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From initial education to the Portuguese L1 classroom This content is licensed under a Creative Commons Attribution License, which permits unrestricted use and distribution, provided the original author and source are credited. D.E.L.T.A., 38-2, 2022 (1-42): 202238250256 D E L T A https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X202238250256 Artigos A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas e sua confi guração genérica The relationship between the verbal-visual cohesive chains of serial comic strips and their generic confi guration Alex Caldas Simões1 RESUMO Afi nal, qual a relação entre o texto e o gênero? Partindo da linguística sistêmico-funcional de Hasan (1989) e das postulações da Linguística Textual sobre a coesão verbo-visual (Ramos, 2012), nossa pesquisa investiga se há relação entre as cadeias coesivas e os movimentos estruturais das tiras. Com o auxílio do NVIVO, analisamos essa hipótese em 20 tiras cômicas seriadas de Ed Mort, de Veríssimo e Paiva (1991). Constatamos que o formato retangular favorece a realização das anáforas visuais e verbais; que a introdução referencial de personagens se realiza pelo plano de visão total; e que a introdução referencial de novos cenários se realiza pelo plano de visão geral. O plano de visão detalhe realiza a recategorização dos objetos do discurso, assim como o uso do ângulo de visão inferior, da transição de quadros aspecto para aspecto, da ausência de requadro, da metáfora visual e do plano de visão primeiro plano. A seriação da tira é reforçada pela realização dos encapsuladores verbo- visuais. Concluímos que na tira cômica seriada a coesão se articula 1. Instituto Federal do Espírito Santo – Ifes. Venda Nova do Imigrante – Brasil. https:// orcid.org/0000-0002-6661-6436. E-mail: alex.simoes@ifes.edu.br. 2 38.2 2022 Alex Caldas Simões com os movimentos estruturais do texto. A coesão, portanto, surge como elemento que articula texto e gênero e, para nós, deve passar a ser o núcleo de análise do texto. Palavras-chave: Estrutura Potencial do Gênero (EPG); Coesão verbo- visual; Tira Cômica Seriada. ABSTRACT After all, what is the relationship between text and genre? Based on Hasan’s (1989) systemic-functional linguistics and Textual Linguistics postulations on verbal-visual cohesion (Ramos, 2012), our research investigates whether there is a relationship between the cohesive chains and the structural movements of the strips. With the help of NVIVO, we analyzed this hypothesis in 20 serial comic strips by Ed Mort, by Veríssimo and Paiva (1991). We found that the rectangular format favors the realization of visual and verbal anaphors; that the referential introduction of characters takes place through the plane of total vision; and that the referential introduction of new scenarios is carried out through the general vision plan. The detail view plane performs the recategorization of the objects of the speech, as well as the use of the lower viewing angle, the aspect-to- aspect frame transition, the absence of frame, the visual metaphor and the foreground view plane. The serialization is reinforced by the realization of the verbal-visual encapsulators. We conclude that in the serial comic strip, cohesion is articulated with the structural movements of the text. Cohesion, therefore, appears as an element that articulates text and genre and, for us, must become the core of text analysis. Keywords: Generic Structure Potential (GSP); Verb-visual cohesion; Serial Comic Strip. 1. Introdução Como sabemos, a gramática teve primazia no ensino de língua portuguesa no Brasil. Foi na década de 1990 e nos anos 2000, com a promulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Pcn, 1998), que os gêneros discursivos passaram mais efetivamente a ser abor- dados na escola e as discussões sobre a língua portuguesa ganharam novos rumos. Novos gêneros passaram a fi gurar no ensino de língua A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 3 38.2 2022 materna, bem como outras linguagens, tais como a dos quadrinhos, a do teatro e a do cinema. Nesse contexto, ao fi nal dos anos 2000, o gênero discursivo, com seus movimentos estruturais, e o texto, com sua gramática e textualidade, passam a ser abordados em sala de aula, juntos ou separados, sendo, ainda nesse contexto, que as relações entre ambos não estavam muito bem defi nidas. Desde então, estudos sobre essa relação, entre as cadeias coesivas e os movimentos de confi guração dos gêneros discursivos, desenvolve- ram-se de forma profícua no campo das ciências da linguagem (Vieira, 2006; Ikeda at al., 2019); eles se perguntam, a partir de diversos gêne- ros, se há alguma relação entre as cadeias coesivas e os movimentos estruturais do texto. A sistemicista Hasan acredita que as duas unidades de composição do texto – a unidade de textura (que apresenta as cadeias coesivas) e a unidade de estrutura (que apresenta os movimentos estruturais do texto) – não se relacionam, ainda que as cadeias coesivas possam apresentar “uma relação estreita com os movimentos estruturais do texto” (Hasan, 1989, p. 115), como já foi provado em alguns gêneros discursivos, tais como a “narrativa fi ccional” (Hasan, 1984b, apud Hasan, 1984, p. 115) e “exposição” (Martin, 1984, apud Hasan, 1984, p. 115). Em alguns gêneros discursivos, portanto, há uma estreita relação entre as cadeias coesivas e os movimentos estruturais do texto e em outros não. Será que esse é o caso dos gêneros de tiras, mais especifi - camente da tira cômica seriada? Nossa hipótese é que os movimentos estruturais do gênero – juntamente com as linguagens constituintes e sua gramática – articulam-se entre si por meio de seus mecanismos de coesão, sejam eles verbais, visuais ou verbo-visuais. A fi m de provar essa relação, apresentamos a confi guração do gê- nero tira cômica seriada por meio da abordagem sistêmico-funcional de gêneros discursivos cunhada por Ruqaiya Hasan (1989). Analisamos as cadeias coesivas presentes no texto por meio das postulações da linguística textual sobre a coesão verbo-visual proposta por Ramos (2007, 2009, 2011, 2012) e Capistrano Júnior (2011, 2012, 2017). E, por fi m, relacionamos as descrições realizadas. Isso revelou como se dá, nas tiras cômicas seriadas, a relação entre as cadeias coesivas e os movimentos estruturais do texto. 