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O extremo contemporâneo na literatura brasileira

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ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/3 | p. 253-257 | set-dez. 2019
Diagramação e XML SciELO Publishing Schema: www.editoraletra1.com.br | letra1@editoraletra1.com.br
ZILÁ BERND | O extremo...
https://dx.doi.org/10.1590/1517-106X/2019213253257
R
ESEN
H
A
O EXTREMO CONTEMPORÂNEO NA 
LITERATURA BRASILEIRA
THE CONTEMPORARY EXTREME IN BRAZILIAN LITERATURE
Zilá Bernd
ORCID 0000-0002-2546-6099
Universidade LaSalle – Unilasalle
Canoas, RS, Brasil
BATALHA, Martha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: 
Companhia das Letras, 2016. 188p. 
L´extrême contemporain,
c´est mettre tous les siècles ensemble.
(Michel Chaillou apud
Dominique Viart, 2008, p. 20) 
Dominique Viart, em livro de 2008, estabelece distinções no âmbito das 
literaturas contemporâneas, afi rmando que existem três tipos de literatura: as de 
consentimento (consentantes), ou seja, aquelas que não contestam a sociedade 
e que se constituem como a “arte da aprovação”, em que os escritores escrevem 
para o grande público, tornando-se muitas vezes bestsellers; as conciliatórias 
(concertantes), que fazem coro aos clichês e que se resumem a reconduzir a 
doxa, harmonizando as opiniões gerais; e, por fi m, as literaturas desconcertantes 
(déconcertantes), que seriam aquelas que deslocam as expectativas da maioria 
dos leitores, deixando de reproduzir as velhas receitas literárias e passando a 
exercer uma atividade crítica que se desvia de signifi cações pré-concebidas, 
levando os leitores a reavaliarem seus conceitos e sua consciência de estar no 
mundo. Essas literaturas desconcertantes, que incomodam pela crueza como 
desvendam e denunciam preconceitos ou visões estratifi cadas da sociedade, 
é que caracterizam o “extremo contemporâneo”. 
Diagramação e XML SciELO Publishing Schema: www.editoraletra1.com.br | letra1@editoraletra1.com.br
ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/3 | p. 253-257 | set-dez. 2019254 ZILÁ BERND | O extremo...
Na mesma direção, em livro recente de 2018, o polêmico Johan 
Faeber, introduz o conceito de “après-littérature” ou literatura do “depois” 
(evitando o já desgastado conceito de pós-literatura ou pós-moderno), que 
seria a que se propõe a escrever “a contra-história de nosso tempo”. Afirma 
também que é esse tipo de romance que dará uma sobrevida à literatura, 
representando a sua revivescência. No momento em que se pensa que tudo 
já foi escrito e que, portanto, pode-se antever a morte da literatura, surgem 
os escritos do extremo contemporâneo. Para defini-lo o autor vale-se de uma 
expressão de Giorgio Agamben que afirma que “ser contemporâneo significa 
voltar a um presente onde nunca estivemos”, isto é, a um presente do qual 
não participamos e sobre o qual não interferimos. Um presente revisitado. 
Torna-se oportuno introduzir a questão de um fenômeno que está 
acontecendo na cena literária brasileira dos últimos dez anos, talvez vinte 
anos: o surgimento de uma escritura feminina “desconcertante”, manifestando 
uma urgência de escrever para denunciar a invisibilidade e a inaudibilidade 
de toda uma geração de mulheres que a precedeu e que não teve voz nem 
vez na cena pública brasileira.
Trata-se de autoras jovens, quase todas escrevendo entre os 35 e os 
50 anos, a maioria detentoras de diplomas universitários e teses de mestrado 
e/ou doutorado, e que vêm revolucionando a cena literária em nosso país. 
Entre elas, Carola Saavedra, Aline Bei, Eliane Brum, Conceição Evaristo, 
Martha Batalha, Tatiana Salem Levy, Adriana Lisboa, Paloma Vidal, Ana 
Maria Gonçalves, Leticia Wierzchowski, Cíntia Moscovich, Maria da Graça 
Rodrigues, entre tantas outras. É interessante consultar a antologia organizada 
por Luiz Ruffato: 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira 
(Record, 2004). O organizador da antologia sentiu também a necessidade de 
abordar o advento de uma nouvelle vague literária no feminino cujas obras, 
escapando ao “prêt-à-penser” cultural, ou seja, recusando-se a repetir velhas 
e desgastadas fórmulas romanescas, desconcertam os leitores ao desnudar 
histórias de vida que permitem a suas narradoras/protagonistas, através da 
recuperação da memória de suas antepassadas (mães e/ou avós) e de sua 
ressignificação no presente, entender em que medida sentem-se (ou não) 
herdeiras desse passado. 
