Buscar

Literatura e Transgressão

Prévia do material em texto

!
!! ! ! 
!
Universidade Nova de Lisboa, !
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas!
— Mestrado em Edição de Texto!
!
!
!
!
“Literatura e transgressão,!
uma leitura de Georges Bataille” !
!
!
!
Disciplina: Poéticas contemporâneas!
Docente: Professor Fernando Cabral Martins!
!
Mestrando: António Trindade!
!
!
!
!
!
Ano lectivo 2013/ 2014!
!
!
"2
!
!
Literatura e transgressão, !
uma leitura de Georges Bataille!
!
!
!
!
«La littérature est l’ essentiel, ou n’est rien. Le Mal — 
une forme aiguë du Mal — dont elle est l’expression, 
a pour nous, je le crois, la valeur souveraine.»!
Georges Bataille, La littérature et le mal!
!
!
!
!
!
!
1. — A morte de Deus: soberania e transgressão!
!
!
2. — Literatura e transgressão!
!
!
3. — Transgressão e soberania!
!
!
!
!
!
!
!
!
!
!
!
!
!
!
!
!
"3
1 — A morte de Deus: soberania e transgressão!
!
!
«La mort de Dieu n’a pas été seulement l’«événement» qui a suscité sous la forme que 
nous lui connaissons l’expérience contemporaine: elle en dessine indéfiniment la grande 
nervure squelettique. (…) La morte de Dieu ne nous restitue pas à un monde limité et 
positif, mais à un monde qui se dénoue dans l’expérience de la limite, se fait et se défait 
dans l’excès qui la transgresse.!
Sans doute est-ce l’excès qui découvre, liées dans l’expérience de la limite, se fait et se 
défait dans l’excès que la transgresse.» Michel FOUCAULT, Préface à la transgression, 
Nouvelle Editions Lignes, 2012, pp. 13-14!
!
Não há momento que represente melhor o mundo contemporâneo do que a profecia da 
morte de Deus  . A morte de Deus é o “acontecimento” central do mundo contemporâneo, 1
o “acontecimento” que cinde a unidade milenar do homem e que o confronta com a 
insuportável experiência da angústia do vazio e da vertigem do limite.!
!
O que significa dizer que Deus morreu? Afirmar a morte de Deus é estar perante o 
espectáculo do desmoronamento da ordem antropológica, axiológica, gnosiológica, 
estética e religiosa que deu forma à civilização Ocidental, a pergunta pelo homem tornou-
se urgente e vertiginosa convertendo-se em questão fundadora da contemporaneidade.  2
— a “profecia” do Zaratrustra de Nietzsche  deixou uma marca dificilmente incontornável 3
e que espelha bem o espírito da época.!
A convulsão dos tempos é de tal ordem que Nietzsche afirmar-se-á perante as novas 
gerações de intelectuais e artistas da Europa como o arauto de um novo tempo.  !4
!
"4
" «Ich kenne mein Loos. Es wird sich einmal an meinen Namen die Erinnerung an etwas Ungeheures anknüpfen, — an 1
eine Krisis, wie es keine auf Erden gab, an die tiefste Gewissens Kollision, an eine Entscheidung heraufbeschworen 
gegen Alles, was bis dahin geglaubt, gefordert, geheiligt worden war. Ich bin kein Mensch, ich bin Dynamit.» Friedrich 
NIETZSCHE, Ecce homo. Wie man wird, was man ist, 1888
" Sobre esta questão, que do nosso ponto de vista é capital para compreender o século XX, basta recordar as 2
convulsões sociais para ficarmos com uma boa perspectiva da Europa do século dezanove. As guerras napoleónicas, 
os conflitos franco-prussianos, as guerras e guerrilhas regionais e coloniais, a partilha do “bolo mundial”, a decadência 
das casas reais e imperiais, os conflitos no mundo do trabalho e, sobretudo, a génese de uma nova ordem social sem 
classes, esboçaram o novo século.
" Friedrich NIETZSCHE, Also sprach Zarathustra, Untertitel Ein Buch für Alle und Keinen, 18833
" A propósito da influência deste pensador no século XIX e XX basta referir que Nietzsche é um dos filósofos mais citado 4
e mais estudado do século passado. Raros são os pensadores e intelectuais que contornaram o seu pensamento.
A morte de Deus, que faz tremer as mentes e doutrinas mais conservadores da Europa, é 
a oportunidade que faltava para fazer emergir uma nova classe de intelectuais que se 
afirmam como a vanguarda do povo  . Na Europa do século XIX emerge um clima de 5
mudança que vai possibilitar novos modos de expressão estética e literária; a arte e a 
literatura saem da academia; o conflito nos meios intelectuais instala-se; escritores e 
artistas plásticos afastam-se dos cânones à procura de novas formas de expressão; os 
espartilhos académicos rompem-se, as artes plásticas, a poesia e a literatura afirmam-se 
como soberania do artista. É neste contexto que surgem os grupos de intelectuais de 
onde emergem aquelas que, do nosso ponto de vista, têm origem as temáticas e as 
atitudes dos movimentos vanguardistas do início do século XX.  !6
!
O ambiente que se vive no século XIX é propício ao aparecimento de novas tendências 
estéticas e sociais. Os artistas, como refere Kandinsky e Rodrigues (com a distância de 
quase cem anos), são a avant-garde, aqueles que, devido à sua sensibilidade e 
imaginação, electrizam a sociedade e criam progresso. Cremos que a explosão criativa do 
início do século XX só foi possível na medida em que o intelectual e o artista afirmaram 
pela primeira vez na história a sua soberania confrontando todo o tipo de 
constrangimentos.!
!
