verdades tomadas como absolutas. 
Acreditamos que este estudo seja relevante para a Psicologia uma vez que 
este pode trazer elementos de reflexão que contribuem para desobscurecer outras 
formas de interpretação de lidar com a morte do homem ocidental no mundo 
moderno. Assim, é possível desvelar outras possibilidades de interpretação sobre a 
morte, além dos modelos hegemonicamente propostos. 
14 
 
 
 
1. HEIDEGGER: TÉCNICA, VERDADE E FINITUDE 
 
 
Heidegger(2012), como foi falado anteriormente, refere-se ao mundo 
moderno como a era da técnica. Essa afirmativa muitas vezes é interpretada de uma 
forma diferente daquela intencionada pelo autor, de maneira que usualmente 
entende-se que a era da técnica e da ciência é uma época em que ocorrem muitos 
avanços e descobertas científicas e na qual a existência humana é cercada por 
máquinas e recursos tecnológicos. 
O que Heidegger (2012) parece notar vai além dos instrumentos da técnica, 
sejam eles criados pela indústria têxtil, pela farmacêutica, pela cibernética ou pela 
medicina. O que o autor deseja ressaltar é que os avanços e dilemas com os quais o 
homem moderno vem se deparando só existem neste momento histórico que é o 
nosso, no qual a ciência e a tecnologia norteiam os pensamentos e condutas no 
cotidiano. 
Heidegger (2012) não se refere à técnica em seu caráter instrumental, o que o 
autor visa discutir é de que maneira o mundo passa a se desvelar na modernidade, 
através das verdades postuladas pela técnica e pela ciência. A técnica seria, então, 
um modo de desvelamento dos entes e não um simples meio. Nessa perspectiva, 
surge uma questão totalmente nova para pensar a questão da técnica: a essência 
da técnica passa a ser considerada como modo de desencobrimento da verdade no 
horizonte de sentido contemporâneo. 
Assim, para Heidegger (2012), se a modernidade é a era da técnica, na qual a 
ciência determina hegemonicamente os sentidos, é porque atualmente é na ciência 
que se encontra a determinação do que é ou do que não é real. Neste horizonte, o 
que determina a verdade do ser é a ciência, através da verificação e da 
comprovação. Portanto, é por meio das verdades postuladas pela técnica e pela 
ciência que experimentamos o ser dos entes e posicionamos a verdade. Mas afinal, 
de que forma a verdade se desvela na era da técnica? Acreditamos que ao buscar 
responder esta pergunta, através das contribuições de Heidegger sobre o Da-sein, a 
verdade e a existência na era da técnica, o modo como a morte se desvela neste 
horizonte de sentido também se esclarecerá. 
 
15 
 
 
1.1. Modernidade e Técnica 
 
 
Buscaremos pensar, a seguir, sobre os modos como a verdade se desvela na 
modernidade e pensaremos sobre os sentidos da existência conforme 
experimentados neste momento histórico. O sociólogo Zigmunt Bauman, estudioso 
da modernidade, pode contribuir para essa reflexão. Bauman (1999) aponta duas 
características da modernidade que consideramos relevantes para esta discussão. 
A primeira característica da modernidade que Bauman (1999) examina é a 
ambiguidade. De acordo com este autor, a modernidade é caracterizada pela 
contradição entre ordem e caos. O projeto moderno consiste na busca pela ordem, 
deste modo, o indeterminado e o imprevisível constituem a negatividade que a 
positividade da ordem busca combater. A luta pela ordem, então, seria “a luta da 
determinação contra a ambiguidade, da precisão semântica contra a ambivalência, 
da transparência contra a obscuridade, da clareza contra a confusão” (BAUMAN, 
1999, p. 14). 
No mundo moderno, busca-se ordenar a existência, projetando-a de forma 
diferente da que existia naturalmente. O homem procura dominar a natureza, 
ordenando-a, remodelando-a e adequando-a para a vida humana. Se em outras 
épocas o natural era relacionado ao projeto divino, na modernidade, está 
relacionado à desordem, à falta de controle; por conseguinte, a natureza é 
interpretada como algo que não deve ser deixado livre de intervenção. A existência 
moderna passa a ser gerenciada e controlada por cientistas e administradores 
capazes, ou seja, por aqueles que possuem conhecimento. A positividade da ordem 
visa dominar o caos, que é pura negatividade, e o que escapa à definição é 
colocado de lado, num esforço para eliminar a ambivalência. 
A ambivalência é definida por Bauman (1999) como a possibilidade de atribuir 
mais de uma classificação a um determinado objeto ou a uma situação, é 
interpretada como uma desordem particular, que aponta uma lacuna da linguagem, 
cuja finalidade é nomear. Para este autor, tal desordem é acompanhada de um 
sentimento de desconforto que ocorre quando o homem se dá conta de que é 
incapaz de escolher se esta ou aquela definição é mais apropriada. Assim, o homem 
atribui essa imprecisão à falha da linguagem ou responsabiliza a si mesmo pela 
16 
 
 
incapacidade de utilizá-la corretamente. Entretanto, o autor adverte que a 
ambivalência não é uma disfunção da linguagem, mas algo que pertence a ela. 
De acordo com Bauman (1999), a tentativa da modernidade é classificar o 
mundo com eficiência, estabelecendo a correspondência entre enunciado e coisa, 
através da separação dos entes em eventos e em categorias. Classificar, segundo o 
autor, é “dar ao mundo uma estrutura” (BAUMAN, 1999, p.9). Entretanto, para este 
autor, a classificação divide o mundo em dois, separando as coisas que 
correspondem ao enunciado e aquelas que não o fazem. Isso implica 
necessariamente num esforço de inclusão e exclusão que exige uma certa coerção 
do mundo para que este se encaixe nos sistemas pré-estabelecidos. Conforme 
alerta o autor, o próprio ato de classificar gera ambivalências, pois na tentativa de 
encontrar a classificação mais exata possível, sempre existe algo que escapa 
exigindo uma classificação cada vez mais exata, o que gera ainda mais 
ambivalência. Ocorre, então, um conflito entre a busca por um mundo ordeiro, no 
qual a verificação e o cálculo pretendem prever e controlar, e a ambivalência 
que ocorre quando a realidade escapa às tentativas de classificação, não 
conseguindo ajustar-se a nenhum sistema pré-determinado. A ambivalência é 
referida por Bauman (1999) como o refugo da modernidade, a sobra, o indesejável, 
aquilo que escapa ao projeto de controle, confrontando a suposta eficácia do modelo 
de exploração organizada do real. 
Para Bauman (1999), o esforço moderno é voltado para o combate à 
ambivalência, através dos modelos propostos pela ciência e da negação de tudo o 
que escapa a uma definição. Deste modo, o mundo moderno negou a desarmonia, 
em nome da busca pelas definições e classificações cada vez mais precisas. O 
combate à desarmonia é uma tarefa infindável, pois o anseio de alcançar o 
progresso transforma o presente em algo a ser superado rumo a novas conquistas. 
O homem moderno experimenta a inquietude e se movimenta 
incessantemente num esforço contínuo. Bauman (1999) define a modernidade como 
uma obsessiva marcha adiante. O autor ressalta que esta característica não pode 
ser atribuída a uma ambição desenfreada. O movimento incessante ocorre, pois o 
objetivo a ser alcançado se modifica antes mesmo de ser atingido, transformando a 
esperança no futuro em frustração e o presente em algo obsoleto antes mesmo de 
existir. A modernidade, segundo Bauman (1999), anseia pelo progresso, mas não 
17 
 
 
sabe aonde quer chegar. De acordo com o autor, no mundo moderno o homem 
movimenta-se em direção ao futuro de forma inquieta e agitada, pois apesar de ter 
claro o ponto de partida, o ponto de chegada é inatingível. De acordo com Bauman 
(1999), a tarefa da modernidade é similar à de Sísifo. Em suas palavras: 
 
