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DOMINIQUE POULOT
Um história
do patrimônio
no Ocidente
L 11:40
tle
Título original: Une histoire du patrimoine en Occident, XVIIIe-XXIe' siècle.
Du monument aux valeurs
C) Presses Universitaires de France, 2006
C) Editora Estação Liberdade, 2009, para esta tradução
Preparação
Revisão
Assistência editorial
Composição
Imagem de capa
Editores
Huendel Viana
Jonathan Busato
Leandro Rodrigues
Johannes C. Bergmann/Estação Liberdade
Musée d'Orsay. O Daniel Thierry/Photononstop.
Angel Bojadsen e Edilberto Fernando Vem
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
Sindicato Nacional dos Editores dc Livros, RJ
P894h
Poulot, Dominique, 1956-
Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XXI: do
monumento aos valores / Dominique Poulot ; tradução Guilherme
João de Freitas Teixeira. — São Paulo : Estação Liberdade, 2009.
Tradução de: Une histoire du patrimoine en Occident
ISBN 978-85-7448-170-8
1. Património cultural — Europa — História. 2. Patrimônio
cultural —Avaliação — Europa. 3. Europa — Civilização. 4. Europa -
Política cultural. 1. Título.
09-4801. CDD: 363.69
CDU: 351-852
Esta obra, publicada no âmbito do Ano da França no Brasil e do programa de participação à publicação Carlos.
Drummond de Andrade, contou com o apoio do Ministério francês das Relaçóes Exteriores.
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SUMÁRIO
Introdução
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 9
Uma expressão tradicional do encadeamento das gerações 15
Uma partilha das obras de cultura 19
Uma encarnação da construção nacional 25
Um recurso comum 29
A caminho de uma antropologia histórica da
patrimonialização francesa 33
1
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 39
A invenção identitária 40
A transferência da sacralidade 42
A construção do valor 44
O monumento e a história 45
O território da Cidade 53
O jardim e suas fabriques: uma melancolia cívica 61
As provas da história 71
2
UMA NOVA AUTENTICIDADE 85
Uma nova história 89
O triunfo da alegoria 96
Distribuir o patrimônio em novos lugares 102
O museu regenerador 109
O combate pela autenticidade 116
7
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3
A MEMÓRIA INSPIRADORA 123
O culto dos homens ilustres 125
A funcionalização dos mortos 129
A busca de um santuário do Estado 140
A encarnação dos antepassados 152
4
O TRABALHO DO LUTO 157
Uma consciência literária 161
Os desafios a enfrentar por uma geração 166
Uma teoria do patrimônio 174
A administração do luto e da ressurreição 178
Uma história do ponto de vista da civilização 183
Uma arqueologia dos Modernos 188
A conservação para o futuro 192
5
A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE 197
A nova urgência da transmissão 199
A formação de um cânon 203
As civilidades do patrimônio 207
O ponto de vista da recepção 213
O caso do território-patrimônio 219
Os valores da apropriação 224
Um patrimônio da significação 228
Conclusão
Uma definição orientada pelo futuro 231
Um conjunto de releituras 236
INTRODUÇÃO
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
Os monumentos constituem uma parte essencial da glória
de qualquer sociedade humana: eles carregam a memória
de um povo para além de sua própria existência e acabam
por torná-lo contemporâneo das geraçóes que vêm se esta-
belecer em seus campos abandonados.
Chateaubriand, Mémoires d'outre-tombe.
Na nossa vida cultural, raros são os termos que possuem um poder
de evocação tão grande quanto "patrimônio". Ele parece acompanhar
a multiplicação dos aniversários e das comemorações, característica de
nossa atual modernidade. O acúmulo de vestígios e restos revelados,
conservados e aclimatados segundo práticas diversas, parece respon-
der ao fluxo da produção contemporânea de artefatos. Deste modo,
o patrimônio sanciona, a todo instante, a passagem acelerada que
atribui uma posição "de destaque" a objetos ou práticas, de acordo
com a análise de James Clifford sobre a evolução dos paradigmas da
conservação.'
No decorrer do século XX, o patrimônio assume, cada vez mais ex-
plicitamente, sua implementação positiva, segundo juízos de valor que
afirmam uma verdadeira escolha. Os desafios ideológicos, econômicos e
sociais extrapolam amplamente as fronteiras disciplinares (entre história,
estética ou história da arte, folclore ou antropologia) —, como pode ser
notado, no decorrer das décadas de 1970-1980, pelo reconhecimento
de "novos patrimônios", que abrange uma profusão de esforços públicos
e privados em favor de múltiplas comunidades. Progressivamente, o
entusiasmo pela promoção e valorização do patrimônio passa por uma
verdadeira "cruzada" no âmago do mundo ocidental
1. James Clifford, Malaise dans la culture: L'Ethnographie, la littérature et l'art au XX'
siècle, Paris: Ensba, 1998.
2. David Lowenthal, The Heritage Crusade and the Spoils of History, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1998.
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
Por conseguinte, não cansamos de evocar "patrimônios" a serem
conservados e transmitidos, relacionados com universos absolutamente
heterogêneos: a apreciação estética do cotidiano, mesmo que apenas
de outrora; a indispensável manutenção do legado arquitetural; a pre-
servação de habilidades artesanais, até mesmo de personnes ressources
[especialistas em determinada área], segundo a expressão quebequense;
a proteção de costumes locais, no mesmo plano de certos gêneros
de vida ameaçados de extinção... Fala-se de um patrimônio não só
histórico, artístico ou arqueológico, mas ainda etnológico, biológico
ou natural; não só material, mas imaterial; não só local, regional ou
nacional, mas mundial. Às vezes, o ecletismo de tais considerações
redunda em contradições ou leva à incoerência.
Se o conceito de "patrimônio" conhece, atualmente, uma popula-
ridade espetacular, associada aos investimentos de toda a ordem (polí-
tica, financeira) suscitados por ele, a investigação a seu respeito oscila
entre a evocação de algo inefável — os valores da civilização — e a aten-
ção exclusiva prestada às instituições e aos profissionais do setor. Uma
dificuldade particular refere-se ao fato de que o próprio patrimônio
determina as condições concretas de sua abordagem, comunicação e
controle; de fato, por seu intermédio, o pesquisador é conduzido ao
âmago de um quadro de valores que se afirma incontestável. No caso
concreto, os pontos de vista reenviam aos sistemas de partilha obser-
vados em outros campos quando se trata de "discutir o indiscutível",
segundo a fórmula do sociólogo Alain Desrosières.3A oposição verifica-
se, de um lado, entre a descrição e a prescrição, e, de outro, na própria
ciência, entre "posição realista" que exprime "fiabilidade do cálculo" e
sociologia construtivista do conhecimento.
A história da proteção e da transmissão do patrimônio — atinente
às leis, a suas modalidades de aplicação e aos critérios das interven-
ções — tem sido empreendida, frequentemente, no âmbito de tarefas
profissionais e por ocasião de aniversários e de retrospectivas. Essa his-
tória-memória do patrimônio nacional, constituída progressivamente
3. Alain Desrosières, La Politique des grands nombres: Histoire de la raison statistique,
Paris: La Découverte, 1993, p. 395-413.
10
no decorrer dos últimos dois séculos, limita-se comumente ao elogio
de seus arautos mais notáveis, bons servidores e grandes estadistas;
servindo-se da pátria como ilustração, ela enaltece o labor da ciência
e os avanços da instrução pública. O historiador torna-se, então, um
expert em matéria de normas patrimoniais; neste caso, a tomada de
consciência, de modo progressivo, em relação à herança passa por
um imperativo moral universalmente compartilhado. Outra história
do patrimônio, porém, pode acompanhar o combate militante travado
por associações ou movimentos envolvidos com a conservação. Oriunda
de um compromisso contra o vandalismo, ela é então, muitas vezes,
prisioneira das polêmicas próprias ao gênero, denunciando, natural-
mente, as lacunas do patrimônio oficial e suas eventuais falências, bem
longe de celebrar a memória das instituições.
Essas duas historiografias, construídas simetricamente, elaboram
a posteriori uma coerência ilusória — ao reunirem, sob o termo
"patrimônio", elementos que outrora não lhe diziam respeito; por
conseguinte, esboçam uma continuidade de doutrina e perdem-se,
mais ou menos, na ilusão teleológica. A defesa, desenvolvida frequen-
temente nos dias de hoje, em favor de um patrimônio cada vez mais
completo, contra o elitismo ou em nome da exaustividade científica,
deixa escapar o fato de que o objetivo do patrimônio não consiste,
de modo algum, em duplicar a realidade à maneira do "mapa dilatado" de
Borges, coincidente• com o território que, supostamente, ele representa.4
"Os colégios de cartógrafos", escreve o autor argentino, "lavraram um
mapa do Império com seu formato e que coincidia com ele, ponto
por ponto. Menos apaixonadas pelo estudo da cartografia, as gerações
seguintes decidiram que este mapa dilatado era inútil e, de forma
impiedosa, abandonaram-no à inclemência do sol e dos invernos.
Nos desertos do Oeste, subsistem vestígios bastante estragados do
mapa; eles são habitados por animais e mendigos." Esse mapa em pe-
daços é uma excelente imagem de uma crise radical da mimesis, que cul-
mina no desaparecimento das representações e no impasse da ciência.
4. J. L. Borges, "De Ia Rigueur de Ia science", in Histoire universelle de l'infamie / Histoire
de l'éternité, Paris: UGE, 1994, p. 107.
11
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
De fato, é evidente que fracassaria o patrimônio que fosse um controle
utópico do tempo, tentando reproduzi-lo de uma forma idêntica.
O patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em
certificar a identidade e em afirmar valores, além da celebração de
sentimentos, se necessário, contra a verdade histórica. Nesse aspecto
é que a história parece, com tamanha frequência, "morta", no sentido
corrente. Mas, ao contrário, o patrimônio é "vivo", graças às profissões
de fé e aos usos comemorativos que o acompanham.'
Nos últimos anos, as ciências humanas e sociais têm multiplicado
os estudos sobre o patrimônio, desenvolvidos mais amplamente, sem
dúvida, na área da história e da antropologia, a partir de um domínio
que, na origem, é muito bem circunscrito, ou seja, o da história das
artes — e do livro, se considerarmos o patrimônio escrito como par-
cela, bem cedo reconhecida, do conjunto patrimonial. No começo,
tratava-se de abordar o corpus mais ou menos canônico, tal como havia
sido concebido por diferentes épocas — assim, Bernard Teyssèdre e seu
projeto de dispor as histórias dos patrimônios artísticos em diversos
círculos e em diferentes momentos da história; ou Francis Haskell
e seu desígnio de uma história das (re)descobertas do gosto.6 Nesse
sentido, a história do patrimônio não designa verdadeiramente um
conteúdo de pesquisas específicas, nem alega uma instância explicativa
particular para pensar a articulação entre cultural, social e político.
Logo em seguida, o campo da história do patrimônio se fragmentou
em outros tantos objetos de diferentes investigações, desde os museus
até os monumentos, passando pelo novo patrimônio imaterial. Esse
rápido desenvolvimento foi acompanhado por uma profusão semân-
tica que, finalmente, tornou bastante incerta, ao longo do tempo, a
unidade de semelhantes estudos.
Tal como é praticada há uma geração, com êxito incontestável,
a história do patrimônio é amplamente a história da maneira como
uma sociedade constrói seu patrimônio. Em particular no caso francês,
5. David Lowenthal, op. cit., p. 121-122; Hervé Glavarec e Guy Saez, Le Patrimoine
saisi par les associations, Paris: La Documentation française, 2002.
6. Bernard Teyssèdre, L'Histoire de l'art vue du Grand Siècle, Paris: Julliard, 1964; Francis
Haskell, La Norme et le caprice, Paris: Flammarion, 1986.
12
ela confunde-se com uma história administrativa ou, melhor ainda,
socioadministrativa. Uma definição "restrita" do patrimônio marca,
muitas vezes, as perspectivas na matéria, orientadas pelos laudos de
experts. Tal é o caso da teleologia, que é manifesta, por exemplo, nas
compilações retrospectivas de episódios considerados como "patrimo-
niais", tendo, supostamente, inspirado a legislação contemporânea/
Em outras investigações, trata-se sobretudo de analisar o modo de vida
no patrimônio e como são utilizados os monumentos ou os museus.
Semelhante história está em condições de saber como os príncipes
fizeram uso dos valores patrimoniais para desenvolver, ou não, es-
tratégias, ganhar prestígio e até mesmo consolidar alianças políticas.
A história do colecionismo é, particularmente, tributária desse tipo de
interesse. Para além dele, o desafio consiste em considerar a posição do
patrimônio no desenvolvimento de uma coletividade: a aparição ou
o fracasso de um patrimônio comum assinala, sem dúvida, seu êxito
ou sua falência.
O patrimônio define-se, ao mesmo tempo, pela realidade física de
seus objetos, pelo valor estético — e, na maioria das vezes, documental,
além de ilustrativo, inclusive de reconhecimento sentimental — que
lhes atribui o saber comum, enfim, por um estatuto específico, legal
ou administrativo. Ele depende da reflexão erudita e de uma vontade
política, ambos os aspectos sancionados pela opinião pública; essa
dupla relação é que lhe serve de suporte para uma representação da
civilização, no cerne da interação complexa das sensibilidades relati-
vamente ao passado, de suas diversas apropriações e da construção das identidades.Para
se impor, de acordo com a espécie de evidência que
é a sua atualmente, a noção teve de passar por um processo complexo,
de longa duração e profundamente cultural; ela é o resultado de uma
dialética da conservação e da destruição no âmago da sucessão das
formas ou dos estilos de heranças históricas que haviam sido adotados
7. Assim, Andrea Emiliani (org.), Leggi, bandi e provvedimenti per la tutela dei beni
artistici e culturali negli antichi stati italiani, 1571-1860, Bolonha: Nuova Alfa,
1996. Sobre os usos do anacronismo, cf. Nicole Loraux, "Éloge de l'anachronisme en
histoire", in Le Genre humain, n. 27, 1993; e G. Didi-Huberman, Devant le Temps:
Histoire de l'art et anachronismedes images, Paris: Minuit, 2000.
13
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
pelas sociedades ocidentais. Ela estabeleceu-se a partir do modelo do
"enquadramento" de algumas obras em determinado momento da res-
pectiva história — enquadramento utilizado, deformado, transmitido,
esquecido, de geração em geração. Nesse caso, cada um abrangia mais ou
menos o outro, absorvendo-o e modificando-o enquanto, paralelamente,
alterava-se a definição e a significação do "vandalismo", suscitando, às
vezes, acirrados conflitos a propósito dos respectivos contornos. Com
efeito, a escolha de um patrimônio, como aponta Judith Schlanger no
livro La Mémoire des wuvres, "além de um efeito e de um desafio de
instituição, é uma instituição".8
A atitude patrimonial compreende dois aspectos essenciais: a assi-
milação do passado, que é sempre transformação, metamorfose dos
vestígios e dos restos, recreação anacrônica; e a relação de fundamental
estranheza estabelecida, simultaneamente, por qualquer presença de
testemunhas do tempo remoto na atualidade. O primeiro aspecto sus-
tenta o esforço de pedagogia (de ordem cívica), enquanto o segundo
leva a um reconhecimento do tesouro, "reconhecimento que constitui
a própria virtude do tesouro" (Alphonse Dupront). A época clássica
foi marcada pela busca da excelência da informação: nesse caso, a
publicidade dos acervos é sempre cerimônia a serviço do fausto da
pessoa do príncipe. Por sua vez, a época das revoluções liberais assiste
ao triunfo do projeto de formar os cidadãos pela instrução e pelo
culto do Estado-Nação: o senso do patrimônio é dominado, assim,
pela pedagogia de sua divulgação. Por último, na virada do século XX
para o XXI, o patrimônio deve contribuir para revelar a identidade de
cada um, graças ao espelho que ele fornece de si mesmo e ao contato
que ele permite com o outro: o outro de um passado perdido e como
que tornado selvagem; o outro, se for o caso, do alhures etnográfico.
Lugar da pessoa pública, em particular da figura do rei, lugar da
história edificante, lugar da identidade cultural: assim poderiam ser
enunciados, de maneira bastante sumária, os imaginários do patri-
mônio ocidental.
8. Judith Schlanger, "Le Passé pertinent", in La Mémoire des oeuvres, Paris: Nathan,
1992, p. 110 ss.
14
A "modelagem humana do histórico", segundo Alphonse Dupront,
ocupa uma posição eminente na invenção patrimonial, "quanto às la-
tências laboriosas da memória coletiva, quanto à confissão de modelos
ou à proclamação de 'fontes' e, sobretudo, quanto às necessidades pro-
fundas de viver a duração, contínua ou descontínua, e de acordo com
a amplitude de sua influência".9 As diferenças no plano da recepção
(de seleção) dependem amplamente dessas condicionantes, quando
determinados tipos de objetos ou de edifícios se tornam patrimoniais,
por oposição a um grande número de outros que são negligenciados ou
destruídos. O detalhe das práticas eruditas — ou, em outras palavras, a
maneira como foi concebido o "quadro" da coleta, classificação,
exposição e interpretação — determina o processo de ocorrência do
patrimonial.'° No entanto, a apropriação por um público — a maneira
como o patrimônio é visitado, interpretado, e exerce influência — está
associada também às formas de sua apresentação, ao olhar, bem acolhido
ou importunado, aos catálogos ou aos itinerários. As diversas definições
do patrimônio, através de testemunhos convergentes ou contraditórios,
e os efeitos de expectativa ou de saber que ele pode provocar ou mobili-
zar nos espectadores alimentam identidades e entretecem sociabilidades
em diferentes escalas — locais, nacionais, globalizadas —, ou, às vezes,
sem qualquer atribuição territorial. O patrimônio elabora-se, em cada
instante, com base na soma de seus objetos, na configuração de suas
afinidades e na definição de seus horizontes.
Uma expressão tradicional do encadeamento das gerações
O patrimônio contribui, tradicionalmente, para a legitimidade do
poder, que, muitas vezes, participa de uma mitologia das origens. Ele
9. Alphonse Dupront, "L'Histoire après Freud", in Revue de l'Enseignement Supérieur,
1968, p. 27-63 (aqui, p. 46).
10. Para Jacques Derrida (Mal d'archive, Paris: Galilée, 1995), os arquivos implicam um
lugar e uma técnica que determinam a estrutura do arquivável, em sua ocorrência e
em sua relação com o futuro: "O arquivo foi sempre uma garantia e, como qualquer
penhor, uma garantia de futuro" (p. 37).
15
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
encarna o que, de acordo com Pierre Legendre, será designado por
"genealogia", entendida como "ato de transmitir, ou seja, afinal de
contas, as montagens de ficção que tornam possível que tal ato seja
realizado e repetido através das gerações"." Para o direito romano, o
patrimônio era o conjunto dos bens familiares, vislumbrados não se-
gundo seu valor pecuniário, mas em sua condição de bens-a-transmitir.
Tal característica acabava por distingui-los absolutamente dos outros
bens que "não estão inscritos em um estatuto [...], mas são conside-
rados separadamente em um mundo de objetos dotados de um valor
próprio que lhes é atribuído, exclusivamente, pela troca e pela moeda".
De fato, na cultura do patrimonium, "a norma social exigia que os
bens de alguém fossem oriundos da herança paterna, que, por sua
vez, deveria ser transmitida. [...] Era malvisto interromper a cadeia
de transmissão, da qual a instituição familiar havia sido publicamente
incumb ida".
Desse modo, o termo "patrimônio" refere-se aos "bens de herança"
que, de acordo com o dicionarista Littré, por exemplo, "passam, se-
gundo as leis, dos pais e das mães para sua filiação". Ele não evoca a
priori o tesouro ou a obra-prima. — nem que ele tenha a ver stricto
sensu com a categoria, reivindicada pelas ciências, do verdadeiro e do
falso, mesmo que deva alegar a autenticidade. Assim, na retórica das
lutas identitárias, as evocações do passado não coincidem, conforme
tem sido observado frequentemente, com as análises do historiador,
do etnólogo ou do arqueólogo. No entanto, apesar de desprovidas de
realidade, até mesmo de verossimilhança, elas revelam-se regularmente
eficazes: David Lowenthal conseguiu repertoriar inumeráveis avatares
de algo verossímil que, nesse aspecto, se tornou realmente verdadeiro.
11. Pierre Legendre, L'Inestimable objet de la transmission: Étude sur le principe généalogique
en Occident, Paris: Fayard, 1985, p. 50.
12. Yann Thomas, "Res, chose et patrimoine; note sur le rapport sujet-objet en droit
romain", in Archives de la philosophie du droit, 1980, Sirey, p. 425; e "Pères, citoyens
et cité des pères", in Histoire de la famille,I , Paris: Le Seuil, I986, p. 206. Cf. ainda,
de outro ponto de vista, Claudia Moatti, "La Construction du patrimoine culturel à
Rome au Ier siècle avant et au Ier siècle après J.-C.", in Mario Citroni (org.), Memoria
e identità: La cultura romana costruisce la sua immagine, Florença: Giorgio Pasquali,
2003, p. 81-98.
16
Assim, o patrimônio ilustra o quanto cultura e política, para citar
Hannah Arendt, "imbricam-se mutuamente porque não é o saber ou
a verdade que está em jogo, mas sobretudo o julgamento e a decisão, a
troca criteriosa de opiniões incidindo sobre a esfera da vida pública
e sobre o mundo comum
A recusa de "origens" — relativamente ao aspecto religioso ou
mítico, em benefício de "começos" seculares que evocam a atividade
humana e não cessam de ser questionados — configura daqui em
diante o compromisso contemporâneo, tanto crítico quanto político.
A meditação de Edward Said14 sobre a ideia de começos prefere referir-se,
assim, a Mallarmé, a propósito do "demônio da analogia", para en-
fatizar uma contemporaneidade marcada pelo impossível vínculo à
origem e à inspiração, e para afirmar o peso da intencionalidade em
um trabalho, daqui em diante, privadodas musas /No sentido banal,
atualmente o patrimônio confunde-se com a herança, cuja presença
pode ser verificada à nossa volta e que reivindicamos como nossa,
tanto mais que estamos prontos a tomar providências para assegurar
sua preservação e inteligibilidade. Esses bens recebem, portanto, uma
afetação particular; e estão submetidos a um modo específico de ges-
tão. O respeito a tais condições é garantido por leis ou regulamentos,
até mesmo por uma militância empenhada, em que, nos fatos, seja
inscrito o princípio de transmissão ao futuro. De acordo com o re-
sumo proposto, de maneira bastante pragmática, por André Chastel,
"O patrimônio reconhece-se pelo fato de que sua perda constitui um
sacrifício e que sua conservação pressupõe sacrifícios".
Na relação entre manifestação e princípio, superfície e funda-
mentos, o patrimônio participa de uma metáfora central de nossa
modernidade, a dos modelos de "profundidade" — de acordo com
a palavra forjada por Frederic Jameson — ou ainda a do paradigma
indiciário, em conformidade com o qualificativo adotado por Carlo
13. Hannah Arendt, La Crise de la culture, Paris: Gallimard, 1972.
14. Edward W. Said, Beginnings: Intention and Method (I975), Londres: Granta, I995,
novo prefácio, p. XIX, 67-68.
17
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
Ginzburg.1
5
A amplitude do patrimônio é sua característica mais
evidente. O essencial da literatura patrimonial, no sentido corrente,
empenha-se em descrever sua geografia — para gerenciá-la em melhores
condições. Esta se confunde com uma oferta de documentos ou com
proposições turísticas, em poucas palavras, com um corpus, repertoriado
segundo modalidades mais ou menos sofisticadas. Em compensação, a
profundidade do patrimônio evoca o que, em primeira análise, poderia
ser designado por memória da qual ele depende e é a manifestação. A lite-
ratura prescritiva ou documental não dá, de modo algum, testemunho
dessa profundidade patrimonial, ao contrário de determinada meditação
sobre a usura do tempo e sobre o lugar do passado no presente — nem
que fosse para negá-lo ou esnobar a seu respeito — ou desses diversos
paratextos, tais como prefácios, anotações, apologias e dedicatórias, que
acompanham a literatura artística.
A relação geral com essa profundidade parece, de qualquer modo, ter
sofrido um deslocamento, do início da modernidade ao século XVIII, ao
invocar a Posteridade em vez do Tempo. Mas, tal posteridade é cada vez
menos garantida: assim, Swift chega a imaginar, na profusão de elementos
que envolvem A Tale of a Tub, um jovem Príncipe Posteridade que carece
de sabedoria e de discernimento; além disso, sua imaturidade ameaça
a fé antiga na perpetuidade da transmissão.16 De maneira ainda mais
explícita, alguns autores e artistas inscrevem-se no momento presente,
sem se comprometerem seja na reivindicação de um passado, seja na
expectativa de um futuro: esse pensamento do instante é, particular-
mente, representado nas Luzes, na França Mas, desde o início do
século, Swift, para citá-lo de novo, observava que "é agradável observar
a facilidade com que a época presente aventa hipóteses sobre aquela
15. Frederic Jameson, Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism, Durham:
Duke UP, 1991, p. I2; Carlo Ginzburg, "Traces: racines d'un paradigme indiciaire",
in Mythes, emblèmes, traces: Morphologie et histoire, Paris: Flammarion, I989.
16. Jonathan Swift, "The Epistle Dedicatory to his Royal Highness Prince Posterity",
in A Tale of a Tub; Aleida Assmann, "Texts, Traces, Trash: The Changing Media of
Cultural Memory", in Representations, vol. 56, 1996, p. 123-134.
17. Thomas M. Kavanagh, Esthetics of the Moment: Literature and Art in the French
Enlightenment, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, I996.
18
que há de suceder-lhe: as eras futuras hão de mencionar tal aspecto,
evento que será célebre no mais longínquo futuro. Ao passo que o
tempo e os pensamentos de nossos sucessores estarão voltados para os
acontecimentos do momento, como ocorre agora com os nossos [...I.
"18
Pelo contrário, o momento revolucionário abordará o tema da pos-
teridade com um voluntarismo assumido: longe das figuras de estilo
da sobrevivência literária, a palavra define então um ato político, o de
instaurar uma memória duradoura e eficaz a partir das lições extraídas
de um passado infamante. Mais tarde, a relação do patrimônio com
uma profundidade soterrada — a da autenticidade e até mesmo do
inconsciente no século XX — passou por uma considerável mudança,
sob a influência de um sentido inédito das rupturas e, talvez, do mo-
delo da arqueologia no âmago das "grandes narrativas" sucessivas.19
Uma partilha das obras de cultura
Para Jean-Claude Passeron, a definição antropológica da cultura,
tal como ela foi apresentada por Tylor em Primitive Culture (1871)
— ou seja, o conjunto da vida simbólica de um grupo ou de uma
sociedade —, supõe "a existência de uma entidade homogênea capaz
de operar homogeneamente em tudo o que ela manda fazer ou sentir
a seus integrantes: ela equivale a confundir uma estrutura com um
cafarnaum"." Pelo contrário, esse autor propõe identificar três sig-
nificações distintas da cultura: a cultura-estilo, a cultura declarativa
e a cultura corpus. A primeira designa o conjunto dos modelos de
representação e das práticas que orientam a organização das formas
da vida social. A segunda, a de uma cultura como comportamento
18. Jonathan Swift, Pensées sur divers sujets moraux et divertissants: (Euvres, Paris, Pléiade,
1965, p. 572. "It is pleasant to observe how free the present age is in laying taxes on
the next. FUTURE AGES SHALL TALK OF THIS; THIS SHALL BE FAMOUS TO ALL POSTERITY.
Whereas their time and thoughts will be taken up about present things, as ours are now."
19. Julian Thomas, Archaeology and Modernity, Londres: Routledge, 2004.
20. J.-C. Passeron, Le Raisonnement sociologique (l'espace non poppérien du raisonnnement
naturel), Paris: Nathan, 1991, p. 323.
19
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
declarativo, corresponde à reivindicação de uma identidade de grupo:
é a "formulação autocentrada da cultura que uma cultura mostra de si
mesma em sua definição falada ou escrita das relações entre os valores,
o homem e o mundo". Por último, a cultura como corpus de obras va-
lorizadas define o universo simbólico de um grupo social, ao privilegiar
um reduzido número de objetos culturais como outros tantos de seus
símbolos favoritos. É, evidentemente esta última configuração que
tradicionalmente coincide com a definição canônica do patrimônio.
O patrimônio institucionalizado não passa, em vários aspectos,
de uma câmera de gravação dos movimentos aleatórios brownianos,
cujo contorno é desenhado a partir de manifestações de admiração e
reconhecimento, de compras e revendas, além de acúmulo de bens e de
rejeições. Pintado por Modigliani como Novo pilota [Novo piloto], o
grande retrato de Paul Guillaume — figura de marchand, colecionador
e mecenas a quem se deve o essencial do museu parisiense de Orangerie
— pode passar por emblemático dos atores contemporâneos da consti-
tuição de patrimônios reunidos em diferentes locais; aliás, às vezes, são
apenas coleções de marchands. Os mecanismos de aquisição, conserva-
ção e transmissão das obras, tratando-se da formação e da evolução do
corpus de monumentos protegidos ou das coleções de museus, envolvem
um horizonte de expectativa associado àsrepresentações de um grupo
social, à sua sensibilidade e a suas experiências, próximas ou longínquas.
Para essa problemática, Hans Robert Jauss forneceu a definição clássica:
"O sistema de referências objetivamente formulável, para cada obra, no
momento da história em que ela aparece, resulta de três fatores princi-
pais: a experiência prévia do público relativamente ao gênero de que ela
faz parte; a forma e a temática de obras anteriores cujo conhecimento se
pressupõe; e a oposição entre mundo imaginário e realidade cotidiana."21
De acordo com a socióloga norte-americana Wendy Griswold,
é possível compilar no mínimo cinco configurações relativamente à
recepção de objetos culturais. A primeira é a interpretação (conce-
bida como elaboração da significação). A segunda identifica-se com
o sucesso (a popularidade, avaliada pelo número de adeptos ou
21. Hans-Robert Jauss, Pour une Esthétique de la réception, Paris: Gallimard, 1978.
20
convertidos, ou por qualquer índice da estima manifestada). A terceira
configuração entende-se em termos de impacto sobre o campo de
referência cultural (a influência de um objeto cultural sobre a fisio-
nomia de objetos do mesmo gênero). A quarta equivale à canonização
(a aceitação desse objeto pelo grupo de especialistas, capacitados para
conferir-lhe legitimidade). Enfim, o último elemento de recepção tem
a ver com a duração (a persistência de um objeto cultural no tempo,
graças a um conhecimento ampliado ou não). Apesar de corresponder
a algumas dessas configurações, a definição patrimonial não se coaduna
forçosamente, de maneira positiva, com todos os critérios, pelo fato
de depender de uma história da mediação considerada "sob a óptica
dos conflitos de poderes e de personalidades".22
Em particular, ela ilustra o que Ernest Gombrich designa por
"clima social" de excelência e de admiração artísticas. "Seria possível
estudá-lo", escreve ele, "ao esboçar um verdadeiro programa, com base
nos arquivos dos preços alcançados nos leilões, na difusão das repro-
duções e na organização de peregrinações preparadas pelas agências
de turismo [...], ao anotar o desenvolvimento de seitas exclusivas, até
mesmo de heresias [...], ao identificar os heróis da cultura que con-
tinuam suscitando, como é costume dizer, o 'culto de uma minoria'
e ao colocar a emergência e o desaparecimento de tais reputações em
correlação com outros movimentos sociais. Seria possível, também,
fazer um grande número de comentários interessantes a propósito das
condições sociais que facilitam o respeito pelos velhos mestres e pelo
clima que incentiva a considerar, com orgulho, as realizações da arte
contemporânea."23 Essa configuração inscreve-se em uma longa tradi-
ção, a da literatura artística. Além disso, seu saber consiste sempre em
conhecer os lugares, sobretudo "lugares de passagem" das obras, como
lugares de propriedade e de transmissão. Com o desenvolvimento de
uma circulação associada ao mercado, tem aumentado a importância
do connoisseurship e do atribuicionismo: o crítico de arte e arqueólogo
22. Wendy Griswold, Cultures and Societies in a Changing World, Thousand Oaks: Pine
Forge, 1994. Cf. ainda Francis Haskell, op. cit., p. 33-34.
23. Ernst Hans Gombrich, L'Écologie des images, Paris: Flammarion, 1982.
2I
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
Quatremère de Quincy (1755-1849) já constatara o peso do que ele
designava, com desdém, como uma "espécie de saber".
Por conseguinte, a patrimonialização coincide amplamente com a
tradição da cultura erudita. Como foi observado por Jacques Thuillier,
em relação à finalidade da criação artística, "o texto escrito tem desem-
penhado, até aqui, um papel determinante, e pode-se dizer que, por
seu intermédio, foi implantado o panorama [...] ao fixar as hierarquias:
por consequência, ele estabelece, durante um prazo mais ou menos
longo, a própria sobrevida da obra". Em poucas palavras, "considerando
os períodos antigos, a distribuição das pinturas e das esculturas conserva-
das acabou por corresponder praticamente ao esquema dos artistas e das
obras, constantes nas citações dos historiadores antigos — sem grande
relação com a própria produção, tal como esta pode ser confirmada por
documentos de arquivo. Salvo algumas exceções, a resistência das escolas
e das obras dependeu da presença dos livros, assim como da data de
sua publicação; a realidade acabou por acomodar-se ao texto escrito".24
Os séculos XVIII e XIX constituem, nesse aspecto, momentos estratégi-
cos que assistem à elaboração de cânones, repertórios e catálogos — seja
do teatro à música, ou da pintura à literatura — e, especificamente, à
instalação de museus, primeiros lugares da objetivação de "culturas".
A gênese do patrimônio evoca, assim, as leituras eruditas em-
penhadas em interpretar as obras como outros tantos documentos
sobre o passado, transformando, particularmente, a compreensão das
antiguidades clássicas e, em seguida, nacionais em um desafio inte-
lectual e político.25 A era da erudição, no século XVII, apoiava-se na
preocupação com as fontes: "O método moderno de pesquisa histórica
está inteiramente baseado na distinção entre fontes originais e fontes
de segunda mão."26 O desenvolvimento da reflexão, no século XVIII,
24. J. Thuillier, Leçon inaugurale, Collège de France, Paris, I3 jan. 1978, p. 15.
25. Francis Haskell, L'Historien et les images, Paris: Gallimard, I996.
26. Arnaldo Momigliano, "Ancient History and the Antiquarian", in Journal of the
Warburg and Courtauld Institutes, n. 13, 1950, p. 285-3I5; retomado em Problèmes
d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Gallimard, 1983; e em Joseph M. Levine,
"The Antiquarian Enterprise, I500-1800", Humanism and History: Origins ofModern
English Historiography, Ithaca: Cornell University Press, I987, p. 73-106.
22
baseava-se na busca de um diálogo entre fontes literárias e fontes
figuradas, assim como no surgimento de uma história cultural; para
ser possível construir a definição do patrimônio, impunha-se esta-
belecer, previamente, a autenticidade e o valor dos monumentos de
qualquer espécie.
A disputa, nesse caso entre partidários e adversários da patrimo-
nialização, mobiliza incansavelmente discursos contraditórios sobre o
destino a ser dado às obras, ou seja, sobre as relações que elas podem
estabelecer no espaço público. Tal discussão é, em particular, acirrada
no que diz respeito à originalidade — democrática e cultural — do
museu relativamente à coleção tradicional. As relações com a publi-
cidade das coleções — enaltecida ou considerada como ilusória — e
com a destinação da obra exposta — reconhecida como autêntica,
desvalorizada ou negada — orientaram, assim, o essencial dos discursos
ulteriores ao esboçarem quatro figuras principais.
A ortodoxia museal descreve os efeitos positivos dos museus no espí-
rito das reivindicações de abertura da segunda metade do século XVIII.
Esses estabelecimentos permitiram, ao que tudo indica, a iniciação
dos visitantes à alta cultura, até então reservada ao privilégio ou à
riqueza. Em poucas palavras, eles divulgavam a cultura em condições
semelhantes às que usufruíam seus proprietários ou detentores, legi-
timados pela tradição. A crítica, de inspiração ou de herança contrar-
revolucionária — pelo menos no caso francês —, sustentava por seu
turno a existência de uma desculturação: o museu alterava a cultura
em nome da utilidade social e modificava as condutas legítimas sem
deixar de permanecer estranho ao povo convidado a frequentá-lo.
Seu encerramento, em última instância, a fim de restaurar o antigo
vínculo ou, melhor ainda, sua reapropriação pelos usuários legítimos,
colecionadores e amadores, seria o único meio de suprimiressa per-
versão ideológica, possibilitando um renascimento cultural.
A escola progressista, ao contrário, denunciava a confiscação da
cultura legítima operada pelo museu em benefício dos privilegiados
da sociedade, aliás os únicos que tinham condições de tirar um real
proveito da instituição: uma educação verdadeiramente democrática
deveria estender uma relação com a cultura, que havia permanecido
23
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
como o apanágio de um número reduzido de pessoas. Por fim, uma
crítica radical negava este último projeto e qualquer esperança de futuro
radioso para o estabelecimento. O museu seria destinado ao uso de uma
clientela de filisteus, no sentido de Hannah Arendt: por meio dessas
obras-primas, eles procuram "engrandecer-se". Bem longe de autorizar
uma apropriação qualquer, coletiva ou elitista, ele era, por excelência,
o lugar de um desapossamento generalizado.
Não causará espanto que os partidários de uma virtualidade de-
mocrática desse estabelecimento se tornem os defensores convencidos
da autenticidade da cultura conservada e exposta; ora, essa postura é
colocada em dúvida por seus adversários que privilegiam a hipótese de
uma solução de continuidade, no caso concreto, uma perda do sentido.
Contrariamente a uma legitimidade baseada na utilidade de um equipa-
mento coletivo, a crítica tradicional invocava uma gratuidade implícita da
verdadeira cultura. Defender, por exemplo, que as condutas individuais
dos colecionadores seriam as únicas capazes de manter o nível de civi-
lização descartava a questão do museu, que passava por um dispositivo
marginal, para não dizer parasita. Na melhor das hipóteses, a relação sus-
citada por seu intermédio com o patrimônio limitava-se a uma utilidade
secundária; e, na pior, dava testemunho do fracasso de uma transmissão
legítima. De fato, a democratização da civilização só seria viável mediante
sua alteração: essa é a dialética do pão e circo; as vicissitudes de sua longa
evolução podem ser encontradas no discurso intelectual contemporâneo.27
O espetáculo do museu alimentava então uma postura sobre a decadência
ou o' exílio da cultura, além de nutrir a ampla literatura da melancolia pós-
-revolucionária, a propósito de um mundo fragmentado ou perdido.
Uma encarnação da construção nacional
O caso francês ilustra o que o sociólogo Luigi Bobbio designa por
concepção nacional-patrimonial, baseada na metáfora da herança, no
27. Patrick Brantlinger, Bread Circuses: Theories ofMass Culture as Social Decay, Ithaca:
Cornell University Press, 1983.
24
atributo da soberania e na constituição de um Estado-Nação moderno."
Essa concepção é hierárquica e baseia-se em uma administração com-
plexa. Nesta perspectiva, qualquer implementação de um patrimônio
serve-se de saberes eruditos, especializados, suscetíveis de legitimar tal
intervenção, tal restauração, tal inventário, ou de combatê-los — ca-
pazes também de acompanhar uma mobilização cívica ou ideológica.
O patrimônio, em outros termos, é um trabalho (por exemplo, o de
repertoriar e de fazer a revisão de corpus de monumentos); aliás, seu
estatuto e sua ambição dependeram concretamente da posição ocu-
pada, em cada período, por antiquários, arqueólogos, historiadores da
arte... no âmago da comunidade intelectual nacional — em particular
diante de seus pares linguistas, folcloristas ou arquivistas. O mesmo é
dizer quanto o patrimônio está ligado, mais amplamente, aos valores
atribuídos a algumas atividades — da mão e da vista — na represen-
tação de si de uma sociedade.
As primeiras medidas conservadoras, iniciadas pelo papado e por
outros estados da Itália, culminaram no reconhecimento de um cânon
dos mestres e no princípio de um corpus de objetos a definir e a pro-
teger. Uma das principais datas refere-se ao "decreto de 1601, pelo
qual o grande duque Ferdinando de Médicis enumerava dezoito céle-
bres pintores do passado cujas obras não deviam ser vendidas para o
exterior".29 Essa declaração solene visava afirmar e perpetuar a excelência
do príncipe e do país. Tal é também um dos desígnios das coleções régias
que deram origem, por intermédio da Europa, aos museus nacionais.
No decorrer do século XVIII, prestava-se uma atenção inédita à eficá-
cia que orienta a ideia de herança: tal medida era considerada como o
meio de dissipar a ignorância, aperfeiçoar as artes, além de despertar
o espírito público e o amor pela pátria. A preocupação de utilidade rela-
cionava, daí em diante, a conservação de um patrimônio com os efeitos
pretendidos tanto para a formação do público como para a prosperidade
do país. O processo de legitimação patriótica — iniciado dessa forma —
28. Luigi Bobbio, Le politiche dei beni culturali in Europa, Bolonha: Il Mulino, I992.
29. Ernst Hans Gombrich, Réflexions sur l'histoire de l'art (1987), Nimes: Jacqueline
Chambon, 1992, p. 296.
25
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
assumiu aos poucos uma fisionomia contemporânea com as confiscações
e as transferências sucessivas da Revolução Francesa. Nesse momento-
-limiar — para retomar a fórmula do antropólogo Victor Turner — em
que ocorreu a desintegração da antiga comunidade e a emergência da
nova é que se tornou mais evidente a reivindicação de um patrimônio
ad hoc, baseado em novas justificativas, acompanhado eventualmente
pela proscrição dos antigos signos.30 O patrimônio inscreveu-se desde
então em uma vontade geral de criar conexões, vontade que marcou
os séculos XIX e XX, em relação com as representações hierárquicas e
regulamentares do período precedente.
O patrimônio no sentido "legal" surgiu com as legislações nacionais
do século XIX, legislações que lhe garantiram um destino específico no
meio de todas as manifestações sociais dos objetos. Aliás, tal postura
foi assumida em nome do povo, como destinatário eminente e, ao
mesmo tempo, o derradeiro responsável por essa herança. A França da
primeira metade do século XIX foi, por excelência, o lugar da elabo-
ração progressiva e muitas vezes conflitante dos valores patrimoniais
— em oposição, especificamente, ao direito de propriedade?' Em toda
parte da Europa, os liberais descobriram e, em seguida, celebraram
a preservação das antiguidades nacionais como um dever patriótico
— forma moderna de uma cultura declarativa, para falar como Jean-
Claude Passeron. As destruições de toda espécie foram paralelamente
qualificadas, de maneira genérica, como vandalismo. Na França, o
célebre colecionador de estampas Michel Hennin foi o primeiro a pro-
mover uma história ponderada das destruições e das conservações: ele
demonstrou, por um lado, o recuo universal do vandalismo diante da
tomada de consciência da herança (mesmo que os interesses pecuniários
e determinados delírios ideológicos ou patrióticos tivessem alterado,
regularmente, o curso de seu progresso); por outro, a democratização
contínua das fruições A patrimonialização confundia-se, mais ou
30. Victor Turner, Dramas, Fields, and Metaphors: Symbolic Action in Human Society,
Ithaca: Cornell University Press, 1974.
31. Cf. a apresentação clássica do tema, resumida por Joseph L. Sax, "Heritage Preserva-
tion as a Public Duty: The Abbé Grégoire and the Origins of an Idea", in Michigan
Law Review, vol. 88, n. 5, I990, p. 1I42-1169.
26
menos, com a narrativa de uma socialização progressiva e generosa de
coleções e de títulos de propriedade: ao servir-se da pátria como ilustra-
ção,
ela enaltecia o labor da ciência e os avanços da instrução pública.32
Esta construção efetuou-se, de acordo com cada país, em datas
bastante diversas: mas, no final do século XIX, por toda a Europa a
literatura do patrimônio confundia-se mais ou menos com a denúncia
das perdas constatadas e com uma tipologia histórica das destruições,
ou seja, pavor e denúncia. Essa mobilização forneceu-lhe seu princípio
íntimo de engendramento, ao ritmo das perdas denunciadas na "caixa
de poupança" do progressoda humanidade (a imagem encontra-se na
obra de Charles Péguy).33 Convém, aliás, observar que essa literatura pa-
trimonial deu lugar, em breve, não tanto a uma história no sentido estrito
do termo, mas à evocação de um movimento de criação e de acúmulo
espontâneo, infelizmente interrompido em diferentes lugares. Ao presente
"congelado", resultado de uma percepção intelectualizada, historicizada,
Péguy opunha os valores da liberdade do verdadeiro presente. Com
Bergson, a relação da vida com a história tornou-se uma genuína constru-
ção filosófica que enfatiza o fluxo e a emergência, contrariamente a tudo
o que tende a fixar-se, oprimir e tiranizar. Desde então, o patrimônio
podia inscrever-se em uma relação com o tempo que não era o da história
e que, às vezes, o rejeitava"; não se pode desenvolver aqui este aspecto,
mas é quase certo que determinado anti-intelectualismo da defesa e da
ilustração do patrimônio alimentou-se com essa tradição da relação com
o tempo e com esse pensamento da atualidade "viva".
Neste ponto, pode esclarecer-nos o que Roland Barthes havia vislum-
brado sob a denominação de "teatralidade"35; assim, sugere-se o termo
32. Michel Hennin, Les Monuments de l'histoire de France: Catalogue des production de la
sculpture, de la peinture et de la gravure relatives à l'histoire de France et eles Français,
10 vols., Paris: J.-F. Delion, 1856-1863.
33. Charles Péguy, "Clio: Dialogue de l'histoire et de l'âme païenne", in Robert Burac
(org.), Oeuvres en prose complètes, Paris: Gallimard, III, 1992, p. 1028 ss.
34. Cf., a este propósito, os comentários de Georges Poulet, Études sur le temps humain,
Paris: Plon, 1950.
35. "O que é a teatralidade? É o teatro sem o texto, é uma espessura de signos e sensações
que se edifica no palco a partir do argumento escrito; é essa espécie de percepção
ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que
27
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
"patrimonialidade" para designar a modalidade sensível de uma
experiência do passado, articulada com uma organização do saber -
identificação, atribuição — capaz de autentificá-lo. Uma primeira
patrimonialidade encontra-se na relação íntima ou secreta de um
proprietário ou de usufrutuários em diferentes níveis, de especialistas
ou de iniciados, em nome de afinidades e convicções, assim como de
racionalizações eruditas e de condutas políticas, com determinados
objetos, lugares ou monumentos. Mais tarde, na sequência de um longo
processo de patrimonialização, a nação é que se tornou o objeto por
excelência da patrimonialidade, fornecendo, por assim dizer, o quadro
de interpretação de qualquer objeto do passado. No caso francês, a
patrimonialização oficial elaborou-se a partir da Revolução, segundo
o modelo de uma negociação entre os valores da nação definida em
novos termos pela forma contratual e os valores, desta vez, "culturais",
que vão aparecendo aos poucos, além de estabilizarem no espaço e
no tempo essa construção abstrata — de fato, com o desaparecimento
da Igreja e das corporações, a patrimonialidade tradicional tinha ficado
fora de circuito. Esse compromisso laborioso entre nacionalidade do
contrato e nacionalidade de cultura é que permitiu o triunfo de uma
nação-patrimônio a que Camille Jullian, por exemplo, se referia em
sua lição inaugural do Cours d'Histoire et d'Antiquités Nationales,
no Collège de France, em 7 de dezembro de 1906: "As ruínas dos
monumentos dão testemunho não apenas da mão de um operário ou
da planta de um arquiteto, mas também dos sentimentos de um povo;
elas refletem, para uma pátria, o espírito de uma geração de homens."36
Daí um historicismo mais ou menos explícito, até mesmo uma ver-
dadeira teleologia das heranças sucessivas, assim como a convicção de
que o patrimônio, pela necessidade de sua preservação, deve receber
o apoio do Estado.
submergem o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior." (Roland Barthes,
"Le Théâtre de Baudelaire", in Essais critiques, 1954, p. 41.)
36. Primeira lição proferida no Collège de France, em forma de exposição de método,
"La vie et l'étude des monuments (rançais" foi publicada em Revue Bleue, Paris, vol.
1, p. 3-4. Na sequência, os nove cursos de 1905 a 19I3 foram editados em Camille
Jullian, Au Seuil de notre histoire, Paris: Boivin, 1930.
28
A este modelo opõem-se outras construções que implicam mais
precisamente a sociedade civil pelo viés de intelectuais e de associações.
Miroslav Hroch, através de uma comparação dos grupos patrióticos em
diferentes nações, na Europa Central, identificou três fases: .à primeira
situa-se entre 1789 e 1815, quando uma intelligentsia restrita, a única
envolvida pela emergência das ideias nacionais associadas à Revolução
Francesa, foi bem-sucedida na tentativa de conservar o patrimônio
cultural (coletânea de canções e contos populares, codificação e divul-
gação da língua). Durante uma segunda época (1815-1848), essa ideia
difundiu-se entre a burguesia, levando a uma transcrição política desse
empreendimento cultural. Enfim, o ano de 1848 inaugurava o último
período, quando o nacionalismo recebeu um amplo apoio popular,
ilustrado pela Primeira Guerra Mundial e pela queda do Império dos
Habsburgos.37 No caso concreto, é no mínimo delicado separar, no
decorrer do processo, cultura e nacionalismo."
Um recurso comum
Por ocasião da Primeira Guerra Mundial, os beligerantes mobi-
lizaram amplamente a cultura no esforço de guerra, exacerbando os
julgamentos mais xenófobos em relação aos patrimônios estrangeiros.
39
No período entre as duas guerras, o surgimento de ideologias totalitárias,
decididas a transformar a exaltação da herança em um instrumento de
propaganda, teve consideráveis consequências sobre a própria imagem
da cultura, que se tornou objeto de críticas radicais ou de diagnósticos
37. Miroslav Hroch, "De l'Ethnicité à la nation: Un Chemin oublié vers la modernité", in
Anthropologie et Sociétés, vol. 19-3, I995, p. 71-86; e Social Preconditions ofNational
Revival in Europe: A Comparative Analysis ofthe Social Composition ofPatriotic Groups
Among the Smaller European Nations, Nova York: Columbia University Press, 2000.
