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3 Dominique Poulot - Uma historia do patrimonio no Ocidente

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DOMINIQUE POULOT 
Um história 
do patrimônio 
no Ocidente 
L 11:40 
tle 
Título original: Une histoire du patrimoine en Occident, XVIIIe-XXIe' siècle. 
Du monument aux valeurs 
C) Presses Universitaires de France, 2006 
C) Editora Estação Liberdade, 2009, para esta tradução 
Preparação 
Revisão 
Assistência editorial 
Composição 
Imagem de capa 
Editores 
Huendel Viana 
Jonathan Busato 
Leandro Rodrigues 
Johannes C. Bergmann/Estação Liberdade 
Musée d'Orsay. O Daniel Thierry/Photononstop. 
Angel Bojadsen e Edilberto Fernando Vem 
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE 
Sindicato Nacional dos Editores dc Livros, RJ 
P894h 
Poulot, Dominique, 1956- 
Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XXI: do 
monumento aos valores / Dominique Poulot ; tradução Guilherme 
João de Freitas Teixeira. — São Paulo : Estação Liberdade, 2009. 
Tradução de: Une histoire du patrimoine en Occident 
ISBN 978-85-7448-170-8 
1. Património cultural — Europa — História. 2. Patrimônio 
cultural —Avaliação — Europa. 3. Europa — Civilização. 4. Europa -
Política cultural. 1. Título. 
09-4801. CDD: 363.69 
CDU: 351-852 
Esta obra, publicada no âmbito do Ano da França no Brasil e do programa de participação à publicação Carlos. 
Drummond de Andrade, contou com o apoio do Ministério francês das Relaçóes Exteriores. 
"França.Br 2009" Ano da França no Brasil/2009 é organizada no Brasil pelo Comissariado geral brasileiro, pelo 
Ministério da Cultura c pelo Ministério das Relações Exteriores; na França, pelo Comissariado geral francês, pelo 
Ministério das Relações exteriores e européias, pelo Ministério da Cultura e da Comunicação e por Culturesfrance. 
Cet ouvragc, publié dans le cadre de l'Année de la France au Brésil et du Programme d'Aide à la Publication Carlos 
Drummond de Andrade, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Etrangères. 
França.Br 2009 l'Année de la France au Brésil est organisée : 
En France : par le Commissariat général français, le Ministère des Affaires étrangères et européennes, le Ministère de 
la Culture et de la Communication et Culturesfrance. 
Au Brésil : par le Commissariat général brésilien, le Ministère de la Culture et le Ministère des Relations Extérieures. 
Todos os direitos reservados à 
Editora Estação Liberdade Ltda. 
Rua Dona Elisa, 116 1 01155-030 | São Paulo-SP 
Tel.: (11) 3661 2881 | Fax: (11) 3825 4239 
www.estacaoliberdade.com.br 
SUMÁRIO 
Introdução 
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 9 
Uma expressão tradicional do encadeamento das gerações 15 
Uma partilha das obras de cultura 19 
Uma encarnação da construção nacional 25 
Um recurso comum 29 
A caminho de uma antropologia histórica da 
patrimonialização francesa 33 
1 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 39 
A invenção identitária 40 
A transferência da sacralidade 42 
A construção do valor 44 
O monumento e a história 45 
O território da Cidade 53 
O jardim e suas fabriques: uma melancolia cívica 61 
As provas da história 71 
2 
UMA NOVA AUTENTICIDADE 85 
Uma nova história 89 
O triunfo da alegoria 96 
Distribuir o patrimônio em novos lugares 102 
O museu regenerador 109 
O combate pela autenticidade 116 
7 
http://www.estacaoliberdade.com.br
3 
A MEMÓRIA INSPIRADORA 123 
O culto dos homens ilustres 125 
A funcionalização dos mortos 129 
A busca de um santuário do Estado 140 
A encarnação dos antepassados 152 
4 
O TRABALHO DO LUTO 157 
Uma consciência literária 161 
Os desafios a enfrentar por uma geração 166 
Uma teoria do patrimônio 174 
A administração do luto e da ressurreição 178 
Uma história do ponto de vista da civilização 183 
Uma arqueologia dos Modernos 188 
A conservação para o futuro 192 
5 
A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE 197 
A nova urgência da transmissão 199 
A formação de um cânon 203 
As civilidades do patrimônio 207 
O ponto de vista da recepção 213 
O caso do território-patrimônio 219 
Os valores da apropriação 224 
Um patrimônio da significação 228 
Conclusão 
Uma definição orientada pelo futuro 231 
Um conjunto de releituras 236 
 
INTRODUÇÃO 
 
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
 
Os monumentos constituem uma parte essencial da glória 
de qualquer sociedade humana: eles carregam a memória 
de um povo para além de sua própria existência e acabam 
por torná-lo contemporâneo das geraçóes que vêm se esta-
belecer em seus campos abandonados. 
Chateaubriand, Mémoires d'outre-tombe. 
 
Na nossa vida cultural, raros são os termos que possuem um poder 
de evocação tão grande quanto "patrimônio". Ele parece acompanhar 
a multiplicação dos aniversários e das comemorações, característica de 
nossa atual modernidade. O acúmulo de vestígios e restos revelados, 
conservados e aclimatados segundo práticas diversas, parece respon-
der ao fluxo da produção contemporânea de artefatos. Deste modo, 
o patrimônio sanciona, a todo instante, a passagem acelerada que 
atribui uma posição "de destaque" a objetos ou práticas, de acordo 
com a análise de James Clifford sobre a evolução dos paradigmas da 
conservação.' 
No decorrer do século XX, o patrimônio assume, cada vez mais ex-
plicitamente, sua implementação positiva, segundo juízos de valor que 
afirmam uma verdadeira escolha. Os desafios ideológicos, econômicos e 
sociais extrapolam amplamente as fronteiras disciplinares (entre história, 
estética ou história da arte, folclore ou antropologia) —, como pode ser 
notado, no decorrer das décadas de 1970-1980, pelo reconhecimento 
de "novos patrimônios", que abrange uma profusão de esforços públicos 
e privados em favor de múltiplas comunidades. Progressivamente, o 
entusiasmo pela promoção e valorização do patrimônio passa por uma 
verdadeira "cruzada" no âmago do mundo ocidental 
 
 
 
 
1. James Clifford, Malaise dans la culture: L'Ethnographie, la littérature et l'art au XX' 
siècle, Paris: Ensba, 1998. 
2. David Lowenthal, The Heritage Crusade and the Spoils of History, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1998. 
 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
Por conseguinte, não cansamos de evocar "patrimônios" a serem 
conservados e transmitidos, relacionados com universos absolutamente 
heterogêneos: a apreciação estética do cotidiano, mesmo que apenas 
de outrora; a indispensável manutenção do legado arquitetural; a pre-
servação de habilidades artesanais, até mesmo de personnes ressources 
[especialistas em determinada área], segundo a expressão quebequense; 
a proteção de costumes locais, no mesmo plano de certos gêneros 
de vida ameaçados de extinção... Fala-se de um patrimônio não só 
histórico, artístico ou arqueológico, mas ainda etnológico, biológico 
ou natural; não só material, mas imaterial; não só local, regional ou 
nacional, mas mundial. Às vezes, o ecletismo de tais considerações 
redunda em contradições ou leva à incoerência. 
Se o conceito de "patrimônio" conhece, atualmente, uma popula-
ridade espetacular, associada aos investimentos de toda a ordem (polí-
tica, financeira) suscitados por ele, a investigação a seu respeito oscila 
entre a evocação de algo inefável — os valores da civilização — e a aten-
ção exclusiva prestada às instituições e aos profissionais do setor. Uma 
dificuldade particular refere-se ao fato de que o próprio patrimônio 
determina as condições concretas de sua abordagem, comunicação e 
controle; de fato, por seu intermédio, o pesquisador é conduzido ao 
âmago de um quadro de valores que se afirma incontestável. No caso 
concreto, os pontos de vista reenviam aos sistemas de partilha obser-
vados em outros campos quando se trata de "discutir o indiscutível", 
segundo a fórmula do sociólogo Alain Desrosières.3A oposição verifica-
se, de um lado, entre a descrição e a prescrição, e, de outro, na própria 
ciência, entre "posição realista" que exprime "fiabilidade do cálculo" e 
sociologia construtivista do conhecimento. 
A história da proteção e da transmissão do patrimônio — atinente 
às leis, a suas modalidades de aplicação e aos critérios das interven-
ções — tem sido empreendida, frequentemente, no âmbito de tarefas 
profissionais e por ocasião de aniversários e de retrospectivas. Essa his-
tória-memória do patrimônio nacional, constituída progressivamente 
3. Alain Desrosières, La Politique des grands nombres: Histoire de la raison statistique, 
Paris: La Découverte, 1993, p. 395-413. 
10 
no decorrer dos últimos dois séculos, limita-se comumente ao elogio 
de seus arautos mais notáveis, bons servidores e grandes estadistas; 
servindo-se da pátria como ilustração, ela enaltece o labor da ciência 
e os avanços da instrução pública. O historiador torna-se, então, um 
expert em matéria de normas patrimoniais; neste caso, a tomada de 
consciência, de modo progressivo, em relação à herança passa por 
um imperativo moral universalmente compartilhado. Outra história 
do patrimônio, porém, pode acompanhar o combate militante travado 
por associações ou movimentos envolvidos com a conservação. Oriunda 
de um compromisso contra o vandalismo, ela é então, muitas vezes, 
prisioneira das polêmicas próprias ao gênero, denunciando, natural-
mente, as lacunas do patrimônio oficial e suas eventuais falências, bem 
longe de celebrar a memória das instituições. 
Essas duas historiografias, construídas simetricamente, elaboram 
a posteriori uma coerência ilusória — ao reunirem, sob o termo 
"patrimônio", elementos que outrora não lhe diziam respeito; por 
conseguinte, esboçam uma continuidade de doutrina e perdem-se, 
mais ou menos, na ilusão teleológica. A defesa, desenvolvida frequen-
temente nos dias de hoje, em favor de um patrimônio cada vez mais 
completo, contra o elitismo ou em nome da exaustividade científica, 
deixa escapar o fato de que o objetivo do patrimônio não consiste, 
de modo algum, em duplicar a realidade à maneira do "mapa dilatado" de 
Borges, coincidente• com o território que, supostamente, ele representa.4 
"Os colégios de cartógrafos", escreve o autor argentino, "lavraram um 
mapa do Império com seu formato e que coincidia com ele, ponto 
por ponto. Menos apaixonadas pelo estudo da cartografia, as gerações 
seguintes decidiram que este mapa dilatado era inútil e, de forma 
impiedosa, abandonaram-no à inclemência do sol e dos invernos. 
Nos desertos do Oeste, subsistem vestígios bastante estragados do 
mapa; eles são habitados por animais e mendigos." Esse mapa em pe-
daços é uma excelente imagem de uma crise radical da mimesis, que cul-
mina no desaparecimento das representações e no impasse da ciência. 
4. J. L. Borges, "De Ia Rigueur de Ia science", in Histoire universelle de l'infamie / Histoire 
de l'éternité, Paris: UGE, 1994, p. 107. 
11 
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
De fato, é evidente que fracassaria o patrimônio que fosse um controle 
utópico do tempo, tentando reproduzi-lo de uma forma idêntica. 
O patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em 
certificar a identidade e em afirmar valores, além da celebração de 
sentimentos, se necessário, contra a verdade histórica. Nesse aspecto 
é que a história parece, com tamanha frequência, "morta", no sentido 
corrente. Mas, ao contrário, o patrimônio é "vivo", graças às profissões 
de fé e aos usos comemorativos que o acompanham.' 
Nos últimos anos, as ciências humanas e sociais têm multiplicado 
os estudos sobre o patrimônio, desenvolvidos mais amplamente, sem 
dúvida, na área da história e da antropologia, a partir de um domínio 
que, na origem, é muito bem circunscrito, ou seja, o da história das 
artes — e do livro, se considerarmos o patrimônio escrito como par-
cela, bem cedo reconhecida, do conjunto patrimonial. No começo, 
tratava-se de abordar o corpus mais ou menos canônico, tal como havia 
sido concebido por diferentes épocas — assim, Bernard Teyssèdre e seu 
projeto de dispor as histórias dos patrimônios artísticos em diversos 
círculos e em diferentes momentos da história; ou Francis Haskell 
e seu desígnio de uma história das (re)descobertas do gosto.6 Nesse 
sentido, a história do patrimônio não designa verdadeiramente um 
conteúdo de pesquisas específicas, nem alega uma instância explicativa 
particular para pensar a articulação entre cultural, social e político. 
Logo em seguida, o campo da história do patrimônio se fragmentou 
em outros tantos objetos de diferentes investigações, desde os museus 
até os monumentos, passando pelo novo patrimônio imaterial. Esse 
rápido desenvolvimento foi acompanhado por uma profusão semân-
tica que, finalmente, tornou bastante incerta, ao longo do tempo, a 
unidade de semelhantes estudos. 
Tal como é praticada há uma geração, com êxito incontestável, 
a história do patrimônio é amplamente a história da maneira como 
uma sociedade constrói seu patrimônio. Em particular no caso francês, 
5. David Lowenthal, op. cit., p. 121-122; Hervé Glavarec e Guy Saez, Le Patrimoine 
saisi par les associations, Paris: La Documentation française, 2002. 
6. Bernard Teyssèdre, L'Histoire de l'art vue du Grand Siècle, Paris: Julliard, 1964; Francis 
Haskell, La Norme et le caprice, Paris: Flammarion, 1986. 
12 
ela confunde-se com uma história administrativa ou, melhor ainda, 
socioadministrativa. Uma definição "restrita" do patrimônio marca, 
muitas vezes, as perspectivas na matéria, orientadas pelos laudos de 
experts. Tal é o caso da teleologia, que é manifesta, por exemplo, nas 
compilações retrospectivas de episódios considerados como "patrimo-
niais", tendo, supostamente, inspirado a legislação contemporânea/ 
Em outras investigações, trata-se sobretudo de analisar o modo de vida 
no patrimônio e como são utilizados os monumentos ou os museus. 
Semelhante história está em condições de saber como os príncipes 
fizeram uso dos valores patrimoniais para desenvolver, ou não, es-
tratégias, ganhar prestígio e até mesmo consolidar alianças políticas. 
A história do colecionismo é, particularmente, tributária desse tipo de 
interesse. Para além dele, o desafio consiste em considerar a posição do 
patrimônio no desenvolvimento de uma coletividade: a aparição ou 
o fracasso de um patrimônio comum assinala, sem dúvida, seu êxito 
ou sua falência. 
O patrimônio define-se, ao mesmo tempo, pela realidade física de 
seus objetos, pelo valor estético — e, na maioria das vezes, documental, 
além de ilustrativo, inclusive de reconhecimento sentimental — que 
lhes atribui o saber comum, enfim, por um estatuto específico, legal 
ou administrativo. Ele depende da reflexão erudita e de uma vontade 
política, ambos os aspectos sancionados pela opinião pública; essa 
dupla relação é que lhe serve de suporte para uma representação da 
civilização, no cerne da interação complexa das sensibilidades relati-
vamente ao passado, de suas diversas apropriações e da construção das identidades.Para 
 se impor, de acordo com a espécie de evidência que 
é a sua atualmente, a noção teve de passar por um processo complexo, 
de longa duração e profundamente cultural; ela é o resultado de uma 
dialética da conservação e da destruição no âmago da sucessão das 
formas ou dos estilos de heranças históricas que haviam sido adotados 
7. Assim, Andrea Emiliani (org.), Leggi, bandi e provvedimenti per la tutela dei beni 
artistici e culturali negli antichi stati italiani, 1571-1860, Bolonha: Nuova Alfa, 
1996. Sobre os usos do anacronismo, cf. Nicole Loraux, "Éloge de l'anachronisme en 
histoire", in Le Genre humain, n. 27, 1993; e G. Didi-Huberman, Devant le Temps: 
Histoire de l'art et anachronismedes images, Paris: Minuit, 2000. 
13 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
pelas sociedades ocidentais. Ela estabeleceu-se a partir do modelo do 
"enquadramento" de algumas obras em determinado momento da res-
pectiva história — enquadramento utilizado, deformado, transmitido, 
esquecido, de geração em geração. Nesse caso, cada um abrangia mais ou 
menos o outro, absorvendo-o e modificando-o enquanto, paralelamente, 
alterava-se a definição e a significação do "vandalismo", suscitando, às 
vezes, acirrados conflitos a propósito dos respectivos contornos. Com 
efeito, a escolha de um patrimônio, como aponta Judith Schlanger no 
livro La Mémoire des wuvres, "além de um efeito e de um desafio de 
instituição, é uma instituição".8 
 A atitude patrimonial compreende dois aspectos essenciais: a assi-
milação do passado, que é sempre transformação, metamorfose dos 
vestígios e dos restos, recreação anacrônica; e a relação de fundamental 
estranheza estabelecida, simultaneamente, por qualquer presença de 
testemunhas do tempo remoto na atualidade. O primeiro aspecto sus-
tenta o esforço de pedagogia (de ordem cívica), enquanto o segundo 
leva a um reconhecimento do tesouro, "reconhecimento que constitui 
a própria virtude do tesouro" (Alphonse Dupront). A época clássica 
foi marcada pela busca da excelência da informação: nesse caso, a 
publicidade dos acervos é sempre cerimônia a serviço do fausto da 
pessoa do príncipe. Por sua vez, a época das revoluções liberais assiste 
ao triunfo do projeto de formar os cidadãos pela instrução e pelo 
culto do Estado-Nação: o senso do patrimônio é dominado, assim, 
pela pedagogia de sua divulgação. Por último, na virada do século XX 
para o XXI, o patrimônio deve contribuir para revelar a identidade de 
cada um, graças ao espelho que ele fornece de si mesmo e ao contato 
que ele permite com o outro: o outro de um passado perdido e como 
que tornado selvagem; o outro, se for o caso, do alhures etnográfico. 
Lugar da pessoa pública, em particular da figura do rei, lugar da 
história edificante, lugar da identidade cultural: assim poderiam ser 
enunciados, de maneira bastante sumária, os imaginários do patri-
mônio ocidental. 
8. Judith Schlanger, "Le Passé pertinent", in La Mémoire des oeuvres, Paris: Nathan, 
1992, p. 110 ss. 
14 
A "modelagem humana do histórico", segundo Alphonse Dupront, 
ocupa uma posição eminente na invenção patrimonial, "quanto às la-
tências laboriosas da memória coletiva, quanto à confissão de modelos 
ou à proclamação de 'fontes' e, sobretudo, quanto às necessidades pro-
fundas de viver a duração, contínua ou descontínua, e de acordo com 
a amplitude de sua influência".9 As diferenças no plano da recepção 
(de seleção) dependem amplamente dessas condicionantes, quando 
determinados tipos de objetos ou de edifícios se tornam patrimoniais, 
por oposição a um grande número de outros que são negligenciados ou 
destruídos. O detalhe das práticas eruditas — ou, em outras palavras, a 
maneira como foi concebido o "quadro" da coleta, classificação, 
exposição e interpretação — determina o processo de ocorrência do 
patrimonial.'° No entanto, a apropriação por um público — a maneira 
como o patrimônio é visitado, interpretado, e exerce influência — está 
associada também às formas de sua apresentação, ao olhar, bem acolhido 
ou importunado, aos catálogos ou aos itinerários. As diversas definições 
do patrimônio, através de testemunhos convergentes ou contraditórios, 
e os efeitos de expectativa ou de saber que ele pode provocar ou mobili-
zar nos espectadores alimentam identidades e entretecem sociabilidades 
em diferentes escalas — locais, nacionais, globalizadas —, ou, às vezes, 
sem qualquer atribuição territorial. O patrimônio elabora-se, em cada 
instante, com base na soma de seus objetos, na configuração de suas 
afinidades e na definição de seus horizontes. 
Uma expressão tradicional do encadeamento das gerações 
O patrimônio contribui, tradicionalmente, para a legitimidade do 
poder, que, muitas vezes, participa de uma mitologia das origens. Ele 
9. Alphonse Dupront, "L'Histoire après Freud", in Revue de l'Enseignement Supérieur, 
1968, p. 27-63 (aqui, p. 46). 
10. Para Jacques Derrida (Mal d'archive, Paris: Galilée, 1995), os arquivos implicam um 
lugar e uma técnica que determinam a estrutura do arquivável, em sua ocorrência e 
em sua relação com o futuro: "O arquivo foi sempre uma garantia e, como qualquer 
penhor, uma garantia de futuro" (p. 37). 
15 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
encarna o que, de acordo com Pierre Legendre, será designado por 
"genealogia", entendida como "ato de transmitir, ou seja, afinal de 
contas, as montagens de ficção que tornam possível que tal ato seja 
realizado e repetido através das gerações"." Para o direito romano, o 
patrimônio era o conjunto dos bens familiares, vislumbrados não se-
gundo seu valor pecuniário, mas em sua condição de bens-a-transmitir. 
Tal característica acabava por distingui-los absolutamente dos outros 
bens que "não estão inscritos em um estatuto [...], mas são conside-
rados separadamente em um mundo de objetos dotados de um valor 
próprio que lhes é atribuído, exclusivamente, pela troca e pela moeda". 
De fato, na cultura do patrimonium, "a norma social exigia que os 
bens de alguém fossem oriundos da herança paterna, que, por sua 
vez, deveria ser transmitida. [...] Era malvisto interromper a cadeia 
de transmissão, da qual a instituição familiar havia sido publicamente 
incumb ida". 
Desse modo, o termo "patrimônio" refere-se aos "bens de herança" 
que, de acordo com o dicionarista Littré, por exemplo, "passam, se-
gundo as leis, dos pais e das mães para sua filiação". Ele não evoca a 
priori o tesouro ou a obra-prima. — nem que ele tenha a ver stricto 
sensu com a categoria, reivindicada pelas ciências, do verdadeiro e do 
falso, mesmo que deva alegar a autenticidade. Assim, na retórica das 
lutas identitárias, as evocações do passado não coincidem, conforme 
tem sido observado frequentemente, com as análises do historiador, 
do etnólogo ou do arqueólogo. No entanto, apesar de desprovidas de 
realidade, até mesmo de verossimilhança, elas revelam-se regularmente 
eficazes: David Lowenthal conseguiu repertoriar inumeráveis avatares 
de algo verossímil que, nesse aspecto, se tornou realmente verdadeiro. 
11. Pierre Legendre, L'Inestimable objet de la transmission: Étude sur le principe généalogique 
en Occident, Paris: Fayard, 1985, p. 50. 
12. Yann Thomas, "Res, chose et patrimoine; note sur le rapport sujet-objet en droit 
romain", in Archives de la philosophie du droit, 1980, Sirey, p. 425; e "Pères, citoyens 
et cité des pères", in Histoire de la famille,I , Paris: Le Seuil, I986, p. 206. Cf. ainda, 
de outro ponto de vista, Claudia Moatti, "La Construction du patrimoine culturel à 
Rome au Ier siècle avant et au Ier siècle après J.-C.", in Mario Citroni (org.), Memoria 
e identità: La cultura romana costruisce la sua immagine, Florença: Giorgio Pasquali, 
2003, p. 81-98. 
16 
Assim, o patrimônio ilustra o quanto cultura e política, para citar 
Hannah Arendt, "imbricam-se mutuamente porque não é o saber ou 
a verdade que está em jogo, mas sobretudo o julgamento e a decisão, a 
troca criteriosa de opiniões incidindo sobre a esfera da vida pública 
e sobre o mundo comum 
A recusa de "origens" — relativamente ao aspecto religioso ou 
mítico, em benefício de "começos" seculares que evocam a atividade 
humana e não cessam de ser questionados — configura daqui em 
diante o compromisso contemporâneo, tanto crítico quanto político. 
A meditação de Edward Said14 sobre a ideia de começos prefere referir-se, 
assim, a Mallarmé, a propósito do "demônio da analogia", para en-
fatizar uma contemporaneidade marcada pelo impossível vínculo à 
origem e à inspiração, e para afirmar o peso da intencionalidade em 
um trabalho, daqui em diante, privadodas musas /No sentido banal, 
atualmente o patrimônio confunde-se com a herança, cuja presença 
pode ser verificada à nossa volta e que reivindicamos como nossa, 
tanto mais que estamos prontos a tomar providências para assegurar 
sua preservação e inteligibilidade. Esses bens recebem, portanto, uma 
afetação particular; e estão submetidos a um modo específico de ges-
tão. O respeito a tais condições é garantido por leis ou regulamentos, 
até mesmo por uma militância empenhada, em que, nos fatos, seja 
inscrito o princípio de transmissão ao futuro. De acordo com o re-
sumo proposto, de maneira bastante pragmática, por André Chastel, 
"O patrimônio reconhece-se pelo fato de que sua perda constitui um 
sacrifício e que sua conservação pressupõe sacrifícios". 
Na relação entre manifestação e princípio, superfície e funda-
mentos, o patrimônio participa de uma metáfora central de nossa 
modernidade, a dos modelos de "profundidade" — de acordo com 
a palavra forjada por Frederic Jameson — ou ainda a do paradigma 
indiciário, em conformidade com o qualificativo adotado por Carlo 
13. Hannah Arendt, La Crise de la culture, Paris: Gallimard, 1972. 
14. Edward W. Said, Beginnings: Intention and Method (I975), Londres: Granta, I995, 
novo prefácio, p. XIX, 67-68. 
17 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
Ginzburg.1
5 
 A amplitude do patrimônio é sua característica mais 
evidente. O essencial da literatura patrimonial, no sentido corrente, 
empenha-se em descrever sua geografia — para gerenciá-la em melhores 
condições. Esta se confunde com uma oferta de documentos ou com 
proposições turísticas, em poucas palavras, com um corpus, repertoriado 
segundo modalidades mais ou menos sofisticadas. Em compensação, a 
profundidade do patrimônio evoca o que, em primeira análise, poderia 
ser designado por memória da qual ele depende e é a manifestação. A lite-
ratura prescritiva ou documental não dá, de modo algum, testemunho 
dessa profundidade patrimonial, ao contrário de determinada meditação 
sobre a usura do tempo e sobre o lugar do passado no presente — nem 
que fosse para negá-lo ou esnobar a seu respeito — ou desses diversos 
paratextos, tais como prefácios, anotações, apologias e dedicatórias, que 
acompanham a literatura artística. 
A relação geral com essa profundidade parece, de qualquer modo, ter 
sofrido um deslocamento, do início da modernidade ao século XVIII, ao 
invocar a Posteridade em vez do Tempo. Mas, tal posteridade é cada vez 
menos garantida: assim, Swift chega a imaginar, na profusão de elementos 
que envolvem A Tale of a Tub, um jovem Príncipe Posteridade que carece 
de sabedoria e de discernimento; além disso, sua imaturidade ameaça 
a fé antiga na perpetuidade da transmissão.16 De maneira ainda mais 
explícita, alguns autores e artistas inscrevem-se no momento presente, 
sem se comprometerem seja na reivindicação de um passado, seja na 
expectativa de um futuro: esse pensamento do instante é, particular-
mente, representado nas Luzes, na França Mas, desde o início do 
século, Swift, para citá-lo de novo, observava que "é agradável observar 
a facilidade com que a época presente aventa hipóteses sobre aquela 
15. Frederic Jameson, Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism, Durham: 
Duke UP, 1991, p. I2; Carlo Ginzburg, "Traces: racines d'un paradigme indiciaire", 
in Mythes, emblèmes, traces: Morphologie et histoire, Paris: Flammarion, I989. 
16. Jonathan Swift, "The Epistle Dedicatory to his Royal Highness Prince Posterity", 
in A Tale of a Tub; Aleida Assmann, "Texts, Traces, Trash: The Changing Media of 
Cultural Memory", in Representations, vol. 56, 1996, p. 123-134. 
17. Thomas M. Kavanagh, Esthetics of the Moment: Literature and Art in the French 
Enlightenment, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, I996. 
18 
que há de suceder-lhe: as eras futuras hão de mencionar tal aspecto, 
evento que será célebre no mais longínquo futuro. Ao passo que o 
tempo e os pensamentos de nossos sucessores estarão voltados para os 
acontecimentos do momento, como ocorre agora com os nossos [...I.
"18 
Pelo contrário, o momento revolucionário abordará o tema da pos-
teridade com um voluntarismo assumido: longe das figuras de estilo 
da sobrevivência literária, a palavra define então um ato político, o de 
instaurar uma memória duradoura e eficaz a partir das lições extraídas 
de um passado infamante. Mais tarde, a relação do patrimônio com 
uma profundidade soterrada — a da autenticidade e até mesmo do 
inconsciente no século XX — passou por uma considerável mudança, 
sob a influência de um sentido inédito das rupturas e, talvez, do mo-
delo da arqueologia no âmago das "grandes narrativas" sucessivas.19 
Uma partilha das obras de cultura 
Para Jean-Claude Passeron, a definição antropológica da cultura, 
tal como ela foi apresentada por Tylor em Primitive Culture (1871) 
— ou seja, o conjunto da vida simbólica de um grupo ou de uma 
sociedade —, supõe "a existência de uma entidade homogênea capaz 
de operar homogeneamente em tudo o que ela manda fazer ou sentir 
a seus integrantes: ela equivale a confundir uma estrutura com um 
cafarnaum"." Pelo contrário, esse autor propõe identificar três sig-
nificações distintas da cultura: a cultura-estilo, a cultura declarativa 
e a cultura corpus. A primeira designa o conjunto dos modelos de 
representação e das práticas que orientam a organização das formas 
da vida social. A segunda, a de uma cultura como comportamento 
18. Jonathan Swift, Pensées sur divers sujets moraux et divertissants: (Euvres, Paris, Pléiade, 
1965, p. 572. "It is pleasant to observe how free the present age is in laying taxes on 
the next. FUTURE AGES SHALL TALK OF THIS; THIS SHALL BE FAMOUS TO ALL POSTERITY. 
Whereas their time and thoughts will be taken up about present things, as ours are now." 
19. Julian Thomas, Archaeology and Modernity, Londres: Routledge, 2004. 
20. J.-C. Passeron, Le Raisonnement sociologique (l'espace non poppérien du raisonnnement 
naturel), Paris: Nathan, 1991, p. 323. 
19 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
declarativo, corresponde à reivindicação de uma identidade de grupo: 
é a "formulação autocentrada da cultura que uma cultura mostra de si 
mesma em sua definição falada ou escrita das relações entre os valores, 
o homem e o mundo". Por último, a cultura como corpus de obras va-
lorizadas define o universo simbólico de um grupo social, ao privilegiar 
um reduzido número de objetos culturais como outros tantos de seus 
símbolos favoritos. É, evidentemente esta última configuração que 
tradicionalmente coincide com a definição canônica do patrimônio. 