Os foci imaginarii – horizontes que bloqueiam e abrem, cercam e distendem 
o espaço da modernidade – invocam o fantasma do itinerário no espaço por 
si mesmo desprovido de direção. Nesse espaço, as estradas se fazem ao 
andar e desaparecem de novo quando os caminhantes passam. À frente 
dos que andam (e para frente é que eles olham) a estrada é marcada pela 
determinação de prosseguir; atrás deles, as estradas podem ser imaginadas 
pelas leves pegadas, margeadas de ambos os lados por linhas mais firmes 
de refugo e lixo. (BAUMAN, 1999, p.18) 
 
De acordo com Bauman (1999), a esperança de alcançar um ponto no qual se 
esconde a verdade definitiva, na qual a ambivalência seria idealmentedestruída, 
está fadada ao fracasso. Assim, a modernidade prossegue em sua incessante tarefa 
na busca por um mundo ordenado. Neste combate contra o caos, a realidade 
fragmenta-se, na medida em que é dividida em campos domináveis, para que se 
estabeleçam diversas micro-batalhas pela ordem. A fragmentação desintegra o 
mundo para que os fenômenos se desvelem como problemas solucionáveis. Como 
dissemos anteriormente, a ordem da existência é delegada a cientistas e 
administradores capazes; assim, cada especialista, em seu campo, se 
responsabiliza por um determinado fragmento do mundo a ser decifrado. A verdade 
se desvela, então, de acordo com o campo a ser examinado e o objetivo proposto. 
Visões lógicas diversas vão sendo produzidas criando um distanciamento cada vez 
maior entre os campos e espera-se mesmo assim, que de alguma forma, o mundo 
se reintegre. A expectativa é de que a totalidade surja da soma das partes, 
entretanto a fragmentação gera ainda mais confusão, pois muito embora os campos 
de saber possam ser separados, o mundo insiste em ser indivisível. 
Outra característica da modernidade explicitada por Bauman (2001) se refere 
à sua organização em torno do consumo. A sociedade já foi organizada através da 
produção, mas na modernidade o foco da sociedade se desloca da produção para o 
consumo. De acordo com o autor, a vida organizada por meio da produção 
caracteriza-se pelo estabelecimento de regras normativas que pretendem 
categorizar e controlar a existência. Neste modelo, existem determinações claras 
das prescrições que devem ser seguidas e do que pode ser alcançado através do 
18 
 
 
trabalho. Assim, os limites do mínimo a ser atingido e do máximo a ser conquistado 
são conhecidos por todos e a principal preocupação é organizar a vida adequando-
se entre o limite inferior e o limite superior. Já a vida organizada por meio do 
consumo é orientada sem a imposição de prescrições normativas e é conduzida pela 
sedução, pelo fascínio e por aspirações e desejos sem limites. Neste cenário, as 
vontades devem ser satisfeitas imediatamente e o prazer não pode ser adiado, 
portanto, a preocupação é estar sempre pronto para desfrutar das oportunidades, 
que surgem a cada momento. 
Bauman (2001) afirma que as compreensões do significado da palavra 
“saúde” nessas duas formas de organização social são bastante distintas. Enquanto 
a sociedade de produção postula a saúde como padrão para que o homem se 
adéque a suas tarefas, a sociedade de consumo entende saúde como aptidão. Estar 
apto consiste em ter um corpo adaptável e flexível, pronto para viver novas 
sensações. Enquanto na sociedade de produção o corpo deve estar adequado à 
norma, na sociedade de consumo o corpo deve ser turbinado, suas funções devem 
ser potencializadas, pois deve estar sempre apto a oferecer mais, a ser utilizado 
como fundo de reserva, se possível ilimitado, estar pronto para as inovações e para 
os desafios. A saúde, que na sociedade de produção era facilmente mensurável, 
transformou-se num conceito fluido, em um cenário em que a medicina aparenta 
oferecer infinitas possibilidades. 
O corpo saudável, conforme explicitado por Bauman (2001), na sociedade de 
consumo se transforma num objeto que muitos ambicionam e buscam sempre 
aprimorar, tornando-se então, mais sujeitos a intervenções e melhorias. Assim, o 
cuidado com a saúde transforma-se em uma guerra contra as doenças e contra a 
morte, o que exige uma vigilância incessante. O corpo saudável se mantém sempre 
em movimento. Fórmulas e terapias para manter a saúde surgem a cada momento e 
novas dietas prometem otimizar o funcionamento do corpo para que não ocorram 
falhas. Entretanto, os conceitos de dieta saudável, alimentos funcionais e de terapias 
preventivas expiram rapidamente, e as verdades últimas sobre a saúde são sempre 
superadas por novas verdades absolutas, causando confusões e frustrações 
naqueles que buscam certezas de combate às doenças e à morte. Deste modo, 
buscamos controlar o mundo, os entes e até mesmo a morte, mas quanto mais 
buscamos o controle, mais este nos escapa. 
19 
 
 
Bauman (1999) afirma que o que ocorre é que nesse movimento incessante, 
nessa tentativa de controlar o mundo, o homem moderno parou de questionar-se. 
Para este autor, a maioria dos problemas enfrentados pela modernidade hoje são 
originados pela atividade incessante, na tentativa de resolução de problemas. No 
esforço para suprimir a ambivalência, de afastar aquilo que não conseguimos 
controlar, na tentativa de ordenar, somos cada vez mais confrontados pelo caos. 
Acreditamos que o questionamento acerca das verdades estabelecidas como 
universais e inquestionáveis na modernidade é essencial para a desobstrução das 
possibilidades obscurecidas por esta época. Assim, procuraremos, através da 
analítica heideggeriana, o questionamento sobre conceitos tidos como absolutos no 
mundo moderno 
Conforme nos alerta Heidegger (2012), ao tomar como absoluta a concepção 
técnica da realidade, o homem permanece cego para o sentido da própria técnica. 
Heidegger (2012) questiona o domínio da técnica moderna, enquanto uma forma de 
desvelamento da verdade, no horizonte de sentido do mundo 
contemporâneo.Heidegger (2012) pensa a respeito da questão da técnica moderna 
através de caminhos diferentes daqueles adotados pela filosofia tradicional. Para o 
filósofo, o questionamento sobre a técnica exige reflexão a respeito de sua essência. 
O autor afirma não ser a técnica o mesmo que essência da técnica e esclarece que 
pensar acerca da técnica significa perguntar o que ela é, enquanto pensar sobre sua 
essência, significa examiná-la em seu sentido histórico e filosófico. 
Questionando a técnica, Heidegger (2012) busca estabelecer com a mesma 
um relacionamento livre no qual o Da-sein se abra para sua essência. Para o autor, 
há uma restrição de liberdade tanto na afirmação como na negação da técnica, 
portanto seu objetivo, nesta discussão, certamente não é suprimir a técnica nem 
mesmo posicionar-se contra ou a seu favor, mas refletir acerca das possibilidades 
apresentadas neste horizonte. Heidegger (2012) está especialmente preocupado 
com a neutralização da técnica, pois, nessa perspectiva, o homem moderno torna-se 
cego para a sua essência. 
 Segundo Heidegger (2012), a técnica pode ser compreendida no pensamento 
corrente de duas formas distintas. A primeira concepção define a técnica como um 
meio para atingir um objetivo e a segunda refere-se à técnica como uma atividade 
do homem. O autor chama essas concepções, respectivamente, de determinações 
20 
 