38. Alain Dieckoff, "La Déconstruction d'une illusion: L'Introuvable opposition entre nationa-
lisme politique et nationalisme culturel", in L'Année Sociologique, vol. 46, n. 1, 1996.
39. Christina Kott, Protéger, confisquer, de'placer: Le Service de préservation des oeuvres d'art
en Belgique et en France occupées pendant la Première Guerre mondiale, 1914-1924, tese,
EHESS, 2002; Yann Harlaut, La Cathédrale de Reims du 4 septembre Ie914 au 10 juillet
Ie938: Idéologies, controverses et pragmatisme, tese, Universidade de Reims, 2006.
29
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
catastróficos. Em 1936, Élie Halévy escrevia que essa época das ti-
ranias caracteriza-se "do ponto de vista intelectual (pela) estatização
do pensamento, que por sua vez assume duas formas: uma negativa,
pela supressão de qualquer opinião julgada desfavorável ao interesse
nacional; e a outra positiva, por aquilo que designamos como a orga-
nização d.o entusiasmo"40.
Entretanto, as destruições da Segunda Guerra Mundial (bairros e
cidades inteiras) é que, sem dúvida, tiveram as mais relevantes consequên-
cias sobre a consciência patrimonial europeia, assim como sobre suas
modalidades de restauração e de uso. A conservação dos monumentos
visava, daí em diante, algo que superava o horizonte do antiquário
ou histórico: o que Louis Grodecki designava por busca do "valor do
efeito produzido"; a reforma do centro antigo de Varsóvia é um notável
exemplo dessas novas representações. Para o professor Zachwatowicz,
artesão da reconstrução fidedigna do século XVIII e, às vezes, do século
XVI, a justificativa do empreendimento tem a ver com "a vontadede
fornecer ao país a consciência de um passado cultural que havia sido
ameaçado de negação e de aniquilamento".41 Nem o valor de monu-
mentalidade intencional, nem o de monumento histórico, nem o do
monumento antigo — para retomar a tipologia do historiador da arte
Alois Riegl —, constituem aqui a referência obrigatória. O mesmo se
passa com as discussões a propósito da reconstrução do castelo na área
central de Berlim, desencadeadas em meados da década de 1990, em nome
da reconquista da cidade perdida. Pode-se reconhecer aí uma das figuras
características do patrimônio contemporâneo, tornado lugar-comum dos
discursos sobre a identidade.
O termo "patrimônio" conheceu desse modo um notável sucesso
no mundo inteiro: o caso da França, país em que o rápido desenvol-
vimento da fórmula apoiou-se na comemoração do Ano do Patrimônio,
no limiar da década de 1980, é uma de suas mais notáveis ilustra-
ções. A representação de uma herança a ser conservada, tomando as
40. Élie Halévy, L'Ère des tyrannies, Paris: Gallimard, 1938 [2. ed., 1990].
41. Apud Louis Grodecki, "Tendances actuelles dans la restauration des monuments
historiques", in Les Monuments historiques de la France, 1965, retomado in Le Moyen
Age retrouvé, II, Paris: Flammarion, 1991, p. 398.
30
providências para sua manutenção e transmissão, parece satisfazer uma
das aspirações profundas das sociedades contemporâneas. Encarnação
consensual dos valores cívicos, além de pretexto para articular atitudes
culturais e práticas de consumo, essa verdadeira explosão de iniciativas
patrimoniais corresponde certamente à nova condição — pelo menos
nesse plano — de obras ou de lugares que se encontravam sem uso no
espaço público. Mas, sobretudo, ela fornece recursos apropriados para
alimentar um ideal de participação ativa no âmago de coletividades
inéditas (no museu ou in situ, .diante do monumento ou sobre um
território). Sob o signo de uma "provocação da memória", o patrimônio
instala-se assim no centro da instituição da cultura e é acompanhado
por uma ética, ao mesmo tempo, da precaução e da fruição. Desse
modo, esboça-se, em arqueologia ou em arquivística, uma exigência de
respeito pelo objeto, ao definir regras de tratamento de sua diferença»
O conjunto dessas iniciativas revela a generalização de uma sen-
sibilidade em relação a uma herança "cultural" cujo interesse parece,
com ou sem razão, ter sido negado ou ignorado durante um período
demasiado longo. Esse postulado alimenta, hoje em dia, uma consciência
aguda de que a definição e os contornos dos patrimônios estão profun-
damente associados à atualidade de uma sociedade, a seus interesses
do momento e até mesmo a suas modas. De fato, tal restauração de
monumentos históricos, tal museografia, tais conclusões dos folcloristas
do século passado são tão reveladoras de um momento da metamorfose
patrimonial quanto da autenticidade dos objetos ou das práticas que,
supostamente, elas deveriam conservar e valorizar; assim, sob a óptica
moderna, o patrimônio revelaria leituras em vários planos.
Essa nova consciência da patrimonialização acompanha a promoção
de novas relíquias, em uma perspectiva relativamente restritiva. Com
efeito, em numerosos países, o patrimônio tornou-se um dos desafios
do desenvolvimento cultural. Na França, segundo parece, tal ambição
data do decreto de nomeação de André Malraux como ministro de
42. Cf., entre as numerosas referências, Michael Shanks e Christopher Tilley, Re-cons-
tructing Archaeology — Theory and Practice, Londres: Routledge, 1922, p. 138. Nesse
aspecto, a literatura sobre o arquivo é considerável: cf. Helen Freshwater, "The allure
of the archive", in Poetics Today, vol. 24, n. 4, 2003, p. 729-758.
31
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
Estado dos Assuntos Culturais (3 de fevereiro de 1959), que o incum-
bia "de garantir a mais ampla audiência a nosso patrimônio cultural".
Mais tarde, em 1975, o termo foi estendido à Comunidade Europeia,
enquanto os discursos oficiais davam testemunho, progressivamente,
de um desígnio militante. O vocabulário administrativo carregou sua
marca, desde a promoção dos "novos patrimônios", em 1981, até o
colóquio Les Monuments Historiques Demain (1984), os Encontros
Nacionais dos Ecomuseus (En Avant la Mémoire!, 1986) ou o Fórum
do Patrimônio, realizado, de maneira aparentemente paradoxal, na Cité
des Sciences et de l'Industrie de la Villette (Paris, 1987). Na esteira de
todos esses eventos, uma abundante literatura profissional tem mos-
trado empenho em inventariar os patrimônios inéditos ou em adaptar
os patrimônios já identificados que exigem ser renovados e atualizados.
Tais mutações passaram por ritmos diversificados, segundo as
tradições culturais dos diferentes países; no entanto, o movimento de
conjunto não deixa de ser impressionante. A partir do decênio 1980-
1990, políticos e cidadãos compartilharam a "evidência" segundo a qual
tudo deveria ser considerado a priori como elemento do patrimônio
(a fórmula é utilizada, nos últimos quinze anos, por diferentes minis-
tros ou responsáveis europeus). Trata-se de encontrar, de novo, a figura
já evocada da cultura-estilo: com a atribuição de estatuto de museu para
o jardin ouvrier43, assim como para o galpão de ensaios de um grupo
de rock pesado, as culturas de todos os grupos sociais são suscetíveis de
passar por patrimônios, em um caleidoscópio de identidades. Enfim,
a antecipação dos riscos de desaparecimento contribui para que o de-
safio econômico se torne patente. Ao exigir uma redefinição científica
e, ao mesmo tempo, um novo estatuto para os objetos visados, cada
reivindicação de um novo registro no patrimônio suscita também mer-
cados especializados — o da restauração e o do tratamento. A ideia de
um reservatório de empregos e de habilidades amplamente disponíveis
43. Criados no final do século XIX, os jardins ouvriers — e, após a Segunda Guerra
Mundial, designados por jardins familiaux ou hortas comunitárias — são parcelas
de terreno disponibilizadas pelas municipalidades, visando melhorar as condições de
vida dos operários ao proporcionar-lhes, além de uma autossubsistência alimentar,
o contato com a natureza, afastando-os dos botequins. [N.T.]
32
em torno da temática do patrimônio, e, se for o caso, exportáveis na
área de influência de cada nação, esteve assim particularmente presente
na Europa nos últimos anos.
Hoje em dia, a patrimonialização parece confundir-se com a patri-
monialidade — no sentido em que a atribuição do qualificativo "pa-
trimônio" a objetos no seio de determinada sociedade e sua preservação
legal identifica-se, aparentemente, com o lugar sensível e íntimo que
eles ocupam no âmago das consciências individuais ou dos grupos
sociais, em decorrência do esforço despendido para viver em harmonia
com a cultura material do passado. Entretanto, o patrimônio não está
indene, muito pelo contrário, de vontades predadoras: tanto os monu-
mentos celebrados pela "tradição do novo" quanto os objetos da família
que, cotidianamente, entram no museu têm a ver com modalidades de
apropriação que, sem qualquer embasamento, são consideradas óbvias,
para não dizer "naturais". Esperamos que o retorno aos alicerces do
patrimônio nacional — de acordo com nossa proposta neste livro -
permita uma abordagem renovada do fenômeno.
A caminho de uma antropologia histórica da
patrimonialização francesa
As inscrições da patrimonialidade e as formas de patrimonialização
passam, entre o final do século XVIII e a década de 1830, de uma repre-
sentação "monumental" do saber e da memória para uma configuração
que compreende todos os elementos da cultura material do passado, tal
como ela era compreendida,na época, pela nova história." A partir da
Revolução, diferentes processos — da invenção do museu à invenção
do monumento histórico, desde a reconfiguração da arqueologia aos
sucessos do romance histórico — inventaram uma tradição patrimo-
nial que remete à nova coletividade nacional e, durante muito tempo,
irá permanecer como a base das atitudes francesas diante da herança.
44. Cf. Patrick H. Hutton, "The Role of Memory in the Historiography of the French
Revolution", in History and Theory, vol. 30, n. 1, 199I, p. 56-69.
33
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
A Revolução não é somente uma vontade de desligar-se do Antigo
Regime que serve de suporte ao que François Furet designava por "uma
espécie de hipertrofia da consciência histórica" — entenda-se, a cons-
ciência exacerbada da ruptura, conjugada a uma atrofia do sentido da
profundidade da história" —, mas constitui também uma inflexão im-
portante da inscrição memorial. Na sequência desses decênios, a memória
cultural convoca de maneira privilegiada os vestígios materiais do passado,
por intermédio dos textos." O presente estudo gostaria de delinear, em
primeiro lugar, a reviravolta desse modo de inscrição da memória cultural
que tem a ver, amplamente, com a emergência de uma representação da
história, cuja função, de acordo com a afirmação de Alphonse Dupront,
consiste em "desdobrar o que foi endurecido elo tempo" em uma varie-
dade cada vez mais considerável de objetos.
A consciência de viver em uma temporalidade comum, de perten-
cer a uma contemporaneidade afastada do passado e distinta de um
futuro ilimitado e incerto, é provavelmente um dos resultados mais
evidentes dos decênios revolucionário e imperial, transformando-os
em uma experiência amplamente compartilhada.47 O Antigo Regime
havia desaparecido mediante a destruição de seus signos, vestígios e
símbolos; mais tarde, porém, sua nostalgia mobilizou suas relíquias
— assim como as lembranças orais consignadas com um maior ou
menor grau de devoção. Mas esse conjunto de ruínas já não oferece
perspectiva contínua, nem permite uma leitura convincente: sua frag-
mentação sugere um trabalho de esquecimento e supressão que deverá
ser integrado, daí em diante, às representações do passado. Nesse
domínio, os textos limitaram-se a desempenhar um papel bastante
precário, diferentemente dos períodos precedentes, em que a transmis-
são à posteridade reivindicava, acima de tudo, o documento escrito.
Os múltiplos episódios de descobertas, no decorrer do século XIX,
45. François Furet, Penser Ia Révolution Française, Paris: Gallimard, 1978, p. 15, 31-32,
46-49.
46. Jan Assmann, "Collective Memory and Cultural Identity", in New German Critique,
vol. 65, 1995, p. 125-133.
47. Nesse aspecto, concordo com Peter Fritzsche, "Specters of History: On Nostalgia,
Exile and Modernity", in American Historical Review, vol. 106, n. 5, 2005.
34
de arquivos e de monumentos entre imundícies ou depósitos negligen-
ciados indicam o advento da modernidade. Ao longo do século XIX,
uma infinidade de diversos monumentos, de tapeçarias a túmulos,
são "inventados" por diferentes patrimonializadores, de acordo com
o espírito de um salvamento: eles passam por elementos privilegia-
dos da memória cultural — ao lado das práticas costumeiras e das
tradições orais, ou seja, as "vozes que vêm do passado", coletadas
e estudadas simultaneamente, assim como à procura das últimas
testemunhas de um passado desaparecido." Na sequência, a manu-
tenção de antiguidades no seio dos lares burgueses e a proliferação
dos arquivos familiares participaram do mesmo movimento pelo qual
a transmissão à posteridade, muito apreciada pelas Luzes e pela Revo-
lução, reconfigurou-se em um tratamento de objetos materiais, sempre
incompletos e ameaçados."
O primeiro capítulo deste livro é dedicado ao regime da curiosidade
histórica, tal como é concebido pelas Luzes. Ele havia estabelecido
com os monumentos, as coleções históricas e as antiguidades uma
relação ambígua; de fato, aos testemunhos materiais autênticos são
acrescentados monumentos imaginários, organizados e apresentados
ao público em espaços abertos, de diferentes status, desde os "países das
ilusões" até os jardins públicos. Semelhantes dispositivos forneceram
aos espectadores não só elementos de conhecimento, mas também de
fruição e de emoção; os supostos benefícios da paisagem constituída por
monumentos antigos alimentaram, paralelamente, utopias arquiteturais
e políticas. Aos poucos, a comparação entre objetos dos antiquários e
textos dos historiadores esboçava a fisionomia inédita de uma auten-
ticidade passada — figura de ruptura com o presente, o familiar e o
convencional.
Dois episódios particularmente cruciais forneceram, em seguida,
matéria para os três capítulos centrais deste livro. O primeiro é o do
"vandalismo" revolucionário. A nacionalização de bens patrimoniais, o
48. Philippe Joutard, Ces Voix qui nous viennent du passé, Paris: Hachette, 1983.
49. Para sua versão contemporânea, cf. Janet Hoskins, Biographical Objects, How Things
Tell the Stones of People's Live:, Londres: Routledge, 1998.
35
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
inventário das riquezas da França, as medidas iconoclastas acabaram por
suscitar uma consciência inédita dos vestígios do passado na paisagem
presente, sem deixar de enfatizar uma opacidade sem precedentes,
ao mesmo tempo ameaçadora e crepuscular. Uma busca histérica
de utilidade marcou, em seguida, sua recensão e conservação. Entre
os vencidos da história, a preocupação em proteger determinado
monumento do passado, sinal de uma diferença quase ontológica,
incrementou um sentido do passado que, pelo contrário, se tornou
valor de resistência.
Nesse aspecto, a questão dos mortos é fundamental, já que remete
à partilha entre comunidade e coletividade: a funcionalização dos mor-
tos, reconhecida por Reinhart Koselleck como origem do novo regime,
traduz-se por uma nova economia relativa aos monumentos. Outrora,
os defuntos pertenciam à comunidade cristã ou a uma comunidade
da lembrança. Daí em diante, o processo de patrimonialização das
personalidades importantes exige uma utilidade material e documen-
tal para a coletividade. Trata-se, nesse caso, de uma dessacralização
dos monumentos, acompanhada por processos de desencarnação do
Estado, pela obsessão da idolatria e, de maneira geral, pelo temor
do sensualismo em relação às imagens. Até hoje, tal clivagem per-
corre a literatura patrimonial, produzida na França, entre a nostalgia
de uma herança comunitária (e religiosa) e o funcionalismo de um
patrimônio que ilustra o universal (laico). Por um lado, a patrimo-
nialização justifica-se por preocupações práticas e pela eficácia dos
valores modernos; por outro, a exigência de vínculos e o protesto em
prol de uma identidade em partilha têm valor de reivindicação de uma
patrimonialidade ameaçada.
A geração de 1830 realizou um trabalho de luto, em relação tanto ao
Antigo Regime, ao qual já não pode retornar, quanto à ilusão do futuro
proposto em 1789. Diante do que parece ser uma insegurança moral
inédita — a responsabilidade de destruir ou perpetuar determinados
edifícios, símbolos da beleza universal, é deixada a seus proprietários oca-
sionais —, Victor Hugo (1802-1885) defende uma garantia irrevogável
da transmissão, delineando um horizonte de expectativa desligado, daí
em diante, do apelo às lembranças, integrado a uma reflexão sobre a
36
instituição da educação." O esforço ulterior do político e historiador
François Guizot (1787-1874) é exemplar de uma vontade de superar,
por uma colocação em perspectiva histórica, visões partidárias con-
denadas à falência, além de ter fundado, em uma imparcialidade sem
precedentes, a conservação da civilização e de sua herança.
Finalmente, o primado dos vestígios materiais sobre as outras fon-
tes torna-se banal nos escritosdos arqueólogos: "O menor vestígio que
tenha escapado das ruínas da Antiguidade fornece-nos a seu respeito
mais ensinamentos", afirma Raoul-Rochette, "que todos os livros." Daí
resulta uma nova poética do saber histórico, da qual Napoleão Bonaparte
é testemunha ao garantir que foi "levado à Síria", segundo a afirmação
de Alexandre Lenoir51, depois de ter visitado o Museu dos Monumentos
Franceses. Contrariamente ao modelo clássico da coleta de monumentos
ou da compilação dos antiquários, o romance histórico, assim como a
viagem pitoresca, serve-se de monumentos e de lugares como se tratasse
de outros tantos cronotopos (M. Bakhtin, cf. cap. 4) propícios a instigar o
leitor. Na sequência, a prosa de Walter Scott, assim como o colecionismo
de Alexandre du Sommerard no Hôtel de Cluny52, circunscrevem o es-
paço da vida privada como o verdadeiro lugar de inscrição da diferença
histórica." Daí em diante, o passado torna-se o pretexto para investi-
mentos subjetivos e, ao mesmo tempo, para um uso crítico, capazes de
constituir um acervo a partir de uma diversidade inédita das referências
— em vez dos estereótipos precedentes, o Antiquado ou Antigo Regime.
50. Cf. Frédérique Diodati-Remandet, "La Réflexion éducative de Hugo sous la monar-
chie de Juillet", relatório da comunicação ao Groupe Hugo (Universidade de Paris
VII), em 20 de maio de 1995.
51. Arqueólogo francês (1761-1839) que, durante a Revolução Francesa, coletou e pre-
servou um grande número de esculturas e monumentos funerários, tendo criado o
Musée des Monuments Français no antigo convento dos Petits-Augustins, em Paris;
atualmente, École Nationale Supérieure des Beaux-Arts (ENSBA). [N.T.]
52. Edifício do século XV, localizado perto da Sorbonne, que serviu de residência ao
arqueólogo Alexandre Du Sommerard (1779-1842), colecionador de objetos de
arte da Idade Média e do Renascimento. Atualmente, museu que abriga a "Seção
Medieval" do Departamento dos Objetos de Arte do Louvre. [N.T.]
53. Stephen Bann, The Clothing of Clio, Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
37
1
UMA REPRESENTAÇÃO DO
SABER E DA MEMÓRIA
Um idioma comum seria o único recurso para estabelecer
uma correspondência que se estendesse a todas as partes
do gênero humano e as ligasse contra a Natureza que tem
sido maltratada incessantemente por nós, do ponto de vis-
ta físico e moral. No pressuposto da aceitação e regulamen-
tação deste idioma, as noções tornam-se, imediatamente,
permanentes; desaparece a distância entre os tempos; os
lugares tocam-se; formam-se vínculos entre todos os pontos
habitados do espaço e da duração; além disso, todos os
seres vivos & pensantes estabelecem intercâmbio entre si.
Diderot e D'Alembert, "Encyclopédie", in Ency-
clopédie, Paris, 1751-1772, vol. 5.
A famosa Voyage en Italie de Goethe ilustra, de maneira clássica, o
percurso de um viajante que conhece, como é designado pelo autor,
um segundo nascimento"'; trata-se, também, por excelência, de uma
viagem patrimonializadora, oportunidade para uma série de aquisições,
que redundou na criação de uma casa-museu em Weimar, na qual os
viajantes do século XIX puderam, por sua vez, usufruir dos múltiplos
tesouros e lembranças do mundo antigo, coletados no decorrer dos pé-
riplos goethianos de 1786-1788. De resto, as notas de Goethe contêm
numerosos resumos para o historiador do patrimônio e dos museus -
desde as observações sobre a iluminação noturna das estátuas nos museus
romanos, a partir da década de 1780, até a intuição de um vínculo entre o
progresso dos recursos de reprodução, a comercialização de novos produ-
tos de "populuxo"2 e a multiplicação dos elementos de um patrimônio.
Como prova, ele apresenta "o arriscado empreendimento que consistiu
1. Cf. Goethe, Voyage en Italie, edição estabelecida por Jean Lacoste, Paris: Bartillat,
2003.
2. Cf., por exemplo, Maxine Berg, "From Imitation to Invention: Creating Commo-
dities in Eighteenth-Century Britain", in The Economic History Review, vol. 55, n.
1, 2002. ["Populuxo": consumismo acelerado pelo desejo de modernidade. (N.T.)]
39
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
em realizar uma cópia das Logge [no Vaticano] de Rafael para a impe-
ratriz Catarina", de que nosso viajante tem um conhecimento parcial
em setembro de 1787, equiparando-o às diversões para turistas, como
são, na época, a encáustica e a fabricação de pedras artificiais.3 Mas,
no livro citado, vamos chamar a atenção sobretudo para três episódios,
cuja natureza é bastante diferente — duas gargalhadas e um início de
motim —, que dão testemunho do que poderia ser designado como
uma antropologia histórica do patrimônio.
A invenção identitária
Qualquer tipo de patrimônio, tal como o entendemos atualmente,
tem a vocação de encarnar uma identidade em certo número de obras ou
de lugares. Neste aspecto, conhece-se o sucesso obtido pelas páginas de
Goethe dedicadas à catedral de Estrasburgo.4 Em Malcesine, perto
de Verona, ele enfrentou o que, de acordo com suas palavras, é "uma
perigosa aventura", mas "cuja lembrança (lhe) parece divertida", sem
deixar de ser significativa. O viajante estava desenhando, no próprio
local, um velho castelo quando, aos poucos, juntou-se uma multidão
à sua volta, perguntando-lhe o motivo de seu trabalho; os espectadores
acabaram por rasgar seu desenho e mandaram chamar o podestade.
Diante dessa autoridade, Goethe afirmou que se limitava a reproduzir
restos e não propriamente uma fortaleza, enquanto seus adversários
opinaram que ele estava fazendo espionagem por conta do território vi-
zinho. O debate acabou por fazer referência à definição do que é digno
de ser relevado: a evocação das ruínas de Roma, ou do anfiteatro de
Verona, para defender a causa das "belezas pitorescas" da Idade Média
foi contestada pelos habitantes. Com efeito, os edifícios romanos eram
célebres "em todo o mundo", contrariamente a "estas torres que nada
têm de notável a não ser o fato de indicarem a divisa entre o território de
3. Goethe, op. cit., p. 458.
4. Cf., para a interpretação de conjunto, Louis Dumont, L'Idéologie allemande: France-Allemagne
et retour, Paris: Gallimard, 1991; Celia Applegate, A Nation of Provinciais:
The German Idea of Heimat, Berkeley: University of California Press, 1990.
40
Veneza e o Império da Áustria"5. O viajante encontrou-se realmente em
apuros e só conseguiu escapar dessa situação crítica graças ao testemunho
em seu favor de um italiano que conhecia bem Frankfurt. Esse episó-
dio mostra, de maneira exemplar, o que seríamos tentados a designar
como uma pedagogia política do patrimônio: o intelectual alienígena
propôs, por assim dizer, uma identidade (memorial e estética) a uma
comunidade que desejava ignorar semelhante atribuição. "Eu não po-
deria criticar os habitantes de Malcesine, acostumados desde a infância
a este edifício, por não o terem considerado — a exemplo de minha
percepção — como uma beleza pitoresca. Com seus resplandecentes
raios, o sol veio, providencialmente, iluminar a torre, as rochas e as
muralhas; então, comecei a descrever-lhes esse cenário com entusiasmo.
Mas, como meu público estava de costas para os objetos elogiados e se
recusava afastar-se de mim, todas as cabeças giraram de repente [...]
para o objeto descrito. [...] Nada lhes poupei, nem sequer a hera que,
há séculos, tinha tido tempo para cobrir o rochedo e os muros com a
mais deslumbrante decoração."
Nesse episódio, verifica-se o confronto entre duas representações: a
primeira, familiar aos súditos do Antigo Regime, era a de um territó-
rio, cujos limites são materializados por diversos monumentos e cujo
controle dependia de um saber estratégico, objeto eventual de espiona-
gem. A representação estetizada de uma paisagem a ser desenhada ou
pintada — que ilustra, aqui, a categoria do sublime ou a do pitoresco
medieval — caracterizava, em compensação, o mundo das elites,
em particular o microcosmodos amadores de desenho.6 O homem
de gosto, estranho à comunidade tradicional, transformava-se aqui
no mentor de um orgulho local, propondo-lhe inscrever-se em uma
imagem que ele havia inventado — e que há de tornar-se rapidamente
um lugar-comum romântico. Para além da viagem pitoresca, da qual
ela participava com essa figura de desenhador de temas, a postura de
Goethe anunciava uma posição que, mais tarde, será ocupada pelo
5. Goethe, op. cit., p. 37 (14 set. 1786).
6. Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of
Nationalism, Nova York/Londres: Verso, 1991.
41
UMA REPRESENTAÇÁO DO SABER E DA MEMÓRIA
Inspetor dos Monumentos Históricos, na configuração imaginada, em
1830, pelo político influente e historiador François Guizot: trata-se da
capacidade de dirigir as consciências e os modos de apropriação dos
habitantes, graças a uma pedagogia política e cultural.' Entretempo,
o viajante tornar-se-á um expert, empossado de uma legitimidade
que, evidentemente, não existia nesse caso, já que ela é amplamente
a herança do momento revolucionário. Para a geração de 1820-1830,
a definição patrimonial das paisagens da França Antiga elaborou-se a
partir da tábula rasa dos velhos territórios políticos das províncias, de-
pois de ter sido aceita a nova divisão administrativa em departamentos:
na perspectiva, acalentada por Emmanuel Sieyès, de uma adunação
territorial, adaptada a uma nova arte política.8
A transferência da sacralidade
O segundo episódio remete à necessária articulação de um patri-
mônio com práticas, em face de um sensualismo que, por sua vez,
receia tanto mais os efeitos perversos de afinidades imprevistas que
ele está pronto a elogiar as consequências benéficas de identificações
legítimas, educativas ou patrióticas.
A propósito de uma estátua de Minerva do palácio Giustiniani,
Goethe descreveu os comentários da mulher do porteiro: impressio-
nada com a admiração suscitada nos ingleses por esse objeto, ela havia
concluído que se tratava de uma imagem sagrada de outrora; assim,
7. Para o Relatório referente à criação deste cargo, cf. Françoise Choay, A alegoria do
patrimônio, 3a ed., São Paulo: Unesp/Estação Liberdade, 2006, "Anexo", p. 259. [N.T.)
8. De acordo com Sieyès, o projeto de constituição da nação passa por um trabalho
de adunação — tendo em vista a unidade de cidadãos iguais pelo sacrifício dos in-
divíduos — que implica o novo corte departamental, a supressão das comunidades
e das distinções geográficas, em poucas palavras, uma divisão instrumental. Alain
Desrosières, La Politique des grands nombres, Paris: La Découverte, 1993, p. 43-48;
Pierre Rosanvallon, Le Peuple introuvable: Histoire de la représentation démocratique
en France, Paris: Gallimard, 1998. Para a fisionomia dessa ciência social, cf. Keith
M. Baker, "Closing the French Revolution: Saint-Simon and Comte", in François
Furet e Mona Ozouf (orgs.), The Transformation of Political Culture, Ie789-Ie848,
Oxford: Pergamon, 1989, p. 337 ss.
42
essas pessoas "professavam tal religião e ainda tinham o costume de
prestar-lhe adoração". "Ela acrescentou que, ultimamente, uma senhora
dessa religião tinha ficado de joelhos diante da estátua para adorá-la.
Como boa cristã, não pôde deixar de rir diante de um ato tão bizarro
e teve de sair da sala para não dar uma gargalhada." "Como eu próprio
não conseguia afastar-me da Minerva", prosseguiu Goethe, "a mulher
perguntou-me se, porventura, eu tinha uma amante parecida com
esse mármore por exercer tamanho atrativo sobre mim. Essa senhora
limitava-se a conhecer a devoção e o amor; assim, não podia ter qual-
quer ideia, seja da pura admiração por uma obra nobre, ou do respeito
fraterno pelo gênio do artista."9
O tema tornou-se recorrente em numerosos relatos de viajantes ou
de visitantes de museus. Semelhantes estereótipos suscitam a questão
da cristalização, para retomar a célebre análise stendhaliana do amor,
em face da ignorância. Nesse aspecto, Goethe não defendeu qualquer
proposição — quando, afinal, a retórica revolucionária e, em seguida,
suas versões progressistas ulteriores hão de conformar-se a um ideal
de educação. Em particular, o valor superior das obras de arte da An-
tiguidade culminará, na versão revolucionária, em um panegírico da
apropriação nacional, na perspectiva de uma regeneração: "A maior
parte dos monumentos da Antiguidade limita-se a oferecer aos súdi-
tos dos déspotas um espetáculo penoso, lembranças amargas e lições
inúteis, já que raramente eles tiveram coragem de tirar proveito desses
objetos. Pelo contrário, os povos livres apreciam ver em tais obras o
gênio das artes apoiado pelo gênio da Liberdade; elas servem-lhes de
modelos. Além disso, o gênero de estudo pelo qual a Grécia e a Itália
republicanas são associadas à França regenerada é uma das disciplinas
cujo gosto deve ser divulgado o mais amplamente possível e cujo ensino
deve ser facilitado."
9. Goethe, op. cit., p. 184 (Roma, 13 jan. 1787).
43
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
A construção do valor
No final de fevereiro de 1787, Goethe dirigiu-se, pela Via Appia,
de Roma para Velletri, sítio em que ele descobriu lugares "de uma be-
leza inexprimível" e, sobretudo, o museu do cavaleiro Borgia, espaço
ocupado por antiguidades e raridades de toda a espécie: "Seria imper-
doável não visitar, com maior frequência, este tesouro situado tão perto
de Roma; mas, o vínculo mágico que nos prende a esta cidade pode
servir de desculpa." A fórmula indicava a especificidade da Urbs e, por
extensão, de qualquer capital cultural: a distinção entre patrimônio
universal e patrimônios locais remetia a uma escala de excelência ou
de abundância, sem ser exclusiva de diferentes partilhas. No entanto,
o episódio é válido, sobretudo por enfatizar contestações imprevistas
relativamente ao valor dos objetos.
Ao deixar o gabinete Borgia 1°, Goethe foi, de fato, vítima de uma
brincadeira detestada por ele: "Ao nos dirigirmos para a estalagem,
algumas mulheres, sentadas diante da porta das casas, propuseram-nos
o seguinte: 'Os senhores não gostariam, também, de comprar anti-
guidades?' E como demonstrássemos nosso interesse, elas trouxeram
velhas caldeiras, atiçadores e outros utensílios em mau estado, dando
gargalhadas por nos terem pregado tal peça. Ficamos furiosos, mas
nosso guia tranquilizou-nos ao garantir que se tratava de uma brinca-
deira habitual e era um tributo a ser pago por todos os estrangeiros."
Essa espécie de vexame imposto aos incautos estrangeiros constituía
uma inversão carnavalesca da arte antiga à contemporânea, de um
gabinete de elite às baterias de cozinha com utensílios desgastados, o
que evocava forçosamente o deboche dos filósofos e dos historiadores
em relação aos antiquários que estariam interessados exclusivamente
pelas caçarolas e colheres dos Antigos — ver Diderot e seu desdém pelo
erudito Fougeroux.12 De qualquer modo, tais manifestações femininas
10. Cf. Marco Nocca (org.), Le quattro voci del mondo: Arte, cultura e saperi nella collezione
di Stefano Borgia Ie731-1804, Nápoles: Electa, 2001.
11. Goethe, op. cit., p. 208-209 (22 de fevereiro de 1787).
12. Em seu comentário a respeito de Recherches sur les mines d'Herculanum, por M.
Fougeroux de Bondaroi, 1769.
44
parecem negar, de antemão, qualquer tentativa de ordem pedagógica
ao zombarem do interesse que os estrangeiros ricos nutrem por "lem-
branças" antigas.
Se, nos dois primeiros episódios, permanece indene o amor próprio
do viajante, já que a ingenuidade encontra-se na origem de reações
ridículas ou incongruentes, neste último caso ele é achincalhado por
uma subversão do saber e do gosto. Após a Revolução Francesa, Quatre-
mère de Quincy defenderá a antiga afeição às obras, mesmo quando ela
está baseada em ilusões e erros, por dar testemunho de uma verdadeira
admiração ou, pelo menos, de um sentido de sua destinação ede seu
contexto. Mas as experiências de Goethe não têm relação com o mundo
pós-revolucionário — desse novo tradicionalismo que corresponde à
reviravolta anterior. Sua viagem dava testemunho de um mundo do
patrimônio amplamente incoativo, exposto a inúmeras contestações, e
que devia lutar para conseguir a legitimidade exclusiva na abordagem
das paisagens, lugares e objetos do passado. y
O monumento e a história
O dicionário de D'Aviler ( Cours d'architecture avec une ample explica-
tion par ordre alphabétique de tous les termes, 1761) definia o monumento
nestes termos: "qualquer construção que serve para conservar a memória
do tempo e de seu fabricante ou daquele para quem havia sido erguido,
tal como um arco de triunfo, um mausoléu ou uma pirâmide". O depu-
tado Armand-Guy Kersaint, em seu Discours sur les monuments publics,
pronunciado em 15 de dezembro de 1791, declarava igualmente
que "os monumentos são as testemunhas irrepreensíveis da história;
sem suas augustas ruínas, tudo o que ela nos transmitiu dos gregos e
romanos teria deixado a impressão de uma simples fábula" (p. VI).13
13. Sobre a teoria da arquitetura no século XVIII, cf. Françoise Fichet, La Théorie archi-
tecturale à l'âge classique, anthologie, Bruxelas: Mardaga, 1979; John Summerson, Le
Langage de l'architecture classique, Paris: Thames & Hudson, 1992; Werner Szambien,
Symétrie, goût , caractère: Théorie et terminologie de l'architecture à l'âge classique, 1550-
Ie800, Paris: Picard, 1986.
45
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
Por sua vez, o Dictionnaire des beaux-arts (1806) de Aubin-Louis Millin
continuava definindo o monumento como uma "obra de arte erguida
em uma praça pública para conservar e transmitir à posteridade a me-
mória das personagens ilustres ou dos acontecimentos notáveis [...],
uma obra de arquitetura em que as artes do desenho foram utilizadas
para falar à posteridade". Além disso, em sua acepção banal, o termo
é sinônimo de "túmulo".
Nas publicações neoclássicas, o monumento situava-se no topo de
uma escala implícita dos valores, como único digno de transmitir à
posteridade os sinais de uma civilização importante. Seu estudo har-
monizava-se com um credo estético, assim como ético-político. Desse
modo, a pirâmide representava para Étienne-Louis Boullée o monu-
mento por excelência, pelo fato de ter conseguido atravessar os séculos,
dando testemunho de um povo famoso pelo interesse manifestado por
seus mortos: "É óbvio que, ao erguer essa espécie de monumento, o
objetivo é perpetuar a memória daqueles a quem eles são dedicados.
Convém, portanto, que tais monumentos sejam concebidos de maneira
a desafiar os danos provocados pelo tempo; os egípcios deixaram-nos
exemplos famosos."14 No entanto, a passagem do monumento para o
santuário, nas versões negativas da história, ilustrava a transformação
da estátua em ídolo. Autor de Origine, progrès et décadence de l'idolâtrie
(1757), Guillaume-Alexandre de Méhégan assegurava que as estátuas
— inicialmente associadas aos túmulos — acabaram por se transfor-
mar em altares de divindades: "Esses túmulos foram convertidos aos
poucos em uma espécie de templos... Um primeiro movimento faz
quase sempre imaginar — sobretudo a homens rudimentares — que
as almas associadas às cinzas permanecem, de algum modo, com elas
e continuam habitando nos mesmos lugares."15
A convicção de que existe uma linguagem simbólica dos monu-
mentos era acompanhada e alimentada pela tarefa de inventário do
mundo antigo. Além disso, tratava-se de defender o princípio de uma
14. Étienne-Louis Boullée, Architecture: Essai sur l'art, apresentação de Jean-Marie Pérouse
de Montclos, Paris: Hermann, 1968.
15. ApudAnne Betty Weinshenker, "Idolatry and Sculpture in Ancien Regime France",
in Eighteenth-Century Studies, vol. 38, n. 3, 2005, p. 495-507.
46
linguagem compartilhada da arquitetura que refletisse os gostos e os
conhecimentos de diversas civilizações, ao serem contestados seus
fundamentos "naturais". O tratado do padre De Lubersac é um bom
resumo de tal campo de investigação (seu Discours sur les monuments
publics de tous les âges et de tous les peuples connus, de 1775, compreen-
dia igualmente uma análise crítica das fabriques — veja definição mais
abaixo — construídas nos jardins contemporâneos, tal como o parque
Monceau, em Paris), assim como o de Nicolas Le Camus de Mézières
(Le Génie de l'architecture ou l'analogie de cet art avec nos sensations,
1780), ele próprio autor de uma descrição do jardim pitoresco, sua
ambição final. Em seu livro Lettres sur l'architecture des anciens (1787),
Viel de Saint-Maux explicava a inspiração "simbólica" e "alegórica"
da arquitetura antiga: os templos da Antiguidade eram celebrações da
astronomia em todos os seus detalhes; cada forma e cada número eram
escolhidos por sua lição ou embelezados com alguma mensagem signi-
ficativa. A impossível decifração dos monumentos antigos não era seu
menor atrativo, no momento em que o hieróglifo passava por ser um
paradigma. Para Dominique-Vivant Denon, os monumentos egípcios
"eram os livros abertos em que a ciência era desenvolvida, a moral era
ditada e as artes úteis eram professadas; tudo falava, tudo era animado
e sempre com o mesmo espírito".16 Em um círculo interminável da
interpretação simbólica, o relatório de Lenoir, Antiquités mexicaines,
reconhecia, por sua vez, hieróglifos nos monumentos americanos.
De maneira geral, a arquitetura, "associada ao brusco desenvol-
vimento do urbanismo, à criação de novas cidades e à exumação das
cidades soterradas, é sem dúvida o mais amplo e mais bem caracterizado
domínio de aplicação — ou de projeção utópica — da arte neoclássica". 17
Os projetos de embelezamento urbano do século XVIII, as cidades
16. D.-V. Denon, Voyage dans la Basse et Haute-Égypte en 1798 et Ie799, Paris: Didot
l'Ainé, 1802, p. 180.
17. Jean Leymarie, prefácio de David e Roma, Roma: De Lucca, 1980, p. 10. Cf. sobre
esses temas: Allan Braham, L'Architecture des Lumières de Soufflot à Ledoux, Paris:
Berger-Levrault, 1982 (1. ed. em inglês, 1980); Helen Rosenau, "The Functional and
the Ideal in Late Eighteenth Century French Architecture", in Architectural Review,
t. 140, 1966; Antony Vidler, Claude-Nicolas Ledoux: Architecture and Social Reforme
at the End of the Ancien Régime, Cambridge: MIT, 1990.
47
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÁO DO SABER E DA MEMÓRIA
imaginárias das utopias iluministas, enfim, as festas da Revolução
Francesa acalentavam a ideia de um monumento público ideal que,
"pelas imagens oferecidas a nossos sentidos", deveria, de acordo com
Boullée, "estimular em nós sentimentos análogos ao uso a que ele é
destinado".18 Em seu livro Architecture (1847), Claude-Nicolas Ledoux
— precursor da arquitetura funcional — resumia o empreendimento
visado e seus desafios: "Se os artistas aceitassem adotar o sistema
simbólico que caracteriza cada produção, eles haveriam de adquirir
uma glória semelhante à que é atribuída aos poetas; dariam forma às
ideias de quem lhes solicita seu conselho e não haveria sequer uma
pedra que, em suas obras, não fosse significativa para os passantes" (I,
p. 115); à semelhança de um La Font de Saint-Yenne, que criticava
a cena de gênero ("o pintor historiador é o único que pinta a alma,
enquanto os outros limitam-se a pintar para seus olhos"), ele atacava
os "arquitetos do retrato" em nome do gênero monumental — dos
valores do memorial e da comemoração. Desse modo, o arquiteto
assemelha-se ao detentor da história e da memória das civilizações.
Kersaint abria seu Discours sur les monuments publics, pronunciado no
Conselho do Departamento de Paris, com esta fórmula: "É realmente
honrosa a ocupação — além de seu desígnio ser inteiramente digno de
glória — cujo objetivo consiste em transmitir, aos séculos vindouros,
monumentos que hão de suscitarsua admiração" (p. 3). Em tais
condições, compreende-se que a solidez dos monumentos presentes
possa garantir o novo regime da posteridade: "A confiança que deve
ser inspirada em relação à estabilidade de nossas novas leis irá apoiar-
se, por uma espécie de instinto, na solidez dos edifícios destinados a
conservá-las e a perpetuar sua duração".19 Essa era também a opinião
de Pierre Vignon, arquiteto da igreja da Madeleine (construída em
Paris de 1764 a 1842), evocando o restabelecimento das Academias
das Belas-Artes em 1814: "Os arquitetos são depositários da glória das
nações; muitas vezes, os monumentos erguidos por eles, e não tanto
18. É.-L. Boullée, op. cit., f. 70.
19. Mark K. Deming e Claudine de Vaulchier, "La Loi et ses monuments en 1791", in
Dix-Huitième Siècle, vol. 14, 1982, p. 117-130.
48
a história, é que servem de referência para julgar o poder dos reis e a
civilização dos povos do passado"."
O verbete "Monumento" do Dictionnaire (1806), de Millin, subli-
nhava que, em cada monumento, deviam ser levados em consideração
estes dois pontos: "Em primeiro lugar, o corpo, volume isolado que,
por uma forma agradável e particular, deve chamar a atenção; e, em
segundo lugar, o espírito, ou a alma, que deve produzir a impressão
principal que se pretende obter... Se a forma e o conjunto de um
monumento tiverem conseguido atrair o olhar do espectador, convirá
então que, ao aproximar-se, ele venha a encontrar todos os detalhes
em conformidade com sua destinação. Convém que, nos ornamentos,
nada haja que desvie a atenção do objeto principal, mas que sejam
análogos ao caráter do monumento. O que designamos por alma
de um monumento é sempre sua parte principal. Ela consiste seja
em inscrições, seja em figuras pintadas ou esculpidas que podem ser
históricas ou alegóricas. A expressividade dessas obras deve superar
a simples escrita porque, sem isso, dar-se-ia preferência a este (sic)."
Em 1813, Saint-Valery-Seheult, "arquiteto da história", revelava
"a engenhosidade e os grandes segredos da arquitetura histórica" em
termos exemplares: "Como será possível considerar a arquitetura?
Como uma linguagem, uma arte ou uma ciência? Tais são as questões
que terá de se formular aquele que se dedica a estudá-la. Ao considerar
um monumento, ele descobrirá que essa arte tem uma linguagem já
que o edifício deve conversar com o espectador e indicar-lhe o obje-
tivo pelo qual havia sido erguido. Uma linguagem é a totalidade das
palavras utilizadas por uma nação para exprimir suas necessidades e
seus pensamentos por meio de sons ou caracteres que falam aos olhos.
Ao exprimir diferentes sentimentos e pensamentos por caracteres
significativos, a arquitetura é, portanto, uma linguagem"21; eis o que
a distingue de uma construção [bâtiment] qualquer, "obra do meca-
nismo". Com efeito, a construção "é o resultado de uma necessidade;
20. Pierre Vignon, Sur le Rétablissement des Académies des Beaux-Arts, Paris, 1814.
21. A. Saint-Valery-Seheult, Le Génie et les grands secrets de l'architecture historique, Paris,
1813, p. 7-9.
49
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
seu objetivo consiste em preservar os homens das doenças, livrando-os
das intempéries sazonais. Ela está baseada nas proporções e na mecâ-
nica do corpo humano. Por sua vez, o monumento tem ambições mais
nobres e elevadas: sua origem foi ocasionada pelo desejo da glória; seu
objetivo consiste em conservar, para a posteridade, a lembrança de
algo importante. Trata-se de um templo da imortalidade, um poema
sublime, cuja poesia divina faz lembrar ao espírito, pelo órgão da visão,
as ações dos homens ilustres. Assim, uma construção tem a ver com a
arte de construir, enquanto o monumento refere-se à arquitetura". Em
suma, a arquitetura "não consiste, de modo algum, em juntar pedra
sobre pedra, mas [...] seu engenho reside na arte tão difícil de levá-las
a se exprimir ao espírito pelo órgão da visão". Um paralelo entre os
monumentos do México, do Egito e dos Incas — testemunho, entre
outros, dos múltiplos exercícios contemporâneos sobre o mesmo
tema — permitiu que o autor tirasse a conclusão relativamente a
uma linguagem primitiva, extraída da natureza, que havia sido mantida
na arquitetura e devia ser utilizada, de preferência a qualquer outra,
na composição dos monumentos, mesmo que seja admitido acrescen-
tar-lhe inscrições. "As linguagens vulgares confundem-se e perdem-se
nas mudanças ocorridas na superfície do globo; por sua vez, a lingua-
gem da arquitetura é imutável e seus poemas brilham sempre com
o mesmo resplendor [...]. O aspecto do monumento deve indicar
o motivo que esteve na origem de sua construção; os caracteres da
linguagem da arquitetura devem, também, indicá-lo; deve ser evitado
tudo o que seja estranho a seu tema... Os caracteres ou ornamentos
devem lembrar esse pensamento e, em geral, tudo deve ser circunscrito
ao tema escolhido pela arquitetura... [...]. Ao formar o paralelo entre
os monumentos repletos de inscrições em linguagens vulgares e aqueles
em que os caracteres da linguagem primitiva indicam ao espírito o
motivo que esteve na origem de sua construção, ficamos convencidos
da superioridade dos últimos, já que eles se referem, ao mesmo tempo,
ao coração e à imaginação. Nem por isso deixa de ser verdade que é
possível tolerar os caracteres dessas linguagens nos edifícios... pode-se
formar inscrições que repetem o pensamento já traçado pelos carac-
teres da linguagem primitiva; mas, nesse uso, deve haver parcimônia.
50
Convém que a linguagem utilizada para formar tais inscrições seja a
da nação que ergue o edifício."22
A aplicação desses princípios de "distinção" entre a arte e o útil
culminou em uma tipologia dos monumentos, mais ou menos ex-
plícita, segundo os autores ou os arquitetos. Para Kersaint, os monu-
mentos comemorativos simples, sob a forma de estrelas ou pirâmides,
distinguiam-se dos monumentos públicos mistos — tais como mu-
seus, templos e bibliotecas —, que, além de cumprirem uma função
bem definida, desempenhavam um papel comemorativo. A propósito
do concurso promovido pelo administrador da Região do Ródano, visando
a construção de um monumento em homenagem a Bonaparte, na place
Bellecour, em Lyon, o arquiteto Goulet estabelecia uma distinção seme-
lhante: "Parece-me que há uma grande diferença entre um monumento
público, propriamente dito, e um monumento triunfal. Por monumentos
públicos, deve-se entender um chafariz, uma ponte, um mercado co-
berto, uma bolsa de valores, assim como todos os prédios destinados ao
uso e às necessidades da vida pública; no entanto, entre eles, não podem
ser incluídos os edifícios dedicados à glória dos homens importantes ou
à memória de um acontecimento notável. Os primeiros devem exibir a
marca da simplicidade e da severidade, enquanto os outros devem ser
luxuosos, elegantes e magnificentes; portanto, é impossível confundi-los.
[...] Com efeito, a utilidade do objeto é que irá impressionar sempre
o comum mortal, enquanto o herói estará presente apenas como deco-
ração acessória ou somente para fornecer seu nome ao monumento.""
A preeminência atribuída pelos dois textos ao monumento "comemo-
rativo" ou "triunfal" é bastante característica. Ocorre que o impera-
tivo de utilidade pública leva, muitas vezes, a uma fusão dos gêneros
— correndo o risco de ameaçar a legibilidade do monumento sob a
quantidade de informações a serem transmitidas.
22. Ibidem, p. 17-18.
23. "Réflexions sur un monument à élever à Bonaparte par le citoyen Goulet, architecte
et adjoint-maire du VF arrondissement de Paris", in Journal des Bâtiments, n. 137, 6 de
nivôse do ano X, p. 20-22. De forma mais geral, consultaremos Bruno Klein, "Napo-
leons Triumphbogen in Paris und der Wandel der offiziellen Kunstanschauungen im
Premier Empire", in Zeitschrift für Kunstgeschichte, vol. 59, n. 2, 1996, p. 224-269.