4 38.2 2022 Alex Caldas Simões Nesse sentido, com o auxílio do software NVIVO de análise qua- litativa, apresentamos – de 20 exemplares da tira cômica seriada de Ed Mort, de Luiz Fernando Veríssimo e Miguel Paiva, publicadas no livro Procurando o Silva (1991) – a Estrutura Potencial (EPG) das tiras cô- micas seriadas, bem como a frequência de realização da linguagem dos quadrinhos realizada. Em seguida, com o auxílio do mesmo programa, analisamos as cadeias coesivas verbais e imagéticas encontradas no corpus de investigação. Ao fi nal comparamos os resultados tecendo relações entre ambos. Iniciamos o texto apresentando aspectos teórico-metodológicos de nossa pesquisa. Justifi camos nossas escolhas teóricas e, em seguida, apresentamos as teorias e as análises do corpus de forma conjunta e integrada. A primeira seção dos resultados e discussões descreve os aspectos teóricos fundamentais da teoria de confi guração de gêneros discursivos de Hasan, bem como as relações entre texto e contexto e a confi guração do gênero tira cômica seriada. A segunda parte descreve aspectos teóricos e de análise da coesão verbo-visual; e a terceira, por fi m, relaciona os movimentos estruturais do texto e a coesão verbo- -visual. 2. Fundamentação teórico-metodológica A pesquisa em pauta caracteriza-se como qualitativa, portanto, de cunho interpretativo analítico (Silverman, 2009), bem como quan- titativa, uma vez que quantifi caremos os resultados encontrados em termos de frequência. Como método de pesquisa, abordamos, ainda conforme Silverman (2009), a análise de textosque compõem o nosso corpus de estudo. Analisamos as tiras cômicas seriadas de Ed Mort, escritas por Luis Fernando Veríssimo e desenhadas por Miguel Paiva. Utilizamos como textos de análise 20 tiras que compõem o livro Procurando o Silva (1991). A temática das tiras se refere à apresentação do caso que dá nome ao livro. Em nossa pesquisa, utilizamos o seguinte aporte teórico-metodo- lógico: A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 5 38.2 2022 Quadro 1 – Referencial teórico-metodológico Conceitos Postulações Estrutura Potencial do Gênero e Confi gu- ração Contextual Hasan (1989) Quadrinhos como semiótica verbo-visual* Tese do autor, Simões (2018) Mecanismos de Coesão verbo-visual Ramos (2012), Capistrano Júnior (2011, 2012) Linguagem dos Quadrinhos Ramos (2007, 2009, 2011); Cagnin (2014) Fonte: do autor (2021) Salientamos que as discussões sobre a análise coesiva de textos multimodais serão retomadas das discussões de Ramos (2012) e Capis- trano Júnior (2011, 2012, 2017). Vale destacar que aqui a Linguística Textual será utilizada como meio para se chegar as estruturas coesivas verbo-visuais. Acreditamos que a Linguística Textual não é só uma teoria, mas acima de tudo um modelo de análise textual, uma posição metodológica para a análise, compreensão e interpretação de textos. Dessa forma, essa pode ser encarada como uma estratégia metodológica para análise de textos que pode ser utilizada por outros marcos teóricos funcionais para análise de aspectos particulares, como a coesão. Em nossa investigação, portanto, tomamos a Linguística Textual, utilizada por Ramos (2012) e Capistrano Júnior (2011, 2012, 2017) para a análise da coesão verbo-visual dos quadrinhos, como metodologia para se chegar aos mecanismos coesivos verbo-visuais utilizados nas tiras cômicas seriadas de Ed Mort. As teorias sistêmico-funcionais, como sabemos, tendem a não se misturar com outros aportes teóricos. Longe de desconhecer as teorias de imagens salientamos aqui que o aporte sistêmico-funcional voltado para análise de imagens estáticas (Kress & Van Leeuwen, 1996, 2006) não pode ser aplicado diretamente aos quadrinhos – muitos sistemicistas * “Chegamos, portanto, à postulação do conceito de semiótica verbo-visual (ou dos quadrinhos). Acreditamos que quadrinho é um campo semiótico, que se realiza em um contínuo de gêneros textuais/discursivos. Logo, não se pode dizer que um texto é ou não quadrinho. Há, portanto, textos que, se reconhecidos socialmente como quadrinhos, realizam-se com maior ou com menor recorrência de elementos verbo-visuais da linguagem dos quadrinhos.” (Simões, 2018, p. 51). 6 38.2 2022 Alex Caldas Simões me questionam porque não utilizo essas teorias na análise de quadri- nhos e sempre tenho que responder. Os quadrinhos não são imagens estáticas, são imagens que pressupõem movimento: “imagens pictóricas justapostas e outras em sequência deliberada destinada a transmitir informações e/ou produzir uma resposta no espectador” (Mccloud, 1995, p. 9). Logo, eles se defi nem, principalmente, pela presença da sarjeta (aquele espaço em branco entre um quadro e outro), onde a história acontece. É por essa razão que não utilizamos essas teorias aqui. A Linguís- tica Textual parece ter mais avanços em relação aos estudos com os quadrinhos (Ramos, 2007; Capistrano, 2012). Por isso reunimos aqui Linguística Textual (como método) e a Linguística Sistêmico-Funcional de Hasan (como teoria). 2. Fundamentação teórico-metodológica 3.1. Tira cômica seriada e gênero: teoria e análises empreendidas Estudos empreendido com as postulações sistêmico-funcionais de Hasan são desenvolvidos desde 1993 – ver ampla revisão de literatura realizada por Simões (2016; 2020). Há pesquisas com os contos de fada (Hasan, 1996), o estágio supervisionado (Silva & Fajardo-Turbin, 2011; Silva, 2012, 2013), o editorial de jornal (Ansary & Babaii, 2005; 2009), a introdução/conclusão de gêneros acadêmicos da área de enge- nharia (Navarro & Simões, 2019), e o texto dissertativo-argumentativo (Ikeda et al., 2019), entre outros. No Brasil, a teoria foi popularizada por Motta-Roth e Herbele (2005). Em suas postulações, Hasan defende que há uma relação indisso- ciável entre texto e contexto, bem como entre gênero e cultura. Essa relação pode ser descrita da seguinte forma: A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 7 38.2 2022 Esquema 1 – A cultura, a situação e a confi guração contextual Fonte: Hasan, 1989, p. 100 A cultura (o potencial semiótico), no topo do diagrama, correspon- de ao conjunto total de signifi cados que uma certa comunidade pode realizar. Nela estão as formas de “fazer, modos de ser e maneiras de dizer” (Hasan, 1989, p. 99). A cultura contém – como observamos nas setas duplas verticais – o potencial semântico, ou seja, todos os valores realizados pela língua em uso (linguagem), expressos em variáveis campo2, relação3 e modo4 (CRM) – como observamos nas setas duplas 2. A variável campo do discurso concerne à natureza da atividade social, que envolve tanto as ações/atos que estão sendo realizadas, como seu(s) objetivo(s).” (Hasan, 1989, p. 56). 