 
instrumental e antropológica da técnica. Ambas estão inter-relacionadas, pois 
designar fins e utilizar meios para atingi-los são práticas humanas. A descrição 
instrumental da técnica é evidente e retrata, de forma clara, a técnica moderna. 
Compreende-se ser esta totalmente distinta da técnica antiga que apresentava 
características artesanais. A técnica moderna é um meio para um fim e a perspectiva 
instrumental da técnica busca uma relação de proximidade com ela para gerenciá-la 
de forma eficiente. Esta tentativa de controle torna-se mais urgente quando a técnica 
ameaça escapar ao controle do homem. Heidegger (2012) concorda que essa 
descrição está correta e corresponde à realidade moderna, mas alerta que o fato da 
descrição instrumental ser correta não quer dizer que ela descubra a essência da 
técnica. Em outras palavras, a descrição é apontada por Heidegger (2012) como 
correta, mas não como verdadeira. Para descobrir a essência da técnica, é 
necessário examiná-la, procurando o verdadeiro além da determinação instrumental. 
Deve-se perguntar o que é o instrumental em si mesmo e o que significam meio e 
fim. O meio é a forma através de que se faz ou se obtém alguma coisa. A causa é 
aquilo que tem, como consequência, um efeito em que se buscam fins, ali estão 
presentes os meios;onde está a instrumentalidade também estão as relações de 
causalidade. Por isso, Heidegger (2012) retoma, na tradição filosófica, a ideia 
sedimentada das quatro causas estabelecidas por Aristóteles: 
1. a Causa Materialis: o material que dá origem à coisa; 
2. a Causa Formalis: a forma que dá origem à coisa; 
3. a Causa Finalis: a finalidade do material, como será utilizado, determina sua 
forma; 
4. a Causa Efficiens: que está ligada à produção de efeitos. 
Examinar detalhadamente a doutrina das quatro causas e a definição de 
causa, conforme tomadas pela filosofia desde Aristóteles é o caminho escolhido por 
Heidegger (2012) para desobscurecer o significado e os fundamentos da ideia 
sedimentada de causalidade e, assim, esclarecer a instrumentalidade e o 
pensamento corrente de técnica. Na modernidade, as causas materialis, formalis e 
finalis ficaram obscurecidas, permanecendo apenas o sentido de eficiência que 
aponta para a obtenção de resultados e efeitos. A doutrina das quatro causas foi 
tomada como verdade absoluta e evidente. Entretanto, no pensamento grego, causa 
não significava apenas instrumento – o sentido grego de causa era relacionado ao 
21 
 
 
comprometimento ou aquilo pelo que se responde. Os quatro modos estão 
comprometidos com o deixar aparecer de algo. 
Assim, Heidegger (2012) desconstrói a interpretação moderna de causa e 
retoma, no pensamento grego, uma interpretação mais originária que diz respeito 
aos conceitos de physis – natureza – e de aletheia – verdade ou desvelamento. A 
técnica é, para Heidegger (2012), uma forma de desvelamento da verdade. A 
técnica moderna também é um desencobrimento e não apenas um meio, um 
instrumento para alcançar um fim. O desvelamento está presente no mundo grego e 
na modernidade, entretanto o modo como esse desvelar ocorre nas duas épocas é 
distinto. Se, na tradição grega, o desvelar estava relacionado àpoesis, que deixa 
aparecer através da produção, na modernidade o desvelar ocorre de maneira 
distinta. Uma produção na modernidade não é mais um deixar aparecer artesanal, 
poético ou artístico; o desencobrimento na modernidade tem o sentido de explorar, 
requerer da natureza aquilo que está disponível. A physis, a natureza, aparece neste 
horizonte apenas como fundo de reserva a ser extraído, transformado, distribuído e 
reprocessado num movimento incessante. 
O homem é o agente da exploração, mas o desencobrimento da verdade não 
se reduz ao simples fazer do homem. Quando o homem percebe algo, o 
desencobrimento já se deu. Por isso, ao desvelar o real com um modo de 
desencobrimento, o homem responde também ao mundo. Quando toma a natureza, 
considerando-a um objeto de investigação, ele também se encontra comprometido 
com esta forma de desencobrimento. Logo, ao dispor do real como recurso, o 
homem também se faz disponível à técnica moderna. 
A disponibilidade a que Heidegger (2012) se refere é denominada por ele de 
Bestand, para denotar algo mais do que simples provisão. Bestand é o modo como 
os entes se revelam através do modo de ser explorador da técnica em que tudo se 
desencobre como disponibilidade que caracteriza o próprio modo de desvelamento 
da técnica moderna. Heidegger (2012) utiliza a palavra Gestell para denominar este 
modo de desvelamento, no qual a provocação da reserva de recursos é o modo 
como o ser se revela. Gestell significa armação ou o que sustenta o modo de ser da 
técnica moderna, é a reunião ou composição através da qual o real se desvela para 
o homem como disponibilidade. De acordo com Heidegger (2012), Gestell designa a 
própria essência da técnica na qual o homem se encontra imerso. 
22 
 
 
A Gestell descobre o mundo como fundo de reserva e o pensamento se reduz 
ao cálculo, a composição afasta-se de outras possibilidades de desencobrimento. 
Para Heidegger (2012), aí jaz o perigo da técnica moderna. Em suas palavras: 
 
A ameaça que pesa sobre o homem não vem, em primeiro lugar, das 
máquinas e equipamentos técnicos, cuja ação pode ser eventualmente 
mortífera. A ameaça propriamente já atingiu a essência do homem. O 
predomínio da com-posição arrasta consigo a possibilidade ameaçadora de 
se poder vetar ao homem voltar-se para um desencobrimento mais 
originário e fazer assim a experiência de uma verdade mais inaugural. 
(HEIDEGGER, 2012, pp. 30-31) 
 