Importa, em especial, falar do livro de Martha Batalha (nascida em 
1973), A vida invisível de Eurídice Gusmão (São Paulo: Companhia das Letras, 
2016), que desvenda a invisibilidade da protagonista – Eurídice Gusmão –, a 
quem nomeia no título, para convocá-la à existência apontando suas tentativas 
de se emancipar, todas elas frustradas pelo marido. O livro transforma-se 
em um verdadeiro inventário de ausências na vida de Eurídice Gusmão, 
típica dona de casa do Rio de Janeiro, dos anos 1940, quando a mulher da 
ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/3 | p. 253-257 | set-dez. 2019
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classe média que trabalhasse fora do lar representava o fracasso do marido 
em sustentar a família. 
Inventário das coisas ausentes é o título de um livro de Carola Saavedra 
(Cia. das Letras, 2014), remetendo igualmente às ausências, às faltas na 
vida das mulheres no Brasil e à necessidade de inventariá-las, uma vez que 
só após o inventário se reparte a herança, e que só depois de recebido o 
legado é possível transmiti-lo. As memórias só se constituem plenamente pela 
transmissão. A transmissão, no dizer de Paul Ricoeur, é geradora de sentido. 
Por isso nunca se viu tantas mulheres escrevendo romances verdadeiramente 
“desconcertantes” no Brasil: eles são necessários para realizar o inventário das 
ausências e transmiti-las através da escritura, gerando sentido e restaurando 
memórias feridas. 
Patrick Chamoiseau escreveu um livro intitulado La matière de l´Absence 
(SEUIL, 2016), no qual reconhece que as literaturas das Américas vem 
sendo construídas com “a matéria da ausência”, ou seja sobre camadas de 
esquecimento e denegação de elementos culturais indígenas e africanos 
cuja transmissão não foi efetivada porque houve rejeição dessa herança 
pelos herdeiros ou porque tais tradições não foram consideradas quando da 
construção das identidades nacionais. Podemos pensar em algo semelhante 
diante do silenciamento imposto às mulheres às quais não se concediam o 
direito à alfabetização e, posteriormente, à frequentação de universidades. 
Pois foi esse silêncio, essa ausência que tornou as mulheres e os papéis 
que desempenhavam invisíveis. Martha Batalha aponta em seu livro as 
diferentes tentativas de sua heroína de sair da invisibilidade, inicialmente 
organizando um livro de receitas, depois das bem-sucedidas experimentações 
que realizava em sua cozinha. O que poderia ter sido um bestseller pelo 
talento de Eurídice Gusmão foi jogado no lixo pelo marido que não podia 
admitir tamanha audácia por parte da esposa, que – segundo ele – deveria 
se contentar com a repercussão familiar das receitas. A nova tentativa de 
desenvolver seus dotes artísticos através da costura foi igualmente castrada 
pelo todo poderoso marido, pois o que haveriam de pensar os vizinhos diante 
do fato de a esposa “costurar para fora”. Assim vai se desperdiçando a vida 
da personagem até os filhos não precisarem mais de sua dedicação: é quando 
percebe que na estante da sala de sua casa havia livros e que livros poderiam 
ser lidos, passando a devorar os livros da estante assim como os da biblioteca 
pública. O passo seguinte foi a compra da máquina de escrever, a mudança da 
casa velha para o novo bairro que estava surgindo à beira-mar: para Ipanema. 
“Mudar-se para Ipanema no início dos anos 60 não era apenas transferir a 
mobília alguns quilômetros adiante. Era atravessar os portões do tempo, para 
viver num lugar que fazia o resto do Rio se parecer com o passado” (2016, 
p. 169). Os tec, tec, tec da máquina foram ouvidos com mais insistência do 
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que na antiga casa da Tijuca, embora ninguém se preocupasse com o que 
teria para escrever uma dona de casa. Embora os jornais não tenham aceitado 
seus textos nem ninguém na casa manifestasse o mínimo interesse por eles, 
foi através primeiro da leitura e depois da escritura que Eurídice Gusmão se 
viu face a face com a invisibilidade que lhe foi imposta pelo marido. 
Embora o livro traga as marcas de um feminismo incipiente em que 
o homem (marido) é o inimigo, ele aporta frescor ao feminismo atual pelo 
fato da emancipação não passar por grupos, mas pela afirmação de si mesma, 
através do florescer de preocupações intelectuais e pelo ato de criação literária. 
A personagem se liberta pela escritura, e a autora constrói um romance 
com base em uma personagem feminina subjugada que lentamente sai de 
sua invisibilidade e sobretudo de sua inaudibilidade, sem cair em narrativas 
piegas, ou na criação de uma escritura à l´eau de rose, como dizem os franceses. 
