Buscar

Introdução à Filosofia

Prévia do material em texto

Introdução ao pensamento filosófico Esta obra pretende apresentar fundamentos da Filosofia que depois podem ser utilizados de modo muito prático no dia a dia, da esfera econômica dos negócios ao cuidado com o corpo, da arte de cultivar amizades e relações superiores ao amor pelo conhecimento. Com a Filosofia, podemos entender melhor nossa posição no cosmos, na vida em geral, percebendo que cada indivíduo nasce com um potencial a expandir e, à medida que evolui, constrói o próprio projeto. O homem é parte de uma grande sinfonia que estrutura toda a realidade. Uma orientação prática importante na leitura deste livro é que, a cada capítulo, o leitor busque indagar a si mesmo o que pode mudar na própria vida a partir daqueles argumentos, quais aspectos abandonar, quais ações começar a implementar. Com isso, não apenas se estuda Filosofia, mas vive- -se a Filosofia. A Filosofia do Direito é uma parte da Filosofia. Assim, para entender adequadamente o movimento dos pensadores que articularam conceitos e ideias referentes a categorias como justiça, ética, direito, Estado, é importante esboçar algumas considerações preliminares acerca da Filosofia, para depois ser possível entrar com mais segurança no terreno da Filosofia do Direito. Algumas indagações são essenciais: o que é Filosofia? A Filosofia é uma ciência? Qual é a sua função? Qual é o método que utiliza para analisar seus conteúdos? Como a Filosofia pode contribuir com o Direito? Essas são questões que tentaremos responder neste primeiro capítulo. Veremos, no decorrer dos capítulos, que os filósofos possuem visões muitas vezes até opostas em relação à mesma matéria, o que poderia ser uma desvantagem à Filosofia, sob a argumentação de que ela não é exata e nem é capaz de ter unanimidade naquilo que se propõe a responder. Contudo, é justamente a partir dessa dialética contínua entre os pensadores que a humanidade foi aperfeiçoando sua capacidade de compreensão de si e do mundo. Primeiro, para entendermos adequadamente o que seria a Filosofia, é preciso vê-la em sua totalidade de movimento, ou seja, em todo o seu percurso, sem se ater a este ou aquele filósofo. Talvez a melhor maneira de compreender esse conceito seja voltando justamente ao momento de sua criação, no tempo dos filósofos pré-socráticos na Grécia Antiga, pois, como veremos, a tônica que gerou a Filosofia foi a mesma que atravessou os séculos: a Filosofia como admiração/amor ao saber. Nossa pesquisa pretende apresentar a concepção de justiça na história da Filosofia, de forma que o princípio originário da Filosofia não se torna aqui tão fundamental. Partiremos do fato de que, mesmo em povos anteriores já tendo sido despertado o pensamento acerca da verdade e a busca pela explicação da estruturação do universo e da vida em geral, é somente com os gregos que a pesquisa pela verdade recebe seus maiores contornos racionais, isto é, um estudo que diga como, de onde e por que as coisas são como são. Essa forma de pensar é criação própria dos gregos (HIRSCHBERGER, 1969). Nas culturas anteriores aos gregos, como os egípcios, os indianos e os povos da antiga Mesopotâmia, o pensamento 12 Filosofia do Direito e a verdade não eram refletidos e construídos pelo indivíduo comum, membro da comunidade, mas por sentenças irrefutáveis proferidas pelos grandes sacerdotes religiosos. Os gregos, por outro lado, trouxeram o estudo da verdade para a dimensão humana, para dentro da vida humana, incluída aqui a vida política. Contudo, a passagem do pensamento religioso para o filosófico se dá também na passagem do mito à Filosofia. Antes da Filosofia, eram os mitos que traziam os grandes ensinamentos morais e de conhecimento, de forma que entender essa mudança é entender o nascimento da racionalidade filosófica. 