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Escalas Sociolinguísticas

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https://dx.doi.org/10.1590/1678-460X202259475
D.E.L.T.A., 38-4, 2022 (1-28): 202259475
D E L T A
Artigos
No movimento do caleidoscópio: Escalas 
sociolinguísticas e o ajuste de foco na pesquisa 
aplicada em linguagem
In the motion of the kaleidoscope: Doing sociolinguistic 
scales and refocusing in Applied Linguistics
Daniel do Nascimento e Silva1
RESUMO
Neste artigo, parto de um aspecto das reflexões teóricas e metodológicas 
de Marilda Cavalcanti em seu profícuo trabalho em linguística aplicada 
– sua atenção ao movimento, ao reajuste de foco e à linguagem não como 
objeto estático, mas como caleidoscópio de recursos – para fazer um 
exercício semelhante sobre o conjunto de interações, diálogos, tropeços, 
planos, fracassos e contínuos ajustes naquilo que chamamos de pesquisa 
de campo. A pergunta que este artigo faz é: se concebemos linguagem 
não como objeto fixo, estático e circunscrito, mas como um complexo 
sociolinguisticamente móvel de vozes, dimensões, espaços, tempos e 
interações, como evitar tomar como dadas ou reificadas as práticas 
comunicativas que observamos em nossos campos empíricos? Faço um 
retorno a minha trajetória de pesquisa sobre a violência na linguagem, 
mostrando como o foco foi continuamente se ajustando dos processos de 
1. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Florianópolis – Brasil. https://orcid.
org/0000-0002-6098-5185. E-mail: dnsfortal@gmail.com. 
https://orcid.org/0000-0002-6098-5185
https://orcid.org/0000-0002-6098-5185
mailto:dnsfortal@gmail.com
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dominação simbólica à resistência e à esperança (sem, ao mesmo tempo, 
desconsiderar a dominação). Concluo que o foco na desigualdade, embora 
legítimo e necessário, não pode eclipsar a produção de voz e agência no 
chão de fábrica da escola, do coletivo, da periferia, isto é, do campo de 
pesquisa.
Palavras-chave: escalas sociolinguísticas; complexidade sociolinguística; 
Complexo do Alemão; esperança. 
ABSTRACT
In this article, I draw from one aspect of Marilda Cavalcanti’s fruitful work 
in Applied Linguistics – her attention to movement, to readjusting focus, 
and to language not as a static object but as a kaleidoscope of resources 
– to carry out a similar exercise on the set of interactions, dialogues, 
missteps, plans, failures, and continuous adjustments of what we call field 
research. The question this paper asks is: If we conceive language not as a 
fixed, static and circumscribed object, but as a sociolinguistically mobile 
complex of voices, dimensions, spaces, times and interactions, how can we 
avoid taking as given or reified the communicative practices we observe 
in our empirical fields? I return to my research trajectory on violence 
in language, by demonstrating how the focus shifted from processes of 
symbolic domination to resistance and hope (without, at the same time, 
dismissing domination). I conclude that the focus on inequality, while a 
legitimate and necessary step, should not obscure the production of voice 
and agency on the ground of the school, the collective, the periphery, that 
is, the field of research.
Keywords: Sociolinguistic scales; sociolinguistic complexity; Complexo 
do Alemão; hope.
Aí, maloqueiro! Aí, maloqueira! 
Levanta essa cabeça 
Enxuga essas lágrimas, certo? (Você memo’) 
Respira fundo e volta pro ringue (Vai)
AmarElo, Emicida
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1. Línguas como caleidoscópios: Marilda Cavalcanti e a 
pesquisa de campo em linguagem como movimento
A contribuição de Marilda Cavalcanti ao campo da linguística 
aplicada é, nacional e internacionalmente, reconhecida por sua profí-
cua produção científica, pelas pesquisadoras que formou, pelas lutas 
políticas que empreendeu (com grande impacto para a criação da 
Associação de Linguística Aplicada do Brasil e do Departamento de 
Linguística Aplicada da Unicamp) e pelos projetos de pesquisa au-
daciosos que desenvolveu. Neste artigo, parto de um aspecto de suas 
reflexões teóricas e metodológicas – sua atenção ao movimento, i.e., 
ao “reajuste de foco” (Cavalcanti, 1996), à contínua vigilância aos 
riscos de naturalizar conceitos (Cavalcanti, 2006) e à linguagem não 
como objeto estático mas como “conjunto de variáveis, intersecções, 
conflitos, contradições, socialmente constituídos ao longo da trajetória 
de qualquer falante” (César e Cavalcanti, 2007, p. 61; Cavalcanti & 
Maher, 2018) – para fazer um exercício semelhante sobre o conjunto 
de interações, diálogos, tropeços, planos, fracassos e contínuos ajustes 
naquilo que chamamos de pesquisa de campo. A pergunta que este 
artigo faz é: se concebemos linguagem não como objeto fixo, estático 
e circunscrito, mas como um complexo sociolinguisticamente móvel 
de vozes, dimensões, espaços, tempos e interações, como evitar tomar 
como dadas ou reificadas as práticas comunicativas que observamos 
em nossos campos – nas escolas, nas periferias, nas mídias digitais, nos 
coletivos (ou em vários desses lugares a um só tempo)? Como evitar 
“aplicar” os modelos que aprendemos na academia a situações, redes 
e interações que parecem extrapolar esses modelos? 
O trabalho de Marilda Cavalcanti é repleto de reflexões sobre como 
a abertura ao movimento e ao diálogo com a diferença modificaram o 
próprio direcionamento dos projetos de pesquisa por ela conduzidos. 
Por exemplo, em um relato sobre um curso de formação de professores 
em uma comunidade indígena guarani no interior de São Paulo, Ca-
valcanti (1996) aponta que uma sucessão de dificuldades, ansiedades e 
tropeços que foram interacionalmente surgindo no curso de formação 
de professores indígenas a fizeram “reajustar o foco”. Aos poucos, 
Cavalcanti (1996, p. 175) e as outras formadoras foram percebendo 
que “os professores guaranis tinham uma agenda bastante diferente” 
da que elas haviam desenhado na universidade para o curso de forma-
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ção2. Aos poucos, elas foram percebendo que os indígenas não estavam 
interessados na formação de professores em si, mas sim “em falar 
como vocês” (p. 186). Dito de outro modo, a agenda dos professores 
indígenas em formação não era aprender a “ser professor”, nos termos 
que o projeto de pesquisa original de Cavalcanti e suas colaboradoras 
previam, mas sim “investir em sua própria educação como potenciais 
líderes” (p. 186). As professoras-pesquisadoras e os indígenas, no 
entanto, não chegaram a esse acordo de forma simples e linear. Foi 
necessário experenciar e refletir sobre uma série de “mal entendidos” 
culturais – como silêncios mais longos entre turnos e evitação de olhar 
nos olhos por partes dos indígenas – de forma a aprender a interagir 
“de outro modo”. Esse aprender a agir de outra forma permitiu, então, 
que a mudança de foco fosse finalmente realizada:
Quando tentamos trazer essa questão de volta [i.e., o interesse dos indíge-
nas não na formação dos professores e sim no aprendizado de um outro 
registro do português], os jovens guaranis foram evasivos. Eles disseram 
que poderiam se tornar professores um dia e terminaram a discussão. Então 
decidimos que deveríamos focar em desenvolver sua proficiência em por-
tuguês padrão e abandonar o projeto de formação de professores. Olhando 
em retrospectiva, é hoje para nós claro que a comunidade estava investindo 
em sua educação (ao se liberar de outros compromissos). Um ou dois deles 
poderiam se tornar professores, mas esse papel era visto como secundário em 
relação ao papel a ser desempenhado por líderes, que poderiam estabelecer 
elos com a sociedade dominante (p. 186). 