De acordo com Heidegger (2012), a técnica é um modo de desvelamento do 
ser e do mundo. Isso quer dizer que nossos pensamentos e a lida com o mundo 
estão imersos no horizonte tecnológico. No cotidiano, grande parte de nossas ações 
e dos saberes científicos se legitimam através deste horizonte, seja no campo da 
medicina, da nutrição, da farmacologia, da biologia ou da educação física, é a 
técnica que norteia nossas ações e pensamentos. Para este filósofo, o próprio 
sentido da existência se restringe no cotidiano à acepção da técnica. 
Heidegger (2012) salienta que a técnica moderna, ao contrário da 
compreensão usual, não é um mero instrumento criado e manuseado pelo homem, 
mas um modo de desvelamento dos entes, ao qual o homem moderno corresponde. 
Ao alimentar a ilusão de que possui controle sobre a técnica, o homem torna-se ao 
mesmo tempo fascinado e impotente em sua relação com ela. Deste modo, 
recusando ou nos fascinando com a técnica, não há como escapar deste horizonte 
de sentido, pois a técnica prepondera hegemonicamente no mundo contemporâneo. 
Heidegger (2012) alerta que quanto mais o homem se sente dominador da técnica, 
para através dela extrair fundo de reserva, mais subjugado ele se encontra perante 
seu domínio, tornando-se ele mesmo um ente disponível. Se, por outro lado, o 
homem não compreende ou não escuta a interpelação da técnica, também se torna 
refém de seu comando. 
Heidegger (2012) aponta essa compreensão como o caminho para 
estabelecer uma relação de liberdade com a técnica, abrindo a existência para 
outras possibilidades de pensar e de ser no mundo. Entretanto, isso só pode ocorrer 
quando o homem descobrir que a técnica não é mero instrumento a ser controlado. 
O perigo da técnica não está no desenvolvimento tecnológico, na criação de 
instrumentos, no poderio das máquinas ou em sua capacidade de destruição. Para 
23 
 
 
Heidegger (2012), a essência da técnica não é algo técnico e, quando a mesma é 
tomada enquanto instrumentalidade, não é possível contemplar sua essência ou 
superar a pretensão de exercer controle sobre ela. 
Somente através da meditação é possível estabelecer uma relação de 
liberdade com a técnica. Meditar significa compreender a constituição histórica do 
homem com os entes e com o ser. Este modo de pensar é distinto daquele que 
busca fórmulas, cálculos e impõe uma ética instrumental ao uso da tecnologia. 
Enquanto a técnica propõe uma relação de controle sobre os entes, através da 
meditação o homem dá dois passos atrás, adotando um pensamento reflexivo 
perante o mundo. 
 
 
1.2. A essência da verdade em Heidegger 
 
 
Heidegger, ao longo de sua obra, desconstrói o conceito tradicional de 
verdade e faz diversas reflexões, oferecendo novas possibilidades de compreensão 
sobre seu significado. De acordo com Heidegger (2011), cada época posiciona a 
verdade de uma determinada forma e, no pensamento ocidental, a verdade passou 
a ser, desde Platão, abordada unicamente sob o prisma do logos. Nessa 
perspectiva, instaura-se, então, segundo o autor, o problema da verdade que, na 
modernidade, deve ser provada, mensurada e testada. 
Diante deste problema, Heidegger (2011) propõe, em sua obra Ser e Tempo, 
a seguinte pergunta: qual o significado da palavra verdade quando é utilizada para 
referir-se tanto ao ente quanto ao ser? O autor ressalta que não está interessado em 
discutir a verdade enquanto teoria do conhecimento ou do enunciado, pois, em suas 
reflexões, entende que, se a verdade significa o mesmo que coisa ou aquilo que se 
mostra em si mesmo, não podeser compreendida através de uma teoria prévia. 
Para Heidegger (2011), também não há como discutir a verdade sem discutir 
o ser, pois verdade e ser são co-originários. Este autor está interessado em 
examinar a verdade em seu sentido mais originário e, para executar tal tarefa, é 
necessário retornar à ontologia fundamental, examinando a relação entre ser e ente, 
já que a verdade só pode se mostrar no mundo. No caminho de investigação da 
verdade, o ser será a temática central da obra de Heidegger (2011). A tentativa é 
24 
 
 
encontrar, através de sua reflexão, o sentido do ser que a tradição filosófica 
ocidental, desde Platão, não conseguiu vislumbrar. 
Na obra Ser e Tempo, o filósofo analisa o conceito tradicional de verdade e 
procura por seus fundamentos ontológicos. Ao examinar a filosofia tradicional, 
Heidegger (2011) encontra três teses sobre a questão da verdade: 1. o lugar da 
verdade é o enunciado; 2. a verdade está na concordância entre enunciado e objeto; 
3. o lugar da verdade é o enunciado e, ao mesmo tempo, concordância, conforme 
aponta Aristóteles. 
De acordo com Heidegger (2011), na Idade Média, Tomás de Aquino deixou 
para a posteridade sua interpretação das obras aristotélicas, a definição de verdade 
como adequatio intellectus et rei –adequação do intelecto com a coisa –, através da 
expressão correspondentia e convenientia, ou seja, correspondência, conveniência. 
Esta perspectiva, que permanece na modernidade, acaba por esquecer o ser, ao 
fixar a essência da verdade na proposição e, assim, na adequação, na 
concordância, correspondência ou conveniência entre os dois polos de todo 
julgamento ou juízo. O sentido da verdade, a partir de São Tomás, passa a ser 
associado ao homem, pois é ele que recolhe o que é próprio da coisa. A verdade 
passa, então, a ter uma conotação simultaneamente lógica e ontológica, em outras 
palavras, a verdade está ligada à razão e, ao mesmo tempo, ao que é próprio da 
coisa. 
Heidegger (2011) critica a interpretação corrente que se faz de Aristóteles, 
como tendo sido ele o criador do conceito de verdade, tendo seu lugar originário no 
juízo. Segundo o autor, Aristóteles nunca defendeu a tese de que o lugar originário 
da verdade fosse o enunciado, ou seja, o juízo. De acordo com Heidegger (2011), a 
afirmativa de Aristóteles aponta que o logos é um modo de ser-no-mundo, podendo 
ser descobridor ou encobridor. O pensamento ocidental, entretanto, se encarregou 
de reduzir a sua tese aos aspectos ônticos. 
Heidegger (2011) alerta que houve um desvio da grande descoberta grega a 
respeito do ser. Para ele, a proposição não é o lugar da verdade, mas, enquanto 
modo de ser-no-mundo, está fundada no descobrimento ou na abertura do Da-sein. 
A partir do conceito grego de aletheia, que quer dizer desvelamento, Heidegger 
(2011) retomará, através da fenomenologia, aquilo que foi esquecido pela Filosofia. 
O autor apresenta o conceito preliminar de fenomenologia, retomando o significado 
25 
 
