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Literatura Pós-coquetel Por: Alexandre Nunes de Sousa Texto publicado no dia 05 de outubro de 2015 no site da Cariri revista SOUSA, Alexandre Nunes de. (Artigo - online). Literatura pós-coquetel (parte 1). Revista Cariri, Juazeiro do Norte, 6 out. 2015. Disponível em: <http//caririrevista.com.br/literatura-pos-coquetel-parte-1>. Houve um tempo em que viver com HIV era sinônimo de sentença de morte. E houve um tempo em que esta sentença não existia discursivamente nas realidades dos governos e das políticas públicas. O início da epidemia de aids foi marcado pelo pânico moral e o processo de implementação do neoliberalismo no mundo, o que levou o então Presidente dos EUA Ronald Regan a vergonhosamente pronunciar o nome da síndrome em público apenas em 1987, próximo ao final do seu segundo mandato. Naquele momento já faziam mais de quatro anos desde que o vírus tinha sido identificado e contabilizava-se milhares de mortes. A reação a tal negligência viria dos movimentos sociais e em especial dos ativismos ligados às artes. Era a época do surgimento do Queer Nation e do Act Up, este último com seu clássico slogan: silêncio = morte. Diante da flagrante omissão das autoridades, era necessário falar. E foi assim que se configurou um fenômeno, chamado por Marcelo Secron Bessa de “epidemia discursiva”. A temática da aids invadia as artes como estratégia política de atuação e visibilidade. Nas artes visuais como o graffiti de Keith Haring; no audiovisual com o chamado New Queer Cinema; no teatro com peças como “Angels in America” de Tony Kushner; “Rent” de Jonathan Larson e “The normal heart” de Larry Kramer, nas performances e happenings com ocupação de Igrejas e prédios públicos. Além de nosso foco principal por hora: a Literatura. Escritores como Susan Sontag, Michael Cunningham, Armistead Maupin fizeram parte desta geração. Assim como a tuberculose invadira a literatura no final do século XIX e início do século XX (“A montanha mágica”, de Thomas Mann é um exemplo emblemático), a aids vai passar a ser um tema fundamental na produção destes autores. No Brasil, tal fenômeno ocorreu, por exemplo, com a obra de Caio Fernando Abreu. Escrevendo em 1984 o primeiro texto de nossa literatura que contem a palavra aids: a novela “Pela Noite” presente no livro “O triângulo das Águas”. Vale lembrar que a epidemia esteve presente em seus escritos até sua morte em 1996. Porém, nas construções narrativas recentes da aids existe uma espécie de ponto de mutação. A descoberta dos potentes antirretrovirais, o chamado coquetel, exatamente naquele ano de 1996 vai dar uma nova configuração à epidemia e sua discursividade. Podemos afirmar que em termos de literatura norte-americana, este ponto de mutação ocorre no romance “As horas” (1999) de Michael Cunningham (adaptado para o cinema em 2001 com direção de Sthephen Daldry). Em um trecho do livro é possível perceber um diálogo onde o personagem vivendo com HIV argumenta que pode sim viver por anos, mas acaba dando fim à sua vida por motivos que não eram especificamente relacionados à síndrome. É o momento em que a morte em decorrência da aids passa a não ter mais centralidade na construção das narrativas contemporâneas. A partir de então, presenciamos a emergência de diversas obras características do que temos chamado de uma “literatura pós-coquetel”. Em especial em livros de outro escritor norte-americano já citado, Armistead Maupin, como “Ouvinte da Noite” (2000) e “Michael Tolliver Lives” (de 2007. “Michael Tolliver está vivo”, em tradução livre. Inédito no Brasil). No primeiro, vemos o companheiro do protagonista ressurgir do leito de morte ao mesmo tempo em que põe fim ao relacionamento e, no segundo, ficamos sabemos que o clássico personagem da série de livros “Tales of the City” (“Histórias da Cidade”), dos anos 1970 e 1980, não morreu em decorrência da aids e é um cinquentão soropositivo vivendo em São Francisco. Se na obra de Maupin a temática da aids continua a aparecer vigorosamente, nos livros de Michael Cunningham pós-coquetel a epidemia passa a figurar apenas como uma vaga memória triste. É o que acontece nos romances “Ao anoitecer” (2010) e “The Snow Queen” (de 2014. Inédito no Brasil). Vale lembrar que os dois primeiros livros deste escritor estão marcadamente atravessados pela aids: “Uma casa no fim do mundo” (1990) e “Laços de Sangue” (1994). Logo, muitas são as reconfigurações da epidemia. Ao mesmo tempo da emergência de uma vida possível com HIV, vieram sua feminização, o aumento dos casos entre jovens, o deslocamento dos óbitos para os países periféricos, o Brasil deixando de ser uma referência