3. Investigam-se os papeis dos agentes, bem como “as relações entre os participantes, que surgem a partir de suas biografi as ou vivências em comum” (Hasan, 1989, p. 57). Investiga-se a distância social entre eles, se máxima ou mínima. “Quanto maior a distância social mínima, maior o grau de familiaridade entre os participantes.” (Hasan, 1989, p. 57). 4. Investiga-se o papel da linguagem verbal “se constitutiva ou auxiliar do ato comuni- cativo” (Hasan, 1989, p. 58); o processo de compartilhamento do texto (canal, fônico ou gráfi co); se “o destinatário é capaz de partilhar o processo de criação do texto, como ele se desenvolve, ou o destinatário vê o texto só quando ele é um produto acabado” (Hasan, 1989, p. 58); qual o meio de realização do texto, se falado ou escrito. 8 38.2 2022 Alex Caldas Simões horizontais. Por sua vez, a o potencial semântico específi co do gênero está contido no potencial semântico. É ali, a partir de uma calibração dos valores de campo, relação e modo que surge o gênero. Para Ha- san (1989, p. 108), “gênero é uma forma abreviada para a frase mais elaborada ‘potencial semântico específi co do gênero.” Uma vez apresentado as relações entre a cultura e gênero, apresento o conceito de texto. Aos moldes sistêmico-funcionais, texto pode ser conceituado como o potencial de signifi cado realizado (Hasan, 1989). Esse texto está relacionado diretamente ao seu contexto de situação ou produção; ou seja, há uma relação “de mão dupla entre texto e contex- to” (Hasan, 1989, p. 55). Por meio do contexto podemos prever que estruturas devem ou podem ocorrer em um texto. Da mesma forma, por meio do texto, podemos reconstruir as características de seu contexto. A partir do Contexto – chamado por Hasan de Confi guração Con- textual (CC), “um conjunto de valores que realizam campo, relação e modo.” (Hasan, 1989, p. 56) – podemos prever: (a) que elementos devem ocorrer?; (b) Quando eles devem ocorrer?; (c) Quando podem ocorrer?; e (d) Com que frequência podem ocorrer? De posse da Confi guração Contextual (CC) do gênero tira cômica seriada de Ed Mort, por exemplo, podemos prever que elementos devem ocorrer (os obrigatórios) e que elementos podem ocorrer (os opcionais). Da mesma forma, podemos elencar qual dos elementos (obrigatórios ou opcionais) podem surgir no texto sobre o fenômeno de iteração (o que os torna elementos iterativos5). Logo, a Confi guração Contextual (CC) da tira cômica seriada de Ed Mort realiza-se da seguinte maneira: Campo: Narração fi ccional longa, segmentada com vistas a construção do humor-seriado baseado em personagem fi xo. Relação: O autor está na condição de desenhista. Os leitores são aqueles interessados na leitura de quadrinhos. Modo: Linguagem multimodal,constituída a partir da associação de imagem e texto. De forma mais específi ca temos que: o papel da linguagem verbal é auxiliar na composição da tira, cujo foco central é a imagem; o canal é 5. Esses elementos podem ser compreendidos como elementos recursivos, ou seja, sua existência é sempre “uma opção” (Hasan, 1989, p. 62). São recursos estruturais, portanto, de construção de signifi cado. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 9 38.2 2022 gráfi co (multimodal: escrito + imagético); o meio é escrito; e o processo é dialógico. (Simões, 2018, p. 241). Diante de seu Contexto (CC), podemos dizer que o texto deve6 realizar, a fi m de constituir-se como uma tira cômica seriada (Simões, 2018): • Um formato retangular (FR), uma vez que a narrativa é apresen- tada aos leitores em um tamanho defi nido (10X15) pelo suporte livro; • A Cor (C), no caso preto-e-branco, predefi nidos pelo suporte livro; • Uma Estrutura Narrativa (EN), uma vez que o texto é uma narrativa que termina com desfecho cômico; • Um ou mais Personagens (P), que irão contar a história, sendo eles protagonistas, coadjuvantes ou fi gurantes. Tais personagens, a fi m de contar suas anedotas, devem realizar o balão e podem realizar de forma iterativa legendas, linhas e traços e metáforas visuais; • Um espaço (E), onde a história irá se desenvolver, sendo apre- sentado por meio de planos de visão, ângulos de visão e transição de quadros. • Diversas sarjetas (Sar) e requadros (Rq), uma vez que estes elementos da linguagem dos quadrinhos delimitam os diversos fatos da história que serão apresentados ao leitor; 6. Dever ou poder é uma questão de frequência de realização no corpus de estudo. “Acreditamos que devam ser classifi cados como elementos obrigatórios aqueles que sempre ocorrem, ou seja, aqueles que apresentam uma frequência considerada alta no texto, mais de 80% (81% em diante) dos exemplares em análise. Logo, os elementos opcionais passam a ser aqueles que podem ocorrer com frequência considerada baixa no texto, menos de 80% do corpus em análise. Dessa forma, ainda em nosso entendimento, os elementos obrigatórios ou opcionais que estiverem entre 75% e 85% de presença no corpus analisado se encontram em estágio de mudança e/ou transformação, uma vez que podem mudar de categoria analítica, passando de obrigatórios para opcionais ou de opcionais para obrigatórios, a depender do contexto de situação a ser mapeado. Esse fato evidencia que a Estrutura Potencial do Gênero é probabilística e pode sofrer mudanças no tempo e no espaço.” (Simões, 2018, p. 144). 10 38.2 2022 Alex Caldas Simões • O tempo (Tem), uma vez que este é o responsável por delimitar a época dos acontecimentos narrados; o tempo de duração de cada cena e dos diálogos empreendidos na aventura; • Uma Assinatura Autoral (Aau), a fi m de demarcar a autoria da tira realizada; • Uma Identifi cação Bibliográfi ca (Ib), a fi m de demarcar o nome da tira, que no caso é retomada através da capa do livro e, por- tanto, não surge em cada tira, mas uma única vez. • Uma Seriação (S), que objetiva indicar ao leitor a ordem de leitura da narrativa humorística que irá continuar na próxima tira. Para exprimir toda essa gama de possibilidades de realização, Ha- san elabora o conceito de Estrutura Potencial do Gênero (EPG), que se compõe de todos os elementos obrigatórios, opcionais e os iterativos. De forma didática, podemos confi gurar uma EPG7 da seguinte forma: 7. Recuperamos as análises já realizadas por nós com este gênero e corpus em nossa tese de doutorado (Simões, 2018 – ver páginas 241-265). No projeto original indicamos a análise de todas as tiras do livro. Entretanto, constatamos que, por questões quantitativas e qualitativas, os 20 exemplares de tiras já nos foram sufi cientes para alcançar resultados relevantes de pesquisa e que satisfazem nossas hipóteses de investigação. Na pesquisa atual, entretanto, diferente da empreendida na tese, utilizamos como ferramenta de análise o software NVIVO, o que potencializou nossos resultados, uma vez que não é comum a pesquisa de quadrinhos a análise de dados quantitativos. Com o software realizamos a relação qualitativa entre a coesão e a Estrutura Potencial, como se verá nos diagramas elaborados. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 11 38.2 2022 Quadro 2 – Composição da CC e EPG: designação, conceitos e metodologias de análise. P O T E N C I A L S E M Â N T I C O CC Composição da EPG Designação Perguntas de investiga- ção Campo Realizam Relação e Modo Realizam Elementos OBRIGATÓRIOS Aqueles que devem ocorrer. Para CC: O que acontece com a linguagem em uso? Para EPG: O que se repete em todos os exemplares do corpus? Elementos OPCIONAIS Aqueles que podem ocorrer. Para CC: Qual a relação entre os participantes do discurso? Para EPG: O que somente às vezes surge nos exem- plares do corpus? Elementos ITERATIVOS Aqueles que podem ocorrer com certa frequência. Para CC: Quais os modos de organização da lingua- gem no discurso? Para EPG: Que elementos opcionais se repetem mais de uma vez e em variadas posições em um mesmo exemplar de nosso corpus? Fonte: construída a partir das postulações de Hasan (1989) e divulgada por Simões (2018, p. 156). A EPG se apresenta por meio de uma fórmula, como a descrita abaixo: Imagem 18 – Estrutura Potencial do Gênero tira cômica seriada Fonte: Simões, 2018, p. 243. 8. Os elementos obrigatórios estão assinalados em negrito; os opcionais em itálico e os iterativos com a seta à esquerda acima das letras. Os asteriscos mostram se o elemento possui uma ordem fi xa ou não. As tiras cômicas seriadas não apresentam elementos op- cionais (Simões, 2018). 12 38.2 2022 Alex Caldas Simões A EPG é uma estrutura probabilística que tenta retratar de forma ideal todas as possiblidades estruturais do texto. Por fi m, podemos dizer ainda que o texto, segundo Hasan (1989), possui duas unidades: (a) a unidade de textura, onde estão os mecanismos de tessitura do texto; e (b) a unidade de estrutura, onde estão os elementos textuais responsáveis pela realização da Estrutura Potencial do Gênero (EPG). Acreditamos, assim como Simões (2018, p. 343) que o “gênero é a unidade de estrutura em Hasan, aquela responsável pela identidade genérica, onde está a Estrutura Potencial do Gênero (EPG) e as lin- guagens não-verbais constituintes do texto.” Uma vez descrita as postulações da Estrutura Potencial do Gênero (EPG), juntamente com as discussões de nosso corpus de pesquisa, passemos a descrever as teorizações que analisam a coesão verbo-visual das tiras cômicas seriadas. 3.2. A coesão verbo-visual Os estudos sobre a multimodalidade tem sido objeto de estudos da Linguística Textual desde a (re)discussão do conceito de texto, que foi expandido a fi m de abarcar dimensões imagéticas e verbo-visuais (Cavalcante et al, 2014; Cavalcante & Custódio Filho, 2010). Nesse sentido merecem destaques os estudos sobre a coesão verbo-visual nas tiras cômicas (Ramos, 2007, 2012; Capistrano, 2012). A fi m de desvendar os processos coesivos verbo-visuais da tira cômica seriada, apresentamos uma breve análise dos processos referen- ciais contidos em uma das tiras cômicas seriadas de Ed Mort (1977), de Luis Fernando Verissimo (texto) e Miguel Paiva (desenho). Dis- cutimos a primeira tira do livro Ed Mort: procurando o Silva (1977), como podemos ver abaixo (Fig. 01). Concomitante com a análise da tira, apresentamos os conceitos da linguística textual que embasam a nossa pesquisa. O livro de Ed Mort inicia com a seguinte tira: A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 13 38.2 2022 Figura 1 – Tira 01, Ed Mort em Procurando o Silva, p. 3 O texto acima apresenta, como é visível, aspectos linguísticos verbais e não-verbais, o que chamamos de elementos verbo-visuais.A análise de textos multimodais por meio do escopo teórico-metodológico da Linguística Textual (LT) já vem sendo postulada pelo grupo de pes- quisa GETEXTO (UNIFESP). Eles defendem que é possível realizar por meio LT a análise simultânea da modalidade verbal e não verbal, ou seja, o mesmo “escopo teórico aplicado aos enunciados verbais escritos é válido também para os de cunho visual ou verbo-visual” (Ramos, 2012, p. 744). É nesse sentido que validamos também a análise que empreendemos, por considerarmos essa tese plausível e aceitável dentro do que se propõe. Quando falamos em referenciação, podemos considerar ainda que, se as expressões referenciais utilizadas nesse processo são seleciona- das de acordo “com a audiência, com os propósitos comunicativos, com o contexto imediato”, entre outros (Authier-Revuz, 1998, apud Magalhães, 2011, p. 28), a seleção de referentes responde, portanto, a exigências do gênero textual que as constitui. Logo, podemos dizer que é o gênero textual um dos mecanismos discursivos que regulam os processos referenciais dos textos. Sendo assim, investigar a refe- renciação por meio da confi guração de gêneros responde a uma grande lacuna de pesquisas, que pode ser expressa pela seguinte questão: como articular texto e gênero em práticas de leitura e escrita? Quando investigamos os referentes do texto, observamos que eles se relacionam diretamente com gênero discursivo realizado. Conclu- ímos, com isso, que a relação texto-gênero ou gênero-texto é inter- dependente e não pode se processar de maneira separada ou distante. Acreditamos que essa análise requer uma observação simultânea entre 14 38.2 2022 Alex Caldas Simões texto e gênero, entre as cadeias referenciais utilizadas e as etapas de confi guração do gênero. É tomando como base tais preceitos que descrevemos abaixo os processos de referenciação ocorridos na tira cômica seriada de Ed Mort. Esperamos com tal descrição perceber, com um pouco mais de clareza, como o gênero tira cômica seriada realiza suas estratégias de referenciação. A primeira consideração a se fazer é que na tira a referenciação se dá no quadrinho (dentro da vinheta9 ), entre a modalidade verbal e visual, assim como na articulação entre um quadrinho e outro (Ramos, 2012). Outro aspecto a se considerar é que textos de humor normalmente tem como exigência a recategorização processada por meio de inferên- cias (Ramos, 2012), como podemos ver na tira 02 de Ed. Mort (Fig. 02), em que o ratão albino do escri é chamado de Voltaire (aquele que “desaparece, mas sempre volta”, por isso Voltaire, de Voltar. Figura 2 – Tira 02, Ed Mort em Procurando o Silva, p. 3 Logo, entender a tira cômica seriada Ed Mort é perceber que muito do humor da tira é construído por recategorizações que se processam na medida em que os leitores realizam corretamente as inferências solicitadas – do contrário o humor não é percebido. Na primeira tira do livro (Fig. 1) podemos observar que o discurso se dá de forma direta entre personagem (Ed. Mort) e leitores do jornal. 