O patrimônio institucionalizado não passa, em vários aspectos, 
de uma câmera de gravação dos movimentos aleatórios brownianos, 
cujo contorno é desenhado a partir de manifestações de admiração e 
reconhecimento, de compras e revendas, além de acúmulo de bens e de 
rejeições. Pintado por Modigliani como Novo pilota [Novo piloto], o 
grande retrato de Paul Guillaume — figura de marchand, colecionador 
e mecenas a quem se deve o essencial do museu parisiense de Orangerie 
— pode passar por emblemático dos atores contemporâneos da consti-
tuição de patrimônios reunidos em diferentes locais; aliás, às vezes, são 
apenas coleções de marchands. Os mecanismos de aquisição, conserva-
ção e transmissão das obras, tratando-se da formação e da evolução do 
corpus de monumentos protegidos ou das coleções de museus, envolvem 
um horizonte de expectativa associado àsrepresentações de um grupo 
social, à sua sensibilidade e a suas experiências, próximas ou longínquas. 
Para essa problemática, Hans Robert Jauss forneceu a definição clássica: 
"O sistema de referências objetivamente formulável, para cada obra, no 
momento da história em que ela aparece, resulta de três fatores princi-
pais: a experiência prévia do público relativamente ao gênero de que ela 
faz parte; a forma e a temática de obras anteriores cujo conhecimento se 
pressupõe; e a oposição entre mundo imaginário e realidade cotidiana."21 
De acordo com a socióloga norte-americana Wendy Griswold, 
é possível compilar no mínimo cinco configurações relativamente à 
recepção de objetos culturais. A primeira é a interpretação (conce-
bida como elaboração da significação). A segunda identifica-se com 
o sucesso (a popularidade, avaliada pelo número de adeptos ou 
21. Hans-Robert Jauss, Pour une Esthétique de la réception, Paris: Gallimard, 1978. 
20 
convertidos, ou por qualquer índice da estima manifestada). A terceira 
configuração entende-se em termos de impacto sobre o campo de 
referência cultural (a influência de um objeto cultural sobre a fisio-
nomia de objetos do mesmo gênero). A quarta equivale à canonização 
(a aceitação desse objeto pelo grupo de especialistas, capacitados para 
conferir-lhe legitimidade). Enfim, o último elemento de recepção tem 
a ver com a duração (a persistência de um objeto cultural no tempo, 
graças a um conhecimento ampliado ou não). Apesar de corresponder 
a algumas dessas configurações, a definição patrimonial não se coaduna 
forçosamente, de maneira positiva, com todos os critérios, pelo fato 
de depender de uma história da mediação considerada "sob a óptica 
dos conflitos de poderes e de personalidades".22 
Em particular, ela ilustra o que Ernest Gombrich designa por 
"clima social" de excelência e de admiração artísticas. "Seria possível 
estudá-lo", escreve ele, "ao esboçar um verdadeiro programa, com base 
nos arquivos dos preços alcançados nos leilões, na difusão das repro-
duções e na organização de peregrinações preparadas pelas agências 
de turismo [...], ao anotar o desenvolvimento de seitas exclusivas, até 
mesmo de heresias [...], ao identificar os heróis da cultura que con-
tinuam suscitando, como é costume dizer, o 'culto de uma minoria' 
e ao colocar a emergência e o desaparecimento de tais reputações em 
correlação com outros movimentos sociais. Seria possível, também, 
fazer um grande número de comentários interessantes a propósito das 
condições sociais que facilitam o respeito pelos velhos mestres e pelo 
clima que incentiva a considerar, com orgulho, as realizações da arte 
contemporânea."23 Essa configuração inscreve-se em uma longa tradi-
ção, a da literatura artística. Além disso, seu saber consiste sempre em 
conhecer os lugares, sobretudo "lugares de passagem" das obras, como 
lugares de propriedade e de transmissão. Com o desenvolvimento de 
uma circulação associada ao mercado, tem aumentado a importância 
do connoisseurship e do atribuicionismo: o crítico de arte e arqueólogo 
22. Wendy Griswold, Cultures and Societies in a Changing World, Thousand Oaks: Pine 
Forge, 1994. Cf. ainda Francis Haskell, op. cit., p. 33-34. 
23. Ernst Hans Gombrich, L'Écologie des images, Paris: Flammarion, 1982. 
2I 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
Quatremère de Quincy (1755-1849) já constatara o peso do que ele 
designava, com desdém, como uma "espécie de saber". 
Por conseguinte, a patrimonialização coincide amplamente com a 
tradição da cultura erudita. Como foi observado por Jacques Thuillier, 
em relação à finalidade da criação artística, "o texto escrito tem desem-
penhado, até aqui, um papel determinante, e pode-se dizer que, por 
seu intermédio, foi implantado o panorama [...] ao fixar as hierarquias: 
por consequência, ele estabelece, durante um prazo mais ou menos 
longo, a própria sobrevida da obra". Em poucas palavras, "considerando 
os períodos antigos, a distribuição das pinturas e das esculturas conserva-
das acabou por corresponder praticamente ao esquema dos artistas e das 
obras, constantes nas citações dos historiadores antigos — sem grande 
relação com a própria produção, tal como esta pode ser confirmada por 
documentos de arquivo. Salvo algumas exceções, a resistência das escolas 
e das obras dependeu da presença dos livros, assim como da data de 
sua publicação; a realidade acabou por acomodar-se ao texto escrito".24 
Os séculos XVIII e XIX constituem, nesse aspecto, momentos estratégi- 
cos que assistem à elaboração de cânones, repertórios e catálogos — seja 
do teatro à música, ou da pintura à literatura — e, especificamente, à 
instalação de museus, primeiros lugares da objetivação de "culturas". 
A gênese do patrimônio evoca, assim, as leituras eruditas em-
penhadas em interpretar as obras como outros tantos documentos 
sobre o passado, transformando, particularmente, a compreensão das 
antiguidades clássicas e, em seguida, nacionais em um desafio inte-
lectual e político.25 A era da erudição, no século XVII, apoiava-se na 
preocupação com as fontes: "O método moderno de pesquisa histórica 
está inteiramente baseado na distinção entre fontes originais e fontes 
de segunda mão."26 O desenvolvimento da reflexão, no século XVIII, 
24. J. Thuillier, Leçon inaugurale, Collège de France, Paris, I3 jan. 1978, p. 15. 
25. Francis Haskell, L'Historien et les images, Paris: Gallimard, I996. 
26. Arnaldo Momigliano, "Ancient History and the Antiquarian", in Journal of the 
Warburg and Courtauld Institutes, n. 13, 1950, p. 285-3I5; retomado em Problèmes 
d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Gallimard, 1983; e em Joseph M. Levine, 
"The Antiquarian Enterprise, I500-1800", Humanism and History: Origins ofModern 
English Historiography, Ithaca: Cornell University Press, I987, p. 73-106. 
22 
baseava-se na busca de um diálogo entre fontes literárias e fontes 
figuradas, assim como no surgimento de uma história cultural; para 
ser possível construir a definição do patrimônio, impunha-se esta-
belecer, previamente, a autenticidade e o valor dos monumentos de 
qualquer espécie. 
A disputa, nesse caso entre partidários e adversários da patrimo-
nialização, mobiliza incansavelmente discursos contraditórios sobre o 
destino a ser dado às obras, ou seja, sobre as relações que elas podem 
estabelecer no espaço público. Tal discussão é, em particular, acirrada 
no que diz respeito à originalidade — democrática e cultural — do 
museu relativamente à coleção tradicional. As relações com a publi-
cidade das coleções — enaltecida ou considerada como ilusória — e 
com a destinação da obra exposta — reconhecida como autêntica, 
desvalorizada ou negada — orientaram, assim, o essencial dos discursos 
ulteriores ao esboçarem quatro figuras principais. 
A ortodoxia museal descreve os efeitos positivos dos museus no espí-
rito das reivindicações de abertura da segunda metade do século XVIII. 
Esses estabelecimentos permitiram, ao que tudo indica, a iniciação 
dos visitantes à alta cultura, até então reservada ao privilégio ou à 
riqueza. Em poucas palavras, eles divulgavam a cultura em condições 
semelhantes às que usufruíam seus proprietários ou detentores, legi-
timados pela tradição. A crítica, de inspiração ou de herança contrar-
revolucionária — pelo menos no caso francês —, sustentava por seu 
turno a existência de uma desculturação: o museu alterava a cultura 
em nome da utilidade social e modificava as condutas legítimas sem 
deixar de permanecer estranho ao povo convidado a frequentá-lo. 
Seu encerramento, em última instância, a fim de restaurar o antigo 
vínculo ou, melhor ainda, sua reapropriação pelos usuários legítimos, 
colecionadores e amadores, seria o único meio de suprimiressa per-
versão ideológica, possibilitando um renascimento cultural. 
A escola progressista, ao contrário, denunciava a confiscação da 
cultura legítima operada pelo museu em benefício dos privilegiados 
da sociedade, aliás os únicos que tinham condições de tirar um real 
proveito da instituição: uma educação verdadeiramente democrática 
deveria estender uma relação com a cultura, que havia permanecido 
23 
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
como o apanágio de um número reduzido de pessoas. Por fim, uma 
crítica radical negava este último projeto e qualquer esperança de futuro 
radioso para o estabelecimento. O museu seria destinado ao uso de uma 
clientela de filisteus, no sentido de Hannah Arendt: por meio dessas 
obras-primas, eles procuram "engrandecer-se". Bem longe de autorizar 
uma apropriação qualquer, coletiva ou elitista, ele era, por excelência, 
o lugar de um desapossamento generalizado. 
Não causará espanto que os partidários de uma virtualidade de-
mocrática desse estabelecimento se tornem os defensores convencidos 
da autenticidade da cultura conservada e exposta; ora, essa postura é 
colocada em dúvida por seus adversários que privilegiam a hipótese de 
uma solução de continuidade, no caso concreto, uma perda do sentido. 
Contrariamente a uma legitimidade baseada na utilidade de um equipa-
mento coletivo, a crítica tradicional invocava uma gratuidade implícita da 
verdadeira cultura. Defender, por exemplo, que as condutas individuais 
dos colecionadores seriam as únicas capazes de manter o nível de civi-
lização descartava a questão do museu, que passava por um dispositivo 
marginal, para não dizer parasita. Na melhor das hipóteses, a relação sus-
citada por seu intermédio com o patrimônio limitava-se a uma utilidade 
secundária; e, na pior, dava testemunho do fracasso de uma transmissão 
legítima. De fato, a democratização da civilização só seria viável mediante 
sua alteração: essa é a dialética do pão e circo; as vicissitudes de sua longa 
evolução podem ser encontradas no discurso intelectual contemporâneo.27 
O espetáculo do museu alimentava então uma postura sobre a decadência 
ou o' exílio da cultura, além de nutrir a ampla literatura da melancolia pós-
-revolucionária, a propósito de um mundo fragmentado ou perdido. 
Uma encarnação da construção nacional 
O caso francês ilustra o que o sociólogo Luigi Bobbio designa por 
concepção nacional-patrimonial, baseada na metáfora da herança, no 
27. Patrick Brantlinger, Bread Circuses: Theories ofMass Culture as Social Decay, Ithaca: 
Cornell University Press, 1983. 
24 
atributo da soberania e na constituição de um Estado-Nação moderno." 
Essa concepção é hierárquica e baseia-se em uma administração com-
plexa. Nesta perspectiva, qualquer implementação de um patrimônio 
serve-se de saberes eruditos, especializados, suscetíveis de legitimar tal 
intervenção, tal restauração, tal inventário, ou de combatê-los — ca-
pazes também de acompanhar uma mobilização cívica ou ideológica. 
O patrimônio, em outros termos, é um trabalho (por exemplo, o de 
repertoriar e de fazer a revisão de corpus de monumentos); aliás, seu 
estatuto e sua ambição dependeram concretamente da posição ocu-
pada, em cada período, por antiquários, arqueólogos, historiadores da 
arte... no âmago da comunidade intelectual nacional — em particular 
diante de seus pares linguistas, folcloristas ou arquivistas. O mesmo é 
dizer quanto o patrimônio está ligado, mais amplamente, aos valores 
atribuídos a algumas atividades — da mão e da vista — na represen-
tação de si de uma sociedade. 
As primeiras medidas conservadoras, iniciadas pelo papado e por 
outros estados da Itália, culminaram no reconhecimento de um cânon 
dos mestres e no princípio de um corpus de objetos a definir e a pro-
teger. Uma das principais datas refere-se ao "decreto de 1601, pelo 
qual o grande duque Ferdinando de Médicis enumerava dezoito céle-
bres pintores do passado cujas obras não deviam ser vendidas para o 
exterior".29 Essa declaração solene visava afirmar e perpetuar a excelência 
do príncipe e do país. Tal é também um dos desígnios das coleções régias 
que deram origem, por intermédio da Europa, aos museus nacionais. 
No decorrer do século XVIII, prestava-se uma atenção inédita à eficá-
cia que orienta a ideia de herança: tal medida era considerada como o 
meio de dissipar a ignorância, aperfeiçoar as artes, além de despertar 
o espírito público e o amor pela pátria. A preocupação de utilidade rela-
cionava, daí em diante, a conservação de um patrimônio com os efeitos 
pretendidos tanto para a formação do público como para a prosperidade 
do país. O processo de legitimação patriótica — iniciado dessa forma — 
28. Luigi Bobbio, Le politiche dei beni culturali in Europa, Bolonha: Il Mulino, I992. 
29. Ernst Hans Gombrich, Réflexions sur l'histoire de l'art (1987), Nimes: Jacqueline 
Chambon, 1992, p. 296. 
25 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
assumiu aos poucos uma fisionomia contemporânea com as confiscações 
e as transferências sucessivas da Revolução Francesa. Nesse momento-
-limiar — para retomar a fórmula do antropólogo Victor Turner — em 
que ocorreu a desintegração da antiga comunidade e a emergência da 
nova é que se tornou mais evidente a reivindicação de um patrimônio 
ad hoc, baseado em novas justificativas, acompanhado eventualmente 
pela proscrição dos antigos signos.30 O patrimônio inscreveu-se desde 
então em uma vontade geral de criar conexões, vontade que marcou 
os séculos XIX e XX, em relação com as representações hierárquicas e 
regulamentares do período precedente. 
O patrimônio no sentido "legal" surgiu com as legislações nacionais 
do século XIX, legislações que lhe garantiram um destino específico no 
meio de todas as manifestações sociais dos objetos. Aliás, tal postura 
foi assumida em nome do povo, como destinatário eminente e, ao 
mesmo tempo, o derradeiro responsável por essa herança. A França da 
primeira metade do século XIX foi, por excelência, o lugar da elabo-
ração progressiva e muitas vezes conflitante dos valores patrimoniais 
— em oposição, especificamente, ao direito de propriedade?' Em toda 
parte da Europa, os liberais descobriram e, em seguida, celebraram 
a preservação das antiguidades nacionais como um dever patriótico 
— forma moderna de uma cultura declarativa, para falar como Jean-
Claude Passeron. As destruições de toda espécie foram paralelamente 
qualificadas, de maneira genérica, como vandalismo. Na França, o 
célebre colecionador de estampas Michel Hennin foi o primeiro a pro-
mover uma história ponderada das destruições e das conservações: ele 
demonstrou, por um lado, o recuo universal do vandalismo diante da 
tomada de consciência da herança (mesmo que os interesses pecuniários 
e determinados delírios ideológicos ou patrióticos tivessem alterado, 
regularmente, o curso de seu progresso); por outro, a democratização 
contínua das fruições A patrimonialização confundia-se, mais ou 
30. Victor Turner, Dramas, Fields, and Metaphors: Symbolic Action in Human Society, 
Ithaca: Cornell University Press, 1974. 
31. Cf. a apresentação clássica do tema, resumida por Joseph L. Sax, "Heritage Preserva-
tion as a Public Duty: The Abbé Grégoire and the Origins of an Idea", in Michigan 
Law Review, vol. 88, n. 5, I990, p. 1I42-1169. 
26 
menos, com a narrativa de uma socialização progressiva e generosa de 
coleções e de títulos de propriedade: ao servir-se da pátria como ilustra- 
ção, 
 
 ela enaltecia o labor da ciência e os avanços da instrução pública.32 
Esta construção efetuou-se, de acordo com cada país, em datas 
bastante diversas: mas, no final do século XIX, por toda a Europa a 
literatura do patrimônio confundia-se mais ou menos com a denúncia 
das perdas constatadas e com uma tipologia histórica das destruições, 
ou seja, pavor e denúncia. Essa mobilização forneceu-lhe seu princípio 
íntimo de engendramento, ao ritmo das perdas denunciadas na "caixa 
de poupança" do progressoda humanidade (a imagem encontra-se na 
obra de Charles Péguy).33 Convém, aliás, observar que essa literatura pa-
trimonial deu lugar, em breve, não tanto a uma história no sentido estrito 
do termo, mas à evocação de um movimento de criação e de acúmulo 
espontâneo, infelizmente interrompido em diferentes lugares. Ao presente 
"congelado", resultado de uma percepção intelectualizada, historicizada, 
Péguy opunha os valores da liberdade do verdadeiro presente. Com 
Bergson, a relação da vida com a história tornou-se uma genuína constru-
ção filosófica que enfatiza o fluxo e a emergência, contrariamente a tudo 
o que tende a fixar-se, oprimir e tiranizar. Desde então, o patrimônio 
podia inscrever-se em uma relação com o tempo que não era o da história 
e que, às vezes, o rejeitava"; não se pode desenvolver aqui este aspecto, 
mas é quase certo que determinado anti-intelectualismo da defesa e da 
ilustração do patrimônio alimentou-se com essa tradição da relação com 
o tempo e com esse pensamento da atualidade "viva". 
Neste ponto, pode esclarecer-nos o que Roland Barthes havia vislum-
brado sob a denominação de "teatralidade"35; assim, sugere-se o termo 
32. Michel Hennin, Les Monuments de l'histoire de France: Catalogue des production de la 
sculpture, de la peinture et de la gravure relatives à l'histoire de France et eles Français, 
10 vols., Paris: J.-F. Delion, 1856-1863. 
33. Charles Péguy, "Clio: Dialogue de l'histoire et de l'âme païenne", in Robert Burac 
(org.), Oeuvres en prose complètes, Paris: Gallimard, III, 1992, p. 1028 ss. 
34. Cf., a este propósito, os comentários de Georges Poulet, Études sur le temps humain, 
Paris: Plon, 1950. 
35. "O que é a teatralidade? É o teatro sem o texto, é uma espessura de signos e sensações 
que se edifica no palco a partir do argumento escrito; é essa espécie de percepção 
ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que 
27 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
"patrimonialidade" para designar a modalidade sensível de uma 
experiência do passado, articulada com uma organização do saber - 
identificação, atribuição — capaz de autentificá-lo. Uma primeira 
patrimonialidade encontra-se na relação íntima ou secreta de um 
proprietário ou de usufrutuários em diferentes níveis, de especialistas 
ou de iniciados, em nome de afinidades e convicções, assim como de 
racionalizações eruditas e de condutas políticas, com determinados 
objetos, lugares ou monumentos. Mais tarde, na sequência de um longo 
processo de patrimonialização, a nação é que se tornou o objeto por 
excelência da patrimonialidade, fornecendo, por assim dizer, o quadro 
de interpretação de qualquer objeto do passado. No caso francês, a 
patrimonialização oficial elaborou-se a partir da Revolução, segundo 
o modelo de uma negociação entre os valores da nação definida em 
novos termos pela forma contratual e os valores, desta vez, "culturais", 
que vão aparecendo aos poucos, além de estabilizarem no espaço e 
no tempo essa construção abstrata — de fato, com o desaparecimento 
da Igreja e das corporações, a patrimonialidade tradicional tinha ficado 
fora de circuito. Esse compromisso laborioso entre nacionalidade do 
contrato e nacionalidade de cultura é que permitiu o triunfo de uma 
nação-patrimônio a que Camille Jullian, por exemplo, se referia em 
sua lição inaugural do Cours d'Histoire et d'Antiquités Nationales, 
no Collège de France, em 7 de dezembro de 1906: "As ruínas dos 
monumentos dão testemunho não apenas da mão de um operário ou 
da planta de um arquiteto, mas também dos sentimentos de um povo; 
elas refletem, para uma pátria, o espírito de uma geração de homens."36 
Daí um historicismo mais ou menos explícito, até mesmo uma ver-
dadeira teleologia das heranças sucessivas, assim como a convicção de 
que o patrimônio, pela necessidade de sua preservação, deve receber 
o apoio do Estado. 
submergem o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior." (Roland Barthes, 
"Le Théâtre de Baudelaire", in Essais critiques, 1954, p. 41.) 
36. Primeira lição proferida no Collège de France, em forma de exposição de método, 
"La vie et l'étude des monuments (rançais" foi publicada em Revue Bleue, Paris, vol. 
1, p. 3-4. Na sequência, os nove cursos de 1905 a 19I3 foram editados em Camille 
Jullian, Au Seuil de notre histoire, Paris: Boivin, 1930. 
28 
A este modelo opõem-se outras construções que implicam mais 
precisamente a sociedade civil pelo viés de intelectuais e de associações. 
Miroslav Hroch, através de uma comparação dos grupos patrióticos em 
diferentes nações, na Europa Central, identificou três fases: .à primeira 
situa-se entre 1789 e 1815, quando uma intelligentsia restrita, a única 
envolvida pela emergência das ideias nacionais associadas à Revolução 
Francesa, foi bem-sucedida na tentativa de conservar o patrimônio 
cultural (coletânea de canções e contos populares, codificação e divul-
gação da língua). Durante uma segunda época (1815-1848), essa ideia 
difundiu-se entre a burguesia, levando a uma transcrição política desse 
empreendimento cultural. Enfim, o ano de 1848 inaugurava o último 
período, quando o nacionalismo recebeu um amplo apoio popular, 
ilustrado pela Primeira Guerra Mundial e pela queda do Império dos 
Habsburgos.37 No caso concreto, é no mínimo delicado separar, no 
decorrer do processo, cultura e nacionalismo." 
Um recurso comum 
Por ocasião da Primeira Guerra Mundial, os beligerantes mobi-
lizaram amplamente a cultura no esforço de guerra, exacerbando os 
julgamentos mais xenófobos em relação aos patrimônios estrangeiros.
39 
No período entre as duas guerras, o surgimento de ideologias totalitárias, 
decididas a transformar a exaltação da herança em um instrumento de 
propaganda, teve consideráveis consequências sobre a própria imagem 
da cultura, que se tornou objeto de críticas radicais ou de diagnósticos 
37. Miroslav Hroch, "De l'Ethnicité à la nation: Un Chemin oublié vers la modernité", in 
Anthropologie et Sociétés, vol. 19-3, I995, p. 71-86; e Social Preconditions ofNational 
Revival in Europe: A Comparative Analysis ofthe Social Composition ofPatriotic Groups 
Among the Smaller European Nations, Nova York: Columbia University Press, 2000. 
38. Alain Dieckoff, "La Déconstruction d'une illusion: L'Introuvable opposition entre nationa-
lisme politique et nationalisme culturel", in L'Année Sociologique, vol. 46, n. 1, 1996. 
39. Christina Kott, Protéger, confisquer, de'placer: Le Service de préservation des oeuvres d'art 
en Belgique et en France occupées pendant la Première Guerre mondiale, 1914-1924, tese, 
EHESS, 2002; Yann Harlaut, La Cathédrale de Reims du 4 septembre Ie914 au 10 juillet 
Ie938: Idéologies, controverses et pragmatisme, tese, Universidade de Reims, 2006. 
29 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
catastróficos. Em 1936, Élie Halévy escrevia que essa época das ti-
ranias caracteriza-se "do ponto de vista intelectual (pela) estatização 
do pensamento, que por sua vez assume duas formas: uma negativa, 
pela supressão de qualquer opinião julgada desfavorável ao interesse 
nacional; e a outra positiva, por aquilo que designamos como a orga-
nização d.o entusiasmo"40. 
Entretanto, as destruições da Segunda Guerra Mundial (bairros e 
cidades inteiras) é que, sem dúvida, tiveram as mais relevantes consequên-
cias sobre a consciência patrimonial europeia, assim como sobre suas 
modalidades de restauração e de uso. A conservação dos monumentos 
visava, daí em diante, algo que superava o horizonte do antiquário 
ou histórico: o que Louis Grodecki designava por busca do "valor do 
efeito produzido"; a reforma do centro antigo de Varsóvia é um notável 
exemplo dessas novas representações. Para o professor Zachwatowicz, 
artesão da reconstrução fidedigna do século XVIII e, às vezes, do século 
XVI, a justificativa do empreendimento tem a ver com "a vontadede 
fornecer ao país a consciência de um passado cultural que havia sido 
ameaçado de negação e de aniquilamento".41 Nem o valor de monu-
mentalidade intencional, nem o de monumento histórico, nem o do 
monumento antigo — para retomar a tipologia do historiador da arte 
Alois Riegl —, constituem aqui a referência obrigatória. O mesmo se 
passa com as discussões a propósito da reconstrução do castelo na área 
central de Berlim, desencadeadas em meados da década de 1990, em nome 
da reconquista da cidade perdida. Pode-se reconhecer aí uma das figuras 
características do patrimônio contemporâneo, tornado lugar-comum dos 
discursos sobre a identidade. 
O termo "patrimônio" conheceu desse modo um notável sucesso 
no mundo inteiro: o caso da França, país em que o rápido desenvol-
vimento da fórmula apoiou-se na comemoração do Ano do Patrimônio, 
no limiar da década de 1980, é uma de suas mais notáveis ilustra-
ções. A representação de uma herança a ser conservada, tomando as 
40. Élie Halévy, L'Ère des tyrannies, Paris: Gallimard, 1938 [2. ed., 1990]. 
41. Apud Louis Grodecki, "Tendances actuelles dans la restauration des monuments 
historiques", in Les Monuments historiques de la France, 1965, retomado in Le Moyen 
Age retrouvé, II, Paris: Flammarion, 1991, p. 398. 
30 
providências para sua manutenção e transmissão, parece satisfazer uma 
das aspirações profundas das sociedades contemporâneas. Encarnação 
consensual dos valores cívicos, além de pretexto para articular atitudes 
culturais e práticas de consumo, essa verdadeira explosão de iniciativas 
patrimoniais corresponde certamente à nova condição — pelo menos 
nesse plano — de obras ou de lugares que se encontravam sem uso no 
espaço público. Mas, sobretudo, ela fornece recursos apropriados para 
alimentar um ideal de participação ativa no âmago de coletividades 
inéditas (no museu ou in situ, .diante do monumento ou sobre um 
território). Sob o signo de uma "provocação da memória", o patrimônio 
instala-se assim no centro da instituição da cultura e é acompanhado 
por uma ética, ao mesmo tempo, da precaução e da fruição. Desse 
modo, esboça-se, em arqueologia ou em arquivística, uma exigência de 
respeito pelo objeto, ao definir regras de tratamento de sua diferença» 
O conjunto dessas iniciativas revela a generalização de uma sen-
sibilidade em relação a uma herança "cultural" cujo interesse parece, 
com ou sem razão, ter sido negado ou ignorado durante um período 
demasiado longo. Esse postulado alimenta, hoje em dia, uma consciência 
aguda de que a definição e os contornos dos patrimônios estão profun-
damente associados à atualidade de uma sociedade, a seus interesses 
do momento e até mesmo a suas modas. De fato, tal restauração de 
monumentos históricos, tal museografia, tais conclusões dos folcloristas 
do século passado são tão reveladoras de um momento da metamorfose 
patrimonial quanto da autenticidade dos objetos ou das práticas que, 
supostamente, elas deveriam conservar e valorizar; assim, sob a óptica 
moderna, o patrimônio revelaria leituras em vários planos. 
Essa nova consciência da patrimonialização acompanha a promoção 
de novas relíquias, em uma perspectiva relativamente restritiva. Com 
efeito, em numerosos países, o patrimônio tornou-se um dos desafios 
do desenvolvimento cultural. Na França, segundo parece, tal ambição 
data do decreto de nomeação de André Malraux como ministro de 
42. Cf., entre as numerosas referências, Michael Shanks e Christopher Tilley, Re-cons-
tructing Archaeology — Theory and Practice, Londres: Routledge, 1922, p. 138. Nesse 
aspecto, a literatura sobre o arquivo é considerável: cf. Helen Freshwater, "The allure 
of the archive", in Poetics Today, vol. 24, n. 4, 2003, p. 729-758. 
31 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
Estado dos Assuntos Culturais (3 de fevereiro de 1959), que o incum-
bia "de garantir a mais ampla audiência a nosso patrimônio cultural". 
Mais tarde, em 1975, o termo foi estendido à Comunidade Europeia, 
enquanto os discursos oficiais davam testemunho, progressivamente, 
de um desígnio militante. O vocabulário administrativo carregou sua 
marca, desde a promoção dos "novos patrimônios", em 1981, até o 
colóquio Les Monuments Historiques Demain (1984), os Encontros 
Nacionais dos Ecomuseus (En Avant la Mémoire!, 1986) ou o Fórum 
do Patrimônio, realizado, de maneira aparentemente paradoxal, na Cité 
des Sciences et de l'Industrie de la Villette (Paris, 1987). Na esteira de 
todos esses eventos, uma abundante literatura profissional tem mos-
trado empenho em inventariar os patrimônios inéditos ou em adaptar 
os patrimônios já identificados que exigem ser renovados e atualizados. 
Tais mutações passaram por ritmos diversificados, segundo as 
tradições culturais dos diferentes países; no entanto, o movimento de 
conjunto não deixa de ser impressionante. A partir do decênio 1980-
1990, políticos e cidadãos compartilharam a "evidência" segundo a qual 
tudo deveria ser considerado a priori como elemento do patrimônio 
(a fórmula é utilizada, nos últimos quinze anos, por diferentes minis-
tros ou responsáveis europeus). Trata-se de encontrar, de novo, a figura 
já evocada da cultura-estilo: com a atribuição de estatuto de museu para 
o jardin ouvrier43, assim como para o galpão de ensaios de um grupo 
de rock pesado, as culturas de todos os grupos sociais são suscetíveis de 
passar por patrimônios, em um caleidoscópio de identidades. Enfim, 
a antecipação dos riscos de desaparecimento contribui para que o de-
safio econômico se torne patente. Ao exigir uma redefinição científica 
e, ao mesmo tempo, um novo estatuto para os objetos visados, cada 
reivindicação de um novo registro no patrimônio suscita também mer-
cados especializados — o da restauração e o do tratamento. A ideia de 
um reservatório de empregos e de habilidades amplamente disponíveis 
43. Criados no final do século XIX, os jardins ouvriers — e, após a Segunda Guerra 
Mundial, designados por jardins familiaux ou hortas comunitárias — são parcelas 
de terreno disponibilizadas pelas municipalidades, visando melhorar as condições de 
vida dos operários ao proporcionar-lhes, além de uma autossubsistência alimentar, 
o contato com a natureza, afastando-os dos botequins. [N.T.] 
32 
em torno da temática do patrimônio, e, se for o caso, exportáveis na 
área de influência de cada nação, esteve assim particularmente presente 
na Europa nos últimos anos. 