mundial por conta do fundamentalismo evangélico. Além dos surgimentos do tratamento como prevenção (TasP); e das chamadas Profilaxias pós-exposição (PEP) e pré-exposição (PrEP). Momento em que marca uma nova fase da relação de saber-poder com a indústria de fármacos. Como estas questões passam a ser ditas e vistas (ou não) nas artes e em especial na Literatura? Em 2015, tivemos traduzidos para o Brasil dois livros interessantes desta possível “literatura pós-coquetel”: “Dois Garotos se Beijando”, romance de David Levithan e “Pílulas Azuis”, HQ de Frederik Peetrs que podem ajudar em algumas destas reflexões, mas estes serão temas para nossas próximas postagens. As respostas à epidemia aids não podem ser entendidas fora do campo da discursividade. A síndrome surgiu atravessada pelos meios de comunicação que criavam sujeitos e estigmas. Foi assim que a imprensa a denominou inicialmente como Gay-Related Imunodeficience — GRID (Imunodeficiência relacionada a gays) e popularizou-a nos primeiros anos o Câncer Gay. Naquela mesma época, a escritora norte-americana Susan Sontag deu importante contribuição para o tema das problemáticas discursivas da aids. Talvez por ter passado pelo processo de estigmatização devido a um câncer (experiência que originaria seu ensaio hoje clássico, A Doença como Metáfora), Sontag, ao refletir sobre a aids em 1986, resolveu estender os argumentos do escrito anterior criando um outro texto divisor de águas: A Aids e Suas Metáforas. Como afirmou a autora já nas primeiras linhas do ensaio: “Relendo agora a doença como metáfora pensei […] a metáfora, escreveu Aristóteles, consiste em dar a uma coisa o nome de outra.” E é especialmente contra as metáforas de guerra no discurso da aids que a escritora desenvolve seu argumento. Combate, defesa, ataque, luta, invasão. Estas seriam, para Sontag, metáforas que contribuíam para dificultar o entendimento “real” da infecção, culpabilizando e estigmatizando as vítimas. Este projeto de acesso ao “real” é relativizado posteriormente, quando a ensaísta afirmará que é impossível falar sem metáforas, mas é possível evitar aquelas que provocam estigmas. Susan Sontag, autora de Assim Vivemos Agora, A Doença Como Metáfora, entre outros ensaios. Outro tópico importante desenvolvido dois anos antes pela mesma escritora no conto Assim vivemos agora é a afirmação discursiva de que as pessoas continuavam vivas e eram muito além de suas enfermidades. Naquele momento, as diversas metáforas promoviam a identificação entre doente = doença = morte. Assim como o tuberculoso (sic) ou o leproso (sic), surgia o aidético (sic). A luta semântica contra o uso deste termo pejorativo e a favor da centralidade na vida já aparecia naquele conto originalmente publicada em 1986 pela revista The New Yorker. Como podemos perceber neste trecho: “Eu estava pensando, Úrsula disse a Quentin, que a diferença entre uma história e uma pintura, ou uma fotografia é que numa história você pode escrever: ‘ele continua vivo’. Mas numa pintura ou numa foto não dá para representar este ‘continua’.Você pode apenas mostrá-lo estando vivo. Ele continua vivo, disse Stephen” (Tradução de Caio Fernando Abreu). É importante ressaltar que Assim vivemos agora diz respeito à conhecida rede de solidariedade entre amigos e até mesmo novas formas de parentalidade que surgiram a partir da epidemia, uma vez que muitos dos pacientes eram abandonados pelas famílias biológicas. O enredo é composto por 26 personagens, tendo seus nomes iniciados com cada uma das letras do alfabeto, girando em torno da preocupação e dos cuidados com um amigo enfermo de uma doença elipticamente subtendida como a aids. Não se vive mais daquele jeito. As mudanças promovidas pelos fármacos transformaram também as formas de contar a epidemia. Parece-nos que esta nova dizibilidade caminharia em dois sentidos na literatura: — O desaparecimento do tema da epidemia, como vemos no romance para jovens Dois garotos se beijando de David Levithan, ou o surgimento de uma espécie de “narrativas de memória” em claras reportações às vivências na origem da síndrome. Como afirmamos no artigo anterior, é o caso da atual fase obra de Michael Cunningham e mesmo de certa narrativa fílmica mainstream adaptando peças teatrais escritas no auge da epidemia como: Rent (2005), Angels in America (2003) e The normal Heart (2012). Ou ainda outros filmes como Clube de Compras Dallas (2013) e Test (2013), todos em um clima de “naquele tempo era assim que se vivia”. — Outro caminho parece ser o dos relatos/narrativas de “cronificação” da síndrome. O que é o caso de Pílulas azuis de Frederik Peeters. E nos cinemas, o documentário português de Joaquim