A problemática da arte das vanguardas, do nosso ponto de vista, relaciona-se com a 
necessidade de afirmação da soberania do pensador e do artista, e é neste 
enquadramento que devem ser entendidos os movimentos estéticos e poético-literários do 
século XIX, de que os intelectuais do século XX se afirmam herdeiros; a arquitectura, as 
artes plásticas, a literatura e a poesia, que durante milénios serviram os cultos sagrados e 
o poder dos soberanos, tantas vezes elementos de coesão e de conflito religioso, social e 
"5
" O primeiro uso da palavra avant-garde, com o sentido que actualmente lhe atribuímos foi, provavelmente, utilizado 5
pela primeira vez por um seguidor de Saint-Simon num texto de 1825 que, curiosamente, une artistas, sábios e 
industriais em torno da causa social e do progresso: «C’est nous, art istes, qui vous servirons d'avant-garde: 
la puissance des arts est en effet la plus immédiate et la plus rapide. Nous avons des armes de toute 
espèce: quand nous voulons répandre des idées neuves parmi les hommes, nous les inscrivons sur le 
marbre ou sur la toi le ; nous les popularisons par la poésie et le chant; nous employons tour-à-tour la 
lyre ou le galoubet, l 'ode ou la chanson, l 'histoire ou le roman; la scène dramatique nous est ouverte, 
et c'est là surtout que nous exerçons une influence électrique et victorieuse.» Olinde RODRIGUES, 
L’artiste, le savant et l ’ industriel le, in: Opinions l i t téraires, philosophiques et industriel les, Paris, 
1825, p. 341
" As influências dos grupos de vanguarda encontram-se sem grande esforço em poetas e escritores como Poe, 6
Baudelaire, Rimbaud, Dostoievski ou Mallarmé, em pintores como Goya, Turner, Munch, Cezanne, Gauguim, ou Van 
Gogh, em músicos como Beethoven, Wagner ou Mahler, na fotografia e na imagem em movimento. As vanguardas 
rescrevem as intenções estéticas do século XIX fazendo acentuar as rupturas com o passado e projectando-as no 
século XX.
político  encontram-se num novo contexto. Com o “evento” da morte de Deus a arte deixa 7
de servir de mediador na comunhão do sagrado e na manifestação do excesso do 
soberano, os artistas intuem um novo tempo, um tempo marcadamente profano onde 
impera a presença do Eu, da técnica e do hedonismo, em que a comunicação e a 
necessidade de expressão do indivíduo substitui a comunhão e o servilismo.!
!
A soberania e a transgressão são o leitmotiv das poéticas contemporâneas. Soberania 
porque os artistas não se querem submeter à academia e aos caprichos dos patronos e 
mecenas; transgressão porque a arte confronta o sagrado e o estabelecido, aproximando-
se da experiência do interdito, que é, por definição, um desejo de afirmação da liberdade 
soberana do Eu.  !8
!
!
«Dans le monde de la technique, on peut continuer à louer les écrivains et à enrichir les 
peintres, on peut honorer les livres et étendre les bibliothèques: on peut réserverà l’art 
une place parce qu’il est utile ou parce qu’il est inutile, le contraindre le réduire ou le 
laisser libre. (…) Apparemment, l’art n’est rien s’il n’est souverain. D’où la gêne de l’artiste 
d’être encore quelque chose dans un monde où il se voit pourtant injustifié.» Maurice 
BLANCHOT, Le livre à venir, Gallimard, Paris, 1986, p.266!
!
!
!
"6
" A título de exemplo: A utilização das imagens e da ostentação do luxo nas igrejas teve enorme oposição de S. 7
Bernardo de Claraval (séc. XI). Este renovador das regras monásticas de São Bento preconiza a mais violenta reforma 
estética da Igreja do Ocidente defendendo a humildade e o desprendimento dos bens materiais, bem como a ideia de 
que os ornamentos religiosos devem reflectir simplicidade, impôs uma estética que recusava o excesso das decorações 
escultóricas nos conventos e nas igrejas. A reforma cisterciense de São Bernardo preconizou uma arte iconoclasta. Os 
mosteiros cistercienses são excluídos de todo o supérfluo decorativo que era considerado de teor erótico e que 
desviavam crentes e monges da contemplação da obra divina. !
No norte da Europa a iconoclastia protestante leva os artistas ao desespero. A ausência de encomendas, 
tradicionalmente feitas pela Igreja e que sustentavam o mercado da arte deixam os artistas sem trabalho. Como 
consequência nasce um novo estilo, um estilo onde imperam os temas do quotidiano burguês e popular, marcadamente 
dessacralizado. Deste movimento de renovação religiosa no Norte da Europa, emerge o excesso do barroco da contra-
reforma no Sul. Ao pudor quotidiano e melancólico da pintura flamenga do século XVII, opõe-se o fausto e o excesso da 
iconografia barroca.
" Excepção feita ao “divino Marquês” que muito antes intui esta revolução: «La liberté souveraine, absolue, fut 8
envisagée — dans la littérature — après la négation révolutionnaire du principe de la royauté» Georges BATAILLE, L’ 
érotisme, éd. de Minuit, Paris, 1985, p. 184; «[A moral de Sade] est fondée sur le fait premier de la solitude absolue. 
Sade l’a dit et l’a répété sous toutes les formes; la nature nous fait naître seuls, il n’y a aucune sorte de rapports d’un 
homme à un autre. La seule règle de conduite, c’est donc que je préfère tout ce qui m’affecte heureusement et que je 
tienne pour rien tout ce qui ma préférence peut résulter mauvais pour autrui. La plus grand douleur des autres compte 
toujours moins que mon plaisir.» Maurice BLANCHOT, Lautréamont et Sade, Ed. de Minuit, 1949, p. 220-221, citado por 
Georges BATAILLE, op. cit. p. 187!
2 — Literatura e transgressão!
!
«Rien n’est négatif dans la transgression. Elle affirme l’être limité, elle affirme cet limité 
dans lequel elle bondit en l’ouvrant pour la première fois à l’existence.» Michel 
FOUCAULT, Préface à la transgression, Nouvelle Editions Lignes, 2012, p. 20!
!
O desejo da afirmação da soberania individual face às interdições que moderam as 
pulsões vitais do indivíduo — Deus, o Outro e o Tempo — é, para Bataille, uma 
necessidade em “potencial explosivo”. A literatura é comunicação e a comunicação exige 
lealdade; a moral resulta da cumplicidade do sujeito com o seu conhecimento do Mal, 
conhecimento fundador da comunicação intensa — que, para Bataille, é o essencial da 
literatura, “expressão mais aguda do Mal” e exercício absoluto e ilimitado do homem 
soberano (Bataille, 2013:8). De modo geral a literatura só faz sentido, na medida em que 
tenta restituir o movimento de excesso que transporta o homem para além dos seus 
limites racionais, o valor do excesso que, para Bataille, coincide com o Mal — é a 
literatura que nos aproxima do inacessível e é a literatura que nos devolve aquilo que em 
nós é soberano — é esta a resposta da imaginação literária às interdições.!
!