Hoje em dia, a patrimonialização parece confundir-se com a patri-
monialidade — no sentido em que a atribuição do qualificativo "pa-
trimônio" a objetos no seio de determinada sociedade e sua preservação 
legal identifica-se, aparentemente, com o lugar sensível e íntimo que 
eles ocupam no âmago das consciências individuais ou dos grupos 
sociais, em decorrência do esforço despendido para viver em harmonia 
com a cultura material do passado. Entretanto, o patrimônio não está 
indene, muito pelo contrário, de vontades predadoras: tanto os monu-
mentos celebrados pela "tradição do novo" quanto os objetos da família 
que, cotidianamente, entram no museu têm a ver com modalidades de 
apropriação que, sem qualquer embasamento, são consideradas óbvias, 
para não dizer "naturais". Esperamos que o retorno aos alicerces do 
patrimônio nacional — de acordo com nossa proposta neste livro -
permita uma abordagem renovada do fenômeno. 
A caminho de uma antropologia histórica da 
patrimonialização francesa 
As inscrições da patrimonialidade e as formas de patrimonialização 
passam, entre o final do século XVIII e a década de 1830, de uma repre-
sentação "monumental" do saber e da memória para uma configuração 
que compreende todos os elementos da cultura material do passado, tal 
como ela era compreendida,na época, pela nova história." A partir da 
Revolução, diferentes processos — da invenção do museu à invenção 
do monumento histórico, desde a reconfiguração da arqueologia aos 
sucessos do romance histórico — inventaram uma tradição patrimo-
nial que remete à nova coletividade nacional e, durante muito tempo, 
irá permanecer como a base das atitudes francesas diante da herança. 
44. Cf. Patrick H. Hutton, "The Role of Memory in the Historiography of the French 
Revolution", in History and Theory, vol. 30, n. 1, 199I, p. 56-69. 
33 
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
A Revolução não é somente uma vontade de desligar-se do Antigo 
Regime que serve de suporte ao que François Furet designava por "uma 
espécie de hipertrofia da consciência histórica" — entenda-se, a cons-
ciência exacerbada da ruptura, conjugada a uma atrofia do sentido da 
profundidade da história" —, mas constitui também uma inflexão im-
portante da inscrição memorial. Na sequência desses decênios, a memória 
cultural convoca de maneira privilegiada os vestígios materiais do passado, 
por intermédio dos textos." O presente estudo gostaria de delinear, em 
primeiro lugar, a reviravolta desse modo de inscrição da memória cultural 
que tem a ver, amplamente, com a emergência de uma representação da 
história, cuja função, de acordo com a afirmação de Alphonse Dupront, 
consiste em "desdobrar o que foi endurecido elo tempo" em uma varie-
dade cada vez mais considerável de objetos. 
A consciência de viver em uma temporalidade comum, de perten-
cer a uma contemporaneidade afastada do passado e distinta de um 
futuro ilimitado e incerto, é provavelmente um dos resultados mais 
evidentes dos decênios revolucionário e imperial, transformando-os 
em uma experiência amplamente compartilhada.47 O Antigo Regime 
havia desaparecido mediante a destruição de seus signos, vestígios e 
símbolos; mais tarde, porém, sua nostalgia mobilizou suas relíquias 
— assim como as lembranças orais consignadas com um maior ou 
menor grau de devoção. Mas esse conjunto de ruínas já não oferece 
perspectiva contínua, nem permite uma leitura convincente: sua frag-
mentação sugere um trabalho de esquecimento e supressão que deverá 
ser integrado, daí em diante, às representações do passado. Nesse 
domínio, os textos limitaram-se a desempenhar um papel bastante 
precário, diferentemente dos períodos precedentes, em que a transmis-
são à posteridade reivindicava, acima de tudo, o documento escrito. 
Os múltiplos episódios de descobertas, no decorrer do século XIX, 
45. François Furet, Penser Ia Révolution Française, Paris: Gallimard, 1978, p. 15, 31-32, 
46-49. 
46. Jan Assmann, "Collective Memory and Cultural Identity", in New German Critique, 
vol. 65, 1995, p. 125-133. 
47. Nesse aspecto, concordo com Peter Fritzsche, "Specters of History: On Nostalgia, 
Exile and Modernity", in American Historical Review, vol. 106, n. 5, 2005. 
34 
de arquivos e de monumentos entre imundícies ou depósitos negligen-
ciados indicam o advento da modernidade. Ao longo do século XIX, 
uma infinidade de diversos monumentos, de tapeçarias a túmulos, 
são "inventados" por diferentes patrimonializadores, de acordo com 
o espírito de um salvamento: eles passam por elementos privilegia-
dos da memória cultural — ao lado das práticas costumeiras e das 
tradições orais, ou seja, as "vozes que vêm do passado", coletadas 
e estudadas simultaneamente, assim como à procura das últimas 
testemunhas de um passado desaparecido." Na sequência, a manu-
tenção de antiguidades no seio dos lares burgueses e a proliferação 
dos arquivos familiares participaram do mesmo movimento pelo qual 
a transmissão à posteridade, muito apreciada pelas Luzes e pela Revo-
lução, reconfigurou-se em um tratamento de objetos materiais, sempre 
incompletos e ameaçados." 
O primeiro capítulo deste livro é dedicado ao regime da curiosidade 
histórica, tal como é concebido pelas Luzes. Ele havia estabelecido 
com os monumentos, as coleções históricas e as antiguidades uma 
relação ambígua; de fato, aos testemunhos materiais autênticos são 
acrescentados monumentos imaginários, organizados e apresentados 
ao público em espaços abertos, de diferentes status, desde os "países das 
ilusões" até os jardins públicos. Semelhantes dispositivos forneceram 
aos espectadores não só elementos de conhecimento, mas também de 
fruição e de emoção; os supostos benefícios da paisagem constituída por 
monumentos antigos alimentaram, paralelamente, utopias arquiteturais 
e políticas. Aos poucos, a comparação entre objetos dos antiquários e 
textos dos historiadores esboçava a fisionomia inédita de uma auten-
ticidade passada — figura de ruptura com o presente, o familiar e o 
convencional. 
Dois episódios particularmente cruciais forneceram, em seguida, 
matéria para os três capítulos centrais deste livro. O primeiro é o do 
"vandalismo" revolucionário. A nacionalização de bens patrimoniais, o 
48. Philippe Joutard, Ces Voix qui nous viennent du passé, Paris: Hachette, 1983. 
49. Para sua versão contemporânea, cf. Janet Hoskins, Biographical Objects, How Things 
Tell the Stones of People's Live:, Londres: Routledge, 1998. 
35 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 
inventário das riquezas da França, as medidas iconoclastas acabaram por 
suscitar uma consciência inédita dos vestígios do passado na paisagem 
presente, sem deixar de enfatizar uma opacidade sem precedentes, 
ao mesmo tempo ameaçadora e crepuscular. Uma busca histérica 
de utilidade marcou, em seguida, sua recensão e conservação. Entre 
os vencidos da história, a preocupação em proteger determinado 
monumento do passado, sinal de uma diferença quase ontológica, 
incrementou um sentido do passado que, pelo contrário, se tornou 
valor de resistência. 
Nesse aspecto, a questão dos mortos é fundamental, já que remete 
à partilha entre comunidade e coletividade: a funcionalização dos mor- 
tos, reconhecida por Reinhart Koselleck como origem do novo regime, 
traduz-se por uma nova economia relativa aos monumentos. Outrora, 
os defuntos pertenciam à comunidade cristã ou a uma comunidade 
da lembrança. Daí em diante, o processo de patrimonialização das 
personalidades importantes exige uma utilidade material e documen-
tal para a coletividade. Trata-se, nesse caso, de uma dessacralização 
dos monumentos, acompanhada por processos de desencarnação do 
Estado, pela obsessão da idolatria e, de maneira geral, pelo temor 
do sensualismo em relação às imagens. Até hoje, tal clivagem per- 
corre a literatura patrimonial, produzida na França, entre a nostalgia 
de uma herança comunitária (e religiosa) e o funcionalismo de um 
patrimônio que ilustra o universal (laico). Por um lado, a patrimo- 
nialização justifica-se por preocupações práticas e pela eficácia dos 
valores modernos; por outro, a exigência de vínculos e o protesto em 
prol de uma identidade em partilha têm valor de reivindicação de uma 
patrimonialidade ameaçada. 
A geração de 1830 realizou um trabalho de luto, em relação tanto ao 
Antigo Regime, ao qual já não pode retornar, quanto à ilusão do futuro 
proposto em 1789. Diante do que parece ser uma insegurança moral 
inédita — a responsabilidade de destruir ou perpetuar determinados 
edifícios, símbolos da beleza universal, é deixada a seus proprietários oca-
sionais —, Victor Hugo (1802-1885) defende uma garantia irrevogável 
da transmissão, delineando um horizonte de expectativa desligado, daí 
em diante, do apelo às lembranças, integrado a uma reflexão sobre a 
36 
instituição da educação." O esforço ulterior do político e historiador 
François Guizot (1787-1874) é exemplar de uma vontade de superar, 
por uma colocação em perspectiva histórica, visões partidárias con-
denadas à falência, além de ter fundado, em uma imparcialidade sem 
precedentes, a conservação da civilização e de sua herança. 
Finalmente, o primado dos vestígios materiais sobre as outras fon-
tes torna-se banal nos escritosdos arqueólogos: "O menor vestígio que 
tenha escapado das ruínas da Antiguidade fornece-nos a seu respeito 
mais ensinamentos", afirma Raoul-Rochette, "que todos os livros." Daí 
resulta uma nova poética do saber histórico, da qual Napoleão Bonaparte 
é testemunha ao garantir que foi "levado à Síria", segundo a afirmação 
de Alexandre Lenoir51, depois de ter visitado o Museu dos Monumentos 
Franceses. Contrariamente ao modelo clássico da coleta de monumentos 
ou da compilação dos antiquários, o romance histórico, assim como a 
viagem pitoresca, serve-se de monumentos e de lugares como se tratasse 
de outros tantos cronotopos (M. Bakhtin, cf. cap. 4) propícios a instigar o 
leitor. Na sequência, a prosa de Walter Scott, assim como o colecionismo 
de Alexandre du Sommerard no Hôtel de Cluny52, circunscrevem o es-
paço da vida privada como o verdadeiro lugar de inscrição da diferença 
histórica." Daí em diante, o passado torna-se o pretexto para investi-
mentos subjetivos e, ao mesmo tempo, para um uso crítico, capazes de 
constituir um acervo a partir de uma diversidade inédita das referências 
— em vez dos estereótipos precedentes, o Antiquado ou Antigo Regime. 
50. Cf. Frédérique Diodati-Remandet, "La Réflexion éducative de Hugo sous la monar-
chie de Juillet", relatório da comunicação ao Groupe Hugo (Universidade de Paris 
VII), em 20 de maio de 1995. 
51. Arqueólogo francês (1761-1839) que, durante a Revolução Francesa, coletou e pre-
servou um grande número de esculturas e monumentos funerários, tendo criado o 
Musée des Monuments Français no antigo convento dos Petits-Augustins, em Paris; 
atualmente, École Nationale Supérieure des Beaux-Arts (ENSBA). [N.T.] 
52. Edifício do século XV, localizado perto da Sorbonne, que serviu de residência ao 
arqueólogo Alexandre Du Sommerard (1779-1842), colecionador de objetos de 
arte da Idade Média e do Renascimento. Atualmente, museu que abriga a "Seção 
Medieval" do Departamento dos Objetos de Arte do Louvre. [N.T.] 
53. Stephen Bann, The Clothing of Clio, Cambridge: Cambridge University Press, 1984. 
37 
1 
UMA REPRESENTAÇÃO DO 
SABER E DA MEMÓRIA 
Um idioma comum seria o único recurso para estabelecer 
uma correspondência que se estendesse a todas as partes 
do gênero humano e as ligasse contra a Natureza que tem 
sido maltratada incessantemente por nós, do ponto de vis-
ta físico e moral. No pressuposto da aceitação e regulamen-
tação deste idioma, as noções tornam-se, imediatamente, 
permanentes; desaparece a distância entre os tempos; os 
lugares tocam-se; formam-se vínculos entre todos os pontos 
habitados do espaço e da duração; além disso, todos os 
seres vivos & pensantes estabelecem intercâmbio entre si. 
Diderot e D'Alembert, "Encyclopédie", in Ency-
clopédie, Paris, 1751-1772, vol. 5. 
A famosa Voyage en Italie de Goethe ilustra, de maneira clássica, o 
percurso de um viajante que conhece, como é designado pelo autor, 
um segundo nascimento"'; trata-se, também, por excelência, de uma 
viagem patrimonializadora, oportunidade para uma série de aquisições, 
que redundou na criação de uma casa-museu em Weimar, na qual os 
viajantes do século XIX puderam, por sua vez, usufruir dos múltiplos 
tesouros e lembranças do mundo antigo, coletados no decorrer dos pé-
riplos goethianos de 1786-1788. De resto, as notas de Goethe contêm 
numerosos resumos para o historiador do patrimônio e dos museus -
desde as observações sobre a iluminação noturna das estátuas nos museus 
romanos, a partir da década de 1780, até a intuição de um vínculo entre o 
progresso dos recursos de reprodução, a comercialização de novos produ-
tos de "populuxo"2 e a multiplicação dos elementos de um patrimônio. 
Como prova, ele apresenta "o arriscado empreendimento que consistiu 
1. Cf. Goethe, Voyage en Italie, edição estabelecida por Jean Lacoste, Paris: Bartillat, 
2003. 
2. Cf., por exemplo, Maxine Berg, "From Imitation to Invention: Creating Commo-
dities in Eighteenth-Century Britain", in The Economic History Review, vol. 55, n. 
1, 2002. ["Populuxo": consumismo acelerado pelo desejo de modernidade. (N.T.)] 
39 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
em realizar uma cópia das Logge [no Vaticano] de Rafael para a impe-
ratriz Catarina", de que nosso viajante tem um conhecimento parcial 
em setembro de 1787, equiparando-o às diversões para turistas, como 
são, na época, a encáustica e a fabricação de pedras artificiais.3 Mas, 
no livro citado, vamos chamar a atenção sobretudo para três episódios, 
cuja natureza é bastante diferente — duas gargalhadas e um início de 
motim —, que dão testemunho do que poderia ser designado como 
uma antropologia histórica do patrimônio. 
A invenção identitária 
Qualquer tipo de patrimônio, tal como o entendemos atualmente, 
tem a vocação de encarnar uma identidade em certo número de obras ou 
de lugares. Neste aspecto, conhece-se o sucesso obtido pelas páginas de 
Goethe dedicadas à catedral de Estrasburgo.4 Em Malcesine, perto 
de Verona, ele enfrentou o que, de acordo com suas palavras, é "uma 
perigosa aventura", mas "cuja lembrança (lhe) parece divertida", sem 
deixar de ser significativa. O viajante estava desenhando, no próprio 
local, um velho castelo quando, aos poucos, juntou-se uma multidão 
à sua volta, perguntando-lhe o motivo de seu trabalho; os espectadores 
acabaram por rasgar seu desenho e mandaram chamar o podestade. 
Diante dessa autoridade, Goethe afirmou que se limitava a reproduzir 
restos e não propriamente uma fortaleza, enquanto seus adversários 
opinaram que ele estava fazendo espionagem por conta do território vi-
zinho. O debate acabou por fazer referência à definição do que é digno 
de ser relevado: a evocação das ruínas de Roma, ou do anfiteatro de 
Verona, para defender a causa das "belezas pitorescas" da Idade Média 
foi contestada pelos habitantes. Com efeito, os edifícios romanos eram 
célebres "em todo o mundo", contrariamente a "estas torres que nada 
têm de notável a não ser o fato de indicarem a divisa entre o território de 
3. Goethe, op. cit., p. 458. 
4. Cf., para a interpretação de conjunto, Louis Dumont, L'Idéologie allemande: France-Allemagne 
 et retour, Paris: Gallimard, 1991; Celia Applegate, A Nation of Provinciais: 
The German Idea of Heimat, Berkeley: University of California Press, 1990. 
40 
Veneza e o Império da Áustria"5. O viajante encontrou-se realmente em 
apuros e só conseguiu escapar dessa situação crítica graças ao testemunho 
em seu favor de um italiano que conhecia bem Frankfurt. Esse episó-
dio mostra, de maneira exemplar, o que seríamos tentados a designar 
como uma pedagogia política do patrimônio: o intelectual alienígena 
propôs, por assim dizer, uma identidade (memorial e estética) a uma 
comunidade que desejava ignorar semelhante atribuição. "Eu não po-
deria criticar os habitantes de Malcesine, acostumados desde a infância 
a este edifício, por não o terem considerado — a exemplo de minha 
percepção — como uma beleza pitoresca. Com seus resplandecentes 
raios, o sol veio, providencialmente, iluminar a torre, as rochas e as 
muralhas; então, comecei a descrever-lhes esse cenário com entusiasmo. 
Mas, como meu público estava de costas para os objetos elogiados e se 
recusava afastar-se de mim, todas as cabeças giraram de repente [...] 
para o objeto descrito. [...] Nada lhes poupei, nem sequer a hera que, 
há séculos, tinha tido tempo para cobrir o rochedo e os muros com a 
mais deslumbrante decoração." 
Nesse episódio, verifica-se o confronto entre duas representações: a 
primeira, familiar aos súditos do Antigo Regime, era a de um territó-
rio, cujos limites são materializados por diversos monumentos e cujo 
controle dependia de um saber estratégico, objeto eventual de espiona-
gem. A representação estetizada de uma paisagem a ser desenhada ou 
pintada — que ilustra, aqui, a categoria do sublime ou a do pitoresco 
medieval — caracterizava, em compensação, o mundo das elites, 
em particular o microcosmodos amadores de desenho.6 O homem 
de gosto, estranho à comunidade tradicional, transformava-se aqui 
no mentor de um orgulho local, propondo-lhe inscrever-se em uma 
imagem que ele havia inventado — e que há de tornar-se rapidamente 
um lugar-comum romântico. Para além da viagem pitoresca, da qual 
ela participava com essa figura de desenhador de temas, a postura de 
Goethe anunciava uma posição que, mais tarde, será ocupada pelo 
5. Goethe, op. cit., p. 37 (14 set. 1786). 
6. Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of 
Nationalism, Nova York/Londres: Verso, 1991. 
41 
UMA REPRESENTAÇÁO DO SABER E DA MEMÓRIA 
Inspetor dos Monumentos Históricos, na configuração imaginada, em 
1830, pelo político influente e historiador François Guizot: trata-se da 
capacidade de dirigir as consciências e os modos de apropriação dos 
habitantes, graças a uma pedagogia política e cultural.' Entretempo, 
o viajante tornar-se-á um expert, empossado de uma legitimidade 
que, evidentemente, não existia nesse caso, já que ela é amplamente 
a herança do momento revolucionário. Para a geração de 1820-1830, 
a definição patrimonial das paisagens da França Antiga elaborou-se a 
partir da tábula rasa dos velhos territórios políticos das províncias, de-
pois de ter sido aceita a nova divisão administrativa em departamentos: 
na perspectiva, acalentada por Emmanuel Sieyès, de uma adunação 
territorial, adaptada a uma nova arte política.8 
A transferência da sacralidade 
O segundo episódio remete à necessária articulação de um patri-
mônio com práticas, em face de um sensualismo que, por sua vez, 
receia tanto mais os efeitos perversos de afinidades imprevistas que 
ele está pronto a elogiar as consequências benéficas de identificações 
legítimas, educativas ou patrióticas. 
A propósito de uma estátua de Minerva do palácio Giustiniani, 
Goethe descreveu os comentários da mulher do porteiro: impressio-
nada com a admiração suscitada nos ingleses por esse objeto, ela havia 
concluído que se tratava de uma imagem sagrada de outrora; assim, 
7. Para o Relatório referente à criação deste cargo, cf. Françoise Choay, A alegoria do 
patrimônio, 3a ed., São Paulo: Unesp/Estação Liberdade, 2006, "Anexo", p. 259. [N.T.) 
8. De acordo com Sieyès, o projeto de constituição da nação passa por um trabalho 
de adunação — tendo em vista a unidade de cidadãos iguais pelo sacrifício dos in-
divíduos — que implica o novo corte departamental, a supressão das comunidades 
e das distinções geográficas, em poucas palavras, uma divisão instrumental. Alain 
Desrosières, La Politique des grands nombres, Paris: La Découverte, 1993, p. 43-48; 
Pierre Rosanvallon, Le Peuple introuvable: Histoire de la représentation démocratique 
en France, Paris: Gallimard, 1998. Para a fisionomia dessa ciência social, cf. Keith 
M. Baker, "Closing the French Revolution: Saint-Simon and Comte", in François 
Furet e Mona Ozouf (orgs.), The Transformation of Political Culture, Ie789-Ie848, 
Oxford: Pergamon, 1989, p. 337 ss. 
42 
essas pessoas "professavam tal religião e ainda tinham o costume de 
prestar-lhe adoração". "Ela acrescentou que, ultimamente, uma senhora 
dessa religião tinha ficado de joelhos diante da estátua para adorá-la. 
Como boa cristã, não pôde deixar de rir diante de um ato tão bizarro 
e teve de sair da sala para não dar uma gargalhada." "Como eu próprio 
não conseguia afastar-me da Minerva", prosseguiu Goethe, "a mulher 
perguntou-me se, porventura, eu tinha uma amante parecida com 
esse mármore por exercer tamanho atrativo sobre mim. Essa senhora 
limitava-se a conhecer a devoção e o amor; assim, não podia ter qual-
quer ideia, seja da pura admiração por uma obra nobre, ou do respeito 
fraterno pelo gênio do artista."9 
O tema tornou-se recorrente em numerosos relatos de viajantes ou 
de visitantes de museus. Semelhantes estereótipos suscitam a questão 
da cristalização, para retomar a célebre análise stendhaliana do amor, 
em face da ignorância. Nesse aspecto, Goethe não defendeu qualquer 
proposição — quando, afinal, a retórica revolucionária e, em seguida, 
suas versões progressistas ulteriores hão de conformar-se a um ideal 
de educação. Em particular, o valor superior das obras de arte da An-
tiguidade culminará, na versão revolucionária, em um panegírico da 
apropriação nacional, na perspectiva de uma regeneração: "A maior 
parte dos monumentos da Antiguidade limita-se a oferecer aos súdi-
tos dos déspotas um espetáculo penoso, lembranças amargas e lições 
inúteis, já que raramente eles tiveram coragem de tirar proveito desses 
objetos. Pelo contrário, os povos livres apreciam ver em tais obras o 
gênio das artes apoiado pelo gênio da Liberdade; elas servem-lhes de 
modelos. Além disso, o gênero de estudo pelo qual a Grécia e a Itália 
republicanas são associadas à França regenerada é uma das disciplinas 
cujo gosto deve ser divulgado o mais amplamente possível e cujo ensino 
deve ser facilitado." 
9. Goethe, op. cit., p. 184 (Roma, 13 jan. 1787). 
43 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
A construção do valor 
No final de fevereiro de 1787, Goethe dirigiu-se, pela Via Appia, 
de Roma para Velletri, sítio em que ele descobriu lugares "de uma be- 
leza inexprimível" e, sobretudo, o museu do cavaleiro Borgia, espaço 
ocupado por antiguidades e raridades de toda a espécie: "Seria imper-
doável não visitar, com maior frequência, este tesouro situado tão perto 
de Roma; mas, o vínculo mágico que nos prende a esta cidade pode 
servir de desculpa." A fórmula indicava a especificidade da Urbs e, por 
extensão, de qualquer capital cultural: a distinção entre patrimônio 
universal e patrimônios locais remetia a uma escala de excelência ou 
de abundância, sem ser exclusiva de diferentes partilhas. No entanto, 
o episódio é válido, sobretudo por enfatizar contestações imprevistas 
relativamente ao valor dos objetos. 
Ao deixar o gabinete Borgia 1°, Goethe foi, de fato, vítima de uma 
brincadeira detestada por ele: "Ao nos dirigirmos para a estalagem, 
algumas mulheres, sentadas diante da porta das casas, propuseram-nos 
o seguinte: 'Os senhores não gostariam, também, de comprar anti-
guidades?' E como demonstrássemos nosso interesse, elas trouxeram 
velhas caldeiras, atiçadores e outros utensílios em mau estado, dando 
gargalhadas por nos terem pregado tal peça. Ficamos furiosos, mas 
nosso guia tranquilizou-nos ao garantir que se tratava de uma brinca-
deira habitual e era um tributo a ser pago por todos os estrangeiros." 
Essa espécie de vexame imposto aos incautos estrangeiros constituía 
uma inversão carnavalesca da arte antiga à contemporânea, de um 
gabinete de elite às baterias de cozinha com utensílios desgastados, o 
que evocava forçosamente o deboche dos filósofos e dos historiadores 
em relação aos antiquários que estariam interessados exclusivamente 
pelas caçarolas e colheres dos Antigos — ver Diderot e seu desdém pelo 
erudito Fougeroux.12 De qualquer modo, tais manifestações femininas 
10. Cf. Marco Nocca (org.), Le quattro voci del mondo: Arte, cultura e saperi nella collezione 
di Stefano Borgia Ie731-1804, Nápoles: Electa, 2001. 
11. Goethe, op. cit., p. 208-209 (22 de fevereiro de 1787). 
12. Em seu comentário a respeito de Recherches sur les mines d'Herculanum, por M. 
Fougeroux de Bondaroi, 1769. 
44 
parecem negar, de antemão, qualquer tentativa de ordem pedagógica 
ao zombarem do interesse que os estrangeiros ricos nutrem por "lem-
branças" antigas. 
Se, nos dois primeiros episódios, permanece indene o amor próprio 
do viajante, já que a ingenuidade encontra-se na origem de reações 
ridículas ou incongruentes, neste último caso ele é achincalhado por 
uma subversão do saber e do gosto. Após a Revolução Francesa, Quatre-
mère de Quincy defenderá a antiga afeição às obras, mesmo quando ela 
está baseada em ilusões e erros, por dar testemunho de uma verdadeira 
admiração ou, pelo menos, de um sentido de sua destinação ede seu 
contexto. Mas as experiências de Goethe não têm relação com o mundo 
pós-revolucionário — desse novo tradicionalismo que corresponde à 
reviravolta anterior. Sua viagem dava testemunho de um mundo do 
patrimônio amplamente incoativo, exposto a inúmeras contestações, e 
que devia lutar para conseguir a legitimidade exclusiva na abordagem 
das paisagens, lugares e objetos do passado. y 
O monumento e a história 
O dicionário de D'Aviler ( Cours d'architecture avec une ample explica-
tion par ordre alphabétique de tous les termes, 1761) definia o monumento 
nestes termos: "qualquer construção que serve para conservar a memória 
do tempo e de seu fabricante ou daquele para quem havia sido erguido, 
tal como um arco de triunfo, um mausoléu ou uma pirâmide". O depu-
tado Armand-Guy Kersaint, em seu Discours sur les monuments publics, 
pronunciado em 15 de dezembro de 1791, declarava igualmente 
que "os monumentos são as testemunhas irrepreensíveis da história; 
sem suas augustas ruínas, tudo o que ela nos transmitiu dos gregos e 
romanos teria deixado a impressão de uma simples fábula" (p. VI).13 
13. Sobre a teoria da arquitetura no século XVIII, cf. Françoise Fichet, La Théorie archi-
tecturale à l'âge classique, anthologie, Bruxelas: Mardaga, 1979; John Summerson, Le 
Langage de l'architecture classique, Paris: Thames & Hudson, 1992; Werner Szambien, 
Symétrie, goût , caractère: Théorie et terminologie de l'architecture à l'âge classique, 1550-
Ie800, Paris: Picard, 1986. 
45 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
Por sua vez, o Dictionnaire des beaux-arts (1806) de Aubin-Louis Millin 
continuava definindo o monumento como uma "obra de arte erguida 
em uma praça pública para conservar e transmitir à posteridade a me-
mória das personagens ilustres ou dos acontecimentos notáveis [...], 
uma obra de arquitetura em que as artes do desenho foram utilizadas 
para falar à posteridade". Além disso, em sua acepção banal, o termo 
é sinônimo de "túmulo". 
Nas publicações neoclássicas, o monumento situava-se no topo de 
uma escala implícita dos valores, como único digno de transmitir à 
posteridade os sinais de uma civilização importante. Seu estudo har-
monizava-se com um credo estético, assim como ético-político. Desse 
modo, a pirâmide representava para Étienne-Louis Boullée o monu-
mento por excelência, pelo fato de ter conseguido atravessar os séculos, 
dando testemunho de um povo famoso pelo interesse manifestado por 
seus mortos: "É óbvio que, ao erguer essa espécie de monumento, o 
objetivo é perpetuar a memória daqueles a quem eles são dedicados. 
Convém, portanto, que tais monumentos sejam concebidos de maneira 
a desafiar os danos provocados pelo tempo; os egípcios deixaram-nos 
exemplos famosos."14 No entanto, a passagem do monumento para o 
santuário, nas versões negativas da história, ilustrava a transformação 
da estátua em ídolo. Autor de Origine, progrès et décadence de l'idolâtrie 
(1757), Guillaume-Alexandre de Méhégan assegurava que as estátuas 
— inicialmente associadas aos túmulos — acabaram por se transfor-
mar em altares de divindades: "Esses túmulos foram convertidos aos 
poucos em uma espécie de templos... Um primeiro movimento faz 
quase sempre imaginar — sobretudo a homens rudimentares — que 
as almas associadas às cinzas permanecem, de algum modo, com elas 
e continuam habitando nos mesmos lugares."15 
A convicção de que existe uma linguagem simbólica dos monu-
mentos era acompanhada e alimentada pela tarefa de inventário do 
mundo antigo. Além disso, tratava-se de defender o princípio de uma 
14. Étienne-Louis Boullée, Architecture: Essai sur l'art, apresentação de Jean-Marie Pérouse 
de Montclos, Paris: Hermann, 1968. 
15. ApudAnne Betty Weinshenker, "Idolatry and Sculpture in Ancien Regime France", 
in Eighteenth-Century Studies, vol. 38, n. 3, 2005, p. 495-507. 