Em uma coletânea organizada por Moita Lopes (2006), hoje 
pioneira no campo indisciplinar da linguística aplicada, Cavalcanti 
(2006) reflete sobre essa experiência etnográfica e educacional com 
professores em formação indígenascomo evidência de que, por mais 
bem intencionadas e sofisticadas sejam nossas teorias, “o que parece im-
portante para o não indígena pode não sê-lo para o professor indígena” 
(p. 246). Em outras palavras, nosso campo – as situações complexas, 
situadas e múltiplas que encontramos no “chão de fábrica”, no mundo 
além muros da universidade – sempre excede a caixa de ferramentas 
teórico-metodológicas que trazemos da universidade, e estarmos aber-
tos a nos modificarmos no diálogo com a diferença dos que habitam 
2. Doravante, todas as traduções de excertos de textos consultados em língua estrangeira 
são feitas por mim.
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esse chão de fábrica é importante (ver, por exemplo, Tsing, 2022; Silva 
& Fabrício, 2020, 2021). 
O que eu gostaria de enfatizar na reflexão de Cavalcanti é sobretudo 
a noção de conhecimento “em construção” que a autora sublinha. Com 
América César, Marilda Cavalcanti parte da própria “apropriação com 
modificação” que indígenas do Nordeste fazem do construto “ser falante 
de língua indígena” para repensar o próprio conceito de língua(gem) 
como movimento (ver César & Cavalcanti, 2007). As autoras percebem 
entre os professores indígenas em formação um conjunto diverso de 
ideologias linguísticas sobre suas práticas comunicativas – a maioria das 
quais não coincidem com discursos científicos sobre a “língua” como 
sistema, por exemplo. Um exemplo são jovens pataxó que, recusando 
a assessoria técnica de linguistas e antropólogos, buscam construir 
uma gramática do Pataxó a partir de itens lexicais que eles extraem de 
diálogos com indígenas mais velhos. “Contraditoriamente” – para um/a 
linguista! – os jovens “purificam” os itens lexicais que identificam como 
Pataxó eliminando traços de contato com a língua Maxacali (do mesmo 
tronco Macro-Jê e geograficamente contígua), mas ao mesmo tempo 
hibridizando as formas Pataxó com a morfossintaxe do português. Se 
para o discurso da linguística o inventário produzido pelos indígenas 
não seria bem de uma “língua”, para esses jovens a gramática resultante 
é um emblema de identidade étnico – útil para uma série de coisas, 
entre elas a afirmação de sua identidade como indígenas. Ao mesmo 
tempo, os indígenas em formação enunciavam formulações associadas 
a outras ideologias linguísticas, como a de que seria necessário apren-
der a falar “a língua portuguesa, a variedade prestigiada [que] aparece 
como uma língua distante, língua estrangeira, a ‘língua do invasor’, do 
‘colonizador’, do ‘branco’, que precisa ser apropriada como forma de 
emancipação, para o diálogo ou embate com não índios” (p. 58). Para-
doxalmente, apontam as autoras, havia entre esses indígenas também 
o recurso ao que Maher (1996) teorizou como “português indío” – “o 
uso que fazem da língua portuguesa no horizonte dos seus universos 
culturais” (César & Cavalcanti, 2007, p. 59). 
Em vez de enxergar como contraditórias as três formulações dife-
rentes acima sobre linguagem – língua indígena como compartimento, 
língua portuguesa como estrangeira, língua portuguesa como indígena 
–, César & Cavalcanti (2007) tomam essas diferentes posições (que são 
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enunciadas contextualmente e de forma interessada) como indício de 
que o que chamamos de língua é um amálgama de recursos (e não um 
construto estático, fixo e linear). As autoras sugerem, então, a metáfora 
oportuna de línguas como “caleidoscópios” (ver também Cavalcanti e 
Maher, 2018) para entender a emergência contextual e não unificada 
de visões distintas sobre linguagem. Nas palavras das autoras,
O caleidoscópio, sendo feito por diversos pedaços, formas e combinações, é 
um jogo de (im)possibilidades fortuitas e ao mesmo tempo acondicionadas 
pelo contexto e pelos elementos, um jogo que se explica sempre fugazmente 
no exato momento em que o objeto é colocado na mira do olho e a mão o 
movimenta; depois, um instante depois, já é outra coisa (César & Cavalcanti, 
2007, p. 61). 
 
As formulações sobre linguagem dos professores indígenas nor-
destinos são, como caleidoscópios, “contextuais”, “sempre fugazmen-
te” se movendo quando colocamos o objeto “na mira do olho” e no 
movimento da mão. “Depois, um instante depois”, essas formulações 
já são outra coisa: se, para nossa formação linguística, línguas como 
“compartimentos” purificados contradizem o que aprendemos na aca-
demia, para os indígenas pataxó esse essencialismo tem uma função 
estratégia (ver argumento semelhante sobre purificação linguística 
estratégica nos trabalhos de Kroskrity (2009) com os índios Tewa do 
Arizona e Bonnin e Unamuno (2021) com índios da Argentina). 
Diante das sugestões que Marilda Cavalcanti nos fez a voltarmos a 
atenção ao movimento, ao reajuste de foco e à sensibilidade à dinâmica 
contextual e “não unificada” dos recursos da linguagem, busco nas 
seções seguintes deste artigo fazer um exercício “metateórico e meta-
metodológico” (Cavalcanti, 2006, p. 233) sobre a pesquisa de campo 
que tenho realizado no Complexo do Alemão, um grupo de favelas no 
Rio de Janeiro. Meu foco em relação ao problema da violência na lin-
guagem foi, contextualmente, mudando da violência simbólica contra 
os nordestinos e as nordestinas na mídia corporativa do Sudeste (Silva, 
2012) à escalada da violência contra moradores de favelas no Rio de 
Janeiro (Silva, 2022; Silva, Facina & Lopes, 2015; Silva & Maia, 2022). 
Ao longo do tempo, meu diálogo com favelados e faveladas – cuja 
agenda não coincidia com os interesses da academia pelo estudo do 
sofrimento do outro como forma (às vezes contraditória) de denúncia 
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de desigualdades (ver Robbins, 2013) – foi me levando a entender essa 
violência como pano de fundo contra o qual uma resistência cotidiana se 
constrói. Altamente contextual, gradual e não unificada, essa resistência 
linguística é fundamentalmente escalar – em linha, por exemplo, com 
estudos sobre escalas sociolinguísticas como os de Blommaert (2007), 
Carr & Lempert (2016), Fabrício (2019, 2021) e Windle & Moita Lopes 
(2021). Esse movimento tem me levado a entender esse processo de 
resistência linguística como esperança (e.g., Borba, 2019; Lear, 2006; 
Silva & Lee, 2021). Apresento algumas imagens produzidas por esse 
caleidoscópio no restante deste artigo. 
2. Da escalada da violência às escalas da esperança
Iniciei estudos sobre violência e linguagem no doutorado em lin-
guística que realizei no Departamento de Linguística da Unicamp sob 
orientação do professor Kanavillil Rajagopalan, entre 2006 e 2010. O 
Brasil vivia outro cenário econômico e político, de modo que me be-
neficiei de uma bolsa de estudos de um ano do programa de doutorado 
sanduíche da Capes, na Universidade da Califórnia em Berkeley, oca-
sião em que estudei com o professor Charles Briggs no Departamento 
de Antropologia daquela universidade, entre 2007 e 2008. Minha ex-
periência em Campinas e Berkeley me permitiu avançar uma hipótese 
sobre o caráter a um só tempo destrutivo e produtivo da violência: no 
caso da violência simbólica contra nordestinos na mídia corporativa do 
Brasil – o tema de meu doutorado – percebi, nas análises dos materiais 
e nos diálogos que empreendi naqueles anos, que os nordestinos e as 
nordestinas eram posicionados/as de modo violento nas páginas de 
jornais e revistas não só para que se destruíssem certos aspectos de 
sua condição, mas também para que se produzissem determinado saber 
sobre esses seres vistos como abjetos (dos quais eu, como cearense, 
sou parte) e se constituísse, pela via da desidentificação com o Outro 
repugnante, uma esfera de viabilidade política e subjetiva do Brasil 
moderno, precisamente o Sudeste do Brasil (ver Silva, 2012 e 2017).