51
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMAREPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
O cúmulo do monumento "escrito" foi atingido, sem qualquer
dúvida, com a proposição do arquiteto Goulet no sentido de erguer
um monumento destinado a conter todas as leis francesas, chamado
Templo das Leis: uma rotunda rodeada por quatro galerias ofereceria
uma superfície de 4.800 m2 em que seriam inscritas, em mesas salientes
e amovíveis, com caracteres bastante legíveis, todas as leis ou códigos
da República. Essa proposta inscrevia-se em uma série de projetos de
monumentos enciclopédicos a serviço da comemoração e da história
nacional francesa.24
Em 16 de vendémiaire e em 16 de nivôse do ano X, o Journal des
Bâtiments publicava um projeto de "coluna nacional no centro de
uma porção de mapa-múndi formando a planta geral da França, no
meio do Carroussel, desimpedido das casas". No pátio do Louvre seria
erguida, em um pedestal octogonal, uma coluna de 10 metros de raio
por 135 metros de altura: "Que a torre seja decorada, por dentro e por
fora, em toda a sua altura, por quinze andares de relevos circulares; em
torno de cada um, serão abertas, perpendicularmente às oito faces do
pedestal, oito janelas — portanto, um total de 120 — para fornecer
o máximo de luminosidade ao interior do edifício, formando o com-
partimento das molduras dos quadros de todos os departamentos da
República. Em cada um desses grandes quadros, ver-se-á não só a carta
geográfica de um departamento, suas produções territoriais e indus-
triais, suas cidades, aldeias e lugarejos, mas também o quadro de seu
mérito à vitória." Uma dupla escadaria interna levará a cada patamar
que "será rodeado por uma galeria ou por um simples balcão interior,
com assentos à sua volta a fim de que cada visitante, calmamente, de
patamar em patamar, possa observar cada parcela da França. Os depar-
tamentos mais próximos da capital estarão no primeiro andar e os
mais afastados encontrar-se-ão na parte mais alta da torre". No topo,
uma plataforma octogonal receberá uma coluna que, em cima de um
capitel de mármore negro, carrega uma estátua colossal da República
24. Cf. Goulet, Observations sur les embellissements de Paris et sur les monuments qui sy
construisent; projet d'architecture et d'amélioration; suivis d'une nouvelle distribution des
arrondissements municipaux de Paris et d'un essai sur les contributions, 1808, p. 13-14.
52
Francesa. No interior da coluna, será colocada uma cúpula com um
chafariz de água e de fogo: por ocasião das festas, ele servirá de facho
luminoso para os parisienses. "Finalmente, o detalhe mais belo desta
coluna nacional — aliás, o recinto do Louvre dará a impressão de
formar sua estilóbata — será seu andar térreo, erguido cerca de um
metro acima do chão. Aí, será possível ver, entre os quatro pórticos,
os amplos quadros das principais vitórias do imortal Bonaparte."25
Esse programa pretendia monumentalizar, de certa maneira, o ter-
ritório nacional, graças à representação cartográfica. O século XIX
forjará, pelo contrário, diversos museus imaginários do solo francês,
graças ao livro de Taylor e Nodier, Voyages romantiques et pittoresques
dans l'Ancienne France — narrativas destinadas, desta vez, não para
celebrar as vitórias da nação moderna, mas sobretudo para esboçar a
falência de suas tradições e de seus monumentos antigos.26
O território da Cidade
Entre as imagens constantes do território humano, perfila-se a de
uma organização espacial da Cidade que deve ser mantida e remanejada,
bem cuidada e protegida.27 A lição da semântica revela, aliás, como a
palavra "território" evoca ideias de apropriação, de apossamento ou, no
mínimo, de uso.28 Esse imaginário do território manteve regularmente
uma relação estreita com a estética, enunciando diferentes figuras
mediante as quais a paisagem adquire sentido. No Renascimento,
a redescoberta da Antiguidade clássica foi acompanhada por uma
série de dispositivos e de figuras que visavam elaborar um território-
25. B*** amador e Campmas (engenheiro hidráulico), in Journal des Bâtiments, n. 115;
e, depois, n. 140, p. 69.
26. Para a vertente alemã do fenômeno relacionado com a nova representação das ruínas
do passado, cf. Peter Fritzsche, Stranded in the Present: Modern Time and the Melan-
choly of History, Cambridge: Harvard University Press, 2004, p. 98-127.
27. David Storey, Territory: The Claiming of Space, Harlow: Prentice Hall, 2001.
28. Nesse sentido, cf. Leo Spitzer, "Milieu et Ambiance: An Essay in Historical Semantics",
in Philosophical and Phenomenological Research, vol. III, 1942-1943, p. 1-42, 169-218.
53
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
-patrimônio — na França, reinventou-se a Gália —, promover a criação
de gabinetes de curiosidades, além de refletir sobre a engenhosidade
mecânica." O exemplo mais célebre foi a proteção das antiguidades,
iniciada pelo Papado. O território do príncipe, no século XVI, tornou-
se objeto de uma "captura" no âmago de uma reflexão sobre os lugares
que pretendia ser ciência da classificação universal", entrando, assim,
com tudo o que ele continha e evocava, nos programas do gabinete
das curiosidades: como programa ideal de compendium principesco,
as Inscriptions ou titres du théâtre magnifique de Samuel Quiccheberg
repertoriam, na primeira classe, tudo o que se referia à "regio" do
fundador do Théâtre. Essa seção do gabinete das curiosidades reunia
plantas geográficas, figuras de antepassados, genealogias, referenciais de
sua cidade, exemplos de plantas e de animais.31 No decorrer do século
XVIII, a política em relação à herança material do passado deu lugar a
um imaginário do santuário tanto nos diferentes dispositivos utópicos,
quanto na literatura dos antiquários ou nos escritos "esclarecidos".32
O essencial da literatura sobre as cidades, do século XVI ao XVIII,
compunha-se por "Antiguidades" e outros guias dos monumentos urba-
nos. Daniel Roche procedeu à análise minuciosa do inventário lavrado,
em 1719, por P. Lelong em sua Bibliothèque historique de la France
29. Roberto Weiss, The Renaissance Discovery of Classical Antiquity, Oxford: Blackwell,
1969; Horst Bredekamp, La Nostalgia de l'antique: Statues, machines et cabinets de
curiosités, Paris: Diderot, 1996; Frédérique Lemerle, La Renaissance et les antiquités
de la Gaule, Bruxelas: Brepols, 2005.
30. Frances Yates, L'Art de la mémoire, Paris: Gallimard, 1975; Oliver Impey e Arthur
MacGregor, The Origins of Museums, Oxford: Clarendon, 1985; e Antonella Lugli,
Naturalia et Mirabilia: Les Cabinets de curiosités en Europe, Paris: A. Biro, 1983.
31. Cf. sua tradução definitiva e seu estudo por Nicolette Brout, "Le Traité muséologi-
que de Quiccheberg", in L'Extraordinaire jardin de la mémoire, Gilly: Musée royal
de Mariemont, 2004, p. 69-135. Jan C. Westerhoff, "A World of Signs: Baroque Pansemioticism
, the Polyhistor and the Early Modern Wunderkammer", in journal of
the History of Ideas, vol. 62, n. 4, 2001, p. 633-650, fornece o estado das pesquisas,
cm particular, sobre Camilo e Quiccheberg.
32. Nesse aspecto, inspiramo-nos em Louis Martin e em seu comentário por Stephen
Bann, "Shrines, Curiosities, and the Rhetoric of Display", in Lynne Cooke e Peter
Wollen (orgs.), Visual Display: Culture beyond Appearances, Dia Center for the Arts,
Seattle: Bay, 1995, 15-29; "Shrines, Gardens, Utopias", in New Literary History, vol.
25, n. 4, 1994, p. 825-837.
54
contenant le catalogue de tous les ouvrages tant imprimés que manuscrits qui
traitent de l'histoire du Royaume ou qui y ont rapport: em 17.487 obras
repertoriadas, 2.506 referiam-se diretamente ao passado das cidades (ou
seja, cerca de 15%). Ao lado dos escritos sobre a história eclesiástica e
sobre a pesquisa da origem da cidade (no desfilar dos títulos, verifica-se
o crescimento do número das antiguidades ou das obras de arte antigas),
um terceiro gênero descrevia os monumentos ao lembrar constantemente
o passado doqual esses lugares haviam sido as testemunhas. Assim este
título de 1600: Les Antiquités, les fondations et singularités des plus célèbres
villes, châteaux et places remarquables du royaume de France, avec les choses
les plus remarquables advenues en icelui. Na segunda metade do século
XVIII, todavia, "aparecem as imagens funcionais da cidade, focalizadas
na beleza e utilidade dos centros urbanos"". O gênero passava do mo-
numental para o funcional: desde o final do século XVII, "o guia dos
monumentos amplia-se para incluir as instituições e atividades próprias
de cada cidade"34.
Nos séculos XVI e XVII, o interesse pelas Antiguidades orientava
seus esforços para o religioso, para a evolução das ordens, para a fun-
dação dos edifícios do culto e para os vestígios da história, tais como
epitáfios ou decretos de fundação. No decorrer do século XVIII, a
categoria dos objetos notáveis indicava o que merecia ser visto, o que
era digno de satisfazer a curiosidade dos estrangeiros e dos habitantes.
A própria estrutura dos guias coincidia, aos poucos, com a dos catá-
logos: tratava-se de repertoriar o conjunto das riquezas artísticas. Para
L'Almanach Parisien, era motivo de vanglória o fato de indicar, "por
ordem alfabética, todos os monumentos das belas-artes disseminados
na cidade de Paris e arredores, assim como os lugares relevantes pela
grandeza do desenho ou por seus painéis de pintura e de escultura:
edifícios sagrados, castelos e mansões régias, palácios, palacetes, prédios
públicos e casas de lazer". Sua ambição era sublinhada nestes termos:
"Por esta palavra, entendemos todos os Edifícios, tanto sagrados como
33. Jean-Claude Perrot, Genèse d'une ville moderne: Caen au XVIIIe siècle, Paris/La Haye:
Mouton, 1975, 2 vols., I, 1, p. 17-27.
34. Roger Chartier, Histoire de la France urbaine, Paris: Le Seuil, 1981, 3, p. 174.
55
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
profanos, que são o resultado não só da devoção de nossos Reis e de sua
magnificência, mas também do zelo e do amor de seus Súditos por
sua Pessoa sagrada. Uns são destinados a lembrar a memória de algum
evento; outros estão a serviço dos Cidadãos. Em uma palavra, trata-se de
todos os lugares em que as Artes desenvolveram sua engenhosidade para
erguer seja um Templo augusto, seja a representação de um grande Rei,
cujo bronze exprime seus traços no centro de uma Praça pública; seja dos
Troféus sob o símbolo de uma Porta.""
Brice, Dezallier d'Argenville e Thiéry contribuíram, através de seus
guias, para criar uma cultura parisiense. Semelhante abundância de obras
correspondia a uma importante demanda, de acordo com a observa-
ção de Hébert e Alletz, autores de L'Almanach Parisien, no prefácio da
la edição, em 1761: "O gosto pelas artes ganhou todos os estados porque,
atualmente, pretende-se saber um pouco de tudo e ser capaz de proferir
uma opinião; além disso, convém acomodar-se ao gosto de seu século."
No momento em que o conhecimento da cidade, lugar de expressão
privilegiada do engenho humano, se tornou indispensável, o Guide
des amateurs (1787) de Thiéry repertoriava, em seu prefácio, "todos os
monumentos antigos e modernos, estabelecimentos úteis, manufaturas,
gabinetes de curiosidades, enfim, todos os outros objetos interessantes".
Entre os visitantes estrangeiros, os ingleses do grand tour36 mostravam
uma particular avidez por itinerários que levassem à descoberta das ci-
dades do continente europeu. Em seu guia prático — The Grand Tour...
(Londres, 1749), em quatro volumes —, Thomas Nugent empenhava-se
em organizar minuciosamente a visita da capital francesa: o viajante deve
começar pelo Palais-Royal, ao qual pode dedicar três dias para contemplar
sua coleção de quadros. Em seguida, ele vai contemplar Saint-Sulpice e
os Invalides antes de visitar as academias, o Jardin des Plantes e as ma-
nufaturas (Gobelins, Savonnerie...). No ano seguinte, o guia de William
Lucas recomendava em primeiro lugar o Louvre e, em seguida, as Tuileries
35. Cf. Gales Chabaud, Évelyne Cohen et al. (orgs.), Les Guides imprimés du XVI' au XXe
siècle: Villes, paysages, voyages, Paris: Belin, 2000.
36. Expressão para designar uma tradicional viagem de aprendizagem pela Europa,
empreendida principalmente por jovens aristocratas ingleses no século XVIII. [N.T.]
56
e o Palais-Royal.37 Em 1787, na 9á edição de Gentlemen's Guide in this Tour
through France, Thomas Martyn apresentava um percurso bastante com-
pleto, característico dos gostos e interesses do final do século: academias,
gabinetes de curiosidades, galerias, palácios, bibliotecas e monumentos
figuram nessa descrição como outras tantas visitas obrigatórias. Todas
essas obras fornecem uma "leitura" da cidade que legitima a afirmação de
Roland Barthes segundo a qual "falamos de nossa cidade simplesmente
ao habitá-la, ao percorrê-la e ao observá-la".
A vinda dos viajantes, extremamente lisonjeira para estimular o
orgulho local, tinha um interesse econômico; portanto, cada cidade
empenhava-se em preservar e valorizar seus monumentos, em particular
se ela tinha o privilégio de dispor de algumas obras de arte antigas. Em Nîmes
, a deliberação municipal de 13 de julho de 1643 lembrava que
"as Antiguidades — servindo de decoração à cidade — são tão consi-
deráveis e possuem uma tão elevada reputação que as populações mais
estranhas vêm dos lugares mais recuados para visitá-las e admirá-las,
o que deve emocionar, em igual proporção, o coração dos habitantes
da dita cidade de Nîmes no sentido de conservá-las religiosamente e
impedir que fiquem em ruínas, sejam demolidas e soterradas". Desde
sua criação, em 1683, a Académie Royale de Nomes apresentava-se
como a garantia do respeito que a cidade deve manifestar por suas
obras de arte antigas. No século XVIII, a municipalidade explicitava
as vantagens a auferir da manutenção dos monumentos nestes termos:
"Os monumentos antigos que dão prestígio à cidade por sua beleza
inimitável seriam, então, mostrados ao visitante estrangeiro, sempre
ávido e curioso em observá-los e admirá-los; tais monumentos, menos-
prezados atualmente, seriam indubitavelmente bem cuidados se o habi-
tante pudesse orgulhar-se de usufruir livremente de sua contemplação,
além de constatar que o estrangeiro se beneficia da mesma fruição."
38 '
37. William Lucas, A Five Weeks Tour to Paris, Versailles, Marli,&c.: Shewing the Different
Charge Attending one, two, or four Persons through This Tour, and the Most Reasonable and Pleasurable
Method of Performing it: with an Accurate Description of Paris and the Neigh-
bouring Palaces, Gardens, Water-Works, Paintings, etc..., 2. ed. London: T. Waller, 1752.
38. Line Teisseyre-Sallmann, "Urbanisme et société: 1:Exemple de Nimes aux XVII' et
XVIII' siècles", in Annales ESC, 1980, p. 982.
57
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
Esse exemplo provincial remetia, em um movimento patrimonial
clássico que vai das pequenas às grandes pátrias, a um fenômeno de escala
europeia, focalizado na maior coleção de monumentos antigos da Cidade
por excelência, ou seja, Roma. A partir dos editos — Albari de 1733, e
Valenti de 1750 —, o interesse "turístico" inscrevia-se, de fato, cada vez
mais entre as preocupações oficiais. No âmago da estética neoclássica,
verificou-se o aparecimento de uma cultura e de uma política da conser-
vação, no exato momento em que um grande número de obras de arte
era espalhado através da Europa. Entre 1784 e 1789, Giuseppe Antonio
Guattani publicou o primeiro periódico dedicado, em grande parte,
à arqueologia: os Monumenti Antichi Inediti Ovvero Notizie Sulle Antichità
e Belle Arti di Roma. Certamente, os museus pontificais participaram
da busca exasperada das obras-primas, mas sua pretensão limitou-se
a reunir exempla suscetíveis de ilustrar a história da arte nascente, em
detrimento dos objetos boni ma non singolari, que, aliás, poderiam ser
exportados sem prejuízo.De qualquer modo, o tecido conjuntivo das
obras-primas, as obras menos acabadas ou as minores, foram adquirindo
uma importância cada vez maior. Desde o final desse século, os princi-
pais estados italianos dispunham de uma legislação destinada a evitar a
dispersão de suas riquezas artísticas: o caso romano é particularmente
revelador." Finalmente, Arnaldo Momigliano mostrou que o novo inte-
resse pelas sociedades antigas pré-romanas, em particular pelos etruscos,
povo desprovido de tradição literária, correspondia a um culto inédito
pelas identidades locais e regionais, como é comprovado pela emergência
de histórias de diferentes "pátrias" italianas, ao mesmo tempo que dava
satisfação à importância crescente das antiguidades na escrita da história.40
39. Cf. o balanço apresentado, recentemente, por Valter Curzi, Bene culturale e pubblica
utilità: Politiche di tutela a Roma tra Ancien Regime e Restaurazione, Bolonha: Minerva,
2004.
40. Cf. Melissa Calaresu, "Images of Ancient Rome in Late Eighteenth-Century Neapoli-
tan Historiography", in Journal of the History of Ideas, vol. 58, n. 4, 1997, p. 641-661.
Sir William Hamilton identifica-se com o registro napolitano, relacionado com a
paisagem e com os objetos arqueológicos; cf. Volcanoes and Vases, Londres: Bristish
Museum, 2000. Os monumentos do território nacional podem ser, também, objeto de
representações em série, segundo um projeto de coleção de lugares de prestígio à glória
do artista: Julius Bryant, Turner Painting the Nation, Londres: English Heritage, 1996.
58
Neste aspecto, verificava-se a ligação íntima entre a nova representação
da inscrição da memória cultural e o programa de histórias patrióticas
inéditas: primeiro exemplo, sem dúvida, de uma reconfiguração, cujo
testemunho será dado, na sequência, pela França revolucionária, de
acordo com outras modalidades.
O caso de Herculano e de Pompeia ilustra outra importante muta-
ção: o surgimento de preocupações éticas e políticas na sensibilidade à
arqueologia que, ulteriormente, assumiram uma importância conside-
rável, em particular sob a ocupação francesa.'" O gosto, tão relevante
no século XVIII, pelo material da arte culminou aqui na paixão de
argumentar a propósito da técnica das escavações: assim, cada viajante
ou visitante arrogava-se o direito de saber o que deveria ter sido feito
— em geral, condenando a gestão dos sítios arqueológicos.42 A famosa
carta aberta do historiador da arte e arqueólogo alemão J. J. Winckel-
mann, em 1762, marcou uma data nesse aspecto (Lettre de M. l'abbé
Winckelmann à M le comte de Brühl sur les découvertes d'Herculanum,
1764): o antiquário manifestava seu apoio — sobretudo contra Alcu-
bierre — à atividade desenvolvida, entre 1750 e 1765, pelo engenheiro
militar suíço Karl Jakob Weber, que tinha intenção de publicar o
resultado de seu trabalho, de maneira sistemática, relacionando as anti-
guidades com seus sítios arqueológicos e mobilizando o maior número
possível de fontes. Depois de seu óbito — por esgotamento —, seus
documentos serviram a Francesco La Vega para extrair a planta geral de
Pompeia e para fazer a proposta no sentido de elaborar uma história das
escavações; apesar disso, a curiosidade erudita internacional continuava
sendo alimentada por publicações respaldadas a partir de informações
clandestinas, fora da corte dos Bourbons e do círculo oficial da arqueo-
logia "vesuviana"43. Paralelamente, assistia-se à proliferação dos "guias
do estrangeiro", consequência do fluxo dos viajantes: para cada coleção,
41. Ronald T. Ridley, The Eagle and the Spade: Archaeology in Rome during the Napoleonic
Era, Cambridge: Cambridge University, 1992.
42. Nancy H. Ramage, "Goods, Graves and Scholars: 18th-Century Archaeologists in
Britain and Italy", in American Journal ofArchaeology, vol. 96, n. 4, 1992, p. 653-661.
43. Christopher Charles Parslow, RediscoveringAntiquity: Karl Weber and the Excavation
of Herculaneum, Pompeii and Stabiae, Cambridge: Cambridge University, 1995.
59
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
eles enumeravam as etapas de sua formação e descreviam, sala por sala,
os objetos expostos. A obra Le Antichità di Ercolano esposte con qualche
spiegazione, publicada em Nápoles de 1755 a 1792, correspondia a uma
dessas tentativas — desta vez oficial — de colocar em ordem, em um
enquadramento histórico e tipológico, o enorme material descoberto,
além das descrições parciais dos múltiplos relatos de viagem.
Assim, generalizava-se a convicção de uma responsabilidade coletiva
em relação às obras-primas universais, para não falar das antiguidades de
menor importância44; ao mesmo tempo, eram apresentados projetos para
museus de cópias. Com certeza, desde a origem do cânon das Antigui-
dades, as tentativas de moldar as mais belas estátuas correspondiam ao
desígnio de cada país no sentido de se apropriar dos cânones do Belo para
fornecer seus modelos aos artistas jovens." Entretanto, sob a influência
das viagens à Itália e da constituição da estética como concepção geral da
arte em detrimento dos discursos especializados anteriores, o século XVIII
forjou a ideia de que a arte deve servir para divulgar a educação e, por
conseguinte, prossegue o desígnio de colocar à disposição, de forma
cômoda e sistemática, seus exemplos mais belos. Os projetos de cópia,
em mosaico, das Stanze do Vaticano definiam implicitamente a noção de
"responsabilidade coletiva na conservação"46. Em seu livro Réflexions cri-
tiques sur les différentes écoles de peinture (1752), Boyer d'Argens sugeria
tal iniciativa e acrescentava: "Os custos seriam consideráveis: mas todas
as nações que se vangloriam de seu apreço pelas artes deveriam contribuir
para essa operação". O presidente do parlamento da Borgonha, Ch. de
Brosses — autor de Lettres écrites "-alie, que relatam uma viagem à Itália
(1739-1740) —, chegou a imaginar o estabelecimento em Versalhes de
um museu de cópias, julgando que "seria uma despesa digna do Rei se
ele contratasse operários para executar, em uma das amplas galerias, em
Versalhes, os grandes afrescos de Rafael".
44. Jacques Guillerme, "La Naissance du sentiment de responsabilité collective dans la
conservation", in Gazette des Beaux-Arts, vol. 65, 1965.
45. Francis Haskell e Nicholas Penny, Pour l'Amour de l'antique, Paris: Hachette, 1988.
46. Jacques Guillerme, "Monument/monumentalité: De la Plénitude des symboles à la
fascination du vide", preâmbulo de Marilu Cantelli, L'Illusion monumentale, Liège:
Mardaga, 1991, p. 7-13.
60
A expressão mais nítida dessas exigências foi apresentada por J. J.
de Lalande, que, em um livro sobre sua estada na Itália, escreveu
o seguinte: "A manutenção desses monumentos, assim como o respeito
que lhes é devido, nada tem a ver com algum preconceito, convenção
ou interesse. A Filosofia e a Política devem levar-nos a conservar os
monumentos dos homens ilustres, como um germe para produzir ou-
tros: aliás, deve-se perpetuar a lembrança dos Impérios que ocuparam
a terra; seus progressos e sua queda são uma lição para nós. [...] Seria
uma magnificência bem digna de um grande Rei e de um Estado po-
deroso se eles mandassem construir propositalmente uma vasta galeria
para reunir as cópias, em mosaico, dos afrescos mais famosos que se
encontram na Itália [...], distribuindo-os em boa ordem e de forma
atraente no meio de uma esplendorosa arquitetura."47 O expediente da
cópia correspondia a um sonho de ubiquidade das obras-primas, assim
como a um ideal de seriação de monumentos paradigmáticos para o
uso não só dos estudantes das academias, mas também dos connaisseurs.
O jardim e suas fabriques: uma melancolia cívica
Do triplo ponto de vista — construção de monumentos "históri-
cos"; forma de organizar sua reunião; e, por último, seu comentário
por um guia —, o jardim das ilusões era um dispositivo essencial do
patrimônio imaginadopelo século XVIII. Perambulando por seus
atalhos tortuosos, passa-se de continente em continente, ou de século
em século. Um dos mais belos jardins ingleses é o de Milord Stowe,
que contém o número expressivo de 38 monumentos: Templo de Vê-
nus e de Baco, pirâmides, igrejas góticas, etc. Ele é célebre na Europa
inteira e, em um de seus livros, Rousseau serviu-se de M. de Wolmar,
ao acompanhar Saint-Preux em seu pomar, para afirmar o seguinte:
"O mestre e o criador desta sublime solidão mandou construir neste
local até mesmo ruínas, templos, edifícios antigos; assim, os tempos
47. J. J. Lefrançois de Lalande, Voyage d'un français en Italie, fait dans les années 1765 &tc
, 1769, p. 546, 571.
61
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
e também os lugares são reunidos neste espaço com uma magnificência
bem superior à da natureza humana."48 O passeio entre as fabriques,
disseminadas no meio desses "territórios" [pays], convidava o espectador
a uma exploração dos lugares e dos tempos. Essa moda — criticada,
em parte, no final do século — pretendeu "elaborar a maior variedade
possível de construções à força de amontoar, em um espaço reduzido,
as produções de todos os climas e os monumentos de todos os séculos,
ou concentrar em um recinto fechado, por assim dizer, o universo
inteiro".49 Assim, o jardim do século XVIII inscrevia-se em uma longa
tradição do espaço da coleção e da exposição, entre Éden e Jerusalém
Celestial ou Utopia."
"Fabrique" significava, ainda em 1756, na definição de Watelet
para a Encyclopédie: "Qualquer construção que se identifica por sua
representação." No entanto, rapidamente o termo acabou por designar
uma pequena construção erguida em um jardim, evolução de sentido
que esclarece a concepção dos parques em que a Natureza era con-
figurada de acordo com Le Lorrain, Ruysdaël e Vernet.51 Para Dora
Wiebenson, as origens do Bosque dos Túmulos [Bois des Tombeaux],
cujas imagens são numerosas, mesmo antes de 1780 (Île des Tombeaux,
nos jardins de Bagatelle, em Paris; Vallée des Tombeaux, em Betz, perto
de Ermenonville, no norte da Bacia Parisiense), encontravam-se nas
publicações de ornamentos arquiteturais de Delafosse, Le Geay e
Cuvilliès, editadas no final da década de 1760. "A vulgarização de
uma noção de estudo relativa a estilos históricos de ornamento para
a ampliação do número dos modelos à disposição dos artistas poderia
ter começado com a obra Recueil d'antiquités, do conde de Caylus,
48. Rousseau, Julie ou La Nouvelle Héloïse, 1761, 4' parte, carta XI, Paris: Garnier/
Flammarion, p. 363.
49. René-Louis de Girardin, De la Composition des paysages, ou des moyens d'embellir la
nature autour des habitations, en joignant l'agréable à l'utile (Genebra, 1777), Paris:
Champ Urbain, 1980, p. 20.
50. Cf., em uma abundante literatura, a síntese recente de Maria Clara Ruggieri Tricoli,
Il Richiamo dell'Eden: Dal collezionismo naturalistico all'esposizione museale, Florença:
Vallecchi, 2004.
51. Monique Mosser, Jardins en France Ie760-1820, Paris: CNMHS, 1977, p. 21-24;
"Des jardins", in Revue de l'Art, n. 129, 2000.
62
coletânea publicada a partir de 1752 com essa intenção. A origem
derradeira desse interesse pelos estilos históricos e exóticos é, certa-
mente, o Entwurff einer historischen Architectur, do arquiteto e escultor
austríaco J. B. Fischer von Erlach, publicado em 1721."
A porta chinesa, a tenda turca e até mesmo as ruínas góticas no
parque Monceau, em Paris, foram concebidas de acordo com essa
tradição baseada em uma apresentação compreensiva da arquitetura
do passado e de países longínquos, mesmo que, "a partir da década
de 1770, essas estruturas exóticas sejam mostradas não tanto como
a exposição engenhosa de conhecimentos acumulados, mas com um
espírito de deleite que inclui, em parte, o desejo ardente por aventuras
e por viagens em países fantásticos, em tempos e lugares longínquos".52
O acúmulo de monumentos expostos no jardim mostrava, de qualquer
modo, uma "imagem mundial" que, segundo os casos, trazia a marca dos
conhecimentos geográficos ou limitava-se aos grandes impérios, cuja exis-
tência era reconhecida pela historiografia tradicional, particularmente
maçônica. Os jardins organizavam uma encenação de acordo com
as recomendações dos guias: o do duque D'Harcourt, por exemplo,
prescrevia "a ordenação dos diferentes elementos de forma apropriada".
Devia-se dispor, de acordo com o resumo do historiador da arte Jurgis
Baltrusaitis, "pinheiros e carvalhos druídicos em torno dos edifícios
góticos; palmeiras à volta de quiosques muçulmanos; salgueiros,
espelhos de água e rochedos em torno dos pavilhões chineses"." Em
suma, o jardim fornecia uma moldura bem definida para cada tipo de
monumento, à maneira de uma museografia do contexto.
A disposição geral dos jardins, a situação das fabriques, a localização
dos cursos de água e a orientação espacial correspondiam às preocupa-
ções dos grandes tratados de pintura, em particular o de Roger de Piles,
e incluindo a obra de A. de Laborde, Description des nouveaux jardins
de France et de ses anciens châteaux, publicada em 1808 (conhecida por
"Laborde", por descrever admiravelmente os jardins de seu tempo). Por
sua vez, René-Louis de Girardin organizou o passeio como se tratasse
52. "Le parc Monceau et ses fabriques", in Monuments Historiques, n. 5, 1976, p. 18.
53. Jurgis Baltrusaitis, "Jardins et pays d'illusions", in Traverses, n. 5-6, 1976, p. 94-119.
63
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
do percurso de uma galeria, passando dos quadros pequenos de cavalete
para o quadro principal do ateliê. Ele delineou um "atalho dos pintores",
evocado pelo livro Itinéraire des jardins d'Ermenonville, nestes termos:
"Ao ter o ardente anseio de seguir as pegadas dos grandes mestres, o
jovem estudante encontrará, em cada etapa desse atalho, matéria para
aprofundar seus estudos e ficar cada vez mais próximo de seu objetivo;
e o artista já consagrado poderá estudar as formas mais bem-sucedidas,
variadas e pitorescas dos zimbros — aliás, os mais belos, e em maior
quantidade, são encontrados apenas nesse atalho."" Em várias oportuni-
dades, ele insistia sobre a noção — pictural — da unidade do conjunto
e a ligação das relações sobre os símbolos, as associações de ideias, as
lembranças, as imagens, que, balizando o passeio, "se destacam suces-
sivamente". Ele chegou até mesmo a escrever em maiúsculas: "QUE
TUDO ESTEJA JUNTO E QUE TUDO ESTEJA LIGADO." O jardim exigia, por
conseguinte, um mirante do qual fosse possível abranger, uma após a
outra, as diferentes perspectivas.
Em sua obra sobre o jardim de Monceau (1779), o arquiteto-
-paisagista L. de Carmontelle representava, na planta, todas as cenas
— tenda tártara, leiteria, tendas turcas, moinho de vento holandês,
pavilhão chinês, castelo gótico em ruínas, minarete, rochedo — com
a indicação do respectivo mirante para cada uma." Assim, a história
oferecida pelo jardim a seus visitantes estava orientada pelas leis da ence-
nação. O projeto (1780) de Francesco Bettini para o jardim de Dolfino,
embaixador de Veneza na França, continha uma semiologia rigorosa do
monumento funerário. Assim, a Ilha dos Túmulos devia inspirar três
tipos de sentimentos fúnebres: a lembrança agradável, a dor e a memória
de uma ação heroica, graças a uma disposição perfeita das fabriques.
"Tratando-se de perpetuar uma lembrança agradável, esse monumento
deve ser colocado sobre uma linda coluna decorada com ramalhetes de
rosas, jasmins, sarmentos de vinha, em posição ascendente e que virão
fazer-lhe sombra em guirlanda. Os ramalhetes da dor hão de esconder-se
54. René-Louis de Girardin, op. cit.
55. David Hays, "Carmontelle's Design for the Jardin de Monceau", in Eighteenth-Century
Studies, vol. 32, ri. 4, Verão 1999, p. 447-462.
64
modestamente em uma ranhura no meio da sombra de um espesso
ramalhete de teixos, ciprestes, salgueiros chorões,oliveiras... Quando
se trata de celebrar uma ação heroica, deve-se colocá-los no meio
de um ramalhete de ciprestes ou de carvalhos verdes, além de plantar
loureiros em torno do monumento, localizado na convergência de
todos os caminhos."" O jardim era um acúmulo de monumentos
repletos de significações demonstrativas, à imagem das vinhetas da
Encyclopédie.57
Em 1820, em seu livro L'Abeille des Jardins, J.-P. Brès propunha
um jardim "fantástico" em que diversos terrenos, no meio de um lago,
apresentariam um resumo dos quatro cantos do planeta. Um "jardim
cronológico" permitia remontar o tempo, através de pirâmides, restos
de obeliscos, urnas funerárias, múmias e esfinges, colunas gregas e ruínas de
templos, monumentos romanos e judaicos, no centro, chineses — "por-
que os chineses estão convencidos de serem o centro do mundo" — e,
por último, dolmens e outras pedras oscilantes. O jardim de Tourves
(no departamento de Var, litoral da Provence), criado entre 1767 e
1777, ilustrava um curso de filosofia inscrito na geografia simbólica
das implantações de fabriques, na toponímia e nos epitáfios imagi-
nários." A leiteria, situada no início do circuito, apresentava várias
características do "gabinete de reflexão" iniciático, muito apreciado
nos cenáculos maçônicos." O jardim é, também, exemplar da relação
ambígua, para não dizer equivocada, das fabriques com as ruínas au-
tênticas, já que a cópia de um cibório gótico, executada pela fábrica de
Vacherie, é considerada como um original e gravada como tal no livro
de Millin, Voyage dans les de'partements du Midi de la France (5 vols.,
Paris, 1807-1811).
56. Jurgis Baltrusaitis, op. cit.
57. Madeleine Pinault, "Diderot et les illustrateurs de l'Encyclopédie", in Revue de l'Art,
vol. 66, 1984, p. 17-38.
58. Serge Conard, "Tourves, fabrique et géometrie", in Monuments Historiques, vol. 5,
1976, p. 46-48.
59. Sobre este tema, cf. Magnus Olausson, "Freemasonry, Occultism, and the Picturesque
Garden towards the End of the Eighteenth Century", in Art History, vol. 8, dez.
1985, p. 413-433.
65
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
Tal confusão é tanto mais notável visto que a arte da Idade Média,
de maneira geral sinônimo de ridículo e de mau gosto, foi reconhecida
apenas na decoração dos jardins.60 Nesse espaço, as fabriques góticas
podem estar misturadas aos edifícios "clóricos" (principalmente a partir
do modelo dos templos gregos de Pesto, antiga cidade da Itália) ou
chineses a fim de diversificar o pitoresco da paisagem ou contribuir
para uma estética das ruínas.61 Se, em meados do século, Pierre Patte
deplorava "o ridículo e o grotesco das proporções" da ordem gótica
(Discours sur l'architecture, 1754), Louis Sébastien Mercier, no final
do século, descrevia a catedral Notre-Dame de Paris como um monu-
mento "amplo e melancólico", dotado de uma "iluminação tenebrosa"
e de uma "engenhosidade ousada", lamentando que ele tenha perdido,
no decorrer de um recente branqueamento, a "aparência venerável da
Antiguidade"62. Os canteiros de obras de Sainte-Croix de Orléans e
da Sainte-Chapelle de Paris manifestavam, por outro lado, a continui-
dade na indústria da construção [bâtiment]. No entanto, esse gosto do
60. Esmond De Beer, "Gothic: Origin and Diffusion of the Term, the Idea of Style
Architecture", in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XI, 1948. Para
uma antologia do desdém em relação ao gótico, cf. P. Frankl, The Gothic: Literary
Sources and Interpretations through Eigth Centuries, Princeton: Princeton University,
1960, p. 370-414; W. Herrmann, Laugier and Eighteenth Century French Theory,
Londres: Zwemmer, 1962, p. 235-236.
61. O texto Mémoires sur l'ancienne chevalerie, do historiador e filólogo J.-B. de Lacurne
Sainte-Palaye — lido na Academia entre 1744 e 1746, publicado em Mémoires de
l'Académie des Inscriptions, em 1753, e reeditado, separadamente, a partir de 1756 -
serve de fundamento à crença favorável a respeito de uma Idade Média, cavalheiresca
e sentimental, contrariamente à imagem pessimista dos filósofos. A moda chega ao
teatro sobretudo com a revolução do cenário e figurinos "verdadeiros", lançada por
Diderot e Marmontel, em torno de 1755; por sua vez, a propósito de Tancredo,
Grimm fala dos "costumes patéticos" da cavalaria, em 1760. Tal moda é adotada
pelos gravadores, no período compreendido entre 1775-1780, que começam a tratar
a Idade Média à maneira romântica; os pintores da história acabaram por imitá-los,
a partir do Salon de 1773 ( Mort de Saint Louis por Doyen). Em seu livro Génie du
christianisme, Chateaubriand retomou esses lugares-comuns sentimentais ao citar, em
particular, Sainte-Palaye, que escrevia: "O senhor Amanieu des Escas — ao deixar a
mesa, no inverno ao lado de uma lareira bem quente, no salão totalmente coberto
de esteiras —, tendo à sua volta os escudeiros, conversava com eles sobre armas e
amor porque, em sua casa, todos, até mesmo os criados do mais baixo escalão, se
interessavam pelo amor."
62. L.-S. Mercier, Tableau de Paris, 1782, t. VII, cap. DLIV, "Notre-Dame", p. 71-73.
66
século XVIII crepuscular pela Idade Média — será que se pode falar
de pré-romântico? — não chegou a estabelecer verdadeiras relações
com o estudo erudito das antiguidades nacionais.°
O classicismo tinha considerado os monumentos góticos como
uma arquitetura de bárbaros, inspirada ora no desenho das florestas,
ora em modelos islâmicos, mouriscos ou árabes; essa estranheza fun-
damental permitiria explicar tal "ridículo das proporções". Na segunda
metade do século XVIII — e, em primeiro lugar, na Inglaterra —, a
nova benevolência pela Idade Média vai basear-se no estranhamento
que lhe é reconhecido em relação à "recusa de aceitar a arquitetura
gótica na esferade uma civilização familiar" (J. Baltrusaitis). Aliás, os
termos utilizados por Mona Ozouf para descrever a atitude das Luzes
perante a festa popular poderiam ser aplicados, também, às reações
diante do gótico: "Parece que, então, as pessoas dispõem apenas de
duas linguagens: a da extravagância ou a da barbárie."" Em um caso,
o gótico ofuscava a razão, enquanto no outro ele solicitava o interesse
dos curiosos; mas, nas duas hipóteses, "sem enternecimento nem nostal-
gia". Nessa óptica, devemos entender que ele não alimentava a nostalgia
modernista que conhecemos — a "tristeza sem objeto", a "repetição que
deplora a inautenticidade de qualquer repetição" —, na busca utópica
de um lugar original e autêntico, voltada "para um passado futuro"
65;
limitava-se a ser uma das culturas longínquas, "primitivas", pelas quais
o século nutria certa curiosidade. Em seu livro Génie du christianisme,
Chateaubriand é um bom vulgarizador das teses precedentes: "A ordem
gótica, no meio de suas proporções grosseiras, tem uma beleza, todavia,
que lhe é particular. Julga-se que ela nos vem dos árabes, assim como a
escultura do mesmo estilo. Sua afinidade com os monumentos do Egito
nos levaria a acreditar, sobretudo, que ela nos teria sido transmitida pelos
primeiros cristãos do Oriente; mas, ainda assim, preferimos relacionar
63. Cf. o balanço apresentado por Jean Nayrolles, L'Invention de l'art roman à l'époque
moderne (XVIII' XIXe siècles), Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2005, p. 56-71.
64. Mona Ozouf, La Fête révolutionnaire, Paris: Gallimard, 1976, p. 9.
65. Susan Stewart, On Longing: Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir,
the Collection, Durham: Duke University Press, 1993; Jean Starobinski, "Le concept
de nostalgie", in Diogène, vol. 54, 1966, p. 93.
67
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
sua origem com a natureza. Além de terem sido os primeiros templos
da Divindade, as florestas suscitaram nos homens a primeira ideia da
arquitetura."66 Em seu livro Recueil d'architecture (1829), Jean-Charles
Krafft explicava, por sua vez, que o góticopodia ser utilizado em
"construções pouco importantes em que a severidade dos princípios
pode ser modificada e, sem consequências nefastas, prestar-se ao elã
da imaginação". Entretempo, impôs-se a ideia de um valor da arte
primitiva, mais apreciada que a dos civilizados; aliás, ela já havia sido
defendida por Diderot. O gótico continuava parecendo realmente
monstruoso, mas agora elogiava-se seu "caráter".
No jardim com suas construções, o templo dos druidas, a torre
feudal, a fachada gótica, o pavilhão chinês configuram outras tantas
alegorias que, relativamente a qualquer monumento autêntico, repre-
sentavam melhor os diversos períodos da história. Um monumento
real é, de fato, um edifício particular que havia correspondido a uma
encomenda ou a uma necessidade específica, segundo critérios bem
definidos; por isso mesmo, limitado em suas ambições e em seu sucesso.
Inversamente, as elites de então acalentavam o sonho de um monu-
mento que viesse a esboçar, seja uma época ou um mundo longínquo,
de modo integral, para o futuro. Elas tinham, portanto, o projeto de
edificá-lo: mais ou menos em ruínas, tais construções definiriam
perfeitamente o patrimônio que, em seu entender, seria passível de
ser reconhecido pela sociedade. Em sua obra Nouvelle Description des
environs de Paris (1787), J.-A. Dulaure justificava os jardins do conde
de Albon, perto de Paris, que constituíam uma espécie de panteão:
aliás, na esteira de John Mac Manners, é possível se questionar se ele
era dedicado à Liberdade ou à Ciência.67 Além de um obelisco em ho-
menagem à esposa e um templo para o Cristo moribundo, ele incluía
estátuas de Haller, Mirabeau, o velho, Court de Gébelin, Franklin e
Guilherme Tell. Em Ermenonville, o Templo da Filosofia Moderna,
66. François René (visconde de Chateaubriand), Génie du christianisme (1802), Paris:
Garnier-Flammarion, 1993, T. I, p. 400.
67. John Mac Manners, Death and Enlightenment: Changing Attitudes to Death among
Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University
Press, 1981.
68
fabrique desenhada por volta de 1780, compunha-se de seis colunas
de pé dedicadas a Newton, Descartes, Voltaire, Penn, Montesquieu e
Rousseau, além de outras três ainda no chão, destinadas de antemão
aos filósofos dos séculos vindouros. Em última instância, tratava-se
realmente de enfatizar o valor da humanidade em geral. Tal foi o caso
relativo a Newton, cujo cenotáfio elaborado por Gay — 1º prêmio do
concurso de emulação de 21 de novembro de 1800 —, compreendia
a reprodução das obras completas desse gênio em placas de mármore:
"Trata-se de um cenotáfio em homenagem a Newton e ao mesmo
tempo de um Templo da Natureza, de um memorial pessoal e de um
museu de astronomia".68 O projeto do museu-memorial dedicado a
Nicolas Poussin — cuja obra havia influenciado a pintura clássica dos
séculos XVII e XVIII — baseou-se nos mesmos princípios.69
A abundância das inscrições fictícias nos jardins não chegou a
contradizer esse projeto: longe de ser entendido como um conjunto de
indícios particulares, ela operou em favor da generalidade das correspon-
dências. Ao descrever o discurso das fabriques no espaço do jardim, Jean
Starobinski constatava que, "neste território, cuja intenção consistiria
em reunir tudo, tudo é menos presente que representado; ainda melhor,
tudo é menos representado que rememorado [...]. A arquitetura das
fabriques [...] eterniza figuras queridas ou nomes gloriosos. Não seria
mais verdadeiro afirmar que ela instaura ausências a fim de suscitar em
melhores condições, a seu respeito, a memória fervorosa, a saudade e a
68. Mémoire sur le remplacement de la Bastille et divers projets pour l'Arsenal joint aux plans
et élévations d'une place nationale à la gloire de la liberté présentés à lAssemblée nationale
. Sobre o tema geral, cf. Alfred Neumeyer, "Monuments to 'genius' in German
Classicism", in Journal of the Warburg Institute, II, 2, 1938, p. 159-163.
69. Projeto pelo arquiteto Harou de um sacellum [capela) perto de Les Andelys — cidade
natal de N. Poussin —, publicado em Journal des Bâtiments Civils..., n. 188, 29 de
prairial do ano X, p. 466-467. Cf. ainda J.-G. Legrand, "Monument à consacrer
au Poussin", in Journal des Arts, des Sciences et de Littérature, n. 77, 25 de thermidor
do ano VIII (13 de agosto de 1800), p. 78. "Ele desejava e merecia viver entre os
pastores, na feliz Arcádia, e quando ele gravava estas palavras sensíveis, quem pode
duvidar que sua alma emocionada não tenha formulado este desejo: Que eu possa,
um dia, em campos tão tranquilos, obter um túmulo semelhante!" Sobre o assunto,
cf. Margaret Fields Denton, "Death in Frendi Arcady: Nicolas Poussin's the Arcadian
Shepherds and Burial Reform in France c. 1800", in Eighteenth-Century Studies, vol.
36, n. 2, 2003, p. 195-216.
69
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
suave melancolia? Ausência ou, por trás dos túmulos fictícios, simula-
cro de ausência; assim, trata-se de uma dupla ausência."" Esses Elísios
— "distância entre Éden e Paraíso, entre terra e sombras pagãs"71 -
encarnavam uma reflexão do século sobre a lembrança e o monumento,
a história de um país e a leitura dos epitáfios." Essa representação
de um território prolixo reencontrava o sonho de cidades antigas em
que as ruas e as praças seriam outras tantas mensagens dirigidas ao
cidadão"; ela alimentava também o desejo de "hieróglifos", como se
dizia frequentemente na época, do gosto e do saber.
A Revolução — do cidadão Verhelst74 ao barão de Norvins, pas-
sando pelo Élysée, segundo o projeto de Alexandre Lenoir — deu
lugar a um grande número de jardins históricos, ao mesmo tempo
Panteão, Museu, Campo Santo e escola de civismo. Deste ponto de
vista, o pitoresco didático orientou-se por uma "melancolia cívica",
tanto mais que o século XVIII havia insistido grandemente sobre as
relações entre a alma melancólica e a virtude cívica; nesse caso, a Ingla-
terra representou — e, de maneira geral, os países nórdicos da Europa
— a terra da liberdade e do spleen. Na sequência, sob a Revolução,
a aliança entre a desconfiança e o republicanismo passou a ser uma
evidência; e, em 1800, em sua reflexão sobre a literatura considerada
em suas relações com as instituições sociais, a escritora Madame de Staël
tornou-se a intérprete da opinião comum segundo a qual a liberdade
e a virtude exigiam a meditação que leva à melancolia."
70. Jean Starobinski, Ie789: Les Emblèmes de la raison, Paris: Flammarion, 1973, p. 196.
71. Louis Marin, "L'effet Sharawadgi ou le jardin de Julie", in Traverses, n. 5-6, 1976, p. 116.
72. Lionello Sozzi, "I Sepolcri e le discussioni sulle tombe negli anni dei Direttorio e
dei Consolato", in Giornale Storico della Letteratura Italiana, vol. 44, n. 8, 1967,
p. 567-588.
73. Sobre o termo "cidadão", cf. Raymonde Monnier, Républicanisme, patriotisme et
Révolution Française, Paris: L'Harmattan, 2005, p. 93-122 ("Être citoyen sous la
Révolution") e p. 233-258 ("Le patriotisme des Lumières à la Révolution").
74. Plan allégorique d'un jardin de la Révolution Française et des vertus républicaines pelo
cidadão Verhelst, em 13 de agosto de 1793.
75. Cf. a demonstração de Eric Gidal, "Civic Melancholy: English Gloom and French
Enlightenment", in Eighteenth-Century Studies, vol. 37, n. 1, 2003, p. 23-45.
70
As provas da história
Na época clássica, o Dictionnaire de A. Furetière define a "História"
como uma "narrativa feita com arte; descrição, narração consistente,
ininterrupta e verdadeira dos fatos mais memoráveis e das ações mais
célebres". Essa tradição prolongou-se amplamente pelo século XVIII,
em que a erudição aparecia ainda como uma prática discreta, sem teo-
ria, enquanto o discurso era o monopólio do historiador, que podia
escrever a história de uma nação ou de um reinado a partir de um pe-
queno corpus de textos publicadose das histórias de seus predecessores.
O "gênero" da história da França parecia, assim, desprovido grande-
mente daquilo que, em nosso entender, faz a especificidade do ofício
de historiador." Certamente, as querelas jansenistas atribuíram uma
importância sem precedentes ao debate sobre os direitos históricos da
monarquia." Mas, fato significativo, Jacob-Nicolas Moreau — conser-
vador do Dêpot des Chartes [Arquivo de documentos, especialmente da
Idade Média] — não levou em consideração os documentos inéditos
em seu Discours sur l'histoire de France (21 vols., 1777-1779): ele não
fez qualquer menção ao trabalho de coleta das legislações para a refle-
xão do cargo, de acordo com a tradição dos antigos legistas." Como
foi mostrado por Arnaldo Momigliano, a verdadeira preocupação do
historiador, tal como ela é vislumbrada desde o século XIX, era então
apanágio dos antiquários e dos colecionadores de gabinetes históricos."
76. François Furet, "L'ensemble histoire", in Livre et société dans la France du XVIII
siècle, Paris/La Haye: Mouton, 1965-1970, II, p. 97-110; Philippe Ariès, Le Temps
de l'histoire (Ie954), Paris: Le Seuil, 1986, p. 158-160; Suzanne Gearhart, The Open
Boundary of History and Fiction: A Criticai Approach to the French Enlightenment,
Princeton: Princeton University Press, 1984, cap. 2.
77. Catherine Maire, De la Cause de Dieu à la cause de la nation: Le Jansénisme au XVIII'
siècle, Paris: Gallimard, 1998; Dale van Kley, Les Origens religieuses de la Révolution
Française 1560-Ie791, Paris: Le Seuil, 2002.