46 
linguagem compartilhada da arquitetura que refletisse os gostos e os 
conhecimentos de diversas civilizações, ao serem contestados seus 
fundamentos "naturais". O tratado do padre De Lubersac é um bom 
resumo de tal campo de investigação (seu Discours sur les monuments 
publics de tous les âges et de tous les peuples connus, de 1775, compreen-
dia igualmente uma análise crítica das fabriques — veja definição mais 
abaixo — construídas nos jardins contemporâneos, tal como o parque 
Monceau, em Paris), assim como o de Nicolas Le Camus de Mézières 
(Le Génie de l'architecture ou l'analogie de cet art avec nos sensations, 
1780), ele próprio autor de uma descrição do jardim pitoresco, sua 
ambição final. Em seu livro Lettres sur l'architecture des anciens (1787), 
Viel de Saint-Maux explicava a inspiração "simbólica" e "alegórica" 
da arquitetura antiga: os templos da Antiguidade eram celebrações da 
astronomia em todos os seus detalhes; cada forma e cada número eram 
escolhidos por sua lição ou embelezados com alguma mensagem signi-
ficativa. A impossível decifração dos monumentos antigos não era seu 
menor atrativo, no momento em que o hieróglifo passava por ser um 
paradigma. Para Dominique-Vivant Denon, os monumentos egípcios 
"eram os livros abertos em que a ciência era desenvolvida, a moral era 
ditada e as artes úteis eram professadas; tudo falava, tudo era animado 
e sempre com o mesmo espírito".16 Em um círculo interminável da 
interpretação simbólica, o relatório de Lenoir, Antiquités mexicaines, 
reconhecia, por sua vez, hieróglifos nos monumentos americanos. 
De maneira geral, a arquitetura, "associada ao brusco desenvol-
vimento do urbanismo, à criação de novas cidades e à exumação das 
cidades soterradas, é sem dúvida o mais amplo e mais bem caracterizado 
domínio de aplicação — ou de projeção utópica — da arte neoclássica". 17 
 
Os projetos de embelezamento urbano do século XVIII, as cidades 
16. D.-V. Denon, Voyage dans la Basse et Haute-Égypte en 1798 et Ie799, Paris: Didot 
l'Ainé, 1802, p. 180. 
17. Jean Leymarie, prefácio de David e Roma, Roma: De Lucca, 1980, p. 10. Cf. sobre 
esses temas: Allan Braham, L'Architecture des Lumières de Soufflot à Ledoux, Paris: 
Berger-Levrault, 1982 (1. ed. em inglês, 1980); Helen Rosenau, "The Functional and 
the Ideal in Late Eighteenth Century French Architecture", in Architectural Review, 
t. 140, 1966; Antony Vidler, Claude-Nicolas Ledoux: Architecture and Social Reforme 
at the End of the Ancien Régime, Cambridge: MIT, 1990. 
47 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÁO DO SABER E DA MEMÓRIA 
imaginárias das utopias iluministas, enfim, as festas da Revolução 
Francesa acalentavam a ideia de um monumento público ideal que, 
"pelas imagens oferecidas a nossos sentidos", deveria, de acordo com 
Boullée, "estimular em nós sentimentos análogos ao uso a que ele é 
destinado".18 Em seu livro Architecture (1847), Claude-Nicolas Ledoux 
— precursor da arquitetura funcional — resumia o empreendimento 
visado e seus desafios: "Se os artistas aceitassem adotar o sistema 
simbólico que caracteriza cada produção, eles haveriam de adquirir 
uma glória semelhante à que é atribuída aos poetas; dariam forma às 
ideias de quem lhes solicita seu conselho e não haveria sequer uma 
pedra que, em suas obras, não fosse significativa para os passantes" (I, 
p. 115); à semelhança de um La Font de Saint-Yenne, que criticava 
a cena de gênero ("o pintor historiador é o único que pinta a alma, 
enquanto os outros limitam-se a pintar para seus olhos"), ele atacava 
os "arquitetos do retrato" em nome do gênero monumental — dos 
valores do memorial e da comemoração. Desse modo, o arquiteto 
assemelha-se ao detentor da história e da memória das civilizações. 
Kersaint abria seu Discours sur les monuments publics, pronunciado no 
Conselho do Departamento de Paris, com esta fórmula: "É realmente 
honrosa a ocupação — além de seu desígnio ser inteiramente digno de 
glória — cujo objetivo consiste em transmitir, aos séculos vindouros, 
monumentos que hão de suscitarsua admiração" (p. 3). Em tais 
condições, compreende-se que a solidez dos monumentos presentes 
possa garantir o novo regime da posteridade: "A confiança que deve 
ser inspirada em relação à estabilidade de nossas novas leis irá apoiar-
se, por uma espécie de instinto, na solidez dos edifícios destinados a 
conservá-las e a perpetuar sua duração".19 Essa era também a opinião 
de Pierre Vignon, arquiteto da igreja da Madeleine (construída em 
Paris de 1764 a 1842), evocando o restabelecimento das Academias 
das Belas-Artes em 1814: "Os arquitetos são depositários da glória das 
nações; muitas vezes, os monumentos erguidos por eles, e não tanto 
18. É.-L. Boullée, op. cit., f. 70. 
19. Mark K. Deming e Claudine de Vaulchier, "La Loi et ses monuments en 1791", in 
Dix-Huitième Siècle, vol. 14, 1982, p. 117-130. 
48 
a história, é que servem de referência para julgar o poder dos reis e a 
civilização dos povos do passado"." 
O verbete "Monumento" do Dictionnaire (1806), de Millin, subli-
nhava que, em cada monumento, deviam ser levados em consideração 
estes dois pontos: "Em primeiro lugar, o corpo, volume isolado que, 
por uma forma agradável e particular, deve chamar a atenção; e, em 
segundo lugar, o espírito, ou a alma, que deve produzir a impressão 
principal que se pretende obter... Se a forma e o conjunto de um 
monumento tiverem conseguido atrair o olhar do espectador, convirá 
então que, ao aproximar-se, ele venha a encontrar todos os detalhes 
em conformidade com sua destinação. Convém que, nos ornamentos, 
nada haja que desvie a atenção do objeto principal, mas que sejam 
análogos ao caráter do monumento. O que designamos por alma 
de um monumento é sempre sua parte principal. Ela consiste seja 
em inscrições, seja em figuras pintadas ou esculpidas que podem ser 
históricas ou alegóricas. A expressividade dessas obras deve superar 
a simples escrita porque, sem isso, dar-se-ia preferência a este (sic)." 
Em 1813, Saint-Valery-Seheult, "arquiteto da história", revelava 
"a engenhosidade e os grandes segredos da arquitetura histórica" em 
termos exemplares: "Como será possível considerar a arquitetura? 
Como uma linguagem, uma arte ou uma ciência? Tais são as questões 
que terá de se formular aquele que se dedica a estudá-la. Ao considerar 
um monumento, ele descobrirá que essa arte tem uma linguagem já 
que o edifício deve conversar com o espectador e indicar-lhe o obje-
tivo pelo qual havia sido erguido. Uma linguagem é a totalidade das 
palavras utilizadas por uma nação para exprimir suas necessidades e 
seus pensamentos por meio de sons ou caracteres que falam aos olhos. 
Ao exprimir diferentes sentimentos e pensamentos por caracteres 
significativos, a arquitetura é, portanto, uma linguagem"21; eis o que 
a distingue de uma construção [bâtiment] qualquer, "obra do meca-
nismo". Com efeito, a construção "é o resultado de uma necessidade; 
20. Pierre Vignon, Sur le Rétablissement des Académies des Beaux-Arts, Paris, 1814. 
21. A. Saint-Valery-Seheult, Le Génie et les grands secrets de l'architecture historique, Paris, 
1813, p. 7-9. 
49 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
seu objetivo consiste em preservar os homens das doenças, livrando-os 
das intempéries sazonais. Ela está baseada nas proporções e na mecâ-
nica do corpo humano. Por sua vez, o monumento tem ambições mais 
nobres e elevadas: sua origem foi ocasionada pelo desejo da glória; seu 
objetivo consiste em conservar, para a posteridade, a lembrança de 
algo importante. Trata-se de um templo da imortalidade, um poema 
sublime, cuja poesia divina faz lembrar ao espírito, pelo órgão da visão, 
as ações dos homens ilustres. Assim, uma construção tem a ver com a 
arte de construir, enquanto o monumento refere-se à arquitetura". Em 
suma, a arquitetura "não consiste, de modo algum, em juntar pedra 
sobre pedra, mas [...] seu engenho reside na arte tão difícil de levá-las 
a se exprimir ao espírito pelo órgão da visão". Um paralelo entre os 
monumentos do México, do Egito e dos Incas — testemunho, entre 
outros, dos múltiplos exercícios contemporâneos sobre o mesmo 
tema — permitiu que o autor tirasse a conclusão relativamente a 
uma linguagem primitiva, extraída da natureza, que havia sido mantida 
na arquitetura e devia ser utilizada, de preferência a qualquer outra, 
na composição dos monumentos, mesmo que seja admitido acrescen-
tar-lhe inscrições. "As linguagens vulgares confundem-se e perdem-se 
nas mudanças ocorridas na superfície do globo; por sua vez, a lingua-
gem da arquitetura é imutável e seus poemas brilham sempre com 
o mesmo resplendor [...]. O aspecto do monumento deve indicar 
o motivo que esteve na origem de sua construção; os caracteres da 
linguagem da arquitetura devem, também, indicá-lo; deve ser evitado 
tudo o que seja estranho a seu tema... Os caracteres ou ornamentos 
devem lembrar esse pensamento e, em geral, tudo deve ser circunscrito 
ao tema escolhido pela arquitetura... [...]. Ao formar o paralelo entre 
os monumentos repletos de inscrições em linguagens vulgares e aqueles 
em que os caracteres da linguagem primitiva indicam ao espírito o 
motivo que esteve na origem de sua construção, ficamos convencidos 
da superioridade dos últimos, já que eles se referem, ao mesmo tempo, 
ao coração e à imaginação. Nem por isso deixa de ser verdade que é 
possível tolerar os caracteres dessas linguagens nos edifícios... pode-se 
formar inscrições que repetem o pensamento já traçado pelos carac-
teres da linguagem primitiva; mas, nesse uso, deve haver parcimônia. 
50 
Convém que a linguagem utilizada para formar tais inscrições seja a 
da nação que ergue o edifício."22 
A aplicação desses princípios de "distinção" entre a arte e o útil 
culminou em uma tipologia dos monumentos, mais ou menos ex-
plícita, segundo os autores ou os arquitetos. Para Kersaint, os monu-
mentos comemorativos simples, sob a forma de estrelas ou pirâmides, 
distinguiam-se dos monumentos públicos mistos — tais como mu-
seus, templos e bibliotecas —, que, além de cumprirem uma função 
bem definida, desempenhavam um papel comemorativo. A propósito 
do concurso promovido pelo administrador da Região do Ródano, visando 
a construção de um monumento em homenagem a Bonaparte, na place 
Bellecour, em Lyon, o arquiteto Goulet estabelecia uma distinção seme-
lhante: "Parece-me que há uma grande diferença entre um monumento 
público, propriamente dito, e um monumento triunfal. Por monumentos 
públicos, deve-se entender um chafariz, uma ponte, um mercado co-
berto, uma bolsa de valores, assim como todos os prédios destinados ao 
uso e às necessidades da vida pública; no entanto, entre eles, não podem 
ser incluídos os edifícios dedicados à glória dos homens importantes ou 
à memória de um acontecimento notável. Os primeiros devem exibir a 
marca da simplicidade e da severidade, enquanto os outros devem ser 
luxuosos, elegantes e magnificentes; portanto, é impossível confundi-los. 
[...] Com efeito, a utilidade do objeto é que irá impressionar sempre 
o comum mortal, enquanto o herói estará presente apenas como deco-
ração acessória ou somente para fornecer seu nome ao monumento."" 
A preeminência atribuída pelos dois textos ao monumento "comemo-
rativo" ou "triunfal" é bastante característica. Ocorre que o impera-
tivo de utilidade pública leva, muitas vezes, a uma fusão dos gêneros 
— correndo o risco de ameaçar a legibilidade do monumento sob a 
quantidade de informações a serem transmitidas. 
22. Ibidem, p. 17-18. 
23. "Réflexions sur un monument à élever à Bonaparte par le citoyen Goulet, architecte 
et adjoint-maire du VF arrondissement de Paris", in Journal des Bâtiments, n. 137, 6 de 
nivôse do ano X, p. 20-22. De forma mais geral, consultaremos Bruno Klein, "Napo-
leons Triumphbogen in Paris und der Wandel der offiziellen Kunstanschauungen im 
Premier Empire", in Zeitschrift für Kunstgeschichte, vol. 59, n. 2, 1996, p. 224-269. 
51 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMAREPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
O cúmulo do monumento "escrito" foi atingido, sem qualquer 
dúvida, com a proposição do arquiteto Goulet no sentido de erguer 
um monumento destinado a conter todas as leis francesas, chamado 
Templo das Leis: uma rotunda rodeada por quatro galerias ofereceria 
uma superfície de 4.800 m2 em que seriam inscritas, em mesas salientes 
e amovíveis, com caracteres bastante legíveis, todas as leis ou códigos 
da República. Essa proposta inscrevia-se em uma série de projetos de 
monumentos enciclopédicos a serviço da comemoração e da história 
nacional francesa.24 
Em 16 de vendémiaire e em 16 de nivôse do ano X, o Journal des 
Bâtiments publicava um projeto de "coluna nacional no centro de 
uma porção de mapa-múndi formando a planta geral da França, no 
meio do Carroussel, desimpedido das casas". No pátio do Louvre seria 
erguida, em um pedestal octogonal, uma coluna de 10 metros de raio 
por 135 metros de altura: "Que a torre seja decorada, por dentro e por 
fora, em toda a sua altura, por quinze andares de relevos circulares; em 
torno de cada um, serão abertas, perpendicularmente às oito faces do 
pedestal, oito janelas — portanto, um total de 120 — para fornecer 
o máximo de luminosidade ao interior do edifício, formando o com-
partimento das molduras dos quadros de todos os departamentos da 
República. Em cada um desses grandes quadros, ver-se-á não só a carta 
geográfica de um departamento, suas produções territoriais e indus-
triais, suas cidades, aldeias e lugarejos, mas também o quadro de seu 
mérito à vitória." Uma dupla escadaria interna levará a cada patamar 
que "será rodeado por uma galeria ou por um simples balcão interior, 
com assentos à sua volta a fim de que cada visitante, calmamente, de 
patamar em patamar, possa observar cada parcela da França. Os depar-
tamentos mais próximos da capital estarão no primeiro andar e os 
mais afastados encontrar-se-ão na parte mais alta da torre". No topo, 
uma plataforma octogonal receberá uma coluna que, em cima de um 
capitel de mármore negro, carrega uma estátua colossal da República 
24. Cf. Goulet, Observations sur les embellissements de Paris et sur les monuments qui sy 
construisent; projet d'architecture et d'amélioration; suivis d'une nouvelle distribution des 
arrondissements municipaux de Paris et d'un essai sur les contributions, 1808, p. 13-14. 
52 
Francesa. No interior da coluna, será colocada uma cúpula com um 
chafariz de água e de fogo: por ocasião das festas, ele servirá de facho 
luminoso para os parisienses. "Finalmente, o detalhe mais belo desta 
coluna nacional — aliás, o recinto do Louvre dará a impressão de 
formar sua estilóbata — será seu andar térreo, erguido cerca de um 
metro acima do chão. Aí, será possível ver, entre os quatro pórticos, 
os amplos quadros das principais vitórias do imortal Bonaparte."25 
Esse programa pretendia monumentalizar, de certa maneira, o ter-
ritório nacional, graças à representação cartográfica. O século XIX 
forjará, pelo contrário, diversos museus imaginários do solo francês, 
graças ao livro de Taylor e Nodier, Voyages romantiques et pittoresques 
dans l'Ancienne France — narrativas destinadas, desta vez, não para 
celebrar as vitórias da nação moderna, mas sobretudo para esboçar a 
falência de suas tradições e de seus monumentos antigos.26 
O território da Cidade 
Entre as imagens constantes do território humano, perfila-se a de 
uma organização espacial da Cidade que deve ser mantida e remanejada, 
bem cuidada e protegida.27 A lição da semântica revela, aliás, como a 
palavra "território" evoca ideias de apropriação, de apossamento ou, no 
mínimo, de uso.28 Esse imaginário do território manteve regularmente 
uma relação estreita com a estética, enunciando diferentes figuras 
mediante as quais a paisagem adquire sentido. No Renascimento, 
a redescoberta da Antiguidade clássica foi acompanhada por uma 
série de dispositivos e de figuras que visavam elaborar um território- 
25. B*** amador e Campmas (engenheiro hidráulico), in Journal des Bâtiments, n. 115; 
e, depois, n. 140, p. 69. 
26. Para a vertente alemã do fenômeno relacionado com a nova representação das ruínas 
do passado, cf. Peter Fritzsche, Stranded in the Present: Modern Time and the Melan-
choly of History, Cambridge: Harvard University Press, 2004, p. 98-127. 
27. David Storey, Territory: The Claiming of Space, Harlow: Prentice Hall, 2001. 
28. Nesse sentido, cf. Leo Spitzer, "Milieu et Ambiance: An Essay in Historical Semantics", 
in Philosophical and Phenomenological Research, vol. III, 1942-1943, p. 1-42, 169-218. 
53 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
-patrimônio — na França, reinventou-se a Gália —, promover a criação 
de gabinetes de curiosidades, além de refletir sobre a engenhosidade 
mecânica." O exemplo mais célebre foi a proteção das antiguidades, 
iniciada pelo Papado. O território do príncipe, no século XVI, tornou-
se objeto de uma "captura" no âmago de uma reflexão sobre os lugares 
que pretendia ser ciência da classificação universal", entrando, assim, 
com tudo o que ele continha e evocava, nos programas do gabinete 
das curiosidades: como programa ideal de compendium principesco, 
as Inscriptions ou titres du théâtre magnifique de Samuel Quiccheberg 
repertoriam, na primeira classe, tudo o que se referia à "regio" do 
fundador do Théâtre. Essa seção do gabinete das curiosidades reunia 
plantas geográficas, figuras de antepassados, genealogias, referenciais de 
sua cidade, exemplos de plantas e de animais.31 No decorrer do século 
XVIII, a política em relação à herança material do passado deu lugar a 
um imaginário do santuário tanto nos diferentes dispositivos utópicos, 
quanto na literatura dos antiquários ou nos escritos "esclarecidos".32 
O essencial da literatura sobre as cidades, do século XVI ao XVIII, 
compunha-se por "Antiguidades" e outros guias dos monumentos urba-
nos. Daniel Roche procedeu à análise minuciosa do inventário lavrado, 
em 1719, por P. Lelong em sua Bibliothèque historique de la France 
29. Roberto Weiss, The Renaissance Discovery of Classical Antiquity, Oxford: Blackwell, 
1969; Horst Bredekamp, La Nostalgia de l'antique: Statues, machines et cabinets de 
curiosités, Paris: Diderot, 1996; Frédérique Lemerle, La Renaissance et les antiquités 
de la Gaule, Bruxelas: Brepols, 2005. 
30. Frances Yates, L'Art de la mémoire, Paris: Gallimard, 1975; Oliver Impey e Arthur 
MacGregor, The Origins of Museums, Oxford: Clarendon, 1985; e Antonella Lugli, 
Naturalia et Mirabilia: Les Cabinets de curiosités en Europe, Paris: A. Biro, 1983. 
31. Cf. sua tradução definitiva e seu estudo por Nicolette Brout, "Le Traité muséologi-
que de Quiccheberg", in L'Extraordinaire jardin de la mémoire, Gilly: Musée royal 
de Mariemont, 2004, p. 69-135. Jan C. Westerhoff, "A World of Signs: Baroque Pansemioticism
, the Polyhistor and the Early Modern Wunderkammer", in journal of 
the History of Ideas, vol. 62, n. 4, 2001, p. 633-650, fornece o estado das pesquisas, 
cm particular, sobre Camilo e Quiccheberg. 
32. Nesse aspecto, inspiramo-nos em Louis Martin e em seu comentário por Stephen 
Bann, "Shrines, Curiosities, and the Rhetoric of Display", in Lynne Cooke e Peter 
Wollen (orgs.), Visual Display: Culture beyond Appearances, Dia Center for the Arts, 
Seattle: Bay, 1995, 15-29; "Shrines, Gardens, Utopias", in New Literary History, vol. 
25, n. 4, 1994, p. 825-837. 
54 
contenant le catalogue de tous les ouvrages tant imprimés que manuscrits qui 
traitent de l'histoire du Royaume ou qui y ont rapport: em 17.487 obras 
repertoriadas, 2.506 referiam-se diretamente ao passado das cidades (ou 
seja, cerca de 15%). Ao lado dos escritos sobre a história eclesiástica e 
sobre a pesquisa da origem da cidade (no desfilar dos títulos, verifica-se 
o crescimento do número das antiguidades ou das obras de arte antigas), 
um terceiro gênero descrevia os monumentos ao lembrar constantemente 
o passado doqual esses lugares haviam sido as testemunhas. Assim este 
título de 1600: Les Antiquités, les fondations et singularités des plus célèbres 
villes, châteaux et places remarquables du royaume de France, avec les choses 
les plus remarquables advenues en icelui. Na segunda metade do século 
XVIII, todavia, "aparecem as imagens funcionais da cidade, focalizadas 
na beleza e utilidade dos centros urbanos"". O gênero passava do mo-
numental para o funcional: desde o final do século XVII, "o guia dos 
monumentos amplia-se para incluir as instituições e atividades próprias 
de cada cidade"34. 
Nos séculos XVI e XVII, o interesse pelas Antiguidades orientava 
seus esforços para o religioso, para a evolução das ordens, para a fun-
dação dos edifícios do culto e para os vestígios da história, tais como 
epitáfios ou decretos de fundação. No decorrer do século XVIII, a 
categoria dos objetos notáveis indicava o que merecia ser visto, o que 
era digno de satisfazer a curiosidade dos estrangeiros e dos habitantes. 
A própria estrutura dos guias coincidia, aos poucos, com a dos catá-
logos: tratava-se de repertoriar o conjunto das riquezas artísticas. Para 
L'Almanach Parisien, era motivo de vanglória o fato de indicar, "por 
ordem alfabética, todos os monumentos das belas-artes disseminados 
na cidade de Paris e arredores, assim como os lugares relevantes pela 
grandeza do desenho ou por seus painéis de pintura e de escultura: 
edifícios sagrados, castelos e mansões régias, palácios, palacetes, prédios 
públicos e casas de lazer". Sua ambição era sublinhada nestes termos: 
"Por esta palavra, entendemos todos os Edifícios, tanto sagrados como 
33. Jean-Claude Perrot, Genèse d'une ville moderne: Caen au XVIIIe siècle, Paris/La Haye: 
Mouton, 1975, 2 vols., I, 1, p. 17-27. 
34. Roger Chartier, Histoire de la France urbaine, Paris: Le Seuil, 1981, 3, p. 174. 
55 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
profanos, que são o resultado não só da devoção de nossos Reis e de sua 
magnificência, mas também do zelo e do amor de seus Súditos por 
sua Pessoa sagrada. Uns são destinados a lembrar a memória de algum 
evento; outros estão a serviço dos Cidadãos. Em uma palavra, trata-se de 
todos os lugares em que as Artes desenvolveram sua engenhosidade para 
erguer seja um Templo augusto, seja a representação de um grande Rei, 
cujo bronze exprime seus traços no centro de uma Praça pública; seja dos 
Troféus sob o símbolo de uma Porta."" 
Brice, Dezallier d'Argenville e Thiéry contribuíram, através de seus 
guias, para criar uma cultura parisiense. Semelhante abundância de obras 
correspondia a uma importante demanda, de acordo com a observa-
ção de Hébert e Alletz, autores de L'Almanach Parisien, no prefácio da 
la edição, em 1761: "O gosto pelas artes ganhou todos os estados porque, 
atualmente, pretende-se saber um pouco de tudo e ser capaz de proferir 
uma opinião; além disso, convém acomodar-se ao gosto de seu século." 
No momento em que o conhecimento da cidade, lugar de expressão 
privilegiada do engenho humano, se tornou indispensável, o Guide 
des amateurs (1787) de Thiéry repertoriava, em seu prefácio, "todos os 
monumentos antigos e modernos, estabelecimentos úteis, manufaturas, 
gabinetes de curiosidades, enfim, todos os outros objetos interessantes". 
Entre os visitantes estrangeiros, os ingleses do grand tour36 mostravam 
uma particular avidez por itinerários que levassem à descoberta das ci-
dades do continente europeu. Em seu guia prático — The Grand Tour... 
(Londres, 1749), em quatro volumes —, Thomas Nugent empenhava-se 
em organizar minuciosamente a visita da capital francesa: o viajante deve 
começar pelo Palais-Royal, ao qual pode dedicar três dias para contemplar 
sua coleção de quadros. Em seguida, ele vai contemplar Saint-Sulpice e 
os Invalides antes de visitar as academias, o Jardin des Plantes e as ma-
nufaturas (Gobelins, Savonnerie...). No ano seguinte, o guia de William 
Lucas recomendava em primeiro lugar o Louvre e, em seguida, as Tuileries 
35. Cf. Gales Chabaud, Évelyne Cohen et al. (orgs.), Les Guides imprimés du XVI' au XXe 
 siècle: Villes, paysages, voyages, Paris: Belin, 2000. 
36. Expressão para designar uma tradicional viagem de aprendizagem pela Europa, 
empreendida principalmente por jovens aristocratas ingleses no século XVIII. [N.T.] 
56 
e o Palais-Royal.37 Em 1787, na 9á edição de Gentlemen's Guide in this Tour 
through France, Thomas Martyn apresentava um percurso bastante com-
pleto, característico dos gostos e interesses do final do século: academias, 
gabinetes de curiosidades, galerias, palácios, bibliotecas e monumentos 
figuram nessa descrição como outras tantas visitas obrigatórias. Todas 
essas obras fornecem uma "leitura" da cidade que legitima a afirmação de 
Roland Barthes segundo a qual "falamos de nossa cidade simplesmente 
ao habitá-la, ao percorrê-la e ao observá-la". 
A vinda dos viajantes, extremamente lisonjeira para estimular o 
orgulho local, tinha um interesse econômico; portanto, cada cidade 
empenhava-se em preservar e valorizar seus monumentos, em particular 
se ela tinha o privilégio de dispor de algumas obras de arte antigas. Em Nîmes
, a deliberação municipal de 13 de julho de 1643 lembrava que 
"as Antiguidades — servindo de decoração à cidade — são tão consi-
deráveis e possuem uma tão elevada reputação que as populações mais 
estranhas vêm dos lugares mais recuados para visitá-las e admirá-las, 
o que deve emocionar, em igual proporção, o coração dos habitantes 
da dita cidade de Nîmes no sentido de conservá-las religiosamente e 
impedir que fiquem em ruínas, sejam demolidas e soterradas". Desde 
sua criação, em 1683, a Académie Royale de Nomes apresentava-se 
como a garantia do respeito que a cidade deve manifestar por suas 
obras de arte antigas. No século XVIII, a municipalidade explicitava 
as vantagens a auferir da manutenção dos monumentos nestes termos: 
"Os monumentos antigos que dão prestígio à cidade por sua beleza 
inimitável seriam, então, mostrados ao visitante estrangeiro, sempre 
ávido e curioso em observá-los e admirá-los; tais monumentos, menos-
prezados atualmente, seriam indubitavelmente bem cuidados se o habi-
tante pudesse orgulhar-se de usufruir livremente de sua contemplação, 
além de constatar que o estrangeiro se beneficia da mesma fruição."
38 ' 
37. William Lucas, A Five Weeks Tour to Paris, Versailles, Marli,&c.: Shewing the Different 
Charge Attending one, two, or four Persons through This Tour, and the Most Reasonable and Pleasurable 
 Method of Performing it: with an Accurate Description of Paris and the Neigh-
bouring Palaces, Gardens, Water-Works, Paintings, etc..., 2. ed. London: T. Waller, 1752. 
38. Line Teisseyre-Sallmann, "Urbanisme et société: 1:Exemple de Nimes aux XVII' et 
XVIII' siècles", in Annales ESC, 1980, p. 982. 
57 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
Esse exemplo provincial remetia, em um movimento patrimonial 
clássico que vai das pequenas às grandes pátrias, a um fenômeno de escala 
europeia, focalizado na maior coleção de monumentos antigos da Cidade 
por excelência, ou seja, Roma. A partir dos editos — Albari de 1733, e 
Valenti de 1750 —, o interesse "turístico" inscrevia-se, de fato, cada vez 
mais entre as preocupações oficiais. No âmago da estética neoclássica, 
verificou-se o aparecimento de uma cultura e de uma política da conser-
vação, no exato momento em que um grande número de obras de arte 
era espalhado através da Europa. Entre 1784 e 1789, Giuseppe Antonio 
Guattani publicou o primeiro periódico dedicado, em grande parte, 
à arqueologia: os Monumenti Antichi Inediti Ovvero Notizie Sulle Antichità 
e Belle Arti di Roma. Certamente, os museus pontificais participaram 
da busca exasperada das obras-primas, mas sua pretensão limitou-se 
a reunir exempla suscetíveis de ilustrar a história da arte nascente, em 
detrimento dos objetos boni ma non singolari, que, aliás, poderiam ser 
exportados sem prejuízo.De qualquer modo, o tecido conjuntivo das 
obras-primas, as obras menos acabadas ou as minores, foram adquirindo 
uma importância cada vez maior. Desde o final desse século, os princi-
pais estados italianos dispunham de uma legislação destinada a evitar a 
dispersão de suas riquezas artísticas: o caso romano é particularmente 
revelador." Finalmente, Arnaldo Momigliano mostrou que o novo inte-
resse pelas sociedades antigas pré-romanas, em particular pelos etruscos, 
povo desprovido de tradição literária, correspondia a um culto inédito 
pelas identidades locais e regionais, como é comprovado pela emergência 
de histórias de diferentes "pátrias" italianas, ao mesmo tempo que dava 
satisfação à importância crescente das antiguidades na escrita da história.40 
39. Cf. o balanço apresentado, recentemente, por Valter Curzi, Bene culturale e pubblica 
utilità: Politiche di tutela a Roma tra Ancien Regime e Restaurazione, Bolonha: Minerva, 
2004. 
40. Cf. Melissa Calaresu, "Images of Ancient Rome in Late Eighteenth-Century Neapoli-
tan Historiography", in Journal of the History of Ideas, vol. 58, n. 4, 1997, p. 641-661. 
Sir William Hamilton identifica-se com o registro napolitano, relacionado com a 
paisagem e com os objetos arqueológicos; cf. Volcanoes and Vases, Londres: Bristish 
Museum, 2000. Os monumentos do território nacional podem ser, também, objeto de 
representações em série, segundo um projeto de coleção de lugares de prestígio à glória 
do artista: Julius Bryant, Turner Painting the Nation, Londres: English Heritage, 1996. 
58 
Neste aspecto, verificava-se a ligação íntima entre a nova representação 
da inscrição da memória cultural e o programa de histórias patrióticas 
inéditas: primeiro exemplo, sem dúvida, de uma reconfiguração, cujo 
testemunho será dado, na sequência, pela França revolucionária, de 
acordo com outras modalidades. 