Desde há muito que os pensadores tentam refrear a “escravatura das paixões”, filósofos, 
teólogos e políticos ao longo da história, empreenderam a tarefa de enquadrar nos seus 
sistemas a moralidade das paixões e dos desejos humanos. Para o pensamento clássico 
e medieval há desejos legítimos e benevolentes e outros fonte de destruição e de 
corrupção da ordem social e pessoal. Estes últimos precisam de ser moderados, os 
desejos de poder, de riqueza, de honra, o desejo sexual e de destruição, devem ser 
refreados, já que não podem ser anulados. Deste modo foram traçados limites para os 
excessos, estes limites representam, nada mais do que o sistema de interdições de tipo 
social e pessoal estabelecidos pelos vários sistemas de moralidade.!
!
«L’ interdit et la transgression répondent à ces deux mouvements contradictoires: l’interdit 
rejette, mas la fascination introduit la transgression. L’interdit, le tabou ne s’opposent au 
divin qu’en un sens, mais le divin est l’aspect fascinant de l’interdit: c’est l’interdit 
transfiguré. (…) L’interdit répond au travail, le travail à la production: dans le temps 
profane du travail, la société accumule les ressources, la consommation est réduite à la 
quantité nécessaire à la production. Par excellence, le temps sacré est la fête. La fête ne 
"7
signifie pas nécessairement, (…) la levée massive des interdits, mais en temps de fête, ce 
qui est d’habitude interdit peut toujours être permis, parfois exigé. Il y a du temps ordinaire 
à la fête une inversion des valeurs (…). Il est essentiel à l’homme de refuser la violence du 
mouvement naturel, mais le refus ne signifie pas la rupture, il annonce au contraire un 
accord plus profond.» Georges BATAILLE, L’ Érotisme, éd. de Minuit, Paris, 1985, p. 
76-77; !
!
Para Bataille as interdições e os tabus servem de limitação dos excessos, regulam a vida 
social e permitem, precisamente, o movimento perpétuo do desejo. O conflito desejo-
interdição resulta num movimento circular dialéctico sem fim, em que, à energia excessiva 
e interior (O Eros e o Thanatos freudiano) do desejo, se opõe a força exterior do tabu. O 
interdito relança o desejo ao infinito, estabelecendo com ele uma relação de dependência 
inquebrável, assim como o ciclo cardíaco da sístole e da diástole — é a transgressão das 
interdições que gera o desejo.  O “interdito serve para ser transgredido” afirma Bataille na 9
obra L’ Érotisme, o interdito é confusão, desordem e violência contra a ordem da razão 
utilitária e da utilidade sexual, contra a ordem do conhecimento e da arte, ri-se do saber, 
mistura vida e morte, sofrimento e prazer e emerge no extremo dos possíveis.!
!
*!
*! *!
!
O mundo do trabalho (da produção útil), controlado por um complexo sistema de 
interdições é, pontualmente, ultrapassado pelo mundo do jogo e da festa, isto é, as 
interdições reguladoras de comportamentos/actividades convidam, inevitavelmente, à 
transgressão. O mundo da festa, do jogo, da arte e da literatura são o universo 
verdadeiramente humano, actividades que transgridem o útil, e que são, por definição, 
manifestações profanas do mundo através do qual o homem se afirma como homem. 
Segundo Bataille, é na transgressão das regras e das interdições, quer profanas, quer 
religiosas, que regulam o mundo da razão utilitária, que o homem afirma a sua 
humanidade, abrindo-se às transgressões limitadas, como são a festa, a literatura e a arte 
"8
" «Parfois un interdit intangible est violé, cela ne veut pas dite qu’il ait cessé d’être intangible. Nous pouvons même aller 9
jusqu’à proposition absurde: “l’interdit est la pour être violé.”» Georges BATAILLE, L’ Érotisme, éd. de Minuit, Paris, 
1985, p. 72 
o homem acede ao mundo dos soberanos e dos deuses  — que é, para o homem não 10
soberano, o tempo de uma licença limitada. A transgressão das interdições do sagrado 
ligadas às experiências extáticas são a origem da religião e expressam-se na festa em 
que o sacrifício é o momento de paroxismo.  !11
!
«(…) l’art exprime ce moment de transgression religieuse, qu’il l’exprime seul assez 
gravement et qu’il en soit la seule issue. C’est l’état de transgression que commande ledésir, l’exigence d’une monde plus profonde, plus riche et prodigieux, l’exigence, en un 
mot, d’un monde sacré. Toujours la transgression se traduisit en formes prodigieuses : 
telles les formes de la poésie et de la musique, de la danse, de la tragédie ou de la 
peinture. Les formes de l’art n’ont d’autre origine que la fête de tous le temps, et la fête, 
que est religieuse, se lie au déploiement de toutes les ressources de l’art. (…) Le jeu est 
en un point la transgression de la loi du travail : l’art, le jeu et la transgression ne se 
rencontrent que liés, dans un mouvement unique de négation des principes président à la 
régularité du travail. (…) — d’accorder le travail et le jeu, l’interdit et la transgression, le 
temps profane et les déchaînements de la fête en une sorte d’équilibre léger, où sans 
cesse les contraires se composent, où le jeu lui-même prend l’apparence du travail, et où 
la transgression contribue à l’affirmation de l’interdit.» Georges BATAILLE, Lascaux ou la 
Naissance de L'art. La Peinture Préhistorique, Skira, 1994, p. 38!
!
*!
*! * !
!
Como compreender este movimento de transgressão no contexto da poesia e da 
literatura? Para Bataille a transgressão é um tipo de acção ou experiência que nos 
aproxima do limite da vivência em termos da sua intensidade e da sua provável 
impossibilidade, é uma experiência-limite, o ponto da vida onde se aproxima a quase 
impossibilidade da vida, em que a tensão entre o sentido e o não-sentido tornam a 
existência impossível. “Se a liberdade é a essência da poesia e se a conduta livre, 
"9
" Sobre este aspecto, aparentemente contraditório do temor e da veneração do sagrado, ver os exemplos 10
apresentados por Georges BATAILLE em L’ érotisme, op. cit., pp. 74 a 76
" Bataille dedicou bastantes escritos sobre o tema do sacrifício, decisivos para a sua análise da literatura; A propósito 11
da temática do sacrifício ver o texto: La part maudite, éd. de Minuit, 2011, pp. 78 e 79. Na sua obra La littérature et le 
Mal, Gallimard, Paris, 2013, procura estabelecer uma relação do escritor com uma certa cumplicidade no 
conhecimento do Mal.