9. Vinheta ou quadro (Ramos, 2009). Uma tira cômica tem normalmente três quadros (ou três vinhetas). A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 15 38.2 2022 Há presença de balões de fala, cujo conteúdo textual é grafado em caixa alta, próprio ao gênero. A exemplo da análise de Ramos (2012), salientamos que na tira de Ed Mort, como em outros quadrinhos e tiras, os objetos do discurso são de ordem visual (ou verbo-visuais, termo de nossa preferência) e são recuperados de forma anafórica pela cena seguinte em relações de cunho coesivo. Na Fig.1, temos o objeto do discurso Ed Mort e o objeto do dis- curso escritório. O primeiro objeto é o protagonista da série de tiras, informação esta que é recuperada por meio de nossos conhecimentos prévios e compartilhados sobre o personagem ao ler a capa do livro ou outros livros do autor. Afi nal, se o livro de tiras se chama Ed Mort e o personagem afi rma que seu nome é Ed Mort é ele o detetive particular da história. Na tira 1 é apresentado o personagem principal da tira e sua profi ssão: detetive particular que cuida de casos de morte, por isso o uso dos recursos fonético-fonológicos na expressão sonora do nome do personagem é de morte (escreve-se Ed Mort), ou seja, Ed Mort é um detetive que cuida de casos de morte. As vinhetas que se seguem continuam a apresentar o personagem dizendo o que ele tem (um escri), isso se processa anaforicamente quando a vinheta 2 retoma a vinheta 1, e assim por diante até o desfecho cômico. No quadro 1, Ed Mort está caminhando pela escada da galeria de Copacabana em direção ao seu escritório. O quadro dois retoma ana- foricamente a cena anterior, onde se percebe que o personagem estava descendo a escada para chegar ao seu local de trabalho (vemos a escada ao fundo da cena) e o personagem se virando para a porta do escritório. Já o quadro 3 explica o porquê do objeto do discurso escritório foi recategorizado na tira como “escri”, pois o personagem “não gosta de ostentação” e por isso não adicionou à palavra “escri” o “tório” também. O afeito de humor reside na associação do objeto do discurso escri numa galeria em Copacabana (construído com corredores escuros) com objeto de discurso Ed Mort (o detetive de casos de morte). Nova- mente o nosso conhecimento de mundo é acionado e, por meio dele, percebemos que as galerias em Copacabana na realidade não possuem ostentação e, por isso mesmo, não havia necessidade de Ed Mort dizer que ele “não gosta de ostentação.” Essa repetição do óbvio gera humor. 16 38.2 2022 Alex Caldas Simões Se o terceiro quadro é destinado para a construção do desfecho cômico da tira, o quarto quadro é destinado, ao menos nesse exemplar, para construir a continuidade da história. O personagem diz – em close e em quadro maior do que os anteriores, o que enfatiza que essa cena demorou mais do que as outras para ocorrer – “Mort Ed Mort Está na porta” (e também aponta para a porta, enfatizando o que disse “na porta”). Com essa estrutura textual, percebemos o intertexto com um outro famoso investigador de crimes, James Bond (Bond. James Bond10 ). Nesse momento, Ed Mort se aproxima discursivamente de James Bond. Na mesma hora em que essa imagem vai sendo construída, Ed Mort se distancia dela, pois ele diz que Ed. Mort está na porta, ou seja, ele não é como James Bond, o que disse no balão de fala é a leitura do que está escrito na porta (por isso enfatiza com o indicador a porta). Tendo descrito a maneira como se processa a coesão verbo-visual nas tiras de Ed Mort em Procurando o Silva, passemos a descrever as relações entre os mecanismos de coesão verbo-visuais e os movimentos estruturais do gênero. 3.3. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais e sua confi guração genérica Apresentamos abaixo as relações por nós encontradas ao analisar- mos as cadeias coesivas com os elementos obrigatórios e opcionais do texto. Cada item descrito representa uma relação encontrada. 3.3.1. O Formato retangular e a realização de anáforas O formato retangular, presente como elemento obrigatório nas tiras cômicas seriadas, favorece a construção das retomadas anafóricas ou catafóricas. Percebemos, sem difi culdade, que o último quadro retoma o anterior, e assim sucessivamente até o primeiro. A história é contada da esquerda para a direita, o que favorece a construção de um antes (anáfora) e um depois (catáfora), própria dos textos narrativos. 10. James Bond utilizava essa frase em suas aventuras. Logo, Mort realiza um claro intertexto com Bond. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 17 38.2 2022 3.3.2. O Planos de visão total ou de conjunto e a introdução re- ferencial No plano de visão total ou de conjunto o personagem é apresentado dentro da cena, dando primazia para o personagem. “O ser é representa- do de maneira mais próxima.Reduz-se a importância do ambiente que o cerca e o personagem passa a ganhar mais atenção” (Ramos, 2009, p. 138). Em nossa pesquisa, evidenciamos que esse plano favorece a realização da introdução referencial. Por sua realização, o plano total ou de conjunto é realizado na mesma proporção em que há a introdução de novos personagens à história, como apresentado abaixo: Figura 3 – Tira 03, Ed Mort em Procurando o Silva Na fi gura 3, os advogados da Sra. Silva, personagens coadjuvantes e fi gurantes, são apresentados na história pela primeira vez – em uma introdução referencial. O espaço, portanto, realiza-se como plano de visão total ou de conjunto. A introdução referencial é apresentada pela legenda “vários homens” que é recategorizada para “meus advoga- dos.” A recategorização é acompanhada pelo plano de visão total ou de conjunto que focaliza os advogados como personagens, os quatro advogados ao lado da Sra. Silva, ao centro da cena. No decorrer da cena, a recategorização dos homens em advogados é questionada por Ed. Mort, que os testa dizendo “Data Venia.” A introdução referencial também se relaciona com o plano de visão total ou de conjunto na apresentação do personagem porteiro (coadjuvante), como apresentado na tira abaixo: 18 38.2 2022 Alex Caldas Simões Figura 4 – Tira 03, Ed Mort em Procurando o Silva Na fi gura 4, em especial na segunda vinheta, o porteiro surge na história pela primeira vez – em introdução referencial – a partir do plano de visão total ou de conjunto, que evidencia sua postura, desatenta em relação às pessoas que