O caso de Herculano e de Pompeia ilustra outra importante muta-
ção: o surgimento de preocupações éticas e políticas na sensibilidade à 
arqueologia que, ulteriormente, assumiram uma importância conside-
rável, em particular sob a ocupação francesa.'" O gosto, tão relevante 
no século XVIII, pelo material da arte culminou aqui na paixão de 
argumentar a propósito da técnica das escavações: assim, cada viajante 
ou visitante arrogava-se o direito de saber o que deveria ter sido feito 
— em geral, condenando a gestão dos sítios arqueológicos.42 A famosa 
carta aberta do historiador da arte e arqueólogo alemão J. J. Winckel-
mann, em 1762, marcou uma data nesse aspecto (Lettre de M. l'abbé 
Winckelmann à M le comte de Brühl sur les découvertes d'Herculanum, 
1764): o antiquário manifestava seu apoio — sobretudo contra Alcu-
bierre — à atividade desenvolvida, entre 1750 e 1765, pelo engenheiro 
militar suíço Karl Jakob Weber, que tinha intenção de publicar o 
resultado de seu trabalho, de maneira sistemática, relacionando as anti-
guidades com seus sítios arqueológicos e mobilizando o maior número 
possível de fontes. Depois de seu óbito — por esgotamento —, seus 
documentos serviram a Francesco La Vega para extrair a planta geral de 
Pompeia e para fazer a proposta no sentido de elaborar uma história das 
escavações; apesar disso, a curiosidade erudita internacional continuava 
sendo alimentada por publicações respaldadas a partir de informações 
clandestinas, fora da corte dos Bourbons e do círculo oficial da arqueo- 
logia "vesuviana"43. Paralelamente, assistia-se à proliferação dos "guias 
do estrangeiro", consequência do fluxo dos viajantes: para cada coleção, 
41. Ronald T. Ridley, The Eagle and the Spade: Archaeology in Rome during the Napoleonic 
Era, Cambridge: Cambridge University, 1992. 
42. Nancy H. Ramage, "Goods, Graves and Scholars: 18th-Century Archaeologists in 
Britain and Italy", in American Journal ofArchaeology, vol. 96, n. 4, 1992, p. 653-661. 
43. Christopher Charles Parslow, RediscoveringAntiquity: Karl Weber and the Excavation 
of Herculaneum, Pompeii and Stabiae, Cambridge: Cambridge University, 1995. 
59 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
eles enumeravam as etapas de sua formação e descreviam, sala por sala, 
os objetos expostos. A obra Le Antichità di Ercolano esposte con qualche 
spiegazione, publicada em Nápoles de 1755 a 1792, correspondia a uma 
dessas tentativas — desta vez oficial — de colocar em ordem, em um 
enquadramento histórico e tipológico, o enorme material descoberto, 
além das descrições parciais dos múltiplos relatos de viagem. 
Assim, generalizava-se a convicção de uma responsabilidade coletiva 
em relação às obras-primas universais, para não falar das antiguidades de 
menor importância44; ao mesmo tempo, eram apresentados projetos para 
museus de cópias. Com certeza, desde a origem do cânon das Antigui-
dades, as tentativas de moldar as mais belas estátuas correspondiam ao 
desígnio de cada país no sentido de se apropriar dos cânones do Belo para 
fornecer seus modelos aos artistas jovens." Entretanto, sob a influência 
das viagens à Itália e da constituição da estética como concepção geral da 
arte em detrimento dos discursos especializados anteriores, o século XVIII 
forjou a ideia de que a arte deve servir para divulgar a educação e, por 
conseguinte, prossegue o desígnio de colocar à disposição, de forma 
cômoda e sistemática, seus exemplos mais belos. Os projetos de cópia, 
em mosaico, das Stanze do Vaticano definiam implicitamente a noção de 
"responsabilidade coletiva na conservação"46. Em seu livro Réflexions cri-
tiques sur les différentes écoles de peinture (1752), Boyer d'Argens sugeria 
tal iniciativa e acrescentava: "Os custos seriam consideráveis: mas todas 
as nações que se vangloriam de seu apreço pelas artes deveriam contribuir 
para essa operação". O presidente do parlamento da Borgonha, Ch. de 
Brosses — autor de Lettres écrites "-alie, que relatam uma viagem à Itália 
(1739-1740) —, chegou a imaginar o estabelecimento em Versalhes de 
um museu de cópias, julgando que "seria uma despesa digna do Rei se 
ele contratasse operários para executar, em uma das amplas galerias, em 
Versalhes, os grandes afrescos de Rafael". 
44. Jacques Guillerme, "La Naissance du sentiment de responsabilité collective dans la 
conservation", in Gazette des Beaux-Arts, vol. 65, 1965. 
45. Francis Haskell e Nicholas Penny, Pour l'Amour de l'antique, Paris: Hachette, 1988. 
46. Jacques Guillerme, "Monument/monumentalité: De la Plénitude des symboles à la 
fascination du vide", preâmbulo de Marilu Cantelli, L'Illusion monumentale, Liège: 
Mardaga, 1991, p. 7-13. 
60 
A expressão mais nítida dessas exigências foi apresentada por J. J. 
de Lalande, que, em um livro sobre sua estada na Itália, escreveu 
o seguinte: "A manutenção desses monumentos, assim como o respeito 
que lhes é devido, nada tem a ver com algum preconceito, convenção 
ou interesse. A Filosofia e a Política devem levar-nos a conservar os 
monumentos dos homens ilustres, como um germe para produzir ou-
tros: aliás, deve-se perpetuar a lembrança dos Impérios que ocuparam 
a terra; seus progressos e sua queda são uma lição para nós. [...] Seria 
uma magnificência bem digna de um grande Rei e de um Estado po-
deroso se eles mandassem construir propositalmente uma vasta galeria 
para reunir as cópias, em mosaico, dos afrescos mais famosos que se 
encontram na Itália [...], distribuindo-os em boa ordem e de forma 
atraente no meio de uma esplendorosa arquitetura."47 O expediente da 
cópia correspondia a um sonho de ubiquidade das obras-primas, assim 
como a um ideal de seriação de monumentos paradigmáticos para o 
uso não só dos estudantes das academias, mas também dos connaisseurs. 
O jardim e suas fabriques: uma melancolia cívica 
Do triplo ponto de vista — construção de monumentos "históri-
cos"; forma de organizar sua reunião; e, por último, seu comentário 
por um guia —, o jardim das ilusões era um dispositivo essencial do 
patrimônio imaginadopelo século XVIII. Perambulando por seus 
atalhos tortuosos, passa-se de continente em continente, ou de século 
em século. Um dos mais belos jardins ingleses é o de Milord Stowe, 
que contém o número expressivo de 38 monumentos: Templo de Vê-
nus e de Baco, pirâmides, igrejas góticas, etc. Ele é célebre na Europa 
inteira e, em um de seus livros, Rousseau serviu-se de M. de Wolmar, 
ao acompanhar Saint-Preux em seu pomar, para afirmar o seguinte: 
"O mestre e o criador desta sublime solidão mandou construir neste 
local até mesmo ruínas, templos, edifícios antigos; assim, os tempos 
47. J. J. Lefrançois de Lalande, Voyage d'un français en Italie, fait dans les années 1765 &tc
, 1769, p. 546, 571. 
61 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
e também os lugares são reunidos neste espaço com uma magnificência 
bem superior à da natureza humana."48 O passeio entre as fabriques, 
disseminadas no meio desses "territórios" [pays], convidava o espectador 
a uma exploração dos lugares e dos tempos. Essa moda — criticada, 
em parte, no final do século — pretendeu "elaborar a maior variedade 
possível de construções à força de amontoar, em um espaço reduzido, 
as produções de todos os climas e os monumentos de todos os séculos, 
ou concentrar em um recinto fechado, por assim dizer, o universo 
inteiro".49 Assim, o jardim do século XVIII inscrevia-se em uma longa 
tradição do espaço da coleção e da exposição, entre Éden e Jerusalém 
Celestial ou Utopia." 
"Fabrique" significava, ainda em 1756, na definição de Watelet 
para a Encyclopédie: "Qualquer construção que se identifica por sua 
representação." No entanto, rapidamente o termo acabou por designar 
uma pequena construção erguida em um jardim, evolução de sentido 
que esclarece a concepção dos parques em que a Natureza era con-
figurada de acordo com Le Lorrain, Ruysdaël e Vernet.51 Para Dora 
Wiebenson, as origens do Bosque dos Túmulos [Bois des Tombeaux], 
cujas imagens são numerosas, mesmo antes de 1780 (Île des Tombeaux, 
nos jardins de Bagatelle, em Paris; Vallée des Tombeaux, em Betz, perto 
de Ermenonville, no norte da Bacia Parisiense), encontravam-se nas 
publicações de ornamentos arquiteturais de Delafosse, Le Geay e 
Cuvilliès, editadas no final da década de 1760. "A vulgarização de 
uma noção de estudo relativa a estilos históricos de ornamento para 
a ampliação do número dos modelos à disposição dos artistas poderia 
ter começado com a obra Recueil d'antiquités, do conde de Caylus, 
48. Rousseau, Julie ou La Nouvelle Héloïse, 1761, 4' parte, carta XI, Paris: Garnier/ 
Flammarion, p. 363. 
49. René-Louis de Girardin, De la Composition des paysages, ou des moyens d'embellir la 
nature autour des habitations, en joignant l'agréable à l'utile (Genebra, 1777), Paris: 
Champ Urbain, 1980, p. 20. 
50. Cf., em uma abundante literatura, a síntese recente de Maria Clara Ruggieri Tricoli, 
Il Richiamo dell'Eden: Dal collezionismo naturalistico all'esposizione museale, Florença: 
Vallecchi, 2004. 
51. Monique Mosser, Jardins en France Ie760-1820, Paris: CNMHS, 1977, p. 21-24; 
"Des jardins", in Revue de l'Art, n. 129, 2000. 
62 
coletânea publicada a partir de 1752 com essa intenção. A origem 
derradeira desse interesse pelos estilos históricos e exóticos é, certa-
mente, o Entwurff einer historischen Architectur, do arquiteto e escultor 
austríaco J. B. Fischer von Erlach, publicado em 1721." 
A porta chinesa, a tenda turca e até mesmo as ruínas góticas no 
parque Monceau, em Paris, foram concebidas de acordo com essa 
tradição baseada em uma apresentação compreensiva da arquitetura 
do passado e de países longínquos, mesmo que, "a partir da década 
de 1770, essas estruturas exóticas sejam mostradas não tanto como 
a exposição engenhosa de conhecimentos acumulados, mas com um 
espírito de deleite que inclui, em parte, o desejo ardente por aventuras 
e por viagens em países fantásticos, em tempos e lugares longínquos".52 
O acúmulo de monumentos expostos no jardim mostrava, de qualquer 
modo, uma "imagem mundial" que, segundo os casos, trazia a marca dos 
conhecimentos geográficos ou limitava-se aos grandes impérios, cuja exis-
tência era reconhecida pela historiografia tradicional, particularmente 
maçônica. Os jardins organizavam uma encenação de acordo com 
as recomendações dos guias: o do duque D'Harcourt, por exemplo, 
prescrevia "a ordenação dos diferentes elementos de forma apropriada". 
Devia-se dispor, de acordo com o resumo do historiador da arte Jurgis 
Baltrusaitis, "pinheiros e carvalhos druídicos em torno dos edifícios 
góticos; palmeiras à volta de quiosques muçulmanos; salgueiros, 
espelhos de água e rochedos em torno dos pavilhões chineses"." Em 
suma, o jardim fornecia uma moldura bem definida para cada tipo de 
monumento, à maneira de uma museografia do contexto. 
A disposição geral dos jardins, a situação das fabriques, a localização 
dos cursos de água e a orientação espacial correspondiam às preocupa-
ções dos grandes tratados de pintura, em particular o de Roger de Piles, 
e incluindo a obra de A. de Laborde, Description des nouveaux jardins 
de France et de ses anciens châteaux, publicada em 1808 (conhecida por 
"Laborde", por descrever admiravelmente os jardins de seu tempo). Por 
sua vez, René-Louis de Girardin organizou o passeio como se tratasse 
52. "Le parc Monceau et ses fabriques", in Monuments Historiques, n. 5, 1976, p. 18. 
53. Jurgis Baltrusaitis, "Jardins et pays d'illusions", in Traverses, n. 5-6, 1976, p. 94-119. 
63 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
do percurso de uma galeria, passando dos quadros pequenos de cavalete 
para o quadro principal do ateliê. Ele delineou um "atalho dos pintores", 
evocado pelo livro Itinéraire des jardins d'Ermenonville, nestes termos: 
"Ao ter o ardente anseio de seguir as pegadas dos grandes mestres, o 
jovem estudante encontrará, em cada etapa desse atalho, matéria para 
aprofundar seus estudos e ficar cada vez mais próximo de seu objetivo; 
e o artista já consagrado poderá estudar as formas mais bem-sucedidas, 
variadas e pitorescas dos zimbros — aliás, os mais belos, e em maior 
quantidade, são encontrados apenas nesse atalho."" Em várias oportuni-
dades, ele insistia sobre a noção — pictural — da unidade do conjunto 
e a ligação das relações sobre os símbolos, as associações de ideias, as 
lembranças, as imagens, que, balizando o passeio, "se destacam suces-
sivamente". Ele chegou até mesmo a escrever em maiúsculas: "QUE 
TUDO ESTEJA JUNTO E QUE TUDO ESTEJA LIGADO." O jardim exigia, por 
conseguinte, um mirante do qual fosse possível abranger, uma após a 
outra, as diferentes perspectivas. 
Em sua obra sobre o jardim de Monceau (1779), o arquiteto-
-paisagista L. de Carmontelle representava, na planta, todas as cenas 
— tenda tártara, leiteria, tendas turcas, moinho de vento holandês, 
pavilhão chinês, castelo gótico em ruínas, minarete, rochedo — com 
a indicação do respectivo mirante para cada uma." Assim, a história 
oferecida pelo jardim a seus visitantes estava orientada pelas leis da ence-
nação. O projeto (1780) de Francesco Bettini para o jardim de Dolfino, 
embaixador de Veneza na França, continha uma semiologia rigorosa do 
monumento funerário. Assim, a Ilha dos Túmulos devia inspirar três 
tipos de sentimentos fúnebres: a lembrança agradável, a dor e a memória 
de uma ação heroica, graças a uma disposição perfeita das fabriques. 
"Tratando-se de perpetuar uma lembrança agradável, esse monumento 
deve ser colocado sobre uma linda coluna decorada com ramalhetes de 
rosas, jasmins, sarmentos de vinha, em posição ascendente e que virão 
fazer-lhe sombra em guirlanda. Os ramalhetes da dor hão de esconder-se 
54. René-Louis de Girardin, op. cit. 
55. David Hays, "Carmontelle's Design for the Jardin de Monceau", in Eighteenth-Century 
Studies, vol. 32, ri. 4, Verão 1999, p. 447-462. 
64 
modestamente em uma ranhura no meio da sombra de um espesso 
ramalhete de teixos, ciprestes, salgueiros chorões,oliveiras... Quando 
se trata de celebrar uma ação heroica, deve-se colocá-los no meio 
de um ramalhete de ciprestes ou de carvalhos verdes, além de plantar 
loureiros em torno do monumento, localizado na convergência de 
todos os caminhos."" O jardim era um acúmulo de monumentos 
repletos de significações demonstrativas, à imagem das vinhetas da 
Encyclopédie.57 
Em 1820, em seu livro L'Abeille des Jardins, J.-P. Brès propunha 
um jardim "fantástico" em que diversos terrenos, no meio de um lago, 
apresentariam um resumo dos quatro cantos do planeta. Um "jardim 
cronológico" permitia remontar o tempo, através de pirâmides, restos 
de obeliscos, urnas funerárias, múmias e esfinges, colunas gregas e ruínas de 
templos, monumentos romanos e judaicos, no centro, chineses — "por-
que os chineses estão convencidos de serem o centro do mundo" — e, 
por último, dolmens e outras pedras oscilantes. O jardim de Tourves 
(no departamento de Var, litoral da Provence), criado entre 1767 e 
1777, ilustrava um curso de filosofia inscrito na geografia simbólica 
das implantações de fabriques, na toponímia e nos epitáfios imagi-
nários." A leiteria, situada no início do circuito, apresentava várias 
características do "gabinete de reflexão" iniciático, muito apreciado 
nos cenáculos maçônicos." O jardim é, também, exemplar da relação 
ambígua, para não dizer equivocada, das fabriques com as ruínas au-
tênticas, já que a cópia de um cibório gótico, executada pela fábrica de 
Vacherie, é considerada como um original e gravada como tal no livro 
de Millin, Voyage dans les de'partements du Midi de la France (5 vols., 
Paris, 1807-1811). 
56. Jurgis Baltrusaitis, op. cit. 
57. Madeleine Pinault, "Diderot et les illustrateurs de l'Encyclopédie", in Revue de l'Art, 
vol. 66, 1984, p. 17-38. 
58. Serge Conard, "Tourves, fabrique et géometrie", in Monuments Historiques, vol. 5, 
1976, p. 46-48. 
59. Sobre este tema, cf. Magnus Olausson, "Freemasonry, Occultism, and the Picturesque 
Garden towards the End of the Eighteenth Century", in Art History, vol. 8, dez. 
1985, p. 413-433. 
65 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
Tal confusão é tanto mais notável visto que a arte da Idade Média, 
de maneira geral sinônimo de ridículo e de mau gosto, foi reconhecida 
apenas na decoração dos jardins.60 Nesse espaço, as fabriques góticas 
podem estar misturadas aos edifícios "clóricos" (principalmente a partir 
do modelo dos templos gregos de Pesto, antiga cidade da Itália) ou 
chineses a fim de diversificar o pitoresco da paisagem ou contribuir 
para uma estética das ruínas.61 Se, em meados do século, Pierre Patte 
deplorava "o ridículo e o grotesco das proporções" da ordem gótica 
(Discours sur l'architecture, 1754), Louis Sébastien Mercier, no final 
do século, descrevia a catedral Notre-Dame de Paris como um monu-
mento "amplo e melancólico", dotado de uma "iluminação tenebrosa" 
e de uma "engenhosidade ousada", lamentando que ele tenha perdido, 
no decorrer de um recente branqueamento, a "aparência venerável da 
Antiguidade"62. Os canteiros de obras de Sainte-Croix de Orléans e 
da Sainte-Chapelle de Paris manifestavam, por outro lado, a continui-
dade na indústria da construção [bâtiment]. No entanto, esse gosto do 
60. Esmond De Beer, "Gothic: Origin and Diffusion of the Term, the Idea of Style 
Architecture", in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XI, 1948. Para 
uma antologia do desdém em relação ao gótico, cf. P. Frankl, The Gothic: Literary 
Sources and Interpretations through Eigth Centuries, Princeton: Princeton University, 
1960, p. 370-414; W. Herrmann, Laugier and Eighteenth Century French Theory, 
Londres: Zwemmer, 1962, p. 235-236. 
61. O texto Mémoires sur l'ancienne chevalerie, do historiador e filólogo J.-B. de Lacurne 
Sainte-Palaye — lido na Academia entre 1744 e 1746, publicado em Mémoires de 
l'Académie des Inscriptions, em 1753, e reeditado, separadamente, a partir de 1756 -
serve de fundamento à crença favorável a respeito de uma Idade Média, cavalheiresca 
e sentimental, contrariamente à imagem pessimista dos filósofos. A moda chega ao 
teatro sobretudo com a revolução do cenário e figurinos "verdadeiros", lançada por 
Diderot e Marmontel, em torno de 1755; por sua vez, a propósito de Tancredo, 
Grimm fala dos "costumes patéticos" da cavalaria, em 1760. Tal moda é adotada 
pelos gravadores, no período compreendido entre 1775-1780, que começam a tratar 
a Idade Média à maneira romântica; os pintores da história acabaram por imitá-los, 
a partir do Salon de 1773 ( Mort de Saint Louis por Doyen). Em seu livro Génie du 
christianisme, Chateaubriand retomou esses lugares-comuns sentimentais ao citar, em 
particular, Sainte-Palaye, que escrevia: "O senhor Amanieu des Escas — ao deixar a 
mesa, no inverno ao lado de uma lareira bem quente, no salão totalmente coberto 
de esteiras —, tendo à sua volta os escudeiros, conversava com eles sobre armas e 
amor porque, em sua casa, todos, até mesmo os criados do mais baixo escalão, se 
interessavam pelo amor." 
62. L.-S. Mercier, Tableau de Paris, 1782, t. VII, cap. DLIV, "Notre-Dame", p. 71-73. 
66 
século XVIII crepuscular pela Idade Média — será que se pode falar 
de pré-romântico? — não chegou a estabelecer verdadeiras relações 
com o estudo erudito das antiguidades nacionais.° 
O classicismo tinha considerado os monumentos góticos como 
uma arquitetura de bárbaros, inspirada ora no desenho das florestas, 
ora em modelos islâmicos, mouriscos ou árabes; essa estranheza fun-
damental permitiria explicar tal "ridículo das proporções". Na segunda 
metade do século XVIII — e, em primeiro lugar, na Inglaterra —, a 
nova benevolência pela Idade Média vai basear-se no estranhamento 
que lhe é reconhecido em relação à "recusa de aceitar a arquitetura 
gótica na esferade uma civilização familiar" (J. Baltrusaitis). Aliás, os 
termos utilizados por Mona Ozouf para descrever a atitude das Luzes 
perante a festa popular poderiam ser aplicados, também, às reações 
diante do gótico: "Parece que, então, as pessoas dispõem apenas de 
duas linguagens: a da extravagância ou a da barbárie."" Em um caso, 
o gótico ofuscava a razão, enquanto no outro ele solicitava o interesse 
dos curiosos; mas, nas duas hipóteses, "sem enternecimento nem nostal-
gia". Nessa óptica, devemos entender que ele não alimentava a nostalgia 
modernista que conhecemos — a "tristeza sem objeto", a "repetição que 
deplora a inautenticidade de qualquer repetição" —, na busca utópica 
de um lugar original e autêntico, voltada "para um passado futuro"
65; 
limitava-se a ser uma das culturas longínquas, "primitivas", pelas quais 
o século nutria certa curiosidade. Em seu livro Génie du christianisme, 
Chateaubriand é um bom vulgarizador das teses precedentes: "A ordem 
gótica, no meio de suas proporções grosseiras, tem uma beleza, todavia, 
que lhe é particular. Julga-se que ela nos vem dos árabes, assim como a 
escultura do mesmo estilo. Sua afinidade com os monumentos do Egito 
nos levaria a acreditar, sobretudo, que ela nos teria sido transmitida pelos 
primeiros cristãos do Oriente; mas, ainda assim, preferimos relacionar 
63. Cf. o balanço apresentado por Jean Nayrolles, L'Invention de l'art roman à l'époque 
moderne (XVIII' XIXe siècles), Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2005, p. 56-71. 
64. Mona Ozouf, La Fête révolutionnaire, Paris: Gallimard, 1976, p. 9. 
65. Susan Stewart, On Longing: Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, 
the Collection, Durham: Duke University Press, 1993; Jean Starobinski, "Le concept 
de nostalgie", in Diogène, vol. 54, 1966, p. 93. 
67 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
sua origem com a natureza. Além de terem sido os primeiros templos 
da Divindade, as florestas suscitaram nos homens a primeira ideia da 
arquitetura."66 Em seu livro Recueil d'architecture (1829), Jean-Charles 
Krafft explicava, por sua vez, que o góticopodia ser utilizado em 
"construções pouco importantes em que a severidade dos princípios 
pode ser modificada e, sem consequências nefastas, prestar-se ao elã 
da imaginação". Entretempo, impôs-se a ideia de um valor da arte 
primitiva, mais apreciada que a dos civilizados; aliás, ela já havia sido 
defendida por Diderot. O gótico continuava parecendo realmente 
monstruoso, mas agora elogiava-se seu "caráter". 
No jardim com suas construções, o templo dos druidas, a torre 
feudal, a fachada gótica, o pavilhão chinês configuram outras tantas 
alegorias que, relativamente a qualquer monumento autêntico, repre- 
sentavam melhor os diversos períodos da história. Um monumento 
real é, de fato, um edifício particular que havia correspondido a uma 
encomenda ou a uma necessidade específica, segundo critérios bem 
definidos; por isso mesmo, limitado em suas ambições e em seu sucesso. 
Inversamente, as elites de então acalentavam o sonho de um monu-
mento que viesse a esboçar, seja uma época ou um mundo longínquo, 
de modo integral, para o futuro. Elas tinham, portanto, o projeto de 
edificá-lo: mais ou menos em ruínas, tais construções definiriam 
perfeitamente o patrimônio que, em seu entender, seria passível de 
ser reconhecido pela sociedade. Em sua obra Nouvelle Description des 
environs de Paris (1787), J.-A. Dulaure justificava os jardins do conde 
de Albon, perto de Paris, que constituíam uma espécie de panteão: 
aliás, na esteira de John Mac Manners, é possível se questionar se ele 
era dedicado à Liberdade ou à Ciência.67 Além de um obelisco em ho-
menagem à esposa e um templo para o Cristo moribundo, ele incluía 
estátuas de Haller, Mirabeau, o velho, Court de Gébelin, Franklin e 
Guilherme Tell. Em Ermenonville, o Templo da Filosofia Moderna, 
66. François René (visconde de Chateaubriand), Génie du christianisme (1802), Paris: 
Garnier-Flammarion, 1993, T. I, p. 400. 
67. John Mac Manners, Death and Enlightenment: Changing Attitudes to Death among 
Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University 
Press, 1981. 
68 
fabrique desenhada por volta de 1780, compunha-se de seis colunas 
de pé dedicadas a Newton, Descartes, Voltaire, Penn, Montesquieu e 
Rousseau, além de outras três ainda no chão, destinadas de antemão 
aos filósofos dos séculos vindouros. Em última instância, tratava-se 
realmente de enfatizar o valor da humanidade em geral. Tal foi o caso 
relativo a Newton, cujo cenotáfio elaborado por Gay — 1º prêmio do 
concurso de emulação de 21 de novembro de 1800 —, compreendia 
a reprodução das obras completas desse gênio em placas de mármore: 
"Trata-se de um cenotáfio em homenagem a Newton e ao mesmo 
tempo de um Templo da Natureza, de um memorial pessoal e de um 
museu de astronomia".68 O projeto do museu-memorial dedicado a 
Nicolas Poussin — cuja obra havia influenciado a pintura clássica dos 
séculos XVII e XVIII — baseou-se nos mesmos princípios.69 
A abundância das inscrições fictícias nos jardins não chegou a 
contradizer esse projeto: longe de ser entendido como um conjunto de 
indícios particulares, ela operou em favor da generalidade das correspon-
dências. Ao descrever o discurso das fabriques no espaço do jardim, Jean 
Starobinski constatava que, "neste território, cuja intenção consistiria 
em reunir tudo, tudo é menos presente que representado; ainda melhor, 
tudo é menos representado que rememorado [...]. A arquitetura das 
fabriques [...] eterniza figuras queridas ou nomes gloriosos. Não seria 
mais verdadeiro afirmar que ela instaura ausências a fim de suscitar em 
melhores condições, a seu respeito, a memória fervorosa, a saudade e a 
68. Mémoire sur le remplacement de la Bastille et divers projets pour l'Arsenal joint aux plans 
et élévations d'une place nationale à la gloire de la liberté présentés à lAssemblée nationale
. Sobre o tema geral, cf. Alfred Neumeyer, "Monuments to 'genius' in German 
Classicism", in Journal of the Warburg Institute, II, 2, 1938, p. 159-163. 
69. Projeto pelo arquiteto Harou de um sacellum [capela) perto de Les Andelys — cidade 
natal de N. Poussin —, publicado em Journal des Bâtiments Civils..., n. 188, 29 de 
prairial do ano X, p. 466-467. Cf. ainda J.-G. Legrand, "Monument à consacrer 
au Poussin", in Journal des Arts, des Sciences et de Littérature, n. 77, 25 de thermidor 
do ano VIII (13 de agosto de 1800), p. 78. "Ele desejava e merecia viver entre os 
pastores, na feliz Arcádia, e quando ele gravava estas palavras sensíveis, quem pode 
duvidar que sua alma emocionada não tenha formulado este desejo: Que eu possa, 
um dia, em campos tão tranquilos, obter um túmulo semelhante!" Sobre o assunto, 
cf. Margaret Fields Denton, "Death in Frendi Arcady: Nicolas Poussin's the Arcadian 
Shepherds and Burial Reform in France c. 1800", in Eighteenth-Century Studies, vol. 
36, n. 2, 2003, p. 195-216. 
69 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
suave melancolia? Ausência ou, por trás dos túmulos fictícios, simula-
cro de ausência; assim, trata-se de uma dupla ausência."" Esses Elísios 
— "distância entre Éden e Paraíso, entre terra e sombras pagãs"71 - 
encarnavam uma reflexão do século sobre a lembrança e o monumento, 
a história de um país e a leitura dos epitáfios." Essa representação 
de um território prolixo reencontrava o sonho de cidades antigas em 
que as ruas e as praças seriam outras tantas mensagens dirigidas ao 
cidadão"; ela alimentava também o desejo de "hieróglifos", como se 
dizia frequentemente na época, do gosto e do saber. 
A Revolução — do cidadão Verhelst74 ao barão de Norvins, pas-
sando pelo Élysée, segundo o projeto de Alexandre Lenoir — deu 
lugar a um grande número de jardins históricos, ao mesmo tempo 
Panteão, Museu, Campo Santo e escola de civismo. Deste ponto de 
vista, o pitoresco didático orientou-se por uma "melancolia cívica", 
tanto mais que o século XVIII havia insistido grandemente sobre as 
relações entre a alma melancólica e a virtude cívica; nesse caso, a Ingla-
terra representou — e, de maneira geral, os países nórdicos da Europa 
— a terra da liberdade e do spleen. Na sequência, sob a Revolução, 
a aliança entre a desconfiança e o republicanismo passou a ser uma 
evidência; e, em 1800, em sua reflexão sobre a literatura considerada 
em suas relações com as instituições sociais, a escritora Madame de Staël 
tornou-se a intérprete da opinião comum segundo a qual a liberdade 
e a virtude exigiam a meditação que leva à melancolia." 
70. Jean Starobinski, Ie789: Les Emblèmes de la raison, Paris: Flammarion, 1973, p. 196. 
71. Louis Marin, "L'effet Sharawadgi ou le jardin de Julie", in Traverses, n. 5-6, 1976, p. 116. 
72. Lionello Sozzi, "I Sepolcri e le discussioni sulle tombe negli anni dei Direttorio e 
dei Consolato", in Giornale Storico della Letteratura Italiana, vol. 44, n. 8, 1967, 
p. 567-588. 
73. Sobre o termo "cidadão", cf. Raymonde Monnier, Républicanisme, patriotisme et 
Révolution Française, Paris: L'Harmattan, 2005, p. 93-122 ("Être citoyen sous la 
Révolution") e p. 233-258 ("Le patriotisme des Lumières à la Révolution"). 
74. Plan allégorique d'un jardin de la Révolution Française et des vertus républicaines pelo 
cidadão Verhelst, em 13 de agosto de 1793. 