soberana só merece uma “procura deprimente”, compreendo imediatamente a miséria da 
poesia e as cadeias da liberdade.” (Bataille: 2013, 29) Ora, a poesia e a literatura para 
Bataille encontram-se no domínio do proibido e o proibido é o domínio do sagrado que 
pode ser comparado à embriaguez divina e à qual se aparenta o “movimento repentino da 
infância” que “está por inteiro no presente” (Bataille, 2013:17). Na educação das crianças, 
refere Bataille,  “a vivência no instante presente é tida como a comum definição de mal. 12
Os adultos proíbem aos que vão chegar à maturidade, o reino divino da infância. Não 
menos que proibir o seu acesso fácil e perigoso, é necessário encontrar o domínio do 
instante (o reino da infância), e isso exige a transgressão temporária do 
proibido.” (Bataille, 2013:18). Quanto mais intangível for o proibido, mais livre se 
transforma a transgressão e quanto mais vincadas forem as interdições morais, mais a 
necessidade de ruptura se impõe ao artista para melhor “abraçar a vida na sua plenitude 
e descobrir na criação artística o que a realidade” lhe recusa (Bataille, 2013:18). Como 
refere Sartre a propósito das Flores do Mal de Baudelaire: “Mas o que é o Diabo no fundo, 
senão o símbolo das crianças desobedientes e amuadas que exigem que o olhar paterno 
as fixe na sua essência singular e que fazem o Mal no quadro do Bem para afirmar a sua 
singularidade a fazer consagrar?” (Bataille: 2013:29). A liberdade é um poder da criança e 
que o adulto só atinge em sonho ou na expressão poética; a literatura pode transgredir a 
lei, o escritor pode dizer tudo, “sendo inorgânica, é irresponsável. Nada assenta sobre 
ela.” (Bataille, 2013:19). Bataille defende que é esta, precisamente, a essência da poesia 
e da literatura: escolher estar em falta é, para o homem, “ser lançado contra si próprio e 
que não pode reconhecer-se, não pode amar-se até ao fim, se não for objecto duma 
condenação.” (Bataille, 2013: 30) !
!
De William Blake, que Bataille dedica um capítulo na obra «A literatura e o mal», afirmará 
que “entrega a vida à energia original: assim a verdade do Mal que é essencialmente 
recusa da atitude servil, é a sua verdade.” Ele [Deus] é um de nós, cantando na taberna  13
e rindo com as crianças; nunca é o triste senhor cheio de moralidade e cheio de razão 
que, sem energia, cuida de si (…) A maravilhosa indiferença e a infantilidade de Blake, a 
sua facilidade no impossível, a angústia que deixa a audácia intacta, nele tudo é a 
expressão de idades mais inocentes, tudo marca o regresso à simplicidade 
perdida.” (Bataille, 2013:75) !
"10
" Ver poema de BLAKE “The little vagabond”; Doc. 10, página 2412
!
A linguagem poética está também intimamente ligada ao desejo, constitui o limite onde o 
prazer aflora; graças à sonoridade poética as palavras tornam-se eróticas, carregadas de 
valor pulsional, tornam-se corpos eróticos autónomos em que os significantes nos 
transportam para além dos significados, para além do limite da linguagem possível.  O 14
prazer erótico é para Bataille um prazer que dispensa qualquer necessidade de 
linguagem, uma experiência indizível em que a linguagem é diluída no prazer e que, no 
limite, é a linguagem transgredida,  a experiência erótica do desejo não se relaciona só 15
com a actividade sexual, mas com toda a actividade imaginária do sujeito. A sexualidade 
graças à transgressão do interdito, é levada ao limite, limite da consciência, limite da 
moral e da lei e limite da linguagem.!
!
«J’ai parlé d'expérience mystique, je n'ai pas parlé de poésie. Je n'aurais pu le faire sans 
entrer plus avant dans un dédale intellectuel: nous sentons tous ce qu’est la poésie. Elle 
nous fonde, mais nous ne savons pas en parler. (…) La poésie mène au même point que 
chaque forme de l'érotisme, à l'indistinction, à la confusion des objets distincts. Elle nous 
mène à l'éternité, elle nous mène à la mort, et par la mort, à la continuité : la poésie est 
l’éternité. C'est la mer allée avec le soleil.” Bataille, L’ Erotisme, Les Editions de Minuit, 
Paris, 1985, p. 32!
!
!
«(…) qui n'a connu ces admirables heures, véritables fêtes du cerveau, où les sens plus 
attentifs perçoivent des sensations plus retentissantes, où le ciel d'un azur plus 
transparent s'enfonce dans un abîme plus infini, où les sons tintent musicalement, où les 
couleurs parlent, et où les parfums racontent des mondes d’idées? (…) Comme la nature 
perçue par des nerfs ultra-sensibles, elle révèle le surnaturalisme» Charles BAUDELAIRE, 
Œuvres complètes, t. 2, Gallimard, Coll. La Pléiade, 1976, p. 596.!
!
!
"11
" La poésie ne réponde pas à l’appel des choses. Elle n’est pas destinée à les préserver en les nommant. Au contraire, 14
le langage poétique est “la merveille de transposer un fait de nature en sa presque disparition vibratoire”. Maurice 
BLANCHOT, Le livre à venir, Gallimard, Paris, 2012, p. 305 
" “Ce qui est en jeu dans l’érotisme est toujours une dissolution des formes constitués. Je le répète: de ces formes de 15
vie sociale, régulière, qui fondent l’ordre discontinu des individualités définies que nous sommes.” Georges BATAILLE, L’ 
Erotisme, Les Editions de Minuit, Paris, 1985, p. 27
3 — Transgressão e soberania!
!
!
«Si l’homme ne fermait pas souverainement les yeux, il finirait par ne plus voir ce qui vaut 
la peine d’être regardé.» René CHAR, Feuillets d’Hypnos, Paris, Gallimard, 1946!
!
O conceito de soberania  relaciona-se historicamente com a possibilidade do soberano 16
consumir as riquezas produzidas pelo servo; o soberano distingue-se do servo porque 
consome sem trabalhar, enquanto que o servo consome para trabalhar e trabalha para 
consumir. !
!