passam. Logo, como se vê, a apresentação de personagens em introdução referencial se relaciona com o plano de visão total ou de conjunto realizado. De nosso corpus de pesquisa, com o auxílio do software de análise qualitativa11 NVIVO12, constatamos que essa relação é, aos moldes de Hasan (1989), opcional, visto a sua baixa frequência de realização. Diagrama 1 – relacionando o plano de visão total ou de conjunto com a intro- dução referencial Fonte: do autor (2021) 11. http://www.qsrinternational.com/nvivo-portuguese A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 19 38.2 2022 Ao relacionarmos as variáveis introdução referencial e o plano de visão total ou de conjunto, encontramos 5 referências em comum, ou seja, dos 07 corpus que apresentam a introdução referencial, 5 são realizadas pelo plano de visão total ou de conjunto (ver segunda coluna do diagrama). Isso signifi ca dizer que 71% das tiras cômicas-seriadas de nosso corpus realizam a introdução referencial por meio do plano de visão total ou de conjunto, o que caracteriza essa relação como op- cional12. Ela se torna iterativa também, uma vez que aparece em mais de um exemplar por vez, como apresentado na fi gura 3. Podemos observar também essa mesma relação presente no plano de visão geral ou panorâmico. Se o plano total ou de conjunto apresenta como introdução referencial um novo personagem colocado na cena, o plano geral ou panorâmico também apresenta como introdução refe- rencial algo novo na cena, mas desta vez a novidade está na mudança de cenário, como apresentado na tira abaixo: Figura 5 – Tira 20, Ed Mort em Procurando o Silva Na fi gura acima, Ed Mort sai de seu escritório (escri) em direção à casa da Sra. Silva. A troca de cenário é apresentada com a mudança de 12. “Para nós, consideramos que os elementos obrigatórios são aqueles que sempre ocorrem, ou seja, apresentam uma frequência considerada alta no texto, mais de 80% (81% em diante) dos exemplares em análise. Os elementos opcionais são aqueles que podem ocorrer, cuja frequência no corpus é considerada baixa no texto, menos de 80% do corpus em análise. Dessa forma, ainda em nosso enten- dimento, os elementos obrigatórios ou opcionais que estiverem entre 75% e 85% de presença no corpus se encontram em estágio de mudança e/ou transformação, uma vez que podem mudar de categoria analítica, passando de obrigatórios para opcionais ou de opcionais para obrigatórios, a depender do contexto de situação a ser mapeado” (Simões, 2018, p. 156). 20 38.2 2022 Alex Caldas Simões plano de visão e inicia-se a introdução referencial de um novo cenário, no caso a casa da Sra. Silva. Em nosso corpus de pesquisa a troca de cenário por um novo ocorreu apenas uma vez, sendo caracteriza, por- tanto, como opcional – dos 07 corpus que apresentaram a introdução referencial, apenas 01 se deu em plano geral ou panorâmico (14%), como podemos visualizar no diagrama abaixo: Diagrama 2 – relacionando o plano de visão geral ou panorâmico com a intro- dução referencial Fonte: do autor (2021) Diante do diagrama, compreendemos que a relação estabelecida é opcional, uma vez que, de nosso corpus de pesquisa, os planos ge- rais ou panorâmicos com introduções referenciais sugiram com baixa frequência. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 21 38.2 2022 3.3.3. O Plano de visão detalhe e a reiteração No plano detalhe é enfocado um objeto ou personagem em deta- lhes. “A atenção é para detalhes do rosto ou de objetos” (Ramos, 2009, p. 140). Essa focalização favorece a recategorização dos objetos do discurso (reiteração), como podemos ver abaixo: Figura 6 – Tira 07, Ed Mort em Procurando o Silva Na tira acima, Ed Mort está em seu escritório pensando no almoço quando “ela” surge em plano detalhe. A metáfora visual da música garo- ta de Ipanema é tocada, o que recategoriza “ela” para uma “coisa linda, cheia de graça.” A seguir, “ela” é recategorizada como “Mulherão”, o que é sugerido pelo plano detalhe da vinheta 2, que faz Ed Mort cair da mesa, haja vista as linhas de movimento presentes na cena. Podemos ver a mesma relação coesiva de reiteração por recatego- rização no uso de plano detalhe na fi gura 7, abaixo: Figura 7 – Tira 07, Ed Mort em Procurando o Silva 22 38.2 2022 Alex Caldas Simões Percebemos, conforme fi gura 7, que o “precisar de você” (vinheta 1) é recategorizado na vinheta 2. O serviço de detetive (trabalho) é re- categorizado para “serviços de acompanhante.” Nessa recategorização o plano de visão é modifi cado para o plano detalhe, o que é reiterado pela conjunção adversativa “mas.” Em nosso corpus de pesquisa constatamos que a relação entre o plano detalhe e a recategorização é opcional e iterativa, como podemos observar no diagrama abaixo: Diagrama 3 – relacionando o plano de visão detalhe com a reiteração Fonte: do autor (2021) Pelo diagrama percebemos que a relação entre reiteração e plano detalhe é opcional iterativa, uma vez que de 12 exemplares de reiteração 6 foram realizados pelo plano detalhe, 50%. Essa recategorização pode ocorrer mais de uma vez por texto, o que o caracteriza como iterativo, ou como um recurso para narrar. A mesma recategorização em plano detalhe ocorre na tira abaixo. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 23 38.2 2022 Figura 8 – Tira 16, Ed Mort em Procurando o Silva Discutiremos a fi gura 8 no item abaixo, uma vez que ele também se relaciona com o ângulo de visão inferior. 3.3.4. O Ângulo de visão inferior e a reiteração Na fi gura 8, anteriormente apresentada, na terceira vinheta, ob- servamos que o plano de visão detalhe e o ângulo de visão inferior recategorizam o conteúdo do balão fala “eu posso pagar” de dinheiro para “serviços de acompanhante”, daí o plano de visão enfatizar muito mais o corpo da Sra. Silva do que o dinheiro que ela tem na bolsa. Quando alteramos o ângulo de visão recategorizamos algo na narrativa apresentada. Consideramos que o plano de visão inferior se relaciona com a recategorização. Dos 20 textos analisados, 19 (95%) se realizaram por meio do ângulo de visão médio, somente 01 (5%) se realizou por meio do ângulo de visão inferior. Dos 12 textos com reiteração, um (01, 8,3%) se realizou por meio de ângulo de visão inferior, como observamos nodiagrama abaixo: 24 38.2 2022 Alex Caldas Simões Diagrama 4 – relacionando o plano de visão detalhe com a reiteração Fonte: do autor (2021) Modifi car o ângulo de visão, é, de alguma forma, recategorizar. Por sua baixa frequência nas tiras, quando surge, o ângulo de visão inferior é signifi cativo e recategoriza aspectos na cena apresentada. 