Concluído o doutorado, tive a oportunidade de trabalhar na UNI-
RIO. Lá o saber etnográfico que aprendi em Berkeley se tornou prática. 
Em 2012, junto com a antropóloga Adriana Facina e a linguista Adriana 
Lopes, participeido projeto de pesquisa “Mapeamento da produção 
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cultural e das práticas de letramento em três favelas do Complexo do 
Alemão, RJ”. Nosso intuito era inicialmente conhecer os saberes locais 
produzidos, em termos de produção escrita e cultural, nas favelas do 
Complexo do Alemão. A ONG Raízes em Movimento nos recebeu no 
território e articulou grande parte dos eventos e rodas de conversa que 
observamos no grupo de favelas. Dada nossa formação e a pesquisa 
anterior das duas Adrianas com o funk nas favelas do Rio de Janeiro 
(Facina, 2010; Lopes, 2011), participamos de interações na favela não 
para delinear qualquer tipo de falta – de Estado, de educação, de cul-
tura etc., como se depreende da expressão “comunidade carente”, por 
exemplo – mas como territórios de encontros, intensa produção cultural, 
mobilizações políticas e soluções para a vida cotidiana. Nossa ida ao 
campo, no entanto, coincidiu com a implantação das UPPs – Unidades 
de Polícia Pacificadora – no Complexo do Alemão e em outras favelas. 
As favelas que receberam UPPs compunham uma circunferência que 
seria batizada pela mídia corporativa de “cinturão de segurança” em 
torno dos aparatos para os megaeventos que se realizariam na cidade: 
a Jornada da Juventude de 2013, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos 
Olímpicos e Paralímpicos de 2016. Essa expressão foi utilizada pela 
primeira vez pelo jornal O Globo de 19/06/2011, numa matéria que 
indiciava o apoio da mídia corporativa às UPPs como estratégia de 
contenção de áreas vistas como origem da violência no Rio de Janei-
ro. Intitulada “Ocupação da Mangueira fecha cinturão em torno do 
Maracanã; Maré é desafio”, a matéria textualmente associa a estratégia 
de “pacificação” de favelas à rota dos megaeventos de 2013, 2014 e 
2016. Eis o primeiro parágrafo:
A ocupação da Mangueira, realizada no domingo por cerca de 750 policiais 
civis e militares, com o apoio das Forças Armadas, abre espaço para o fe-
chamento do cinturão de segurança em torno do palco principal da Copa do 
Mundo de 2014: o Maracanã. O mapa da cidade, no entanto, ainda traz pontos 
vulneráveis no caminho dos grandes eventos esportivos que se aproximam 
do Rio. Para a Copa, o Complexo da Maré é o último grande obstáculo: 
ocupado por traficantes, margeia a Linha Vermelha, principal ligação com 
o Aeroporto Tom Jobim. Para as Olimpíadas de 2016, há desafios pendentes 
como a Rocinha e o Vidigal, no meio do caminho entre a Zona Sul e a Barra, 
regiões que abrigarão provas dos Jogos (Gondin et al., 2011).
Recursos lexicais como “abrir espaço”, “palco principal”, “pontos 
vulneráveis no caminho” e “grande obstáculo” dão a ver a construção 
http://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/06/19/policia-ocupa-morro-da-mangueira-para-instalacao-de-upp-924720684.asp
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ideológica dos megaeventos como oportunidade para a cidade. Reve-
lam ainda a constituição das favelas como “grande obstáculo” para 
os investimentos. O Complexo da Maré, por exemplo, é predicado 
como “ocupado por traficantes”, numa estratégia de generalização 
que toma a parte pelo todo, isto é, o “mundo do crime” (Feltran, 2011) 
pelo território. Mas não estaria o mundo do crime espalhado por toda 
a cidade? E por que não se nomeiam bairros como Leblon e Barra da 
Tijuca como “ocupados por traficantes”, já que alguns dos gerentes 
desses mercados ilegais vivem nesses locais? 
Enquanto frequentávamos o campo, sabíamos que essas formas 
de referir e predicar andavam de mãos dadas com interesses políticos 
e econômicos diversos que subjaziam à “pacificação” (ver Gaffney, 
2013; Grassiani & Muller, 2019; Machado da Silva & Menezes, 2019). 
A mídia corporativa foi definitivamente uma das grandes apoiadoras 
do projeto. Por exemplo, Miriam Leitão, uma importante colunista 
do Jornal O Globo e comentarista dos vários telejornais do grupo, 
escreveu o prefácio à autobiografia de José Mariano Beltrame (2014), 
o secretário de segurança do Rio de Janeiro que implantou as UPPs 
e coordenou o projeto até sua saída do governo, após as Olimpíadas 
de 2016. Ela escreve que, anteriormente à “pacificação”, as favelas 
eram como que “terra estrangeira” em próprio solo brasileiro; elas não 
pertenceriam ao Estado, e o “mundo do crime” seria o seu regulador. 
Nas palavras da jornalista:
O Brasil havia aceitado que, no Rio de Janeiro, a polícia só daria rápidas 
investidas em certas favelas, mas não poderia se estabelecer. O Estado não 
poderia ficar nessas áreas, as empresas formais não fariam negócios, ser-
viços não seriam prestados. A imprensa vivia o dilema: pedir autorização 
a bandidos para subir os morros cariocas ou não cobrir os eventos locais? 
Aceitar como terra estrangeira parte do nosso próprio solo? Era mais seguro 
destacar um correspondente para países em guerra que mandar um enviado 
especial às favelas do Rio (Leitão, 2014, p. 10).
As narrativas da mídia corporativa e de considerável parte dos 
espaços de classe média que frequentávamos – que, grosso modo, po-
sicionavam as favelas “como terra estrangeira”, espaços da violência 
apartados da cidade – colidiam com aquelas que ouvíamos no campo. 
De forma geral, os moradores resistiam ao estigma e se afirmavam 
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como sujeitos de direitos, participantes da cidade. Assim, na pesquisa 
que realizamos durante o projeto do mapeamento cultural, procuramos 
observar uma outra escala da política de “pacificação”. Interessava-nos 
entender como os moradores resistiam à criminalização e mobilizavam 
recursos para florescer como indivíduos e como grupo. 
Dado que ela se mostrou saliente nos anos iniciais no campo, a 
questão da escala (Blommaert, 2007; Carr & Lempert, 2016; Fabrício, 
2019, 2021; Windle & Moita Lopes, 2021) se mostrou relevante para 
entender a “pacificação” como constituída por “variáveis, intersecções, 
conflitos (e) contradições” (César & Cavalcanti, 2007, p. 61). Passo 
agora a um resumo sobre o modo como, contextual e gradualmente, 
passei a entender as escalas sociolinguísticas que mediavam a violência 
e a “pacificação”. 