Para Bataille há uma ruptura entre o tempo do trabalho e tempo do soberano; o tempo do 
trabalho é o tempo do servo, o tempoque este garante a produção das riquezas para o 
futuro e que agracia com o seu trabalho o consumo permanente ao soberano. O momento 
de transgressão está na partilha pontual e intensa desse momento de fruição excessivo e 
transbordante, momento “miraculoso” da fruição do instante presente, momento 
dionisíaco por excelência. É o tempo da festa e do excesso da festa, o momento da 
celebração do milagre da beleza e da riqueza, em que a percepção do tempo se eterniza 
no presente, e que o “servo”, como quando se inebria com o “poder divino” do vinho, vive 
por instantes a eternização desse momento, esse tempo miraculoso, quase sagrado e 
normalmente só permitido ao soberano e aos deuses.!
!
A arte, a poesia, a arquitetura e a música são a suspensão dessa experiência 
maravilhosa, experiência de um momento “miraculoso” que o artista vive e em que a obra 
de arte é mero produto final. !
!
"12
" O sentido de soberania que pretendemos esclarecer no capítulo 3 deste ensaio é diferente do significado socio-16
político do termo. Bataille define a soberania nos seguintes termos: ‹‹Ce qui distingue la souveraineté est la 
consommation des richesses, en opposition au travail, à la servitude, qui produisent les richesses sans les consommer. 
Le souverain consomme et ne travaille pas, tandis qu’aux antipodes de la souveraineté, l’esclave, j’homme sans avoir, 
travaillent et réduisent leur consommation au nécessaire, aux produits sans lesquelles ils ne pourraient ni subsister ni 
travailler. (…) Nous pouvons dire en d’autres termes qu’il est servile d’envisager d’abord la durée, d’employer le temps 
présent au profit de l’avenir, ce que nous faisons quand nous travaillons. (…) [o homem sem soberania] Il travaille afin 
de manger, il mange afin de travailler. Nous ne voyons pas arriver le moment souverain, où rien ne compte, sinon le 
moment lui-même. Ce qui est souverain en effet, c’est de jouir du temps présent sans rien avoir en vue sinon ce temps 
présent. (…) D’un côté disposer librement du monde, de ses ressources du monde, comme le fait l’ouvrier buvant le vin, 
participe à quelque degré du miracle. (…) Plus généralement ce miracle, auquel aspire l’humanité entière, se manifeste 
parmi nous sous forme de beauté, de richesse; sous forme, aussi bien di violence, de tristesse funèbre ou sacrée; enfin 
sous forme de gloire. que signifierait l’art, l’architecture, la musique, la peinture ou la poésie si ce n’est l’attente d’un 
moment émerveillé, suspendu, d’un moment miraculeux?›› Georges Bataille, La souveraineté, Nouvelles Éditions 
Lignes, 2012, pp. 14-16
A arte opõe-se ao mundo do trabalho, precisamente porque não tem utilidade, não serve 
um propósito; uma pintura, um poema ou uma música concretizam a vivência intensa e 
“sagrada” do artista — o que nos habituámos a apreciar nas obras de arte é a ilusão de 
partilhar esse momento de excepção, a partilha dessa “aura divina” que emana da obra 
de arte e que tanto se assemelha à experiência da presença das relíquias dos santos e da 
iconografia religiosa durante a Idade Média  . O artista é excepcional porque vive “noutro 17
mundo” um mundo em que os recursos materiais são despendidos em excesso, um 
momento de perda absoluta, um momento sagrado.  !18
!
*!
*! *!
!
Para Bataille a soberania exige a separação, a nudez absoluta, a perda e a morte. O acto 
soberano é o acto pelo qual o pensamento pára o movimento que o subordina, o objecto 
do pensamento separa-se da ordem do útil e da sua autonomia procede uma 
prodigalidade desmesurada (é o acto poético). No acto poético soberano o poeta separa-
se do uso da palavra enquanto significação e recorre à força da palavra.!
!
O significado de soberania manifesta-se também ao nível do pensamento. Para Bataille o 
nosso modo de pensar tem estado ligado a uma forma redutora em que a racionalidade 
ocidental é a responsável. É necessário “cortar a cabeça”  para afirmar a vitalidade 19
"13
" Esta dimensão “sagrada” da obra de arte encontra também fundamento no pensamento de Walter Benjamin: «O 17
modo primitivo de integração da obra de arte no contexto da tradição encontrou a sua expressão no culto. Como 
sabemos, as primeiras obras de arte surgiram ao serviço do ritual, primeiro mágico, depois religioso. Reveste-se do 
mais alto significado o facto de que este modo de existência aurático da obra de arte não se separa nunca totalmente da 
sua função ritual. [em nota de rodapé] (…) De facto, uma das características principais do culto é a impossibilidade de 
aproximação.]» Walter BENJAMIN, A modernidade, Assírio & Alvim, 2006, p. 214
" «L’activité humaine n’est pas entièrement réductible à des processus de production et de conservation et la 18
consommation doit être divisée en deux parts distinctes. La première, réductible, est représentée par l’usage du 
minimum nécessaire, pour les individus d’une société donnée, à la conservation de la vie et à la continuation de l’activité 
productrice : il s’agit donc simplement de la condition fondamentale de cette dernière. La seconde part est représentée 
par les dépenses dites improductives : le luxe, les deuils, les guerres, les cultes, les contractions de monuments 
somptuaires, les jeux, les spectacles, les arts, l’activité sexuelle perverse (c’est-à-dire détournée de la finalité génitale) 
représentent autant d’activités que, tout au moins dans les conditions primitives, ont leur fin en elles-mêmes. Or il est 
nécessaire de réserver de nom de dépense à ces formes improductives, à l’exclusion de tous modes de consommation 
qui servent de moyen terme à la production.» Georges BATAILLE, La part maudite, éd. de Minuit, 2011, pp. 23-24 
" La vie humaine est excédée de servir de tête et de raison à l'univers. Dans la mesure où elle devient cette tête et cette 19
raison, dans la mesure où elle devient nécessaire à l''univers, elle accepte un servage. Si elle n'est pas libre, l'existence 
devient vide ou neutre et, si elle est libre, elle est un jeu. La Terre, tant qu'elle n'engendrait que des cataclysmes, des 
arbres ou des oiseaux, était un univers libre : la fascination de la liberté s'est ternie quand la Terre a produit un être qui 
exige la nécessité comme une loi au-dessus de l'univers. L'homme est cependant demeuré libre de ne plus répondre à 
aucune nécessité : il est libre de ressembler à tout ce qui n'est pas lui dans l'univers. Il peut écarter la pensée que c'est 
lui ou Dieu qui empêche le reste des choses d'être absurde. L'homme a échappé à sa tête comme le condamné à la 
prison. Georges BATAILLE, Acéphale, 1ère année, 24 juin 1936
orgânica e integral do homem, só deste modo poderá aceder à sua verdadeira natureza. 