78. Dieter Gembicki, Histoire et politique à la fin de l'Ancien Régime: Jacob-Nicolas Moreau,
Paris: Nizet, 1979; Blandine Barret-Kriegel, Les historiem et la monarchie, I: Jean
Mabillon, Paris: PUF, 1988, p. 215-267.
79. Arnaldo Momigliano, Problèmes d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Galli-
mard, 1983.
71
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
O primeiro "curioso" com a pretensão de reunir as antiguidades fran-
cesas foi, sem dúvida, Fabri de Peiresc (1580-1637); o segundo nome
mais importante é o de Roger de Gaignières — uma célebre descrição
de seu gabinete foi elaborada por Germain Brice.80 Além disso, foi a
partir de coleções que o século XVII criou a diplomática, ou seja, a
ciência da história e das diversas formas dos documentos legais e admi-
nistrativos, com a redação de catálogos descritivos (o do beneditino
J. Mabillon e o de Ch. du Fresne, senhor Du Cange); ou a numismática,
com Ezechiel Spanheim, Jacob Spon e Patin; finalmente, a "leitura
dos velhos romances" com Jean Chatelain. Em grande parte, o século
XVIII desenvolveu e aprofundou, de um ponto de vista científico, os
métodos e as investigações do século XVII: esse foi o caso, em parti-
cular, da erudição beneditina.81
80. "Além dos desenhos dos túmulos mais notáveis, o mesmo gabinete fornece os vitrais
das mais belas igrejas da França, cujas cores foram copiadas com toda a fidelidade
[...] ninguém, até aqui, tinha dado conta disso; aliás, ao prestar mais atenção, tal
procura tem grande utilidade para as genealogias e para as fundações E...] Mas um dos
aspectos mais singulares e mais raros, de acordo com um grande número de pessoas,
é a coletânea de todas as modalidades de vestir, na corte e na cidade, utilizadas na
França, desde o reino de São Luís até o presente, para toda a espécie de pessoas, até
os serviçais, extraídas de diversas pinturas antigas com o maior esmero." (Germain
Brice, Description de la ville de Paris, Paris, 1713, t. III, p. 116.)
81. É difícil avaliar a repercussão real do estudo das antiguidades nacionais na elite culta
do século XVII. Alguns indícios levam a pensar que os eruditos operavam, para não
dizer na indiferença, pelo menos em um desinteresse bastante generalizado: essa é a
tese do fracasso da erudição que Blandine Kriegel defende em Les Historiens et la mo-
narchie, II: La Défaite de l'érudition, Paris: PUF, 1988. Por ocasião do óbito de R. de
Gaignières, em 1715, suas coleções — legadas por ele ao rei — foram desfeitas; em um
milhar de pinturas, Luís XIV conservou apenas o retrato de João, o Bom. Os outros
quadros foram leiloados: o Charles VII, de Jean Fouquet, que formava um lote com
um retrato de Maria d'Anjou, foi adquirido por apenas 3 libras e 14 cêntimos.
Os desenhos dos túmulos do acervo de Gaignières foram publicados por Jean Adhémar
em Gazette des Beaux-Arts; do mesmo modo, as grandes publicações de documentos,
lançadas pelos beneditinos ou com sua colaboração, soçobraram, quase sempre, antes
de atingirem seu termo, até mesmo antes do 1º volume. Esse foi o caso de L'Histoire
littéraire de Dom Rivet; de Monasticon Gallinacum (1694) de Dom Michel Germain,
que permaneceu, até 1871 (org. L. Delisle), manuscrito com suas 150 gravuras; ou as
compilações do gabinete dos documentos de Jacob-Nicolas Moreau. Para as aparições e
os usos do termo "antiguidade", assim como para a história da expressão "Idade Média",
cf. Jurgen Voss, Das Mittelalter im historischen Denken Frankreichs: Untersuchungen zur
Geschichte des Mittelalterbegriffs und der Mittelalterbewertung von der zweiten Hãle des
16 bis zur Mitte des 19. Jhs, Munique: W. Fink, 1972, p. 73 ss.
72
Por sua vez, o rei fundou, em 1663, a Petite Academie, destinada
a compor divisas, fabricar medalhas e proceder ao registro dos even-
tos mais importantes do reino. Reorganizada em 1701, ela passou
a denominar-se, em 1716, Académie des Inscriptions et des Belles-Lettres
. A evolução de suas práticas culminou em dedicá-la à história,
vocação homologada pelo novo regulamento de 1786; desde o final
de 1724, um de seus integrantes — o oratoriano e escritor É.-L. de
Foncemagne — anunciava sua intenção de despender todos os esforços
da instituição na história da monarquia. Mas foi Camille Falconet
quem lançou verdadeiramente um programa de trabalho, em um dis-
curso lido em 28 de janeiro de 1727, "Sur nos Premiers Traducteurs
français avec un essai de Bibliothèque française": "Limitem-se a levar
em consideração o campo que é a Pátria, e hão de verificar que ela é
ainda mais ampla para exercer os talentos dos senhores e desenvolver
em tal trabalho seus conhecimentos [...1. Por que sentir desdém por
nós mesmos em vez de adotarmos o exemplo dos gregos e romanos em
relação ao que fizeram por eles mesmos? Cientistas de outras Nações
que se reconhecem inferiores à Nação Francesa consideraram de forma
mais nobre seus próprios países." Após a longa enumeração dos traba-
lhos a empreender, sua conclusão fazia um apelo para o estudo de tudo
o que se presta a "lisonjear a curiosidade de um francês que faz algum
caso ao que diz respeito à nação e à sua pátria. Como isso é útil para
a Pátria! Que penhor de glória para os senhores". Mas, no decorrer do
século XVIII, as antiguidades nacionais suscitaram o interesse apenas de
um reduzido círculo de grandes trabalhadores, no essencial magistrados,
amigos ou ex-alunos de Falconet — por exemplo, Sainte-Palaye"
82. O próprio Falconet empreendeu a elaboração do Dictionnaire géographique, em
colaboração com Sainte-Palaye: este redigiu o glossário, a história dos trovadores e o
Dictionnaire des antiquités françoises, que, por sua vez, repertoriava as obras publicadas
sobre os usos e costumes, além das leis. Rigoley de Juvigny, com a colaboração de
Foncemagne, Sainte-Palaye e Bréquigny, editou a Bibliothèque françoise (1772-1773).
Por último, a Academia instituiu prêmios sobre o tema do estabelecimento da religião
na Gália e sobre o progresso das artes e das ciências, depois de Carlos Magno; as dis-
sertações produzidas foram utilizadas pelo historiador L.-P. Anquetil, em 1797, para
esboçar um panorama das artes e das ciências na Idade Média, que foi apresentado
à nova "Academia das Ciências Morais e Políticas" do Institut de France (cf. Lionel
Gossman, Medievalism and the Ideology of the Enlightenment, Baltimore, 1968).
73
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIONO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
considerando que as pessoas de gosto haviam conservado uma imagem
negativa a respeito dos integrantes desse grupo.
Em relação às fontes, o saber da época estabelecia a distinção entre
antiguidades e monumentos.83 No início do século XIX, dois verbetes
do Dictionnaire de Millin esclareciam retrospectivamente tal distinção
fundamental, no momento em que ela estava periclitante. Eis como foi
definida no verbete "Arqueologia": "A ciência dos usos e costumes dos
antigos. A dos monumentos antigos é uma de suas partes essenciais; é
possível considerá-los na acepção mais especial da palavra, ou seja, no
sentido em que eles servem para conservar a memória dos aconteci-
mentos e das pessoas; ou como obras de arte, relativamente ao prazer
inspirado por sua forma. Portanto, a ciência da Antiguidade pode
ser abordada sob dois aspectos: é possível considerar os monumentos
somente como tais e ter como objetivo unicamente estudar os usos e
costumes, a constituição política, a teologia, as cerimônias religiosas,
as leis, a segurança pública, a vida privada, etc., dos antigos. Então, os
monumentos literários, tais como as obras dos autores, os documentos
legais e administrativos, as inscrições; os monumentos da arte, tais
como os restos da arquitetura, escultura, pintura, glíptica, numis-
mática, etc.; e os monumentos mecânicos, tais como os utensílios, as
armas, etc.; são igualmente importantes, afinal, eles servem apenas
para explicar os usos e costumes dos antigos. Esta parte da ciência
é designada comumente por antiguidades, e o nome de antiquário é
atribuído àquele que a possui. Em seguida, pode-se considerar, sob uma
relação particular, os monumentos cujo único interesse tem a ver com
o fato de serem obras das belas-artes. Eles podem ser abordados como
De maneira geral, sobre a elaboração da história literária, cf. o trabalho inacabado de
Claude Cristin, Aux Origines de l'histoire littéraire, Grenoble: Presses Universitaires
de Grenoble, 1873; e Luc Fraisse, Les fondements de l'histoire littéraire: De Saint-René
Taillandier à Lanson, Paris: Champion, 2002, estudo que começa em 1733 e inclui
uma análise de Histoire littéraire "alie de Pierre-Louis Guingené (1811-1819).
Para a relação desses ensaios com as coleçóes, cf. Neil Kenny, "Books in space and
time: Bibliomania and early modern histories of learning and literature in France",
in Modern, Language, Quarterly, 61, 2, 2000, p. 253-286.
83. Peter Burke, "Images as Evidente in Seventeenth-Century Europe", in Journal o fthe
History of Ideas, 2003, p. 273-296.
amador, quando se procura apenas o prazer de contemplar o que é belo;
ou como artista, para aprimorar sua instrução e seu gosto; ou, por úl-
timo, como um connaisseur, que, além dos dois objetivos precedentes,
tem o propósito de apreciar o assunto, a ideia, o espírito, o estilo, a exe-
cução dos monumentos, de interpretá-los, conhecer seus autores e des-
cobrir sua história. A ciência que se interessa, assim, pelas obras de arte
entre os monumentos antigos é chamada arqueologia. Como é costume
atribuir o nome de antiguidades às obras de arte entre os monumentos
da Antiguidade, o estudo dessas obras designa-se também por arqueo-
logia. Aquele que possui tal ciência não deve ser confundido com quem
é apenas antiquário [...]. Portanto, essa ciência deveria interessar-se em
geral por monumentos de toda a Antiguidade que chegaram até nós.
Essa ampla extensão fez com que tivesse sido estabelecido um número
de antiguidades e arqueologias tão grande quanto o de povos antigos.
Entretanto, como numerosas nações antigas não se distinguiram na
arte e, por conseguinte, seus monumentos não merecem ser analisados
nesse aspecto, a arqueologia, habitualmente, trata apenas das obras
conservadas por quatro nações: Egito, Grécia, Etrúria (atual Toscana, na
Itália) e Roma. Em seu sentido estrito, a arqueologia designa, portanto,
o conhecimento dos monumentos artísticos desses quatro povos."84
Nessas condições, concebe-se a profunda indignidade do estudo
dos monumentos franceses. Em sua obra Monuments de la monarchie
française, publicada entre 1729 e 1733, o beneditino B. de Montfaucon
multiplicava, assim, justificativas e precauções oratórias, chegando
mesmo a escrever na apresentação: "Falou-se tanto dos gregos e dos ro-
manos que é perfeitamente razoável prestar alguma atenção ao que nos
toca de perto sem receio de perder o caráter da venerável antiguidade."
Além de qualificar os monumentos como testemunhas dos "tempos de
ignorância", Montfaucon acrescentava que "seu aspecto grosseiro fez
com que nossos antepassados, sem conhecimento da importância desses
monumentos, tivessem permitido o desaparecimento da maior parte
deles. Foi apenas nos últimos tempos que houve quem se apercebesse
de que, por mais grosseiros que sejam, tais monumentos instruem
84. Aubin-Louis Millin, Dictionnaire des beaux-arts, 1806, p. 51.
74 75
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
sobre inúmeros aspectos que não podem ser encontrados alhures: esse
gosto diferenciado pela escultura e pela pintura, em diversos séculos,
pode mesmo [grifo de Dominique Poulo- t] ser contado entre os fatos
históricos". Este beneditino tinha publicado, em 1719, o primeiro dos
quinze volumes de L'Antiquité expliquée, obra que pretendia relacionar
a religião da Antiguidade greco-romana com os cultos de mistério de
Isis, Átis e Mitra. Tal empreendimento de livraria fazia referência a
obras medievais, mas para reconhecer nessa época outros tantos mo-
numentos druídicos, até mesmo o paradigma dos hieróglifos egípcios,
arguindo em favor de uma continuidade entre a Antiguidade e o cris-
tianismo, entre gregos ou romanos e celtas. Assim, nas coletâneas de
monumentos gravados, Montfaucon reconhecia plenamente a Idade
Média, mas em nome da Antiguidade "nobre". Um passado longínquo
e prestigioso (o Egito como origem do mundo) justificava o estudo
das Antiguidades da França. Em compensação, na nova coletânea, a
motivação nacional, patriótica, era evidente: "Além de que o gosto e
o engenho de tempos tão grosseiros são um espetáculo bastante diver-
tido, o interesse pela nação compensa, aqui, o prazer que poderia ser
extraído de monumentos com maior elegância.""
A metáfora da pedreira e do monumento erguido por um arquiteto
percorreu, então, o intercâmbio entre eruditos e letrados, singularmente
nos confrontos de caráter ideológico e pessoal. No momento em que
Sainte-Palaye se apresentou à Academia contra um "verdadeiro" autor, os
bons espíritos fizeram o seguinte comentário: "Eis uma forma de equi-
parar Mansart com quem, da pedreira, extraiu as pedras que serviram
para construir Versalhes."" O princípio da divisão do trabalho continu-
ava ainda explícito em uma carta do ministro da Justiça, A. Th. Hue de
Miromesnil, para o intendente da Guiana (1783): "Esses numerosos
volumes in-fólio que, até aqui, têm sido preparados pela Congregação
Beneditina de Saint-Maur sobre um grande número de províncias, tais
como a Bretanha, o Languedoc e a Borgonha, devem ser considerados não
85. "Prospectus", in L'Antiquité expliquée, I, Paris: Compagnie de Librairies, 1716. [N.T.]
86. Apud Lionel Gossman, op. cit., p. 103. [Jules Hardouin-Mansart (1646-1708), foi
o primeiro arquiteto de Luís XIV, que realizou a ampliação do Palácio de Versalhes
(Galeria dos Espelhos e Capela). (N.T.)]
76
tanto como verdadeiras histórias, mas como coletâneas imensas de todos
os materiais que devem estar a serviço da história. Em decorrência de sua
condição, os beneditinos, por mais eruditos que sejam, limitaram-se, pro-
positalmente ou por impossibilidade, a conhecer os monumentos: foram à
sua procura, procederam à sua análise, emitiram juízos a seu respeito, tendo
estabelecido a ordem dos fatos a partir do testemunho desses monumentos.
Convém reconhecer que as pedras estão colocadas na ordem adequada,
mas o acabamento do edifício exige algo maisque as mãos deles.""
Essa tradicional oposição entre pedante e homem de gosto dupli-
cava-se de outra, não menos repisada, que separava o erudito do filó-
sofo. Para Diderot, em seu Salon de 1767, "Voltaire escreve a história
como os grandes estatuários antigos faziam o busto [...], ele amplia,
exagera e corrige as formas. Estará certo? Ou equivocado? Para o pe-
dante, ele equivoca-se, enquanto tem razão para o homem de gosto"."
Certamente, inúmeros pontos de encontro entre defensores dos filó-
sofos e representantes da erudição "parlamentar" tornaram a oposição
menos caricatural. No verbete "Erudição" da Encyclopédie, D'Alembert
parece pretender colocar um termo a tal querela, reconhecendo que "o
espírito filosófico encontra frequentes oportunidades de exercer-se nas
matérias de erudição" (e, em primeiro lugar, sem dúvida, na crítica das
fontes, segundo os critérios sugeridos por Bayle 89). Assim, esboçava-se
o que Judith Shklar designou por "reabilitação da história"90.
Bayle suscitava também a grande admiração de Denys-François
Secousse, o mestre de Lacurne de Sainte-Palaye.91 Quanto a Voltaire,
87. Cf. Dieter Gembicki, op. cit., p. 269-270.
88. Em uma abundante literatura, cf. Matthew Anthony Fitzsimons, "Voltaire: History
Unexemplary and en Philosophe", in The Review of Politics, vol. 40, n. 4, out. 1978, p.
447-468; republicado em The Past Recaptured, Notre Dame: Notre Dame University,
1983, p. 106-127.
89. Pierre Bayle (1647-1706), escritor francês; sua crítica das superstições populares
e seu monumental Dictionnaire historique et critique (1696-1697) anunciavam o
pensamento filosófico do século XVIII. [N.T.]
90. Judith Shklar, "Jean d'Alembert and the Rehabilitation of History", in Journal of the
History of Ideas, vol. 42, 1981, p. 643-664.
91. Jacob Soll, "Empirical History and the Transformation of Political Criticism in France
from Bodin to Bayle", in Journal of the History of Ideas, vol. 64, n. 2, 2003, p. 297 ss.
77
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
formado na esfera dos jesuítas, ele acompanhava as discussões da Académie
des Inscriptions, e seu respeito chegava a ponto de solicitar a
Foncemagne para reler sua obra histórica antes da publicação. Em seu
ensaio histórico, Le Siècle de Louis XIV (1751), ele não poupou elogios
aos grandes eruditos, beneditinos ou jesuítas. Do mesmo modo, a pe-
dido dos espíritos cultos, D'Alembert vai interceder junto a Frederico II
para obter informação sobre o manuscrito de J. Froissart, em Breslau.
Os estudos historiográficos recentes convidam também a reconsiderar
a análise tradicional ao suprimir as diferenças estabelecidas, de forma
demasiado nítida até então, entre história filosófica e história erudita.
"O erro seria acreditar", escreve Jean-Marie Goulemont, "que discurso
sobre a história da Idade Clássica e novo discurso — ao sublinhar que
as Luzes se haviam inspirado em ambos — seguem vias autônomas:
um mantém-se em sua integridade primordial, ao passo que o outro
adquire, aos poucos, sem deixar de ser de forma contínua, a coerência
e a nitidez, aliás adotadas mais tarde em Esquisse d'un tableau historique
des progrès de l'esprit humain."93. Ocorre que o século XVIII filosófico,
em busca constante de um uso pedagógico da história, exasperava-se
regularmente com as preocupações eruditas, a tal ponto que, em Émile,
Rousseau escreve que "não sabemos tirar qualquer verdadeiro proveito
da história; tudo é absorvido pela crítica de erudição; como se fosse
muito importante constatar a veracidade de um fato com a condição de
ser possível extrair dele uma instrução útil"94 A paixão pelo útil levou,
inclusive, D'Alembert a "desejar que, em cada centenário, se fizesse um
apanhado dos fatos históricos realmente úteis e que o resto fosse quei-
mado" (Réflexions sur l'histoire). Assim, o gosto e a utilidade convergiam
para julgar que a Idade Média merecia apenas um resumo cronológico
que, sucintamente, colocasse em ordem esse caos "em que a barbárie, a
ignorância e a superstição cobriam a face do mundo" (Essai sur les moeurs ).
92. Jean Froissart (c. 1337-c. 1405), um dos mais importantes cronistas da França medieval;
seus textos foram considerados como a expressão mais significativa do renascimento
cavalheiresco, ocorrido na França e na Inglaterra durante o século XIV. (N.T.]
93. Jean-Marie Goulemot, Discours, histoire et révolution, Paris: UGE, 1975, p. 482.
94. Cf. o verbete "Histoire", p. 407-411 de Raymond Trousson e Frédéric S. Eigeldinger
(orgs.), Dictionnaire de Jean-Jacques Rousseau, Paris: Champion, 1996.
78
Desse modo, o prestígio dos indícios do passado permaneceu precá-
rio no âmago da república das letras, em contraste com o culto votado
aos textos clássicos, muito apreciados pelo gosto universal. Numerosos
bons espíritos deploravam o incrível caos em que haviam sido sub-
mersos pela sucessão dos séculos, oferecendo resistência em preencher
sua memória com fatos já ocorridos, inúteis ao projeto da razão: um
imaginário da saturação dominava sua perspectiva. Eles preferiam
imaginar uma sociedade ideal em que, na sequência de uma seleção
cuidadosa, subsistiria apenas um passado escolhido e meditado, digno
do "nacionalismo da humanidade"" forjado pelo cosmopolitismo
das Luzes. Quando, hoje em dia, pensamos espontaneamente o patri-
mônio em termos de conquistas a serem ampliadas, em vista de uma
conservação cada vez mais completa e mais garantida dos restos mais
rudimentares do passado, o século XVIII, fatigado com as trivialidades
da história, considerava-o no âmbito de uma depuração negociada a ser
empreendida. As testemunhas das origens eram as únicas que podiam
ser legitimamente preservadas — de tal modo a época sonhava, natu-
ralmente, com os alicerces (com sua energia desaparecida que deve ser
recuperada ou superada)96: assim, esboçava-se um programa de trabalho
do historiador em forma de busca das prefigurações.97
Pensar as antiguidades podia, então, culminar em uma modalidade de
projeto político ou, pelo menos, de compromisso cívico. A reflexão
de Joseph Addison (1672-1719) sobre a numismática — Dialogues
upon the Usefulness of Ancient Medals (1721) — estabelecia, assim, a
distinção entre a adequada apreciação da arte das moedas, elogiada pela
virtude cívica e pela revolução financeira inglesa, e as manifestações de
um saber pedantesco. O sentimento do objeto antigo tinha pouco a ver
com a crítica das fontes e com a administração da prova: ele contribuía
para elaborar um pensamento da coletividade e da atualidade em que
95. Carleton J. Hayes, The Historical Evolution of Modern Nationalism, Nova York:
Richard Smith, 1931, p. 13-17.
96. Michel Delon, L'Idée d'énergie au tournant des Lumières (1770-1820), Paris: PUF,
1988.
97. Charles F. Millett, "Ancient historians and 'Enlightened' reviewers", in Review of
Politics, vol. 21, n. 3, 1959, p. 550-565.
79
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA
cada qual poderia tornar-se antiquário." Na França, a pesquisa histórica
mais "esclarecida" menosprezava "a sucessão dos fatos relacionados com
armas e guerras" (G. Bonnot de Mably) para se empenhar em desven-
cilhar o emaranhado dos "princípios incontestáveis". A historiografia
de H. Bouvainvilliers, J.-B. Du Bos e Ch. Montesquieu promoveu
o debate da história da Gália com uma preocupação constante de
rendimento imediato. Em suma, essa história tentava elaborar cená-
rios a propósito de um processo marcado por uma longa decadência,
mas que podia alimentar, simultaneamente, um esforço de memória:
"O esquecimento não é, de modo algum, ignorância. Até mesmo
esquecidas, as antigas noções de sociedade e de ordem devem ser não
tanto inculcadas, mas reanimadas; a história é uma reminiscência."99
Em meados do século, "fundamentalmente, a reconstituição da insti-
tuição original permanece o objetivoessencial da historiografia [...]
A revelação de novos documentos, a nova interpretação atribuída, aqui
e ali, a esta ou aquela ordenação régia, o que poderia ser designado
como progresso da erudição, depende da dinâmica própria a essa re-
consideração periódica e não pode dissimular uma estabilidade legível
para além das divergências de detalhe"100.
O que considerávamos desde o Romantismo como um sentimento
rudimentar do passado — a cor local, o pitoresco — não importava
mais agora. L'Année littéraire elogiava, em 1765, une Histoire de la
ville de Lille nos seguintes termos: "Não há lugar para confundir esta
história com a maior parte daquelas narrativas, cujo único objeto é a
cidade. O autor esboçou os costumes e o espírito dos homens; o que
se torna interessante para todas as regiões." Desse modo, a maior parte
das coletâneas de monumentos são estranhos ao gosto "filosófico". Por
exemplo, como introdução à tradução bastante livre, elaborada pelo ge-
neral Pommereul, no ano VI, da obra do teórico neoclássico, Francesco
Milizia, De l'Art de voir dans les beaux-arts, lê-se o seguinte: "Dispomos
98. David Alvarez, "'Poetical Cash': Joseph Addison, Antiquarianism, and Aesthetic
Value", in Eighteenth-Century Studies, vol. 38, n. 3, Primavera 2005, p. 509-531.
99. François Furet e Mona Ozouf, "Mably et Boulainvilliers: Deux Légitimations histo-
riques de la société française au in Annales ESC, 1979, p. 169-170.
100. Jean-Marie Goulemot, op. cit., p. 427.
80
apenas de longas e insignificantes nomenclaturas sobre os monumentos
das artes, em Paris e arredores; além disso, nem uma única linha para
mostrar como observá-los com proveito e deleite." 101
Em compensação, os princípios de J. J. Winckelmann parecem
responder às exigências de uma história "filosófica" que menosprezaria
os aspectos acessórios, de acordo com a tradição de Vasari, a propó-
sito dos artistas e das obras, para se dedicar a um quadro das relações
entre arte e liberdade. "As artes associadas ao desenho começaram",
escreve ele, "como todas as outras invenções humanas, pela estrita ne-
cessidade; em seguida, elas desejaram profundamente alcançar o belo.
E depois, passaram ao excesso e ao desmesurado. Esses são os três pe-
ríodos principais. [...] Neste livro, vamos descrever, as artes do desenho
tais como elas haviam sido em sua origem; e depois trataremos das
diferentes matérias sobre as quais trabalharam os artistas e, em seguida,
da influência dos climas sobre esses artistas." 10
2
Em Winckelmann, a
erudição devia permitir sobretudo o acesso ao ideal grego, para além
do tempo corrompido pelo mau gosto e pela servidão: nesse aspecto,
ela estava a serviço de um desígnio de ruptura radical. Eis por que
Lionel Gossman tem motivos para defender que o combate das Luzes
contra a tradição e a história é compatível com a ideia de um retorno
à história, depois de terem sido afastados seus aspectos malfazejos.103
O contraste é considerável com o monumento erguido, simultanea-
mente, por Séroux d'Agincourt à história da arte, em sua "fraqueza" em
relação aos tempos intermediários, apesar do caráter igualmente iniciador
de seu empreendimento comparativo. Se o exercício do antiquário era
praticamente similar nos dois casos, a obra winckelmanniana introduzia
uma revolução de grande amplitude na implementação da documentação,
101. Général Pommereul, De l'Art de voir dans les beaux-arts, traduit de l'italien de Milizia;
suivi Des institutions propres à faire fleurir la France, et D'un état des objets d'art dont
ses musées ont été enrichis par la guerre de la Liberté, Paris: Bernard, ano 6, 1798.
102. Cf. as profissões de fé do conservador de museu Alexandre Lenoir, membro influente
da Revolução Francesa: "O objeto de uma história ponderada da arte consiste em
remontar até sua origem, acompanhar seus avanços e variações até sua perfeição,
além de identificar sua decadência e queda até sua extinção" ( Musée, ano IX, p. 50).
103. Lionel Gossman, "History as Decipherment: Romantic Historiography and the
Discovery of the Order", in New Literary History, vol. 18, n. 1, 1986, p. 23-57.
81
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
das ficções e das convenções que a organizam. Em igualdade de circuns-
tâncias, o texto de Séroux — importa sublinhar —, na sequência de um
processo de edição particularmente complexo, constituía sobretudo uma
memória dos arquivos consultados ou elaborados — e de seu eventual
desaparecimento. Uma ego-história, à mercê das notas esparsas do
opus magnum dessa primeira história da arte, transpôs a Revolução: o
manuscrito, terminado sob o Antigo Regime, foi publicado nos novos
tempos, com a menção aqui e ali da diferença manifesta entre os dois
mundos. A nota de rodapé tornou-se então o recurso pelo qual não só se
fazia referência aos arquivos, à sua consulta ao acaso de visitas, descobertas
inesperadas e salvamentos imprevistos, mais ou menos favorecidos pela
sociabilidade do Antigo Regime mas também, finalmente, evocava-se
a passagem dessa afinidade erudita para a proscrição de seus materiais.
Em uma divagação sobre o castelo de Verger, na província de
Anjou, Séroux dirigia à república das letras a seguinte observação:
"Na sequência dos últimos distúrbios, ignoro em que estado ficará
o próprio castelo e tudo o que ele continha de interessante para a
história da França e das três artes, no momento em que o visitei em
1764. [...] No canto de uma sala que servia de biblioteca, encontrei
manuscritos da história da França, assim como livros gregos e latinos
com anotações manuscritas de Eleonora, princesa de Rohan. Com
o máximo cuidado, recuperei esse material para depositá-lo, em se-
guida, na biblioteca de Soubise: bastante feliz por ter fornecido uma
prova de minha afeição particular por uma família de tão elevada
reputação e, desse modo, reconhecer suas liberalidades em meu favor
e em favor de meus familiares que, desde os mais remotos tempos até
este momento, têm servido nos exércitos comandados por célebres
generais com tal nome."'" Semelhante referência memorial lembrava
a existência de formas de sociabilidade tradicional para ter acesso aos
arquivos e escrever a história de determinadas corporações, seja no
círculo dos parlamentos ou na escrita das histórias das cidades; além
disso, ela evocava o desaparecimento — com os documentos que lhes
davam justificação ou serviam de caução — de esmerados interesses
patrimoniais. Se, como foi demonstrado por Anthony Grafton, a nota
de erudição é sinal de pertencimento a uma comunidade moral -
reivindicação da verdade e da autoridade —, nesse caso formula-se
a questão a respeito das convenções e das categorias da análise, no
aspecto em que elas envolvem regras de fiabilidade, critérios de crença
e utensílios de credenciamento — relativamente à articulação entre
depósito de indícios do passado e saberes apropriados para validá-los
— no momento em que, de repente, verifica-se uma mudança de toda
a economia moral dos bens simbólicos.105
104. Jean-Baptiste-Louis-George Séroux d'Agincourt, Histoire de l'art par les monuments,
depuis sa décadence au IV siècle jusqu'à son renouvellement au XVIe, II, "Sculpture".
Paris, 1825, p. 70, n. c. [Cf. Françoise Choay, op. cit., p. 77, nota 53. (N.T.)]
82
105. Anthony Grafton, Les Origines tragiques de l'érudition: Une Histoire de la note en bas
de page, Paris: Le Seuil, 1998.
83
2
UMA NOVA AUTENTICIDADE
A história — farol eterno das nações, patrimônio indestru-
tível que as fez passar da infância para a idade adulta -
serve-lhes de instrução e de advertência em cada página.
Discurso destinado a ser pronunciado na
Assembleia Nacional por Jean-Henri Bancal,
deputado representante dos Citoyens-pétition-
naires da cidade de Clermont-Ferrand, sede do
Departamento de Puy-de-Dôme, 29 jul. 1791.'
A Revolução Francesa é tributária da cultura material do passado
sob duas formas principais.O tempo inscreve-se nos monumentos
deixados in situ, na paisagem das cidades, enquanto as obras, os livros
e os arquivos acumulam-se nas coleções de caráter científico ou nos
acervos de bibliotecas. No entanto, todos esses materiais são imedia-
tamente requisitados por serem úteis. Eles podem convir, segundo
a distinção clássica de Rabaut Saint-Étienne (21 de dezembro de
1792), "à instrução pública [que] esclarece e exercita o espírito" e "à
educação nacional [que] deve formar a sensibilidade". De acordo com
sua explicação, "a primeira deve fornecer esclarecimentos, enquanto
a segunda suscita virtudes; a primeira contribuirá para a reputação
da sociedade, enquanto a segunda, para sua consistência e seu dina-
mismo. A instrução pública exige liceus, colégios, academias, livros,
instrumentos, cálculos, métodos; ela está implantada em recintos
fechados. Por sua vez, a educação nacional requer circos, ginásios,
armas, jogos públicos, festas nacionais, a cooperação fraterna de to-
das as idades e de ambos os sexos, além do espetáculo imponente e
pacífico da sociedade humana reunida."2 De fato, a cultura material
1. Philippe Bourdin, "Bancai des Issarts, militant, député et notable: de l'utopie poli-
tique à l'ordre moral", in Revue Historique, vol. 302, n. 4, 2000, p. 895-937.
2. Cf. James Guillaume (org.), Procès-verbaux du Comité d'instruction publique de la
Convention, Paris, 1891-1907, p. 232. A fórmula é comentada por Mona Ozouf, La
Fête révolutionnaire, Paris: Gallimard, 1976; e por Keith M. Baker, Condorcet from
85
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
do passado integra ao mesmo tempo um processo de reescrita da
história e a reconfiguração das imagens públicas, a elaboração de uma
nova memória dos saberes e um discurso sobre a monumentalidade
coletiva; desse modo, ela alimenta uma reflexão sobre a arqueologia
e a história, a estética e o político.
A melhor ilustração dessa mudança encontra-se no historiador
Jules Michelet (1798-1874), no célebre trecho do livro Le Peuple, no
qual a busca do "instinto do povo" encarna-se no face a face com um
"gigantesco monumento" — extraordinário momento onírico que acaba
evocando a imagem do "gigantesco elmo" e da "montanha de plumas"
na corte do Castelo de Otranto — romance inglês de 1764, o primeiro
da literatura gótica, escrito por Horace Walpole. Essa é a oportunidade
de opor, termo a termo, a abordagem, por um lado, estética do artista
e, por outro, arqueológica do historiador — ou, ainda, em termos rie-
glianos, o culto do monumento antigo e o do monumento histórico.
Ah! como ele está, hoje, desfigurado, sobrecarregado com aditamentos
estranhos, manchas esbranquiçadas e bolores, conspurcado pelas chuvas,
lama e insultos dos passantes!... O pintor, o homem da arte pela arte, chega,
observa e sente-se atraído exatamente por essas manchas... Por minha parte,
eu gostaria de arrancá-las. Ouça, pintor de passagem, isto não é um brin-
quedo de arte, preste atenção, mas um altar! Tenho de esburacar a terra para
descobrir as bases profundas desse monumento; a inscrição, dou-me conta
agora, está completamente soterrada, escondida bem longe, embaixo...
E, para cavar, não tenho enxada, nem barra de ferro, nem picareta; vou
contentar-me em utilizar minhas unhas. [...] Hoje, ainda estou cavando...
Eu gostaria de alcançar o fundo da terra; mas, não gostaria de exumar um
monumento do ódio e da guerra civil... Pelo contrário, tenho desejo de
encontrar, ao descer debaixo desta terra estéril e gélida, as profundezas em
que ressurge o calor social, em que se conserva o tesouro da vida universal,
em que voltariam a abrir-se, para todos, as nascentes exauridas do amor.'
Natural Philosophy to Social Mathematics, Chicago: Chicago University, 1975 (trad.
fr.: Condorcet: Raison et politique, Paris: Hermann, 1988, p. 416 ss).
3. J. Michelet, Le Peuple, Paris, Comptoir des Imprimeurs unis, 1846, p. 154-155.
Sobre os desafios da época de Le Peuple, cf. Arthur Mitzman, "Michelet and Social
86
Talvez seja impossível encontrar melhor apresentação do modelo
epistemológico moderno da "profundeza", tal como é esboçado por
Frederic Jameson — sem deixar de relacionar o episódio com outras
dissimulações de Michelet — com as curas de lama nas Termas de
Acqui (Itália), nas profundezas do mar ou da montanha.
Contra a postura do artista, Michelet reivindicava a do historiador-
-arqueólogo: ele apresentava-se como homem que se enfurnava nos
arquivos e nos subterrâneos das criptas, em busca das ruínas do
tempo. Desse modo, ele definia — ao lado do porta-voz excepcional
do patrimônio francês, encarnado por Victor Hugo — outra figura de
patrimonializador, dedicado à recuperação dos túmulos esquecidos,
servidor de memórias privadas de manutenção e, preferencialmente,
da primeira de todas elas, a do Povo. Ora, a figura da exumação revo-
lucionária — não a exumação dessacralizante dos reis da abadia de
Saint-Denis, mas a exumação simbólica, sob a forma de ascensão até
a revelação dos princípios originais da nação — marcou surdamente
essa construção fantasmática. Nesse sentido, pelo menos, é que nos
propomos questionar, aqui, o legado revolucionário em matéria de
entendimento do passado.
No lugar da esperança da salvação, instalaram-se com as Luzes dois
tipos de futuro: a prognosis racional e a filosofia da história. A previsão
opunha-se exatamente à profecia: o futuro tornava-se o domínio de
possibilidades finitas. "Enquanto a profecia transgride as balizas da ex-
periência e dos cálculos, a prognosis permanece nos limites da situação
política." No entanto, "sub specie aeternitas, é indiferente que o futuro
seja considerado em termos de fé ou de cálculo ponderado: nada de novo
pode emergir". Somente "a filosofia da história separa, pela primeira vez,
a modernidade de seu passado e, no mesmo momento, inaugura nossa
modernidade por um novo futuro. Uma consciência do tempo e do fu-
turo começa a desenvolver-se no obscurantismo da política absolutista,
inicialmente em surdina, e mais tarde abertamente, combinando de
Romanticism: Religion, Revolution, Nature", in Journal of the History of ldeas, vol.
57, n. 4, 1996, p. 659-682.
87
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
forma audaciosa a política e a profecia. Nesse instante, na filosofia
do progresso, introduz-se uma mistura típica do século XVIII, ou
seja, predição racional e expectativa de uma salvação."4 A fraseologia
de Robespierre — em particular o famoso discurso de 10 de maio de
1793 sobre a Constituição — fornece uma boa ilustração do tema
em que a aceleração do tempo encarnava a tarefa a ser empreendida em
direção a uma época de liberdade e de felicidade. Segundo a feliz fór-
mula de Reinhart Koselleck, o futuro torna-se "irresistível — o que,
paradoxalmente, corresponde à sua construtibilidade".5 Em suma, "a
Revolução liberava um novo futuro, pressentido seja como progresso
ou catástrofe, e, pelo mesmo movimento, um novo passado; o caráter
de estranheza inédita deste último levava-o a adequar-se para se tornar
o objeto particular da ciência crítica-histórica."6
Concretamente, o tempo novo inscreve-se em uma proliferação de
panfletos e opúsculos diversos que dão conta da atualidade de múltiplos
"fatos históricos" — do jornalismo revolucionário aos Tableaux de la Révo-
lution Française.7 Nessa perspectiva, o conjunto dos gestos de cerceamento
da Revolução, tradicionalmente associados a uma "estratégia consciente,
apesar de ser mais ou menos secreta, dos políticos moderados" remetia,
"ao mesmo tempo, a uma angústia generalizada e menos consciente
causada por um futuro apresentado como um espaço ilimitado". Para
combater, em melhores condições, essa "desorientação", o "sentido
vivenciado" da Revolução integrava-se, pelo imaginário, em uma
temporalidade cíclica que equivale a uma obstrução do futuro vazio e
ameaçador. Daí, a contradição entre um sentido oficial, teleológico,e um sentido ilusório, permitindo, "a um só tempo, o recalcamento do
futuro ilimitado e a celebração da Revolução."8 Ora, ao dar testemunho
eloquente de um mundo fragmentado, o patrimônio assegurava também
a continuidade — de um passado regenerado a um futuro estabilizado.
Ele podia configurar a permanência dos valores e dos recursos diante da
incerteza do futuro — com a condição de não implicar o retorno ao antigo
estado das coisas, perspectiva indubitavelmente ameaçadora, e portanto,
fundamentar-se na razão. A materialidade das coisas podia servir de vín-
culo entre a história e a posteridade, encarnar uma lição do passado que
corresponde à afirmação dos princípios; ela era não tanto uma ameaça
para a experiência revolucionária, mas uma possibilidade de elaborar a
definição abstrata da nação, ao manifestar sua realidade concreta>
4. Reinhart Koselleck, Future Past: On the Semantics of Historical Time, Cambridge:
MIT, 1979, p. 17.
5. Assim, o homem novo aparece, ao mesmo tempo, como um "dom" e como uma
tarefa prática a ser empreendida. (Mona Ozouf, L'Homme régénéré, Paris: Gallimard,
1989, p. 131-132.)
6. Fórmula de Reinhart Koselleck, op. cit. Sobre esse aspecto, cf. as análises de François
Furet, "Ancien Régime", in François Furet e Mona Ozouf (orgs.), Dictionnaire critique
de la Révolution Française, Paris: Flammarion, 1989, p. 627-638.
7. Pierre Rétat, "Forme et discours d'un journal révolutionnaire: Les Révolution de Paris
en 1789", in Claude Labrosse, Pierre Rétat e Henri Duranton (orgs.), L'Instrument
périodique: La Fonction de la presse au XVIII' siècle, Lyon: Presses Universitaires de
Lyon, 1986, p. 139-178; L'Espace et le Temps Reconstruits: La Révolution Française
une Révolution des Mentalités et des Cultures?, Marselha, 22-24 fev. 1989 (Atas do
colóquio), Aix-en-Provence: Publications de l'Université de Provence, 1990; Warren
Roberts, The Public, the Populace, and Images of the French Revolution: Jacques-Louis
David and Jean-Louis Prieur, Revolutionary Artists, Albany: State University of New
York, 2000; Claudette Hould, La Révolution par l'écriture: Les Tableaux de la Révolu-
tion Française — une entreprise éditoriale d'information (Ie791-1817), Paris: Réunion
des Musées Nationaux, 2005.
88
Uma nova história
Mesmo que Grimm ou Diderot tenham manifestado, ocasional-
mente, sua admiração pelo pitoresco da cavalaria, o período medieval
8. A fórmula foi forjada por Hans-Ulrich Gumbrecht; cf. "Chants révolutionnaires et maîtrise
de l'avenir", in Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine, 1975, p. 244.
Foi aplicada por Mona Ozouf ao dossiê da festa nestes termos: "Ao questionar o vo-
cabulário da comemoração, a finalidade da festa é puramente conservadora: trata-se
apenas de manter, perpetuar, conservar [...]. O apelo à memória deve ser dirigido,
efetivamente, por uma representação do futuro. No entanto, as repercussões atribuí-
das à festa comemorativa estão dotadas de um valor exclusivamente repetitivo. [...]
Ela está incumbida, precisamente, de encarnar esse desfecho voluntário e arbitrário."
Portanto, o objetivo consistiria em manter "uma memória sem história" uma vez que,
"subtraída aos caprichos do tempo, projetada na eternidade do discurso, a Revolu-
ção desestimulará os homens, seja a contestá-la ou a prossegui-la" ("De thermidor
à brumaire: Le Discours de la Révolution sur elle-même", in Revue Historique, vol.
243, 1970, p. 31-66, aqui, p. 37-38).
89
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
havia mantido uma posição muito mais significativa nas versões con-
servadoras do mito primitivo, como outras tantas imagens dos "bons
velhos tempos."9 No declínio do século, as imagens da Idade Média
remetiam, cada vez mais, a uma época heroica (e perdida) da realeza
francesa contra as imagens concorrentes do modelo antigo ou do Éden
selvagem. Em seu panorama de Trois siècles de la littérature (1779),
um jornalista antifilosófico, tal como Sabathier de Castres, elogiava
encomiasticamente Sainte-Palaye por seu interesse pela "história dos
bons velhos tempos de nossa monarquia". Portanto, a escola histórica
dos magistrados opôs-se logicamente aos tumultos institucionais no
momento em que a Revolução rejeitava radicalmente tudo o que a
havia precedido ("Há quem se apoie na história; mas nossa história
não é nosso código", proclamava Rabaut Saint-Étienne; por sua vez,
Sieyès afirmava que não se deve desanimar pelo fato de "nada encon-
trar na história que possa convir à nossa posição"10). Em seu Rapport
sur les Académies (1791), o escritor e moralista Sébastien-Roch N.
de Chamfort dirigia um ataque contundente contra a Académie des
Inscriptions, que se limitava a enunciar os lugares-comuns tanto da
futilidade dos conhecimentos eruditos como do ridículo de pedantes
interessados em bagatelas. Mas essa foi sobretudo a oportunidade para
derrubar "os srs. Secousse, Foncemagne e vários outros membros dessa
companhia" que haviam pretendido "estudar nossas antiguidades fran-
cesas para desnaturalizá-las, deturpar as origens de nossa história, colo-
car às ordens do despotismo uma falsa erudição, combater e condenar
de antemão a assembleia nacional, ao declarar equivocada e perigosa a
opinião que retira do Rei o poder legislativo para atribuí-lo à Nação".
Daí em diante, a história pretendeu, de fato, estar em harmonia
com tempos inéditos. O programa do Liceu republicano para o IX ano
letivo, ou seja, o ano II, enunciava claramente suas novas tarefas: "Entre
9. François Pupil, Le Style troubadour ou la nostalgie du bon vieux temps, Nancy: Presses
Universitaires de Nancy, 1985.
10. Jean-Paul Rabaut Saint-Étienne, Considérations sur les intérêts du Tiers-État, adressées
au peuple des provinces, 1788, p. 13-14; Emmanuel Sieyès, Qu'est-ce que le Tiers-État?,
org. Roberto Zapperi, Genebra: Droz, 1970, p. 175. Cf. Jean Egret, La Prérévolution
française (Ie787-Ie788), Paris: PUF, 1%2, p. 332.
90
todos os conhecimentos humanos, a história é aquele que deve receber,
o mais rapidamente possível, todas as influências das revoluções que
acabam de se operar entre nós; no momento em que nos separamos
tão completamente dos séculos passados, convém abordá-los a partir
de uma última e nova perspectiva. Além da nossa maneira de ser, nossa
maneira de ver deve ser transformada. Essa distinção da história entre
antiga e moderna será suprimida; toda a história, até mesmo a de on-
tem, será considerada como antiga. Os fatos permanecerão os mesmos,
mas apresentar-se-ão para nós como diferentes porque haveremos de
observá-los e julgá-los de maneira diferente" (p. 17).11
Na verdade, a história dos revolucionários — de Condorcet aos
ideólogos — retomou as convicções anteriores relativamente a uma
necessária utilidade da disciplina: o curso de história da École Centrale
du Rhône foi qualificado por seu professor como "moral reduzida em
exemplos."12 Para Destutt de Tracy, considerado o chefe dos ideólogos,
os compêndios deveriam fornecer "um quadro completo da marcha
do espírito humano que mostra as verdadeiras causas de seus suces-
sos e de seus desvios". No entanto, as circunstâncias conferiam uma
força inédita ao imperativo de seleção que já orientava a relação com
o material do passado. As antiguidades nacionais davam testemunho
de épocas bárbaras, indignas do universal estético e histórico. Nada de
surpreendente, por conseguinte, em escutar um filósofo da história,
Condorcet, reivindicando na tribuna da Assembleia Nacional a des-
truição dos arquivos:
"Hoje, comemora-se o aniversário do dia memorável em que, ao der-
rubar a nobreza, a Assembleia Constituinte colocou a última pedra no edi-
fício da igualdade política. É hoje que, na capital, a Razão queima no sopé
da estátua de Luís XIV esses imensos volumes que atestavam a futilidade
dessa casta; e ainda subsistem outros vestígios nas Bibliotecas Públicas,
nas Câmeras de Contas, nas repartições de provas e nos escritórios dos
11. Cf.ainda Daniel Nordman (org.), L'École normale de l'an Leçons d'histoire, de
géographie, d'économie politique, Paris: Dunod, 1994.
12. Louis Trenard, Lyon, de l'Encyclopédie au Préromantisme, Paris: PUF, 1958, p. 495.
91
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
genealogistas. Importa que todos esses depósitos sejam reunidos em uma
destruição comum." Ao anunciar a comemoração do 14 de julho, o decreto
de 20 de junho de 1790 referia-se a esta dupla proclamação: "É importante
para a glória da nação impedir a subsistência de algum monumento que
faça lembrar ideias de escravidão. [...1 Convém à dignidade de um povo
livre consagrar-se tão-somente a ações que ele próprio tenha considerado
e reconhecido como grandes e úteis.
Em seu livro Idées sur les arts, publicado em pluviôse do ano II, E-A.
Boissy d'Anglas definia assim essa nova dignidade: "A França regenerada
acabou recebendo do despotismo, já moribundo, uma ampla e impressio-
nante herança que ela deveria repudiar sem qualquer constrangimento.
Para os séculos e para o universo, ele lhe havia restituído o imenso depó-
sito de todos os conhecimentos humanos, o resultado de todos os talentos
do espírito, o produto de todas as criações do gênio. Ela lhes [às "'nações
que, um dia, hão de suceder-lhe"'] fica devendo, além de não interromper,
por uma culposa indiferença, a marcha e os avanços do espírito humano,
fazer para a posteridade o que os séculos passados fizeram em seu favor."
A França tornou-se, pelo mesmo movimento, depositária da história
universal e guia do futuro, já que ela havia assumido, "de uma só vez, a
ambição de pretender servir de exemplo às nações" (Sieyès).
Esse foi o caso particularmente da Academia Céltica, fundada em
1804, em que Cambry, Volney, La Révellière-Lépeaux, Lenoir, Mangourit,
Roquefort e, em seguida, Millin, Dulaure... comungavam sob a mesma
divisa: "Gloriae Majorum". 13 A associação propunha-se lançar um
programa de pesquisas linguísticas, etnológicas e arqueológicas, com o
objetivo de provar que as antiguidades nacionais francesas eram simples-
mente os monumentos do povo celta, ou seja, o povo original da terra;
assim, seria estabelecida definitivamente a identidade das antiguidades
francesas e das antiguidades universais. O discurso preliminar de Joseph
13. Mona Ozouf, "L'Invention de l'ethnographie française: Le Questionnaire de l'Académie
Celtique", in Annales ESC, n. 2, 1981, p. 210-230; Nicole Belmont (org.), Aux Sources
de l'Ethnologie française: L'Académie Celtique, Paris: CTHS, 1995; André Burguière,
"L'Historiographie des origines de la France: Genèse d'un imaginaire national", in
Annales HSS, n. 1, 2003, p. 41-62.