3. Escalas sociolinguísticas
Talvez a definição mais sintética e direta da noção de escala em 
ciências sociais seja a de Marylin Strathern (2004, p. xv), segundo a 
qual escala é “a organização de perspectivas sobre objetos de conhe-
cimento e investigação”. Assim, escalas são, grosso modo, formas 
de mensurar e tornar um objeto de conhecimento ou um feixe de tais 
objetos socialmente significativos. Em 2007, Jan Blommaert lançou 
a proposta de escalas sociolinguísticas aos estudos da linguagem. A 
proposta original de Blommaert era a de estimular a introdução de uma 
metáfora vertical adicional em sociolinguística, um campo já repleto 
de metáforas horizontais como ‘distribuição linguística’, ‘contato 
linguístico’, ‘comunidade de fala’ etc. (Blommaert, 2010; César & 
Cavalcanti, 2007; Jacquemet, 2005). Nos termos de Blommaert (2007, 
p. 1), escalas sociolinguísticas representam um eixo vertical — a um só 
tempo multinivelado e multi-hierárquico — a partir do qual as escalas 
dos fenômenos horizontais “operam e têm valor e validade”. 
Poder e desigualdade, assim, estavam na base dessa proposta 
original do sociolinguista belga. Naquele artigo original, Blommaert 
ofereceu um exemplo prototípico do funcionamento de escalas na 
interação. Imagine-se a seguinte conversa entre um/a estudante de 
pós-graduação (E) e seu/sua orientador/a (O):
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E: Eu vou começar minha tese com um capítulo que descreve minha pes-
quisa de campo.
O: Nós começamos nossas teses com um capítulo de revisão da literatura 
aqui. 
(Blommaert, 2007, p. 6)
No exemplo de Blommaert, O, ao recorrer a operações linguístico-
-pragmáticas (ele/ela substitui os pronomes “eu” e “meu” por ‘nós’ 
e ‘nossas’, introduz o advérbio dêitico ‘aqui’ e modifica o sintagma 
‘pesquisa de campo’ por ‘revisão da literatura’) e genéricas (oestilo 
centrado no ‘eu’ individual dá lugar a um estilo ancorado no ‘nós’ 
institucional) muito simples, redefine o esquema de participação na 
interação. O footing (Goffman, 2002) ou alinhamento dos partici-
pantes quanto ao modo como a tese “deve” ser escrita é redefinido 
pelo/a orientador/a. Na proposta de Blommaert, a mudança de turno 
entre um participante e outro é feita num espaço vertical, hierárquico, 
investido de poder, i.e., há aí um salto entre escalas diferentes. Origi-
nalmente, escala, para Blommaert, é uma forma de imaginar o espaço 
e o tempo como forças agentivas, verticais e hierarquizadas: o fluxo 
da conversa, que Saussure imagina ser linear e, portanto, horizontal, é 
aqui imaginado também como vertical. Além disso, na visão inicial de 
Blommaert, os enunciados do/a orientador/a poderiam ser vistos como 
tipo (type) e os do/a orientando/a como ocorrência (token), isto é, o 
“poder” tipificaria, definiria o escopo e a produtividade das ocorrências 
de enunciados subsequentes (da conversa e da tese).
Após essa proposta inicial, o conceito de escalas sociolinguísticas 
foi amplamente utilizado nos estudos da linguagem, mas Blommaert 
viria depois a revisar o conceito. Em 2015, ele viria a publicar dois 
artigos (Blommaert, 2015 e Blommaert, Westinen & Leppanen, 2015) 
que visavam “corrigir” alguns aspectos vistos por ele e suas colabo-
radoras como problemáticos na proposta inicial. Permita-me citar um 
excerto maior da autocrítica de Blommaert: 
O artigo de 2007 foi uma tentativa desajeitada e totalmente infrutífera, 
alcançando talvez pouco mais do que uma certa aceitação da necessidade 
de se considerar a natureza não unificada da produção de sentido em uma 
sociolinguística da globalização. Foram feitas várias tentativas para refinar 
a noção (vejam-se notavelmente os artigos de Collins et al. (2009); veja-se 
Kell (2013) para um levantamento crítico). Alguns autores tentaram ater-se 
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aos aspectos espaciais da comunicação – escala como o escopo distributivo 
dos discursos, por exemplo – enquanto outros se satisfizeram em ver escala 
como uma forma de capturar as relações type-token (de tipo e ocorrência) 
na linguagem (tornando cada instância de produção de significados, de as-
similação de significado por um interlocutor, uma instância de escala), ou 
como uma forma de conectar enunciados individuais – o aspecto ‘micro’ da 
sociolinguística – com normas, padrões, políticas e instituições, os aspectos 
‘macro’ (Blommaert, Westinen & Leppanen, 2015, p. 121).
Confesso que tentativas minhas de empregar o conceito de escala 
em minhas análises de eventos no campo resultaram em tentativas de 
linearizar o significado local e conectá-lo a ‘macro’ escalas: assim, 
busquei ver instâncias de discordância interacional sobre significados 
locais (por exemplo, um comentário sobre a distribuição irregular de 
água na favela, feito por uma participante de classe média em uma 
roda de conversa, percebido como um “ataque” por um morador da 
favela – o que a participante tenta retificar, apontando que ela apenas 
queria entender qual a regularidade do fornecimento de água)3. Ambos 
os participantes estariam se movendo em enunciados cronotópicos, 
semiotizados de forma hierárquica: a participante de classe média 
vista como alguém “de cima” que estaria invocando pressuposições 
de outro tempo e espaço (dos bairros e discursos de classe média, por 
exemplo), em contraste com o morador do Complexo do Alemão, 
posicionado como alguém cujo discurso indicia um espaço e tempo 
da denúncia de desigualdades e da cooperação periférica. A instância 
de conflito entre os dois participantes indica que essas pressuposições 
não funcionam de forma homogênea ou linear: no dado interacional, 
depois que a participante de classe média se desculpa e esclarece que 
seu objetivo não era avaliar negativamente, os dois participantes passam 
a conjuntamente construir o significado interacional. 
A complexidade de um breve momento de conflito interacional 
(ou “mal entendido”, ver Pinto, 2001) aponta que a noção de escala é 
muito mais do que uma relação linear entre tipo e ocorrência, ou do que 
indiciamento, no ‘micro’, de aspectos ‘macro’. Na revisão do conceito, 
Blommaert propõe que escala se refere a “escopo de entendimento” 
(Blommaert, Westinen & Leppanen, 2015). Para oferecer outro exem-
3. Este dado é narrado em detalhe em Silva, Facina & Lopes (2015, p. 186-189). 
No movimento do caleidoscópio
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38.4
2022
plo do autor, uma narrativa que comece com “era uma vez” invoca 
esquemas relativamente estáveis de personagens (princesas, dragões, 
anões, fadas etc.), enredo (sucessão de ações envolvendo mágica, 
feitiços, lutas), universo moral (do tipo bem e mal) e desfecho (“e 
viveram felizes para sempre”) que funcionam, nos termos de Bakhtin 
(1981), como índices organizadores da narrativa. O acesso aos índices 
que um cronotopo fornece, no entanto, é desigualmente distribuído 
socialmente — daí a importância de incluir escalas, como escopo de 
entendimento de cronotopos, na compreensão de como atores sociais 
invocam determinados esquemas de espaço, tempo e pessoa na prática 
discursiva. Como argumenta Blommaert (2015, p. 113), “eu posso ter 
vivido eventos históricos importantes — contextos disponíveis para 
mim — mas se não disponho dos recursos reais para narrar esses eventos 
de modo que sua importância ressoe em meus interlocutores — uma 
questão de acessibilidade — eu irei provavelmente acabar falando 
para mim mesmo”. Um exemplo adicional que o autor oferece tem a 
ver com a disponibilidade “cognitiva” de nomes de cidades na Europa 
para uma pessoa da Europa Ocidental: 
Na Europa Ocidental mais pessoas seriam capazes de se basear num conjunto 
de inferências sobre lugares como Londres e Paris (mesmo que nunca tenham 
visitado estes lugares) do que, digamos, em lugares como Bielefeld na Alema-
nha ou Gijon na Espanha. Falar sobre Bielefeld e Gijon, consequentemente, 
exigirá cada vez mais informação detalhada e explícita do que falar sobre 
Paris e Londres, uma vez que podemos esperar que mais pessoas tenham 
prontamente disponíveis associações (estereotipadas) sobre Paris e Londres 
do que sobre Bielefeld e Gijon. Paris e Londres são mais pressuponíveis 
como signos do que Bielefeld e Gijon. Paris e Londres, consequentemente, 
operam semioticamente numa escala superior à de Bielefeld e Gijon – têm 
um maior alcance de compreensibilidade (Blommaert, Westinen & Leppa-
nen, 2015, p. 123).