Esta posição faz do pensamento um acto de negação da racionalidade não soberana, isto 
é, o pensamento soberano tem como primeiro acto a libertação do pensamento das 
correntes que o aprisionam, a saber: Deus, os dogmas e a razão utilitária. Posto isto 
abrem-se ao homem possibilidades ilimitadas em que a própria liberdade se transforma 
em necessidade, contradição maior da racionalidade tradicional, que impede o indivíduo 
aceder à liberdade soberana. Ora, para Bataille, isto só é possível pela afirmação de uma 
hipermoral e pela negação do princípio do servilismo da razão, a negação da 
racionalidade coloca o homem face ao seu próprio abismo, abismo que representa a 
afirmação absoluta da sua soberania e a necessidade da sua liberdade.  !20
!
«Todos sabemos que o que torna o homem mais feliz são as sensações mais intensas. 
(…) A intensidade das sensações é precisamente o que destrói a ordem que nos sufoca. 
Penso que ela não serve para outra coisa. É essencial para os homens destruírem a 
servidão à qual foram submetidos e na qual foi construído o seu mundo. O mundo 
humano, do qual eu pertenço e do qual eu me nutro, pesa-me infinitamente; é nele que 
estão todas as nossas angústias que têm de ser libertadas.» George BATAILLE, 
Entrevista à Radio France, 1954, (transcrição e tradução nossas).!!
O sentido último da revista Acéphale, que Bataille edita em colaboração com André 
Masson e Pierre Klossowski em 1936, é a afirmação da necessidade de “decepar a 
cabeça” como centro de comando e de lei, substituindo o primado do “homem inteiro”, por 
aqueloutro da “cabeça inteira”, na realidade Bataille assume a impossibilidade da 
realização total do homem, substitui uma totalidade, por outra totalidade  Esta “nova 21
totalidade”, tão impossível de ser completada, aliás, diga-se, como a outra totalidade, tem, 
no entanto, a virtualidade de afirmar aquilo que no homem é a sua vitalidade, é uma 
filosofia que afirma a vida pelo seu excesso.!
!
"14
" «La souveraineté est révolte, ce n'est pas l'exercice du pouvoir. L’authentique souveraineté refuse…» Georges 20
BATAILLE, Méthode de méditation, Fontaine, 1947, p. 80
" Há nesta temática o desenvolvimento de uma nova ontologia. Uma ontologia em que a unidade do ser racional é 21
substituída por uma unidade do ser-corpo. Bataille nega a razão e a espiritualidade humanas como epicentro da 
ontologia substituindo-a por aquilo que tem sido considerado ao longo da história da filosofia como uma excrescência. O 
corpo, o desejo, o prazer sexual, a morte e a violência. (Esta questão, que nos interessa bastante, não tem espaço para 
ser desenvolvido neste breve ensaio.)
«Il est temps d'abandonner le monde des civilisés et sa lumière. Il est trop tard pour tenir à 
être raisonnable et instruir — ce qui a mené à une vie sans attrait. Secrètement ou non, il 
est nécessaire de devenir tout autres ou de cesser d’être.!
Le monde auquel nous avons appartenu ne propose rien à aimer en dehors de chaque 
insuffisance individuelle : son existence se borne à sa commodité. Un monde qui ne peut 
pas être aimé à en mourir — de la même façon qu'un homme aime une femme — 
représente seulement l'intérêt et l'obligation du travail. S'il est comparé avec les mondes 
disparus, il est hideux et apparaît comme le plus manqué de tous.!
Dans les mondes disparus, il a été possible de se perdre dans l'extase, ce qui est 
impossible dans le monde de la vulgarité instruite.» Georges BATAILLE, Acéphale, 1ère 
année, 24 juin 1936!
!
A necessidade de afirmação da soberania do ser e da soberania do não-saber revelam-se 
contra as “ilusões fantasiosas que recebemos com a vida como um narcótico necessário 
para a suportar” (Bataille, 1954:10) “o que será de nós quando, desintoxicados, tivermos 
consciência daquilo que somos?” (Bataille, 1954:10). Esta soberania afirma-se no 
isolamento do ser da sua totalidade, isto é, o isolamento de um momento do fluxo 
continuum do tempo (em que o riso, as lágrimas, a poesia e o orgasmo são exemplos) e 
no isolamento do indivíduo, do sujeito, do continuum dos seres humanos. A soberania 
afirma-se no esquecimento da anterioridade e da antecipação, em que a afirmação 
absoluta do presente reclama a soberania do ser. O indivíduo “deve esquecer” a massa 
com a qual se confunde, seja o Outro, sejam com as coisas que ecoam na sua 
percepção, seja o continuum temporal. Este “doit oublier”  da realidade à qual ela se 22
refere, afirma a soberania da linguagem poética, é o sentido do primado da 
autonomização da linguagem segundo Mallarmé, “é a elisão da aparência do ser”. Na 
medida em que esta experiência é superficial, nem a imaginação, nem o pensamento do 
poeta e do pensador soberano se interessam por ela. Como diz Mallarmé a propósito do 
acto estético soberano de Manet:!
«Chaque fois qu'il attaque un tableau, nous dit-il, il y plonge la tête la première, partageant 
le sentiment que la plus sûre méthode, bien que dangereuse en apparence, pour devenir 
"15
" «L’oubli de la réalité est l'élision de l'“apparence de l'être” qu'est la surface, la parure inutile du monde (inutile au sens 22
fort parce que surface abstraite, formelle et pure formalité à laquelle ni l'imaginaire ni la pensée de l'homme souverain ne 
souscrivent). L'oubli est cette opération par quoi une parure tombe. “Je pense comme une femme enlève sa robe”, écrit 
Bataille, comme retirant le vêtement formel, l'arrangement obséquieux d'une pensée qui ne connaît pas sa nudité.» O. 