92
Lavallée, na abertura do 12 tomo de Mémoires de l'Académie, evocava as
posições dos antiquários do Antigo Regime, preocupados em legitimar
seus trabalhos. No entanto, ele trazia a marca de uma nova busca de legi-
timidade, estreitamente atribuída aos poderes instituídos — a tal ponto
que Flaubert, em seu Dictionnaire des idées reçues, citará ironicamente a
Academia Céltica no capítulo da independência das academias: "Não será
simples que uma nação [...] conceba uma elevada ideia de sua própria
nobreza? E que, dirigindo um olhar religioso para seus antepassados, ela
se aplique a desvencilhar, nas lembranças históricas, a estima de que eles
usufruíram na terra, e procure dar-se conta se lhe é permitido acrescentar,
à solenidade de uma glória recentemente adquirida, o nobre orgulho de
uma glória herdada? Que a nação francesa se entregue sem inquietação
a essa busca, seu orgulho não será decepcionado; ela cultiva ainda o solo
que, em direção ao ápice dos tempos, mais fértil em homens que em safras,
povoou o globo antes de alimentá-lo [...]. O território habitado por nós
havia sido a metrópole desse povo que, pelo excedente de sua população,
colonizou um tão grande número de regiões longínquas. Enquanto filhos
mais velhos dos celtas, nenhum povo estrangeiro conseguiu desapossar-
nos de sua herança, e, apesar de ter usurpado nosso território, não chegou
a obscurecer nossa filiação [...]. Talvez fosse mesmo possível para alguns
cientistas comprovar que a presença dos francos entre nós é o resultado
não tanto de uma invasão, mas do retorno de uma grande porção de
nossos irmãos para sua primeira pátria. Assim, portanto, fiéis guardiões
dos túmulos celtas em que repousam os pais de tantos povos belicosos,
podemos até mesmo afirmar-nos como o ramo mais antigo da grande
família das nações."
Nada é mais afastado de Ossian, traduzido parcialmente por
Diderot, Turgot ou Suard, que oferecia, em sua obscuridade, a abor-
dagem de uma selvageria melancólica, entre perda e confusão, sem
conseguir conciliar sensibilidade com heroísmo — além disso, nada é
retomado, aqui, da discussão sobre a autenticidade do conhecimento
dos tempos druídicos, bastante complexo, pela Europa.14 Nada é mais
14. Sobre o estado das disputas eruditas da época, cf. Kristine Louise Haugen, "Ossian
and the invention of textual history", in Journal of the History ofldeas, vol. 59, n. 2,
93
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
afastado, também, do caso alemão em que a ênfase é colocada na
reivindicação do particular15; assim, antes da viagem à Itália, Goethe
enaltecia — em seu ensaio Sur l'Architecture gothique (1722) — a
catedral de Estrasburgo como monumento da arte alemã, baseada em
princípios nacionais e ao mesmo tempo na natureza. Pelo contrário,
ao propor ao governo — em sua obra Antiquités gauloises et romaines
recueillies dans les jardins du Palais du Sénat (1807) — a "criação de
um museu", "verdadeiramente nacional", C.-M. Grivaud definia tal
estabelecimento como algo "composto unicamente por monumentos
antigos, existentes na França". A instância legitimante permanecia o
universal antigo, a tal ponto que ele inspirou amplamente o Génie du
christianisme: "Não cessamos de nos recriar a partir das instituições
da Antiguidade e rejeitamos reconhecer que o culto evangélico seja o
único resíduo dessa antiguidade que tenha chegado até nós. Se fixamos
nosso olhar no padre cristão, no mesmo instante somos transportados
para a pátria de Numa, Licurgo ou Zoroastro. A tiara mostra-nos o
persa errante por cima das ruínas de Suza e Ectabana
Os monumentos franceses configuram, assim, os últimos sinais de um
mundo já perdido ou a caminho de desaparecer; sua melhor ilustração
encontra-se no Questionnaire 17 da Academia Céltica sobre os usos e cos-
tumes. Como é referido por seu secretário temporário, M.-A. Mangourit,
"alguém observou com engenhosidade, na última assembleia, que conviria
apressarmo-nos na formulação de nossas questões porque o Código e as
outras instituições que, atualmente, dirigem a França conduzirão necessa-
riamente à extinção de um grande número de costumes típicos". Portanto,
1998, p. 309-327; e para uma recente análise literária, o artigo de Dafydd Moore,
"Heroic incoherence in James Macpherson's the poems of Ossian", in Eighteenth-Century
Studies, vol. 34, n. 1, 2000, p. 43-59.
15. Louis Dumont, "Peuple et nation chez Herder et Fichte", in Libre, n. 6, 1979, p.
233-250.
16. François René (visconde de Chateaubriand), Génie du christianisme (1802), Paris:
Garnier-Flammarion, 1993, T. 1, t. II, p. 57.
17. Elaborado entre abril e julho de 1805, este questionário foi distribuído, a partir de
1807, às "pessoas mais esclarecidas" de cada departamento francês; elas deveriam
enviar as respostas para o secretário perpétuo da Academia. Cf. <http://www.garae.
fr/spip.php?article227> (último acesso: jul. 2009). [N.T.]
94
a investigação foi empreendida com um sentimento de urgência, à procura
das últimas testemunhas — dos contemporâneos das origens — cujo ine-
lutável desaparecimento era previsível: exemplo de um momento apenas
perceptível em que a antiga diversidade dos sujeitos cede o lugar à nova
forma de excelência, ou seja, à uniformidade dos cidadãos.18O terceiro parágrafo do questionário, elaborado por Dulaure e
Mangourit entre abril e julho de 1805, classificado e redigido por
Dulaure, fixou-se no que seu secretário perpétuo Éloi Johanneau
designava por "nomenclatura e configuração" dos monumentos para
"restituir-lhes (o lugar a que têm direito) na história geral da Gália".
Trata-se das "Questões sobre os monumentos antigos": "23. Foi desco-
berto algum campo com túmulos? Onde é que ele se encontra? Será no
acostamento de um caminho antigo, nas margens de um rio, no cimo
de uma montanha, em um terreno outrora estéril, em antigas divisas?
Qual é o nome desse cemitério antigo? Estará relacionado com algum
tipo de tradição popular? Situa-se a oeste ou ao sul do lugar [habitado
perto do qual] ele se encontra? 24. Qual é a forma, a matéria desses
túmulos? Qual é sua disposição geral em relação aos pontos cardeais?
Já foram escavados? Está confirmado que não o foram? O que foi en-
contrado no local? 25. Esses túmulos estão acompanhados por algumas
construções antigas? Qual é sua forma, e que grau de perfeição deve
ser atribuído à sua arte? Ou, então, tais construções não passam de
um amontoado de pedras sem forma, fragmentos de rochas amonto-
adas, erguidas e amparadas por outros fragmentos de rochas isoladas
e implantadas em forma de obelisco, ou várias dessas rochas estão
dispostas em um plano circular ou longitudinal? Haverá alguma que
apresente, grosseiramente, a forma de um assento? 26. Cada um dos
monumentos brutos que acabam de ser indicados existe alhures ou
foi construído isoladamente? As pedras de sua construção pertencem
ao solo em que ele se encontra ou foram extraídas de outro lugar?
Qual é a sua denominação e a do terreno ocupado por elas? Qual é a
opinião do povo a seu respeito? Que tradição foi conservada por elas
18. Arthur Onck Lovejoy. The Great Chain of Being: A Study of the History of an Idea,
Cambridge: Harvard University Press, 1933.
95
http://www.garae.fr/spip.php?article227
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
sobre o motivo e o autor de sua construção? Que fábula maravilhosa
é relatada a seu respeito? O povo pratica à sua volta algum tipo de
superstição? Espalha óleo? Depõe flores? Os passantes acrescentam
uma ou várias pedras ao amontoado de pedras a que se dá o nome de
sepultura, túmulo, mausoléu, jazigo, etc.? Que ideias estão associadas
a essa prática? Quais são os monumentos ou as ruínas de construção
atribuídos às fadas, a César ou ao diabo? 27. Existe no interior dos
lugares consagrados ao culto, ou alhures, algumas pedras às quais o
povo atribui a faculdade de fazer milagres [...] qual é o nome e a forma
dessas pedras [...] quais são esses milagres?" Essa pesquisa não é, como
foi aduzido precipitadamente, o precursor da etnologia francesa: Mona
Ozouf esclareceu perfeitamente tal mito. Em seu contexto é que o
documento se compreende como a ilustração talvez mais consequente
da representação patrimonial revolucionária, entre inventário das
singularidades e projeção do universal, consciência de uma paisagem
cultural diversificada e expectativa de seu desaparecimento.
O triunfo da alegoria
Com a Revolução Francesa, o passado nacional transforma-se, com
efeito, integralmente em um Antigo Regime amaldiçoado; segundo uma
denominação forjada propositalmente com esse fim. Os anos concebidos
a posteriori como fundadores do patrimônio inscrevem-se, portanto, em
contradição aparente com a evolução que, supostamente, eles deveriam
prefigurar: no mais profundo de uma convicção da insignificância do
passado para a construção do novo, insignificância decorrente da consi-
deração unívoca relativa ao contrato na definição da nação.A atitude a
adotar em relação à herança do passado e da desordem legada pelo acaso
dos séculos tinha a ver, daí em diante, com a Lei; nesse sentido é que deve ser
entendida a intuição de Michelet, ao evocar um "tribunal revolucio-
nário" dos arquivos. Assim, a devastação ou as reutilizações do decênio
diferem, radicalmente, dos episódios precedentes, ou seja, fundição das
peças de prata e ouro da realeza para encher os cofres públicos, icono-
clastia religiosa, substituição de uma decoração obsoleta por outra, etc.
96
Mas, se toda a história moderna francesa torna-se, de repente,
estranha aos novos fundamentos da sociedade e do político — e, por
assim dizer, tão afastada quanto são longínquos os objetos da Antigui-
dade —, a herança material pode entrar na economia geral dos "monu-
mentos" disponíveis e manipuláveis, segundo o modelo explicitado no
capítulo precedente. Esse quadro fornece um "horizonte de recepção"
a obras que — em razão da perda de sua situação, de seu contexto ou,
mais amplamente, das condições originais de seu projeto — estavam
privadas, daí em diante, dessa dimensão.19 Uma nova economia moral
das imagens pretendia estar, então, na origem de uma conservação
maduramente refletida; tal possibilidade só poderia aparecer depois
que fosse descartada a ideia de um passado, fonte de legitimidade
para os negócios do Estado.20 Aliás, como havia sido resumido por
Hannah Arendt: "O passado torna-se referência com a condição de
que seja transmitido como tradição; por sua vez, a autoridade torna-
se tradição com a condição de apresentar-se historicamente."21 Pelo
contrário, a revolução exige um modo a-histórico da autoridade (eis
o desafio, em particular, de um "retorno" aos princípios da natureza)
e um modo de existência do passado que não é a tradição (em vez
de um vínculo obrigatório, impõe-se a ideia de um reconhecimento voluntário)
.
Daí em diante, a transmissão "à posteridade" foi o resul-
tado de iniciativas ponderadas, desenvolvidas propositalmente, e não
o fruto do curso dos acontecimentos; nesse sentido, o patrimônio
deve ser entendido como uma forma da reorganização racional dos
recursos para a nova coletividade, ao contrário dos usos que esta ou
aquela herança poderia ter imposto, anteriormente, a determinada
comunidade seja ela de "raça", como se dizia, da inteligência ou
19. Cf. o balanço equilibrado proposto por Martyn P. Thompson a respeito das teses da
nova história política, "Reception theory and the interpretation of historical meaning",
in History and Theory, vol. 32, n. 3, out. 1993, p. 248-272.
20. Em relação ao papel instrumental da tradição na política do Antigo Regime, cf.
Denis Richet, La France moderne: L'Esprit des institution, Paris: Flammarion, 1973,
p. 129-131, 143-146, 148-163; e Keith M. Baker, Au Tribunal de l'opinion: Essais
sur l'imaginaire politique au XVIII' siècle, Paris: Payot, 1993.
21. Hannah Arendt, La Crise de la culture, Paris: Gallimard, 1972.
97
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
da arte, porque pesa continuamente sobre as elites a suspeita de pos-
síveis manipulações do povo.
De acordo com os decretos oficiais, a conformidade das obras do
passado deveria operar-se, do ponto de vista profissional, fora da praça
pública, por rasuras, supressões e diferentes medidas, realizadas em
ateliê. As recomendações das Assembleias sugeriam um trabalho capaz
de fazer desaparecer, sem deixar rastro, os símbolos condenados, ao
contrário do gesto iconoclasta que usufrui do espetáculo da destrui-
ção visível, até mesmo do efeito das ruínas na praça pública, além de
contar com suas repercussões demonstrativas.22 Rapidamente, o novo
termo "vandalismo" designa uma conduta escandalosa porque, além
de ser retardada e ignorante, é sobretudo ilegítima por depender da
iniciativa de grupos isolados, de facções particulares — para não dizer
de conspiradores contrarrevolucionários.
Um trabalho permanente deve, em suma, posicionar o patrimônio
contra o passado, como um dos símbolos da vontade revolucionária,
associado aos dois temas do reconhecimento e da emulação — do mesmo
modo que, segundo a fórmula de Hayden White, os historiadores das
Luzes escreviam a história contra o passado. 23 Tenta-seforjar uma nova
representação do passado por uma criteriosa distinção entre o despre-
zível a ser suprimido e algo de memorável a ser instaurado ou, às vezes,
a recuperar, mas sempre em nome de uma reabilitação do verdadeiro.
Sua melhor definição é fornecida pelo presidente do Comitê de Instru-
ção Pública, Mathieu, que propôs em 28 de frimaire do ano XI (18 de
dezembro de 1793) a coleta "do que pode servir ao mesmo tempo
de ornamento, troféu, além de apoio à liberdade e à igualdade".24 Mas,
se alguém continua afirmando que o "verdadeiro objetivo" das obras de
arte "consiste em prolongar a lembrança das ações úteis e em fazer viver,
22. Sobre a poética das ruínas e de seus aspectos patrimoniais, cf. a coletânea editada
por Brian Neville e Johanne Villeneuve. Waste-Site Stories: The Recycling of Memory.
Albany: State University of New York Press, 2002.
23. Hayden White, Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe,
Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1973, p. 63.
24. James Guillaume, op. cit., p. 180.
98
durante muito tempo, a memória dos benfeitores da humanidade"," essa
convicção era dificilmente compatível com uma hostilidade rousseau-
niana diante da representação. Como se sabe, a contradição caracterizava
os organizadores das festas revolucionárias: "persuadidos do poder das
imagens", servem-se dele "sem deixarem de permanecer obstinadamente
convencidos da falsidade de tudo o que assume a forma de figura".26
A característica mais notável da sensibilidade às imagens na Re-
volução foi, então, a substituição de modelos: do icônico pelo nar-
rativo." Exibidos por ocasião das festas, os "ícones" manifestam, por
exemplo, uma rejeição e a impossibilidade de "relatar" o acontecimento
histórico ou a vida do "mártir" republicano. A propósito da festa em
homenagem a Marat, Mona Ozouf mostrou que o cortejo tornava-se
uma "frisa", concebida por "um ponto de vista de arquiteto", que em
vez "das circunstâncias da vida de Marat, desenroladas segundo a or-
dem de uma gênese", expunha "o recorte das características lendárias:
pura distribuição de papéis alusivos sem a mínima profundidade". Do
mesmo modo, a festa elaborada por David para o aniversário de 10
de agosto fracassou em sua narrativa ao representar a história da Re-
volução sob a forma de cartazes e inscrições: "Esvaziado de história, o
espetáculo vai relegá-la, ainda outra vez, ao texto escrito."28 De forma
mais abrangente, a segunda metade do século XVIII havia rejeitado
amplamente a complexidade de linguagens abstratas — e, portanto,
confusas — para enfatizar a utilidade de um discurso que associava as
imagens e as palavras em uma estreita relação com a experiência dos
sentidos." Parece ser bastante nítida a raiz filosófica e linguística do
25. Instruction sur la manière d'inventorier et de conserver [...) par la Commission temporaire
des arts, ano II.
26. Mona Ozouf, La Fête révolutionnaire, op. cit., p. 244.
27. Klaus Herding, "Utopie concrète à l'échelle mondiale: L'Art de la Révolution", in La
Révolution Française et l'Europe Ie789-1799, Paris, Grand Palais, t. 1, p. XL (Catálogo
da exposição).
28. Mona Ozouf, op. cit., p. 21-43.
29. Cf. Theresa M. Kelley, "Visual Suppressions, Emblems and the Sister Arts", in
Eighteenth-Century Studies, vol. 17, n. 1, 1983, p. 28-60, para a demonstração sobre
a evolução das edições de Ripa. [Cesare Ripa (c. 1560-1625), autor de Iconologia.
Em Significado nas artes visuais, o mestre alemão Erwin Panofsky define esta obra
99
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
"privilégio da metáfora, enaltecida em Condillac, tornada primitiva
deste último a Turgot ou Herder; devaneio sobre a gestualidade; ideia
de uma original comunhão mental, cuja oposição ao consenso mo-
derno será sobrecarregada, em Rousseau, com a nostalgia"".
A preeminência da alegoria, confirmada por todos os observado-
res, dava conta dessa especificidade. Com efeito, "diferentemente do
simulacro e do símbolo, a alegoria é", se dermos crédito a Quatremère
de Quincy, uma "imitação até certo ponto inimitável".31. Na esteira de
seu estudo sobre as teorias estéticas de Quatremère, Philippe Junod
chega mesmo a tirar a conclusão, nesse autor, do paradoxo de um ideal
de pintura "para cegos inteligentes"." Assim, "quando o ministério do
Interior pretende, em pluviôse do ano VII, fixar o modo de celebração
da festa da Soberania do Povo", ele convida os artistas a procurar "ima-
gens" ou, de preferência, corrigindo-se, "ideias".3 Sob esse aspecto, a
alegoria, apesar de sua evidente dificuldade de leitura — aliás, aspecto
que lhe é criticado com frequência —, corresponde ao novo ideal de "transparência"3
4
por impedir que se esqueça sua distância em relação
ao que é verdadeiro. A suspeita que pesa sobre a representação imitativa
mantém uma relação óbvia com a teoria política revolucionária, ou seja,
a necessária impessoalidade do poder que Marcel Gauchet lê como "uma
como "aquela 'summa' da iconografia que, abeberando-se em fontes tanto clássicas
e medievais como contemporâneas, foi chamada, justamente, de 'chave das alego-
rias dos séculos XVII e XVIII', e explorada por artistas e poetas tão ilustres quanto
Bernini, Poussin, Vermeer, e Milton [...] publicada em 1593, reeditada inúmeras
vezes e traduzida em quatro línguas [...]" (São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 216).
Cf. <http://publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_neGrieco.pdf
> (úl-
tima consulta: jul. 2009)(N.T.).]
30. Daniel Droixhe, La Linguistique et l'appel de l'histoire, Ie600-1800, Genebra: Droz,
1978, p. 348.
31. Apud Mona Ozouf, op. cit., p. 252.
32. Philippe Junod, Transparente et opacité: Essai sur les fondements rhétoriques de l'art
moderne, Lausanne: d'Homme, 1975, p. 309.
33. Apud Mona Ozouf, op. cit., p. 252.
34. Marc Richir, "Révolution et transparente sociale", in J. C. Fichte, Considérations
destinées à rectifier le jugement du public sur Révolution Française, Paris: Payot,
1974; e Myriam Revault d'Allones, "Le Jacobinisme ou les apories du politique", in
Reune Française de Science Politique, vol. 4, ago. 1986, p. 519-527.
100
corrida mortal em direção ao anonimato", mas que, para J.-P. Brissot,
por exemplo, não passa da recusa de "transformar o homem-Rei em um
Deus"35. Multiplicadas no decorrer do ano II, as fórmulas exprimem
suficientemente que a "idolatria" continuava ameaçando a encarnação
da pátria36; a imagem nunca mais será ilusória, para evitar qualquer
equívoco na reverência devida com exclusividade aos princípios.
A Revolução pretendia conduzir o homem à "maioridade" diante
da imagem, segundo a fórmula kantiana do Sapere aude [Tenha cora-
gem de fazer uso de seu próprio entendimento], além de impedir sua
regressão à relação primitiva com o ídolo. Tal programa teria exigido,
em substância — como foi bem observado por Ernst Gombrich
dar a conhecer Condillac a todos os franceses, com o receio de que
uma eventual "sonolência da razão" suscitasse ainda outros ídolos."
Tarefa rapidamente reconhecida como impossível, em vários planos, e
cujo abandono deixava um espaço livre para a encarnação dos mártires
e santos patriotas: uma obra-prima republicana, tal como o quadro
A morte de Marat de David, oferece "a presença palpável do ídolo" e, ao
mesmo tempo, uma "figura ideal, clássica e distanciada"?8 Do mesmo
modo, Albert Mathiez pôde insistir sobre as tendências comuns dos
"cultos revolucionários" e das práticas tradicionais das religiões reve-
ladas: "Evidentemente, o patriota que ostentava o cocar nacional não
atribuía a esse pedaço de pano, em geral, o poder de fazer milagres;
nesse aspecto, verificava-se uma diferença entre seu estado de espírito
e o do católico que pendura ao pescoço uma medalha benzida, ou
alguma relíquia preciosa. De qualquer modo, não deixa de ser verdade
que o cocar, a medalha ou a relíquia são, no mesmo plano, símbolos
religiosos por terem a seguintecaracterística em comum: eles represen-
tam, concretizam, evocam um conjunto de ideias ou sentimentos, ou
35. Marcel Gauchet, La Révolution des droits de l'homme, Paris: Gallimard, 1989, p. 27,
que cita essa fórmula de J.-P. Brissot, pronunciada em 3 de agosto de 1789.
36. Cf. as circulares citadas por Lucien Jaume, Le Discours jacobin et la démocratie, Paris:
Fayard, 1989, p. 183, 342.
37. Ernst-Hans Gombrich, "The Dream of Reason: Symbolism in the French Revolution",
in The British Journal for Eighteenth-Century Studies, vol. 2, n. 3, 1979, p. 187-205.
38. Fórmula forjada por Klaus Herding, op. cit.
101
http://publique.rdc.puc-rio.brirevistaalceutmedia/alceu_neGrieco.pdf
http://publique.rdc.puc-rio.brirevistaalceutmedia/alceu_neGrieco.pdf
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
seja, uma fé. [...] Aliás, não é absolutamente verdadeiro que o valor
dos símbolos revolucionários se limitasse a simples sinais ou alegorias
inofensivas sem virtude nem eficácia particular."39 Todavia, a Revolu-
ção temia que uma eventual perversão da razão levasse a substituir os
extravios do passado por uma nova idolatria. A escolha de atrizes para
figurar as "divindades", por ocasião das festas, pretendia atenuar esse
deslize porque — desincumbidas, imediatamente depois da cerimônia,
de qualquer status simbólico — elas não exerciam o papel de inter-
cessor.40 Do mesmo modo, a possibilidade de um acordo entre a moral
evangélica e a moral republicana teria ocorrido no âmago de uma religião
depurada: a teofilantropia pretendia existir "sem padres — substituídos
pelos pais de família — nem emblemas, imagens ou estátuas, ou seja,
um retorno à simplicidade das origens (os teofilantropos por pouco
evitaram a denominação de 'cristãos primitivos')".41
Distribuir o patrimônio em novos lugares
A nova época pretendeu tirar partido da experiência e do talento
natural dos homens. Tal postura explica que o qualificativo "regenerado"
39. Albert Mathiez, Les Origines des cubes révolutionnaires, Paris: Beijais, 1904, p. 34-35.
Cf. ainda Albert Soboul, "Sentiment religieux et cultes populaires pendant la
Révolution: Saintes patriotes et martyrs de la liberté", in Annales Historiques de la
Révolution Française, vol. XXIX, 1957, p. 195-213. A partir de quatro estudos de
casos (Paris, Toulouse, Departamentos de Aube e de Bouches-du-Rhône) sobre os
primeiros decênios do século até 1789, Cissie Fairchilds pretendeu mostrar a impor-
tância considerável dos objetos religiosos no consumo doméstico e como a influência
jansenista acabou pesando na autonomização desses artefatos: uma demonstração
que espera ser validada por outros meios e pode esclarecer alguns aspectos da mu-
tação ulterior — cf. "Marketing the Counter-Reformation: Religious Objects and
Consumerism in Early Modern France", in Christine Adams, Jack R. Censer e Lisa
Jane Graham (orgs.), Visions and Revisions of Eighteenth-Century France, University
Park: The Pennsylvania University Press, 1997.
40. Maurice Agulhon, Marianne au combat: L'Imagerie et la symbolique re'publicaines de
Ie789 à Ie880, Paris: Flammarion, 1979, p. 38; Madelyn Gutwirth, Twilight of the
Goddesses: Women and Representation in the French Revolutionary Era, New Brunswick:
Rutgers University Press, 1992.
41. Mona Ozouf, "Religion révolutionnaire", op. cit., p. 610.
102
é atribuído ao monumento que, extraído do passado, tem valor, a
contragosto, para o futuro, ao demonstrar que os valores presentes
são eternos, apesar de terem sido combatidos, outrora, pelos mal-
intencionados. Nesse mesmo movimento que destruía as imagens
corrompidas do Antigo Regime, a Revolução pretendia, portanto,
revelar a arte autêntica, até então relegada aos depósitos obscuros do despotismo. Não
foi sem malícia que determinadas obras passaram
despercebidas ou foram esquecidas: elas revelavam um talento desco-
nhecido ou ofuscado, exigindo de saída a atenção dos republicanos.
A iniciativa estava diretamente associada a um pensamento que estabe-
lecia a separação entre a permanência da natureza humana e a perversão
histórica das sociedades, em favor de uma restauração do verdadeiro e
do belo, outrora desdenhados ou dissimulados por terem sido vítimas
de diversas conspirações. Ao proceder desta forma, a Revolução anulava
a historicidade em benefício do presente, ao tratar esse legado como
precursor de sua gloriosa atualidade.42 Ela retomava amplamente à sua
conta a opinião dos filósofos e de seus êmulos que, de acordo com o
resumo de Arnaldo Momigliano, "consideravam a história como uma
luta permanente de alguns sábios, de quem eles eram os continuadores,
contra a violência, a superstição e a tolice da maior parte das pessoas'''.
Certamente, a literatura artística ou a memória coletiva — a herança
das antigas comunidades de especialistas ou dos que mantêm familia-
ridade com a obra — são importantes na maneira como se considera e
aborda os objetos. No entanto, seus novos lugares de conservação e de
exposição determinavam grandemente, daí em diante, seus valores -
os de obras-primas restauradas, de documentos convenientemente
colocados em perspectiva ou de ilustrações pertinentes . Tais lugares
— os museus, o Panthéon, os jardins, os depósitos ou conservatórios -
tornaram-se o teatro de múltiplas consagrações e desconsagrações.
Com efeito, para os diferentes especialistas, essa foi a oportunidade de
atribuir novas significações aos objetos reunidos no mesmo espaço; as
42. Donald Egbert, "The Idea of Avant-Garde in Art and Politics", in American Historical Review
, vol. 2, 1967, p. 339-366.
43. Arnaldo Momigliano, "La Contribution de Gibbon à la méthode historique", in
Problèmes d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Gallimard, 1983, p. 335-336.
103
http://desconsagra��es.Com
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
rivalidades ou as contradições entre essas novas atribuições constituí-
ram outros tantos conflitos de classificação e de legitimidade. Assim,
em 26 de vendémiaire do ano VIII, o administrador do museu especial
da École Française, em Versalhes, E. A. Gibelin, protestava junto de
Sieyès contra a remoção das marinhas do pintor Vernet, que deveriam
servir, por ordem do ministro da Marinha, para a instrução dos futuros
marinheiros. Em 4 de nivôse do mesmo ano, L. Daubenton44 solicitava,
em nome do Museum National d'Histoire Naturelle (1793), ao Musée
Central des Arts um Cristo da coluna em jaspe sanguíneo: "O interesse
que, eventualmente, essa peça possa ter do ponto de vista artístico não
se compara com sua importância para o estudo da História Natural."
No dia 13, o Musée rejeitava abrir mão dessa "belíssima figura": "Se o
mérito desse objeto se limitasse à matéria, a administração teria tido a
solicitude de oferecê-lo ao senhor." Do mesmo modo, o Conservatoire
National des Arts et Métiers e o Museu dos Monumentos Franceses
entraram em competição a propósito dos revestimentos de madeira do
castelo de Écouen: em nome da unidade arquitetural e sentimental, eles
foram reivindicados por Lenoir para terminar a sala do século XVI, no
Louvre. Por sua vez, o colega do Conservatoire defendeu seus direitos
nestes termos: "É importante que os lambris de Écouen entrem (no
Conservatoire) como monumento histórico da arte, como elemento
de comparação da marcenaria em diferentes épocas, além de mostrar
aos artistas o ponto de partida da caminhada progressiva do gênio.
Colocar esse monumento em local diferente do Conservatoire seria
mutilar, de alguma forma, a história da marcenaria e romper a série
dos conhecimentos que apresentam a marcha sucessiva da arte, desde
seu começo até o mais avançado de seus progressos." Tais reivindicações
desenhavam, em cada momento, uma "biografia cultural dos objetos",
correspondendo aos diferentes valores que lhes eram reconhecidos.
2 Imagem ideal de uma abertura das Luzes a todos, em um espaço
utópico de comunhão com o Belo e comos Princípios, o museu tinha a
44. Louis Daubenton (1716-1800), naturalista francês e um dos colaboradores da Histoire
naturelle (perto de quarenta volumes, de 1749 a 1804), sob a direção de Georges-
Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788). [N.T.]
104
vantagem de promover debates sobre os tutores e os recursos dessa edu-
cação regeneradora, sobre o perigo das corporações renascentes, sobre
seus interesses particulares, etcEm pé de igualdade com o Panthéon ou
com outros templos (um projeto monumental de Durand e Thibault
elaborava, para o concurso do ano II, um Templo da Igualdade que,
em seguida, reaparecia como um lugar de reunião de cidadãos a fim de
praticarem nesse espaço "um culto qualquer"45), o museu era um lugar
do qual se exigia a imediata eficácia e a ambição universal. Paradigma
da perfeição sensualista absoluta, ele encarnava uma vantagem de
ordem pedagógica que permitia conferir uma utilidade de princípio
a acervos, sem a qual sua significação e apropriação permaneceriam
problemáticas. Evocar seus recursos e seu poder era enaltecer a energia
revolucionária, sua capacidade para subordinar tal monumento par-
ticular ao ensino dos novos princípios — o que é denunciado, ime-
diatamente, por alguns (Quatremère de Quincy, por exemplo) como
uma desnaturalização da arte, novo gênero de vandalismo.
Com efeito, semelhante investimento museográfico envolvia o
desapossamento do Estado tradicional. A consciência revolucionária
manifestava uma real indiferença, para não dizer uma hostilidade decla-
rada, em relação à inscrição territorial ou histórica dos monumentos e
das coleções; inversamente, ela prosseguia uma distribuição equitativa
do patrimônio por todo o território nacional e, ao mesmo tempo, ali-
mentava a centralização tradicional das obras-primas. Quando as leis de
24 e 25 de janeiro de 1790 organizaram uma divisão inédita do espaço
francês em 83 departamentos, o Comissão dos Monumentos pretendeu
formar, com a ajuda dos objetos reconhecidos e inventariados por ele,
um museu em cada departamento. Em 2 de dezembro do mesmo ano,
Bréquigny, o ilustre membro da Académie des Inscriptions, propunha
"a distribuição dos monumentos" nas igrejas transformadas em museus:
"Todos esses monumentos", escreve ele, "pertencem em geral à Nação.
Portanto, convém que, na medida do possível, todos os indivíduos
possam ter seu usufruto e, em meu entender, a melhor contribuição
45. James A. Leith, "The terror: Adding the Cultural Dimension", in Canadian Journal
of History, vol. XXXII, 1997, p. 315-337.
105
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
nesse sentido consistirá em atribuir um dos depósitos em que eles serão
reunidos, com a condição de que tal acervo seja o mais completo possível
a cada departamento."
O "Projet d'instruction pour hâter les établissements de bibliothè-
ques et de muséums", apresentado em novembro de 1792, reafirmava
que "cada departamento formará seus estabelecimentos públicos ao
escolher, em primeiro lugar, o que poderá lhe convir entre os monu-
mentos espalhados por seu território; o excedente será destinado a outros
departamentos menos dotados nesse gênero de objetos, a fim de que se
consiga, na medida do possível, uma distribuição equitativa das ciências
e das coleções que lhes pertencem". Tal projeto previa "a execução de um
plano que, em todas as partes da República, apresentará amplos depó-
sitos de livros, quadros, esculturas e objetos preciosos de toda a espécie,
que estarão disponíveis em sua totalidade, organizados de acordo com
o mesmo critério e subdivididos segundo as mesmas regras, até mesmo
nos detalhes mais insignificantes". Em suma, uma "útil e ponderada
distribuição" deveria "vivificar todas essas riquezas, centuplicá-las" e,
finalmente, "animá-las em benefício do ignorante que as desdenha".
Assim, inscrevia-se a distribuição territorial do patrimônio no âmago
de uma economia da circulação, baseada em equipamentos cuidado-
samente concebidos e distribuídos, qualificados pelo abbé Grégoire"
como "ateliês do espírito humano".
Tal resolução caracterizou o decênio, já que, em 1801, a obra anô-
nima Correspondance de deux généraux sur divers sujets sugeria o estabele-
cimento "dos museus secundários nas principais cidades da França, em
que haveria a preocupação de reunir, o mais rapidamente possível, as
cópias dos melhores exemplares dos mais célebres pintores". A penúria,
frequentemente deplorada, de bons exemplos, artísticos e morais, é a
consequência de um panteão de originais por definição limitado, que
não pode ser depauperado; pelo contrário, sua influência deverá crescer
pelo recurso à "multiplicação de exemplares". A malha — no plano
46. Henri Grégoire, conhecido como abbé Grégoire (1750-1831), padre e político
francês, prestou juramento à Constituição Civil do Clero (1790); como deputado
da Convenção promoveu a votação pela abolição da escravatura. [N.T.]
106
nacional, utópica — do patrimônio foi bem descrita no relatório de
J. Lakanal47 sobre as Écoles centrales e seus museus-bibliotecas, em dezem-
bro de 1794: "A engenhosidade impulsionará sua flama depuradora até as
extremidades da República. Daí, por um esforço recíproco, direcionado
naturalmente para o centro, formar-se-á uma circulação da qual depen-
dem a boa disposição e a vida do corpo social." Essa é a forma de delinear,
na perspectiva de remodelar a sociedade, uma circulação patrimonial à
custa de coleções originais, inacessíveis ou deterioradas.
Neste ponto, abordamos as relações complexas dos revolucioná-
rios com a questão do luxo e, de forma mais específica, com o status
do artista, além de sua relação com suas criações e com as criações
anteriores — já que o senso patrimonial identifica-se com uma moral
da propriedade, ao mesmo tempo pública e privada, para além das
repetidas condenações da futilidade." A crise da representação tradi-
cional implementou uma crítica contra os abusos de riqueza, contra os
objetos de luxo e, igualmente, contra a superabundância de palavras.
A separação entre os artigos de distinção — que carregam, daí em diante,
o estigma do luxo amaldiçoado — e as obras de arte foi uma primeira
condição para construir uma ideia de patrimônio artístico legítimo.49
Sabe-se como os debates, em matéria de edição, sobre o direito autoral e
a figura do escritor acabaram por estigmatizar o autor "absoluto" como
uma criatura do privilégio, substituindo-o pela imagem cívica de um
criador a serviço do bem público, de um herói das Luzes. Carla Hesse
insiste justamente sobre a instabilidade da síntese realizada dessa forma,
que "combina uma instrumentalização a serviço do bem público com
47. Joseph Lakanal (1762-1845), político francês. Enquanto membro da Convenção,
entre as numerosas medidas relativas à instrução pública (1793-1795), promoveu a
criação das Écoles centrales — uma por departamento. Nestas instituições, a ênfase
é colocada no ensino científico, em vez da tradição clássica dominada pelo latim.
[N.T.]
48. Sobre o debate geral a esse propósito, cf. Isser Woloch, "On the Latent Illiberalism of
the French Revolution", in American Historical Review, vol. 95, 1990, p. 1467-1470.
49. Remy G. Saisselin, The Enlightenment against the Baroque: Economics and Aesthetics
in the Eighteenth-Century, Berkeley: University of California Press, 1992, p. 133;
John Shovlin, "The Cultural Politics of Luxury in Eighteenth-Century France", in
French Historical Studies, vol. 23, n. 4, 2000, p. 577-606.
107
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
uma teoria do autor baseada no direito natural", dando lugar a uma
série de renegociações que se estendeu durante todo esse período."
A representação de um patrimônio revolucionado, ou seja, cortado
da história, tinha a ver com o paradoxo de uma herança identificada
com a permanência de princípios de que, em última instância, ela
procede e, daí em diante, deve defender contra seus primeirospro-
prietários ou comanditários que haviam sido seus atores, por assim
dizer, involuntários. O empreendimento patrimonial prosseguia, desse
modo, um desígnio de emancipação que não deixava de revelar, através
dos "monumentos", a relação com as origens. Sua justificativa era a de
excluir qualquer consideração de um "trabalho" da duração — genuína
"profundidade" do tempo.51 Segundo a célebre fórmula do membro
influente do partido liberal, Benjamin Constant, os revolucionários
"espantam-se que a lembrança de vários séculos não tenha desaparecido
rapidamente diante dos decretos de um dia. Considerando que a lei é
a expressão da vontade geral, ela deveria, em sua opinião, prevalecer
em relação a qualquer outro poder, incluindo o da memória e o do
tempo."52 Tal era exatamente o projeto que permitiria viver, por assim
dizer, no mesmo nível com as origens, mediante uma verdadeira "tra-
vessia" dos tempos intermediários, em particular de toda a civilização
do Antigo Regime. O conjunto dessas características esboçava um
patrimônio sem outro proprietário além da humanidade inteira, tendo
atingido a idade da razão. Verificava-se, segundo parece, a fusão entre
passado, presente e futuro, respaldada na garantia dos princípios de
que a Nação era, daí em diante, depositária.
50. Carla Hesse, Publishing and Cultural Politics in Revolutionary Paris, 1789-1810,
Berkeley: University of California Press, 1991, p. 122-123.
51. Mona Ozouf, "Régénération", in François Furet e Mona Ozouf (orgs.), Dictionnaire
critique, op. cit.
52. Benjamin Constant, "De l'Usurpation", in Marcel Gauchet (org.), De la Liberté chez
les modernes, Paris: Le Livre de Poche, 1980, p. 189-190.
108
O museu regenerador
O museu constituiu uma instituição-chave do empreendimento
de regeneração; acima de tudo, ele encarnava uma súbita e espeta-
cular publicidade das artes, sob a forma da reivindicação atendida, da
"conquista" coletiva. Simples episódio ou transição de aparência lógica
no resto da Europa, a abertura de museus inspirou-se, na França, na
retórica da ruptura instauradora. Mas, sobretudo, o museu era um
espaço em que o estatuto a atribuir às imagens herdadas do Antigo
Regime revelou-se como um desafio crucial: um dispositivo para ale-
gorizar o passado.
Se alguns — entre eles, o abbé Grégoire — chegaram a evocar a
possibilidade de uma memória do Antigo Regime, a fim de votá-lo
a um "pelourinho eterno", o projeto de um estudo esclarecido dos
erros do passado, a partir da hipótese de uma história negativa, cujo
ensino teria efeitos positivos, afigurava-se difícil, uma vez que, eviden-
temente, limitar-se-ia a estigmatizar os mal-intencionados. O desejo
de uma amnésia generalizada — que seria a antítese da lembrança da
militância — deveria ler-se, nessas condições, como falta de segurança
ou como extremismo político? De fato, esses debates participavam
do que Mona Ozouf designa por comum "pessimismo original sobre
a história da França" ou, no mínimo, de uma convicção da instabi-
lidade histórica." Uma leitura radical sobre o tema foi fornecida, há
pouco, por Bernard Groethuysen: "Entre os revolucionários [...] a fé
no reinado futuro da razão compensa a visão pessimista dos tempos
passados. Essa falta de racionalidade na vida dos homens não deve
ser atribuída ao ser humano. Cada homem está dotado de razão e,
como criatura da natureza, faz parte de um todo coerente. Não é
ele nem a natureza que é irracional, mas sua situação atual de vida.
E essa situação tem a ver com as lacunas da organização social [...].
O século XVIII é dominado pela ideia da antinomia entre racionalismo
inerente à natureza do homem e o irracionalismo da vida humana,
tal como é testemunhado pelo curso da história: ele é pessimista em
53. Mona Ozouf, "De thermidor à brumaire..." , in Revue Historique, op. cit., p. 40-41.
109
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
sua concepção da história e, ao mesmo tempo, otimista na concepção
que tem da natureza. Para explicar essa antinomia, deve existir um
terceiro elemento (:) a sociedade."" De fato, em Condorcet, como é
resumido por Keith Baker, "o progresso histórico (é percebido) como
um processo de incrementação, dependendo do acúmulo constante e
da disposição dos conhecimentos (em que) o erro é uma consequência
natural da defasagem entre o que podemos e o que desejamos conhecer,
defasagem perpetuada e tornada nociva por poderosos interesses bem
arraigados"." Em suma, quando a razão se amplia à custa da supersti-
ção e da tradição, o uso do passado desenvolve-se contra ele próprio.
Enviada, em março de 1794, para todos os departamentos pela
Comissão Temporária das Artes, a célebre Instruction sur la manière
d'inventorier et de conserver dans toute l'étendue de la Republique tous
les objets qui peuvent servir aux arts, aux sciences et à l'enseignement -
cuja redação havia sido confiada a F. Vicq d'Azyr e Dom Poirier,
beneditino de Saint-Germain-des-Prés — proclamava que "as lições
do passado, marcadas indelevelmente, podem ser repertoriadas
por nosso século, que terá condições de transmiti-las, com novas
páginas, à lembrança da posteridade". Nessa perspectiva, F. Vicq
d'Azyr escrevia que "todos esses objetos preciosos, que têm sido
mantidos longe do povo ou que lhe eram mostrados apenas para
suscitar seu espanto ou respeito, todas as riquezas [...], daqui em
diante, servirão para a instrução pública: elas servirão para formar
legisladores com base filosófica, magistrados esclarecidos, agricul-
tores instruídos. [...] A indiferença [...] seria um crime".56 Aqui, a
evocação da impostura, sacerdotal e régia, que mantinha as obras a
distância do povo, suscitando o temor e a admiração, justificava a ini-
ciativa que acabava de ser empreendida no sentido de proceder a um
inventário e à sua preservaçáo. A fórmula evoca o que Condorcet havia
54. Bernard Groethuysen, La Philosophie de la Révolution Française, Paris: Gallimard,
1982, p. 249. O tema é desenvolvido por Henry Vyverberg, Historical Pessimism in
the French Enlightenment, Cambridge: Harvard University Press, 1958.
55. Keith M. Baker, Condorcet from Natural Philosophy to Social Mathematics, op. cit., p. 467.
56. Cf. Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, 3. ed., São Paulo: Unesp/Estação
Liberdade, 2006, p. 114, nota 45. [N.T.]
110
escrito na introdução de seu livro: se a filosofia forçou a superstição
a encontrar regras nas condutas do passado, "não será que ela deve
compreender, na mesma proscrição, o preconceito que rejeitasse com
orgulho as lições da experiência?" A abertura da "10a época" justificava,
de fato, a "tentativa de delinear com alguma verossimilhança o quadro
dos destinos futuros da espécie humana, de acordo com os resultados de
sua história".57 Como é resumido por Keith M. Baker: "A história
deveria, portanto, tornar-se a auxiliar da ciência social".58. Assim, a
obra-prima do passado não tem virtude pedagógica a não ser mediante
a comprovação de que os valores presentes já existiam outrora, mas
haviam sido combatidos pelos mal-intencionados.
O escritor e moralista N. de Chamfort já havia garantido que
"a única história digna de atenção é a dos povos livres, enquanto a
dos povos subjugados ao despotismo não passa de uma coletânea de
historietas"." Eis a distinção reivindicada por P. Daunou — na época,
presidente da Convenção (período da Revolução Francesa entre setem-
bro de 1792 e outubro de 1795) — por ocasião da Festa da Queda do
Trono em 10 de agosto, 23 de thermidor do ano III, ao lembrar que
"os anais de um povo inteiro eram suprimidos pela história de uma
família, forçando a nação a procurar nesse episódio as causas de sua
alegria e os períodos anuais de seus folguedos públicos"; entretanto,
no tempo presente, "os cidadãos dos países livres limitam-se a cele-
brar e a prestar homenagem aos acontecimentos imortais da família
nacional". O periódico literário La Décade Philosophique, Littéraireet Politique (1794-1804) dirá, de forma mais sóbria, em germinal do
ano X: "A história da França, propriamente falando, existe apenas após
a Revolução."69 Essa tarefa permanente de apropriação transformou
57. Condorcet, Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain, apres. Alain
Pons, Paris: Garnier-Flammarion, 1988.
58. Keith M. Baker, op. cit., p. 463.
59. Sébastien-Roch N. de Chamfort, Produits de la civilisation perfectionnée: Maximes et
pensées — Caracteres et anecdotes (1795), Paris: Gallimard, 1970, Máxima n. 486.
60. Pierre Daunou, Essai sur l'instruction publique, 27 jul. 1793, in James Guillaume,
op. cit., 1, p. 581: "Para instituir uma República, é insuficiente derrubar um trono
se ainda não tiverem sido abolidas todas as obras da realeza, se não tiverem sido
suprimidas suas criações morais, se não tiverem sido desenraizados os hábitos que
1 1 1
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
o patrimônio em um dos símbolos da vontade revolucionária e par-
ticipou de um imaginário de utopia no sentido em que ela previa,
como afirmava Pierre Francastel, "os efeitos sociais benéficos das artes
depuradas" — no caso concreto, o fim da idolatria.61
Sob o Antigo Regime, de fato, por uma impostura premeditada, o
ídolo usurpava um respeito a que não tinha direito; com efeito, ele era uma
imagem sobreavaliada, cujo gesto iconoclasta manifestava a vacuidade.
Eis o que, desde 1757, na introdução de sua obra, Guillaume-Alexandre
de Méhégan havia afirmado: "A idolatria estava associada à constituição
dos Estados; ela havia sido transformada pelo tempo em uma espécie de
fundamento dos Impérios, dos quais esperava receber toda a proteção."62
Repetia-se, incessantemente, que os objetos em questão eram outros tantos
"chocalhos" com os quais o adulto regride à enfermidade da infância.
A retórica da iconoclastia opunha a um adversário irracional, obscuran-
tista, até mesmo obsceno, o bom senso do patriota. Na edição de 1792 de
sua obra, que obteve grande sucesso, tendo sido vivamente recomendada
pelos panfletos radicais, Louis Lavicomterie de Saint-Samson — jurista,
polígrafo e membro da Convenção, além de primeiro historiógrafo repu-
blicano — afirmava o seguinte: "Se, depois de ter lido esta obra, algum
vil idólatra ainda rasteja diante deles, tendo percorrido sem pavor catorze
séculos de infortúnios e crimes, neste caso, afirmo que a servidão quebrou,
em sua alma, a mola da natureza; afirmo que se trata de um cego nato."63
ela havia imposto, se, finalmente, não houver apropriação das ideias e dos costumes
políticos para harmonizá-los com uma constituição republicana." Sobre essa posição
de La Décade, cf. Jacques Le Goff, Histoire et mémoire, Paris: Gallimard, 1988, p. 253.
Em relação à iconoclastia da Revolução sobre ela própria — assim como sobre a
destruição simbólica das leis anteriores à medida de sua radicalização cf. Jonathan
Ribner, Broken Tablets: The Cult of the Law in French Art from David to Delacroix,
Berkeley: University of California Press, 1993.
61. Bronislaw Baczko, Lumières de l'utopie, Paris: Payot, 1978, p. 36, 51. Cf. ainda Ale-
xandre Cioranescu, L'Avenir du passé: Utopie et littérature, Paris: Gallimard, 1972;
Christian Marouby, Utopie et primitivisme: Essai sur L'imaginaire anthropologique à
l'âge classique, Paris: Le Seuil, 1990.
62. Guillaume-Alexandre de Méhégan, Origine, progrès et décadence de L'idolâtrie, Paris:
Paul-Denys Brocas, 1757, p. 18.
63. Louis Lavicomterie de Saint-Samson, Crimes des rois de France, depuis Clovis jusqu'à
Louis XVI, Paris: Au Bureau des Révolutions de Paris, 1792, p. 3. Cf. ainda o caso da
historiadora Louise de Kéralio em Carla Hesse, The Other Enlightenment: How French
112
Entretanto, o temor de sucumbir ao ídolo antigo era permanente",
alimentado pela fragilidade comum dos homens diante da imagem;
esse medo tinha a ver com a "dúvida no cerne do sensualismo", a qual
suscita "o pavor de não ter conseguido pensar em tudo".65
O ato iconoclasta por excelência é a destruição, total ou parcial,
executada in situ, que aniquila a mensagem original da obra: o melhor
exemplo dessa operação é fornecido pela demolição da Bastilha. Mas,
se a lei de 23 de outubro de 1790 previa a fundição geral dos objetos
preciosos encontrados nas igrejas, as Instructions concernant les châsses,
reliquaires et nutres pièces d'orfevrerie provenant du mobilier des maisons
ecclésiastiques et destines à la fonte, publicadas no ano seguinte, ordenavam
a conservação de todas as obras anteriores a 1300 nas quais o valor do
trabalho artístico fosse superior ao do metal e que tivessem algum inte-
resse por sua qualidade histórica ou pelas informações sobre a evolução
do traje — aliás, a lógica do materiam superabat opus. Tal lógica levou os
membros da Comissão dos Monumentos — que, em 4 de agosto de
1793, examinaram as estátuas restantes da abadia de Saint-Denis —
Women Became Modern, Princeton: Princeton University Press, 2001. Sobre o título
de historiógrafo, cf. François Fossier, "La Charge d'historiographe du XVI' au XIX'
siècle", in Revue Historique, vol. 523, 1977; e "A Propos du Titre d'historiographe
sous l'Ancien Régime", in Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine, vol. 32, 1985.