 
Essa questão do “escopo de entendimento” ou “alcance de compre-
ensibilidade” é a um só tempo cognitiva, semiótica e social. O fato de 
Paris e Londres estarem numa escala superior – i.e., o fato de podermos 
fazermos inferências mais facilmente sobre elas, mesmo não tendo 
estado lá – do que Bielefeld e Gijon têm a ver com a comunicabilidade 
(Briggs, 2007) que se construiu historicamente sobre elas. Essas cidades 
estão ligadas a produções de discurso sobre o lugar – e sobre produ-
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38.4
2022 Daniel do Nascimento e Silva
ção de valor econômico e simbólico sobre esse lugar – numa escala 
inferior a Bielefeld e Gijon. A proliferação ou infecciosidade desses 
nomes – o que tem a ver com o sentido médico de “comunicável” (ver 
definição abaixo conforme Briggs, 2007) – participa do próprio modo 
como organizamos mapas cognitivos sobre o mundo, do modo como 
determinados signos se tornam disponíveis para nossa ação semiótica, 
e também do acesso desigual a essas pressuposições. 
Em meu trabalho no campo e na análise do campo que empreendi 
nesses três anos, busquei observar outros escopos de compreensibili-
dade sobre a favela. Alguns desses escopos dizem respeito à própria 
invenção da favela como lugar de cooperação e de resistência à vio-
lência de Estado. Vale lembrar que a primeira nomeação do Morro 
da Providência como Morro da Favella, ao final do século XIX, está 
enredada em um processo de comunicabilidade e mediação semiótica. 
Gonçalves(2018) conta que o termo favela certamente advém da Guerra 
de Canudos (1896-1897):
Naquela região do sertão do estado da Bahia, existia um morro chamado 
Favella, talvez porque fosse coberto por uma espécie de planta cujo nome 
era justamente “favella” (Jathropa phyllaconcha), uma euforbiácea bastante 
comum nas regiões Nordeste e Sudeste do país. Os soldados que retornavam 
da guerra se estabeleceram, com a tolerância do Exército, no Morro da Pro-
vidência, que se encontra atrás do prédio do antigo Ministério da Guerra, 
no Rio de Janeiro. Em alusão a essa campanha militar, o morro passou a ser 
conhecido como o “Morro da Favella”. A partir da segunda década do século 
XX, esse termo passou a designar todas as habitações precárias do mesmo 
tipo espalhadas nos diversos morros da cidade (Gonçalves, 2018, p. 44).
Publicada pela primeira vez em 1902, a obra Os sertões, de Eucli-
des da Cunha, foi fundamental para a popularização e, portanto, para 
a pressuposição da favela como território antimoderno, fincado no 
meio de um Brasil que se modernizava. Licia Valladares (2005) aponta 
duas razões interessantes para a generalização do termo favela para os 
outros conglomerados de habitações autoconstruídas em espaços da 
cidade ocupados ilegalmente: “1ª) a planta favella, que dera seu nome 
ao Morro da Favella – situado no município de Monte Santo no Estado 
da Bahia – [era] também encontrada na vegetação que recobria o Morro 
da Providência; e 2ª) a feroz resistência dos combatentes entrincheira-
dos nesse morro baiano da Favella, durante a guerra de Canudos, [...] 
No movimento do caleidoscópio
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38.4
2022
retarda[ou] a vitória final do exército da República” (p. 29). Processos 
paralelos de iconização e indexicalidade (Peirce, 1955; Gal & Irvine, 
2019) participaram da comunicabilidade do nome “favella”: em termos 
indiciais, a mesma planta podia ser vista nos dois morros, na Bahia e 
no Rio de Janeiro; em termos icônicos, ambos os morros iconizavam 
resistência à ordem estabelecida. Essa resistência, porém, não deve ser 
vista aqui em seu sentido político atual, mas sim como regresso, como 
modo de habitar um lugar visto como inferior. Trata-se de resistência 
a uma ordem tida como moderna. Licia Valladares exemplifica essa 
pressuposição de inferioridade em uma crônica de João do Rio, pu-
blicada no jornal Gazeta de Notícias, em 1908. Intitulando-a de “Os 
livres acampamentos da miséria”, João do Rio relata sua visita ao Morro 
de Santo Antônio, “que havia sido favelizado, assim como o Morro 
da Providência, durante os últimos anos do século XIX” (Valladares, 
2005, p. 30). Nas palavras de João do Rio:
Eu tinha do morro de Santo Antônio a ideia de um lugar onde pobres operários 
se aglomeravam à espera de habitações, e a tentação veio de acompanhar a 
seresta. (...) O morro era como qualquer morro. Um caminho amplo e mal 
tratado, descobrindo de um lado, em planos que mais e mais se alargavam, 
a iluminação da cidade. (...) Acompanhei-os e dei num outro mundo. A 
iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade. O 
caminho que serpeava descendo era ora estreito, ora largo, mas cheio de de-
pressões e buracos. De um lado e de outro casinhas estreitas, feitas de tábuas 
de caixão, com cercados indicando quintais. A descida tornava-se difícil. 
Continua o autor:
Como se criou ali aquela curiosa vila de miséria indolente? O certo é que 
hoje há, talvez, mais de mil e quinhentas pessoas abrigadas lá por cima. As 
casas não se alugam, vendem-se. (...) o preço de uma casa regula de 40 a 
70 mil réis. Todas são feitas sobre o chão, sem importar as depressões do 
terreno, com caixões de madeira, folhas-de-flandres, taquaras. (...) Tinha-se, 
na treva luminosa da noite estrelada, a impressão lida na entrada do arraial 
de Canudos ou a funambulesca ideia de um vasto galinheiro uniforme (João 
do Rio, 1908, apud Valladares, 2005, p. 30). 
A crônica “Os livres acampamentos da miséria” é bastante signifi-
cativa porque ela denuncia uma acumulação histórica (Derrida, 1991; 
Butler, 1997). Particularmente, ela denuncia a mediação textual dessa 
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2022 Daniel do Nascimento e Silva
acumulação: João do Rio relata que “a impressão lida na entrada do 
arraial de Canudos” o surpreendeu na visita ao Morro Santo Antônio. 
A atividade escalar de João do Rio – a atividade de fazer sentido do 
morro e de mensurá-lo em relação a outras grandezas – é, portanto, 
mediada por discursos comunicáveis. Euclides da Cunha havia legi-
timado certa visão da oposição entre litoral e sertão: o primeiro visto 
como epítome do progresso e das relações do Brasil com a Europa; o 
segundo visto como território pré-moderno, rural, subdesenvolvido. 
João do Rio confirma a força da pressuposição euclidiana: ele percebe o 
Morro de Antônio como a “roça, [o] sertão, longe da cidade.” As formas 
de predicar esse “outro mundo” – como lugar “de miséria indolente”, 
“um vasto galinheiro uniforme” – indicam o conjunto de valores que 
se cristalizavam com as pressuposições que se tornavam disponíveis 
com a publicação de Os sertões, com os discursos higienistas que de-
nunciavam o “problema” da pobreza, com a solidificação de discursos 
que comparavam a negritude e a favela à animalidade e à miséria. 