1.1 A passagem do mito à Filosofia e a admiração ao saber Precisar o limiar transitório entre o pensamento mítico e o pensamento filosófico é uma tarefa difícil. De fato, conforme atesta Aristóteles no primeiro livro da Metafísica, os mitos gregos já eram um modo de identificar o mundo racionalmente. Sobre essa questão, Muñoz (2008) salienta: [...] a fronteira entre o pensamento mítico e o pensamento racional nunca foi inteiramente clara. Muitos procuraram indicar que as explicações dos primeiros “cientistas” eram o prosseguimento, se não em termos de conteúdo, ao menos de forma, das explicações oferecidas pelos mitos. As aspas são necessárias, pois suas investigações diferem daquelas produzidas pela comunidade científica de nossos dias por um aspecto crucial: não havia uma pesquisa experimental sistemática e, em muitos casos, sequer rudimentar. Se as fronteiras entre o pensamento racional e o pensamento mítico que o precedeu não são nítidas, havendo inúmeros pontos de continuidade entre ambos, isso não significa, porém, que não haja ruptura entre eles. O pensamento racional, aplicado para oferecer explicações sobre o funcionamento da comunidade política e do cosmo, é algo totalmente novo, ainda que sob alguns aspectos avance as características do pensamento mitológico que o precedeu. A originalidade desse novo pensamento [...] é algo fundamentalmente grego, inexistente até então. (MUÑOZ, 2008, p. 57) Entre os fatores que favoreceram os gregos a serem os protagonistas dessa importante passagem, destacamos que eles não possuíam um sistema religioso absolutamente definido, baseado em um livro de revelações ou com dogmas essenciais que somente eram dominados pela classe sacerdotal. Os principais escritos que fundamentavam sua religião eram os de Homero e Hesíodo, de onde extraíram seus modelos de vida, matéria de reflexão e estímulo à fantasia. Ademais, conforme assevera Reale (1993), existem características que diferenciam os poemas homéricos daqueles que estão nas origens dos vários povos; nessas obras já se manifestam algumas das características do espírito grego que criaram a Filosofia. Os poemas gregos se estruturam segundo o sentido da harmonia, da eurritmia e da proporção, do limite e da medida, uma constante da filosofia grega que erigirá a medida e o limite até mesmo em princípios metafisicamente determinantes. A arte da motivação também é uma constante, no sentido de que as ações, os acontecimentos, ocorrem porque tiveram um motivo, uma causa que lhes deu origem. Não relatamos somente uma cadeia Introdução ao pensamento filosófico 13 de fatos, mas buscamos em nível fantástico-poético as suas razões, buscamos determinar pelo mito a relação entre causa e efeito. Pelos mitos buscamos, por exemplo, explicar a passagem das estações, os fenômenos naturais, bem como os sucessos e insucessos humanos. Outra característica é o retrato da realidade em sua totalidade de forma mítica. A posição do homem no universo estava presente no mito e será assunto marcante do pensamento filosófico, dessa vez sob bases puramente racionais. Considerado todo esse contexto favorável, a passagem do mito à Filosofia, operada por Tales de Mileto, é marcada pela substituição da crença nas explicações dos relatos míticos pela compreensão racional do homem e do mundo que o rodeia. Os mitos já eram explicações do homem e do mundo baseadas em um profundo saber, contudo suas explicações das causas que geravam todos os efeitos no mundo baseavam-se na crença em um modelo que representava aquela situação. A Filosofia, avançando nessa estrada já aberta, apresentou de modo nítido desde seu nascimento as seguintes características: quanto ao conteúdo, busca explicar a totalidade das coisas, toda a realidade; quanto ao método, busca uma explicação puramente racional da totalidade, o que vale para a Filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica, o logos; por fim, o escopo da Filosofia, seu caráter é puramente teórico, ou seja, contemplativo, visa simplesmente à busca da verdade por si mesma, por isso é livre, não está vinculada a qualquer utilização pragmática, apesar de que suas conclusões influenciam todo o mundo prático (REALE, 1993). Buscar