 
da palavra, originada no grego, considerando este caminho necessário para voltar 
ao solo originário que fundamenta o pensamento tradicional. A palavra fenômeno se 
origina no grego Phainómenon, do verbo phainesthai, que quer dizer “mostrar-se”. 
Phainesthai se origina de phaino, que pode ser compreendido como “trazer ao 
claro”. Fenômeno é, portanto, aquilo que se revela em si mesmo, ou o que vem à 
luz. Logía, de fenomenologia, remete ao logos, que, apesar de ser utilizado através 
do senso comum com diversas conotações, em sua origem, significa “palavra” ou 
“discurso”. Em grego, o lógos corresponde ao verbo légo: reunir, ordenar e a légein: 
dizer. O logos é, então, o recolhimento daquilo que aparece na manifestação do 
fenômeno. Nesse sentido, o logos é deixar e fazer ver aquilo que pode ser 
verdadeiro ou falso. O conceito de apophanesthai, ou seja, deixar e fazer ver o ente 
em seu descobrimento como aquilo que se mostra é, portanto, esquecido pela 
tradição em detrimento do conceito de verdade como adequação, que revelava a 
coisa mesma no enunciado, o ente manifesto enquanto descoberto. 
Entretanto, a ideia de concordância, segundo Heidegger (2011), afasta-se da 
ideia primária de aletheia. A verdade compreendida, através do sentido originário de 
logos, é um modo de deixar e fazer ver e, por esse motivo, não pode haver o lugar 
da verdade. A verdade, neste caso, é compreendida como o desvelamento do ente 
em seu ser e não como veritas –adequação entre enunciado e coisa. 
 O plano lógico só pode existir a partir de um plano ontológico, no entanto, 
na modernidade, o pensamento clássico grego e medieval passou a ser 
compreendido como consequência de uma adequação do intelecto à coisa, 
alterando o entendimento sobre o processo de conhecimento. Segundo Heidegger 
(2011), o realismo pressupõe uma adequação do intelecto pela coisa e o idealismo 
compreende o conhecimento como algo produzido pelo sujeito, mas ambos se 
edificam no mesmo alicerce, a adequação. O autor ressalta que tanto o idealismo 
como o realismo se perderam do conceito grego de verdade. Para ele, “somente 
nesse conceito é que se poderá compreender filosoficamente a possibilidade de 
uma teoria das ideias” (HEIDEGGER, 2011, p.73). 
 Heidegger (2011) afirma que os reducionismos da tradição têm, em seu 
fundamento, o esquecimento do ser e a sua transformação em um conceito ôntico, 
entretanto o plano lógico só pode existir a partir de um plano ontológico. O autor tem 
como propósito a revisão da ontologia e, por assim dizer, a redescoberta do ser, 
26 
 
 
para além da metafísica tradicional, examinando o ser total que só conhecemos no 
mundo e, portanto, nos entes. O ser do homem é distinto do ser dos entes, pois 
guarda em si a possibilidade de questionar. Para este autor, “visualizar, 
compreender, escolher, aceder são atitudes constitutivas do questionar e, ao mesmo 
tempo, modos de ser de um determinado ente, daquele ente que somos nós 
mesmos, os que questionam sempre somos.” (HEIDEGGER, 2011, p. 42). 
 Este ser que nós somos, Heidegger (2011) denomina de Da-sein, traduzido 
para o português por Márcia Sá Cavalcante Schuback, como pre-sença. Optamos 
aqui por manter o termo original, Da-sein, conforme utilizado por Heidegger, pois 
cada linguagem revela um modo de desvelamento do mundo e pareceu-nos que 
qualquer tentativa de tradução nos afastaria do que o autor buscava indicar. 
Originariamente Heidegger (2011) retoma a palavra Dasein utilizada na língua alemã 
corriqueiramente como o sentido de existência e separa a palavra com hífen, para 
dar a ela um sentido diferente daquele adotado pela tradição (INWOOD,1999). Da é 
um indicativo de lugar, que quer dizer “aí” e sein significa “ser”. Da-sein, portanto, é o 
lugar onde o ser acontece, e deixa aparecer o mundo, desvelando a totalidade dos 
entes. Cabe ressaltar que lugar aqui não diz respeito a um local geográfico, o da é o 
que possibilita que o ser apareça, é o indicativo da abertura do Da-sein, de sua 
condição de ter-de-ser. 
 Este caráter de abertura do Da-sein é justamente o que o diferencia dos 
demais entes. A essência do Da-sein está na sua existência. Para Heidegger o 
homem é o único ente que existe: 
 
O ente que é ao modo da existência é o homem. Somente o homem existe. 
O rochedo é, mas não existe. A árvore é, mas não existe. O cavalo é, mas 
não existe. O anjo é, mas não existe. Deus é, mas não existe. 
(HEIDEGGER, 2008 p. 387) 
 
 Através dessa afirmativa, Heidegger quer explicitar que a existência é a 
característica fundamental do homem. O rochedo possui uma essência acabada, 
enquanto o Da-sein não possui uma essência a priori, o que determina sua essência 
é justamente seu caráter inacabado. O Da-sein é essencialmente aberto, tem-de-ser 
a cada momento, seu ser deve ser conquistado. Isso significa que o homem não 
pode ser tomado como fato histórico ou biológico, pois não é algo quemeramente 
ocorre. A priori, o Da-sein não possui essência, não tem nenhuma determinação, ele 
27 
 
 
é pura negatividade. Isso quer dizer que o homem tampouco pode ser categorizado. 
Não é possível perguntar pela essência do homem, pois ele é um essenciar a cada 
momento. Tal fato leva Heidegger a perguntar pelos existenciais do Da-sein ao invés 
de perguntar por seus categoriais. Os existenciais somente podem ser 
compreendidos de maneira ontológica e se configuram a partir da existência de cada 
Da-sein. 
 Cabe ressaltar que, apesar de sua singularidade, o Da-sein não pode ser 
compreendido apartado do mundo. A existência é fundamentalmente ser-no-mundo. 
A expressão “ser-no-mundo” também aparece interconectada por hífens para indicar 
a indissolubilidade entre ser e mundo. O essenciar do Da-sein se dá na concretude 
do mundo e na relação com outros Da-seins. Assim ser-no-mundo não significa 
apenas que o Da-sein está inserido em um mundo, significa que ambos, estão em 
comunhão. 
 Essa compreensão de ser é justamente o que diferencia Heidegger dos 
demais autores da filosofia clássica. Se, no pensamento clássico, o homem foi 
tomado como ente simplesmente dado, em Heidegger, o homem é abertura e é 
nesta abertura que se encontra a verdade. Para Heidegger (2011), a consciência só 
pode se relacionar com o objeto através do Da-sein. Portanto, o Da-sein é o que, 
originariamente, permite que a verdade se desvele. 
 De acordo com Heidegger (2011), o que ocorre, na maior parte das vezes, 
é que o Da-sein compreende-se a partir das possibilidades postas pelo mundo de 
forma imprópria ou impessoal. Esse modo de ser, Heidegger (2011) chama de 
decadência, pois ocorre, desta maneira, que o Da-sein perde-se no mundo. Nesta 
forma de compreensão, o ser fica obscurecido diante dos entes e mostra-se através 
de uma abertura imprópria, desvelando-se a partir da aparência. A conotação da 
palavra “decadência” não é moralista, o que Heidegger (2011) procura evidenciar é 
que a decadência é uma possibilidade do ser enquanto abertura. A decadência é 
também uma condição existencial do Da-sein, devido à sua realização na 
cotidianidade. A decadência aponta para a característica do Da-sein de ser-com e 
de ser-no-mundo das ocupações. Na decadência, o Da-sein sai de si e volta-se para 
fora, passando a ser orientado pelo mundo e não por si e, assim, num sentido 
ontológico, ocorre a sua queda. 
28 
 