75. Cf. a demonstração de Eric Gidal, "Civic Melancholy: English Gloom and French 
Enlightenment", in Eighteenth-Century Studies, vol. 37, n. 1, 2003, p. 23-45. 
70 
As provas da história 
Na época clássica, o Dictionnaire de A. Furetière define a "História" 
como uma "narrativa feita com arte; descrição, narração consistente, 
ininterrupta e verdadeira dos fatos mais memoráveis e das ações mais 
célebres". Essa tradição prolongou-se amplamente pelo século XVIII, 
em que a erudição aparecia ainda como uma prática discreta, sem teo-
ria, enquanto o discurso era o monopólio do historiador, que podia 
escrever a história de uma nação ou de um reinado a partir de um pe-
queno corpus de textos publicadose das histórias de seus predecessores. 
O "gênero" da história da França parecia, assim, desprovido grande-
mente daquilo que, em nosso entender, faz a especificidade do ofício 
de historiador." Certamente, as querelas jansenistas atribuíram uma 
importância sem precedentes ao debate sobre os direitos históricos da 
monarquia." Mas, fato significativo, Jacob-Nicolas Moreau — conser-
vador do Dêpot des Chartes [Arquivo de documentos, especialmente da 
Idade Média] — não levou em consideração os documentos inéditos 
em seu Discours sur l'histoire de France (21 vols., 1777-1779): ele não 
fez qualquer menção ao trabalho de coleta das legislações para a refle-
xão do cargo, de acordo com a tradição dos antigos legistas." Como 
foi mostrado por Arnaldo Momigliano, a verdadeira preocupação do 
historiador, tal como ela é vislumbrada desde o século XIX, era então 
apanágio dos antiquários e dos colecionadores de gabinetes históricos." 
76. François Furet, "L'ensemble histoire", in Livre et société dans la France du XVIII 
siècle, Paris/La Haye: Mouton, 1965-1970, II, p. 97-110; Philippe Ariès, Le Temps 
de l'histoire (Ie954), Paris: Le Seuil, 1986, p. 158-160; Suzanne Gearhart, The Open 
Boundary of History and Fiction: A Criticai Approach to the French Enlightenment, 
Princeton: Princeton University Press, 1984, cap. 2. 
77. Catherine Maire, De la Cause de Dieu à la cause de la nation: Le Jansénisme au XVIII' 
siècle, Paris: Gallimard, 1998; Dale van Kley, Les Origens religieuses de la Révolution 
Française 1560-Ie791, Paris: Le Seuil, 2002. 
78. Dieter Gembicki, Histoire et politique à la fin de l'Ancien Régime: Jacob-Nicolas Moreau, 
Paris: Nizet, 1979; Blandine Barret-Kriegel, Les historiem et la monarchie, I: Jean 
Mabillon, Paris: PUF, 1988, p. 215-267. 
79. Arnaldo Momigliano, Problèmes d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Galli-
mard, 1983. 
71 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
O primeiro "curioso" com a pretensão de reunir as antiguidades fran-
cesas foi, sem dúvida, Fabri de Peiresc (1580-1637); o segundo nome 
mais importante é o de Roger de Gaignières — uma célebre descrição 
de seu gabinete foi elaborada por Germain Brice.80 Além disso, foi a 
partir de coleções que o século XVII criou a diplomática, ou seja, a 
ciência da história e das diversas formas dos documentos legais e admi-
nistrativos, com a redação de catálogos descritivos (o do beneditino 
J. Mabillon e o de Ch. du Fresne, senhor Du Cange); ou a numismática, 
com Ezechiel Spanheim, Jacob Spon e Patin; finalmente, a "leitura 
dos velhos romances" com Jean Chatelain. Em grande parte, o século 
XVIII desenvolveu e aprofundou, de um ponto de vista científico, os 
métodos e as investigações do século XVII: esse foi o caso, em parti-
cular, da erudição beneditina.81 
80. "Além dos desenhos dos túmulos mais notáveis, o mesmo gabinete fornece os vitrais 
das mais belas igrejas da França, cujas cores foram copiadas com toda a fidelidade 
[...] ninguém, até aqui, tinha dado conta disso; aliás, ao prestar mais atenção, tal 
procura tem grande utilidade para as genealogias e para as fundações E...] Mas um dos 
aspectos mais singulares e mais raros, de acordo com um grande número de pessoas, 
é a coletânea de todas as modalidades de vestir, na corte e na cidade, utilizadas na 
França, desde o reino de São Luís até o presente, para toda a espécie de pessoas, até 
os serviçais, extraídas de diversas pinturas antigas com o maior esmero." (Germain 
Brice, Description de la ville de Paris, Paris, 1713, t. III, p. 116.) 
81. É difícil avaliar a repercussão real do estudo das antiguidades nacionais na elite culta 
do século XVII. Alguns indícios levam a pensar que os eruditos operavam, para não 
dizer na indiferença, pelo menos em um desinteresse bastante generalizado: essa é a 
tese do fracasso da erudição que Blandine Kriegel defende em Les Historiens et la mo-
narchie, II: La Défaite de l'érudition, Paris: PUF, 1988. Por ocasião do óbito de R. de 
Gaignières, em 1715, suas coleções — legadas por ele ao rei — foram desfeitas; em um 
milhar de pinturas, Luís XIV conservou apenas o retrato de João, o Bom. Os outros 
quadros foram leiloados: o Charles VII, de Jean Fouquet, que formava um lote com 
um retrato de Maria d'Anjou, foi adquirido por apenas 3 libras e 14 cêntimos. 
Os desenhos dos túmulos do acervo de Gaignières foram publicados por Jean Adhémar 
em Gazette des Beaux-Arts; do mesmo modo, as grandes publicações de documentos, 
lançadas pelos beneditinos ou com sua colaboração, soçobraram, quase sempre, antes 
de atingirem seu termo, até mesmo antes do 1º volume. Esse foi o caso de L'Histoire 
littéraire de Dom Rivet; de Monasticon Gallinacum (1694) de Dom Michel Germain, 
que permaneceu, até 1871 (org. L. Delisle), manuscrito com suas 150 gravuras; ou as 
compilações do gabinete dos documentos de Jacob-Nicolas Moreau. Para as aparições e 
os usos do termo "antiguidade", assim como para a história da expressão "Idade Média", 
cf. Jurgen Voss, Das Mittelalter im historischen Denken Frankreichs: Untersuchungen zur 
Geschichte des Mittelalterbegriffs und der Mittelalterbewertung von der zweiten Hãle des 
16 bis zur Mitte des 19. Jhs, Munique: W. Fink, 1972, p. 73 ss. 
72 
Por sua vez, o rei fundou, em 1663, a Petite Academie, destinada 
a compor divisas, fabricar medalhas e proceder ao registro dos even-
tos mais importantes do reino. Reorganizada em 1701, ela passou 
a denominar-se, em 1716, Académie des Inscriptions et des Belles-Lettres
. A evolução de suas práticas culminou em dedicá-la à história, 
vocação homologada pelo novo regulamento de 1786; desde o final 
de 1724, um de seus integrantes — o oratoriano e escritor É.-L. de 
Foncemagne — anunciava sua intenção de despender todos os esforços 
da instituição na história da monarquia. Mas foi Camille Falconet 
quem lançou verdadeiramente um programa de trabalho, em um dis-
curso lido em 28 de janeiro de 1727, "Sur nos Premiers Traducteurs 
français avec un essai de Bibliothèque française": "Limitem-se a levar 
em consideração o campo que é a Pátria, e hão de verificar que ela é 
ainda mais ampla para exercer os talentos dos senhores e desenvolver 
em tal trabalho seus conhecimentos [...1. Por que sentir desdém por 
nós mesmos em vez de adotarmos o exemplo dos gregos e romanos em 
relação ao que fizeram por eles mesmos? Cientistas de outras Nações 
que se reconhecem inferiores à Nação Francesa consideraram de forma 
mais nobre seus próprios países." Após a longa enumeração dos traba-
lhos a empreender, sua conclusão fazia um apelo para o estudo de tudo 
o que se presta a "lisonjear a curiosidade de um francês que faz algum 
caso ao que diz respeito à nação e à sua pátria. Como isso é útil para 
a Pátria! Que penhor de glória para os senhores". Mas, no decorrer do 
século XVIII, as antiguidades nacionais suscitaram o interesse apenas de 
um reduzido círculo de grandes trabalhadores, no essencial magistrados, 
amigos ou ex-alunos de Falconet — por exemplo, Sainte-Palaye" 
82. O próprio Falconet empreendeu a elaboração do Dictionnaire géographique, em 
colaboração com Sainte-Palaye: este redigiu o glossário, a história dos trovadores e o 
Dictionnaire des antiquités françoises, que, por sua vez, repertoriava as obras publicadas 
sobre os usos e costumes, além das leis. Rigoley de Juvigny, com a colaboração de 
Foncemagne, Sainte-Palaye e Bréquigny, editou a Bibliothèque françoise (1772-1773). 
Por último, a Academia instituiu prêmios sobre o tema do estabelecimento da religião 
na Gália e sobre o progresso das artes e das ciências, depois de Carlos Magno; as dis-
sertações produzidas foram utilizadas pelo historiador L.-P. Anquetil, em 1797, para 
esboçar um panorama das artes e das ciências na Idade Média, que foi apresentado 
à nova "Academia das Ciências Morais e Políticas" do Institut de France (cf. Lionel 
Gossman, Medievalism and the Ideology of the Enlightenment, Baltimore, 1968). 
73 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIONO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
considerando que as pessoas de gosto haviam conservado uma imagem 
negativa a respeito dos integrantes desse grupo. 
Em relação às fontes, o saber da época estabelecia a distinção entre 
antiguidades e monumentos.83 No início do século XIX, dois verbetes 
do Dictionnaire de Millin esclareciam retrospectivamente tal distinção 
fundamental, no momento em que ela estava periclitante. Eis como foi 
definida no verbete "Arqueologia": "A ciência dos usos e costumes dos 
antigos. A dos monumentos antigos é uma de suas partes essenciais; é 
possível considerá-los na acepção mais especial da palavra, ou seja, no 
sentido em que eles servem para conservar a memória dos aconteci-
mentos e das pessoas; ou como obras de arte, relativamente ao prazer 
inspirado por sua forma. Portanto, a ciência da Antiguidade pode 
ser abordada sob dois aspectos: é possível considerar os monumentos 
somente como tais e ter como objetivo unicamente estudar os usos e 
costumes, a constituição política, a teologia, as cerimônias religiosas, 
as leis, a segurança pública, a vida privada, etc., dos antigos. Então, os 
monumentos literários, tais como as obras dos autores, os documentos 
legais e administrativos, as inscrições; os monumentos da arte, tais 
como os restos da arquitetura, escultura, pintura, glíptica, numis-
mática, etc.; e os monumentos mecânicos, tais como os utensílios, as 
armas, etc.; são igualmente importantes, afinal, eles servem apenas 
para explicar os usos e costumes dos antigos. Esta parte da ciência 
é designada comumente por antiguidades, e o nome de antiquário é 
atribuído àquele que a possui. Em seguida, pode-se considerar, sob uma 
relação particular, os monumentos cujo único interesse tem a ver com 
o fato de serem obras das belas-artes. Eles podem ser abordados como 
De maneira geral, sobre a elaboração da história literária, cf. o trabalho inacabado de 
Claude Cristin, Aux Origines de l'histoire littéraire, Grenoble: Presses Universitaires 
de Grenoble, 1873; e Luc Fraisse, Les fondements de l'histoire littéraire: De Saint-René 
Taillandier à Lanson, Paris: Champion, 2002, estudo que começa em 1733 e inclui 
uma análise de Histoire littéraire "alie de Pierre-Louis Guingené (1811-1819). 
Para a relação desses ensaios com as coleçóes, cf. Neil Kenny, "Books in space and 
time: Bibliomania and early modern histories of learning and literature in France", 
in Modern, Language, Quarterly, 61, 2, 2000, p. 253-286. 
83. Peter Burke, "Images as Evidente in Seventeenth-Century Europe", in Journal o fthe 
History of Ideas, 2003, p. 273-296. 
amador, quando se procura apenas o prazer de contemplar o que é belo; 
ou como artista, para aprimorar sua instrução e seu gosto; ou, por úl-
timo, como um connaisseur, que, além dos dois objetivos precedentes, 
tem o propósito de apreciar o assunto, a ideia, o espírito, o estilo, a exe-
cução dos monumentos, de interpretá-los, conhecer seus autores e des-
cobrir sua história. A ciência que se interessa, assim, pelas obras de arte 
entre os monumentos antigos é chamada arqueologia. Como é costume 
atribuir o nome de antiguidades às obras de arte entre os monumentos 
da Antiguidade, o estudo dessas obras designa-se também por arqueo-
logia. Aquele que possui tal ciência não deve ser confundido com quem 
é apenas antiquário [...]. Portanto, essa ciência deveria interessar-se em 
geral por monumentos de toda a Antiguidade que chegaram até nós. 
Essa ampla extensão fez com que tivesse sido estabelecido um número 
de antiguidades e arqueologias tão grande quanto o de povos antigos. 
Entretanto, como numerosas nações antigas não se distinguiram na 
arte e, por conseguinte, seus monumentos não merecem ser analisados 
nesse aspecto, a arqueologia, habitualmente, trata apenas das obras 
conservadas por quatro nações: Egito, Grécia, Etrúria (atual Toscana, na 
Itália) e Roma. Em seu sentido estrito, a arqueologia designa, portanto, 
o conhecimento dos monumentos artísticos desses quatro povos."84 
Nessas condições, concebe-se a profunda indignidade do estudo 
dos monumentos franceses. Em sua obra Monuments de la monarchie 
française, publicada entre 1729 e 1733, o beneditino B. de Montfaucon 
multiplicava, assim, justificativas e precauções oratórias, chegando 
mesmo a escrever na apresentação: "Falou-se tanto dos gregos e dos ro-
manos que é perfeitamente razoável prestar alguma atenção ao que nos 
toca de perto sem receio de perder o caráter da venerável antiguidade." 
Além de qualificar os monumentos como testemunhas dos "tempos de 
ignorância", Montfaucon acrescentava que "seu aspecto grosseiro fez 
com que nossos antepassados, sem conhecimento da importância desses 
monumentos, tivessem permitido o desaparecimento da maior parte 
deles. Foi apenas nos últimos tempos que houve quem se apercebesse 
de que, por mais grosseiros que sejam, tais monumentos instruem 
84. Aubin-Louis Millin, Dictionnaire des beaux-arts, 1806, p. 51. 
74 75 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
sobre inúmeros aspectos que não podem ser encontrados alhures: esse 
gosto diferenciado pela escultura e pela pintura, em diversos séculos, 
pode mesmo [grifo de Dominique Poulo- t] ser contado entre os fatos 
históricos". Este beneditino tinha publicado, em 1719, o primeiro dos 
quinze volumes de L'Antiquité expliquée, obra que pretendia relacionar 
a religião da Antiguidade greco-romana com os cultos de mistério de 
Isis, Átis e Mitra. Tal empreendimento de livraria fazia referência a 
obras medievais, mas para reconhecer nessa época outros tantos mo- 
numentos druídicos, até mesmo o paradigma dos hieróglifos egípcios, 
arguindo em favor de uma continuidade entre a Antiguidade e o cris-
tianismo, entre gregos ou romanos e celtas. Assim, nas coletâneas de 
monumentos gravados, Montfaucon reconhecia plenamente a Idade 
Média, mas em nome da Antiguidade "nobre". Um passado longínquo 
e prestigioso (o Egito como origem do mundo) justificava o estudo 
das Antiguidades da França. Em compensação, na nova coletânea, a 
motivação nacional, patriótica, era evidente: "Além de que o gosto e 
o engenho de tempos tão grosseiros são um espetáculo bastante diver-
tido, o interesse pela nação compensa, aqui, o prazer que poderia ser 
extraído de monumentos com maior elegância."" 
A metáfora da pedreira e do monumento erguido por um arquiteto 
percorreu, então, o intercâmbio entre eruditos e letrados, singularmente 
nos confrontos de caráter ideológico e pessoal. No momento em que 
Sainte-Palaye se apresentou à Academia contra um "verdadeiro" autor, os 
bons espíritos fizeram o seguinte comentário: "Eis uma forma de equi-
parar Mansart com quem, da pedreira, extraiu as pedras que serviram 
para construir Versalhes."" O princípio da divisão do trabalho continu-
ava ainda explícito em uma carta do ministro da Justiça, A. Th. Hue de 
Miromesnil, para o intendente da Guiana (1783): "Esses numerosos 
volumes in-fólio que, até aqui, têm sido preparados pela Congregação 
Beneditina de Saint-Maur sobre um grande número de províncias, tais 
como a Bretanha, o Languedoc e a Borgonha, devem ser considerados não 
85. "Prospectus", in L'Antiquité expliquée, I, Paris: Compagnie de Librairies, 1716. [N.T.] 
86. Apud Lionel Gossman, op. cit., p. 103. [Jules Hardouin-Mansart (1646-1708), foi 
o primeiro arquiteto de Luís XIV, que realizou a ampliação do Palácio de Versalhes 
(Galeria dos Espelhos e Capela). (N.T.)] 
76 
tanto como verdadeiras histórias, mas como coletâneas imensas de todos 
os materiais que devem estar a serviço da história. Em decorrência de sua 
condição, os beneditinos, por mais eruditos que sejam, limitaram-se, pro-
positalmente ou por impossibilidade, a conhecer os monumentos: foram à 
sua procura, procederam à sua análise, emitiram juízos a seu respeito, tendo 
estabelecido a ordem dos fatos a partir do testemunho desses monumentos. 
Convém reconhecer que as pedras estão colocadas na ordem adequada, 
mas o acabamento do edifício exige algo maisque as mãos deles."" 
Essa tradicional oposição entre pedante e homem de gosto dupli-
cava-se de outra, não menos repisada, que separava o erudito do filó-
sofo. Para Diderot, em seu Salon de 1767, "Voltaire escreve a história 
como os grandes estatuários antigos faziam o busto [...], ele amplia, 
exagera e corrige as formas. Estará certo? Ou equivocado? Para o pe-
dante, ele equivoca-se, enquanto tem razão para o homem de gosto"." 
Certamente, inúmeros pontos de encontro entre defensores dos filó-
sofos e representantes da erudição "parlamentar" tornaram a oposição 
menos caricatural. No verbete "Erudição" da Encyclopédie, D'Alembert 
parece pretender colocar um termo a tal querela, reconhecendo que "o 
espírito filosófico encontra frequentes oportunidades de exercer-se nas 
matérias de erudição" (e, em primeiro lugar, sem dúvida, na crítica das 
fontes, segundo os critérios sugeridos por Bayle 89). Assim, esboçava-se 
o que Judith Shklar designou por "reabilitação da história"90. 
Bayle suscitava também a grande admiração de Denys-François 
Secousse, o mestre de Lacurne de Sainte-Palaye.91 Quanto a Voltaire, 
87. Cf. Dieter Gembicki, op. cit., p. 269-270. 
88. Em uma abundante literatura, cf. Matthew Anthony Fitzsimons, "Voltaire: History 
Unexemplary and en Philosophe", in The Review of Politics, vol. 40, n. 4, out. 1978, p. 
447-468; republicado em The Past Recaptured, Notre Dame: Notre Dame University, 
1983, p. 106-127. 
89. Pierre Bayle (1647-1706), escritor francês; sua crítica das superstições populares 
e seu monumental Dictionnaire historique et critique (1696-1697) anunciavam o 
pensamento filosófico do século XVIII. [N.T.] 
90. Judith Shklar, "Jean d'Alembert and the Rehabilitation of History", in Journal of the 
History of Ideas, vol. 42, 1981, p. 643-664. 
91. Jacob Soll, "Empirical History and the Transformation of Political Criticism in France 
from Bodin to Bayle", in Journal of the History of Ideas, vol. 64, n. 2, 2003, p. 297 ss. 
77 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
formado na esfera dos jesuítas, ele acompanhava as discussões da Académie 
 des Inscriptions, e seu respeito chegava a ponto de solicitar a 
Foncemagne para reler sua obra histórica antes da publicação. Em seu 
ensaio histórico, Le Siècle de Louis XIV (1751), ele não poupou elogios 
aos grandes eruditos, beneditinos ou jesuítas. Do mesmo modo, a pe-
dido dos espíritos cultos, D'Alembert vai interceder junto a Frederico II 
para obter informação sobre o manuscrito de J. Froissart, em Breslau. 
Os estudos historiográficos recentes convidam também a reconsiderar 
a análise tradicional ao suprimir as diferenças estabelecidas, de forma 
demasiado nítida até então, entre história filosófica e história erudita. 
"O erro seria acreditar", escreve Jean-Marie Goulemont, "que discurso 
sobre a história da Idade Clássica e novo discurso — ao sublinhar que 
as Luzes se haviam inspirado em ambos — seguem vias autônomas: 
um mantém-se em sua integridade primordial, ao passo que o outro 
adquire, aos poucos, sem deixar de ser de forma contínua, a coerência 
e a nitidez, aliás adotadas mais tarde em Esquisse d'un tableau historique 
des progrès de l'esprit humain."93. Ocorre que o século XVIII filosófico, 
em busca constante de um uso pedagógico da história, exasperava-se 
regularmente com as preocupações eruditas, a tal ponto que, em Émile, 
Rousseau escreve que "não sabemos tirar qualquer verdadeiro proveito 
da história; tudo é absorvido pela crítica de erudição; como se fosse 
muito importante constatar a veracidade de um fato com a condição de 
ser possível extrair dele uma instrução útil"94 A paixão pelo útil levou, 
inclusive, D'Alembert a "desejar que, em cada centenário, se fizesse um 
apanhado dos fatos históricos realmente úteis e que o resto fosse quei-
mado" (Réflexions sur l'histoire). Assim, o gosto e a utilidade convergiam 
para julgar que a Idade Média merecia apenas um resumo cronológico 
que, sucintamente, colocasse em ordem esse caos "em que a barbárie, a 
ignorância e a superstição cobriam a face do mundo" (Essai sur les moeurs ). 
92. Jean Froissart (c. 1337-c. 1405), um dos mais importantes cronistas da França medieval; 
seus textos foram considerados como a expressão mais significativa do renascimento 
cavalheiresco, ocorrido na França e na Inglaterra durante o século XIV. (N.T.] 
93. Jean-Marie Goulemot, Discours, histoire et révolution, Paris: UGE, 1975, p. 482. 
94. Cf. o verbete "Histoire", p. 407-411 de Raymond Trousson e Frédéric S. Eigeldinger 
(orgs.), Dictionnaire de Jean-Jacques Rousseau, Paris: Champion, 1996. 
78 
Desse modo, o prestígio dos indícios do passado permaneceu precá-
rio no âmago da república das letras, em contraste com o culto votado 
aos textos clássicos, muito apreciados pelo gosto universal. Numerosos 
bons espíritos deploravam o incrível caos em que haviam sido sub-
mersos pela sucessão dos séculos, oferecendo resistência em preencher 
sua memória com fatos já ocorridos, inúteis ao projeto da razão: um 
imaginário da saturação dominava sua perspectiva. Eles preferiam 
imaginar uma sociedade ideal em que, na sequência de uma seleção 
cuidadosa, subsistiria apenas um passado escolhido e meditado, digno 
do "nacionalismo da humanidade"" forjado pelo cosmopolitismo 
das Luzes. Quando, hoje em dia, pensamos espontaneamente o patri-
mônio em termos de conquistas a serem ampliadas, em vista de uma 
conservação cada vez mais completa e mais garantida dos restos mais 
rudimentares do passado, o século XVIII, fatigado com as trivialidades 
da história, considerava-o no âmbito de uma depuração negociada a ser 
empreendida. As testemunhas das origens eram as únicas que podiam 
ser legitimamente preservadas — de tal modo a época sonhava, natu-
ralmente, com os alicerces (com sua energia desaparecida que deve ser 
recuperada ou superada)96: assim, esboçava-se um programa de trabalho 
do historiador em forma de busca das prefigurações.97 
Pensar as antiguidades podia, então, culminar em uma modalidade de 
projeto político ou, pelo menos, de compromisso cívico. A reflexão 
de Joseph Addison (1672-1719) sobre a numismática — Dialogues 
upon the Usefulness of Ancient Medals (1721) — estabelecia, assim, a 
distinção entre a adequada apreciação da arte das moedas, elogiada pela 
virtude cívica e pela revolução financeira inglesa, e as manifestações de 
um saber pedantesco. O sentimento do objeto antigo tinha pouco a ver 
com a crítica das fontes e com a administração da prova: ele contribuía 
para elaborar um pensamento da coletividade e da atualidade em que 
95. Carleton J. Hayes, The Historical Evolution of Modern Nationalism, Nova York: 
Richard Smith, 1931, p. 13-17. 
96. Michel Delon, L'Idée d'énergie au tournant des Lumières (1770-1820), Paris: PUF, 
1988. 
97. Charles F. Millett, "Ancient historians and 'Enlightened' reviewers", in Review of 
Politics, vol. 21, n. 3, 1959, p. 550-565. 
79 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 
cada qual poderia tornar-se antiquário." Na França, a pesquisa histórica 
mais "esclarecida" menosprezava "a sucessão dos fatos relacionados com 
armas e guerras" (G. Bonnot de Mably) para se empenhar em desven- 
cilhar o emaranhado dos "princípios incontestáveis". A historiografia 
de H. Bouvainvilliers, J.-B. Du Bos e Ch. Montesquieu promoveu 
o debate da história da Gália com uma preocupação constante de 
rendimento imediato. Em suma, essa história tentava elaborar cená- 
rios a propósito de um processo marcado por uma longa decadência, 
mas que podia alimentar, simultaneamente, um esforço de memória: 
"O esquecimento não é, de modo algum, ignorância. Até mesmo 
esquecidas, as antigas noções de sociedade e de ordem devem ser não 
tanto inculcadas, mas reanimadas; a história é uma reminiscência."99 
Em meados do século, "fundamentalmente, a reconstituição da insti-
tuição original permanece o objetivoessencial da historiografia [...] 
A revelação de novos documentos, a nova interpretação atribuída, aqui 
e ali, a esta ou aquela ordenação régia, o que poderia ser designado 
como progresso da erudição, depende da dinâmica própria a essa re-
consideração periódica e não pode dissimular uma estabilidade legível 
para além das divergências de detalhe"100. 
O que considerávamos desde o Romantismo como um sentimento 
rudimentar do passado — a cor local, o pitoresco — não importava 
mais agora. L'Année littéraire elogiava, em 1765, une Histoire de la 
ville de Lille nos seguintes termos: "Não há lugar para confundir esta 
história com a maior parte daquelas narrativas, cujo único objeto é a 
cidade. O autor esboçou os costumes e o espírito dos homens; o que 
se torna interessante para todas as regiões." Desse modo, a maior parte 
das coletâneas de monumentos são estranhos ao gosto "filosófico". Por 
exemplo, como introdução à tradução bastante livre, elaborada pelo ge-
neral Pommereul, no ano VI, da obra do teórico neoclássico, Francesco 
Milizia, De l'Art de voir dans les beaux-arts, lê-se o seguinte: "Dispomos 
98. David Alvarez, "'Poetical Cash': Joseph Addison, Antiquarianism, and Aesthetic 
Value", in Eighteenth-Century Studies, vol. 38, n. 3, Primavera 2005, p. 509-531. 
99. François Furet e Mona Ozouf, "Mably et Boulainvilliers: Deux Légitimations histo- 
riques de la société française au in Annales ESC, 1979, p. 169-170. 
100. Jean-Marie Goulemot, op. cit., p. 427. 
80 
apenas de longas e insignificantes nomenclaturas sobre os monumentos 
das artes, em Paris e arredores; além disso, nem uma única linha para 
mostrar como observá-los com proveito e deleite." 101 
Em compensação, os princípios de J. J. Winckelmann parecem 
responder às exigências de uma história "filosófica" que menosprezaria 
os aspectos acessórios, de acordo com a tradição de Vasari, a propó-
sito dos artistas e das obras, para se dedicar a um quadro das relações 
entre arte e liberdade. "As artes associadas ao desenho começaram", 
escreve ele, "como todas as outras invenções humanas, pela estrita ne-
cessidade; em seguida, elas desejaram profundamente alcançar o belo. 
E depois, passaram ao excesso e ao desmesurado. Esses são os três pe-
ríodos principais. [...] Neste livro, vamos descrever, as artes do desenho 
tais como elas haviam sido em sua origem; e depois trataremos das 
diferentes matérias sobre as quais trabalharam os artistas e, em seguida, 
da influência dos climas sobre esses artistas." 10
2 
 Em Winckelmann, a 
erudição devia permitir sobretudo o acesso ao ideal grego, para além 
do tempo corrompido pelo mau gosto e pela servidão: nesse aspecto, 
ela estava a serviço de um desígnio de ruptura radical. Eis por que 
Lionel Gossman tem motivos para defender que o combate das Luzes 
contra a tradição e a história é compatível com a ideia de um retorno 
à história, depois de terem sido afastados seus aspectos malfazejos.103 
O contraste é considerável com o monumento erguido, simultanea-
mente, por Séroux d'Agincourt à história da arte, em sua "fraqueza" em 
relação aos tempos intermediários, apesar do caráter igualmente iniciador 
de seu empreendimento comparativo. Se o exercício do antiquário era 
praticamente similar nos dois casos, a obra winckelmanniana introduzia 
uma revolução de grande amplitude na implementação da documentação, 
101. Général Pommereul, De l'Art de voir dans les beaux-arts, traduit de l'italien de Milizia; 
suivi Des institutions propres à faire fleurir la France, et D'un état des objets d'art dont 
ses musées ont été enrichis par la guerre de la Liberté, Paris: Bernard, ano 6, 1798. 
102. Cf. as profissões de fé do conservador de museu Alexandre Lenoir, membro influente 
da Revolução Francesa: "O objeto de uma história ponderada da arte consiste em 
remontar até sua origem, acompanhar seus avanços e variações até sua perfeição, 
além de identificar sua decadência e queda até sua extinção" ( Musée, ano IX, p. 50). 
103. Lionel Gossman, "History as Decipherment: Romantic Historiography and the 
Discovery of the Order", in New Literary History, vol. 18, n. 1, 1986, p. 23-57. 
81 
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
das ficções e das convenções que a organizam. Em igualdade de circuns-
tâncias, o texto de Séroux — importa sublinhar —, na sequência de um 
processo de edição particularmente complexo, constituía sobretudo uma 
memória dos arquivos consultados ou elaborados — e de seu eventual 
desaparecimento. Uma ego-história, à mercê das notas esparsas do 
opus magnum dessa primeira história da arte, transpôs a Revolução: o 
manuscrito, terminado sob o Antigo Regime, foi publicado nos novos 
tempos, com a menção aqui e ali da diferença manifesta entre os dois 
mundos. A nota de rodapé tornou-se então o recurso pelo qual não só se 
fazia referência aos arquivos, à sua consulta ao acaso de visitas, descobertas 
inesperadas e salvamentos imprevistos, mais ou menos favorecidos pela 
sociabilidade do Antigo Regime mas também, finalmente, evocava-se 
a passagem dessa afinidade erudita para a proscrição de seus materiais. 