Datada de 1908, a descrição de João do Rio sobre o Morro de Santo 
Antônio soa incrivelmente atual. Jogando com os termos propostos por 
Blommaert e suas colaboradoras, parece-nos que há uma escala durável 
em questão. O escopo de compreensibilidade citado por João do Rio – 
o autor diz textual e sinestesicamente que leu sua impressão da favela 
visitada em Os Sertões – faz parte de um processo comunicável. Em 
2021, com Branca Fabrício resumi o conceito de comunicabilidade, 
tal como Briggs (2007) o propôs. Tomo a liberdade de reproduzir o 
resumo aqui, de forma a criar nexo sobre como fui contextual e gra-
dualmente entendendo as escalas da violência simbólica e empírica 
contra moradores de favelas:
Briggs sugere que as narrativas se tornam comunicáveis em seu enredamen-
to com meta-narrativas que projetam trajetórias de recepção e convidam 
as pessoas a ocupar dimensões da vida social de formas particulares. O 
conceito faz um trocadilho com o sentido médico de “comunicável”: diz-se 
que uma doença é comunicável quando é contagiosa. Briggs (2007, p. 556) 
combina assim sentidos metafísicos de comunicabilidade como “algo que 
é prontamente comunicado e compreendido” e os usos médicos do termo, 
que se referem à “capacidade de propagação dos micróbios”. Esse conceito 
metacomunicativo sugere que “a comunicabilidade é infecciosa – a forma 
como os textos e as ideologias encontram o público e o localizam social/
politicamente” (Briggs, 2007, p. 556).
No movimento do caleidoscópio
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Para resumir um processo que está longe de ser simples, a comunicabilida-
de envolve quatro componentes: Primeiro, Briggs (2007, p. 556) assinala 
que se trata de um processo reflexivo de uso da linguagem, “referindo-se a 
construções socialmente situadas de processos comunicativos – formas pelas 
quais as pessoas imaginam a produção, circulação, e recepção de discurso”. 
Segundo, as cartografias de comunicabilidade estão “situadas dentro daquilo 
que Bourdieu (1993) chama campos sociais, arenas de organização social que 
produzem papéis sociais, posições, agência e relações sociais e que moldam 
(sem determinar) a forma como indivíduos e coletivos são interpelados por 
tais campos e os ocupam” (Briggs, 2007, p. 556). Terceiro, as cartografias 
comunicáveis são “cronótopos (Bakhtin, 1981), que projetam o discurso 
como emergindo de lugares particulares (clínicas, laboratórios, unidades 
académicas, etc.), como viajando por locais particulares (tais como confe-
rências, salas de aula, jornais e Internet) e atividades (entrevistas, análise 
e publicação de dados etc.) e como sendo recebido em outros (cafeterias, 
casas, carros e escritórios)” (Briggs, 2007, p. 556). Quarto, Briggs comenta 
finalmente que domesmo modo que a comunicabilidade é um processo 
“poderoso” e “modelador”, é também “contestável”. Em suas palavras: 
“apesar da sua base nas desigualdades materiais e institucionais, os mapas 
comunicáveis produzem efeitos à medida que as pessoas respondem às for-
mas como os textos procuram interpelá-las – inclusive pela recusa a ocupar 
as posições a elas oferecidas, pela revisão crítica desses mapas ou por sua 
completa rejeição” (Briggs, 2007, p. 556) (Silva & Fabrício, 2021, p. 131).
A proposta de Blommaert sobre escalas e as evidências textuais 
que busquei apresentar aqui apontam para importantes camadas e 
nuance dos processos de dominação na sociedade. Em primeiro lugar, 
podemos perceber com uma certa clareza que o estigma é, pelo menos 
em parte, textualmente mediado, como podemos perceber nas cadeias 
de citação a Euclides da Cunha nos modos de citar a favela, desde 
João do Rio em 1908 até as citações contemporâneas na mídia corpo-
rativa que apresento no texto acima. Em segundo lugar, produzir uma 
determinada escala sobre um enunciado (ou sobre um texto, ou sobre 
um problema social etc.) significa adentrar em um terreno onde atuam 
questões de disponibilidade cognitiva ou semiótica de conceitos ou uni-
dades textuais e de acesso a essas unidades (creio haver abordado com 
certo detalhamento a questão da disponibilidade; o acesso se encontra 
mais elaborado abaixo). Terceiro, disponibilidade e acesso, questões 
relativas a escala, são parte de construções comunicáveis, isto é, são, 
como Briggs apontou, processos reflexivos ou metapragmáticos, são 
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38.4
2022 Daniel do Nascimento e Silva
campos sociais, são semiotizacões de espaço e tempo, são formas de 
interpelação e, finalmente, são processos sujeitos a contestação.
Creio que o último elemento – contestação – tem a ver com algo 
que eu presenciei em quase todos os cursos de formação, grupos focais, 
entrevistas e demais interações de que participei com os/as ativistas do 
Complexo do Alemão. Seguindo um movimento de pesquisas bastante 
intenso em ciências humanas, “contestação” é um outro nome para a 
esperança como método (Miyazaki, 2004), razão prática (Bloch, 1986) 
e modo situado de resistir a condições de precariedade, incerteza ou 
violência (Borba, 2019; Bonnin, 2021; Heller & McElhinny, 2017; 
Lear, 2006; Silva & Alencar, 2018; Silva & Lee, 2021). “Contestação” 
é sobretudo o que move a intensa atividade política e epistêmica que 
venho testemunhando no Complexo de favelas do Alemão, desde 2012, 
quando pela primeira vez subi o morro. Venho percebendo um outro 
tipo de escala, uma outra construção comunicável, que me dedico a 
narrar na seção seguinte.
4. Contestação e escalas horizontais
Inicialmente, pensei de dar o nome de “escalas sociolinguísticas 
horizontais” à contestação a essa escala durável que produz os tipos 
de pressuposição que exemplifiquei anteriormente: a favela vista como 
“obstáculo”, “terra estrangeira”, “outro mundo”, “acampamento da 
miséria”, “vasto galinheiro uniforme”. Os ativistas de direitos humanos 
do Complexo do Alemão com quem venho interagindo contestam esse 
estigma e procuram promover acesso não apenas a outras representa-
ções, mas também a recursos materiais e simbólicos, como emprego, 
renda e formação escolar. Os moradores da favela com quem tive 
contato a partir desses ativistas – isto é, a partir da ONG Raízes em 
Movimento, que medeia meu acesso ao território – também, em sua 
maioria, contestam esse estigma. Para dar nuance a essa contestação, 
em vários momentos pensei na noção de horizontalidade (tal como ela 
comparece, por exemplo, no trabalho de Brown & Gilman (1960) como 
elemento para entender, na alternância de pronomes de tratamento, a 
escala da “solidariedade”, em oposição à escala do “poder”). 
No movimento do caleidoscópio
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2022
A ideia de horizontalidade emergiu contextualmente em diversas 
situações no campo. Por exemplo, em novembro de 2012, ela surgiu 
em entrevista que fizemos com um jovem morador do Complexo do 
Alemão, MC Calazans. Membro do Raízes em Movimento, Calazans 
era à época estudante de Serviço Social na UFRJ. Na entrevista, ele 
respondeu à pergunta de Adriana Facina sobre a sua visão da produção 
de cultura na favela dizendo que, antes de tudo, cultura na favela é 
“cultura de sobrevivência”:
É, eu acho assim, cultura no Complexo do Alemão, não existiria Complexo 
do Alemão se não fosse a cultura, daí não só a cultura artística, é… sabe? 