as explicações de modo racional não significa que a Filosofia dissocie-se por completo dodivino, posto que, por meio dela, é possível alcançar a dimensão do divino racionalmente. Conforme Aristóteles (2002), “pode-se chamar a filosofia de ‘divina’, pois além de levar o homem a conhecer Deus, possui as mesmas características que deve possuir a própria ciência que Deus possui, a desinteressada, livre, total contemplação da verdade”. Constatamos, portanto, que a busca da explicação do mundo por meio do logos é o que há de revolucionário no nascimento da Filosofia, e quem pela primeira vez buscou conhecer a realidade desse modo, sendo, portanto, o primeiro filósofo, foi Tales de Mileto, o qual concluiu que a água é o elemento essencial de todas as coisas da natureza. A Filosofia é uma atividade tanto teórica quanto prática, tanto especulativa quanto existencial. É teórica porque busca a verdade, a determinação das causas dos fenômenos, mas também essencialmente prática porque é dela que podemos extrair conceitos, ideias, orientações sobre como viver, como se relacionar com os outros, como interagir na sociedade, como exercer a dimensão política, como defender e construir os próprios direitos. O fato de se dizer que a Filosofia é atividade de busca pela verdade de modo desinteressado não quer dizer que ela pretenda ser inútil, mera reflexão teórica, e sim que busca a verdade se desprovendo de todo tipo de estereótipo, preconceito e modos inadequados de se pensar e viver. A busca desinteressada pela verdade quer dizer isto: buscar a verdade acima de todas as coisas, tendo a coragem de transcender cada modelo de pensar e viver que o sujeito identifica como não mais essencial para uma existência ordenada, feliz, satisfatória. A Filosofia nasce da perplexidade. Portanto, são justamente os grandes questionamentos que suscitam o progresso filosófico, a íntima necessidade de penetrar cada vez mais a essência do problema, conforme explica Reale (2002): 14 Filosofia do Direito A Filosofia, por ser a expressão mais alta da amizade pela sabedoria, tende a não se contentar com uma resposta, enquanto esta não atinja a essência, a razão última de um dado “campo” de problemas. Há certa verdade, portanto, quando se diz que a Filosofia é a ciência das causas primeiras ou das razões últimas: trata-se, porém, mais de uma inclinação ou orientação perene para a verdade última, do que a posse da verdade plena. (REALE, 2002) Essa paixão pela verdade se torna uma incansável busca por encontrar as causas primeiras de todas as coisas, aquelas causas que respondem os grandes questionamentos e ainda geram todos os outros. A necessidade de responder com maior perfeição é aquilo que gera o caminho histórico percorrido pela Filosofia. A história nos coloca novas interrogações, seja por determinados eventos, mudanças culturais, avanços das ciências, seja por mudanças de concepções das próprias pessoas, e todo esse universo influencia o exercício do pensar filosófico, exigindo do filósofo novas respostas, novas indagações. Podemos nos arriscar a dizer que enquanto o homem não conhecer com plenitude a verdade última das coisas, a Filosofia prosseguirá sua marcha histórica. A história da Filosofia tem o grande valor de mostrar que esta não pode se estiolar em um sistema cerrado, onde tudo já esteja pensado, muitas vezes antecipadamente resolvido. Quando um filósofo chega ao ponto de não ter mais dúvidas, passa a ser a história acabada das suas ideias, o que não quer dizer que não gere a Filosofia nos espíritos uma serenidade fecunda, apesar da incessante pesquisa. (REALE, 2002. p. 8-9) Esse é o grande mérito da história da Filosofia: apresentar o panorama geral da estupefação diante do saber, da necessidade existencial, talvez até metafísica, de o homem conhecer, chegar mais próximo da verdade última das coisas, inclusive aquilo que é idêntico, útil e funcional. Acompanhar o percurso histórico, o que nos ocupa aproximadamente 28 séculos de esforço intelectual em busca da verdade e do que é justo, adequado, de direito, ajuda-nos ainda a pensar melhor quais são as nossas grandes questões contemporâneas, em suas diversas esferas sociais, econômicas, políticas, culturais, jurídicas etc. Talvez nenhuma frase seja tão ilustrativa para essa condição humana como aquela empregada por Aristóteles para abrir a obra que, para ele, era dedicada ao conhecimento do saber supremo: a Metafísica. “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber” (ARISTÓTELES, 2002). 