Em uma divagação sobre o castelo de Verger, na província de 
Anjou, Séroux dirigia à república das letras a seguinte observação: 
"Na sequência dos últimos distúrbios, ignoro em que estado ficará 
o próprio castelo e tudo o que ele continha de interessante para a 
história da França e das três artes, no momento em que o visitei em 
1764. [...] No canto de uma sala que servia de biblioteca, encontrei 
manuscritos da história da França, assim como livros gregos e latinos 
com anotações manuscritas de Eleonora, princesa de Rohan. Com 
o máximo cuidado, recuperei esse material para depositá-lo, em se-
guida, na biblioteca de Soubise: bastante feliz por ter fornecido uma 
prova de minha afeição particular por uma família de tão elevada 
reputação e, desse modo, reconhecer suas liberalidades em meu favor 
e em favor de meus familiares que, desde os mais remotos tempos até 
este momento, têm servido nos exércitos comandados por célebres 
generais com tal nome."'" Semelhante referência memorial lembrava 
a existência de formas de sociabilidade tradicional para ter acesso aos 
arquivos e escrever a história de determinadas corporações, seja no 
círculo dos parlamentos ou na escrita das histórias das cidades; além 
disso, ela evocava o desaparecimento — com os documentos que lhes 
davam justificação ou serviam de caução — de esmerados interesses 
patrimoniais. Se, como foi demonstrado por Anthony Grafton, a nota 
de erudição é sinal de pertencimento a uma comunidade moral -
reivindicação da verdade e da autoridade —, nesse caso formula-se 
a questão a respeito das convenções e das categorias da análise, no 
aspecto em que elas envolvem regras de fiabilidade, critérios de crença 
e utensílios de credenciamento — relativamente à articulação entre 
depósito de indícios do passado e saberes apropriados para validá-los 
— no momento em que, de repente, verifica-se uma mudança de toda 
a economia moral dos bens simbólicos.105 
104. Jean-Baptiste-Louis-George Séroux d'Agincourt, Histoire de l'art par les monuments, 
depuis sa décadence au IV siècle jusqu'à son renouvellement au XVIe, II, "Sculpture". 
Paris, 1825, p. 70, n. c. [Cf. Françoise Choay, op. cit., p. 77, nota 53. (N.T.)] 
82 
105. Anthony Grafton, Les Origines tragiques de l'érudition: Une Histoire de la note en bas 
de page, Paris: Le Seuil, 1998. 
83 
2 
UMA NOVA AUTENTICIDADE 
A história — farol eterno das nações, patrimônio indestru-
tível que as fez passar da infância para a idade adulta -
serve-lhes de instrução e de advertência em cada página. 
Discurso destinado a ser pronunciado na 
Assembleia Nacional por Jean-Henri Bancal, 
deputado representante dos Citoyens-pétition-
naires da cidade de Clermont-Ferrand, sede do 
Departamento de Puy-de-Dôme, 29 jul. 1791.' 
A Revolução Francesa é tributária da cultura material do passado 
sob duas formas principais.O tempo inscreve-se nos monumentos 
deixados in situ, na paisagem das cidades, enquanto as obras, os livros 
e os arquivos acumulam-se nas coleções de caráter científico ou nos 
acervos de bibliotecas. No entanto, todos esses materiais são imedia-
tamente requisitados por serem úteis. Eles podem convir, segundo 
a distinção clássica de Rabaut Saint-Étienne (21 de dezembro de 
1792), "à instrução pública [que] esclarece e exercita o espírito" e "à 
educação nacional [que] deve formar a sensibilidade". De acordo com 
sua explicação, "a primeira deve fornecer esclarecimentos, enquanto 
a segunda suscita virtudes; a primeira contribuirá para a reputação 
da sociedade, enquanto a segunda, para sua consistência e seu dina-
mismo. A instrução pública exige liceus, colégios, academias, livros, 
instrumentos, cálculos, métodos; ela está implantada em recintos 
fechados. Por sua vez, a educação nacional requer circos, ginásios, 
armas, jogos públicos, festas nacionais, a cooperação fraterna de to-
das as idades e de ambos os sexos, além do espetáculo imponente e 
pacífico da sociedade humana reunida."2 De fato, a cultura material 
1. Philippe Bourdin, "Bancai des Issarts, militant, député et notable: de l'utopie poli-
tique à l'ordre moral", in Revue Historique, vol. 302, n. 4, 2000, p. 895-937. 
2. Cf. James Guillaume (org.), Procès-verbaux du Comité d'instruction publique de la 
Convention, Paris, 1891-1907, p. 232. A fórmula é comentada por Mona Ozouf, La 
Fête révolutionnaire, Paris: Gallimard, 1976; e por Keith M. Baker, Condorcet from 
85 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
do passado integra ao mesmo tempo um processo de reescrita da 
história e a reconfiguração das imagens públicas, a elaboração de uma 
nova memória dos saberes e um discurso sobre a monumentalidade 
coletiva; desse modo, ela alimenta uma reflexão sobre a arqueologia 
e a história, a estética e o político. 
A melhor ilustração dessa mudança encontra-se no historiador 
Jules Michelet (1798-1874), no célebre trecho do livro Le Peuple, no 
qual a busca do "instinto do povo" encarna-se no face a face com um 
"gigantesco monumento" — extraordinário momento onírico que acaba 
evocando a imagem do "gigantesco elmo" e da "montanha de plumas" 
na corte do Castelo de Otranto — romance inglês de 1764, o primeiro 
da literatura gótica, escrito por Horace Walpole. Essa é a oportunidade 
de opor, termo a termo, a abordagem, por um lado, estética do artista 
e, por outro, arqueológica do historiador — ou, ainda, em termos rie-
glianos, o culto do monumento antigo e o do monumento histórico. 
Ah! como ele está, hoje, desfigurado, sobrecarregado com aditamentos 
estranhos, manchas esbranquiçadas e bolores, conspurcado pelas chuvas, 
lama e insultos dos passantes!... O pintor, o homem da arte pela arte, chega, 
observa e sente-se atraído exatamente por essas manchas... Por minha parte, 
eu gostaria de arrancá-las. Ouça, pintor de passagem, isto não é um brin-
quedo de arte, preste atenção, mas um altar! Tenho de esburacar a terra para 
descobrir as bases profundas desse monumento; a inscrição, dou-me conta 
agora, está completamente soterrada, escondida bem longe, embaixo... 
E, para cavar, não tenho enxada, nem barra de ferro, nem picareta; vou 
contentar-me em utilizar minhas unhas. [...] Hoje, ainda estou cavando... 
Eu gostaria de alcançar o fundo da terra; mas, não gostaria de exumar um 
monumento do ódio e da guerra civil... Pelo contrário, tenho desejo de 
encontrar, ao descer debaixo desta terra estéril e gélida, as profundezas em 
que ressurge o calor social, em que se conserva o tesouro da vida universal, 
em que voltariam a abrir-se, para todos, as nascentes exauridas do amor.' 
Natural Philosophy to Social Mathematics, Chicago: Chicago University, 1975 (trad. 
fr.: Condorcet: Raison et politique, Paris: Hermann, 1988, p. 416 ss). 
3. J. Michelet, Le Peuple, Paris, Comptoir des Imprimeurs unis, 1846, p. 154-155. 
Sobre os desafios da época de Le Peuple, cf. Arthur Mitzman, "Michelet and Social 
86 
Talvez seja impossível encontrar melhor apresentação do modelo 
epistemológico moderno da "profundeza", tal como é esboçado por 
Frederic Jameson — sem deixar de relacionar o episódio com outras 
dissimulações de Michelet — com as curas de lama nas Termas de 
Acqui (Itália), nas profundezas do mar ou da montanha. 
Contra a postura do artista, Michelet reivindicava a do historiador-
-arqueólogo: ele apresentava-se como homem que se enfurnava nos 
arquivos e nos subterrâneos das criptas, em busca das ruínas do 
tempo. Desse modo, ele definia — ao lado do porta-voz excepcional 
do patrimônio francês, encarnado por Victor Hugo — outra figura de 
patrimonializador, dedicado à recuperação dos túmulos esquecidos, 
servidor de memórias privadas de manutenção e, preferencialmente, 
da primeira de todas elas, a do Povo. Ora, a figura da exumação revo-
lucionária — não a exumação dessacralizante dos reis da abadia de 
Saint-Denis, mas a exumação simbólica, sob a forma de ascensão até 
a revelação dos princípios originais da nação — marcou surdamente 
essa construção fantasmática. Nesse sentido, pelo menos, é que nos 
propomos questionar, aqui, o legado revolucionário em matéria de 
entendimento do passado. 
No lugar da esperança da salvação, instalaram-se com as Luzes dois 
tipos de futuro: a prognosis racional e a filosofia da história. A previsão 
opunha-se exatamente à profecia: o futuro tornava-se o domínio de 
possibilidades finitas. "Enquanto a profecia transgride as balizas da ex-
periência e dos cálculos, a prognosis permanece nos limites da situação 
política." No entanto, "sub specie aeternitas, é indiferente que o futuro 
seja considerado em termos de fé ou de cálculo ponderado: nada de novo 
pode emergir". Somente "a filosofia da história separa, pela primeira vez, 
a modernidade de seu passado e, no mesmo momento, inaugura nossa 
modernidade por um novo futuro. Uma consciência do tempo e do fu-
turo começa a desenvolver-se no obscurantismo da política absolutista, 
inicialmente em surdina, e mais tarde abertamente, combinando de 
Romanticism: Religion, Revolution, Nature", in Journal of the History of ldeas, vol. 
57, n. 4, 1996, p. 659-682. 
87 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
forma audaciosa a política e a profecia. Nesse instante, na filosofia 
do progresso, introduz-se uma mistura típica do século XVIII, ou 
seja, predição racional e expectativa de uma salvação."4 A fraseologia 
de Robespierre — em particular o famoso discurso de 10 de maio de 
1793 sobre a Constituição — fornece uma boa ilustração do tema 
em que a aceleração do tempo encarnava a tarefa a ser empreendida em 
direção a uma época de liberdade e de felicidade. Segundo a feliz fór-
mula de Reinhart Koselleck, o futuro torna-se "irresistível — o que, 
paradoxalmente, corresponde à sua construtibilidade".5 Em suma, "a 
Revolução liberava um novo futuro, pressentido seja como progresso 
ou catástrofe, e, pelo mesmo movimento, um novo passado; o caráter 
de estranheza inédita deste último levava-o a adequar-se para se tornar 
o objeto particular da ciência crítica-histórica."6 
Concretamente, o tempo novo inscreve-se em uma proliferação de 
panfletos e opúsculos diversos que dão conta da atualidade de múltiplos 
"fatos históricos" — do jornalismo revolucionário aos Tableaux de la Révo-
lution Française.7 Nessa perspectiva, o conjunto dos gestos de cerceamento 
da Revolução, tradicionalmente associados a uma "estratégia consciente, 
apesar de ser mais ou menos secreta, dos políticos moderados" remetia, 
"ao mesmo tempo, a uma angústia generalizada e menos consciente 
causada por um futuro apresentado como um espaço ilimitado". Para 
combater, em melhores condições, essa "desorientação", o "sentido 
vivenciado" da Revolução integrava-se, pelo imaginário, em uma 
temporalidade cíclica que equivale a uma obstrução do futuro vazio e 
ameaçador. Daí, a contradição entre um sentido oficial, teleológico,e um sentido ilusório, permitindo, "a um só tempo, o recalcamento do 
futuro ilimitado e a celebração da Revolução."8 Ora, ao dar testemunho 
eloquente de um mundo fragmentado, o patrimônio assegurava também 
a continuidade — de um passado regenerado a um futuro estabilizado. 
Ele podia configurar a permanência dos valores e dos recursos diante da 
incerteza do futuro — com a condição de não implicar o retorno ao antigo 
estado das coisas, perspectiva indubitavelmente ameaçadora, e portanto, 
fundamentar-se na razão. A materialidade das coisas podia servir de vín-
culo entre a história e a posteridade, encarnar uma lição do passado que 
corresponde à afirmação dos princípios; ela era não tanto uma ameaça 
para a experiência revolucionária, mas uma possibilidade de elaborar a 
definição abstrata da nação, ao manifestar sua realidade concreta> 
4. Reinhart Koselleck, Future Past: On the Semantics of Historical Time, Cambridge: 
MIT, 1979, p. 17. 
5. Assim, o homem novo aparece, ao mesmo tempo, como um "dom" e como uma 
tarefa prática a ser empreendida. (Mona Ozouf, L'Homme régénéré, Paris: Gallimard, 
1989, p. 131-132.) 
6. Fórmula de Reinhart Koselleck, op. cit. Sobre esse aspecto, cf. as análises de François 
Furet, "Ancien Régime", in François Furet e Mona Ozouf (orgs.), Dictionnaire critique 
de la Révolution Française, Paris: Flammarion, 1989, p. 627-638. 
7. Pierre Rétat, "Forme et discours d'un journal révolutionnaire: Les Révolution de Paris 
en 1789", in Claude Labrosse, Pierre Rétat e Henri Duranton (orgs.), L'Instrument 
périodique: La Fonction de la presse au XVIII' siècle, Lyon: Presses Universitaires de 
Lyon, 1986, p. 139-178; L'Espace et le Temps Reconstruits: La Révolution Française 
une Révolution des Mentalités et des Cultures?, Marselha, 22-24 fev. 1989 (Atas do 
colóquio), Aix-en-Provence: Publications de l'Université de Provence, 1990; Warren 
Roberts, The Public, the Populace, and Images of the French Revolution: Jacques-Louis 
David and Jean-Louis Prieur, Revolutionary Artists, Albany: State University of New 
York, 2000; Claudette Hould, La Révolution par l'écriture: Les Tableaux de la Révolu-
tion Française — une entreprise éditoriale d'information (Ie791-1817), Paris: Réunion 
des Musées Nationaux, 2005. 
88 
Uma nova história 
Mesmo que Grimm ou Diderot tenham manifestado, ocasional-
mente, sua admiração pelo pitoresco da cavalaria, o período medieval 
8. A fórmula foi forjada por Hans-Ulrich Gumbrecht; cf. "Chants révolutionnaires et maîtrise 
 de l'avenir", in Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine, 1975, p. 244. 
Foi aplicada por Mona Ozouf ao dossiê da festa nestes termos: "Ao questionar o vo-
cabulário da comemoração, a finalidade da festa é puramente conservadora: trata-se 
apenas de manter, perpetuar, conservar [...]. O apelo à memória deve ser dirigido, 
efetivamente, por uma representação do futuro. No entanto, as repercussões atribuí-
das à festa comemorativa estão dotadas de um valor exclusivamente repetitivo. [...] 
Ela está incumbida, precisamente, de encarnar esse desfecho voluntário e arbitrário." 
Portanto, o objetivo consistiria em manter "uma memória sem história" uma vez que, 
"subtraída aos caprichos do tempo, projetada na eternidade do discurso, a Revolu-
ção desestimulará os homens, seja a contestá-la ou a prossegui-la" ("De thermidor 
à brumaire: Le Discours de la Révolution sur elle-même", in Revue Historique, vol. 
243, 1970, p. 31-66, aqui, p. 37-38). 
89 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
havia mantido uma posição muito mais significativa nas versões con-
servadoras do mito primitivo, como outras tantas imagens dos "bons 
velhos tempos."9 No declínio do século, as imagens da Idade Média 
remetiam, cada vez mais, a uma época heroica (e perdida) da realeza 
francesa contra as imagens concorrentes do modelo antigo ou do Éden 
selvagem. Em seu panorama de Trois siècles de la littérature (1779), 
um jornalista antifilosófico, tal como Sabathier de Castres, elogiava 
encomiasticamente Sainte-Palaye por seu interesse pela "história dos 
bons velhos tempos de nossa monarquia". Portanto, a escola histórica 
dos magistrados opôs-se logicamente aos tumultos institucionais no 
momento em que a Revolução rejeitava radicalmente tudo o que a 
havia precedido ("Há quem se apoie na história; mas nossa história 
não é nosso código", proclamava Rabaut Saint-Étienne; por sua vez, 
Sieyès afirmava que não se deve desanimar pelo fato de "nada encon-
trar na história que possa convir à nossa posição"10). Em seu Rapport 
sur les Académies (1791), o escritor e moralista Sébastien-Roch N. 
de Chamfort dirigia um ataque contundente contra a Académie des 
Inscriptions, que se limitava a enunciar os lugares-comuns tanto da 
futilidade dos conhecimentos eruditos como do ridículo de pedantes 
interessados em bagatelas. Mas essa foi sobretudo a oportunidade para 
derrubar "os srs. Secousse, Foncemagne e vários outros membros dessa 
companhia" que haviam pretendido "estudar nossas antiguidades fran-
cesas para desnaturalizá-las, deturpar as origens de nossa história, colo-
car às ordens do despotismo uma falsa erudição, combater e condenar 
de antemão a assembleia nacional, ao declarar equivocada e perigosa a 
opinião que retira do Rei o poder legislativo para atribuí-lo à Nação". 
Daí em diante, a história pretendeu, de fato, estar em harmonia 
com tempos inéditos. O programa do Liceu republicano para o IX ano 
letivo, ou seja, o ano II, enunciava claramente suas novas tarefas: "Entre 
9. François Pupil, Le Style troubadour ou la nostalgie du bon vieux temps, Nancy: Presses 
Universitaires de Nancy, 1985. 
10. Jean-Paul Rabaut Saint-Étienne, Considérations sur les intérêts du Tiers-État, adressées 
au peuple des provinces, 1788, p. 13-14; Emmanuel Sieyès, Qu'est-ce que le Tiers-État?, 
org. Roberto Zapperi, Genebra: Droz, 1970, p. 175. Cf. Jean Egret, La Prérévolution 
française (Ie787-Ie788), Paris: PUF, 1%2, p. 332. 
90 
todos os conhecimentos humanos, a história é aquele que deve receber, 
o mais rapidamente possível, todas as influências das revoluções que 
acabam de se operar entre nós; no momento em que nos separamos 
tão completamente dos séculos passados, convém abordá-los a partir 
de uma última e nova perspectiva. Além da nossa maneira de ser, nossa 
maneira de ver deve ser transformada. Essa distinção da história entre 
antiga e moderna será suprimida; toda a história, até mesmo a de on-
tem, será considerada como antiga. Os fatos permanecerão os mesmos, 
mas apresentar-se-ão para nós como diferentes porque haveremos de 
observá-los e julgá-los de maneira diferente" (p. 17).11 
Na verdade, a história dos revolucionários — de Condorcet aos 
ideólogos — retomou as convicções anteriores relativamente a uma 
necessária utilidade da disciplina: o curso de história da École Centrale 
du Rhône foi qualificado por seu professor como "moral reduzida em 
exemplos."12 Para Destutt de Tracy, considerado o chefe dos ideólogos, 
os compêndios deveriam fornecer "um quadro completo da marcha 
do espírito humano que mostra as verdadeiras causas de seus suces-
sos e de seus desvios". No entanto, as circunstâncias conferiam uma 
força inédita ao imperativo de seleção que já orientava a relação com 
o material do passado. As antiguidades nacionais davam testemunho 
de épocas bárbaras, indignas do universal estético e histórico. Nada de 
surpreendente, por conseguinte, em escutar um filósofo da história, 
Condorcet, reivindicando na tribuna da Assembleia Nacional a des-
truição dos arquivos: 
"Hoje, comemora-se o aniversário do dia memorável em que, ao der-
rubar a nobreza, a Assembleia Constituinte colocou a última pedra no edi-
fício da igualdade política. É hoje que, na capital, a Razão queima no sopé 
da estátua de Luís XIV esses imensos volumes que atestavam a futilidade 
dessa casta; e ainda subsistem outros vestígios nas Bibliotecas Públicas, 
nas Câmeras de Contas, nas repartições de provas e nos escritórios dos 
11. Cf.ainda Daniel Nordman (org.), L'École normale de l'an Leçons d'histoire, de 
géographie, d'économie politique, Paris: Dunod, 1994. 
12. Louis Trenard, Lyon, de l'Encyclopédie au Préromantisme, Paris: PUF, 1958, p. 495. 
91 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
genealogistas. Importa que todos esses depósitos sejam reunidos em uma 
destruição comum." Ao anunciar a comemoração do 14 de julho, o decreto 
de 20 de junho de 1790 referia-se a esta dupla proclamação: "É importante 
para a glória da nação impedir a subsistência de algum monumento que 
faça lembrar ideias de escravidão. [...1 Convém à dignidade de um povo 
livre consagrar-se tão-somente a ações que ele próprio tenha considerado 
e reconhecido como grandes e úteis. 
Em seu livro Idées sur les arts, publicado em pluviôse do ano II, E-A. 
Boissy d'Anglas definia assim essa nova dignidade: "A França regenerada 
acabou recebendo do despotismo, já moribundo, uma ampla e impressio-
nante herança que ela deveria repudiar sem qualquer constrangimento. 
Para os séculos e para o universo, ele lhe havia restituído o imenso depó-
sito de todos os conhecimentos humanos, o resultado de todos os talentos 
do espírito, o produto de todas as criações do gênio. Ela lhes [às "'nações 
que, um dia, hão de suceder-lhe"'] fica devendo, além de não interromper, 
por uma culposa indiferença, a marcha e os avanços do espírito humano, 
fazer para a posteridade o que os séculos passados fizeram em seu favor." 
A França tornou-se, pelo mesmo movimento, depositária da história 
universal e guia do futuro, já que ela havia assumido, "de uma só vez, a 
ambição de pretender servir de exemplo às nações" (Sieyès). 
Esse foi o caso particularmente da Academia Céltica, fundada em 
1804, em que Cambry, Volney, La Révellière-Lépeaux, Lenoir, Mangourit, 
Roquefort e, em seguida, Millin, Dulaure... comungavam sob a mesma 
divisa: "Gloriae Majorum". 13 A associação propunha-se lançar um 
programa de pesquisas linguísticas, etnológicas e arqueológicas, com o 
objetivo de provar que as antiguidades nacionais francesas eram simples-
mente os monumentos do povo celta, ou seja, o povo original da terra; 
assim, seria estabelecida definitivamente a identidade das antiguidades 
francesas e das antiguidades universais. O discurso preliminar de Joseph 
13. Mona Ozouf, "L'Invention de l'ethnographie française: Le Questionnaire de l'Académie 
Celtique", in Annales ESC, n. 2, 1981, p. 210-230; Nicole Belmont (org.), Aux Sources 
de l'Ethnologie française: L'Académie Celtique, Paris: CTHS, 1995; André Burguière, 
"L'Historiographie des origines de la France: Genèse d'un imaginaire national", in 
Annales HSS, n. 1, 2003, p. 41-62. 
92 
Lavallée, na abertura do 12 tomo de Mémoires de l'Académie, evocava as 
posições dos antiquários do Antigo Regime, preocupados em legitimar 
seus trabalhos. No entanto, ele trazia a marca de uma nova busca de legi-
timidade, estreitamente atribuída aos poderes instituídos — a tal ponto 
que Flaubert, em seu Dictionnaire des idées reçues, citará ironicamente a 
Academia Céltica no capítulo da independência das academias: "Não será 
simples que uma nação [...] conceba uma elevada ideia de sua própria 
nobreza? E que, dirigindo um olhar religioso para seus antepassados, ela 
se aplique a desvencilhar, nas lembranças históricas, a estima de que eles 
usufruíram na terra, e procure dar-se conta se lhe é permitido acrescentar, 
à solenidade de uma glória recentemente adquirida, o nobre orgulho de 
uma glória herdada? Que a nação francesa se entregue sem inquietação 
a essa busca, seu orgulho não será decepcionado; ela cultiva ainda o solo 
que, em direção ao ápice dos tempos, mais fértil em homens que em safras, 
povoou o globo antes de alimentá-lo [...]. O território habitado por nós 
havia sido a metrópole desse povo que, pelo excedente de sua população, 
colonizou um tão grande número de regiões longínquas. Enquanto filhos 
mais velhos dos celtas, nenhum povo estrangeiro conseguiu desapossar-
nos de sua herança, e, apesar de ter usurpado nosso território, não chegou 
a obscurecer nossa filiação [...]. Talvez fosse mesmo possível para alguns 
cientistas comprovar que a presença dos francos entre nós é o resultado 
não tanto de uma invasão, mas do retorno de uma grande porção de 
nossos irmãos para sua primeira pátria. Assim, portanto, fiéis guardiões 
dos túmulos celtas em que repousam os pais de tantos povos belicosos, 
podemos até mesmo afirmar-nos como o ramo mais antigo da grande 
família das nações." 
Nada é mais afastado de Ossian, traduzido parcialmente por 
Diderot, Turgot ou Suard, que oferecia, em sua obscuridade, a abor-
dagem de uma selvageria melancólica, entre perda e confusão, sem 
conseguir conciliar sensibilidade com heroísmo — além disso, nada é 
retomado, aqui, da discussão sobre a autenticidade do conhecimento 
dos tempos druídicos, bastante complexo, pela Europa.14 Nada é mais 
14. Sobre o estado das disputas eruditas da época, cf. Kristine Louise Haugen, "Ossian 
and the invention of textual history", in Journal of the History ofldeas, vol. 59, n. 2, 
93 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
afastado, também, do caso alemão em que a ênfase é colocada na 
reivindicação do particular15; assim, antes da viagem à Itália, Goethe 
enaltecia — em seu ensaio Sur l'Architecture gothique (1722) — a 
catedral de Estrasburgo como monumento da arte alemã, baseada em 
princípios nacionais e ao mesmo tempo na natureza. Pelo contrário, 
ao propor ao governo — em sua obra Antiquités gauloises et romaines 
recueillies dans les jardins du Palais du Sénat (1807) — a "criação de 
um museu", "verdadeiramente nacional", C.-M. Grivaud definia tal 
estabelecimento como algo "composto unicamente por monumentos 
antigos, existentes na França". A instância legitimante permanecia o 
universal antigo, a tal ponto que ele inspirou amplamente o Génie du 
christianisme: "Não cessamos de nos recriar a partir das instituições 
da Antiguidade e rejeitamos reconhecer que o culto evangélico seja o 
único resíduo dessa antiguidade que tenha chegado até nós. Se fixamos 
nosso olhar no padre cristão, no mesmo instante somos transportados 
para a pátria de Numa, Licurgo ou Zoroastro. A tiara mostra-nos o 
persa errante por cima das ruínas de Suza e Ectabana 
Os monumentos franceses configuram, assim, os últimos sinais de um 
mundo já perdido ou a caminho de desaparecer; sua melhor ilustração 
encontra-se no Questionnaire 17 da Academia Céltica sobre os usos e cos-
tumes. Como é referido por seu secretário temporário, M.-A. Mangourit, 
"alguém observou com engenhosidade, na última assembleia, que conviria 
apressarmo-nos na formulação de nossas questões porque o Código e as 
outras instituições que, atualmente, dirigem a França conduzirão necessa-
riamente à extinção de um grande número de costumes típicos". Portanto, 
1998, p. 309-327; e para uma recente análise literária, o artigo de Dafydd Moore, 
"Heroic incoherence in James Macpherson's the poems of Ossian", in Eighteenth-Century 
 Studies, vol. 34, n. 1, 2000, p. 43-59. 
15. Louis Dumont, "Peuple et nation chez Herder et Fichte", in Libre, n. 6, 1979, p. 
233-250. 
16. François René (visconde de Chateaubriand), Génie du christianisme (1802), Paris: 
Garnier-Flammarion, 1993, T. 1, t. II, p. 57. 
17. Elaborado entre abril e julho de 1805, este questionário foi distribuído, a partir de 
1807, às "pessoas mais esclarecidas" de cada departamento francês; elas deveriam 
enviar as respostas para o secretário perpétuo da Academia. Cf. <http://www.garae. 
fr/spip.php?article227> (último acesso: jul. 2009). [N.T.] 
94 
a investigação foi empreendida com um sentimento de urgência, à procura 
das últimas testemunhas — dos contemporâneos das origens — cujo ine-
lutável desaparecimento era previsível: exemplo de um momento apenas 
perceptível em que a antiga diversidade dos sujeitos cede o lugar à nova 
forma de excelência, ou seja, à uniformidade dos cidadãos.18O terceiro parágrafo do questionário, elaborado por Dulaure e 
Mangourit entre abril e julho de 1805, classificado e redigido por 
Dulaure, fixou-se no que seu secretário perpétuo Éloi Johanneau 
designava por "nomenclatura e configuração" dos monumentos para 
"restituir-lhes (o lugar a que têm direito) na história geral da Gália". 
Trata-se das "Questões sobre os monumentos antigos": "23. Foi desco-
berto algum campo com túmulos? Onde é que ele se encontra? Será no 
acostamento de um caminho antigo, nas margens de um rio, no cimo 
de uma montanha, em um terreno outrora estéril, em antigas divisas? 
Qual é o nome desse cemitério antigo? Estará relacionado com algum 
tipo de tradição popular? Situa-se a oeste ou ao sul do lugar [habitado 
perto do qual] ele se encontra? 24. Qual é a forma, a matéria desses 
túmulos? Qual é sua disposição geral em relação aos pontos cardeais? 
Já foram escavados? Está confirmado que não o foram? O que foi en-
contrado no local? 25. Esses túmulos estão acompanhados por algumas 
construções antigas? Qual é sua forma, e que grau de perfeição deve 
ser atribuído à sua arte? Ou, então, tais construções não passam de 
um amontoado de pedras sem forma, fragmentos de rochas amonto-
adas, erguidas e amparadas por outros fragmentos de rochas isoladas 
e implantadas em forma de obelisco, ou várias dessas rochas estão 
dispostas em um plano circular ou longitudinal? Haverá alguma que 
apresente, grosseiramente, a forma de um assento? 26. Cada um dos 
monumentos brutos que acabam de ser indicados existe alhures ou 
foi construído isoladamente? As pedras de sua construção pertencem 
ao solo em que ele se encontra ou foram extraídas de outro lugar? 
Qual é a sua denominação e a do terreno ocupado por elas? Qual é a 
opinião do povo a seu respeito? Que tradição foi conservada por elas 
18. Arthur Onck Lovejoy. The Great Chain of Being: A Study of the History of an Idea, 
Cambridge: Harvard University Press, 1933. 