 
 A existência na impessoalidade é decadente, pois na cotidianidade o Da-
sein existe como todo mundo guiando-se pelas possibilidades postas pelo mundo, 
decaído de suas possibilidades mais próprias. Portanto, o Da-sein, na cotidianidade 
mediana, existe a partir de possibilidades postas previamente na abertura do mundo. 
Desta forma, o Da-sein existe de modo impróprio, cada um é como todo mundo e 
ninguém sabe o que é. O que ocorre é que, ao existir de maneira imprópria, o Da-
sein perde-se no mundo, absorvido pelas preocupações cotidianas acompanhando a 
multidão e oscilando entre tendências e modas. As opiniões, os pensamentos, as 
preferências são assim aquelas de todo mundo. 
 Na modernidade, ao existir de maneira imprópria, o Da-sein estaria se 
movimentando em meio às verdades postuladas pela técnica e pela ciência que 
determinam o que é verdade e indicam que a existência deve ser controlada ao 
máximo. Desta feita, o Da-sein obscurece suas possibilidades mais próprias, 
perdendo o acesso a si mesmo, guia-se pelas determinações do mundo técnico. 
 Heidegger (2011) aponta a angústia como condição de abertura para outras 
possibilidades além da cotidianidade, na qual a compreensão é mantida na 
medianidade. A angústia não é para este autor um estado patológico, mas diz 
respeito a uma disposição afetiva que pode ser a condição de possibilidade para que 
o Da-sein conquiste um acesso privilegiado em relação a si mesmo. Na angústia as 
determinações postas pelo mundo entram em crise e o caráter mais originário da 
existência se desobscurece. Heidegger (2011) revela que a fuga de si-mesmo é uma 
condição existencial possível do Da-sein, que se caracteriza pela ocupação com os 
entes e por um movimento incessante, que acaba encobrindo sua fuga de si-mesmo, 
a fuga de sua abertura em sua condição de ser-no-mundo. Por isso a angústia 
desempenha um papel importante para Heidegger (2011), já que nesta disposição 
as determinações sedimentadas esmaecem e fogem os sentidos postos 
previamente pelo mundo. Na angústia aparece a dimensão vazia dos entes, porém 
isso não significa que o mundo desapareça ou que dê lugar a um indivíduo isolado 
no vazio, desprovido de mundo. Pelo contrário, a angústia traz o Da-sein ao mundo 
de forma mais originária, o ser-no-mundo passa a ser experimentado como o seu-
ser-no-mundo. De acordo com Heidegger (2011), a angústia revela uma certa 
estranheza, ao romper com a sensação de familiaridade cotidiana, com a 
compreensão do Da-sein a partir dos entes do mundo e de outros Da-seins. Quando 
29 
 
 
o Da-sein não pode compreender-se a partir da impessoalidade, ele revela-se de 
modo singular como o seu próprio ser-no-mundo, colocando-se diante de seu poder-
ser. A angústia retira o Da-sein da absorção no público, revelando que a ocupação 
com os entes e o movimento incessante são uma fuga da situação de estar lançado 
no mundo, entregue a si-próprio. Na angústia está guardada a possibilidade de uma 
abertura privilegiada à existência, já que ela singulariza retirando o Da-sein da 
decadência. 
Assim, no pensamento de Heidegger (2011), a angústia apresenta ao Da-sein 
as possibilidades fundamentais da existência de forma originária, abrindo-o para o 
seu caráter de ter-de-ser. A angústia revela ao Da-sein seu caráter de liberdade, de 
poder-ser, ao mostrar que está entregue a si mesmo, podendo escolher ser de modo 
próprio ou impróprio, quer dizer, podendo escolher entre existir a partir de si mesmo, 
ou através da impessoalidade. Esse caráter de poder-ser revela que o Da-sein 
antecipa a si-mesmo, sua existência precede a compreensão de si-mesmo e dos 
entes que estão no mundo. O que está em questão é como o Da-sein vai escolher 
posicionar-se perante o mundo. Pode compreender-se a partir de si-mesmo, 
assumindo suas possibilidades mais próprias, ou pode compreender-se a partir de 
verdades reveladas de maneira imprópria, previamente postas pelo mundo. De 
qualquer maneira, posicionando-se de modo próprio ou impróprio, o que está em 
jogo a cada momento é o caráter de abertura da existência. Impessoalidade e 
singularidade são possibilidades ontológicas do Da-sein. 
 
 
1.3. Da-sein, Angústia e Ser-para-a-morte 
 
 
Para Heidegger (2011) a morte não é uma hipostasia, ou uma substância 
sedimentada apartada do homem. A morte é indissociável do fenômeno da 
existência, a morte e existência são inseparáveis. Ao existir, o Da-sein já está 
lançado nessa possibilidade ontológica. A morte não é algo que ocorre de forma 
ocasional ou extraordinária, ela é uma possibilidade que o próprio Da-sein sempre 
tem de assumir. Na maior parte do tempo, todavia, o Da-sein encobre essa 
possibilidade. 
30 
 
 
Na cotidianidade, o Da-sein não tem nenhum conhecimento de que a morte é 
uma possibilidade inalienável do ser-no-mundo, ou seja, de que o homem é um ser-
para-a-morte. Na maioria das vezes, o Da-sein se movimenta no cotidiano em meio 
à impessoalidade, decaído de suas possibilidades próprias, orientado pelas 
possibilidades postas pelo mundo, afastando a possibilidade da morte como algo 
mais próprio. Na cotidianidade, o modo próprio é o impessoal que consiste na 
interpretação pública da morte através da falação. “O impessoal, não permite a 
coragem de assumir a angústia com a morte” (HEIDEGGER, 2011, p. 330). 
A morte passa a ser vista como um fenômeno do cotidiano, como um simples 
fato ou possibilidade que pode ocorrer com todos. A morte passa a ser vivida então,como a morte dos outros, os outros morrem mas eu ainda não. A proposta de 
Heidegger (2011) não é fazer uma crítica à sociedade contemporânea, mas 
descrever o fenômeno tal qual ocorre na cotidianidade, que é uma condição própria 
da existência. 
Assim, de acordo com o filósofo, a experiência da morte do outro se mostra 
como o não-mais-estar-presente, o não-mais-ser-no-mundo do outro, que alcançou 
sua totalidade. Mas, o não-mais-ser-no-mundo do morto ainda é um ser, porém 
agora, um ser no sentido simplesmente, um cadáver, dado como uma coisa 
corpórea, e também aparece como uma existência que chegou ao seu fim, no 
sentido de completude, ou seja, um finado. O finado é objeto de ocupação nos 
velórios, nos funerais e nas cerimônias realizadas para os mortos. A morte aparece, 
então, como perda, ou melhor, como aquela perda vivenciada pelos que ficam. 
Porém, ao viver a perda, o que se mostra não é o não-mais-ser-no-mundo do finado, 
pois os que permanecem não têm acesso ao fim ontológico do ser. Não é possível 
experimentar a morte dos outros, mas apenas estar junto. Para Heidegger (2011), 
não se pode retirar do outro a sua morte, cada Da-sein deve assumir a própria 
morte. 
Mesmo que fosse possível examinar e compreender psicologicamente a 
morte do outro, através do estar junto do outro que morre, não seria exequível 
apreender este modo de ser como um chegar-ao-fim (HEIDEGGER, 2011). Isso 
porque, o sentido da morte de quem morre esclarece sobre o seu ser e não sobre o 
sentido de sua co-presença ou de seu ainda-ser para aqueles que permanecem. A 
tentativa de utilizar a experiência da morte do outro, segundo Heidegger (2011), não 
31 
 