1.2 Os poetas Homero e Hesíodo Homero é certamente o maior nome da literatura grega. As duas epopeias que a sua autoria são creditadas, Ilíada e Odisseia1 , repercutiram na formação do espírito grego como nenhum outro autor tão longe alcançou. A Ilíada imortalizou-se como, possivelmente, a mais impressionante 1 A discussão sobre se Homero de fato escreveu ambas as epopeias já alcança mais de um século. Entre os eruditos surgem as mais diversas opiniões, desde aqueles que afirmam que Homero sequer existiu até que as epopeias seriam compilações de autores posteriores de versos passados oralmente de geração a geração; outros afirmam que ele existiu, sim, mas que apenas escreveu ou compilou uma das poesias, já que ambas contêm construções e estilos literários diferentes; por fim, existem aqueles que creditam a real autoria de ambas as epopeias ao poeta Homero. Para este trabalho, tais questões não chegam a ser de vital importância, pois o essencial aqui é captar a influência dessas epopeias no espírito grego, como auxiliaram nas construções dos conceitos de ética, justiça, direito etc. Introdução ao pensamento filosófico 15 guerra já retratada literariamente. A força com que o autor apresenta os emocionantes combates, as inesperadas e precisas intervenções divinas, os dramas dos heróis envolvidos, as grandes questões que movimentam ambos os exércitos combatentes (gregos e troianos), tudo isso a torna uma obra de caráter único na literatura universal. Figura 1 – Estátua de Homero itechno/Shutterstock. A Ilíada apresenta a narração da célebre Guerra de Troia2 . Páris, príncipe troiano, rapta Helena, esposa de Menelau, famoso monarca grego, e leva-a para suas terras. Decidido a recuperar sua esposa, Menelau pede auxílio ao seu irmão Agamemnon. Em pouco tempo, a raiva que se apossa de Menelau toma conta de todo o povo grego e os grandes chefes e guerreiros de todos os reinos são convocados a participar da guerra contra os troianos. Entre esses ilustres guerreiros estão, além de Menelau e Agamemnon, o enorme e forte Ajax, o sábio e velho Nestor, o astuto e protegido dos deuses Ulisses e o célebre personagem principal da obra, Aquiles, filho da deusa Tétis. A Ilíada inicia-se já no nono ano de combates, no famoso episódio da discussão entre Agamemnon e Aquiles, que resultou na retirada do segundo do campo de batalha. São 24 cantos, que terminam com os funerais de Heitor, o troiano que matou Pátroclo, melhor amigo de Aquiles, morto por este por vingança. A violência final de Aquiles é a explosão de sua ira, tema central de toda a obra. Aquiles estava fora das batalhas, foi apenas quando seu amigo morreu que violentamente retornou aos campos e vingou Pátroclo. Já a Odisseia narra as proezas de Ulisses em seu retorno após a Guerra de Troia. Ulisses comete um grande erro, devido à soberba, ao declarar não necessitar da ajuda dos deuses, o que irritou 2 Aqui também os estudiosos se dividem. Seria a Guerra de Troia apenas uma construção literária, uma epopeia elaborada para enaltecer o povo grego? Ou poderia de fato ter acontecido? Algumas descobertas arqueológicas desde o século passado alimentam a discussão, abrindo a possibilidade de as famosas muralhas de Troia se localizarem no que hoje é território turco. 