3.3.5. A Seriação e os encapsuladores verbo-visuais A seriação, elemento obrigatório do gênero, é o número da tira que surge entre as sarjetas da tira. Essa seriação pode ser reforçada por encapsuladores verbo-visuais que retomam toda uma narrativa, devidamente numerada, de uma tira anteriormente apresentada. No exemplo abaixo (fi gura 9), apresentamos o personagem, elemento obrigatório iterativo, como um encapsulador verbo-visual, em destaque em vermelho. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 25 38.2 2022 Figura 9 – Tira 07 e 08, Ed Mort em Procurando o Silva Na fi gura acima (Fig. 9), há uma clara retomada da tira anterior, favorecendo a sua continuação. O plano detalhe e os personagens são repetidos. Há uma transição de tiras de movimento para movimento, como percebemos no piscar de olhos da Sra. Silva. O encapsulador é aqui essencialmente visual e se apresenta por meio do elemento obri- gatório personagem. Uma outra forma de se realizar o encapsulamento se dá quando as cenas dialogam com a anterior. As baratas (personagens), apresen- tadas na fi gura são retomados da tira anterior, onde elas estão no chão mostrando indiferença. Figura 10 – Tira 10, Ed Mort em Procurando o Silva 26 38.2 2022 Alex Caldas Simões Como se vê na fi gura acima, a Sra. Silva aponta para as baratas. Os insetos, como se vê, não estão na tira. O sintagma “baratas” é um encapsulador para a tira anterior, pois ele resume um humor já realiza- do, que se inscreve na legenda “as baratas fi ngiam indiferença,” como apresentado na abaixo. Figura 11 – Tira 9, Ed Mort em Procurando o Silva Quando relacionamos seriação e encapsulamento outros exemplos relevantes podem ser apresentados. Também podem funcionar como elementos encapsuladores, o balão (fi gura 12) e a legenda (fi gura 14). Na fi gura 12, o balão fi nal, em destaque, retoma o conteúdo verbal das duas vinhetas anteriores destacadas em vermelho. Há uma continu- ação da tira repetindo-se aspectos da anterior, no caso o plano detalhe e os conteúdos do balão-fala de Ed Mort. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 27 38.2 2022 Figura 12 – Tira 01 a 04, Ed Mort em Procurando o Silva A legenda (sem linha) também funciona como encapsulador verbo- -visual. Ela apresenta o que se passou na tira anterior, situando-a para o leitor da nova tira, como podemos ver na fi gura 14. 28 38.2 2022 Alex Caldas Simões Figura 14 – Tira 57 a 60, Ed Mort em Procurando o Silva A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 29 38.2 2022 Na fi gura acima (Fig. 14), o balão fi nal, em destaque, retoma o conteúdo verbal das duas vinhetas anteriores destacadas em vermelho. Há uma continuação da tira anterior repetindo aspectos da anterior, no caso o plano detalhe e os conteúdos do balão-fala de Ed Mort. O encapsulamento pode ocorrer tanto entre tiras como na mesma tira, como apresentamos na fi gura 15, abaixo: Figura 15 – Tira 19, Ed Mort em Procurando o Silva Na fi gura 15, Ed Mort, como narrador-personagem, apresenta as quatro coisas que sabe sobre o caso do Silva até o momento. O sintagma “aquele caso” (na vinheta 1) encapsula todas as tiras apresentadas até o momento. Destacamos ainda que os fatos apresentados nas quatro vinhetas são chamadas de “estas recapitulações” sintagma que encasula as três vinhetas anteriores. De nosso corpus de estudo, dos 20 textos que realizaram a seriação, três apresentaram encapsuladores, 15%. 30 38.2 2022 Alex Caldas Simões Diagrama 5 – relacionando a seriação com o encapsulamento Fonte: do autor (2021) A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 31 38.2 2022 Logo, como observamos no diagrama 5, a realização de encapsu- ladores nas tiras cômicas seriadas é opcional e iterativa, uma vez que surge poucas vezes no corpus de análise e mais de uma vez em um mesmo exemplar de nosso corpus de estudo. 3.3.6. A Transição de quadros aspecto pra aspecto e a reiteração Ao analisarmos o espaço, constatamos que a transição de quadros aspecto para aspecto favorece a recategorização de objetos do discur- so. Na tira abaixo, por exemplo, a recategorização foi realizada pela transição de quadros. Figura. 16 – Tira 07, Ed Mort em Procurando o Silva Na cena, a Sra. Silva diz à Ed Mort que precisa de seus serviços. Logo, o sintagma “preciso de você” é recategorizado de “trabalho” para “serviços de acompanhante”, em especial pela utilização do plano detalhe e da transição de quadro aspecto para aspecto. 32 38.2 2022 Alex Caldas Simões Diagrama 6 – relacionando a transição de quadros aspecto pra aspecto com a reiteração Fonte: do autor (2021) De nosso corpus, conforme diagrama acima (Diagrama 6), temos que dos casos de transição de quadro em destaque, inscrito em dois textos, ambos realizaram a reiteração. Por sua vez apenas 16% das tiras realizam a reiteração por meio da transição de quadros, o que a torna opcional. 3.3.7. A Ausência de requadro e a reiteração Nas tiras cômicas seriadas é comum a presença do requadro. Das tiras de nosso corpus das 62 ocorrências, 6 textos não possuem requa- dro. A ausência do requadro favorece a realização da reiteração. Na A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 33 38.2 2022 tira baixo a ausência do requadro recategoriza a Sra. Silva para “coisa mais linda mais cheia de graça.” Figura 17 – Tira 07, Ed Mort em Procurando o Silva A ausência de requadro sinaliza a demora da passagem do tempo. Essa signifi cação, sugere o andar (ou desfi lar) da garota de Ipanema até chegar à Ed Mort. Esse recurso reforça a recategorização criada também pelo plano de visão em detalhes. A mesma ausência do requadro também favorece a recategorização na tira seguinte, 18. Figura 18 – Tira 08, Ed Mort em Procurando o Silva Na segunda vinheta da tira, a ausência do requadro constrói uma pausa dramática para a piadinha contada por Mort para fazer a moça sorrir. Do corpus de trabalho, com o auxílio do NVIVO, constatamos que dos 12 textos com reiteração, 5 são realizados pela ausência do requadro. 34 38.2 2022 Alex Caldas Simões Diagrama 7 – relacionando a ausência de requadro com a reiteração Fonte: do autor (2021) Nesse sentido, a ausência de requadro se realiza de forma opcional e iterativa, 41%. Essa relação reforça a reiteração realizada por outros elementos da EPG como o plano de visão detalhe. 3.3.8. As Metáforas visuais e a reiteração As metáforas visuais também podem ser utilizadas como recursos para construção de recategorizações de objetos do discurso. A tira abaixo foi realizada com a presença de metáforas visuais, que recate- gorizam a Sra. Silva. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 35 38.2 2022 Figura 19 – Tira 07, Ed Mort em Procurando o Silva A tira acima já foi apresentada em nossa discussão. Três elementos favorecem a recategorização: o plano detalhe, a ausência do requadro e a metáfora visual. Destacamos aqui a presença da metáfora visual realizada na segunda vinheta. A música que surge na segunda vinheta recategoriza “ela” para “coisa mais linda, mais cheia de graça.” Essa metáfora é acionada ao relacionarmos nosso conhecimento de mundo sobre Ed Mort, que tem um escritório em uma galeria de Copacabana, e é carioca e compartilha todo estereótipo do Rio de Janeiro. Esses conhecimentos, categorizam a partitura musical para a música de Tom Jobim Garota de Ipanema – a notação musical seassemelha às partituras da música. De nosso corpus de pesquisa, a presença de metáforas visuais é pouco frequente. Das duas ocorrências em nosso corpus, uma realiza a recategorização, como observamos no diagrama abaixo: 36 38.2 2022 Alex Caldas Simões Diagrama 8 – relacionando a metáfora visual com a reiteração Fonte: do autor (2021) Dessa maneira, dos 12 textos que realizaram a reiteração, apenas um (8,3%) é realizado por meio de metáforas visuais. Logo, a relação texto e gênero é opcional, visto a sua baixa frequência nos textos de estudo. 3.3.9. O plano de visão primeiro plano e a reiteração A realização do primeiro plano favorece a realização da reca- tegorização de objetos do discurso. Entretanto, nos parece que essa recategorização só ocorre dessa forma quando é apenas imagética ou quando tem a imagem como fonte principal de signifi cação. Na tira abaixo, por exemplo, a recategorização se dá de forma imagética, no olhar de pesar da personagem. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 37 38.2 2022 Figura 20 – Tira 15, Ed Mort em Procurando o Silva Focalizando o primeiro plano, as feições do personagem se tornam signifi cativas e podem ser recategorizadas, no caso o olhar da Sra. Silva, que passa de um “pesar amoroso” para um “pesar fi nanceiro.” Na tira abaixo, também há um primeiro plano que favorece a recategorização. Figura 21 – Tira 18, Ed Mort em Procurando o Silva Na tira acima, Silva é recategorizado para “Juca”, um apelido dito em segredo. O sigilo dessa informação é realizado pelo primeiro plano, que enfatiza as mãos da personagem coadjuvante, e recategorizado verbalmente pelo sintagma “Juca.” Quando relacionamos o plano de visão primeiro plano e a recate- gorização encontramos a seguinte relação: 38 38.2 2022 Alex Caldas Simões Diagrama 9 – relacionando o primeiro plano com a reiteração Fonte: do autor (2021) Ainda que a relação seja intensa, poucos exemplares de nosso corpus apresentam ao mesmo tempo a reiteração que recategoriza e o primeiro plano, somente dois exemplares, o 15 (relacionado ao olhar) e 18 (relacionado ao Juca). A realização dessa relação identifi cada é opcional. De 09 corpus, 16% (02) realizam essa relação. Após as análises aqui empreendidas, passemos às nossas conside- rações fi nais sobre o assunto. 4. Conclusões Em nosso trabalho nossa hipótese inicial foi a de que as cadeias coesivas verbo-visuais encontradas no texto estão diretamente relacio- nadas aos movimentos estruturais obrigatórios ou opcionais do gênero tira cômica seriada. Encontramos as seguintes relações existentes entre texto e gênero, por nós classifi cadas como obrigatórias ou opcionais: A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 39 38.2 2022 Quadro 03 – A relação entre as cadeias coesivas e os movimentos estruturais da tira cômica seriada Unidade de textura Unidade de Estrutura Relações estabelecidas Coesão Elemento da Estrutura Potencial do Gênero (EPG) Classifi cação Frequência no corpus Anáfora Formato retangular Obrigatória 100% Introdução Referencial Plano de visão total ou de conjunto Plano de visão geral ou panorâmico Opcional iterativa Opcional 71% 14% Reiteração Plano de visão detalhe Ângulo de Visão inferior Transição de quadros aspecto pra aspecto Ausência de requadro Metáfora visual Plano de visão Primeiro Plano Opcional iterativa Opcional Opcional Opcional Opcional iterativa Opcional 50% 8,3% 22% 41% 8,3% 16% Encapsuladores Seriação Opcional iterativa 15% Fonte: do autor (2021) Isso comprova que as unidades de textura e estrutura do texto se relacionam, sendo a coesão o seu elo de união, como representado no diagrama abaixo: Diagrama 10 – as relações entre texto e gênero Fonte: do autor (2021) 40 38.2 2022 Alex Caldas Simões Logo, acreditamos, por fi m, que o ensino, a fi m de trabalhar gênero e texto no ensino de língua portuguesa, deve se ater primeiramente ao estudo da coesão, seu elo de união. A coesão verbal, e em nosso caso a coesão verbo-visual, portanto, passa a ser o núcleo do trabalho didático- -pedagógico com o texto, por ser esta, a tecnologia teórico-metodológica de signifi cação do texto e da articulação do texto com o gênero. Pelas relações descritas, acreditamos que no futuro cabe investigar, em outros gêneros discursivos e em outros autores de quadrinhos: a relação profícua entre a introdução referencial e o plano de visão total ou de conjunto; e a relação entre a introdução referencial e o plano geral ou panorâmico. Vale incentivar também a pesquisa sobre os en- capsuladores verbo-visuais, tema ainda pouco ou nada descrito pela Linguística Textual. O estudo das cadeias coesivas e dos movimentos estruturais do texto, portanto, acabam por constituir-se em um campo de pesquisa e investigação nas ciências da linguagem bastante promissor, o que evidencia a necessidade de maiores estudos na área. Agradecimentos Este artigo faz parte de pesquisa realizada nos estudos de pós- -doutorado na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), sob supervisão do prof. Dr. Paulo Ramos – a quem somos gratos pela acolhida e acompanhamento constante. Agradecemos também aos pareceristas da revista pela leitura atenta e sugestões realizadas. Confl ito de interesses Declaro não ter qualquer confl ito de interesse, em potencial, neste estudo e assumo total responsabilidade por seu conteúdo. Referências Ansary, H., & Babaii, E. (2005). The generic integrity of newspaper editorials. RELC Journal , 36, (3), 271-295. https://doi. org/10.1177/0033688205060051. A relação entre as cadeias coesivas verbo-visuais das tiras cômicas seriadas ... 41 38.2 2022 Ansary, H., & Babaii, E. (2009). A cross-cultural analysis of English newspaper editorials: A systemic-functional view of text for contrastive rhetoric research. RELC Journal, 40, (2), 211-249. https:// doi.org/10.1177/0033688209105867. Cagnin, A. L. 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