Pinto em E agora, lembra-me (2014). O filme sintoniza-se com o livro já citado anteriormente Michael Tolliver Lives ao retratar as questões de uma vida pós-coquetel. Abordamos agora um livro de cada tendência: Dois garotos se beijando (editora Galera Record) é um romance classificado como Young Adult Fiction do escritor norte-americano David Levithan. A história não poderia ser mais prosaica. Após um amigo sofrer homofobia, dois adolescentes gays resolvem quebrar o recorde mundial de mais longo beijo da história para chamar atenção do mundo contra o preconceito. Até aí seria apenas mais um candidato a roteiro de cinema no filão de filmes LGBT, mas o inusitado do livro está no fato do narrador ser uma espécie de coro grego das vozes de pessoas gays que morreram em decorrência da aids na época pré-coquetel. Neste sentido, o que o romance mostra é o contraste de vivências entre duas gerações separadas antes e depois de 1996 (ano de descoberta do conjunto de antirretrovirais). Como é possível perceber no trecho abaixo: “Se você é um adolescente agora, é improvável que tenha nos conhecido bem. Somos seus tios das sombras, seus padrinhos anjos, o melhor amigo de sua mãe ou da sua avó da faculdade, o autor daquele livro que você encontrou na sessão gay da biblioteca. Somos os personagens em uma peça de Tony Krushner ou nomes em uma colcha que raramente é usada. Somos os fantasmas da geração mais velha que sobrou. Você conhece algumas de nossas músicas.” Ao mesmo tempo em que o coro grego assiste e narra os dois garotos se beijando, ele estabelece uma série de comparações entre a sociabilidade gay do início do século XXI e a do final do século XX, assolada pelo refluxo da revolução sexual motivado pela pandemia. Se a aids é o centro da reflexão memorialística do narrador do século XX, ela simplesmente não é tema entre os personagens vivendo no presente. Já Pilulas Azuis (editora Nemo), do artista visual suíço Frederik Peeters, é uma história em quadrinhos que conta o cotidiano de um casal heterossexual sorodiscordante (quando apenas um dos parceiros vive com o vírus). A história retrata o relacionamento do casal, os dramas do dia-a-dia: como o receio da transmissão, o modo como parentes reagem, o momento em que o vírus se torna indetectável na personagem soropositiva e aparece a problemática do uso da camisinha. Neste último tema, poderíamos dizer que já estão postas as questões relativas ao tratamento como prevenção (TasP). Enfim, retrata-se um modo “cronificado” como se vive com HIV no século XXI. Revelando o HIV como uma característica dentre tantas da vida (obviamente, na realidade de um país desenvolvido e de pessoas não-imigrantes que têm acesso à terapia antirretroviral). Ressaltamos que estas reflexões dizem respeito quase em sua totalidade à literatura norte- americana e de ampla circulação mundial. Outro ponto relevante a se destacar é que quase a totalidade das narrativas abordam personagens homens cisgênero, gays e brancos, demonstrando uma hegemonia da circulação masculina e a invisibilidade de personagens negras e/ou mulheres na literatura mainstream da aids. “Você tem ideia do que é ser uma bicha positiva nessa cidade?” As temáticas da PrEP e PEP, por serem relativamente recentes, ainda não aparecem, contudo é importante pontuar que em termos de produto cultural em geral, elas foram abordadas na 2ª temporada do seriado Looking (2015). Inclusive, no corrente ano só foram registrados 2 personagens vivendo com HIV na TV norte-americana. Eddie, personagem de Daniel Franzese, presente no já citado seriado, e Oliver, vivido por Conrad Ricamora em How to get away with murder (2015). Já em termos de Brasil, vale destacar a obra do escritor Luis Capucho e o espetáculo teatral Boa Sorte, em processo de criação pelo diretor goiano Gabriel Estrela. As impressões aqui contidas são apontamentos esparsos que em momento algum pretendem dar conta do estado da arte desta que analiticamente, chamamos de “Literatura pós-coquetel”. Nem pretendemos apontar como se configura a epidemia em termos mundiais, mas destacar como a mesma aparece nos discursos de alguns escritores de países centrais, especialmente norte-americanos. Como o acesso à temática se deu praticamente apenas através das obras, agradeço ao blog do Jovem Soropositivo pela pronta disposição em esclarecer dúvidas sobre questões que apenas a literatura ficcional não daria conta. A leitura destas diversas obras motiva em nós o desejo de que em breve a síndrome seja apenas uma curiosidade histórica e das ficções. Enquanto isto, como diria Caio Fernando Abreu, “a vida grita e a luta continua.”
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