16 Filosofia do Direito profundamente Posêidon, o deus dos mares. Diante disso, o deus decide causar o maior número possível de problemas ao herói, atrasando seu retorno em dez anos. Entre as aventuras enfrentadas por Ulisses e sua tripulação estão a ilha do Ciclope, gigante de um olho só, a ilha de Circe, a feiticeira que transforma todos em animais, as belíssimas sereias, que com seuscantos irresistíveis atraem todos os marinheiros à morte, o célebre estreito dos monstros de Posêidon, Cila e Caríbdes, entre outros problemas que envolvem fenômenos naturais. Ao término da saga, Ulisses ainda precisa enfrentar os pretendentes de sua esposa, Penélope, que tentavam forçar o casamento com ela para se apossarem do trono. Expomos o resumo geral das obras. Agora, apresentaremos algumas análises de como esses versos influenciam a Filosofia e o Direito. Para Schüler (2004), a Ilíada foi produzida numa época em que o homem ainda não havia tomado completamente consciência de si mesmo, de forma que mais lhe impressionam as façanhas de heróis e deuses, no campo externo, que os dilemas psicológicos que aterrorizam a dimensão interna do indivíduo. Para esse autor, seria um período histórico em que o homem ainda se maravilhava com o mundo que o rodeava, entusiasmava-se por participar dele3 . Isso não significa que contornos psicológicos e pessoais não estejam presentes na obra. Por exemplo, a epopeia se inicia e termina com a ira de Aquiles, a emoção que lhe impulsiona e dá a tônica dos relatos. A arrogância de Agamemnon nos primeiros cantos desperta preocupação e resistência em seus próprios aliados, ao verem como ele facilmente entrou em contenda com Aquiles, fazendo com que este último se retirasse do combate. Até mesmo os deuses, como já é frequente nas lendas gregas, não escapam de questões psicológicas, opiniões e preferências que por vezes os aproximam dos humanos. Logo no início, Apolo, o deus Sol, lança epidemia aos gregos, devido à rejeição de Agamemnon em devolver sua escrava Criseida, filha de Criseis, sacerdote de Apolo. Depois, vendo Aquiles, seu filho, sendo humilhado perante os gregos, Tétis implora a Zeus que dê a vitória aos troianos, até que se arrependam e peçam perdão a Aquiles. Também por várias vezes, Atena é enviada ao campo de batalha e aconselha um ou outro guerreiro. Logo no Canto II, inclusive, vemos Zeus com dificuldades para dormir diante das reflexões que lhe vinham à mente, provocadas pelo inesperado pedido de Tétis. Contudo, é na Odisseia que vemos sinais mais evidentes dos dilemas humanos, vestígios de aspectos psicológicos que circundam aquela obra; na Ilíada, não obstante, ainda se presencia sobretudo o fascínio do homem pela descoberta de si mesmo e do mundo. Na Ilíada não se pensa em limites para a ação heroica, mas na vontade e no ato de conquistar por inteiro esse mundo. É nesse cenário que surge a figura do herói, a clássica imagem da poesia homérica. Em um primeiro momento, como Schüler observou, é importante notar que, no proêmio, o objeto principal da narração da Ilíada, a causa primeira da história heroica, é a ira de Aquiles, e somente secundariamente aparece 3 Sintaticamente o objeto (ira, o herói, Ílion) precede o sujeito. A atenção, tanto do poeta como do ouvinte, está presa no objeto. O objeto mantém o sujeito oculto. Vive-se num período em que o homem ainda não tomou inteira consciência de si mesmo: entusiasma-se pelo grande espetáculo do mundo, é fascinado pelas obras dos deuses e dos heróis, sente prazer em nomear o mundo rico que se desdobra diante de seus olhos e não se apercebe de si. Não lhe ocorrem suas dúvidas, dores ou conflitos pessoais. Não olha para dentro de si mesmo. O mundo o absorve inteiro. Na cultura em que o homem só tem olhos e ouvidos para o mundo e para o outro, nasce a epopeia com as estupendas façanhas dos heróis e deuses. Introdução ao pensamento filosófico 17 como causa a vontade de Zeus. O homem ainda não havia olhado para dentro de si completamente, de forma que seus limites não estavam completamente estruturados. Não tão dependente de Zeus, o homem aparecia a si mesmo como ilimitado, e nisso consistia a façanha heroica. O significado de colocar a causa principal do ciclo da Ilíada na ira humana, e não na vontade divina, revela que o destino, ainda