Capparos, Puissance et souveraineté, em http://www.lampe-tempete.fr/puissancebataille.htm!
un bon nageur, est de se jeter à l’eau. Un de ses aphorismes coutumiers est donc qu'on 
ne doit jamais peindre un paysage et un portrait de la même façon, avec la même 
méthode et le même métier, et encore moins deux paysages et deux portraits. La main, il 
est vrai, gardera certains secrets acquis de manipulation, mais l'oeil doit oublier tout ce 
qu'il a vu ailleurs et réapprendre à partir de ce qui le confronte. Il doit rompre avec la 
mémoire, ne voyant que ce qui s'offre au regard comme pour la première fois, et la main 
doit se faire un organe d'abstraction impersonnel, dirigée seulement par la volonté, 
oublieuse de toute dextérité antérieure. Quant à l’artiste, ses sentiments personnels, ses 
goûts particuliers sont pour le moment résorbés, ignorés ou mis à l'écart pour jouir de son 
autonomie personnelle.» Stéphane MALLARMÉ, Écrits sur l'art, Flammarion, Paris, 1998, 
p. 309!
!
Bataille afirmará, a propósito do acto de soberania do pensamento: «Je pense comme 
une fille enlève sa robe. À l’extrémité de son mouvement, la pensée est l’impudeur, 
l’obscénité même.» (BATAILLE, 1954:216) O pensamento soberano é um movimento 
incessante que, no extremo, se despe de todo o tempo, de toda a história, do objecto, do 
outro e, obscenidade das obscenidades, põe Deus a nu…!
!
!
!
!
*!
*! *!
*! *! *!
!
!
!
!
!
!
!
! ! ! ! ! ! ! ! ! 

"16
Doc. 1!
!
O quadro de George Grosz revela bem o espírito dos tempos. A morte reina festejando 
em cima de um caixão; um padre eleva desesperadamente a Cruz de Cristo como que a 
prevenir os homens de um mal terrível; homens e mulheres deformados, militares, 
alcoólicos, prostitutas e assassinos; uma igreja de porta fechada, deslocada do panorama 
caótico da cidade… É o inferno que emerge à superfície da terra!!
!
!
!
"17
George Grosz. To Oskar Panizza. 1917-18
Docs. 2 e 3!
!
«When religion, science, and morality are shaken (the last by the mighty hand of 
Nietzsche), when the external supports threaten to collapse, then man’s gaze turns away 
from the external toward himself.!
Literature, music, and art are the first and most sensitive realms where this spiritual 
change becomes noticeable in real form. These spheres immediately reflect the murky 
present; they provide an intimation of that greatness which first becomes noticeable only to 
a few, as just a tiny point, and which for the masses does not exist at all. They reflect the 
great darkness that appeared with hardly any warning. They themselves become dark and 
murky. On the other hand, they turn away from the soulless content of modern life, toward 
materials and environments that give a free hand to the nonmaterial strivings and 
searchings of the thirsty soul.» Wassily KANDINSKY, Concerning the Spiritual in Art, The 
Floating Press, 2008, p. 44!
!
Kandinsky mostra-nos a grande viragem da arte do início do século XX. O olhar do artista 
já não reflete a realidade, nem as impressões deixadas por ela. A arte volta-se para o 
interior do artista, a única realidade possível. A arte torna-se liberdade soberana.!
!
"18
Kandinsky, Composition VII, 1913
Doc. 4!
«Malheureusement, en creusant le vers à ce point, j'ai rencontré deux abîmes qui me 
désespèrent. L'un est le Néant, [l’absence de Dieu, l’autre est sa propre mort*] (…) Oui, je 
le sais, nous ne sommes que de vaines formes de la matière, — mais bien sublimes pour 
avoir inventé Dieu et notre âme. Si sublimes, mon ami! Que je veux me donner ce 
spectacle de la matière, ayant conscience d'elle, et, cependant, s'élançant forcenément 
dans le Rêve qu'elle sait n'être pas, chantant l'Ame et toutes les divines impressions 
pareilles qui se sont amassées en nous depuis les premiers âges,et proclamant devant le 
Rien qui est la vérité, ces glorieux mensonges! Tel est le plan de mon volume Lyrique, et 
tel sera peut-être son titre, La Gloire du Mensonge, ou le Glorieux Mensonge. Je chanterai 
en désespéré!» Extrait de la lettre à Henri Cazalis, Tournon, 28 avril 1866 - 
Correspondance, S. MALLARMÉ; *nota M. BLANCHOT, L’espace littéraire, Galimard, 
1988, p.37!
!
!
Mallarmé escreve ao seu amigo Cazalis que desespera entre dois abismos: a morte de 
Deus e a sua própria morte. Encontra na experiência poética a invenção da alma e de 
Deus pela vã forma da matéria a que o homem se reduziu. A poesia como consciência do 
espectáculo da matéria que se lança no sonho de uma glorificada mentira. Embora nos 
pareça trágica, a experiência poética que Mallarmé se refere vai tornar-se no substrato da 
poética contemporânea; a experiência do vazio provocado pela ausência do criador e pela 
angústia da morte; a voz do poeta torna-se íntima… Na realidade representa o 
nascimento de uma “nova” expressão poética. !
!
!
"19
Doc. 5!
!
!
O mundo do trabalho (da produção útil), controlado por um complexo sistema de 
interdições é, pontualmente, ultrapassado pelo mundo do jogo e da festa, isto é, as 
interdições reguladoras de comportamentos/actividades convidam, inevitavelmente, à 
transgressão. O mundo da festa, do jogo, da arte e da literatura são o universo 
verdadeiramente humano, actividades que transgridem o útil, e que são, por definição, 
manifestações profanas do mundo através do qual o homem se afirma como homem.!
!
!
"20
Pieter Bruegel, o velho — Dança na aldeia, 1566
!
Doc. 6!
!
!
!
A transgressão das interdições do sagrado ligadas às experiências extáticas são a origem 
da religião e expressam-se na festa em que o sacrifício é o momento de paroxismo. O 
sacrifício restitui ao mundo sagrado aquilo que o uso servil tornou profano. A destruição é 
o melhor meio para negar a relação utilitária entre o homem o animal ou a planta. !
!
"21
Cena sacrificial, Codex Magliabechiano
Doc. 7!
!
!