64. Cf. ainda Robert Sauzet, "L'Iconoclasme dans le diocèse de Nîmes au XVI' et au dé-
but du XVII' siècle", in Revue d'Histoire de l'Église de France, vol. 56, 1980, p. 5-15.
A iconoclastia revolucionária tem numerosas características das iconoclastias clássicas
da modernidade. Desse ponto de vista, podemos apenas indicar o interesse de uma
abordagem "antropológica" dos gestos iconoclastas que permitisse enfatizar certas
regularidades (por exemplo, a decapitação das estátuas). Cf. alguns elementos em
Natalie Zemon Davis, Les Cultes du peuple, Paris: Aubier, 1979, p. 251-307; Phyllis
Mack Crew, Calvinist Preaching and Iconoclasm in the Netherlands, Ie544-1569,
Cambridge: Cambridge University Press, 1978 (que insiste sobre a "magia" do ato e
sobre seu caráter, finalmente, pedagógico); John Phillips, The Reformation of Images:
Destruction of Art in England Ie535-1660, Berkeley: University of Califórnia Press,
1973; Ann Kibbey, The Interpretation of Material Shapes in Puritanism: A Study of
Rethoric, Prejudice and Violente, Cambridge: Cambridge University Press, 1986 (que
evoca, nas p. 42-64, um "materialismo iconoclasta"). Prestemos atenção para não
esquecer a relação da iconoclastia com o medo: Jean Delumeau, em La peur en Occi-
dent, Paris: Fayard, 1978, p. 185, apresenta o vandalismo como "um rito coletivo de
exorcismo", derradeiro recurso para conjurar "a profundidade de um medo coletivo".
65. Mona Ozouf evoca uma verdadeira "reconstituição do meio ambiente", em que "nada
pareceu insignificante" ("Régénération", in Dictionnaire critique, op. cit., p. 825).
113
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
a conservar, no depósito de Petits-Augustins, as estátuas jacentes dos
séculos XIV e XV, interessantes pelo realismo de suas características
e da indumentária. Ao mesmo tempo, eles decidiram abandonar as
esculturas dos séculos precedentes por não oferecerem qualquer carac-
terística notável, "seja para as artes ou para a história".66
Essas diferentes intervenções contaram com a participação, em
diversos planos, do povo e de uma elite de especialistas; a operação
foi tanto oficial e regular (nesse caso, organizada por gestores públicos
ou multidões convidadas) quanto espontânea, até mesmo anárquica.
A ação pôde também desenrolar-se alhures: nesse caso, a eliminação do
objeto foi diferida, seja com o objetivo de cumprir uma tarefa delicada,
uma reutilização técnica (retomada do Hôtel de la Monnaie), seja para
integrar sua destruição a uma festa ulterior, em um lugar mais propício.
Enquanto o motim, a favor da conservação ou da destruição, se desen-
cadeava sempre diante do monumento in situ e assumia um caráterglobal, a iconoclastia parcial associada à conservação assemelhava-se
à "limpeza" dos monumentos, efetuada no próprio local (rasurar as
inscrições) ou intervenções limitadas, realizadas por profissionais, após
transferência para o "centro de triagem" ou para o ateliê (apagar os
brasões estampados nos livros, etc.). Aliás, a remoção — por exemplo,
de objetos de culto — fazia-se às vezes de forma discreta, até mesmo
secreta, para evitar os roubos ou os protestos populares. Assim, os
atores e o caráter do ato iconoclasta eram, evidentemente, diferentes
de acordo com as circunstâncias — na praça pública, na discrição de
um gabinete ou de uma biblioteca — de sua realização. Seu alcance,
porém, permaneceu idêntico, ou seja, uma nova ponderação do va-
lor do passado para o presente, em nome de um saber autêntico dos
princípios e da ciência.
Ocorre que a aplicação de semelhante "doutrina" assumiu um cará-
ter bastante pragmático, como é ilustrado pelo exemplo da catedral de
Amiens: enquanto "ela é considerada pela Comissão das Armas, sem
66. Em relação à abadia de Saint-Denis, cf. a síntese de Pamela Z. Blum, Early Gothic
Saint-Denis: Restorations and Survivals, Berkeley: University of Califórnia, 1992; além
de Roger Bourderon (org.), Saint-Denis ou le Jugement dernier des Rois, Saint-Denis:
PSD, 1993 (Atas do Colóquio).
114
dúvida, mal informada, como um edifício que pode ser descartado e
destruído sem inconveniente, como um amontoado de objetos, sem
outro valor além da matéria bruta, a Comissão dos Trabalhos Públicos,
suficientemente esclarecida [...], vai apreciá-la como um dos mais belos
monumentos da Europa, que não pode deixar de ser conservado em
bom estado para a honra da nação". Por conseguinte, a municipalidade
reivindicou que, em nome do patrimônio, as despesas de manutenção
fossem assumidas pelo governo: "Como a supracitada catedral é um
monumento público que, por ser obra-prima de arquitetura, pode ser
considerado como pertencente à França inteira e não ao departamento
de Somme, nem à cidade de Amiens, tampouco a uma seção dessa
comuna; além disso, é palpável que os cidadãos, em reduzido número,
que se reúnem nesse local para o culto, nunca terão condições de
conservar, em bom estado, esse imenso prédio; sobretudo depois de ter
sido menosprezado, como foi o caso após a Revolução, é evidente que a
administração terá toda a razão em continuar reivindicando os recursos
do governo para as reformas."
O reconhecimento do valor artístico podia ser acompanhado ou não
por mutilações, assim como sua reutilização podia operar-se no próprio
local ou exigir uma transferência. A conservação do monumento podia
servir-se da dissimulação de toda espécie de recursos (estátua por trás
de uma paliçada, quadro virado para a parede, símbolos escamoteados,
etc.). Tal conservação era, em geral, efêmera: a pretensão em garantir
a subsistência do objeto levava, logicamente, a depositá-lo em um
museu. Podia tratar-se então de coleções acessíveis ao público em
geral, ou de acervos de obras úteis, mas repreensíveis, destinadas aos
artistas e cientistas. A transferência para o museu impunha-se, par-
ticularmente no caso de alguns monumentos, cuja permanência na
praça pública havia sido rejeitada. O decreto de 3 de brumaire do ano
II (24 de outubro de 1793), promulgado na sequência do Relatório de
Romme, indicava no artigo 2º que "os monumentos públicos remo-
víveis, que suscitam o interesse das artes e da história, portadores de
algum dos sinais proscritos, cujo desaparecimento causaria um prejuízo
real, serão transportados para o museu mais próximo, no qual deverão
ser conservados para a instrução nacional". Daí, a ideia, proposta por
1 1 5
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
Alexandre Lenoir, de um "Museum inacessível ao público no qual são
reunidos os objetos que, por seu caráter e nas circunstâncias atuais,
não podem ser expostos, mas estarão disponíveis aos artistas para seu
progresso". A proibição de obras nocivas foi, explicitamente, conce-
bida como provisória: com a consolidação da República, as imagens
"feudais" perderão seus poderes e poderão ser mostradas sem risco.
O combate pela autenticidade
A iconoclastia identificava-se com uma hábil restauração; ela remo-
via das obras as marcas contingentes da história para enfatizar o valor
atual, autêntico, mas outrora ignorado, desconhecido, negado ou mani-
pulado de maneira mal-intencionada. Essa retórica da restauração tinha
como complemento lógico, a propósito das remoções das obras-primas
estrangeiras, a da repatriação. A vinda de "Roma a Paris" manifestava
uma verdadeira substituição de um passado transitório pelo presente
eterno. O melhor testemunho foi deixado neste discurso de François de
Neufchâteau: "Os homens ilustres trabalharam não para os reis, nem
para os pontífices, tampouco para seus equívocos. Pode-se dizer que
o gênio é o ouro da divindade; nada de impuro chega a conspurcá-lo.
Esses homens ilustres, durante séculos de servidão, cederam à necessi-
dade da criação. Eles elaboraram suas obras não tanto para sua época,
mas para obedecer ao instinto da glória e, se é que se pode falar assim,
à consciência do futuro. Sem dúvida, eles adivinhavam os destinos dos
povos; e seus quadros sublimes constituíram o testamento pelo qual
eles legaram ao gênio da liberdade o cuidado de oferecer-lhes a verda-
deira apoteose e a honra de discernir-lhes a verdadeira palma de que
eles se sentiam dignos."67 Nesse aspecto, tratava-se de uma restituição
do valor; de fato, as obras desempenhavam o papel de alegorias revo-
lucionárias ao tomarem o lugar das ilusões, daí em diante destruídas,
que elas estavam incumbidas, inicialmente, de fazer perdurar.
67. Sobre o contexto, cf. Martin Rosenberg, "Raphael's Transfiguration and Napoleon's
cultural politics", in Eighteenth-Century Studies, vol. 19, 1986, p. 180-205.
116
Nas imagens herdadas do passado, esse desígnio de regeneração
operava uma dissociação fundamental entre o trabalho despendido,
o savoir-faire desenvolvido pelo artista e o sentido exigido por seus
patrões. O efeito direto de semelhante distinção acarretou uma reifi-
cação do legado que se traduziu pelo primado atribuído ao trabalho,
até mesmo a seu estatuto de prova para a ciência social. Desse modo,
enviados pela Comissão dos Monumentos nos primeiros dias de
setembro de 1793, Cossard e Mulot sublinharam o interesse de con-
servar o medalhão de Luís XIV na prefeitura de Troyes: certamente,
foi necessário "removê-lo da vista dos republicanos que, por seu ódio
contra o despotismo, não teriam suportado observá-lo durante muito
tempo"; mas "tais ornamentos, elaborados pelo cinzel de Girardon,
exigem serem conservados por respeito à arte, por reconhecimento
de seu autor e pelo interesse na formação dos alunos". Entre uma
infinidade de textos similares, o depoimento do membro a Conven-
ção, Lequinio, em 7 de setembro de 1793, sobre os túmulos dos reis
na abadia de Saint-Denis resumia esse expediente instrumentalista:
"Não convém, de modo algum, que esses monumentos sejam objetos
de idolatria para o povo; mas eles devem existir para alimentar a ad-
miração dos amigos das artes, assim como a emulação e o gênio dos
artistas." O valor patrimonial do objeto remetia, em primeiro lugar,
ao elogio do trabalho que o havia produzido; em seguida, tal valor
participava da permanência da lembrança artesanal e artística, além
do culto da memória dos homens ilustres; por último, ele sugeria um
mundo subjacente da arte, submetido tanto a critérios constantes (os
da natureza humana), quanto às "revoluções" da história. Portanto,
diferentes estratégias poderão manifestar-se no interior do mesmo
quadro conceitual, mais ou menos propensas a reconhecer a obra como
presente e, nesse caso, a confirmar seu estatuto ou, pelo contrário, a
compartilhá-la entre parcela eterna e parcela caduca — o que obriga a
um cuidado especial na sua apresentação.Nos museus, além de forne-
cerem modelos aos artistas, as obras-primas serviam de instrução sobre
o que é justo e injusto nas sociedades, assim como formavam, em cada
cidadão, o legislador das artes. Apresentado em 1808 por Joachim Le
Breton, em nome do Institut de France, o Rapport historique sur l'état
117
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
et les progrès des beaux-arts en France afirmava que "a história das belas-
artes de uma nação é, de alguma forma, a história de seu governo e de
seus costumes", reivindicando uma leitura política e social das obras.
Mas, enquanto os revolucionários julgavam ter substituído a ilusão
pela verdade — a imagem, daí em diante, considerada como o que ela
representava para o ídolo, o qual, anteriormente, encarnava o erro ao
ocultar sua própria natureza —, a contrarrevolução lia, simetricamente,
uma alteração absurda ou falsa da herança. Para além de um equívoco
primordial — o museu alimentava-se com as ruínas do mundo —, a
tese contrarrevolucionária denunciava a carência de gosto e a igno-
rância: eis o que A. Rivarol transformou em motivo recorrente do
discurso da reação. Ao exigir que o Diretório (período da Revolução
Francesa entre outubro de 1795 e setembro de 1799) suspendesse a
pilhagem dos monumentos romanos, a petição dos artistas afirmava
recear somente que "tal entusiasmo que nos deixa apaixonados pelas
produções do gênio não venha a desencaminhar até mesmo os amigos
mais ardorosos em relação aos verdadeiros interesses". Entretanto, a
obra de Quatremère de Quincy, Lettres à Miranda — que havia inspi-
rado a petição —, criticava abertamente uma "tola afeição pelas artes"
e uma "sabença" de "supostos eruditos": "Nada é tão perigoso quanto
um amigo ignorante." A idolatria condenada, aqui, remetia a um pro-
letariado de semicultos e a intelectuais mambembes ("Outras tantas
crianças que se disputam imagens"); ela evocava também a figura de
um desenraizamento que se referia a operações comerciais, quando "as
obras tornam-se outros tantos 'fardos de mercadorias' a transportar".
O aspecto mais pernicioso dessa idolatria do gênio, identificado por
Quatremère com o espírito revolucionário, tinha a ver com o ativismo
artístico que ela alimentava: sabe-se como o horror da ação era uma pedra
de toque inabalável da posição contrarrevolucionária." Winckelmann
havia insistido sobre o fato de que a melhor qualidade da escultura grega
correspondia a um período bem determinado, ou seja, o produto de
circunstâncias ao mesmo tempo geográficas, políticas e religiosas que
não podiam voltar a manifestar-se. Simultaneamente, segundo parece,
68. Cf. Stéphane Riais, Révolution et contre-révolution au XI» siècle, Paris: Albatros, 1987.
118
ele esperava assistir ao renascimento da arte grega: mas como conciliar
uma visão messiânica da liberdade com um organicismo?69 Daí, um
debate capital entre aqueles que consideram os dois postulados como
incompatíveis e aqueles que propõem (sem grande sucesso) sua conci-
liação. Concretamente, a Revolução Francesa fornecia a seus admirado-
res a expectativa de igualar os gregos, para não dizer de superá-los, em
nome de um democratismo estético, baseado no efeito das instituições:
a força das leis regeneradoras, segundo o que se julgava, não podia ser
sobreavaliada. Entre os revolucionários, as obras patrimonializadas
eram outras tantas figuras dos princípios eternos: elas remetiam não
tanto a um passado específico, mas à atualidade de uma promessa.
Inversamente, para seus adversários, a impossibilidade de um retorno à
perfeição antiga tornara-se, no plano político, um artigo de fé. As causas
físicas do milagre grego eram, naturalmente, enfatizadas; por sua vez, no
campo oposto, a valorização incidia sobre as causas morais."
As representações antagonistas do Museum universal são, nesse
aspecto, exemplares. Enquanto ele era identificado por Quatremère
com Roma, Mathieu imaginava-o confundido, no futuro, com a
República, a partir da transformação utópica: "Ao considerar tudo
o que a Natureza e a arte fizeram e podem fazer na França, a Repú-
blica inteira será um imenso e esplêndido Museum."71 O museu do
futuro dava testemunho, aqui, de um ideal ainda a realizar — o de
uma humanidade superior —, enquanto Roma-museu encarnava, em
Quatremère, a república das artes e das letras, espaço homogêneo da
inteligência europeia, hoje destruído. Em um caso (Mathieu), bastava
que a vontade geral mantivesse tal expectativa; no outro (Quatremère
ou, ainda, Carlo Fea), um conjunto de circunstâncias, de condições
69. Sobre o debate ulterior, cf. Brian Vick, "Greek Origins and Organic Metaphors: Ideais
of Cultural Autonomy in Neohumanist Germany from Winckelmann to Curtius",
in Journal of the History of Ideas, vol. 63, n. 3, 2002, p. 483-500.
70. O tema é desenvolvido, em particular, por Pierre Chaussard, em seu &sai philosophique
sur la dignité des arts, Paris: Impremerie des Sciences et des Arts, ano VI; assim
como pelo tradutor de Winckelmann, Hendrick Jansen (1742-1812), em seu Projet
tendam' à conserver les arts en France..., Paris, 1791.
71. Mathieu, presidente do Comitê das Artes, fevereiro de 1794.
119
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE
geográficas, históricas, políticas — em que tinha sido preponderante
o papel desempenhado pela memória, pelos costumes e pela rotina -
haviam reunido, sob o céu romano, o essencial do Belo.72 A demons-
tração resumia-se à negação da eficácia, por si só, dos modelos formais
que a educação de museu propunha de acordo com esta fórmula da VIe
Lettre à Miranda: "O infortúnio é que a virtude associada ao conjunto
de uma escola não se comunica, como é o caso de uma relíquia, a cada
uma de suas partes isoladamente."
A reflexão histórica revolucionária culminava na construção pri-
mordial do passado nacional como inimigo, sob as características do
Antigo Regime: nada, ou muito pouco dessa época parecia utilizável
para a regeneração já empreendida, enquanto uma política da memória
visava manter a lembrança renovada de uma época inédita em todas
as suas encarnações e que deve ser perpetuamente renovada ou sobre-
carregada de exemplaridade, sob pena de conhecer o estiolamento e o
declínio. Nesse caso, as obras herdadas do passado eram submetidas ao
imperativo de manifestar a atualidade; daí em diante, debilitadas em
seus desígnios, elas davam testemunho do talento — outrora oprimido
— de seus criadores. Quatremère de Quincy defendia, inversamente,
a ineficácia das obras-primas do passado desde que fossem privadas
de seus destinos e separadas de suas lembranças. Tais representações
opostas do "patrimônio" — idolatria do passado ou, ao contrário,
alegoria contemporânea — não devem dissimular, porém, uma cliva-
gem mais profunda, que interferia na própria possibilidade de pensar
um patrimônio de um ponto de vista "cultural" e não de um modo
exclusivamente político.
Em seu livro Opinion sur les musées, o escultor L.-P. Deseine criti-
cava o museu de Lenoir por configurar a vertente da hybris denunciada
por Quatremère, na transferência de "Roma". 'Alguém poderá ques-
tionar-se", escreve ele, "como a demência chegou ao ponto de imaginar
que um recinto com algumas polegadas, no qual existem oito túmulos,
algumas estátuas de diferentes épocas e alguns baixos-relevos, bastará para
72. Pascal Griener, "Carlo Fea and the Defense of the Museum of Rome, 1783-1815",
in Georg-Bloch Jahrbuch, n. 7, 2000, p. 96-110.
120
dar à posteridade uma ideia apropriada das maravilhas do século XVII?"
A esta crítica contra um fetichismo museográfico, acrescentava-se a
crítica conta a desnaturalização de monumentos "democratizados",
que lhes forneceu, "sucessivamente, o caráter de diferentes facções que
dominavam a opinião pública"." Desse modo, Deseine denunciava
uma idolatria inédita em que a obra transportada era avaliada, daí em
diante, como imagem do novo regime e não comolegado da história;
de maneira notável, ele enfatizava sobretudo a necessidade de despoli-
tizar a definição dos monumentos para fazer aparecer, precisamente, a
noção de patrimônio nacional. Enquanto a nação estiver identificada
com a Revolução, em uma completa absorção, será impossível apa-
recer sua verdadeira caracterização cultural Com a campanha contra
o vandalismo do abbé Grégoire e dos Thermidoriens , com a despoli-
tização dos museus, a herança do passado pôde ser nacionalizada e
estetizada (François Guizot reconhecerá o mérito de Lenoir por ter
sido o primeiro a considerar os monumentos franceses do ponto de
vista da arte, e não mais somente como outras tantas antiguidades para
eruditos). Desde então, a nação pôde apropriar-se do passado como
recurso e não mais como ameaça, além de pensar seu futuro em termos
de definição progressiva de uma identidade; assim, as peripécias do
decênio legavam um fecundo repertório de conflitos aos séculos XIX
e XX. Entre herança revolucionária e mania nascente por estátuas,
David d'Angers escreveu em uma carta de 1847: "É necessário que
[...] a França se torne um vasto panteão."74 Mas, a orientação geral
está bem definida: a ênfase será colocada, daí em diante, no fato de
que, tendo sido patrimonializado, o passado da cultura representava
73. Louis-Pierre Deseine, Opinion sur les mùsées, où se troùvent retenus tous les objets
d'art qui sont la propriété des temples consacrés à la religion catholiqùe, Paris, 1801.
Louis-Pierre Deseine (1749-1822), escultor francês que participava, regularmente,
dos Salons, expondo os bustos de artistas ou de personalidades da época. Em 1780,
obteve o Prêmio de Roma de escultura. [N.T.]
74. ApùdViviane Huchard (org.), Aux Grands Hommes, David d'Angers, Fondation Cou-
bertin, 1990, p. 52 (Catálogo da exposição). [Pierre Jean David, chamado "David
d'Angers" (1788-1856)), escultor e estatuário francês. Entre a produção de grande
número de obras de diversos gêneros — monumentos, túmulos, bustos, medalhões,
baixos-relevos —, destaca-se o célebre frontão do Panthéon, em Paris. (N.T.)]
121
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
de maneira ideal, segundo a fórmula de Étienne François, "os três
valores fundamentais, ou seja, a identidade (a nação é pensada e
apresentada como uma pessoa), a continuidade (no decorrer de toda
a sua história, a nação permanece a mesma; além disso, os diferentes
momentos de seu passado só adquirem sentido ao serem relacionados
uns com os outros) e a unidade (a única garantia da existência da
nação é a unidade de todos os seus membros)".75 O mesmo ocorreu
relativamente aos seguintes aspectos: invenção dos antepassados fun-
dadores; construção de uma história amplamente compartilhada e que
havia passado ao estado, por assim dizer, de conhecimento difuso no
corpo social; afirmação de uma língua e de uma literatura comuns;
e, por último, progressiva sensibilização em relação a uma paisagem
concebida como uma representação do território nacional [pays]. 76
75. Étienne François, "Les Mythologies historiques des nations européennes", in Pùblics et
projets culturels: Un Enjeu des musées en Europe, Paris: L'Harmattan, 2000, p. 126-137.
76. Em uma imensa bibliografia, cf. Denis E. Cosgrove e Stephen Daniels (orgs.), The
Iconography of Landscape: Essays on the Symbolic Representation, Design and Use of
Past Environments, Cambridge: Cambridge University Press, 1988; Simon Schama,
Le Paysage et la mémoire, Paris: Le Seuil, 1999; François Walter, Les Figures paysagères
de la nation: Paysage et territoire en Eùrope (XVIe-XXe siècle), Paris: EHESS, 2004.
122
3
A MEMÓRIA INSPIRADORA
Não existe homem iletrado, ignorante, nem espírito indiferente
, insensível, qùe possa evitar ùma emoção de respeito
— eu diria quase de terror — ao entrar nas salas de nosso
museu de história natural [...] Façamos votos de qùe [ . .1,
ao lado dos naturalistas ilustres, sejam colocadas as imagens
dos navegantes corajosos e dos viajantes perseverantes; todos
eles, pelas pesqùisas empreendidas e pelos perigos enfrentados,
arriscando incessantemente suas vidas, trouxeram-nos estes
tesouros. Apesar de serem valiosos em si mesmos, seu valor
é, talvez, ainda maior pelo heroísmo e destemor de quem os
obteve para nós. [...] Essa é a dùpla grandeza deste lugar.
Alguns heróis enviaram esses objetos qùe firam coletados,
classificados, harmonizados por homens importantes, para
qùem tùdo afluía como se tratasse de um centro legítimo;
além disso, tanto por sua posição como por seù gênio, eles cria-
ram as condições de operar, aqui, a centralização da natùre-
za. [ De modo que essas coleções, sùpostamente mortas,
estão vivas; animadas pelos ilustres espíritos qùe convocaram
todos esses seres como testemunhas de seu combate fecùndo,
elas guardam ainda a palpitação dessa luta.
Jules Michelet, L'Oiseaù, 1856.
A Revolução Francesa — escreveu, alhures, o mesmo Michelet -
abriu "dois imensos museus", na sequência da festa de 10 de agosto
de 1793, que legaram "uma impressão indelével" a seus visitantes':
um deles é o Louvre, "museu das nações", que reunia todas as escolas
artísticas nacionais e que, após disputas complexas com o programa
de um museu da École Française, em Versalhes, irá expor as melhores
obras dessa escola; observava-se nesse espaço, em uma perspectiva uni-
versal, cada povo "representado por sua arte e por imortais pinturas".2
Entretanto, ele permanecia como que privado desse caráter intimamente
nacional que, pelo contrário, caracterizou desde o início o espaço dos
1. J. Michelet, Histoire de la Révolùtion Française, II, livro XII, cap. VII. Paris: R. I affont,
1979, p. 548-549.
2. Ibidem, p. 549.
123
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
Petits-Augustins, museu de monumentos — ou seja, de túmulos e até
mesmo, mais precisamente, como veremos, de corpos históricos. Neste
livro, vamos defender que os "monumentos" conservados pela França
regenerada ilustram uma dimensão fundamental, ou seja, aquela que
o antropólogo Ernesto De Martino define como "o poder formal de
transformar em valor o que, na natureza, nos conduz para a morte.3
Ao separar-se da França do Antigo Regime, a Revolução tornava pos-
sível uma apreensão sem precedentes do passado nacional; o que, porém,
não se efetuou de maneira evidente ou imediata. Como foi demonstrado
por Lionel Gossman, somente o romantismo político e religioso da década
1830-1840 conduziu o labor dos antiquários, por exemplo, o de Lacurne
de Saint-Palaye, à narrativa nacional. Segundo parece — pelo menos
retrospectivamente —, tal desfecho correspondia a uma evolução lógica.
O espanto manifestado pela geração da primeira metade do século XIX
diante da indiferença de seus pais pela história nacional dava testemunho
de uma sensibilidade inédita; aliás, ela constituiu uma das figuras da rup-
tura moderna. Com efeito, entretempo, foi necessário apropriar-se dos
corpos desaparecidos: passar dos monumentos inacabados do século XVIII
e das ruínas fictícias para verdadeiros túmulos densos, por assim dizer, de
diversas presenças, tais como eles foram reconhecidos pelo século XIX.
Assim, Michelet faz uma leitura retrospectiva, em forma de estética da
nação, do museu de Alexandre Lenoir, e seu encantamento data de 1846.
"Na juventude de Michelet, não havia discurso apropriado para exprimir
uma relação viva e afetiva com as imagens do passado", o que será o caso,
em seguida, com a geração do historiador e político barão de Barante e
de Walter Scott — cuja epístola na dedicatória do romance Ivanhoé, em
1819, propunha pela primeira vez a metáfora da ressurreição.' Essa era
uma leitura fantasmática do museu: a dos corpos do passado a ressuscitar.5
3. Ernesto De Martino, Morte e planto rituale nel mondo antico: Dal lamento pagano al
planto di Maria (Turim: Bollari Boringhieri, 3. ed., 2000), apud Roberto Harrison,
Les Morts, Paris: Le Pommier, 2003, p. 107.
4.Stephen Bann, "The Road to Roscommon", in Oxford Art Journal, vol. 17, n. 1,
1994, p. 98-102.
5. "A História é, afinal de contas, a história do lugar fantasmático por excelência, a saber,
o corpo humano; ao partir desse fantasma, associado nele à ressurreição lírica dos
124
O culto dos homens ilustres
Sob o Antigo Regime, a memória dos defuntos tinha a ver com um
conjunto de representações, ao mesmo tempo, religiosas e sociais. De acordo
com a proposta de Reinhart Koselleck, elas foram identificadas com duas
características principais: "Por um lado, o além da morte é plasticamente
representado; por outro, a morte é, em sua relação com o mundo, diferen-
ciada segundo cada ordem e cada estado. [ Verifica-se uma interferência
recíproca entre a transcendência cristã da morte e a diferenciação, segundo
a ordem, da morte empírica."
Na sequência, o culto dos homens ilustres constituiu um ele-
mento essencial da representação da sociedade das Luzes que, por seu
intermédio, "não cessa de narrar a si mesma seu próprio advento".6
Em particular, "por volta de 1760 e até a Revolução, a apologia do
letrado transformou-se uma verdadeira glorificação, associada em um
tom grandioso a uma doutrina geral de emancipação e de progresso".
Tal desígnio de forjar um corpus de homens importantes inscrevia-se
em uma transferência notória da sacralidade. Stendhal tornou-se sua
testemunha militante quando evoca, em seu avô, "uma veneração e
afeição pelos homens ilustres que haviam provocado um grande choque
ao rev. pároco" e compreendiam "todos os homens ilustres da França,
desde Clément Marot a Voltaire, Diderot e D'Alembert".7
A anglomania mobilizou, na época, a imagem de Westminster
como monumento da nação, desde Voltaire em seu livro Lettres phi-
losophiques (1734), mesmo que alguns tivessem denunciado a incon-
gruência de uma comercialização do espaço para a grande satisfação
corpos passados, é que Michelet conseguiu transformar a História em uma imensa
antropologia" (Roland Barthes, La leçon, Paris: Le Seuil, 1978).
6. Jean-Claude Bonnet, Naissance du Panthéon: Estai sur le culte des grands hommes,
Paris: Fayard, 1998, completado por Michael Garval, "A Dream of Stone: Fame,
Vision and the Monument in Nineteenth-Century French Literary Culture", in
College Literatùre, vol. 30, 2003, p. 82-119.
7. Stendhal, Vie de Henry Brulard, Paris: Gallimard, p. 170.
125
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
de diversos novos-ricos que, no local, mandaram erigir extravagantes
monumentos.8 Mas, para além dessas relações complexas entre riqueza
privada e devoção pública que marcaram amplamente o novo classi-
cismo fim de siècle, foi sem dúvida a literatura utópica — orientada
pelos ideais da razão e da moralidade, além de sua preocupação em pôr
termo à desordem de instituições ridículas ou funestas — que forneceu
as imagens mais impressionantes do Panthéon. As origens da sociedade
descrita por essa literatura são unicamente aquelas que o legislador lhe
atribui; ora, em seu funcionamento, elas desempenham um papel não
menos essencial que o da tradição para o regime absoluto.
A mais célebre dessas elaborações continua sendo a obra Paris en
l'an 2440, de Louis-Sébastien Mercier, em que o testamento tornou-
se o órgão exclusivo da memória coletiva; os cidadãos reconhecidos
por seus méritos são os únicos a serem celebrados, em nome de uma
mentalidade histórica discriminatória" (Bronislaw Baczko). "Esse
espaço" — observa o historiador —, "além dos monumentos e templos,
é mobiliado por uma verdadeira arquitetura ficcional": em particular,
por galerias dos estadistas ilustres, por uma verdadeira "fila de heróis,
cujo semblante, silencioso sem deixar de ser imponente, proclama a
todos que é útil e grandioso angariar a estima do público". As estátuas
de Voltaire, Rousseau e Buffon formam "um livro de moral" e todos
conjuntamente dão "uma lição pública tão vigorosa quanto eloquente".
O respeito pelo gênio levou, também, a homenagear os espaços
ocupados por ele. De acordo com a observação de Jean-Claude Bonnet,
a melhor descrição dessa nova moda deve-se a Diderot em Essai sur
les règnes de Claude et de Néron (1778): "Uma espécie de reconheci-
mento delicado acrescenta-se a uma curiosidade digna de elogios para
despertar nosso interesse pela história privada dos autores, cujas obras
8. Cf., nas perspectivas entrecruzadas aqui, os trabalhos bastante diferenciados em sua
inspiração de Philip Connell, "Death and the Author: Westminster Abbey and the Me-
anings of the Literary Monument", in Eighteenth-Centùry Studies, vol. 38, n. 4, 2005,
p. 557-585; Matthew Craske, "Westminster Abbey 1720-1770: A Public Pantheon
Built upon Private Interest", in Richard Wrigley e Mattew Craske (orgs.), Pantheons:
Transformations of a Monumental Idea, Aldershot: Ashgate, 2004, p. 57-80; além de
David Bindman e Malcolm Baker, Roubiliac and the Eighteenth-Century Monument:
Sculpture as Theatre, New Haven: Yale University Press, 1995, cap. 2.
126
suscitam nossa admiração. [...] Gostamos de visitar suas moradias."
Portanto, na França do século XVIII, o culto pelos homens ilustres
implicava uma peregrinação a seus túmulos ou lugares de criação,
reativando rituais reservados até então à categoria do sagrado. Em pri-
meiro lugar, aparece a visita ao escritor famoso' que, no século XIX,
irá conhecer certo número de avatares até configurar uma espécie de
corpo a corpo que a simples leitura não permite alcançar, ou apenas
de maneira insuficiente. 10
A sanção da opinião pública tornava-se, assim, necessária para o
sucesso de uma homenagem, mesmo que fosse pronunciada em nome
da república das letras; aliás, desde 1765, Marc Antoine Laugier -
no capítulo "Monumentos em homenagem aos homens ilustres" de
seu livro Observations sur l'architecture — recomendava que se fizesse
apelo ao "voto do público" para selecionar os respectivos beneficiários.
Na tensão entre essa reverência devotada a personagens específicos
e a homenagem geral prestada ao engenho humano é que se esboçou,
aos poucos, a figura do Pantheon francês. No início do reinado de Luís
XVI, a França conheceu, na pessoa do conde d'Angiviller (1730-1809),
nomeado diretor das Obras Públicas, uma nova política da posteridade:
um de seus símbolos foi, em 1775, a nomeação de Thomas, autor de
célebres Éloges, para o posto de historiógrafo dessa repartição pública."
E, acima de tudo, o diretor anunciou, em dezembro de 1774 e em
9. Olivier Nora, "La Visite au grand écrivain", in Pierre Nora (org.), Les Deux de
mémoire, II: La Nation, vol. 3. Paris: Gallimard, 1986, p. 563-587.
10. Desse ponto de vista, Marc Augé descreve a visita aos castelos em termos reveladores:
"A percepção da casa como corpo efetua-se em dois planos: a casa é um corpo em
si, tem sua própria personalidade, sua aparência, suas aberturas, sua intimidade, e
por ser um corpo é que ela pode ser assimilada ao corpo daquele ou daquela que o
ocupa, do ponto de vista seja do próprio ocupante, seja de uma testemunha exterior
que, impelida pela energia romanesca do ódio, amor ou lembrança, será levada a
confundir uma pessoa ainda viva ou falecida com o invólucro de pedra em que se
dissimula seu corpo ou sua sombra." (Domaines et châteaux, Paris: Hachette, 1992.)
11. Sobre o contexto do sucesso considerável obtido por Éloges de Thomas no âmago do
espaço acadêmico e do campo literário, cf. Georges Armstrong Kelly, "The History
of the New Hero: Eulogy and Its Sources in Eighteenth-Century France", in The
Eighteenth Centùry, vol. 21, 1980, p. 3-24; Volker Schröder, "Entre l'Oraison funèbre
et l'éloge historique: L'Hommage aux morts à l'Académie Française", in MLN, vol.
116, 2001, p. 666-688.
127
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
janeiro de 1775, a encomenda anual de "quadros de história e de es-
tátuas, cujo tema será a figura dos homens ilustres da França".12
Tal iniciativa ia alimentaro projeto de museu no Louvre, já evo-
cado favoravelmente pela Encyclopédie, e que os dirigentes das Obras
Públicas pretendiam levar a bom termo, dedicando-o "à glória tanto
dos Reis da França como dos Homens Ilustres da Nação". De forma
mais geral, uma série de projetos arquiteturais acalentava a ideia de
um campo santo em que houvesse uma mistura do culto pelos homens
ilustres com a religião dinástica na mesma exaltação da moral pública.13
Ao estudar os projetos da década de 1780, John Mac Manners
evoca um "idílio, mediante o pagamento de somas consideráveis, de
túmulos pitorescos no meio de árvores e de canteiros de flores, or-
nado de templos, colunatas e estátuas", assim como "uma espécie de
Panthéon nacional", construído em decorrência de um "vandalismo
patriótico" por antecipação. Aliás, frequentemente, a posição dos tú-
mulos era ordenada segundo as famílias, assim como de acordo com
o dever: os dois sistemas da raça e do mérito coabitavam no cerne de
um patriotismo esclarecido. '4
12. Andrew McClellan, "La Série des grands hommes de la France du comte d'Angiviller
et la politique des parlements", in Clodion et la sculpture française de la fin du XVIII
siècle: Actes du colloque du musée du Louvre, 20-21 mar. 1992, Paris, 1993.
13. Sobre o tema da arte que serve de ilustração para a virtude, c£ a tese sempre válida de
Jean Locquin, La Peinture d'histoire en France de Ie747 à 1785 (Paris, 1912), Arthena, 1978.
14. Cf. John Mac Manners, Death and Enlightenment Changing Attitudes to Death among
Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University
Press, 1981. A publicação Nouvelles de la République des Lettres et des Arts de 3 de
janeiro de 1787 observava que esse cemitério reúne, "em torno de nossos soberanos,
até mesmo depois de seu óbito, aqueles que mantêm com eles vínculos de sangue,
reconhecimento, amor, patriotismo, virtudes, ciências e talentos, a fim de que os
sujeitos, cujos serviços ou conhecimentos haviam alicerçado a glória de nossos reis,
sirvam ainda à sua imortalidade pela homenagem contínua e coletiva que lhes seria
prestada pela posteridade nesses amplos monumentos" (apud Richard Etlin, The Cemetery and the City: Paris, Ie744-1804, Ph.D. Princeton University, 1978).
128
A funcionalização dos mortos15
No início do século XIX, aparece o que Reinhart Koselleck designa
como "a funcionalização da representação da morte em benefício dos
sobreviventes". A venda dos bens da primeira ordem, no período inicial
da Revolução, parece ter proporcionado a oportunidade de uma política
da memória, finalmente, moral e lógica. As intervenções sobre os restos
mortais dos homens ilustres a fim de prestar-lhes uma homenagem
solene manifestam claramente que a Revolução entende como fundar,
de novo, o passado em seus próprios monumentos. Alguns mausoléus
desapareceram com as cinzas que eles continham, enquanto outros
subsistiram na qualidade de monumentos históricos, e, finalmente,
outros acabaram por ser erguidos no lugar dos modestos túmulos ou-
trora dedicados ao gênio, às vezes longe do local da sepultura original.
A criação do Panthéon resultou do discurso do marquês de Vilette
ao clube dos jacobinos, em 10 de novembro de 1790: "De acordo com
os decretos da Assembleia Nacional, a abadia de Sellières foi vendida e,
nesse local, jaz o corpo de Voltaire; ora, ele pertence à Nação. Os senhores
consentirão que essa preciosa relíquia se torne a propriedade de um parti-
cular? Permitirão que ela seja vendida como bem nacional ou eclesiástico?
Se os ingleses chegaram a reunir seus homens ilustres em Westminster, por
que hesitaríamos em colocar a urna de Voltaire no mais belo de nossos
templos, na nova Sainte-Geneviève, em face do mausoléu de Descartes?
[...] Desse modo, estou decidido a erguer-lhe um monumento por minha conta."16 A
invenção de relevantes exemplos apropriados para suscitar
15. Adoto, nesse ponto, a posição de Mark K. Deming no catálogo da exposição dirigida
por Barry Bergdoll, Le Panthéon, symbole des révolùtions, Paris: CNMHS, Hôtel de
Sully; e em "Le Panthéon révolutionnaire", Montreal: CCA/Picard, 1989, p. 97-150.
Essa representação é, evidentemente, a herdeira de uma longa tradição; aliás, uma
de suas etapas notórias é a publicação de Titon du Tillet, Description du Rimasse
françois exécuté en bronze à la gloire de la France et de Louis le Grande et à la mémoire
perpétuelle des illustres poètes et das fameux musiciens françois, Paris, 1760. Sobre esse
projeto de 1708, cf. J. Colton, The Parnasse (rançaïs: Titon du Tillet and the Orïgins
of the Monùment to Genius, New Haven: Yale University Press, 1979.
16. Cf. Marie-Louise Biver, Le Panthéon à l'époque révolùtionnaire, Paris: PUF, 1982;
assim como Les Fites révolutionnaires à Paris, Paris: PUF, 1979, p. 37-38, que fornece
uma coletânea de textos sobre as sucessivas panteonizações.
129
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
a emulação foi, particularmente, evidente no decorrer da Revolução";
além disso, a literatura contrarrevolucionária não se equivocou a esse
respeito, transformando o tema dos "homens ilustres" em material que
desencadeou uma profusão de sarcasmos. No livro Petit Almanach de nos
grands hommes (1788), Rivarol descreveu o retrato coletivo das medio-
cridades literárias antes de esboçar sob a Revolução, durante seu exílio
na Holanda, um contrarretrato do filósofo ( De la Philosophie moderne).18
Do mesmo modo, as antiutopias floresceram no discurso dos anti-Luzes,
exacerbado no decorrer do primeiro ano da Revolução.19 Aliás, a questão
da legitimidade de um Panthéon para garantir a imortalidade literária
foi formulada no próprio campo revolucionário: Louis-Sébastien Mercier
havia assumido uma postura semelhante a propósito de Descartes.
De qualquer modo, entre os revolucionários, subsistia uma contra-
dição fundamental — como é sublinhado por Michel Vovelle — entre
duas mortes, objeto da atenção dos doutos por ocasião do concurso
promovido pelo Institut, em 1800, sobre os funerais: entre "a morte
ameaçadora, repugnante, perigosa, cuja gestão é assumida por eles, e
a outra morte, abstrata, útil, recuperável, a serviço da vida"." Desta
última, Arsenne Thiébaut esboçou as vantagens ao evocar em seu livro
Réflexions sur les pompes funèbres, publicado em frimaire do ano VI
(1797), os "efeitos maravilhosos que o busto dos homens ilustres, e as
honras que lhes são conferidas, terão sobre os costumes, as ciências e
as artes. [...] Nesta escola é que o professor primário formará o aluno;
daí é que o artista extrairá seus temas; para aí é que a mãe conduzirá o
17. Léonard Bourdon, Recueïl des actïons héroïques et civiques des Républicains français,
ano II.
18. Philippe Roger, "Les Grands Hommes de Rivarol", in Le Culte des grands hommes,
Actes des troisièmes entretiens de La Garenne-Lemot, Nantes: Université de Nantes,
1998, p. 43-52.
19. No livro L'Île des philosophes (1790), o obscuro abbé Balthazard descreve uma viagem
na ilha do acaso, na qual reinam as doutrinas de seus inimigos. Cf. Darrin M. Mc-
Mahon, "Narratives of Dystopia in the French Revolution", in Yale French Studies,
n. 101, 2001, p. 103-118; e, de forma mais geral, Enemies of the Enlightenment: The
French Counter-Enlightenment and the Making of Modernity , Nova York: Oxford
University Press, 2001.
20. Pascal Hintermeyer, Politiques de la mort, Paris: Payot, 1979, p. 73; Michel Vovelle,
La mort et l'Occident, de 1300 à nos jours, Paris: Gallimard, 1983.
130
filho para corrigir seus vícios; aí é que o aspecto desses bustos servirá de
veículo para a emulação e para o amor da Pátria; aí, finalmente, é que o
viajante virá avaliar a glória da República e a felicidade do povo".21 Nessa
perspectiva, o Panthéon transformou-se, de acordo com a expressão
forjada por Mona Ozouf, na "escola normal dos mortos".22
Entretanto, o advento dessa morte patriótica dependia da cons-
truçãode valores adequados, o que não aconteceu sem vicissitudes.
As sucessivas transferências dos restos mortais do marechal da França
Henri de La Tour d'Auvergne, visconde de Turenne (1611-1675),
caracterizaram, nesse sentido, um percurso exemplar": a "múmia" des-
secada, removida da urna da abadia de Saint-Denis, foi mostrada, em
primeiro lugar, aos amadores (durante uns oito meses), mediante uma
gorjeta ao guardião; em seguida, ela foi transportada para o Museu de
História Natural e "colocada entre o esqueleto de um rinoceronte e o
de um elefante". Em 15 de thermidor do ano IV (2 de agosto de 1796),
os Cinq-Cents24 deram-se conta de que os restos mortais de Turenne
haviam sido deslocados para esse local e o Diretório ordenou que eles
fossem depositados no Museu dos Monumentos Franceses. Depois de
terem sido conservadas como curiosidade da física — por seu material
—, as ossadas de Turenne voltaram então a seu túmulo, que, por isso
mesmo, se tornou monumento histórico. Mais tarde, tendo sido infor-
mado de um destino considerado, por sua vez, inconveniente, Napoleão
decidiu instalar, solenemente, o mausoléu no Hôtel des Invalides, contra
a opinião de Lenoir, que pretendia estabelecer a dissociação entre os
restos e o monumento — conservar o túmulo para a história, em seu es-
tabelecimento, e mandar erguer um novo mausoléu, adaptado à sua nova
situação como ao gosto presente. Os restos mortais de Turenne haviam
21. ApudRichard Etlin, op. cit., p. 327.
22. Mona Ozouf, "Le Panthéon, l'école normale des morts", in P. Nora (org.), Les Lieùx
de mémoire: La Republique, Paris: Gallimard, 1984, p. 139-196.
23. Cf. ainda Suzanne Clover Lindsay, "Mummies and Tombs: Turenne, Napoleon and
Death Ritual", in Art Bulletin, vol. 82-3, 2000, p. 476-489.
24. Conseil des Cinq-Cents (Conselho dos Quinhentos). Sob o Diretório (1795-1799),
essa assembleia constituía — com o Conseil des Anciens (Conselho dos Anciãos,
formado por 250 deputados) — o poder legislativo. [N.T.]
131
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
percorrido, de algum modo, o arco completo dos tipos e dos valores de
conservação, tendo acabado por ilustrar um caso exemplar dessa política
das novas sepulturas, adotada nesse período no Panthéon e alhures."
O caso ilustra perfeitamente a constatação feita por Robert Harrison,
segundo a qual "as leis culturais da mudança são históricas e, por-
tanto, obedecem também à lei da mudança. Sem sua substituição
por novas leis, não há transformação de valor, porque, precisamente,
estamos desprovidos de um saber do luto".26 Nesse momento histó-
rico particular que foi a Revolução Francesa, o desafio consistia em
que os túmulos herdados tivessem um lugar em uma esfera pública,
exclusivamente regida pelo valor testamentário heroico — prelúdio à
exigência comemorativa, tal como ela será concebida pelo romantismo.27
O Panthéon — que, de acordo com a sugestão de Quatremère de
Quincy, deveria ser rodeado por uma cerca viva, à semelhança do
que havia sido adotado no recinto sagrado dos templos antigos28 — e
em seguida o museu, sob suas diferentes formas, constituíam uma
possibilidade de outros tantos novos santuários. Na escala regional e
local, os decretos ulteriores sobre as sepulturas davam testemunho do
empreendimento descristianizador, além da continuidade do combate
higienista e dos modelos de "campos de repouso" que triunfarão no
ano XII com o decreto do Conselho de Estado sobre as sepulturas."
25. Permito-me citar meu livro Surveiller et r'instruire: La Révolution Françaire et
l'intelligence de l'héritage historique, Oxford: Voltaire Foundation, 1996. Para um
balanço da reflexão contemporânea dos especialistas sobre esse tema, cf. em particular
Gary S. McGowan e Cheryl J. LaRoche, "The Ethical Dilemma Facing Conservation:
Cate and Trearment of Human Skeletal Remains and Mortuary Objects", in Journal
of the American Institute for Conrervation, vol. 35, n. 2, 1996, p. 109-121.
26. Robert Harrison, Les Mortr, Paris, Le Pommier, 2003, p. 107.
27. Para as notas de rodapé, suprimidas na tradução francesa, cf. a edição original de
Robert Pogue Harrison, The Dominion of the Dead, Chicago: University of Chicago,
2003, p. 162-167.
28. Mark K. Deming, in Barry Bergdoll, op. cit., p. 136-138.
29. Ao lado dos famosos decretos de Fouché ou Chaumette, o de Étienne Maignet -
em Marselha, promulgado em 9 de germinal do ano II — pretende, assim, assumir
toda a "economia da morte": cf. Régis Bertrand, "Maignet, Marseille et la mort: La
Réorganisation des sépultures en I'an II", in Elizabeth Liris e Jean-Maurice Bizière
(orgs.), La Révolution et la mort, Toulouse: Mirail, 1991, p. 61-73.
132
Por toda parte, o reordenamento revolucionário pretendia supe-
rar o que Mark K. Deming designa como "os conjuntos confusos e
labirínticos da abadia de Saint-Denis e da Abadia de Westminster"
em nome de uma obrigação imperiosa de classificação. A pedagogia
tomou o lugar do status diferenciado dos mortos por ordens e estados:
o desígnio didático tornou-se, daí em diante, exclusivo de qualquer
outra preocupação e exigiu um esforço de clareza e de eficácia até
então incongruente. Alexandre Lenoir, zelador ainda jovem de um
depósito de monumentos, oriundos das igrejas parisienses, começou
apresentando um catálogo das obras de arte conservadas ao Comitê
da Instrução Pública e à Comissão Temporária das Artes; nesse texto,
ele explicava ter "tido o cuidado, na medida do possível, de reunir
tudo o que pode fornecer ideias das indumentárias antigas, seja civis,
masculinas e femininas, seja militares, segundo as patentes. Espero,
acrescentava ele, que essa reunião seja interessante também para os
artistas que desejarem reconstituir indumentárias que seriam difíceis
de encontrar se, porventura, a vigilância e a solicitude da Convenção
Nacional negassem a autorização para conservar tais obras." Em suma,
esta era sua conclusão: "Esses monumentos, apresentados deste modo,
devem ser considerados apenas como uma reunião de figurinos, uti-
lizando indumentárias segundo as épocas a que pertencem e segundo
as posições ocupadas por aqueles que eles representam."" A fórmula
remetia, de maneira exemplar, tanto a uma tradição dos estudos de
antiquários marcada pelo gênero da coletânea de modas31 como a uma
dessacralização propriamente revolucionária do túmulo, considerado
como simples figurino e representante de uma posição social e de uma
época, em vez de um defunto específico. Assim, ao dar a impressão de
metamorfosear a coleção dos reis em outros tantos artefatos de exposição,
Lenoir pretendia romper, de forma brutal e negociada, com qualquer
evocação de figuras individualizadas, assim como concentrar a atenção
no dispositivo de representação dos antiquários. Tudo se passa como se
30. Cf. Archiver du Mude des Monuments Français, Paris: Inventaire Général des Richesses
d'Art de la France, 1883-1897, II, peça CXLII.