que existente na cultura helênica, não absorvia de modo integral o homem, de forma que suas ações e seus resultados eram responsabilidades suas. Também se situa aqui o episódio do Canto II, em que Zeus envia um sonho a Agamemnon, na forma do confiável Nestor, no qual este aconselha o herói a invadir imediatamente Troia, pois aí teria a vitória. Porém Agamemnon, após uma breve exaltação, deu-se conta da falsidade da mensagem, que na verdade tratava-se de uma armadilha. Zeus preferia Aquiles a Agamemnon, e o chefe dos gregos era consciente disso. Os deuses, sim, interferem, mas os humanos são livres para aceitar ou mudar seus destinos. Na exaltação do herói, encontramos ainda outra característica marcante da poesia homérica, em especial a Ilíada: a presença do destino. Contudo a ideia homérica de destino não se confunde com um ciclo fechado, em que a vida do indivíduo está previamente estabelecida. Para Homero, o destino, as moiras4 , assemelha-se a uma ordem superior à que não somente os humanos, mas inclusive os deuses submetem-se. É por isso que tanto na Ilíada como na Odisseia, nem os deuses podem criar o destino por suas próprias vontades, mas agem e criam caminhos. Na ideia de destino dos gregos está aberta a responsabilidade do indivíduo, da livre escolha, o homem pode criar uma nova via dentro do cenário predeterminado pelo destino, que não é, portanto, um roteiro inflexível. Esse destino possui relação com a ordem das coisas, e aqueles que adentram seus mistérios são, de fato, os homens mais corajosos, heroicos e sábios5 . Nesse sentido, os poemas homéricos não estão situados tanto no conhecimento do homem a si mesmo, mas no desvelar de seu espírito impetuoso e heroico. A Homero não interessam tanto os dilemas que afetam a vida humana, embora reconheça que existam, mas a necessidade de estender o domínio do homem nesse mundo que serve de palco e cenário para conquistas. É por isso que a figura que se glorifica é a do herói, que não pode temer o destino nem enfrentar a ordem natural das coisas, mas adentrá-la e ali criar a história. Homero cria um mundo limitado, mas que permite atitudes ilimitadas nesse círculo, ainda que o homem não possa tudo fazer, pode, dentro do seu possível, ter atitudes heroicas. Homero “louva e exalta o que no mundo é digno de elogio e de louvor. Assim como os heróis de Homero reclamam, já em vida, a devida honra e estão dispostos a conceder a cada um a estima que tem direito, assim todo o autêntico feito heroico é sedento de honra” (JAEGER, 2003, p. 68). Como se vê, Homero enaltece e louva a atitude heroica, porque esta é digna de honra, de forma que o herói passa a constituir o ideal de homem para o grego em geral. As palavras de Homero ecoaram por 4 Na mitologia grega, eram as três Parcas, divindades do mundo dos mortos, governado por Hades, que fiavam o destino dos homens e a qualquer momento poderiam extinguir a vida de qualquer mortal, bastando para isso que cortassem determinado fio. 5 A preocupação com o destino e com a ordem imanente do universo inspiraria vários fenômenos sociais e religiosos no mundo grego, como as famosas sentenças do Oráculo de Delfos, a religião dos Mistérios de Elêusis e a seita órfica. Era comum a compreensão de que havia uma ordem natural, da qual nem homens nem deuses poderiam escapar. O espírito grego aspirava a compreender essa realidade. Relembremos, também, que tanto Platão como Aristóteles situavam a máxima felicidade na contemplação da realidade, no pleno entendimento do mundo. 