Do grafitti, do rap, do pagode e do samba. Não. Eu acho que é uma cultura 
de sobrevivência, por exemplo, o “gato net”, o “gato net” nada mais é do 
que uma cultura de universalizar o acesso à internet, né, o “gato luz”, nada 
mais é do que uma cultura de sobrevivência pra universalizar o acesso à luz, 
né? Cultura da favela, do Complexo do Alemão principalmente, ela sempre 
saiu da solidariedade, então assim, se você que mora embaixo do morro, tem 
uma internet, eu que moro aqui no pico da grota tenho que ter, né? Então 
pega, faz os fiozinhos e vai engatando até chegar lá, né? Se você mora no 
pé do morro e tem saneamento básico, mano, puxa o caninho lá da puta que 
pariu e vem emendando, vem fazendo gato, vem passando perrengue, né, 
então essa cultura que eu acho cultura mais importante, foda e incrível, né? 
Essa cultura da sobrevivência, assim, fundada numa solidariedade, numa 
identidade, assim como, de irmandade mesmo, que eu acho assim que é a 
mais… que poucas pessoas assim né, valorizam isso, e quando valorizam 
é pra legalizar, né? “ah não, vamos botar TV assinatura, né? Vamos acabar 
com os gatos nets”, né? Quando isso é uma cultura que o morro criou, lan 
house que foi criada na própria favela, assim, de dar acesso à internet, o 
moto taxi, então assim, foi uma cultura… A primeira cultura que a gente 
tem é uma cultura da sobrevivência, né? E a gente tem uma realidade difícil 
então como a gente vai superar ela né?
Neste excerto, que Adriana Facina (2014) analisa de forma magis-
tral, Calazans nos explica que o Complexo do Alemão não existiria se 
não fosse a cultura de sobrevivência. Trata-se de uma formação cultural 
que transforma o espaço e o tempo vividos a partir da “solidariedade” 
e “irmandade” entre os moradores. Diante da narrativa de Calazans, 
fomos até a literatura sobre noção de sobrevivência nos campos da 
filosofia e estudos culturais, mais especificamente os trabalhos de 
Derrida (1979[2004]) e Bhabha (1998) em terno da sobrevivência na 
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38.4
2022 Daniel do Nascimento e Silva
textualidade e na cultura. Antes de escutar a intervenção de Calazans, 
em minha tese de doutorado, eu havia me dedicado a delinear a proposta 
de Derrida quanto à sobrevivência. No ensaio “Sobreviver, diário de 
borda”, Derrida aponta que “o sobreviver transborda, ao mesmo tempo, 
o viver e o morrer, suplementando-os, um e outro, com um sobressalto e 
um certo alívio temporário, parando a morte e a vida ao mesmo tempo” 
(Derrida, [1979]2004, p. 89). Na pesquisa de doutorado, essa formula-
ção era particularmente significativa, pois explicava o desafio que as 
identidades nordestinas ofereciam aos “discursos da vida” nos quais 
a modernidade e a nação são constituídas. Calcadas numa oposição 
entre vida e morte, a modernidade e a nação são vistas como o domínio 
da vida e do futuro, um domínio que superaria a morte e o passado 
de formações pré-modernas como o Nordeste. Porém, os nordestinos, 
embora figurassem como vencidos pela morte nas páginas de jornais 
e revistas do sudeste, seguiam sobrevivendo4. No campo das artes, por 
exemplo, os nordestinos da série Os retirantes, de Candido Portinari, 
ou aqueles de Vidas secas, de Graciliano Ramos, embora cadavéricos, 
famintos, mortos-vivos, não estavam propriamente mortos. Na tese, 
procurei explicar que o sobreviver 
4. Dentre as várias reportagens que analiso na tese, uma matéria de Veja intitulada “As 
vitórias da morte”, publicada em 17/08/1983, é uma evidência importante deste ponto. 
Eis um trecho da análise sobreessa reportagem que retiro da tese: “A morte comparece 
nessa reportagem como condição de inteligibilidade dessas comunidades nordestinas, 
onde a morte vence e “as crianças não viscejam (sic)” (...). No início do texto, aspas dão 
voz e verdade aos nordestinos, com sua fala “arrastada”, estranha. Essa fala dá à morte 
o privilégio de um neologismo pouco conhecido por sujeitos modernos: “morredor”. O 
tópico frasal “Meus filhos são muito morredor” funciona como mote para as temporalidades 
da morte nessa cartografia discursiva. O “rigor cronológico” da morte é marcado por 
diversos recursos textuais. As aspas, reconhecidas marcas da iterabilidade do signo, são 
empregadas segundo uma violenta lógica de ruptura: a apresentação da primeira família, 
cujos dois primeiros filhos morreram e a terceira filha “sobra”, é precedida e sucedida por 
dizeres entre aspas, que indiciam a presença da morte, “Meus filhos são muito morredor”, 
“Essa aí, ninguém sabe se se cria”. Outras aspas ao longo do texto reforçam a política de 
verdade da revista. A fala do médico da Santa Casa de Sobral, um especialista moderno, 
é trazida para dar sustentação ao anúncio de genocídio no Nordeste e à sentença de morte 
de crianças da região. Representante político da região, o então governador de Sergipe, 
João Alves, tem sua fala citada na reportagem para fundamentar a tese da inferioridade 
racial nordestina. Diz a revista: “‘Estamos criando uma sub-raça’, ecoa o governador de 
Sergipe, João Alves. ‘É como no Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley: teremos 
uma categoria de homens inferiores pela própria constituição’” (Silva, 2010, p. 84-85).
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se distancia da ontologia vitalista que concebe o sujeito a partir de uma 
matéria orgânica que triunfa sobre a morte e sobre o resto apodrecido do 
passado. É importante ter em mente que a ideia do sobreviver, por rechaçar 
a lógica vitalista, não se funda nos parâmetros da vida como o substrato 
orgânico que vence. E Derrida toma justamente a imagem do fantasma – 
aquele que, afinal, não segue as leis da matéria orgânica – para falar desse 
intervalo de sobrevida. “Essa sobrevivência é também um ressurgimento 
espectral (aquele que sobrevive é sempre um fantasma) que é observável e 
é representado desde o começo, desde o momento em que o caráter póstu-
mo, testamentário, escritural da narrativa vem se desdobrar” (p. 112-113). 
Lembremos que o aspecto fantasmagórico dos retirantes de Portinari é algo 
que imediatamente nos salta à vista (Silva, 2010, p. 68).
Na pesquisa de campo no Complexo do Alemão, foi significativo 
acompanhar o movimento do caleidoscópio e encontrar a formulação 
de Calazans sobre a cultura de sobrevivência. Eu percebia que não 
só o Nordeste, mas também a favela são territórios sobreviventes, 
desafiadores da lógica vitalista que informa os discursos do progresso.
Para Calazans, a cultura no Complexo do Alemão sempre desafiou 
enquadres hegemônicos, na medida em que a própria favela é uma 
solução à ausência de políticas de habitação para escravizados liberto, 
que construíram as primeiras favelas depois que a monarquia brasileira 
relutantemente, em 1888, pôs fim ao regime escravocrata mais longo e 
mais numeroso das Américas. Essa forma de resistir à precariedade de 
Estado, além disso, tem uma dimensão semiótica e comunicativa, que o 
próprio Calazans esboça em sua fala. Perceba que, em seu comentário, 
Calazans elabora sobre recursos semióticos: gato net, gato luz, gato 
água, moto-taxis e lan houses. Definir esses tropos como ‘recursos’ 
alinha-se à sociolinguística e à pragmática contemporâneas, que veem 
os elementos das línguas naturais não como itens compartimentados, 
mas como “recursos de fato situados, empregados por pessoas reais em 
contextos reais, e recontextualizados” por outras pessoas (Blommaert, 
2010, p. 43; ver também Cavalcanti & Maher, 2018). Calazans inclusive 
reflete sobre esses recursos semióticos em seu discurso como elemen-
tos de uma economia de fato: tropos como “gato net”, “lan house” e 
“moto-taxi” fazem parte da economia de sobrevivência da favela (ver 
Heller & McElhinny, 2017; Park, 2021). Calazans conecta esses tropos 
econômicos a pessoas, práticas e perspectivas sobre pertencer à favela. 