 
pode ser o caminho para analisar o fenômeno da morte, nem ôntica nem 
ontologicamente. A pressuposição de que esse caminho é viável está 
fundamentada, segundo o autor, na ideia de que é possível colocar no lugar do Da-
sein, qualquer outro, de forma que através do outro fosse possível ter acesso àquilo 
que é inacessível quando o Da-sein examina a si mesmo. Essa substituição é uma 
ocupação de alguma coisa que aparece no fundo circundante (HEIDEGGER, 2011), 
quer dizer, a ocupação procura aquilo que está ao seu alcance em sua esfera de 
convivência pública ou de atuação, adequada à profissão, idade e estado. Portanto, 
o Da-sein, na cotidianidade, compreende-se a partir daquilo com o que está 
acostumado a se ocupar. Mas essa tentativa de substituição falha quando o 
fenômeno que se procura substituir é a existência, a extinção da possibilidade de 
ser, ou o chegar-ao-fim do Da-sein, pois essa abordagem não reconhece o seu 
caráter existencial. 
Heidegger (2011) ressalta ainda que ao tentar ignorar o caráter existencial da 
morte, corre-se o risco de reduzir a morte do homem ao finar, que diz respeito aos 
seres vivos em geral, como plantas e animais. Para este autor, o findar é um 
existencial próprio do homem e não pode ser confundido com outros fenômenos. Ao 
tratar do morrer, Heidegger (2011) não está se referindo à morte físico-biológica, 
conforme concebida pelo saber médico. Segundo ele, “o conceito médico exitus não 
se identifica com o conceito de finar” (HEIDEGGER, 2011, p. 315). Ao tomar a morte 
de modo impróprio, a discussão ontológica sobre o fenômeno da morte fica 
ameaçada pela interferência de outros entes dotados de outros modos de ser, como 
por exemplo o conceito de ser-vivo, que identifica equivocadamente o fenômeno da 
morte com interpretações de posições prévias adotadas. 
Outra interpretação possível da morte é pensá-la enquanto plena realização 
da vida, ou como amadurecimento do fruto que chega ao auge. Entretanto, 
Heidegger (2011) também encontra problemas nessa comparação. 
 
O fruto imaturo, por exemplo, encaminha-se para o seu amadurecimento. 
No amadurecimento, aquilo que é ainda não é, de modo algum, se oferece 
como algo que se lhe junta, no sentido de algo que ainda-não é 
simplesmente dado. O próprio fruto amadurece. O amadurecimento e o 
amadurecer caracterizam-lhe o ser enquanto fruto. Não fosse o fruto um 
ente que chegasse por si mesmo ao próprio amadurecimento, nada que lhe 
acrescentasse de fora poderia eliminar-lhe a imaturidade. O ainda-não da 
imaturidade não significa uma coisa exterior a qual, indiferente ao fruto, 
poderia ser simplesmente dada nele ou com ele. O ainda-não indica o 
próprio fruto em seu modo específico de ser. Enquanto algo a mão, a soma 
32 
 
 
incompleta é “indiferente” ao resto que falta e não está a mão. Em sentido 
rigoroso, a soma não pode ser nem indiferente nem não-indiferente. Em seu 
amadurecimento, o fruto é não apenas não indiferente em relação à 
maturidade entendida como o outro de si mesmo, mas o fruto em 
amadurecimento à sua imaturidade. O ainda não já está incluído em seu 
próprio ser, não como uma determinação arbitrária, mas como um 
constitutivo. Analogamente, a presença, enquanto ela é, já é seu ainda não. 
(HEIDEGGER, 2011, p.318) 
 
Assim, de acordo com Heidegger (2011), sempre se é muito jovem ou é muito 
cedo para morrer. Findar não significa necessariamente completar-se, para 
Heidegger (2011) o Da-sein, não se completa, ele é sempre inacabado, sempre um 
ainda-não. Ao se deparar com a morte, o Da-sein completa o seu curso, mas não 
necessariamente esgota suas possibilidades. Assim, não é a completude do Da-sein 
que determina a morte, podendo a morte chegar antes da maturidade ou ultrapassá-
la, encontrando o Da-sein na decrepitude, ou seja, desgastado. Para Heidegger 
(2011), na morte, a presença nem desaparece, nem se completa. Nessa 
perspectiva, o estar no fim denota uma definição inapropriada de fim para o qual o 
Da-sein é ao estar lançado no mundo. A morte não pode ser compreendida por 
esses modos de findar, pois quando a morte é compreendida como estar-no-fim, o 
Da-sein é posto como ente simplesmente dado. A morte não está no fim, a morte é 
um modo de ser que o Da-sein assume desde o momento em que é. A morte não é 
uma categoria metafísica, nem algo que acomete o homem, separado da concretude 
da existência do ser-no-mundo. A morte, quando compreendida em sua perspectiva 
ontológica, não se configura como um obstáculo à completude do Da-sein como 
projetar-se, nem é ela própria a completude, ela simplesmente pertence à condição 
ontológica e existencial do ser que é homem, é seu modo próprio de ser-no-mundo. 
Heidegger (2011) alerta ainda para a necessidade de delimitar a sua 
proposta, explicitando o que uma análise ontológica da morte não indaga, para que 
não se crie uma falsa expectativa de obter respostas através dela. Assim, o filósofo 
ressalta que sua proposta difere da análise biofisiológica que interpreta o Da-sein 
como mera vida, categorizando-o como pertencente ao plano ontológico que 
conhecemos como animal e vegetal. Nessa perspectiva, podem-se atingir através de 
uma interpretação ôntica os dados e estatísticas sobre os serves vivos, que 
permitem prever a duração da vida, classificar a morte em tipos e determinar como 
esta se manifesta. Heidegger (2011) lembra que a perspectiva ôntico-biológica da 
morte esquece que a morte tem em seu fundamento a dimensão ontológica. Essa 
33 
 
 
compreensão parece partir de uma posição prévia sobre a morte que se fundamenta 
em conceitos já estabelecidos sobre o que significa viver e morrer. 
Assim, o findar do Da-sein fica caracterizado como finar. A existência 
apresenta uma morte biológica, entretanto, essa não pode ser isolada onticamente 
ou ser identificada como o aspecto mais originário do Da-sein, pois a compreensão 
de finar é posterior à morte. Enquanto o finar pode ser categorizado, a morte escapa 
a qualquer tentativa de ser apreendida por um sistema classificatório. Ao se referir 
ao morrer, Heidegger (2011) se refere a um fenômeno próprio do Da-sein: 
 
Morrer, por sua vez, exprime o modo de ser em que a presença é para sua 
morte. Assim, pode-se dizer: a presença nunca finda.A presença só pode 
deixar de viver na medida em que morre. A investigação médico-biológica 
do deixar de viver logra resultados que, do ponto de vista ontológico, podem 
também ser relevantes desde que se tenha assegurado a orientação 
fundamental para uma interpretação existencial da morte. (HEIDEGGER, 
2011, p. 322) 
 