18 Filosofia do Direito toda a história helênica, transformando-o em um educador de toda a Grécia, e a educação homérica baseava-se justamente na educação do herói, de sua honra e coragem, da sua nobreza de espírito ao deixar-se guiar pelas virtudes e atitudes de louvor, que somente o homem ativo e criador é capaz de realizar, ao contrário do herói passivo, que somente deixa viver, conforme foi citado anteriormente. Jaeger, ao comentar a proposta pedagógica de Homero, assinala que “os mitos e as lendas heroicas constituem um tesouro inesgotável de exemplos e modelos da nação, que neles bebe o seu pensamento, ideais e normaspara a vida” (JAEGER, 2003, p. 68). Esse ideal de herói se tornaria, posteriormente, uma espécie de lei para o cidadão grego, pois a poesia e o mito, antes mesmo da lei, foram as primeiras manifestações da educação. Antes de o membro da polis obedecer ao Direito, ele já havia se habituado a cultivar-se no ideal de homem difundido pela poesia homérica, que tem na ira de Aquiles sua mais alta representação. A Ilíada celebra a glória da maior aristeia da guerra de Troia, o triunfo de Aquiles sobre o poderoso Heitor, em que a tragédia da grandeza heroica votada à morte se mistura com a submissão do homem ao destino e às necessidades da sua própria ação. É o triunfo do herói, não a sua ruína, que pertence à autêntica aristeia. (JAEGER, 2003, p. 75) Nessa ação ousada e deliberada de colocar a própria vida em risco para elevar-se à glória heroica consiste toda a força educadora da Ilíada. Os gregos não viam em Aquiles um herói comum, realizador de grandes feitos, mas que perece no ato de tentar mais uma ação, mas o mais nobre dos heróis, aquele que é capaz de antecipadamente saber que o maior dos feitos exige também o maior dos sacrifícios. É essa moral, centrada essencialmente na figura heroica, no Aquiles da Ilíada homérica, que consolidará historicamente o ideal de homem da cultura grega. A moral homérica não estava preocupada com o cidadão comum, desejoso tão somente de uma vida prazerosa e tranquila, como teria sido a vida de Aquiles, mas com o herói, capaz de entregar a própria vida pelo ato heroico, de estar sempre pronto a arriscar sua existência desde que seja em prol de uma causa nobre. O heroísmo e o destino do herói ligado à morte6 revelam ainda outro traço marcante de Homero, que influenciaria o pensamento grego em geral: a ideia de uma lei superior e universal. Há um ritmo uniforme, permanente, em que todo o movimento se realiza por ação própria, e nisso entram as ações de homens e deuses, heróis e não heróis. Trata-se de uma lei maior que governa a vida em geral e que se situa no limiar da Moral e da Ética. Homero preenche seus poemas com temas morais e naturalistas, descreve não somente as lutas, mas também a natureza, o cenário dos episódios, e a passagem dos tempos, demonstrando que além das façanhas humanas existe um limite imposto por uma lei universal. Dentro desse limite situa-se a Ética, como ciência que estuda a conduta humana. 6 Contudo, há uma passagem importante na Odisseia, de um diálogo entre Ulisses e a psykhé de Aquiles no mundo dos mortos. Nesse trecho, constante no Canto XI, a sombra de Aquiles declara, quase em um alento de saudade, que as honras e lembranças dos grandes feitos só possuem validade entre os vivos, e tudo não passaria de sombras entre os mortos. Por esse pensamento, qualquer vida, ainda que miserável, poderia ser entendida como superior à morte. Seria preferível uma vida longa e sem glórias a um reinado no mundo dos mortos. Tal interpretação modificaria a visão de um Aquiles resoluto por uma vida trágica. (ASSUNÇÃO, 2003). polis: cidadeestado na Grécia Antiga. Introdução ao pensamento filosófico 19 Para Homero, como para os gregos em geral, as últimas fronteiras da Ética não são convenções do mero dever, mas leis do ser. É na penetração do mundo por esse amplo sentido da realidade, em relação ao qual todo “realismo” aparece como irreal, que se baseia a força ilimitada da epopeia homérica. (JAEGER, 2003, p. 78) Há uma ligação do humano com o divino que permeia os poemas homéricos, tanto nas inúmeras interferências dos deuses na Guerra de Troia como nas inspirações provocadas por Atena na viagem de Ulisses. Homero não está preocupado em invadir o mundo interior de suas personagens, explorando suas emoções, mas sim as ações, os movimentos do mundo exterior que constituem a realização heroica. Cada ação, mesmo a cólera de Aquiles, tem dois lados: um humano, a motivação