«Olympia choque, dégage une horreur sacrée, s’impose et triomphe. Elle est scandale, 
idole; puissance et présence publique d’un misérable arcane de la société. Sa tête 
est vide: un fil de velours noir l'isole de l 'essentiel de son être. La pureté d'un trait 
parfait enferme l'Impure par excellence, celle de qui la fonction exige l'ignorance paisible 
et candide de toute pudeur. Vestale bestiale vouée au nu absolu, elle donne à rêver à 
tout ce qui se cache et se conserve de barbarie primitive et d’animalité rituelle dans 
les coutumes et les travaux de la prostitution des grandes villes”. !
Paul VALÉRY, “Triomphe de Manet”, 1932, in Écrits sue l’art, p. 167!
!
"22
Edouard Manet - Olympia, 1863
Doc. 8!
O êxtase para Bataille prolonga a sensação comum de possuir o mundo das coisas até ao 
ponto em que, pela sua interiorização, tornamo-nos possuídos por ele.!
!
«A vida deu-se sempre num tumulto sem ordem aparente. No entanto, encontra a sua 
grandeza e a sua realidade no êxtase e no amor extático. Aquele que tenta ignorar ou 
desprezar o êxtase é um ser incompleto cujo pensamento está reduzido à análise. A 
existência não é somente uma azafama vazia, é um movimento que nos força a dançar 
com paixão. O pensamento existe em nós (…) do mesmo modo que as chamas.» 
Georges Bataille, Acéphale, número 1, 24 de Junho de 1936!
!
"23
Michelangelo da Caravaggio, Maria Madalena em êxtase, 1606
Doc. 9!
!
Rien n’est aussi-z-aimable,!
Fanfru-cancru-lon-la-lahira,!
Rien n’est aussi-z-aimable!
Que le scieur de long. !
!
Chante, Sirène, !
chante, Fanfru-cancru-lon-la-Iahira,!
Chante, Sirène, chante, !
T’as raison de chanter. !
!
Car l’as la mer à boire,!
Fanfru-cancru-lon-la-lahira,!
Car t’as la mer à boire,!
Et ma mie à manger !!
!
Charles Baudelaire, Souvenirs, Correspondances, t. I, n. 161, p. 249!
!
«Baudelaire dá o cenário de um drama: um operário bêbado consegue à noite, num lugar 
solitário, um encontro com a sua mulher que o deixou; apesar das suas súplicas, ela 
recusa voltar para casa. Com o desespero, arrasta-a por um caminho onde sabe que, a 
coberto da noite, ela cairá num poço sem proteção. Este “agradável” serrador lança 
finalmente à água a sua mulher. O serrador carrega os pecados do autor; a coberto do 
desvio, de uma máscara a imagem do poeta desprende-se (…)» Bataille, La littérature et 
le Mal, Gallimard, Paris, 2013!
!
!
!
!
"24
Doc. 10!
!
The Little Vagabond!
!
Dear mother, dear mother, the Church is cold;!
But the Alehouse is healthy, and pleasant, and warm.!
Besides, I can tell where I am used well;!
Such usage in heaven will never do well.!
!
But, if at the Church they would give us some ale,!
And a pleasant fire our souls to regale,!
We’d sing and we’d pray all the livelong day,!
Nor ever once wish from the Church to stray.!
!
Then the Parson might preach, and drink, and sing,!
And we’d be as happy as birds in the spring;!
And modest Dame Lurch, who is always at church,!
Would not have bandy children, nor fasting, nor birch.!
!
And God, like a father, rejoicing to see!
His children as pleasant and happy as He,!
Would have no more quarrel with the Devil or the barrel,!
But kiss him, and give him both drink and apparel.!
!
William Blake!
!
!
!
«Nada irritava mais Blake do que a lei moral oposta aos prazeres. Esta ingenuidade 
expõe o jovem poeta sem cálculo, aberto à vida.» Bataille, La littérature et le Mal, 
Gallimard, Paris, 2013!
!
!
!
!
!
!
!
"25
Bibliografia!
!
Georges BATAILLE, Acéphale, 1ère année, 24 juin 1936 !
Georges BATAILLE, Méthode de méditation, Fontaine, 1947!
Georges Bataille, L’expérience intérieure , Gallimard, Paris, 1954 !
Georges BATAILLE, Manet, Genéve,1955!
Georges BATAILLE, Les larmes d’ éros, J.-J. Pauvert éditeur, Paris, 1964!
Georges BATAILLE, L’ érotisme, éd. de Minuit, Paris, 1985 !
Georges BATAILLE, Lascaux ou la Naissance de L'art. La Peinture Préhistorique, Skira, 
Genéve, 1994!
Georges BATAILLE, La part maudite, éd. de Minuit, 2011!
Georges Bataille, La souveraineté, Nouvelles Éditions Lignes, Paris, 2012!
Georges BATAILLE, La littérature et le Mal, Gallimard, Paris, 2013!
!
Charles BAUDELAIRE, Œuvres complètes, t. 2, Gallimard, Coll. La Pléiade, 1976!
!
Walter BENJAMIN, A modernidade, Assírio & Alvim, 2006!
!
Maurice BLANCHOT, Lautréamont et Sade, Ed. de Minuit, 1949!
Maurice BLANCHOT, Le livre à venir, Gallimard, Paris, 1986!
!
Michel FOUCAULT, Préface à la transgression, Nouvelle Editions Lignes, 2012!
!
Stéphane MALLARMÉ, Écrits sur l'art, Flammarion, Paris, 1998!
!
Friedrich NIETZSCHE, Also sprach Zarathustra, Untertitel Ein Buch für Alle und Keinen, 
1883!
Friedrich NIETZSCHE, Ecce homo. Wie man wird, was man ist, 1888!
!
Olinde RODRIGUES, L’artiste, le savant et l’industrielle, in: Opinions littéraires, 
philosophiques et industrielles, Paris, 1825, p. 341!
!
O. CAPPAROS, Puissance et souveraineté, em http://www.lampe-tempete.fr/
puissancebataille.htm!
"26
!
Maïa BEYLER-NOILY, Du tout au rien : impossibles désirs de Georges Bataille, em http://
revel.unice.fr/loxias/index.html?id=6823#bodyftn39!
!
Silvia LIPPI, Transgression et violence chez Bataille et Lacan, em http://
www.cairn.info/revue-la-clinique-lacanienne-2006-1-p-245.htm!
!
"27
Digitally António DN: cn=António Trindade, email=antoniomtrindade@gmail.com, c=PT Date: 11:35:31

Continue navegando