Ao examinar essa passagem da obra do autor, fica claro que para ele o 
conceito existencial de ser-para-a-morte nada tem a ver com o falecimento, com o 
mero finar ou desaparecer, que se origina numa postura decadente ou impessoal em 
relação à morte. No ser-para-a-morte, o Da-sein se relaciona com ele mesmo de 
modo privilegiado, enquanto poder-ser. 
De acordo com Heidegger (2011), o caráter existencial da morte precede a 
compreensão biológica ou ôntica da vida. A construção de um sistema classificatório 
que busque caracterizar o modo como se experimenta o deixar de viver tem em seu 
fundamento um conceito pré-estabelecido de morte. De acordo com o autor, uma 
psicologia do morrer evidencia mais elucidações sobre o viver dos que morrem do 
que sobre o morrer. Para Heidegger (2011), da mesma forma, através do culto e da 
magia também se pressupõe uma determinada compreensão do Da-sein e do 
morrer. O caráter existencial da morte precede, também segundo o autor, a tentativa 
de apreender o que ocorre após a morte, ou seja, de correlacionar um outro modo 
de ser seja ele superior ou inferior, em outro mundo também. A análise existencial 
precede, portanto, a biologia, a psicologia e a teologia da morte. Numa perspectiva 
ôntica, o que Heidegger (2011) chama de metafísica da morte apenas aponta o seu 
caráter formal e ao esquecer sua dimensão ontológica, restringe a visão do 
fenômeno e deixa de contemplá-lo em sua complexidade. 
34 
 
 
A morte é uma “possibilidade privilegiada da presença” (HEIDEGGER, 2011, 
p. 323), sendo assim, se o Da-sein sempre escapa às tentativas de apreensão como 
algo simplesmente dado, por ser essencialmente abertura, podendo a cada 
momento ser de modo próprio, não é possível esperar que através da leitura se 
revele a constituição ontológica da morte. A leitura indica o caráter formal da finitude, 
isto é, uma experiência impessoal da morte como contingência a qual todos estão 
expostos, explicitando a constatação de que morre-se. Para Heidegger (2011), 
apenas ao constatar a morte como possibilidade própria ao assumir a sentença, “eu 
morro”, o homem passa a ser livre para apropriar-se de sua condição de ser-
lançado, tomando para si a responsabilidade de suas escolhas a cada momento. 
Para Heidegger (2011), é na angústia que o estar-lançado se desvela para o 
homem como a possibilidade mais “própria, irremissível e insuperável” do Da-sein 
(HEIDEGGER, 2011, p. 326). O autor alerta ainda que não se deve confundir a 
angústia com a morte e o medo de não mais viver. A angústia a que ele se refere 
não é um sentimento de fragilidade ou uma condição patológica, mas uma abertura 
originária do Da-sein que existe para-a-morte. A angústia como tonalidade afetiva 
fundamental rompe com as posições prévias dadas pelo mundo, possibilitando 
assumir uma relação mais própria e singular com a morte. 
35 
 
 
 
2. A LIDA COM A MORTE NA MODERNIDADE 
 
 
 No mundo moderno, o modo como o homem se movimenta afastando a 
angústia de ser-para-a-morte deixa aparecer o projeto moderno de controle absoluto 
dos entes e da existência. Conforme dissemos anteriormente, Bauman (2001) 
postula que os corpos saudáveis na modernidade se transformam num objeto 
desejável que muitos buscam aprimorar para que possam se manter sempre a 
postos, sempre em movimento. A morte aparece neste horizonte de sentido como 
um fenômeno que deve ser gerenciado pelos cientistas e administradores capazes 
de nossa época, pois configura um obstáculo a este movimento incessante que deve 
continuar a todo custo. Assim, substâncias e prescrições para manter a saúde 
surgem, uma após a outra em ritmo acelerado, prometendo otimizar o 
funcionamento do corpo para que este não entre em colapso. A saúde, na 
modernidade, se transforma, então, em algo cujo controle deve ser conquistado. 
Nogueira (2001) utiliza o termo higiomania para se referir à tentativa de 
gerenciar a saúde configurando uma prática de culto ao corpo na modernidade. A 
palavra higiomania tem origem na expressão grega hugiês que quer dizer sadio, 
saudável, robusto e remete à tentativa incessante de conquistar a saúde. As 
tecnologias e o saber médico-científico passam a ser consumidos de maneira 
compulsiva e a saúde transforma-se numa mercadoria desejável. Uma após a outra, 
surgem tecnologias, novas descobertas e substâncias que prometem através de seu 
consumo uma saúde utópica, delineando um futuro onde a morte seria finalmente 
vencida. A busca da higiomania é alcançar através do aprimoramento da saúde a 
superação das doenças, do envelhecimento e da morte. Esses fenômenos, de 
acordo com Nogueira (2001), não são nem mencionados por essa concepção de 
saúde, uma vez que são vistos como falhas e a morte nessa perspectiva é o maior 
obstáculo a ser enfrentado. A pretensão da higiomania é criar homens imortais. 
A medicina e a ciência, movidas pelas demandas do homem moderno 
tornam-se cada vez mais intervencionistas, possibilitando alguns progressos 
inimagináveis para as pessoas que viveram no século passado. A técnica, aliada à 
ciência, foi capaz de aumentar a expectativa de vida consideravelmente, eliminar 
36 
 
 
uma gama de doenças infecciosas, transplantar órgãos, diagnosticar com requinte, 
detectando anomalias genéticas mesmo antes do nascimento, controlar a dor e 
reabilitar lesões que antes eram irreversíveis (HANSON; CALLAHAN, 2009). Se no 
passado a morte era a expressão da vontade dos deuses, na modernidade a morte, 
cada vez mais, é passível de controle pelo homem. 
De acordo com Dantas, Sá e Carreteiro (2009), podemos observar a tentativa 
de gerenciamento da vida e de controle da morte por meio das discussões 
científicas a respeito das possibilidades de prolongamento da vida biológica. Isso 
também pode ser observado na cultura comercial que promete planejar e gerenciar 
da vida, na ampla oferta de produtos das indústrias de saúde e também pelo modo 
como o homem contemporâneo lida com os doentes terminais e com os mortos 
através de uma perspectiva biológica que busca sua assepsia e negação. Para os 
autores, este modo de lida que é comum na modernidade revela uma busca por 
trazer o fenômeno da morte ao mesmo campo dos problemas operacionais de 
produção, procurando gerenciar a vida de uma forma eficiente para conquistar uma 
existência livre de perigos e sofrimentos. Entretanto, quanto mais se intensificou a 
busca pelo gerenciamento da vida e pelo controle da morte, mais o homem moderno 
foi confrontado com a sensação de fracasso, pois morte e angústia permanecem 
imunes ao projeto de controle e consumo característicos da modernidade. 
 
 
2.1. A lida com a morte no mundo moderno 
 
 
Diversos estudiosos atuais contribuíram para esta discussão sob perspectivas 
distintas. Enquanto Heidegger trata a morte sob a perspectiva ontológica, outros 
autores pensaram a morte sob uma perspectiva ôntica, tomando-a como fato 
histórico, biológico, sociológico ou questão bioética. Recorreremos a seguir a alguns 
desses autores, por acreditar que a discussão ôntica pode contribuir para que venha 
à luz o modo como a lida com a morte aparece na modernidade, mediada por 
ciências especializadas que buscam gerenciar, conquistar controle sobre este 
fenômeno afastando-o máximo possível. 
37 
 
 
Philippe Ariès (1977), em História da Morte no Ocidente, se debruça sobre as 
mudanças na atitude perante a morte ocorridas no decurso da história. Na 
perspectiva de Ariès, até a Idade Média, a morte era um evento social e, na maioria 
das vezes, ocorria em casa, próximo aos amigos. A partir do século XX,

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