22 
38.4
2022 Daniel do Nascimento e Silva
O jovem MC explora, portanto, a camada reflexiva do uso da língua 
– a metapragmática – de forma a situar a sobrevivência da juventude 
periférica como uma forma de sociabilidade e de atividade material e 
econômica de solidariedade. É significativo no excerto acima seu recur-
so a operações pragmáticas típicas do registro ativista papo reto (Silva, 
2022) – uma formação enregistrada comum em círculos ativistas de 
periferias que formula a ação comunicativa contextual como “direta”, 
sem as circumlocuções e marcadores de polidez típicos de registros de 
elite como o português padrão. Assim, por exemplo, mesmo diante de 
uma audiência de pessoas de classe média, muitos dos quais à época 
ele ainda tinha pouca familiaridade, Calazans suspende expectativas 
de polidez e utiliza tropos indexicais que marcam sua identidade como 
de favelado: “Se você mora no pé do morro e tem saneamento básico, 
mano, puxa o caninho lá da puta que pariu e vem emendando.” Dito 
de outro modo, Calazans adota uma atitude reflexiva direta, alinhada 
à informalidade das práticas cotidianas da juventude negra. Ele opõe 
essa linguagem informal e direta a registros de elite, como a burocracia 
e a linguagem do mercado formal: “quando valorizam [a cultura de 
sobrevivência] é pra legalizar. ‘Ah, vamos botar TV por assinatura, 
vamos acabar com os gatos net’”. A valorização que Calazans faz do 
registro papo reto e dos termos da economia de sobrevivência da favela 
indica que ele adota uma perspectiva interessada, isto é, ideológica, 
da língua e da cultura (Blommaert, 2006; Moita Lopes, 2013; Gal & 
Irvine, 2019). Como ativista da juventude periférica, Calazans utili-
za uma linguagem ideologicamente orientada à sobrevivência e ao 
mesmo tempo pensa sobre ela; seus comentários valorativos têm um 
impacto sobre a própria forma da língua e sobre como essa forma será 
entextualizada ou citada – estou, por exemplo, citando seu discurso 
metapragmático em um periódico acadêmico, numa temporalidade 
enunciativa que é aberta (Butler, 1997). Vale ressaltar que Calazans é 
participante de diversas redes, dentro e fora da favela, e seu discurso 
tem viajado para diversos circuitos mundo afora, o que aponta para o 
caráter contagiante ou disseminador do ativismo da juventude negra 
e periférica. 
No movimento do caleidoscópio
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38.4
2022
Conclusão
Neste artigo, inspirado pelas reflexões sobre “movimento”, “ajuste 
de foco” e “línguas como caleidoscópios de recursos” no trabalho de 
Marilda Cavalcanti e suas colaboradoras, refleti sobre um ajuste de 
foco no modo como venho investigando a violência: dos processos de 
dominação e violência simbólica aos processos de contestação situados 
e à produção da esperança. Por meio do exemplo de meu diálogo com 
Raphael Calazans, jovem MC de funk e ativista do Complexo do Ale-
mão, discuti como metadiscursos que emergem em nossa interação no 
campo – por exemplo, a noção de “sobrevivência” – nos demandam que 
reorientemos nossas aspirações, perspectivas e teorias sobre linguagem. 
“Comunicabilidade” e “escalas sociolinguísticas” têm sido úteis para 
eu entender antigas e duráveis histórias de dominação e criminalização 
no campo, mas eu precisava de mais – necessitava escutar o que os/as 
interlocutores/as no campo tinham a dizer sobre resistência à domina-
ção, sobre a vida que emerge nesse território complexo. 
Se, por um lado, as pesquisas críticas em linguagem e ciências 
humanas de forma mais ampla são animadas por um ímpeto de denún-
cia das desigualdades sociais, nossos interlocutores no campo podem 
estar apontando para táticas de sobrevivência, resistência e esperança 
a essas desigualdades.Como Marilda Cavalcanti sugeriu ao longo de 
sua carreira, nossos interesses teóricos não podem desconsiderar a 
agenda “do chão de fábrica” – a qual pode apontar para aspectos im-
previsíveis. Na mesma direção, Bonnin (2021) sugere um reajuste de 
foco nos estudos da linguagem em sociedade que ele identifica com o 
método da “esperança”, não como afeto passivo de espera, mas como 
trabalho prático de reorientação do conhecimento (Miyazaki, 2004). 
Bonnin oferece como exemplo empírico uma entrevista com uma 
trabalhadora do Metrô de Buenos Aires. Ela responde a uma pergunta 
sobre sua participação no movimento sindical não com o esperado 
“discurso sindical”, de tom aguerrido, mas sim pelo encaixe de vozes 
bem humoradas e facetas – iconizando modos bastante elaborados de 
“reinterpretar regulações institucionais – literalmente – de forma a 
resisti-las” (Bonnin, 2021, p. 70). A proposta de Bonnin (2021, p. 75) 
é que, diante de um texto interacional como este, o interesse típico 
dos estudos críticos da linguagem por dimensões como “a denúncia 
da desigualdade linguística, de ideologias dominantes, do racismo, 
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dos discursos sexistas” não pode eclipsar a produção de voz e agência 
– em outras palavras, a esperança – dos que sofrem esses processos 
de desigualdade. 
Como normalmente um ímpeto de denúncia de desigualdades 
acompanha o trabalho crítico nos estudos da linguagem em sociedade, 
Bonnin (2021) aponta dois limites para esse trabalho de denúncia na 
academia. O primeiro tem a ver com o alcance de nossas publicações: 
nós tendemos a escrever para nossos pares, em publicações que ten-
dem a não ser lidas pelos (e muitas vezes nem oferecem acesso aos) 
envolvidos nas realidades que buscamos criticar. O segundo limite tem 
a ver com o próprio foco dos estudos: “se nós privilegiamos apenas a 
análise de práticas sociais de controle, dominação ideológica, hege-
monia discursive, ordens sociolinguísticas ou ideologias dominantes, 
bloqueamos nossa percepção, e mesmo nossa imaginação, àquelas 
voices que agem pela mudança” (p. 75). 
A conclusão de Bonnin ecoa outras de estudos sobre agência, 
resistência e esperança (e.g., Borba, 2019; Lear, 2006, Silva & Lee, 
2021). Mas essa conclusão também reverberou em minha percepção 
do caleidoscópio na favela: tenho percebido que uma postura agen-
tiva, não melancólica, irreverente e propositiva vai continuamente se 
modulando diante das dinâmicas de dominação sociais. As palavras 
de Emicida na epígrafe desse texto exemplificam algumas imagens em 
movimento desse caleidoscópio: “Aí, maloqueiro! Aí, maloqueira! / 
Levanta essa cabeça / Enxuga essas lágrimas, certo? (...) Respira fundo 
e volta pro ringue”. Nesse sentido, as palavras de Mattingly (2010, p. 
39) sobre a tensa relação entre estrutura e agência são tão incisivas 
quanto são críticas para o que escutamos de nossos interlocutores: 
“a realidade precisa ser exposta como espaço de possibilidade e não 
apenas de aprisionamento ou reprodução estrutural. Apesar do imenso 
poder das estruturas sociais opressivas, a realidade não se resume a 
sua existência”. 
Conflito de interesses
Declaro não ter qualquer conflito de interesse, em potencial, neste estudo.
No movimento do caleidoscópio
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