31. Laure Beaumont-Maillet, "Les Collectionneurs au cabinet des Estampes", in Noùvelles
de l'Estampe, n. 132, 1993, p. 5-27.
133
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
os iconoclastas revolucionários, ao observarem a imagem, ignorassem o
médium, enquanto uma percepção "profissional" — no caso concreto,
a do artista e conservador — limitava-se, pelo contrário, a considerar
o médium, ou seja, o figurino.
Tal interesse vai subsistir: a revista Musée do ano IX compreendia
"uma dissertação sobre a indumentária", e a sexta edição do ano X
acrescentava "uma dissertação sobre a barba". Entretanto, sua museo-
grafia imaginava, em breve, associar os membros da mesma família
ou do mesmo contexto histórico. Em março de 1803, Lenoir reivin-
dicava a urna do condestável Olivier de Clisson "para colocá-la, no
Museu, ao lado do túmulo de Du Guesclin, seu êmulo; assim, esses
dois monumentos, depositados perto do túmulo de Carlos V, suscita-
rão mutuamente um novo interesse".32 Como é resumidopelo barão
de Norvins, a propósito de um projeto concorrente para o jardim
de Élysée, trata-se de agrupar "túmulos segundo a vida ou o caráter de
seus antigos ocupantes". Para solicitar a transferência, para seu museu,
do túmulo do chanceler da França, Michel de l'Hôpital, erguido em
uma aldeia perto de Étampes, Lenoir exprimia-se, em 13 de prairial
do ano VIII, nos seguintes termos: "Quem poderá observar, insensi-
velmente, a estátua de l'Hôpital, ao lado dos túmulos dos príncipes
lorenos, dos Médicis e dos Valois que tiveram de enfrentar, em várias
oportunidades, a coragem desse homem ilustre ao defender os interes-
ses do povo de quem ele declarava ser o pai?"33 Michelet tornou-se o
intérprete fiel desses diálogos mortuários quando, em sua aula de 5 de
janeiro de 1843 no Collège de France, escreveu que os monumentos
"haviam tido uma felicidade, sem precedentes e jamais experimentada
depois, isolados nas igrejas, de se verem uns aos outros e conversarem
entre si".34 Em suma, ele desenvolvia, a posteriori, a nostalgia da con-
versation Piece que teria sido encarnada pelo estabelecimento concebido
por Lenoir: "Todas essas figuras, isoladas nas igrejas ou reunidas nos
museus, deixaram de se exprimir; mas aí, no Museu dos Monumentos
32. Cf. Archives du Musée des Monuments Français, op. cit., peça CCXCV.
33. Carta para Lucien Bonaparte, in Archives dù Musée des Monuments Français, I, p. 174.
34. J. Michelet, Cours du Collège de France, I, Ie838-Ie844, Paris: Gallimard, 1995, p. 524.
134
Franceses, organizadas de acordo com a posição ocupada na sociedade
de suas épocas e segundo as respectivas sensibilidades, sob a claridade
suave dos vitrais, elas tornavam-se expressivas [...J."
35
A primeira sala do museu oferecia uma visão panorâmica de todos
os séculos, ordenados de forma cronológica. "O artista e o amador",
sublinhava Lenoir, "hão de observar, em um piscar de olhos, a infân-
cia da arte entre os godos, seu avanço sob Luís XII e sua perfeição sob
Francisco P, além da origem de sua decadência no reinado de Luís XIV
e sua restauração no final de nosso século." Resumo de todo o estabele-
cimento, a sala prefigurava as "colagens" arquiteturais do século XIX e,
especificamente, as de Duban, sucessor de Lenoir. Nas salas seguintes, a
distribuição das obras obedecia a uma classificação "por época e por ordem
cronológica, ou seja, em outras tantas peças separadas quanto o número
de períodos notáveis que a arte nos oferece". Uma sala "primitiva" — pre-
vista em 1806 como "sala do século XI, época que nos apresenta poucos
monumentos de arte (e que) seria única na Europa" — permaneceu no
estado de projeto. No final do percurso, Lenoir imaginou, por assim dizer,
uma sala da atualidade, cuja definição hesitava, de maneira característica,
entre um Panthéon napoleônico e um museu de arte contemporânea.
%
Em 1809, surgiu a ideia de uma sala dos fatos heroicos de Napoleão, o
Grande, Imperador dos Franceses — composta "por modelos das estátuas
e dos baixos-relevos encomendados atualmente por ele" —, que "formaria
35. Ibidem , p. 524. Sobre a conversatïon piece, cf. Mario Praz, Consersation Pieces: A Survey
of the Informal Group Portrait ïn Europe and America, University Park: Pennsylvania
State UR 1971; e sua crítica por Francis Haskell, in Art Bulletin, vol. 56, n. 2, assim
como Simon Schama, "The Domestication of Majesty: Royal Family Portraiture
1500-1850", in Journal of Interdisciplinary Hïstory, vol. 17, n. 1, 1986, p. 155-183.
36. "Uma grande e esplêndida entrada pelo cais deixaria ver um grande pátio que seria
decorado com estátuas erguidas a intervalos regulares. As salas do térreo seriam
utilizadas da seguinte forma:
1) uma coleção de retratos dos homens célebres da França;
2) uma sequência cronológica de armaduras de todas as épocas;
3) uma coleção completa de medalhas francesas;
4) uma biblioteca cujo acervo seria formado unicamente por livros necessários para
o conhecimento dos monumentos existentes no museu.
Finalmente, todos os objetos relativos à instrução, seja da arte ou da história relati-
vamente à França. [...] Esse monumento, único por sua classificação, tornar-se-ia
extraordinário." (Archïves du Musée des Monuments Frangis, I, peça CLXXXII.)
135
A MEMÓRIA INSPIRADORA
naturalmente o século XIX".37 Mas, sob o título "Século XIX, viagem
ao Egito do imperador e rei Napoleão I", Lenoir projetava também
uma sala egípcia. Por último, em 1811, outro plano esboçou uma sala
de vitrais em que estes "seriam o ornamento principal e, ao mesmo
tempo, dariam a conhecer os primeiros passos da pintura e das artes
do desenho, cujos progressos seriam em breve constatados"38.
Esses diferentes projetos comprovavam como a especificidade do
depósito dos Petits-Augustins empenhava-se no desígnio de conferir,
"a cada uma das salas, o caráter, a fisionomia exata do século que ela deve
representar"39, mediante a reutilização de "detalhes". Com efeito, "em ma-
téria de antiguidade", eis a conclusão do conservador, "são as partes que,
essencialmente, constituem a arte, servindo habitualmente para reconhe-
cer o povo a que pertence o objeto que deve ser explicado ou descrito".
De forma mais geral, Lenoir escolheu uma obra particular como espécime
da arte de um século e, à sua volta, organizou toda a decoração da sala.
Assim, alguns monumentos "matriciais" ordenavam, com um maior ou
menor grau de fidelidade, o conjunto do quadro da exposição. Tal foi o
princípio declarado da sala do século XV em que ele "compôs (seu) teto,
(suas) janelas e, em geral, toda a decoração de acordo com o tipo do túmulo
de Luís XII que, por sua vez, ocupa o centro". Esse tipo de organização
permite conferir como que um "ar de família" à coleção reunida nesse es-
paço, desenhando a imagem de uma comunidade de personagens ilustres.
Nesse quadro, o epitáfio continuava sendo uma fonte indispensável
para a compreensão do monumento; mas sobretudo, com a divisa, ele
permite definir a personagem por inteiro, fornecendo de forma mais
conveniente o ponto culminante de um retrato.40
Por exemplo, a de
Valentina de Milão, "a mulher inconsolável ao perder o marido": "Nada
mais é importante para mim" ["Rien ne m'est plus, Plus rien ne m'est"].
Por sua vez, a placa dedicada a François Chevert, na igreja parisiense
37. Ibidem, I, peça CCCC.
38. Archives Louvre, Z 62-63.
39. Cf. Musée, 1810, p. 6.
40. Cf. John Mac Manners, Death and Enlightenment:• Changing Attitudes to Death among
Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University
Press, 1981, p. 328-330.
136
de Saint-Eustache, que data do decênio de 1770 e cuja celebridade é
enorme, ilustrava o percurso excepcional de um patriota de mérito,
cuja exemplaridade continuava sendo atual. Igualmente, a divisa de
Dominique Sanède de Vic d'Ermenonville, amigo de Henrique IV,
que morreu de desgosto dois dias depois do rei, assumia um caráter
emocionante. À semelhança do que se passava no jardim com fabri-
ques, o epitáfio desempenhava, então, o papel tanto de uma lição de
moral como de um apelo à memória: semelhantes usos inscreviam-se
no gênero dos "derradeiros escritos", para citar Armando Petrucci.
41
Por último, essa predileção remetia, de forma mais abrangente, à
moda, por volta da década de 1770, de historietas benfazejas, de ações
louváveis e de modelos éticos, associados, em particular, à difusão dos
temas filantróp icos .42
O preço a pagar por essa nova vida — a ressurreição dos mortos
— constituía, para Michelet, o heroísmo de Lenoir; de fato, o histo-
riador retomou a compilação de lendas que havia sido elaborada desde
thermidor, transformando os monumentos em outros tantos feridos
que tivessem ressuscitado pelo sacrifício de seu conservador. O mu-
seu tornou-se o espetáculo de vítimas de pedra, reunidas em torno
da ideia de nação.43 Graças a seu sacrifício, instrumento de qualquer
patrimonialização, Lenoir "havia curado os ferimentosdessas vítimas,
ajustando seus frágeis membros que se encontravam dispersos [...] Por
seu intermédio, esses monumentos receberam uma nova consagração
por terem sido cobertos com seu nobre coração e tingidos com seu
sangue[...]" .44 O martirológio prosseguiu no decorrer de toda a aula
41. Armando Petrucci, Le scritture ultime: Ideologia della morte e strategie dello scrivere
nella cultura occidentale, Turim: Einaudi, 1995, p. 141-142.
42. Catherine Duprat, Le Temps der philanthropes, Paris, Comité des Travaux Historiques
et Scientifiques, 1993, p. 52-53, 203. Sobre os catecismos revolucionários e outros
suportes de propaganda, cf. Colporter la Révolution, Montreuil, 1989 (Catálogo da
exposição).
43. Para Deborah Jenson, essa perspectiva anuncia a conferência de Renan sobre a nação
(1882), o que parece ser algo de arriscado: Trauma and its Representations: The Social Life
of Mimesis in Post-Revolutionary France, Baltimore: Johns Hopkins University
Press, 2001, cap. 1.
44. J. Michelet, Cours du Collège de France, op. cit., p. 521.
137
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA 1NSPIRADORA
de Michelet, em 29 de dezembro de 1842: "O senhor Lenoir havia
salvaguardado todos os túmulos da França, por um lado, ao propor à
Assembleia que eles fossem conservados e, por outro, ao cobri-los com
seu corpo. E acabou por ser vítima desses ferimentos." Desse modo,
ele retomava o discurso do próprio Lenoir, que, em diferentes edições
de seu catálogo, afirmava ter machucado a mão ao afastar as baionetas que
ameaçavam destruir o túmulo do cardeal de Richelieu, obra-prima de
Girardon. No lado oposto a esse patrimonializador, como homem
ferido que podia orgulhar-se de seu estigma, manifestou-se uma leitura
contrarrevolucionária que, pelo contrário, limitava-se a perceber, no
museu, o sparagmos, a dispersão dos corpos dos heróis, a derrota e a
anarquia, em suma, o desmembramento da comunidade, em vez de
sua reunião em uma nova coletividade."
O colecionismo de Alexandre Lenoir correspondia, em sua busca e
em suas modalidades, a figuras banais desde o Antigo Regime (ele não
perdia de vista os marchands nem os leilões, "mantendo-se incógnito" para
negociar as peças "a um preço moderado")." Entretanto, alguns episódios
inauguravam as narrativas ulteriores, as do século XIX, com achados no
meio dos detritos da nova vida. Assim, em 14 de novembro de 1796,
Lenoir identificou o túmulo de Diana de Poitiers, favorita de Henrique II,
em Anet — cidade em que ela possuía um magnífico castelo, cuja constru-
ção se deve a Philibert de l'Orme, por encomenda do rei: tendo sido "ven-
dido a um cidadão das redondezas, o túmulo era utilizado como cocho
para dar de beber aos porcos e às aves".47 Às vezes, o proprietário exigia a
menção da dívida contraída a seu respeito: assim, o dr. Boysset, detentor
do túmulo do filósofo e teólogo Abelardo, em Chalon-sur-Saône, "não
pede de modo algum a restituição do valor despendido por esse bloco
de pedra da antiguidade", mas "reivindica [...] que a inscrição histórica
(destinada) a esse túmulo faça menção e designe o nome daquele que o
havia conservado e sem o qual ele não teria subsistido".
45. Retomo, aqui, a figura elaborada por Northrop Frye, Anatomie de la critique, Paris: Gallimard, 1969.
46. Musée, n. 446, p. 200.
47. Musée, n. 91, p. 191; n. 443, p. 195.
138
Enfim, quando faltava o monumento desejado, Lenoir recorria a
diversos expedientes, incluindo a encomenda aos artistas contemporâ-
neos. Sua primeira iniciativa data de 11 de agosto de 1796 e diz respeito
a bustos de Sarrazin, Poussin e Le Sueur48; em relação ao século XVI,
Montaigne, Fabri de Peiresc e Goujon; enfim, para o século XVIII,
Rousseau, Helvétius, Raynal, Chamfort e o incontornável Winckelmann
— aliás, uma escolha bastante significativa de uma opção "democrática".
O historiador abbé Guillaume Raynal, falecido recentemente (1796),
representava, antes da Revolução, o arquétipo do filósofo vítima do
despotismo, em decorrência de sua detenção em 1781. Apesar de ter
deixado de pertencer ao panteão republicano a partir de maio de 1791,
ele continuou sendo uma ilustração do anticlericalismo — e, obvia-
mente, o defensor das "Colônias", assumindo uma posição contra a
colonização." Por sua vez, Sébastien-Roch N. de Chamfort — que ga-
nhou notoriedade com o livro Caractères, publicado postumamente, em
1795 — pôde simbolizar o talento como vítima dos tempos de Terror.
Por conseguinte, o museu demonstrava como o patrimônio voltava a
reivindicar as genealogias, em termos de filiação invertida pela qual os
filhos engendram os próprios pais."
A busca de um santuário do Estado
O jardim de Lenoir herdou um imaginário de Élysée, cujas carac-
terísticas principais já foram abordadas; no entanto, os primeiros anos
48. Cf. Jules Guiffrey, "Bustes commandés à Michallon et Deseine", in Nouveller Archives
de l'Art Français, 1880-1881, II, p. 383.
49. O pintor Girodet-Trioson (1767-1824) expôs no Salon de 1798 (n. 194) o "retrato
de C. Belley, ex-representante das Colônias", diante de um busto de G. Raynal à
moda antiga (Versalhes, Museu Nacional do Castelo). Cf. Hans-Jurgen Lüsebrink
e Manfred Tietz (orgs.), Lectures de Raynal: L'Hirtoire des deux Meles en Europe et en
Amérique auXVIIIe siècle, Oxford: Voltaire Foundation, 1991; e Muriel Brot, "Raynal
au printemps 1793", in Sacie, vol. 27, 1995, p. 317-322.
50. Yann Thomas, "Res, chose et patrimoine; note sur le rapport sujet-objet en droit romain",
in Archives de la Philosophie du Droit, Paris, Sirey, 1980, p. 425; "Les or-
nements, la cité, le patrimoine", in Images romaines, Paris: ENS, 1998.
139
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
da Revolução haviam tentado dar-lhe uma nova fisionomia. Uma boa
representação dessa tentativa foi o Plan allégorique d'un jardin de la
Republique française et des vertus re'publicaines, proposto pelo cidadão
Verhelst ao Comitê de Salvação Pública, em 16 de prairial do ano II;
organizado à volta de falsas ruínas que estão em nítida oposição aos
dispositivos anteriores, ele configura uma damnatio memorie didática.
O programa detalhado é o seguinte:
"Na Praça da Revolução, serão instaladas as ruínas de um Palácio
de Tirano e, sobre elas, será erguida uma plataforma. No centro dessa
praça, será colocada a estátua da Liberdade, que fica observando
incessantemente seus Filhos. Por baixo dessas ruínas, haverá quatro
salas destinadas a demonstrar as causas da justa destruição dos Reis:
na primeira sala, serão inscritos os Vícios da Monarquia; na segunda,
a Política e a Adulação dos Cortesãos; na terceira, a Injustiça e os
Privilégios; enfim, na quarta, o Fanatismo e a Fraude. Neste aspecto é
que todos os Estrangeiros, ao lerem as causas de nossa bem-sucedida
Revolução, assim como da destruição do Tirano, impregnar-se-ão
do horror pela escravidão e proclamarão: Não haverá felicidade sem
a Liberdade e a Igualdade. No local reservado ao Jardim Nacional,
à direita e à esquerda, serão erguidas duas colunas destinadas aos
mártires da Revolução. Da plataforma será possível descobrir vários
caminhos, dissimulados até então pelo Palácio do Tirano, dedicados às
Virtudes e às afeições puras de todas as épocas. Desse modo, veremos:
1) o caminho da Honra, da Verdade, da Liberdade, da Igualdade e da
Imortalidade; 2) o caminho da Virtude, no qual serão encontrados
vários objetos, tais como estátuas, escritos empolgantes ou, finalmente,
informações capazes de inspirar sentimentos republicanos; 3) o caminho
da Fraternidade, para alimentar a amizade e a boa harmonia entre Pai,
Mãe, Filhos(as), Irmãos, Irmãs, Amigos e Concidadãos; 4) o caminho
da Probidade e da Fidelidade; 5) o caminho do Amor Conjugal -
neste local, os Esposos virão prestar, mutuamente, o juramento de viver
em bom entendimento e de ficarem juntos para sempre; 6) o caminho
do Gênio e das Artes, no qual o Homem assumiráo compromisso
de renunciar a fazer qualquer obra contrária aos bons costumes — o
Poeta deixará de escrever em um estilo indecente, o Artista não irá
140
expor outros quadros obscenos e, finalmente, o fabricante fará questão
de fornecer mercadorias em bom estado; 7) o caminho da Humani-
dade, em que nada será poupado para inspirar sentimentos em relação
ao que o rico deve aos pobres que são seus irmãos e semelhantes;
8) o caminho do Amor pela Pátria. Todos esses caminhos conduzem
ao Templo do Ser Supremo e da Imortalidade. Se o Homem vier a
afastar-se desses caminhos, ele cairá em outros tortuosos — tais como
Orgulho, Cupidez, Avareza, Devassidão, Infidelidade, etc. — que o
conduzirão à sua perda; essas estradas desembocam em cloacas, figuras
de todos os vícios. Ao sair do Templo, entra-se nos Campos Elísios.
Nesse local, usufruir-se-á de tudo o que pode encantar a vista; aí, ver-se-á
um tanque de sessenta toesas de comprimento e vinte de largura. Mais
adiante, uma grande cascata, cujas águas servirão para regar os prados.
Em um dos lados do tanque, o Homem da Natureza, Rousseau, colo-
cado perto de uma cabana rodeada de córregos serpeantes e guarnecida
com choupos bem altos. À esquerda da cascata, será erguido um Templo
ao Gênio, no qual hão de figurar Voltaire e os Heróis da Liberdade.
À direita, será construída uma coluna em que serão inscritos os nomes
de todos os Homens Ilustres da História." Semelhante programa tem a
vantagem de reunir facilmente quase todas as representações forjadas pelo
decênio em relação aos elementos comemorativos, ao mesmo tempo nos
jardins com fabriques, nos cemitérios e nos panteões; esta configuração
topográfica e alegórica, heroicizada pelo amor da pátria, pretende ser
um recurso eficaz, em forma de propedêutica, para homenagear os dois
heróis das Luzes, Voltaire e Rousseau. Aliás, o gótico em ruínas, como
metáfora para um regime desacreditado, tornar-se-á um lugar-comum da
iconografia militante: após thermidor, uma alegoria complicada, dirigida
contra Robespierre e intitulada Le Miroir du passe pour sauvegarde de
l'avenir, mostrava um "tribunal terrorista" instalado em uma construção
gótica — indício "realista" e, ao mesmo tempo, emblemático.51
No início do século XIX, alguns jardins — tal como o de "Mousse-
aux", o território da ilusão, desenhado por L. de Carmontelle de 1773 a
51. Lauren M. O'Connell, "Redefining the Past: Revolutionary Architecture and the
Conseil des Bâtiments Civils", in Art Bulletin, vol. 77, n. 2, 1995, p. 207-224.
141
A MEMÓRIA INSPIRADORA
1778, e no qual Rousseau colhia suas plantas — conservaram sua antiga
celebridade, mesmo que tivessem sido degradados; entretanto, impunha-
se atribuir-lhes uma nova serventia. A ideia de "converter os jardins de
Mousseaux — sua situação em local recuado e em posição elevada, longe
e acima dos ruídos da cidade, parecia destiná-los a tal objetivo — no
Élysée histórico francês" ocorreu ao barão de Norvins, secretário parti-
cular do administrador do departamento de Seine. Seu livro Mémoires
evocava seu desígnio de instalar nesse lugar os monumentos franceses:
"Os hóspedes naturais desse Élysée expiatório da amnésia do tempo
e das lembranças da Revolução deveriam ser todos os túmulos e mo-
numentos [...] do depósito dos Petits-Augustins. Eu tinha estudado
meu projeto no próprio terreno e havia tirado partido do relevo tão
diversificado do parque de Monceaux, de suas colinas, de suas aleias
escavadas e solitárias, de suas águas e das sombras fornecidas pelas
folhagens de suas árvores, para colocar e abrigar túmulos, segundo a
vida ou o caráter de seus antigos ocupantes. Além disso, uma capela
sepulcral teria reavivado o interesse de um curso de história nacional,
a céu aberto, ministrado a partir de peças irrecusáveis."
Segundo parece, Nicolas Frochot (1761-1828) — 1º administrador
do departamento de Seine, cuja capital era Paris — serviu-se amplamente
desse projeto; com efeito, em 1800, ele solicitou que os monumentos,
até então reunidos no depósito dos Petits-Augustins, fossem instala-
dos em Monceau, parque em que "essa lúgubre e majestosa coleção
de arquivos da morte, colocada sob a abóbada do céu no meio de um
Élysée guarnecido de flores, tornar-se-ia, subitamente, inspiradora para
o gênio, além de proclamar aos séculos futuros a religião dos túmulos
[grifo de Dominique Poulot], consagrada pelo testamento dos séculos
passados"." Eis uma forma de anunciar o programa do cemitério pari-
siense de Père-Lachaise, sob a Restauração (1814-1815), no qual Frochot
mandará colocar, finalmente, alguns desses mais célebres monumentos
com o objetivo de "lançar" o novo cemitério. As opiniões divergiam, po-
rém, relativamente à adequação desse jardim ao intuito pretendido. Para
Louis de Fontanes (1757-1821) — reorganizador do sistema educacional
52. Sobre esse assunto, cf. Marie-Louise Biver, Le Paris de Napoléon, Paris: Plon, 1963, p. 138.
142
francês e criador dos liceus —, "quase todos esses monumentos têm um
caráter grave e religioso. Teria sido bastante difícil harmonizar seu efeito
com o aspecto sorridente dos jardins de Mousseaux; aparentemente, eles
seriam mais adequados ao recinto de um antigo mosteiro que desperta
sentimentos e pensamentos análogos a seu destino". De fato, "um templo
ou um jardim moderno nunca chegarão a ser significativos para a alma
e a imaginação como ocorre com essas antigas basílicas consagradas pela
veneração dos séculos; para ler os epitáfios dos heróis do tempo passado,
o ambiente mais apropriado é sob velhas abóbadas."53 Aliás, essa valori-
zação do gótico pela ancianidade inspirava-se na defesa apresentada por
seu amigo Chateaubriand, em Génie du christianisme.
Quanto ao parque de Monceau, Louis de Fontanes sugeria sua
transformação em galeria dos artistas contemporâneos: "Uma espécie de
museu campestre, um lugar semelhante a essas 'villas' que embelezam os
subúrbios de Nápoles e de Roma. Seria possível até mesmo reservar uma
das salas de Mousseaux para receber todas as obras dos artistas vivos: em
vez de dois meses, como ocorre em Paris, essas obras seriam expostas em
Mousseaux durante todo o ano." Finalmente, na sequência da visita do
Primeiro Cônsul, Napoleão Bonaparte, ao depósito dos Petits-Augustins,
em março de 1801, o Museu dos Monumentos Franceses acabou con-
servando seu jardim Élysée, cuja arrumação foi concluída para a Festa da
Paz Continental.
Sob o Império (1804-1814), o jardim organizou-se em dois pátios,
cada qual guarnecido com vestígios arqueológicos. A fachada do castelo
de Anet, reproduzida na capela do convento, servia de entrada princi-
pal do museu: simbolicamente, ela colocava o estabelecimento sob os
auspícios do Renascimento, quando Philibert de l'Orme encarnava,
segundo Lenoir, o primeiro arquiteto francês. Na extremidade do pátio
oposto, o conservador dispôs três arcadas do castelo de Gaillon (que,
supostamente, era o representante do século XV). Mais adiante, outro
pátio deveria acolher peças do século XIII — da autoria do arquiteto
francês, construtor da Sainte-Chapelle, Pierre de Montereau —, mas
essa obra nunca chegou a ser concluída. O objetivo do Élysée consistia
53. Archives dù Musée des Monuments Français, I, peça CLXVIII.
143
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
em fornecer "uma paisagem augusta" para os monumentos dedicados,
por "uma mão tímida, a homens célebres". Nesse aspecto, Lenoir reivin-
dicava a qualidade de arquiteto, mas para assimilá-lo, imediatamente,
à elaboração de um cenário: "Sem ser arquiteto, a arte é para mim algo
de tão familiar quanto ela deve ser para um pintor que compõe pes-
soalmente o fundo de seus quadros." Sua primeira preocupação tinha
a ver com a organização da luz e, especialmente, com o olhar que, da
entrada, se dirigia para o claustro ou para o próprio jardim.
A composição dessa "paisagem" dependia amplamente do gênero dojardim inglês: "Amores-perfeitos, flores de todas as espécies guarnecem
esses túmulos; na sua proximidade, o próprio cipreste parece ter perdido
sua aparência lúgubre para tornar-se luminoso.."54 Em janeiro de 1807,
454 pés de árvores e arbustos foram solicitador por Lenoir a seu minis-
tro de tutela. Diante da rejeição de seu pedido, ele baixou sua exigência
para 164 plantas, cuja lista foi conservada escrupulosamente, graças aos
trâmites administrativos: "11 acácias, 6 alertes, 2 bordos de açúcar, 6
cítisos, 6 carpas, 4 anetos, 4 cerejeiras de flores duplas, 6 madressilvas,
4 puás, 2 catleias, 6 epíceas, 8 lilases variados, 6 amoreiras da China,
4 bolas de neve, 6 roseiras bravas enxertadas, 3 titias, 4 espinheiras, 12
roseiras vulgares, 6 cedros da Virgínia, 4 trifólios, 4 loureiros, 6 ciprestes,
4 freixos, 6 sarças, 4 bétulas, 6 azevinhos com espinho, 2 olmos, 2 lariços,
2 bordos com folhas de freixo, 4 olmos ainda novos.""
Em 1810, o catálogo da revista Musée repertoriava "mais de quarenta
estátuas; alguns túmulos, distribuídos ao acaso sobre a grama verde,
erguiam-se com dignidade no meio do silêncio e da tranquilidade".56
54. Musée, edição do ano VII, n. 510.
55. AN F17 2410. Essa amoreira da China deu seu nome ao pátio, beneficiado por sua
sombra, da École des Beaux-Arts. A introdução de espécies exóticas do Novo Mundo ou
do Extremo Oriente aumentou as possibilidades dos jardineiros: essa é uma das causas
do sucesso do arquiteto-paisagista, Louis-Martin Berthault — apelidado o "Le Nôtre
do século XIX" — em La Malmaison, que, em 1799, se tornou a residência do Pri-
meiro Cônsul, Napoleão Bonaparte, e de Josefina de Beauharnais, sua primeira esposa.
De acordo com o resumo apresentado por um dos mais famosos paisagistas da época,
Gabriel Thouin — em sua obra Plans raisonnés de toutes les espèces de jardins (1820)
—, a nova arte das paisagens mescla as flores com os gramados.
56. Musée, ed. de 1800, p. 19. Cf. ainda Ch.-P. Landon, Annales dù Mùsée et de l'École
Moderne des Beaux-Arts, Paris, ano IX, I, 12.
144
De acordo com o guia, dois conjuntos se destacavam: "(Em primeiro
lugar), na encosta de uma colina, ao lado de um canteiro de roseiras,
murta e ciprestes, vemos erguer-se majestosamente uma capela antiga,
cujas abóbadas em ogivas alongadas encobrem religiosamente as cinzas
de Heloísa e de Abelardo.57 [...] Na parte alta do morro que serve de
base às urnas imortais de nossos poetas mais célebres, observa-se um
monumento com quatro faces que se ergue acima dos outros túmulos:
composto por quatro nichos, ele contém os bustos de Molière, Jean de
La Fontaine, Boileau e Racine." O caráter "falante" desse jardim era
duplicado pelas múltiplas inscrições, disseminadas no local.
Por esse espetáculo, o conservador entendia que, "à alma dos leitores
e de todos aqueles que visitarão esse Élysée, fosse transmitido o santo
respeito pelo qual, ao instalá-lo, ele havia sido impregnado através das
luzes, talentos e virtude". Nesse lugar da imortalidade poética, será
possível "supor que esses restos inanimados venham a receber uma nova
vida a fim de se observarem e se entenderem, além de usufruírem de
uma felicidade comum e inalterável"." A implicação política de tal
iniciativa era óbvia: o jardim pretendia fornecer o novo padrão das re-
putações, ao reparar as injustiças cometidas no passado. De acordo com
a afirmação de Lenoir, "as homenagens públicas e a veneração nacional
consolarão os manes desses homens ilustres pela injustiça que pesou
sobre suas vidas e pelos ultrajes suportados após terem falecido"".
Contrariamente à acusação de pieguice aliciante, desencadeada por
seus adversários, o jardim Élysée colocava-se, portanto, sob o patrocínio
da razão. Mesmo que o conservador pretenda oferecer "os monumentos
erguidos com ternura e reconhecimento à atenção dos cientistas e às
lágrimas das almas sensíveis", prevalecia, finalmente, a preocupação de
adotar a perspectiva do panteão, nem que fosse para justificar o monu-
mento dedicado a Heloísa e Abelardo: "Basta abrir a história", escreve
57. Sobre a posição do episódio na fortuna crítica, cf. Cécile A. Feilla, "From Sainted
Maid to Wife in all Her Grandeur: Translations of Heloise 1687-1817", in Eighteenth-
Century Lifè, vol. 28, n. 2, 2004, p. 1-16.
58. Eis o que seria, diz ele, "a recompensa mais apreciada por nosso coração" ( Musée, ed.
de 1810, op. cit., p. 293).
59. Archives du Musée der Monuments Français, I, peça CXXXIV.
145
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
Lenoir, "para conhecer o mérito desse filósofo, mais notável ainda pela
força do gênio que ele desenvolveu, em um século mergulhado nas
trevas da superstição, que pelo interesse suscitado pela lembrança de
seus infortúnios." Em 1806, no quinto volume de seu grande catálogo
do Musée, Lenoir citava o famoso trecho da obra de Condorcet, já
citada, como o inspirador de sua "imagem de um verdadeiro Élysée":
"O quadro da espécie humana, desvencilhada de todas as suas cor-
rentes, liberada do império do acaso, assim como do inimigo de seus
avanços, e percorrendo com um passo firme e confiante o caminho
da verdade, da virtude e da felicidade, apresenta ao filósofo um espe-
táculo que o consola dos erros, crimes e injustiças com que a terra
ainda continua conspurcada e de que ele é frequentemente vítima.
[...] Aí é que ele existe verdadeiramente com seus semelhantes, em
um Élysée que sua razão conseguiu criar para si mesma e que seu amor
pela humanidade embeleza com as mais puras fruições."60 O museu
ilustrava assim, amplamente, uma criminalidade histórica, não a que
Chateaubriand havia reconhecido no princípio da Revolução, mas
aquela que os filósofos do segundo período das Luzes — a geração do
abbé Grégoire — observaram em ação na cronologia universal.
Em seu guia de 1810, Lenoir justificava "o termo Élysée" neste tre-
cho: "Mas por que — poderá alguém se questionar — servir-se de uma
palavra que se limita a designar uma quimera? [...] Somos incapazes
de dissimular que existe uma espécie de magia associada a esse termo
que é da alçada da linguagem das artes e da qual nos servimos, todos os
dias, para significar nossa ideia a respeito da felicidade: ele destina-se a
caracterizar, sobretudo, a felicidade que supomos ser compartilhada pelos
homens virtuosos depois de terem deixado de viver neste mundo visível.
E por que motivo não poderíamos nos conformar, nesse aspecto, com
um uso que, graças ao conhecimento e à razão, nada tem de perigoso?"61
Aliás, o modelo antigo havia inspirado inclusive a disposição das obras,
uma vez que "os monumentos são colocados à beira das alamedas, à
60. Musée, vol. 5, 1806, p. 192-193.
61. Ibidem., ed. de 1810, p. 285. [Em relação à palavra "Élysées", cf. Musée, éd. 1810,
p. 285. (N.T.)]
146
maneira dos antigos" — mesmo que a imprensa evocasse, de preferên-
cia, a poética noturna de Young.62 Apesar de inscrever-se perfeitamente
na moda dos jardins de valores morais, tal como ela havia sido legada
pela sensibilidade anterior à década de 1790, o jardim Élysée depende
também das "afeições privadas" que, de acordo com o testemunho de
Benjamin Constant, tomavam o lugar, na época, da religião. De fato,
o jardim reunia imagens, afinal de contas, heteróclitas — herói do dia
e figuras célebres da história da França, testemunhas da inteligência
universal e simples pretextos para a expressão de uma sentimentalidade.
Aliás, na sua obra, o representante da tradição, L.-P. Deseine, apre-
sentava uma descrição voluntariamente caótica da situação, a fim de
condenar o caráter desconexo das referências, pagãs e cristãs, antigas e
modernas: há quem tenha "levado a demência até o ponto de nos dizer
que essa reunião de monumentos apresenta o conjunto emocionante
de um Élysée. [...] Já se viu, algum dia, estátuas de Diana, Júpiter,
Mercúrio, de animais e quimeras de toda a espécie, em um lugar reser-
vado a sepulturas? [...] O caráterde um Élysée é determinado não por
arbustos, gramados e canteiros, mas certamente por seus monumentos".63
De qualquer modo, o Élysée forneceu uma das encarnações mais
convincentes da sensibilidade pré-romântica, ao servir-se de um vocabu-
lário formal, reconhecido e apreciado, além de ser a ilustração de valores
amplamente compartilhados. Sem poder erigir-se em lugar da memória,
esse "jardim de ilusões" influenciou, por sua vez, um grande número
de empreendimentos associados à história nacional, desde o projeto
de Saint-Morys até a reforma de La Malmaison, que foi orientada por
Lenoir, J.-M. Morei — "o patriarca dos Jardins Ingleses" — e o arquiteto
P. Fontaine, antes da intervenção de L.-M. Berthault.64 Como tal, o
62. Journal des Débats [boletim oficial, criado em 1789, dos debates da Assembleia
Nacional], de 16 de ventôse do ano X (7 de março de 1802): "Uma visita ao Museu
dos Monumentos Franceses vale uma noite passada com Young" (p. 36).
63. Louis-Pierre Deseine, Opinion sur les musées, oà se trouvent retenus tous les objets d'art
qui sont la propriété des temples consacrés à la religion catholique, Paris, 1801. O panfleto
teria uma nova edição em 1814.
64. Cf., em geral, Louis Courajod, "L'Influence du musée des monuments (rançais sur le
développement de l'art et des études historiques", in Revue Historique, vol. 30, n. 1,
1886, p. 107-118. O projeto de um colecionador-antiquário, Saint-Morys, que
147
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
Élysée constituía sem dúvida o único exemplo de um jardim, destinado
a receber construções, que conheceu, na França, certo sucesso; eis o que
ocorreu, na contramão tanto da frieza frequentemente glacial das insti-
tuições encarregadas de comemorar eventos oficiais como do desígnio
exclusivo de diversão que, no mesmo momento, animava os parques
do estilo de Tívoli e outros jardins de empresários do lazer parisiense.65
Ao marcar a restauração do Estado em suas prerrogativas de memória,
o Império condenava esse empreendimento como uma excentricidade
individual. O desígnio oficial consistiu, daí em diante, em fundar uma
nova memória dinástica e nacional, assim como em realizar a amálgama
das ilustrações da França antiga com os homens célebres da nova. Por
um decreto de 1806, a igreja de Sainte-Geneviève recebeu os túmulos
depositados no museu, destinando esse templo à "sepultura dos senadores,
grandes oficiais da Legião de Honra e generais, além de outros funcionários
públicos que tivessem prestado bons serviços ao Estado"; paralelamente,
previa-se instalar, na abadia de Saint-Denis, a sepultura dos imperadores.
No diário oficial Moniteur Universel de 22 de fevereiro do mesmo
ano, J.-B. Champagny — nomeado ministro do Interior por Napoleão,
entendia criar em Houdainville, no departamento de Oise, em torno de seu castelo,
"um museu que expõe, em um quadro romântico, a evolução dos monumentos
funerários na França" foi estudado por Françoise Arquié-Bruley, "Un Précurseur:
Le Comte de Saint-Morys (1772-1817), collectionneur d'antiquités nationales",
in Gazette des Beaux-Arts, out. 1980, p. 109-118; fev. 1981, p. 61-77. O Élysée
foi construído apenas depois do falecimento do conde, sob a orientação do genro,
Engelbert Schillings, oficial prussiano que dispôs as estátuas funerárias em torno
de rochedos e entre as árvores. No entanto, o exemplo mais nítido da influência de
Lenoir sobre o cenário de seus contemporâneos é, evidentemente, o de La Malmaison.
Redigido pelo próprio Lenoir, o verbete "Malmaison", da coletânea enciclopédica
Dictionnaire de la conversation, publicada em 1836, dá uma ideia bastante precisa de
seu papel nessa reforma; seus esforços incidiram sobretudo sobre o embelezamento
das fachadas e sobre as fabriques do jardim à maneira inglesa, do qual ele pretendeu
fornecer uma das peças mais importantes, ou seja, uma "capela" gótica transportada
de Metz (e que permanecerá na embalagem). Deve-se observar que o diário de P.
Fontaine, em sua narrativa espiritual dos arranjos do jardim, não menciona Lenoir;
se lhe dermos crédito, foi o famoso teórico J.-M. Morei — na época, septuagenário
— quem lhe ditou a realização de tal projeto (Marie-Louise Biver, Pierre Fontaine,
Premier architecte de l'Empereur, Paris: Plon, 1964, p. 34).
65. Gilles-Antoine Langlois, Folies, tivolis et attractions: Les Premiers pares de loisirs pari-
siens. Paris: Délégation à l'Action Artistique de la Ville de Paris, 1991.
148
em 1804 — justificava a dissolução anunciada do Museu dos Monu-
mentos Franceses em decorrência da preocupação em "restituir à
religião os mausoléus que ela havia instituído, em restituir-lhes seu
caráter primitivo, em restabelecê-los na sua harmonia natural com
todas as lembranças que eles devem celebrar e sem retirá-los da admi-
ração pública, além de associar sua presença às cerimônias fúnebres e
ao espetáculo do culto divino". Com efeito, "sofremos", prossegue ele,
"ao observar que eles são depositados em um recinto em que tudo lhes
é estranho, em que parece estar extinto o pensamento que reconhece
seu valor, em que nada os explica; ora, tendo-se tornado estéreis e
silenciosos, eles limitam-se a transmitir uma impressão incerta à alma
do espectador"." Essa decisão foi saudada, imediatamente, por D.-V.
Denon, que condenava "o solo salgado e destrutivo do depósito dos
Petits-Augustins".67 Apesar de ter sido adiado, em última instância,
esse projeto de desmantelamento do museu dava testemunho de uma
transformação das expectativas e das representações, relativamente à
memória nacional.68
Após os Cem Dias, foi decidida a dissolução do museu. Um decreto
real, promulgado em 24 de abril, restituía "os monumentos de toda a
espécie que adornavam a igreja de Saint-Denis [...] à igreja do rei para
retomarem seu lugar nesse recinto". Entretanto, no final de 1816, Lenoir
dirigiu uma derradeira súplica ao rei, pela qual ele recomendava que fosse
criado, "em Paris, um Museu de Arte Francesa de modo que os mo-
numentos, sem procedência determinada, permanecessem no depósito
dos Petits-Augustins e se procedesse à fabricação de provas ou de moldes de
todas as estátuas dos reis que voltariam à abadia de Saint-Denis, além
de outras peças destinadas a ser restituídas, sem deixarem de serem es-
senciais à cronologia tanto da história da França como de nossas artes".
Assim, o desmantelamento levou Lenoir a formular o princípio de um
66. Archives du Musée des Monuments Français, I, peça CCCCXXV.
67. Apud Marie-Louise Biver, Le Paris de Napoléon, op. cit., p. 260.
68. Sobre esses panteões nacionais, cf. o catálogo da XXI Exposição do Conselho da
Europa, 1991, Emblèmes de la liberté: L'Image de la République dans l'art du XVIe
au siècle, Berna: Staempfli, 1991, n. 444, "Projet pour un monument national
suisse", 1845-1846, por J. G. Müller.
149
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
museu de moldes, anunciando, de certa maneira, a solução adotada pelo
Museu de Escultura Comparada de Viollet-le-Duc.
No entanto, esse recurso à cópia era, na verdade, uma solução
inevitável. Daí, a sugestão alternativa de "santificar" de certa maneira
o ex-museu revolucionário "no interior do qual havia sido estabelecida
uma capela com seu capelão que, cotidianamente, rezaria uma missa
em memória das pessoas, cujos mausoléus se encontram no depósito
dos Petits-Augustins. O público teria a possibilidade de participar desse
ato. Todos os bustos, estátuas ou monumentos que fazem lembrar
ideias, sem qualquer relação com as virtudes morais, seriam retirados e
colocados em uma sala particular". "Essa instituição santa e religiosa",
concluía Lenoir, "acalmaria as almas inquietas que, ao admirarem nosso
Museu, não deixam de experimentar uma espécie de mal-estar ou des-
contentamento pelo fato de ser composto por monumentos destinados
a homenagear nossos antepassados. Ao arriscar-me a fazer tal proposi-
ção, tudo seria levado em consideração,incluindo a moral, a utilidade
e a economia; além disso, Paris disporia realmente de um Westminster
mais rico, mais belo e mais completo que o da abadia de Londres.
[...] Assim, o Museu da Capela Real da Rainha Margot — ou seja,
Margarida de Valois (1553-1615), que desposou, em 1572, Henrique
IV — seria substituída pelo Museu Real dos Monumentos Franceses."69
Era uma forma de tentar reunir o museu das personalidades ilustres com
a capela dinástica, aproveitando-se do gosto gótico e do culto prestado
ao bon roi Henri (ou seja, Henrique IV, de quem a rainha Margot havia
sido a "primeira mulher"; de fato, ele é considerado o soberano mais
promíscuo da história da França). No entanto, o caráter revolucionário
do estabelecimento estava demasiado presente nos espíritos para permitir
o sucesso de tal estratégia"; de qualquer modo, os cenotáfios pareciam
69. Archives du Musée des Monuments Français, I, peça CCCCLXIII.
70. Com o decreto de 18 de dezembro de 1816, o lugar — daí em diante reservado à
École des Beaux-Arts — começou a receber uma nova coleção, desta vez de moldes
de obras antigas. Cf. Ch. Pinarei, "Origines de la collection des moulages d'antiques
de l'École nationale des beaux-arts de Paris, aujourd'hui à Versailles", in Annie-France
Laurens e Krzysztof Pomian (orgs.), L'Anticomanie: La Collection d'antiquités aux
XVIII° XIX' siècles, Paris: EHEES, 1992, p. 307-325.
150
reanimar seus cadáveres, negando o trabalho precedente de ocultação,
além de restaurarem espetacularmente a evocação dos corpos defuntos
no âmago de um espaço que acabava de ser (re)consagrado.
A encarnação dos antepassados
Para Michelet, o museu remetia à tradição bíblica que evoca o vale
de Josafá, perto de Jerusalém, no vale à frente do Templo — o lugar
do Juízo Final — em que ricos e pobres estão à espera do juiz71: "Um
número respeitável de mortos históricos, removidos de suas capelas pelo
vigoroso apelo da Revolução, tinha se dirigido a este vale de Josafá. [...]
A França deparava-se, finalmente, com ela mesma em sua evolução; de
século em século e de homem em homem, de túmulo em túmulo, ela
podia fazer, de algum modo, seu exame de consciência."72 Essa repre-
sentação de uma nação sob a ascendência da ressurreição dos mortos e,
sobretudo, pela "sentença" do historiador que assumia a função de juiz
71. Livro de Joel, 4, 1-13: "Vai acontecer naqueles dias, naquele tempo: vou mudar a
sorte de Judá e Jerusalém. Reunirei todos os povos do mundo para fazê-los descer ao
Vale de Josafá [nome do rei piedoso, significa também "o Senhor julga"; por isso, é
chamado no v. 14 "Vale da Decisão"]. Ali abrirei um processo contra eles, por causa
de Israel, meu povo e minha herança. [...] Por acaso quereis vingar-vos de mim?
Se tirardes vingança contra mim, bem depressa farei recair a vingança sobre vossas
cabeças! Vós que roubastes minha prata e levastes meu ouro, vós que carregastes
para vossos templos o melhor dos meus tesouros. Vós que vendestes aos gregos a
população de Judá e de Jerusalém, só para afastá-los de seu território. Pois bem, vou
chamá-los de volta do lugar para onde vós os vendestes e farei recair vossos atos sobre
vossas cabeças! Venderei vossos filhos e filhas pelas mãos dos filhos de Judá que hão
de vendê-los aos sabeus, a uma nação longínqua, porque o Senhor falou! Proclamai
isto entre as nações: Preparai uma guerra santa! Convocai os heróis! Que avancem,
subam todos os guerreiros! De vossos arados fazei espadas e de vossas podadeiras,
lanças. Que o covarde diga: Sou um herói!' Apressai-vos e vinde, todas as nações
dos arredores e reuni-vos lá! O Senhor faz descer teus guerreiros. 'Que venham
todas as nações e subam ao Vale de Josafá! Sim, ali eu me sentarei para julgar todas
as nações dos arredores. Lançai a foice porque a colheita está madura; vinde, pisai
as uvas porque o lagar está cheio; as tinas transbordam, pois grande é a sua malícia!'
Multidões e multidões no Vale da Decisão! Sim, está próximo o dia do Senhor, no
Vale da Decisão!" (Bíblia Sagrada, Tradução da CNBB, várias editoras, 2001.)
72. J. Michelet, Histoire de la Révolution Française, op. cit., p. 549.
151
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
soberano, foi desenvolvida, particularmente, pela geração de 1830
73
; ela
não tinha a ver expressamente com a experiência do Museu dos Monu-
mentos Franceses, tal como havia sido imaginada por seu conservador 74,
na perspectiva de uma leitura quase esotérica." Ocorre que alguns dos
quadros que na época tinham como tema esse Museu faziam aparecer
as personagens históricas na realidade presente do estabelecimento,
em uma metalepse 76 que implicava a confusão dos tempos.77 Nesse
aspecto, Michelet — ao evocar em um Cours no Collège de France
"esses mortos em seus túmulos, fazendo com que todos os tempos
fossem contemporâneos"78 — continuava sendo o melhor intérprete
desse desaparecimento do tempo, concebido como modalidade da
historicidade revolucionária do museu.
Os retratos constituíam seu primeiro instrumento, por conser-
varem as características "daqueles que já deixaram este mundo e
cuja memória ainda gostamos de relembrar"." Antropologicamente,
como é sublinhado por Susan Stewart, o retrato é um dos dispositivos
73. Sobre esse tema em Michelet, cf. Olivier Renaud, Michelet, la magistrature de L'histoire,
Paris: Michalon, 1998.
74. "[...] esse passado havia sido o presente; se vocês são incapazes de tal constatação, se
esses mortos não estão ressuscitados, então vocês não os conhecem". (François Guizot,
Histoire de la civilisation en France, 1, Paris, 1856, p. 284). E, além dos célebres trechos
sobre a ressurreição dos mortos, a famosa narrativa da visita por Michelet: "Foi aí, e em
nenhum outro lugar, que experimentei a vivida impressão, pela primeira vez, da histó-
ria. Com minha imaginação, eu enchia esses túmulos, eu sentia esses mortos através dos
mármores e, certamente, com algum receio, eu penetrava na sala de abóbadas baixas
em que repousavam Dagoberto, Chilperico e Fredegunda." ("A. M. Edgar Quinet", in
P. Viallaneix (org.), Le Peuple, Paris, Garnier/Flammarion, 1974, p. 67-68).
75. J. Michelet, Cours au Collège de France, op. cit., p. 520-522.
76. Gerard Genette, Métalepse: De la Figure à la fiction, Paris: Le Seuil, 2004.
77. Assim, o quadro de Charles-Marie Bouton — Vue de la salle du XVII siècle, ou La
folie de Charles VI — exposto no Salon de 1817, Museu de Brou, Bourg-en-Bresse.
Em 1821, Népomucène Lemercier escreve o livro La Démence de Charles VI.
78. Sobre esse tema, cf. Jacques Rancière, Les Noms de L'histoire: Estai de poétique du
savoir, Paris: Le Seuil, 1992, p. 100 ss. — a respeito de Michelet, que revolucionou
o tempo ao neutralizar a aparência do passado para criar uma comunidade entre
vivos e mortos.