psicológica da personagem, e outro divino, que em geral se baseia em vontades dos deuses ou na causa primeira de tudo, a vontade de Zeus, o deus supremo. Há, portanto, uma ordem estável, que na Ilíada chega inclusive a ser descrita na forma de concílios entre os deuses, que, ainda que em alguns momentos se revele conflituosa entre as próprias figuras divinas, demonstra como além do protagonista existe sempre outra ordem a julgar e decidir o futuro. Também a Odisseia é repleta delas. Toda a saga de Ulisses é permeada tanto pelo dilema psicológico, a sua soberba contra os deuses, como pela vontade divina, de Posêidon, em prejudicar o herói. Contudo, nesse limiar do humano com o divino, existe uma ordem que supera inclusive tal ligação. Por exemplo, mesmo Posêidon desejando aniquilar Ulisses por sua soberba, assim não pode fazê-lo, pois o destino do herói já estava traçado, já estava determinado que ele deveria retornar à sua terra natal. Nesse contexto, Posêidon poderia apenas causar-lhe mais problemas e atrasar sua viagem. Tal situação poderia parecer ao leitor contraditória, pois para que Posêidon provocaria tantos problemas se Ulisses estava destinado a triunfar? Porém, somente quando alcançou o limite de seu sofrimento existencial, Ulisses compreendeu que era sua soberba quem lhe provocava tantos problemas. Ao realizar a passagem de humildade tornou-se novo homem, mais preparado para os novos desafios. Há uma justiça superior em Homero, que liga o humano ao divino e inclusive apresenta consequências além dessa dimensão. Tal justiça surge ainda em sua mais profunda acepção, aquela em que a Ética se preocupa com a formação do homem. É nesse sentido espiritual, que inclusive antecipa muitas ideias da filosofia grega em geral, que se encontra a ideia de justiça em Homero. A justiça homérica está estabelecida em um patamar elevado em que se liga o humano ao divino, nos limites éticos da ação humana que, embora motivada a expandir-se ao infinito e à arete do herói, chega sempre a um momento em que a ordem natural e superior das coisas, a lei universal, põe um fim. A ação ética não pode ser separada do movimento natural do universo, da fluidez do mundo exterior. O homem grego cultuado por Homero é aquele que, dentro desse cenário aparentemente limitado, é capaz de, por meio das virtudes do herói, realizar e construir uma vida sublime. A justiça está nesse agir ético, é uma concepção de justiça que se define a partir de um ideal de homem formado pelo cultivo das virtudes do herói, tendo a coragem arete: na poesia homérica, é a virtude heroica, a excelência na realização de atos corajosos e vitoriosos. 20 Filosofia do Direito como cerne. Nesse sentido, a justiça é uma virtude interna, e sua prática não é uma obediência às leis, mas o ato de se guiar pelas virtudes éticas do herói e do ideal de homem grego, do homem nobre. Depois de Homero, houve outro grande poeta que influenciou bastante a formação do ideal grego de homem justo e ético: Hesíodo. Contudo, havia diferenças marcantes entre os dois. Hesíodo vivia em um tempo que não era tão dourado quanto o de Homero. Se em Homero era essencial cantar as façanhas dos heróis, em Hesíodo era mais importante cantar mensagens que ajudassem o povo agricultor e trabalhador a levar uma vida mais digna. Em Hesíodo se vê o segundo grande educador, agora não dos heróis e nobres, mas do povo e dos cidadãos comuns. O ideal de heroísmo trazido por Homero persiste, mas agora não revelado apenas nas lutas e guerras grandiosas, mas também no árduo trabalho cotidiano. Figura 2 – Retrato de Hesíodo Georgios Kollidas/Shutterstock. De Hesíodo nos chegaram duas poesias: a Teogonia e Os trabalhos e os dias. A primeira narra, em forma de mitos, a origem genealógica dos deuses, desde os deuses primordiais, que participaram da criação do universo, segundo a visão religiosa da Grécia Antiga, e depois as gerações seguintes de deuses, até os deuses olímpicos, como Zeus, Posêidon, Hades, Hera

Continue navegando

Outros materiais