Ambas escrevem para se conhecerem através da escritura, compondo obras 
que desconcertam pela crueza das descrições e por chegarem, como afirma 
Viart: là où on ne les attend pas. Elles échappent aux significations preconçues, 
au prêt-à-penser culturel. (2008. p. 13)1
Nessa medida, Martha Batalha desenvolve uma escrita crítica e ao 
mesmo tempo cheia de humor e de leveza, rompendo cordões de isolamento, 
deslocando ideias e recriando fórmulas narrativas inéditas. De modo 
semelhante, autoras de sua mesma geração, como as citadas acima, cada 
uma escolhendo um objeto do deslocamento, vêm criando o que Luiz Ruffato 
chama de “Nova literatura brasileira”: Aline Bei aborda, em O peso do pássaro 
morto (2018), a ainda impronunciável questão do estupro; Eliane Brum, 
em Uma duas (2018), traz à baila as relações deterioradas entre mãe e filha e 
temas como a automutilação; Conceição Evaristo, em Olhos d´água (2015), 
descreve a infância de crianças negras em uma favela e a busca por saber a 
cor dos olhos da mãe; e Carola Saavedra, em Com armas sonolentas (2018), 
enfrenta o duríssimo tema da maternidade indesejada e dos desencontros de 
separações entre mães e filhos, tudo embalado pelo canto “sonolento” de Soror 
Juana Inés de la Cruz. Enfim, soberbas lições trazidas por esses romances 
desconcertantes, por vezes penosos para o leitor, mas que certamente não sai 
o mesmo depois de acabada a leitura. Trata-se de uma literatura que renuncia 
a trilhar caminhos conhecidos e a reproduzir o que Dominique Viart chama 
de “o depósito cultural dos séculos e das civilizações” (2008, p. 20). 
O belíssimo inventário de perdas realizado por Martha Batalha em A 
vida invisível de Eurídice Gusmão passou ao cinema tendo sido recentemente 
apresentado no Festival de Cannes, onde foi premiado na mostra Un certain 
regard. O melodrama de Karim Aïmouz contou, em seu elenco, com Carol 
1 Lá onde não as esperamos. Elas escapam às significações pré-concebidas , ao pronto-para-pensar cultural.
ALEA | Rio de Janeiro | vol. 21/3 | p. 253-257 | set-dez. 2019
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Duarte, Julia Stockler, Gregório Duvivier e com a participação de Fernanda 
Montenegro. O filme será lançado em setembro no Brasil.
Até lá, ler o livro é uma prazerosa e “desconcertante” urgência. O 
leitor/a estará trilhando os caminhos do extremo contemporâneo ou, no 
dizer de Johan Faeber, entrando em contato com uma literatura que surge 
quando se pensa que tudo já foi escrito e que nada mais de novo haveria para 
ser contado, correspondendo ao que o autor chama de “après littératures”, ou 
seja, aquelas que representam uma revivescência do fato literário.
Referências
BATALHA, Martha. A vida invisível de Eurídice Gusmão. São Paulo: Companhia 
das Letras, 2016.
FAEBER, Johan. Après la littérature: écrire le contemporain. Paris: PUF, 2018. 
RUFFATO, Luiz. 25 mullheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. Rio de 
Janeiro: Record, 2004.
VIART, Dominique; VERCIER, Bruno. La littérature française au présent. 2a. ed. 
Paris: Bordas, 2008.
Zilá Bernd é professora titular aposentada da Universidade Federal do Rio Grande 
do Sul e atualmente professora permanente do PPG-Memória Social e Bens Culturais 
do UNILASALLE/Brasil. É bolsista de pesquisa 1B CNPq. Foi uma das primeiras 
presidentes da ABECAN (Associação Brasileira de Estudos Canadenses) e presidente 
do ICCS-CIEC (International Council for Canadian Studies). Foi a fundadora e 
primeira editora da Revista Interfaces Brasil-Canadá. É Officier des Palmes Académiques 
e Officier de l´Ordre National du Québec. É autora de dezenas de artigos publicados 
em revistas do Brasil, do Canadá e da França, e de vários livros – sendo o último 
A persistência da memória; romances da anterioridade e seus modos de transmissão 
intergeracional. Porto Alegre: Besouro Box, 2018. O mesmo teve versão em língua 
francesa: La persistance de la mémoire: romans de l´antériorité et leurs modes de 
transmission intergénérationnelle. Paris : Société des écrivains, 2018. 
E-mail: zilabster@gmail.com
Recebido em: 15/05/2019
Aceito em: 31/08/2019

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