79. Musée, 1810, p. 79.
152
mais seguros da memória e da coleção80; ele é a confirmação de uma
identidade e tem sua origem — feminina, como defendem os con-
temporâneos inspirados no mito de Dibutade — no desejo de com-
pensar a ausência do ser amado. Algumas observações incidentes do
catálogo de Lenoir esboçavam, de maneira espetacular, essa suposta
presença. "O túmulo de Clóvis — rei dos francos (465-511) — [...]
mostra-nos esse rei deitado: em sua face, lê-se ainda a audácia e a
intriga. 1...] No túmulo de Fredegunda, a lista de seus crimes aparece
burilada em caracteres indeléveis; aliás, eles não foram desgastados
pelo tempo. [...] O sorriso da sedução que se espelha nos lábios de
Catarina de Médicis disfarça as pulsões criminosas de sua alma." Ou,
a propósito de Abelardo: "Na cabeça inclinada desse sábio doutor,
observa-se ainda a doçura amável que havia subjugado a alma de
Heloísa."81 Uma verdadeira leitura do invisível — grande produtora
de imagens — desenvolveu-se desse modo, fazendo apelo a uma fi-
siognomonia vulgarizada82 e, segundo parece, à retórica winckelman-
niana da imperceptível carne das estátuas da Antiguidade.Dessa
sensibilidade de época participaram outras museografias, tal como
aquela, contemporânea, do Louvre, em que Morel d'Arleux utilizava
a historiografia artística — o Traité des passions do pintor Charles
Lebrun — para orientar a exposição de desenhos.83
Essa preocupação com o requinte das aparências e expressões re-
metia, de forma mais geral, a uma antropologia física dos cadáveres,
cujas estátuas parecem dar uma imagem fiel. De acordo com Schlegel,
"os Monumentos Franceses, cujo catálogo bastante detalhado foi
80. Susan Stewart, "Death and Life, in that Order, in the Works of Charles Willson Peale",
in Lynne Cooke e Peter Wollen (org.), Visual Display: Culture beyond Appearances,
Dia Center for the Arts, Seattle: Bay, 1995, p. 32.
81. Description..., edição do ano X, p. 9-10. Bárbara Maria Stafford, "Beauty of the
Invisible: Winckelmann and the Aesthetics of Imperceptibility", in Zeitschrifi fiir
Kunstgeschichte, 43 Bd., H. 1, 1980, p. 65-78.
82. Cf. Melissa Percival, The Appearance of Character: Phyriognomy and Facial Expression
in Eighteenth-Century France, Londres: Maney, 1999.
83. L'an V Dessins des Grands Maîtres, 92" Exposition Cabinet des Dessins, Paris, Réunion
des Musées Nationaux, 1988; Pascal Grienes, L'Usage muséographique des passions
sous le Directoire et l'Empire", in Revue d'Esthétique, vol. 40, 2001, p. 98-103.
153
http://hist�-ria.Com
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA
publicado por Lenoir, têm no mínimo a vantagem de mostrar, com
toda a clareza possível, o que não deve ser, de modo algum, arte e,
em particular, escultura; e seria bastante difícil fazer uma ideia, sem
dispor da prova à sua frente, das possibilidades da imaginação humana
— capaz, inclusive, de avançar tão longe no equívoco —, conduzindo
um grande número de artistas franceses a esculpir cadáveres escru-
pulosamente imitados, vestidos ou até mesmo nus, estendidos em
suas urnas, ou então as senhoras e os homens que podemos ver neste
museu, com uma indumentária moderna, ajoelhados aqui ou ali.."
84
De fato, a abordagem do museu estava focalizada na semelhança
das efígies mortuárias e das estátuas que fazem o efeito de simulacros
dos corpos defuntos." Eis o que é testemunhado pelas descrições de Lenoir
a respeito das personagens de acordo com suas estátuas: por exemplo, a
de Du Guesclin, "de pequena estatura, mas compacto; ombros amplos,
braços repletos de nervuras; pequenos olhos, mas vivos e fogosos; nariz
curto e avantajado, além de lábios espessos"." Os desenhos de Saint-
Denis — que Lenoir não deixa de mostrar aos visitantes de prestígio -
duplicavam o interesse, nunca desmentido, pelo corpo, cabelos, barba
[...] das "múmias"." Tais dissertações aprofundadas tinham a ver com
um gosto da época", testemunhado por um grande número de percursos
turísticos que, além do depósito dos Petits-Augustins, incluíam a visita
das Catacumbas, do Necrotério, da cripta do Panthéon, e até mesmo
uma peregrinação aos lugares dos eventos ocorridos, em Paris, durante os
períodos de Terror." Desse modo, o museu fornecia um excelente exemplo
84. Friedrich Schlegel, Descriptions de tableaux, Paris: ENSBA, 2001, p. 182.
85. Hans Belting, Pour une Anthropologie des images , Paris: Gallimard, 2004.
86. A personagem de Du Guesclin é bastante popular: desde o Salon de 1777 (Brenet,
Durameau) até o de 1806 (Vafflard), o herói foi objeto de importantes telas, gravu-
ras, etc. Cf. Marc Sandoz, Nicolas-Guy Brenet (1728-1792), Paris: Éditart-Quatre
Chemins, 1979.
87. Cf. o testemunho de James Forbes, que, no decorrer de suas numerosas visitas ao
museu, acabou por travar amizade com a família Lenoir (Letters from France Written
in the Years 1803 and 1804, Londres: J. White, 1806, 2 vols., I, p. 404).
88. Sobre as escavações da época, cf. Annette Laming-Emperaire, Originer de l'archéologie
préhistorique en France, Paris: Picard, 1964, p. 91-122.
89. William Roots representa os fantasmas entre os túmulos do Panthéon para divertir
154
do triângulo homem-corpo-imagem do qual Hans Belting propôs uma
leitura antropológica e que, no caso concreto, vai da divisa e do retrato ao
cadáver esculpido, à "múmia" desenhada ou narrada de acordo com as exu-
mações da abadia de Saint-Denis; aliás, Lenoir afirmou ter sido testemunha
dessa operação. Nesse museu, triunfavam, em suma, todas as formas de
representação que se inspiram da máscara em que a morte garante a imagem.
Os historiadores da geração seguinte demonstraram, em compen-
sação, como as imagens podem induzir em erro todo aquele que vier a
depositar nelas uma confiança demasiado literal: a estátua não repre-
senta fielmente o cadáver, objeta Michelet, porque ela é, por si só, uma
figura que deve ser entendida em conformidade com uma gramática
das representaçóes.90 Contrariamente aos aprofundamentos dedicados
por Lenoir à iconografia parisiense a respeito do primeiro bispo dessa
cidade, são Dionísio [saint Denis], que o conduziam a "negar sua
existência", arguindo da "semelhança que existe entre a alegoria antiga
de Baco e a lenda de nosso são Dionísio" — "a tal ponto que, para a
cabeça deste santo, há também um culto particular semelhante ao que
era praticado pelos antigos em relação à cabeça de Baco" —, Michelet
tirava a conclusão de que "Hilduíno apresenta, talvez, aqui uma his-
tória popular sugerida, sem dúvida, pela observação das estátuas que
representavam o martírio de são Dionísio: em todas elas, o santo car-
rega a cabeça nas mãos; ora, tal representação indicava simplesmente a
degolação. É provável que a visão de semelhante estátua terá fornecido
a Hilduíno o fundo de sua lenda e que, sem procurar a coisa significada
sob o signo, ele terá apresentado como um fato autêntico o que lhe
era mostrado por essa representação figurada". Com a ruptura entre
o signo e o significado, abria-se a possibilidade de uma leitura crítica
das imagens, em sua profundidade histórica.
os filhos. Além disso, na década de 1820, os restos do depósito dos Petits-Augustins
serão associados aos do cemitério de Père-Lachaise e das Catacumbas; cf. Henry A.
Ogle (org.), Paris in 18Ie4 or a Tour in France, Tyne, New Castle-on-Tyne, 1909, p.
60. Desde 1791, o arquiteto Vaudoyer previa que o Panthéon seria visitado somente
pelos estrangeiros; cf. Marc K. Deming, "Le Panthéon révolutionnaire", in Le Panthéon
Symbole des Révolutions, Paris: Picard, 1989, p. 147 (Catálogo da exposição).
90. J. Michelet, Cours au Collège de France, op. cit., p. 110.
155
4
O TRABALHO DO LUTO
Em Ie830, os passantes ainda podiam vero Torniquete pin-
tado na tabuleta de um comércio de vinhos; no entanto,
mais tarde, a casa foi demolida. [ ...] Infelizmente! As construções
antigas de Paris desaparecem com urna rapi-
dez assustadora. Em diferentes trechos desta obra, algumas
ainda estão de pé: seja o tipo de moradia da Idade Média,
tal como a casa descrita no começo de Chat-qui-pelote e
da qual ainda subristem um ou dois modelor; seja a casa
habitada pelo juiz Popinot, na rue du Fouarre, espécime
da velha burguesia; aqui, os vestígios da casa de Fulbert;•
ali, toda a bacia do rio Sena, durante o reinado de Carlos
IX Como novo Old Mortality — romance em que o idoso
de Walter Scott reanimava os túmulor — por que motivo
o historiador da sociedade francesa não salvaguardaria
essas curioras expressões do passado?
Balzac, Scènes de la vie parisienne: Splendeurs et
misères des courtisanes, 4: Les Petits Bourgeois, cap. 1,
"Le Paris qui s'en va", 1843.
A narrativa de Augustin Thierry, que relatava sua descoberta, no
início de 1820, da grande coleção dos historiadores originais da França
e das Gálias (a de Dom Bouquet, 1738-1767), é emblemática do des-
pertar de uma vocação para a leitura de antigos trabalhos beneditinos
que, havia sessenta anos, tinham sido votados ao esquecimento. Mesmo
que ela tenha sido encenada, posteriormente, tal enxerto do historia-
dor no antiquário era marcado pelaemoção de um desapossamento e
pela vontade de restituição: "À medida que eu avançava nessa leitura",
lê-se no prefácio de Dix Ans d'études historiques, "a viva impressão do
prazer que me causava a descrição contemporânea dos homens e das
coisas de nossa história antiga foi seguida por um surdo movimento
de cólera contra os escritores modernos que, longe de reproduzirem
fielmente esse espetáculo, haviam disfarçado os fatos, desnaturalizado
os caracteres..."
Se a constatação parece óbvia, a elaboração de uma nova relação de
fidelidade com o passado exige, todavia, relações inéditas entre visível
157
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO
e invisível.' O projeto de história nova tem dificuldade para desligar-
se de um gênero retórico convencional, da influência de antiquários
grudados aos detalhes, enfim, de uma exigência de pitoresco pronto
a aceitar citações em francês antigo para fornecer a "fisionomia do
tempo" aos leitores. Daí em diante, o desafio do historiador consistia
em "descrever os homens de outrora com a fisionomia do tempo em
que eles tinham vivido, mas ele próprio falando a linguagem de (seu)
tempo". E o depoimento de Thierry prossegue: "Nesta tentativa de
conciliação entre métodos tão diversos, eu ficava incessantemente
hesitante entre dois obstáculos. Eu caminhava entre dois perigos: o
de atribuir demasiada importância à regularidade clássica, perdendo
assim a força da cor local e da verdade pitoresca; e o outro, ainda
mais grave, de obstruir minha narração com uma infinidade de fatos
insignificantes, talvez poéticos, mas incoerentes e desprovidos de se-
riedade e até mesmo de significação para um leitor do século XIX."'
Após uma pesquisa obstinada, Thierry — um dos primeiros historia-
dores a trabalhar a partir de fontes originais — teve graves problemas
de vista. Entretanto, essa nova obscuridade ou, antes, essa cegueira
do historiador diante dos textos, deixou-lhe (somente durante um
instante) a possibilidade de ler os monumentos graças a uma espécie
de talento multiplicado. No decorrer de uma viagem na Provence,
em 1825 — na companhia do historiador, linguista, crítico e erudito
Ch.-Cl. Fauriel —, ele escreveu: "Eu dispunha de uma visão apenas
suficiente para olhar à minha frente, mas na presença dos edifícios ou
das ruínas, cuja época deveria ser reconhecida e cujo estilo deveria ser
determinado, não sei que tipo de sentido interno vinha prestar ajuda
aos meus olhos. Animado pelo que eu designaria, de bom grado, por
1. Sobre o historiador, cf. Lionel Gossman, "Augustin Thierry and Liberal Historio-
graphy", in Between History and Literature, Cambridge: Harvard University, 1990,
p. 83-151.
2. Lembremos que a cegueira do cientista é, aqui, o equivalente do imposto do sangue,
porque, neste prefácio a seus "dez anos de estudos históricos", datado de 10 de novembro
de 1834, Thierry afirmava o seguinte: "Se, como tenho prazer em acreditar, o interesse
pela ciência encontra-se entre os grandes interesses nacionais, dei ao meu país tudo o
que lhe dá o soldado mutilado no campo de batalha." (Augustin Thierry, Lettres sur
l'histoire de France: Dix Ans d'études historiques, Paris: Garnier frères, 1866, p. 310.)
158
paixão histórica, eu conseguia enxergar mais longe e de forma mais
nítida."3 Ao olhar instruído, o monumento ou as ruínas oferecem
o livro aberto da história. Uma espécie de imediatidade da leitura,
resultado de longos esforços preliminares, culminava em uma "his-
tória que se absorve pelos olhos'', segundo a esplêndida fórmula de
Michelet.
Com efeito, Thierry adotou plenamente a convicção de que os mo-
numentos são os historiadores das respectivas nações. "Para o verdadeiro
filósofo, as Artes são os historiadores populares de um grande número de
fatos, opiniões e tradições que compõem a existência moral das nações.
A influência dos monumentos sobre o espírito, a memória e o entendi-
mento procede, frequentemente, não tanto de sua própria perfeição, mas
de sua ancianidade, da autenticidade de seu uso e de sua publicidade.
Esses livros originais, sempre abertos à curiosidade pública, levam sua
instrução para fora, comunicando-a sem reservas ao sentimento que os
consulta sem esforço."5
Para adquirir seu pleno valor, essa afirmação deve superar, em primeiro
lugar, a ruptura revolucionária. As polêmicas da década de 1830 sobre a
pertinência de uma conservação dos monumentos inscreviam-se neste
contexto: preservar os castelos e as igrejas era reconhecer seus valores tradi-
cionais, negando de facto aos compradores a plena capacidade para servir-se
ou usufruir desses monumentos. Eis o que era afirmado explicitamente
por Victor Hugo: "Quaisquer que sejam os direitos da propriedade, a
destruição de um edifício histórico e monumental não deve ser permitida
a esses ignóbeis especuladores [...], tão imbecis que eles nem compreen-
dem que são bárbaros."6 Inversamente, o panfletário e erudito, Paul-Louis
Courier desejava o desmantelamento do parque de Chambord pela bande
3. Ibidem: "Cego, sofrendo sem esperança e quase sem tréguas, posso prestar este
testemunho que, feito por mim, não suscitará qualquer suspeita: neste mundo, a
dedicação à ciência é preferível às fruições materiais, à fortuna e à própria saúde."
4. De acordo com o título do artigo de Pierre Malandain, "L'histoire qui se prend par
les yeux...': Michelet et Rubens", in Annales ESC, n. 29, 1974, 2, p. 349 ss.
5. Augustin Thierry, op. cit., p. 47.
6. Victor Hugo, OEuvres complètes, I: Philosophie, 1819-1834; Eugène Renduel (org.),
Littérature et philosophie mêlées, mar. 1834, p. 73.
159
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO
noire7 para revender os terrenos aos camponeses. "Os monumentos
conservam-se nos lugares, tais como Balbek, Palmira e sob as cinzas do
Vesúvio, em que os homens pereceram; mas, alhures, ao renovar tudo, a
indústria declara-lhes uma guerra sem tréguas [...] . O que aconteceria
com o mundo se cada época respeitasse, reverenciasse e consagrasse,
por critério de ancianidade, todas as obras dos tempos passados, sem
ter a ousadia de tocar, destruir ou remover seja lá o que for? [...] Será
pelas lembranças que esses castelos e esses claustros góticos são res-
peitáveis? À nossa volta, que ideia pode ser feita de monumentos tais
como Chenonceau, Le Plessis-lês-Tours, Blois, Amboise, Marmoutiers?
Evocação de vergonhosas devassidões, infamantes traições, assassinatos,
massacres, suplícios, torturas, execráveis crimes, luxo e luxúria, além da
crassa ignorância de párocos e monges, para não falar do que ainda é
pior: a hipocrisia. Deus disse: 'Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei
a terra', ou seja, cultivai a terra com esmero — com efeito, sem esse
cuidado, como será possível povoá-la? E compartilhai a terra — mas
sem essa partilha, como será possível cultivá-la? Ora, a bande noire
empenha-se, precisamente, a proceder a essa partilha de comum acordo,
amistosamente, sem disputas, o que é, afinal de contas, uma boa e santa
obra. Esses destruidores de terras trazem um grande benefício para a
terra, dividem o trabalho, ajudam na produção e, na execução de tais
ações, sua contribuição para a indústria e para a agricultura é supe-
rior a tudo o que possa ter sido empreendido por qualquer ministro,
administrador regional ou agência de fomento sob a proteção desse
administrador."8 Nesse sentido, o verdadeiro romance do monumento
histórico desses anos era Les Paysans de Balzac, e não tanto Notre-Dame
de Paris. Balzac e Victor Hugo vituperavam os novos compradores,
burgueses usurários que revendiam as grandes propriedades em lotes
aos camponeses, enquanto P.-L. Courier e o Michelet de Le Peuple
defendiam a regeneração do mundo rural pela pequena propriedade
em decorrência da liquidação dos grandes domínios da aristocracia.
7. Literalmente, "bando negro". Na época, tais grupos obstinavam-se a pilhar as grandes
propriedades. [N.T.]
8. P. L.- Courier,V' lettre au rédacteur du Censeur, [enviada de] Véretz, em 12 de no-
vembro de 1819, in Lettres au redacteur du Censeur, Paris: Comte, 1820.
160
Uma consciência literária
A eficácia da literatura na patrimonialização é bem conhecida. Desde
a origem, a literatura artística identificou-se com a erudição religiosa e
cívica, associada à glória de sua localidade e preocupada em justificar sua
preeminência em relação com a reputação de outras cidades e regiões.'
< Mais tarde, a literatura foi um "ator do surgimento da sensibilidade ao
patrimônio", segundo a fórmula de Jacques le Goff:10 Desse ponto de
vista, sua análise deveria considerar a evolução de alguns gêneros -
tais como o pitoresco — e, de forma mais abrangente, as vicissitudes
da posição e do papel do escritor na sociedade. Constatação tanto
mais verdadeira que a emergência, no âmago da sociedade francesa, de
um depósito de valores específicos, tal como o "patrimônio", é con-
temporânea da aparição de um novo poder espiritual laico, ou seja, o
do escritor. Assim, seria possível explicar que, na França, a história do
patrimônio tenha sido profundamente alimentada pela literatura, sem
que a eminência da sacralidade literária tenha sido, algum dia, ameaçada
pelo predomínio das belas-artes.
Nessa elaboração complexa, os decênios de 1820-1840 são certa-
mente centrais, ao construírem, por exemplo, a imagem de Victor Hugo
como poeta dos monumentos históricos — uma reputação fielmente su-
blinhada, em seguida, pela história da arte. Na importante obra Histoire
de l'art depuis les premiers temps chrétiens jusqu'à nos jours, organizada
por André Michel, em 1925, Victor Hugo aparece no início do tomo
VIII, dedicado à arquitetura na França: de acordo com o comentário,
Hugo — posicionado entre o barão Taylor", os historiadores, Augustin
Thierry e François Guizot, por um lado, e, por outro, Chateaubriand
9. Cf. G. Previtali, Le Goût des primitifs, Paris: Gerard Monfort, 1994.
10. Jacques Le Goff, apud P. Nora, Science et conscience du patrimoine, Paris: Fayard,
1998, p. 121.
11. Cf. Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, 3." ed., São Paulo: Unesp/Estação
Liberdade, 2006, p. 146, nota 50. [N.T.]
161
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO
ou Montalembert 12 —, no prefácio de 1831 de Notre-Dame de Paris,
escreveu "um hino à arquitetura gótica". O poeta passava por ser o meio-
termo, se é que podemos nos exprimir assim, entre o campo católico e
legitimista e o campo liberal; entre os historiadores ou os arqueólogos
e os letrados. Assim, em suas obras, o escritor romântico sancionava
a emergência de novas curiosidades, vulgarizava os conhecimentos
eruditos, exercia influência sobre os interesses de ordem científica e,
finalmente, contribuía para o repertório das fontes da história."
Basta comparar a geração literária anterior a 1789 com aquela pos-
terior a essa data para mostrar a novidade patrimonial do século XIX.
Eis um dos textos mais famosos que, no Salon de 1767, Diderot dedicou
aos vestígios do passado: "Oh, as belas, as sublimes ruínas! [...] Quanto
efeito! Quanta grandiosidade! Quanta nobreza! Digam-me quem é seu
proprietário a fim de que eu possa sutilizá-las, ou seja, o único recurso
que resta a um indigente para se apropriar de algo. Infelizmente, talvez,
elas nem deem qualquer felicidade a seu rico e estúpido dono; eu, pelo
contrário, seria tão feliz em possuí-las! Proprietário indolente, esposo
obcecado! Será que te prejudico ao apropriar-me dos encantos que
ignoras ou menosprezas?"14
Eis, por contraste, um dos trechos mais citados de Victor Hugo:
"Se esta situação se mantiver durante algum tempo, em breve, o único
monumento nacional que vai sobrar à França será a obra Voyages pitto-
resques et romantiques dans l'ancienne France, em que o lápis de Taylor
e a pluma de Charles Nodier rivalizam em graciosidade, imaginação e
poesia. [...] Chegou a hora de impedir que seja quem for se mantenha
em silêncio. Impõe-se que um grito universal convoque, finalmente, a
nova França a prestar socorro à antiga. Todos os gêneros de profanação,
degradação e estragos têm ameaçado, simultaneamente, o pouco que
12. Charles Forbes, conde de Montalembert (1810-1870), escritor, político e polemista
francês. Cf. Françoise Choay, op. cit., p. 134. [N.T.]
13. Jean Mallion, Victor Hugo et l'art architectural, Grenoble: Imprimerie Allier, 1962.
De forma mais abrangente, cf. as reflexões de Jacques Le Goff, Histoire et mémoire,
Paris: Gallimard, 1977, e seu prefácio para o livro de Marc Bloch, Apologie pour
l'histoire ou Métier d'historien, Paris: A. Collin, 1997.
14. Salon de 1767, XI, apud Diderot sur L'art, Paris: Hermann, 1978, p. 170.
162
nos resta dos admiráveis monumentos da Idade Média em que ficou
impregnada a antiga glória nacional; eles associam a memória dos
reis à tradição do povo. [...] Em um edifício, existem dois aspectos:
seu uso e sua beleza; o primeiro pertence ao proprietário, enquanto
sua beleza cabe de direito a todo o mundo; portanto, ao destruí-lo,
desconsidera-se tal direito.""
O contraste entre Diderot e Victor Hugo é instrutivo em vários as-
pectos: começando pela diferença dos objetos, já que se trata de quadro
de ruínas no primeiro caso, enquanto no segundo de ruínas bem reais.
Certamente, o circuito entre a fabrique representada em pintura e a
fabrique real, ou seja, aquela que é erguida pelos jardineiros, marcou
a segunda metade do século XVIII, como vimos mais acima; assim,
nesta transferência das ruínas, somos tentados a ver um processo no
mínimo idêntico. Victor Hugo, porém, lançava um apelo para reparar
essas ruínas e interromper essa degradação, em nome do respeito pelo
monumento original; nada disso, com toda a evidência, em Diderot,
para quem o desmantelamento era respeitável por ser digno de interesse
em si mesmo, além de pretexto a um desenvolvimento filosófico. Esse
é o sentido de outro trecho do Salon de 1767: "As ruínas despertam
em mim grandes ideias. Tudo se aniquila, tudo desaparece, tudo passa.
Apenas o mundo subsiste. Apenas o tempo perdura. Como este mundo
é velho! Faço meu caminho entre duas eternidades. Ao observar, de
qualquer ponto, os objetos à minha volta, eles me anunciam um fim
e me resignam ao fim que me espera.16
A diferença é, também, impressionante em relação à atenção pres-
tada à propriedade e aos proprietários: Diderot dava testemunho de um
tom de época naturalmente hostil à posse privada de objetos, seja por
gosto ou por cultura. A equivalência entre propriedade e esterilidade
15. V. Hugo, Guerre aux démolisseurs, versão de 1825, nova edição de Patrice Béghain,
Guerre aux démolisseurs! Hugo, Proust, Barrès: Un Combat pour le patrimoine, Paris:
Paroles d'Aube, 1997, p. 45-47.
16. Salon de 1767, XI, op. cit., p. 170. Mais tarde, Alois Riegl (cf. cap. 5) designará por
valor de ancianidade o que o século XVIII havia qualificado, naturalmente, como
espetáculo sublime: eis porque ambos estão afastados, por razões diversas, da definição
canônica do monumento histórico.
163
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO
ou, no mínimo, tédio, era comum em numerosas críticas das Luzes:
essa é, aliás, a lição de Candide quando, na companhia de Martin, o
herói chega a Veneza para visitar o grande senador Pococurante no
palácio de La Brenta e usufruir das obras de Rafael, da música e
dos livros desse faustoso personagem. No entanto, esse bibliófilo que,
tendo lido todos os livros, os desdenhava, será verdadeiramente um
homem superior? Do mesmo modo, contra os proprietários enfarados
com suas posses, Rousseau defendia, em Émile, o despojamento do ama-
dor: "Eu teria renunciado a uma galeria e a uma biblioteca, sobretudo,
se eu apreciasse a leitura e tivesse um conhecimento aprofundado de
pintura. "
17
No final do século, o Dictionnaire des beaux-arts de Watelet-
Levesque fornecia a vulgata dessa desconfiança em relação aos fazedores
de gabinetes,deplorando a confiscação de sua fruição entre as mãos de
ignorantes ou presunçosos, além de reclamar sua abertura ao público.
Victor Hugo é tributário, de algum modo, das condenações banais
do filistinismo: mas o "roubo" evocado por Diderot havia deixado de
ser atual porque, após 1789, desaparecera certa ingenuidade intelectual.
A socialização reivindicada daí em diante foi marcada pela experiência
das reviravoltas introduzidas pelas novas noções de nacionalização e
de vandalismo. Assim, Chateaubriand havia estabelecido a distinção
entre os estragos do tempo e a decadência dos homens para condenar,
de forma mais argumentada, "a criminalidade histórica", se undo a
expressão de Francesco Orlando ao falar dos monumentos.18 O apelo
ao interesse geral para legitimar eventuais expropriações figurava, por
conseguinte, entre as novidades da intervenção hugoliana: "Quando,
cotidianamente, o interesse geral faz ouvir sua voz, a lei impõe o
silêncio aos uivos do interesse privado. A propriedade particular foi,
frequentemente, e continua sendo, em todos os momentos, modificada
no sentido da comunidade social. Compra-se, à força, um terreno para
transformá-lo em uma praça; uma casa, para se tornar um hospício.
Um dia, o monumento privado será comprado."
17. Rousseau, Émile, Livro IV, Paris: Garnier-Flammarion, 1990, p. 455.
18. Francesco Orlando, Gli oggetti desueti nelle immagini della letteratura, Turim: Einaudi,
1993, p. 306.
164
O novo aspecto da situação traduzia-se, finalmente, pelo apelo
ao espaço público: enquanto Diderot dirigia-se à Europa das Luzes
por via da correspondência de Grimm, Victor Hugo tinha a intenção
de empreender uma verdadeira campanha de opinião, assim como
é manifestado pelo título de seu artigo. Ele reivindicava, por isso
mesmo, o status de porta-voz que, em caso de necessidade, podia ser
requisitado por seu campo. "Oh Hugo! Empresta-me tua indignação
inflamada", escreve, com humor, Mérimée a Ludovic Vitet ao narrar-
-lhe as atrocidades cometidas na abadia de Saint-Savin — o mais im-
portante conjunto de pinturas murais de estilo românico conservado
na França.'° O monumento histórico tornava-se um programa de
escrita e ao mesmo tempo um objeto de apropriação pelo escritor.20
Em segundo plano, surgiam as especulações filosóficas sobre as ruínas
marcadas pela temática do sublime, em primeiro lugar, e em seguida
pela literatura artística; a mutação do pitoresco era seu elemento es-
sencial, que culminou em Ballades de 1826 e em Orientales de 1829,
livros que indicavam a introdução da cor exótica e, depois, medieval
na poesia francesa.
A glória de Victor Hugo devia-se ao fato de ter reconhecido ao novo
patrimônio francês — ou seja, a arte da Idade Média, com a qual ele se
identificava inteiramente — uma modernidade e uma atualidade que,
posteriormente, nenhum outro artista foi capaz de lhe conferir em tal
grau, nem dessa forma.21 Com os versos sobre o Arco de Triunfo de
1837, as igrejas góticas deixaram de ser as únicas a confundir-se com
a natureza no âmago de civilizações soterradas. Por sua vez, o poema
"Passé" de 1835, do livro Les Voix intérieures, é dedicado a determi-
nado "grande castelo do tempo de Luís XIII", o que correspondia a
uma moda da época de Luís Filipe (período da Monarquia de Julho,
1830-1848), ilustrada no mesmo momento pelos escritores, Théophile
19. Poitiers, em 15 de julho de 1840, in Maurice Parturier (org.), Lemes de Mérimée à
Ludovic Vitet, Paris: Plon, 1934, p. 14.
20. Cf. Ségolène Le Men, La Cathédrale illustrée de Hugo à Monet, Paris: CNRS, 1998,
"La cathédrale et le sacre de l'auteur", p. 24-25.
21. Nicole Savy e Guy Rosa (orgs.), L'OEil de Victor Hugo, Paris: Cendres/Musée d'Orsay,
2004 (Atas do Colóquio, 19 a 21 de setembro de 2002, Paris, Musée d'Orsay).
165
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO
Gauthier e Gérard de Nerval.22 Em compensação, o Renascimento
continuava sendo estigmatizado; além disso, Montalembert, na carta
enviada a Victor Hugo, publicada na Revue des Deux-Mondes de 1º de
março de 1833, criticava essa primeira modernidade para enaltecer
ainda mais a arte religiosa da Idade Média."
Victor Hugo inaugurou a figura do escritor que inventa o patrimô-
nio, porta-voz dos monumentos, em relação com uma religião estética
que se erguia vigorosamente contra o prosaísmo burguês e contra todas
as formas de destruição da beleza. No entanto, a ideia de um patrimônio
assumia, nesse contexto, a forma de uma moldura, de uma encaderna-
ção — ainda de acordo com a afirmação de Victor Hugo — destinada
a valorizar a história. Ao participar da inauguração, em 10 de junho
de 1837, do museu de todas as glórias da França, seu olhar dava a
impressão de atravessar o castelo para considerar, de saída, os anais do
país: "Ao livro magnífico, cujo título é a história da França, conferiu-se
a magnificente encadernação que é designada por Versalhes"." Assim,
Versalhes ilustrava como o patrimônio é "enquadramento" da história:
nesse sentido, conservar os monumentos consiste não tanto em con-
servar a história — que será lida sempre pelos historiadores —, mas
homenageá-la ao preservar sua moldura.
Os desafios a enfrentar por uma geração
No âmago da genealogia oficial do "culto moderno aos monumentos",
Guizot parece ter sido vítima de um esquecimento, em benefício de
22. V. Hugo, OEuvres poétiques, Paris: Gallimard/La Pléiade, I, p. 970-971. Cf. ainda
"La Statue" (1837), in OEuvres poétiques — Les Rayons et les Ombres, p. 1105-1108.
Sobre esse tema, cf. os comentários de Francesco Orlando, op. cit., p. 313.
23. Paul Bénichou, Les Mages romantiques, Paris: Gallimard, 1989, p. 194.
24. V. Hugo, Choses voes, 1830-Ie846, Paris: Gallimard, 1972, p. 153-154. Eis seu co-
mentário: "Aprovo o que o rei Luís Filipe fez em Versalhes. A realização dessa obra
demonstra que ele foi grande como rei e imparcial como filósofo; que transformou
um monumento monárquico em um monumento nacional; que conferiu uma ideia
imensa ao passado, tendo colocado 1789 diante de 1688, o imperador no lugar do
rei, Napoleão no lugar de Luís XIV."
166
um pequeno grupo pioneiro do qual ele não faz parte, assim como
de organismos instalados por sua iniciativa sem que ele tivesse assumido
qualquer função direta. Assim, Antonin Proust evocaria, em 1887,
apenas cinco antecessores: Alexandre Lenoir, talvez, na época, no auge
de sua reputação; os indispensáveis gênios da causa, Chateaubriand e
Victor Hugo; por último, Augustin Thierry e Prosper Mérimée. Destes
dois últimos personagens, o primeiro havia fornecido a legitimidade
científica do empreendimento: "Nestes livros (de pedra), encontra-se o
que Augustin de Thierry designa por alma da história: e aprendemos a
lê-los por ele e pelos grandes fundadores da escola histórica do século
XIX." Por sua vez, o segundo foi considerado o fundador da adminis-
tração ao propor, após a Revolução de Fevereiro", "a reunião de todos
os serviços que têm a ver com as artes"26.
Este eclipse de Guizot não foi o resultado exclusivo da condenação
do político; sua reputação de "conservador" padecia de um descrédito
associado à sua insuficiente "francidade", por ser visto, na época, como
discípulo do estadista prussiano Friedrich Ancillon e admirador do
historiador britânico E. Gibbon. Ele não confessava o entusiasmo
patriótico julgado apropriado — com o gosto romântico pela Idade
Média — ao compromisso patrimonial. A altivez afetada de seu livro
Cours d'histoire moderne manifestava uma carência afetiva, assim como
aconteceu com um de seus projetos — abrir, em Versalhes, um museu
do "Ideólogo" —, que o senso político do soberano transformou em
espetáculo propício a influenciar a opinião pública, à semelhança — de
acordo com a expressão forjada pelo historiador norte-americano dos
usos da história Stanley Mellon — da "filosofia da magnanimidade".27
25. Segunda revolução francesa do século XIX, que se desenrolou em Paris de23 a 25 de
fevereiro de 1848. Ao imporem a abdicação do rei Luís Filipe, os revolucionários, apoia-
dos pelos liberais e republicanos, criaram a Segunda República (1848-1852). [N.T.]
26. Antonin, Rapport fait au nom de la Commission chargée d'examiner le projet de loi...,
Paris, 1887, Chambre des Députés, n. 1501; e Recueil de Pièces relatives à la conser-
vation der monuments (coletânea de obras diversas), Paris: Bibliothèque Nationale,
1849-1888, 18 peças, fol. L 212, 212, peça n. 13.
27. Um "grande museu etnográfico no qual seriam depositados os monumentos e os
vestígios dos costumes, usos, vida civil e na guerra, em primeiro lugar, da França e
também de todas as nações do mundo" (F. Guizot, Mémoires pour servir à l'histoire de
167
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO
A fórmula de Michelet — em sua dedicatória ao inspirador da república
laica, E. Quinet, que serve de prefácio ao livro Le Peuple — era, neste caso,
reveladora: a Guizot, ele atribuía a análise, enquanto Thierry encarnava a
narração, e ele próprio a ressurreição.
No entanto, ao refletir o descrédito generalizado que afetou o
ministro de forma duradoura, sua exclusão não deixava de dar tes-
temunho de um postulado de unanimidade nacional em matéria de
patrimônio: parecia indecente que a iniciativa e a responsabilidade
pela proteção dos monumentos fossem atribuídas a um estadista. Em
compensação, a evocação de uma responsabilidade coletiva — o voto
das Assembleias Revolucionárias ou a reivindicação dos espíritos cultos
sob a Restauração (1814-1830) — permitia sugerir uma tomada de
consciência, pela comunidade nacional, de seu passado.
O discurso patrimonial empenhava-se, de maneira geral, a esboçar
as etapas de uma dedicação — desde a coragem demonstrada no com-
bate contra os vândalos até a abnegação do cientista — e limitava-se
a atribuir um interesse de erudição à criação de uma administração.
Neste caso, a evocação de Guizot servia apenas para negar-lhe, de
forma mais nítida, qualquer originalidade, até mesmo qualquer res-
ponsabilidade efetiva: ele passava por ser o intérprete, com toda a
certeza experiente, de um progresso da opinião pública associado ao
novo espírito das artes e da história; seu grande mérito consistiu em ter
conseguido aplicar-lhe a conveniente sanção governamental. Tal inter-
pretação adotava grandemente a filosofia dos próprios doutrinários.28
Em compensação, a história política clássica da Monarquia de
Julho assimilava frequentemente sua ação patrimonial a um artifício
destinado a desviar as energias da crítica e do combate contra a Câmara
mon temps, 8 vols., Paris, 1858-1867, t. II, p. 69). Charles-Henri Pouthas havia subli-
nhado bastante o vínculo entre os Ideõlogos e Guizot em Guizot pendant la révolution,
Paris: Plon, 1923; e em La jeunesse de Guizot, Paris: Alcan, 1936. Cf. ainda Stanley
Mellon, The Political Uses of History: A Study of Historians in the French Restoration,
Stanford: Stanford University Press, 1958; e, neste caso, "The July Monarchy and the
Napoleonic Myth", in Yale French Studies, vol. 26, 1960, p. 70-78.
28. No original, Doctrinnaires, denominação atribuída, sob a Restauração, ao pequeno
grupo de monarquistas franceses que esperavam reconciliar a monarquia com a
Revolução, assim como a autoridade com a liberdade. [N.T.]
168
dos Deputados; de acordo com determinada tradição, tais medidas
eram consideradas como um plano maquiavélico para enfraquecer a
classe intelectual. Atualmente, para alguns pesquisadores, a questão do
patrimônio em Guizot tornou-se "a vertente oposta da farsa nacional do
'enriqueçam'"29; ela seria a "herança fictícia dos deserdados", o "álibi
econômico à propriedade privada". A tal ponto que a denúncia dessa
particular "conivência entre o capitalismo e o patrimônio"" forneceu
a derradeira condenação do regime. Para a ideologia oposta — que
identificava o burguês conquistador com o precursor da decadência
— Guizot passava por ser, ao contrário, o primeiro gestor do declínio
espiritual do Ocidente?'
Para além de tais processos peremptórios, as análises da obra
"patrimonial" de Guizot interessaram-se, sobretudo, pelo projeto
de 1833, que advogava uma "publicação geral de todos os materiais
importantes, e ainda inéditos, sobre a história da nossa pátria", assim
como pela fundação da Sociedade da História da França e pelo Comitê
dos Trabalhos Históricos. Aliás, ninguém contesta a importância desse
legado; sobretudo, "essa instituição historiográfica é o aspecto que,
acima de qualquer outro, mostra a indissociabilidade dos vínculos
entre o estadista e o historiador".32 Assim, a iniciativa arqueológica foi
relegada para uma quase obscuridade em relação ao trabalho arquivís-
tico; acertadamente, se levarmos em consideração que, nessa matéria,
o interesse de Guizot parece ser, em uma primeira abordagem, singu-
larmente menos notável. Todavia, o deslocamento da curiosidade para
um episódio, mencionado superficialmente, da carreira política e da
reflexão sobre a história do "senhor Guizot" pode revelar-se fecundo:
29. Pierre-Marc de Biasi, "Système et déviances de la collection à l'époque romantique",
in Romantisme, n. 27, 1980, p. 77-93.
30. Bernard Deloche, Museologica: Contradictions et logique du musée, Paris-Lyon: J. Vrin,
1985.
31. De acordo com a afirmação do narrador de Jacques Laurent em seu romance Les
Sous-Ensembles flous, Paris: Grasset, 1981, p. 44.
32. Charles-Olivier Carbonell, "Guizot, homme d'État, et le mouvement historiographi-
que français du XIX' siècle", in Actes du Colloque François Guizot, Paris: Société de
I'Histoire du Protestantisme Français, 1976, p. 221 (Atas do colóquio, Paris, 22-25
de outubro de 1974).
169
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO
a contrapelo de uma comemoração do primeiro artesão do patrimô-
nio, trata-se de reconhecer, neste livro, a unidade de um projeto que
inspirou as medidas adotadas e os discursos proferidos, sem reduzi-lo,
imediatamente, à preocupação política.
A Restauração foi, por excelência, o período em que, de acordo com
a constatação de Chateaubriand no prefácio de Études historiques de
1831, "tudo — polêmica, teatro, romance, poesia — assume a forma da
história". Tendo chegado à mesma conclusão, Guizot tirou partido dessa
situação favorável para lançar a Collection de mémoires relatifs à l'histoire
de France (1823), cuja apresentação afirmava o seguinte: "Os monu-
mentos originais de nossa antiga história foram até aqui o patrimônio
exclusivo dos cientistas; tendo sido mantido a distância, o público só
teve a oportunidade de conhecer a França e sua vida, dos séculos V ao
XIII, por intermédio das obras de escritores modernos." Essa moda
estendeu-se à custa das outras encarnações do universal. Enquanto as
publicações francesas de arqueologia nacional suscitavam a admiração
da Europa erudita do século XIX, os estudos sobre a civilização romana
e, em menor medida, sobre a civilização grega foram abandonados a
partir de 1815. Mais tarde, Camille Jullian poderá escrever que "a Res-
tauração é uma das épocas em que, na França, a Antiguidade Romana
foi menos estudada e, aliás, nunca mais conseguimos recuperar o avanço
que, então, deixamos escapar para nossos rivais"."
A partir da década de 1830, o historiador foi levado a enfatizar
a reunião confusa de conhecimentos que havia sido desdenhada por
seus predecessores. Essa mutação decisiva inspirou a Chateaubriand
— observador favorável, embora pouco preocupado em inscrever-se
nessa corrente — uma célebre constatação: "Nas suas narrativas, os
analistas da Antiguidade não introduziram, de modo algum, o quadro
dos diferentes ramos da administração: as ciências, as artes, a educação
pública eram rejeitadas da área da história; Clio prosseguia com maior
leveza seu caminho, aliviada do pesado fardo que, atualmente, ela
33. Camille Jullian, Notes sur l'histoire en France au XIX' siècle, Paris, 1896.Cf. ainda Les
Politiques de l'archéologie du milieu du XIX' siècle à l'orée du XXIe siècle, Atenas: École
française d'Athènes, 2000; e Mélanges de l'École française de Rome: Italie et Méditer-
ranée, 113/2, "Antiquité, archéologie et construction nationale au XIX siècle", 2001.
170
arrasta atrás de si. Agora, a história é uma enciclopédia; tudo tem de
ser incluído no seu domínio, desde a astronomia até a química; desde
a arte do financista até a arte do manufatureiro; desde o conhecimento
do pintor, escultor e arquiteto até a ciência do economista; desde o
estudo das leis eclesiásticas, civis e criminais, assim como políticas.
Na sua tentativa para descrever uma cena de costumes e de paixões,
o historiador moderno vai atribuir o maior destaque ao imposto do
sal; e já se reivindica outro imposto; aflui a guerra, a navegação e o
comércio. Como eram fabricadas, na época, as armas? De onde vinha a
madeira para as construções? Quanto valia uma libra de pimenta? Tudo
se perde se o autor não observou que o ano começava na Páscoa e que
ele lhe havia atribuído a data do 1º de janeiro. A sociedade permane-
cerá desconhecida se for ignorada a cor da parte superior dos calções
do rei e o preço de oito onças de prata."34 Enquanto o medievalismo
do século XVIII se apoiava no direito público e no estudo das prerro-
gativas régias (através de decretos e leis, área dos feudistas e juristas),
o do século XIX enfatizava o Povo e a Nação (essencialmente através
das crônicas, narrativas, poesias e canções populares).
As razões dessa postura foram perfeitamente resumidas em
"L'Enchanteur", prefácio de Études historiques (1831): "Atualmente, ao ler-
mos nossa história do passado, ficamos mortificados pelo fato de nos sen-
tirmos perdidos [...1. Nada foi criado pelos historiadores do século XIX;
ocorre que, à sua frente, eles deparam-se com um novo mundo que lhes
serve de escala-padrão para avaliar o mundo antigo. Antes da Revolução,
os manuscritos eram questionados apenas em relação aos padres, nobres
e reis. Pelo contrário, agora, nossa pesquisa interessa-se exclusivamente
pelo que diz respeito à vida dos povos e às transformações sociais: ora,
esse aspecto foi completamente desdenhado pelos documentos oficiais."
No seu esforço para manter-se acima da corrente das histórias sucessi-
vas, Chateaubriand tirou a conclusão de que, "antes da época da Revo-
lução, deve-se distinguir duas escolas históricas: a escola do século XVII
e a escola do século XVIII, em que uma é erudita e religiosa, enquanto
34. Chateaubriand, Études historiques (1831), prefácio, p. 4-5. Cf. A. Dollinger, Les
Études historiques de Chateaubriand, Paris, 1932.
171
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO
a outra é crítica e filosófica; na primeira, os beneditinos reuniam os
fatos e Bossuet empenhava-se em divulgá-los; na segunda escola,
os Enciclopedistas criticavam os fatos e Voltaire dedicou-se a expô-los
às disputas entre os letrados. Nossa escola moderna do século XIX
pode ser designada como a escola política; ela é também filosófica,
mas diferente da escola do século XVIII."
Por sua vez, desde o primeiro curso sobre Les Origines du gouverne-
ment représentatif en Europe, Guizot afirmava que "o passado transforma-
se com o presente": "Tudo se transforma no homem e à sua volta [...],
o ponto de vista a partir do qual ele considera os fatos, assim como
suas disposições para proceder a esse exame."" O professor analisava
a atividade historiográfica em seu contexto: "Segundo o estado político e
o grau de civilização, os povos consideram a história sob determinado
aspecto, procurando determinado gênero de interesses nesse estudo.""
A "primeira época das sociedades" conheceu uma história poética, "nar-
rações brilhantes e ingênuas que encantam uma curiosidade ávida e fácil
de satisfazer" — por exemplo, os textos de Heródoto. Em seguida, uma
história filosófica, "série de dissertações sobre a caminhada do gênero
humano" — de que E. Gibbon e D. Hume deixaram exemplos notáveis
— correspondeu perfeitamente "ao tempo dos conhecimentos, da riqueza
e do lazer". Por último, uma história "prática", tal como em Tucídides
ou Lord Clarendon, forneceu "instruções análogas às necessidades
experimentadas pelas pessoas em sua vida concreta"; ela correspondeu
a "uma vida política animada e intensa". Atualmente, "por uma rara
convergência de circunstâncias, todos esses gostos e todas essas necessi-
dades parecem estar reunidas; a história é agora, entre nós, suscetível de
todos esses gêneros de interesse". Com efeito, ela dá testemunho de um
respeito novo pelo princípio fundamental da civilização, "ideia pree-
minente que toma a dianteira e é predominante em toda parte em que
se manifesta o espírito humano: a justiça equitativa, aplicada em escala
universal". O respeito pelo passado, aqui, "não aprova nem impõe o
35. François Guizot, Histoire eles origines du gouvernement représentatif en Europe, Paris,
1855, t. I, 1a lição, p. 2 (doravante HOG).
36. Ibidem, t. II, p. 6-10.
172
silêncio ao que é falso, culpável ou funesto. [...] O tempo não recebeu
a ímpia missão de sancionar o mal ou o erro; pelo contrário, além de
desvendá-los, serve-se deles". Desse imperativo absoluto, o século XIX
manifesta uma consciência bem apurada: "É reduzido, talvez, o número
de pessoas para quem o dever de todos os tempos é a imparcialidade,
a qual, em meu entender, é a vocação de nossa época; mas", acrescenta
ele imediatamente, "em vez da imparcialidade insensível e estéril que
surge da indiferença, trata-se da imparcialidade enérgica e fecunda,
inspirada pelo amor e pela visão da verdade."37
A probidade intelectual da nova história está associada intimamente
à sua eficácia social. Esse apogeu da inteligência do historiador é, si-
multaneamente, o de sua publicidade: ela "deixou de ser o patrimônio
dos eruditos" quando os espíritos "tornaram-se capazes de compreender
o homem em todos os graus de civilização" e serviram-se desse saber.
Em suma, "sua utilidade deixou de ser, como outrora, uma ideia geral,
uma espécie de dogma literário e moral, professado de preferência pelos
escritores, e não tanto adotado e aplicado pelo público. Agora, trata-se
de uma necessidade para o cidadão que pretenda tomar parte nos ne-
gócios de seu país ou somente ter um julgamento criterioso." A tarefa
do historiador é, ao mesmo tempo, política e ética.
O Cours d'histoire moderne é um Métier d'historien duplicado por
um breviário político, cujo único programa resume-se deste modo:
"Descobrir a verdade, realizá-la fora, nos fatos exteriores, em benefício
da sociedade; transformá-la, dentro de nós, em crenças capazes de nos
inspirar o desprendimento e a energia moral que são a força e a digni-
dade do homem neste mundo.."38 Sob esses dois aspectos, o empreen-
dimento de conservação assumia, em 1830, uma evidente atualidade;
ele devia estar a serviço da sociedade, levando-a a respeitar a ordem
sublime da justiça, tanto quanto isso fosse humanamente possível.39
37. Ibidem, t. I, p. 13.
38. François Guizot, Histoire de la civilisation en France depuis la chute de l'Empire romain
jusqu'en Ie789, 11. ed. Paris, 1869, p. 30 (doravante HCF).
39. Cf. Philippe Raynaud, "Le Libéralisme français à l'épreuve du pouvoir", in Pascal
Ory (org.), Nouvelle Histoire des idées politiques, Paris: Hachette, 1987, p. 172, sobre
a "antropologia pessimista".
173
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO
Na sequência dos tumultos do início do século, numerosos monu-
mentos trocaram de mãos; daí em diante, eles dependiam do direito
exclusivo de proprietários. De forma mais geral, a manutenção e a
transmissão dos patrimônios tradicionais estavam ameaçados pela si-
tuação movimentada da época. Como reconhecer a legitimidade social
e o interesse da civilização sem fazer apelo ao Estado? Paralelamente, a
fisionomia da verdade histórica estava passando por uma completa mu-
tação.