95 
http://www.garae.fr/spip.php?article227
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
sobre o motivo e o autor de sua construção? Que fábula maravilhosa 
é relatada a seu respeito? O povo pratica à sua volta algum tipo de 
superstição? Espalha óleo? Depõe flores? Os passantes acrescentam 
uma ou várias pedras ao amontoado de pedras a que se dá o nome de 
sepultura, túmulo, mausoléu, jazigo, etc.? Que ideias estão associadas 
a essa prática? Quais são os monumentos ou as ruínas de construção 
atribuídos às fadas, a César ou ao diabo? 27. Existe no interior dos 
lugares consagrados ao culto, ou alhures, algumas pedras às quais o 
povo atribui a faculdade de fazer milagres [...] qual é o nome e a forma 
dessas pedras [...] quais são esses milagres?" Essa pesquisa não é, como 
foi aduzido precipitadamente, o precursor da etnologia francesa: Mona 
Ozouf esclareceu perfeitamente tal mito. Em seu contexto é que o 
documento se compreende como a ilustração talvez mais consequente 
da representação patrimonial revolucionária, entre inventário das 
singularidades e projeção do universal, consciência de uma paisagem 
cultural diversificada e expectativa de seu desaparecimento. 
O triunfo da alegoria 
Com a Revolução Francesa, o passado nacional transforma-se, com 
efeito, integralmente em um Antigo Regime amaldiçoado; segundo uma 
denominação forjada propositalmente com esse fim. Os anos concebidos 
a posteriori como fundadores do patrimônio inscrevem-se, portanto, em 
contradição aparente com a evolução que, supostamente, eles deveriam 
prefigurar: no mais profundo de uma convicção da insignificância do 
passado para a construção do novo, insignificância decorrente da consi-
deração unívoca relativa ao contrato na definição da nação.A atitude a 
adotar em relação à herança do passado e da desordem legada pelo acaso 
dos séculos tinha a ver, daí em diante, com a Lei; nesse sentido é que deve ser 
 entendida a intuição de Michelet, ao evocar um "tribunal revolucio-
nário" dos arquivos. Assim, a devastação ou as reutilizações do decênio 
diferem, radicalmente, dos episódios precedentes, ou seja, fundição das 
peças de prata e ouro da realeza para encher os cofres públicos, icono-
clastia religiosa, substituição de uma decoração obsoleta por outra, etc. 
96 
Mas, se toda a história moderna francesa torna-se, de repente, 
estranha aos novos fundamentos da sociedade e do político — e, por 
assim dizer, tão afastada quanto são longínquos os objetos da Antigui-
dade —, a herança material pode entrar na economia geral dos "monu-
mentos" disponíveis e manipuláveis, segundo o modelo explicitado no 
capítulo precedente. Esse quadro fornece um "horizonte de recepção" 
a obras que — em razão da perda de sua situação, de seu contexto ou, 
mais amplamente, das condições originais de seu projeto — estavam 
privadas, daí em diante, dessa dimensão.19 Uma nova economia moral 
das imagens pretendia estar, então, na origem de uma conservação 
maduramente refletida; tal possibilidade só poderia aparecer depois 
que fosse descartada a ideia de um passado, fonte de legitimidade 
para os negócios do Estado.20 Aliás, como havia sido resumido por 
Hannah Arendt: "O passado torna-se referência com a condição de 
que seja transmitido como tradição; por sua vez, a autoridade torna-
se tradição com a condição de apresentar-se historicamente."21 Pelo 
contrário, a revolução exige um modo a-histórico da autoridade (eis 
o desafio, em particular, de um "retorno" aos princípios da natureza) 
e um modo de existência do passado que não é a tradição (em vez 
de um vínculo obrigatório, impõe-se a ideia de um reconhecimento voluntário)
. 
 Daí em diante, a transmissão "à posteridade" foi o resul-
tado de iniciativas ponderadas, desenvolvidas propositalmente, e não 
o fruto do curso dos acontecimentos; nesse sentido, o patrimônio 
deve ser entendido como uma forma da reorganização racional dos 
recursos para a nova coletividade, ao contrário dos usos que esta ou 
aquela herança poderia ter imposto, anteriormente, a determinada 
comunidade seja ela de "raça", como se dizia, da inteligência ou 
19. Cf. o balanço equilibrado proposto por Martyn P. Thompson a respeito das teses da 
nova história política, "Reception theory and the interpretation of historical meaning", 
in History and Theory, vol. 32, n. 3, out. 1993, p. 248-272. 
20. Em relação ao papel instrumental da tradição na política do Antigo Regime, cf. 
Denis Richet, La France moderne: L'Esprit des institution, Paris: Flammarion, 1973, 
p. 129-131, 143-146, 148-163; e Keith M. Baker, Au Tribunal de l'opinion: Essais 
sur l'imaginaire politique au XVIII' siècle, Paris: Payot, 1993. 
21. Hannah Arendt, La Crise de la culture, Paris: Gallimard, 1972. 
97 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
da arte, porque pesa continuamente sobre as elites a suspeita de pos-
síveis manipulações do povo. 
De acordo com os decretos oficiais, a conformidade das obras do 
passado deveria operar-se, do ponto de vista profissional, fora da praça 
pública, por rasuras, supressões e diferentes medidas, realizadas em 
ateliê. As recomendações das Assembleias sugeriam um trabalho capaz 
de fazer desaparecer, sem deixar rastro, os símbolos condenados, ao 
contrário do gesto iconoclasta que usufrui do espetáculo da destrui-
ção visível, até mesmo do efeito das ruínas na praça pública, além de 
contar com suas repercussões demonstrativas.22 Rapidamente, o novo 
termo "vandalismo" designa uma conduta escandalosa porque, além 
de ser retardada e ignorante, é sobretudo ilegítima por depender da 
iniciativa de grupos isolados, de facções particulares — para não dizer 
de conspiradores contrarrevolucionários. 
Um trabalho permanente deve, em suma, posicionar o patrimônio 
contra o passado, como um dos símbolos da vontade revolucionária, 
associado aos dois temas do reconhecimento e da emulação — do mesmo 
modo que, segundo a fórmula de Hayden White, os historiadores das 
Luzes escreviam a história contra o passado. 23 Tenta-seforjar uma nova 
representação do passado por uma criteriosa distinção entre o despre-
zível a ser suprimido e algo de memorável a ser instaurado ou, às vezes, 
a recuperar, mas sempre em nome de uma reabilitação do verdadeiro. 
Sua melhor definição é fornecida pelo presidente do Comitê de Instru-
ção Pública, Mathieu, que propôs em 28 de frimaire do ano XI (18 de 
dezembro de 1793) a coleta "do que pode servir ao mesmo tempo 
de ornamento, troféu, além de apoio à liberdade e à igualdade".24 Mas, 
se alguém continua afirmando que o "verdadeiro objetivo" das obras de 
arte "consiste em prolongar a lembrança das ações úteis e em fazer viver, 
22. Sobre a poética das ruínas e de seus aspectos patrimoniais, cf. a coletânea editada 
por Brian Neville e Johanne Villeneuve. Waste-Site Stories: The Recycling of Memory. 
Albany: State University of New York Press, 2002. 
23. Hayden White, Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe, 
Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1973, p. 63. 
24. James Guillaume, op. cit., p. 180. 
98 
durante muito tempo, a memória dos benfeitores da humanidade"," essa 
convicção era dificilmente compatível com uma hostilidade rousseau-
niana diante da representação. Como se sabe, a contradição caracterizava 
os organizadores das festas revolucionárias: "persuadidos do poder das 
imagens", servem-se dele "sem deixarem de permanecer obstinadamente 
convencidos da falsidade de tudo o que assume a forma de figura".26 
A característica mais notável da sensibilidade às imagens na Re-
volução foi, então, a substituição de modelos: do icônico pelo nar-
rativo." Exibidos por ocasião das festas, os "ícones" manifestam, por 
exemplo, uma rejeição e a impossibilidade de "relatar" o acontecimento 
histórico ou a vida do "mártir" republicano. A propósito da festa em 
homenagem a Marat, Mona Ozouf mostrou que o cortejo tornava-se 
uma "frisa", concebida por "um ponto de vista de arquiteto", que em 
vez "das circunstâncias da vida de Marat, desenroladas segundo a or-
dem de uma gênese", expunha "o recorte das características lendárias: 
pura distribuição de papéis alusivos sem a mínima profundidade". Do 
mesmo modo, a festa elaborada por David para o aniversário de 10 
de agosto fracassou em sua narrativa ao representar a história da Re-
volução sob a forma de cartazes e inscrições: "Esvaziado de história, o 
espetáculo vai relegá-la, ainda outra vez, ao texto escrito."28 De forma 
mais abrangente, a segunda metade do século XVIII havia rejeitado 
amplamente a complexidade de linguagens abstratas — e, portanto, 
confusas — para enfatizar a utilidade de um discurso que associava as 
imagens e as palavras em uma estreita relação com a experiência dos 
sentidos." Parece ser bastante nítida a raiz filosófica e linguística do 
25. Instruction sur la manière d'inventorier et de conserver [...) par la Commission temporaire 
des arts, ano II. 
26. Mona Ozouf, La Fête révolutionnaire, op. cit., p. 244. 
27. Klaus Herding, "Utopie concrète à l'échelle mondiale: L'Art de la Révolution", in La 
Révolution Française et l'Europe Ie789-1799, Paris, Grand Palais, t. 1, p. XL (Catálogo 
da exposição). 
28. Mona Ozouf, op. cit., p. 21-43. 
29. Cf. Theresa M. Kelley, "Visual Suppressions, Emblems and the Sister Arts", in 
Eighteenth-Century Studies, vol. 17, n. 1, 1983, p. 28-60, para a demonstração sobre 
a evolução das edições de Ripa. [Cesare Ripa (c. 1560-1625), autor de Iconologia. 
Em Significado nas artes visuais, o mestre alemão Erwin Panofsky define esta obra 
99 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
"privilégio da metáfora, enaltecida em Condillac, tornada primitiva 
deste último a Turgot ou Herder; devaneio sobre a gestualidade; ideia 
de uma original comunhão mental, cuja oposição ao consenso mo-
derno será sobrecarregada, em Rousseau, com a nostalgia"". 
A preeminência da alegoria, confirmada por todos os observado-
res, dava conta dessa especificidade. Com efeito, "diferentemente do 
simulacro e do símbolo, a alegoria é", se dermos crédito a Quatremère 
de Quincy, uma "imitação até certo ponto inimitável".31. Na esteira de 
seu estudo sobre as teorias estéticas de Quatremère, Philippe Junod 
chega mesmo a tirar a conclusão, nesse autor, do paradoxo de um ideal 
de pintura "para cegos inteligentes"." Assim, "quando o ministério do 
Interior pretende, em pluviôse do ano VII, fixar o modo de celebração 
da festa da Soberania do Povo", ele convida os artistas a procurar "ima-
gens" ou, de preferência, corrigindo-se, "ideias".3 Sob esse aspecto, a 
alegoria, apesar de sua evidente dificuldade de leitura — aliás, aspecto 
que lhe é criticado com frequência —, corresponde ao novo ideal de "transparência"3
4 
 por impedir que se esqueça sua distância em relação 
ao que é verdadeiro. A suspeita que pesa sobre a representação imitativa 
mantém uma relação óbvia com a teoria política revolucionária, ou seja, 
a necessária impessoalidade do poder que Marcel Gauchet lê como "uma 
como "aquela 'summa' da iconografia que, abeberando-se em fontes tanto clássicas 
e medievais como contemporâneas, foi chamada, justamente, de 'chave das alego-
rias dos séculos XVII e XVIII', e explorada por artistas e poetas tão ilustres quanto 
Bernini, Poussin, Vermeer, e Milton [...] publicada em 1593, reeditada inúmeras 
vezes e traduzida em quatro línguas [...]" (São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 216). 
Cf. <http://publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_neGrieco.pdf
> (úl-
tima consulta: jul. 2009)(N.T.).] 
30. Daniel Droixhe, La Linguistique et l'appel de l'histoire, Ie600-1800, Genebra: Droz, 
1978, p. 348. 
31. Apud Mona Ozouf, op. cit., p. 252. 
32. Philippe Junod, Transparente et opacité: Essai sur les fondements rhétoriques de l'art 
moderne, Lausanne: d'Homme, 1975, p. 309. 
33. Apud Mona Ozouf, op. cit., p. 252. 
34. Marc Richir, "Révolution et transparente sociale", in J. C. Fichte, Considérations 
destinées à rectifier le jugement du public sur Révolution Française, Paris: Payot, 
1974; e Myriam Revault d'Allones, "Le Jacobinisme ou les apories du politique", in 
Reune Française de Science Politique, vol. 4, ago. 1986, p. 519-527. 
100 
corrida mortal em direção ao anonimato", mas que, para J.-P. Brissot, 
por exemplo, não passa da recusa de "transformar o homem-Rei em um 
Deus"35. Multiplicadas no decorrer do ano II, as fórmulas exprimem 
suficientemente que a "idolatria" continuava ameaçando a encarnação 
da pátria36; a imagem nunca mais será ilusória, para evitar qualquer 
equívoco na reverência devida com exclusividade aos princípios. 
A Revolução pretendia conduzir o homem à "maioridade" diante 
da imagem, segundo a fórmula kantiana do Sapere aude [Tenha cora-
gem de fazer uso de seu próprio entendimento], além de impedir sua 
regressão à relação primitiva com o ídolo. Tal programa teria exigido, 
em substância — como foi bem observado por Ernst Gombrich 
dar a conhecer Condillac a todos os franceses, com o receio de que 
uma eventual "sonolência da razão" suscitasse ainda outros ídolos." 
Tarefa rapidamente reconhecida como impossível, em vários planos, e 
cujo abandono deixava um espaço livre para a encarnação dos mártires 
e santos patriotas: uma obra-prima republicana, tal como o quadro 
A morte de Marat de David, oferece "a presença palpável do ídolo" e, ao 
mesmo tempo, uma "figura ideal, clássica e distanciada"?8 Do mesmo 
modo, Albert Mathiez pôde insistir sobre as tendências comuns dos 
"cultos revolucionários" e das práticas tradicionais das religiões reve-
ladas: "Evidentemente, o patriota que ostentava o cocar nacional não 
atribuía a esse pedaço de pano, em geral, o poder de fazer milagres; 
nesse aspecto, verificava-se uma diferença entre seu estado de espírito 
e o do católico que pendura ao pescoço uma medalha benzida, ou 
alguma relíquia preciosa. De qualquer modo, não deixa de ser verdade 
que o cocar, a medalha ou a relíquia são, no mesmo plano, símbolos 
religiosos por terem a seguintecaracterística em comum: eles represen-
tam, concretizam, evocam um conjunto de ideias ou sentimentos, ou 
35. Marcel Gauchet, La Révolution des droits de l'homme, Paris: Gallimard, 1989, p. 27, 
que cita essa fórmula de J.-P. Brissot, pronunciada em 3 de agosto de 1789. 
36. Cf. as circulares citadas por Lucien Jaume, Le Discours jacobin et la démocratie, Paris: 
Fayard, 1989, p. 183, 342. 
37. Ernst-Hans Gombrich, "The Dream of Reason: Symbolism in the French Revolution", 
in The British Journal for Eighteenth-Century Studies, vol. 2, n. 3, 1979, p. 187-205. 
38. Fórmula forjada por Klaus Herding, op. cit. 
101 
http://publique.rdc.puc-rio.brirevistaalceutmedia/alceu_neGrieco.pdf
http://publique.rdc.puc-rio.brirevistaalceutmedia/alceu_neGrieco.pdf
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
seja, uma fé. [...] Aliás, não é absolutamente verdadeiro que o valor 
dos símbolos revolucionários se limitasse a simples sinais ou alegorias 
inofensivas sem virtude nem eficácia particular."39 Todavia, a Revolu-
ção temia que uma eventual perversão da razão levasse a substituir os 
extravios do passado por uma nova idolatria. A escolha de atrizes para 
figurar as "divindades", por ocasião das festas, pretendia atenuar esse 
deslize porque — desincumbidas, imediatamente depois da cerimônia, 
de qualquer status simbólico — elas não exerciam o papel de inter-
cessor.40 Do mesmo modo, a possibilidade de um acordo entre a moral 
evangélica e a moral republicana teria ocorrido no âmago de uma religião 
depurada: a teofilantropia pretendia existir "sem padres — substituídos 
pelos pais de família — nem emblemas, imagens ou estátuas, ou seja, 
um retorno à simplicidade das origens (os teofilantropos por pouco 
evitaram a denominação de 'cristãos primitivos')".41 
Distribuir o patrimônio em novos lugares 
A nova época pretendeu tirar partido da experiência e do talento 
natural dos homens. Tal postura explica que o qualificativo "regenerado" 
39. Albert Mathiez, Les Origines des cubes révolutionnaires, Paris: Beijais, 1904, p. 34-35. 
Cf. ainda Albert Soboul, "Sentiment religieux et cultes populaires pendant la 
Révolution: Saintes patriotes et martyrs de la liberté", in Annales Historiques de la 
Révolution Française, vol. XXIX, 1957, p. 195-213. A partir de quatro estudos de 
casos (Paris, Toulouse, Departamentos de Aube e de Bouches-du-Rhône) sobre os 
primeiros decênios do século até 1789, Cissie Fairchilds pretendeu mostrar a impor-
tância considerável dos objetos religiosos no consumo doméstico e como a influência 
jansenista acabou pesando na autonomização desses artefatos: uma demonstração 
que espera ser validada por outros meios e pode esclarecer alguns aspectos da mu-
tação ulterior — cf. "Marketing the Counter-Reformation: Religious Objects and 
Consumerism in Early Modern France", in Christine Adams, Jack R. Censer e Lisa 
Jane Graham (orgs.), Visions and Revisions of Eighteenth-Century France, University 
Park: The Pennsylvania University Press, 1997. 
40. Maurice Agulhon, Marianne au combat: L'Imagerie et la symbolique re'publicaines de 
Ie789 à Ie880, Paris: Flammarion, 1979, p. 38; Madelyn Gutwirth, Twilight of the 
Goddesses: Women and Representation in the French Revolutionary Era, New Brunswick: 
Rutgers University Press, 1992. 
41. Mona Ozouf, "Religion révolutionnaire", op. cit., p. 610. 
102 
é atribuído ao monumento que, extraído do passado, tem valor, a 
contragosto, para o futuro, ao demonstrar que os valores presentes 
são eternos, apesar de terem sido combatidos, outrora, pelos mal-
intencionados. Nesse mesmo movimento que destruía as imagens 
corrompidas do Antigo Regime, a Revolução pretendia, portanto, 
revelar a arte autêntica, até então relegada aos depósitos obscuros do despotismo. Não 
 foi sem malícia que determinadas obras passaram 
despercebidas ou foram esquecidas: elas revelavam um talento desco-
nhecido ou ofuscado, exigindo de saída a atenção dos republicanos. 
A iniciativa estava diretamente associada a um pensamento que estabe-
lecia a separação entre a permanência da natureza humana e a perversão 
histórica das sociedades, em favor de uma restauração do verdadeiro e 
do belo, outrora desdenhados ou dissimulados por terem sido vítimas 
de diversas conspirações. Ao proceder desta forma, a Revolução anulava 
a historicidade em benefício do presente, ao tratar esse legado como 
precursor de sua gloriosa atualidade.42 Ela retomava amplamente à sua 
conta a opinião dos filósofos e de seus êmulos que, de acordo com o 
resumo de Arnaldo Momigliano, "consideravam a história como uma 
luta permanente de alguns sábios, de quem eles eram os continuadores, 
contra a violência, a superstição e a tolice da maior parte das pessoas'''. 
Certamente, a literatura artística ou a memória coletiva — a herança 
das antigas comunidades de especialistas ou dos que mantêm familia-
ridade com a obra — são importantes na maneira como se considera e 
aborda os objetos. No entanto, seus novos lugares de conservação e de 
exposição determinavam grandemente, daí em diante, seus valores -
os de obras-primas restauradas, de documentos convenientemente 
colocados em perspectiva ou de ilustrações pertinentes . Tais lugares 
— os museus, o Panthéon, os jardins, os depósitos ou conservatórios -
tornaram-se o teatro de múltiplas consagrações e desconsagrações. 
Com efeito, para os diferentes especialistas, essa foi a oportunidade de 
atribuir novas significações aos objetos reunidos no mesmo espaço; as 
42. Donald Egbert, "The Idea of Avant-Garde in Art and Politics", in American Historical Review
, vol. 2, 1967, p. 339-366. 
43. Arnaldo Momigliano, "La Contribution de Gibbon à la méthode historique", in 
Problèmes d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Gallimard, 1983, p. 335-336. 
103 
http://desconsagra��es.Com
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
rivalidades ou as contradições entre essas novas atribuições constituí-
ram outros tantos conflitos de classificação e de legitimidade. Assim, 
em 26 de vendémiaire do ano VIII, o administrador do museu especial 
da École Française, em Versalhes, E. A. Gibelin, protestava junto de 
Sieyès contra a remoção das marinhas do pintor Vernet, que deveriam 
servir, por ordem do ministro da Marinha, para a instrução dos futuros 
marinheiros. Em 4 de nivôse do mesmo ano, L. Daubenton44 solicitava, 
em nome do Museum National d'Histoire Naturelle (1793), ao Musée 
Central des Arts um Cristo da coluna em jaspe sanguíneo: "O interesse 
que, eventualmente, essa peça possa ter do ponto de vista artístico não 
se compara com sua importância para o estudo da História Natural." 
No dia 13, o Musée rejeitava abrir mão dessa "belíssima figura": "Se o 
mérito desse objeto se limitasse à matéria, a administração teria tido a 
solicitude de oferecê-lo ao senhor." Do mesmo modo, o Conservatoire 
National des Arts et Métiers e o Museu dos Monumentos Franceses 
entraram em competição a propósito dos revestimentos de madeira do 
castelo de Écouen: em nome da unidade arquitetural e sentimental, eles 
foram reivindicados por Lenoir para terminar a sala do século XVI, no 
Louvre. Por sua vez, o colega do Conservatoire defendeu seus direitos 
nestes termos: "É importante que os lambris de Écouen entrem (no 
Conservatoire) como monumento histórico da arte, como elemento 
de comparação da marcenaria em diferentes épocas, além de mostrar 
aos artistas o ponto de partida da caminhada progressiva do gênio. 
Colocar esse monumento em local diferente do Conservatoire seria 
mutilar, de alguma forma, a história da marcenaria e romper a série 
dos conhecimentos que apresentam a marcha sucessiva da arte, desde 
seu começo até o mais avançado de seus progressos." Tais reivindicações 
desenhavam, em cada momento, uma "biografia cultural dos objetos", 
correspondendo aos diferentes valores que lhes eram reconhecidos. 
2 Imagem ideal de uma abertura das Luzes a todos, em um espaço 
utópico de comunhão com o Belo e comos Princípios, o museu tinha a 
44. Louis Daubenton (1716-1800), naturalista francês e um dos colaboradores da Histoire 
naturelle (perto de quarenta volumes, de 1749 a 1804), sob a direção de Georges-
Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788). [N.T.] 
104 
vantagem de promover debates sobre os tutores e os recursos dessa edu-
cação regeneradora, sobre o perigo das corporações renascentes, sobre 
seus interesses particulares, etcEm pé de igualdade com o Panthéon ou 
com outros templos (um projeto monumental de Durand e Thibault 
elaborava, para o concurso do ano II, um Templo da Igualdade que, 
em seguida, reaparecia como um lugar de reunião de cidadãos a fim de 
praticarem nesse espaço "um culto qualquer"45), o museu era um lugar 
do qual se exigia a imediata eficácia e a ambição universal. Paradigma 
da perfeição sensualista absoluta, ele encarnava uma vantagem de 
ordem pedagógica que permitia conferir uma utilidade de princípio 
a acervos, sem a qual sua significação e apropriação permaneceriam 
problemáticas. Evocar seus recursos e seu poder era enaltecer a energia 
revolucionária, sua capacidade para subordinar tal monumento par-
ticular ao ensino dos novos princípios — o que é denunciado, ime-
diatamente, por alguns (Quatremère de Quincy, por exemplo) como 
uma desnaturalização da arte, novo gênero de vandalismo. 
Com efeito, semelhante investimento museográfico envolvia o 
desapossamento do Estado tradicional. A consciência revolucionária 
manifestava uma real indiferença, para não dizer uma hostilidade decla-
rada, em relação à inscrição territorial ou histórica dos monumentos e 
das coleções; inversamente, ela prosseguia uma distribuição equitativa 
do patrimônio por todo o território nacional e, ao mesmo tempo, ali-
mentava a centralização tradicional das obras-primas. Quando as leis de 
24 e 25 de janeiro de 1790 organizaram uma divisão inédita do espaço 
francês em 83 departamentos, o Comissão dos Monumentos pretendeu 
formar, com a ajuda dos objetos reconhecidos e inventariados por ele, 
um museu em cada departamento. Em 2 de dezembro do mesmo ano, 
Bréquigny, o ilustre membro da Académie des Inscriptions, propunha 
"a distribuição dos monumentos" nas igrejas transformadas em museus: 
"Todos esses monumentos", escreve ele, "pertencem em geral à Nação. 
Portanto, convém que, na medida do possível, todos os indivíduos 
possam ter seu usufruto e, em meu entender, a melhor contribuição 
45. James A. Leith, "The terror: Adding the Cultural Dimension", in Canadian Journal 
of History, vol. XXXII, 1997, p. 315-337. 
105 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
nesse sentido consistirá em atribuir um dos depósitos em que eles serão 
reunidos, com a condição de que tal acervo seja o mais completo possível 
a cada departamento." 
O "Projet d'instruction pour hâter les établissements de bibliothè-
ques et de muséums", apresentado em novembro de 1792, reafirmava 
que "cada departamento formará seus estabelecimentos públicos ao 
escolher, em primeiro lugar, o que poderá lhe convir entre os monu-
mentos espalhados por seu território; o excedente será destinado a outros 
departamentos menos dotados nesse gênero de objetos, a fim de que se 
consiga, na medida do possível, uma distribuição equitativa das ciências 
e das coleções que lhes pertencem". Tal projeto previa "a execução de um 
plano que, em todas as partes da República, apresentará amplos depó-
sitos de livros, quadros, esculturas e objetos preciosos de toda a espécie, 
que estarão disponíveis em sua totalidade, organizados de acordo com 
o mesmo critério e subdivididos segundo as mesmas regras, até mesmo 
nos detalhes mais insignificantes". Em suma, uma "útil e ponderada 
distribuição" deveria "vivificar todas essas riquezas, centuplicá-las" e, 
finalmente, "animá-las em benefício do ignorante que as desdenha". 
Assim, inscrevia-se a distribuição territorial do patrimônio no âmago 
de uma economia da circulação, baseada em equipamentos cuidado-
samente concebidos e distribuídos, qualificados pelo abbé Grégoire" 
como "ateliês do espírito humano". 
Tal resolução caracterizou o decênio, já que, em 1801, a obra anô-
nima Correspondance de deux généraux sur divers sujets sugeria o estabele-
cimento "dos museus secundários nas principais cidades da França, em 
que haveria a preocupação de reunir, o mais rapidamente possível, as 
cópias dos melhores exemplares dos mais célebres pintores". A penúria, 
frequentemente deplorada, de bons exemplos, artísticos e morais, é a 
consequência de um panteão de originais por definição limitado, que 
não pode ser depauperado; pelo contrário, sua influência deverá crescer 
pelo recurso à "multiplicação de exemplares". A malha — no plano 
46. Henri Grégoire, conhecido como abbé Grégoire (1750-1831), padre e político 
francês, prestou juramento à Constituição Civil do Clero (1790); como deputado 
da Convenção promoveu a votação pela abolição da escravatura. [N.T.] 
106 
nacional, utópica — do patrimônio foi bem descrita no relatório de 
J. Lakanal47 sobre as Écoles centrales e seus museus-bibliotecas, em dezem-
bro de 1794: "A engenhosidade impulsionará sua flama depuradora até as 
extremidades da República. Daí, por um esforço recíproco, direcionado 
naturalmente para o centro, formar-se-á uma circulação da qual depen-
dem a boa disposição e a vida do corpo social." Essa é a forma de delinear, 
na perspectiva de remodelar a sociedade, uma circulação patrimonial à 
custa de coleções originais, inacessíveis ou deterioradas. 
Neste ponto, abordamos as relações complexas dos revolucioná-
rios com a questão do luxo e, de forma mais específica, com o status 
do artista, além de sua relação com suas criações e com as criações 
anteriores — já que o senso patrimonial identifica-se com uma moral 
da propriedade, ao mesmo tempo pública e privada, para além das 
repetidas condenações da futilidade." A crise da representação tradi-
cional implementou uma crítica contra os abusos de riqueza, contra os 
objetos de luxo e, igualmente, contra a superabundância de palavras. 
A separação entre os artigos de distinção — que carregam, daí em diante, 
o estigma do luxo amaldiçoado — e as obras de arte foi uma primeira 
condição para construir uma ideia de patrimônio artístico legítimo.49 
Sabe-se como os debates, em matéria de edição, sobre o direito autoral e 
a figura do escritor acabaram por estigmatizar o autor "absoluto" como 
uma criatura do privilégio, substituindo-o pela imagem cívica de um 
criador a serviço do bem público, de um herói das Luzes. Carla Hesse 
insiste justamente sobre a instabilidade da síntese realizada dessa forma, 
que "combina uma instrumentalização a serviço do bem público com 
47. Joseph Lakanal (1762-1845), político francês. Enquanto membro da Convenção, 
entre as numerosas medidas relativas à instrução pública (1793-1795), promoveu a 
criação das Écoles centrales — uma por departamento. Nestas instituições, a ênfase 
é colocada no ensino científico, em vez da tradição clássica dominada pelo latim. 
[N.T.] 
48. Sobre o debate geral a esse propósito, cf. Isser Woloch, "On the Latent Illiberalism of 
the French Revolution", in American Historical Review, vol. 95, 1990, p. 1467-1470. 
49. Remy G. Saisselin, The Enlightenment against the Baroque: Economics and Aesthetics 
in the Eighteenth-Century, Berkeley: University of California Press, 1992, p. 133; 
John Shovlin, "The Cultural Politics of Luxury in Eighteenth-Century France", in 
French Historical Studies, vol. 23, n. 4, 2000, p. 577-606. 
107 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
uma teoria do autor baseada no direito natural", dando lugar a uma 
série de renegociações que se estendeu durante todo esse período." 
A representação de um patrimônio revolucionado, ou seja, cortado 
da história, tinha a ver com o paradoxo de uma herança identificada 
com a permanência de princípios de que, em última instância, ela 
procede e, daí em diante, deve defender contra seus primeirospro-
prietários ou comanditários que haviam sido seus atores, por assim 
dizer, involuntários. O empreendimento patrimonial prosseguia, desse 
modo, um desígnio de emancipação que não deixava de revelar, através 
dos "monumentos", a relação com as origens. Sua justificativa era a de 
excluir qualquer consideração de um "trabalho" da duração — genuína 
"profundidade" do tempo.51 Segundo a célebre fórmula do membro 
influente do partido liberal, Benjamin Constant, os revolucionários 
"espantam-se que a lembrança de vários séculos não tenha desaparecido 
rapidamente diante dos decretos de um dia. Considerando que a lei é 
a expressão da vontade geral, ela deveria, em sua opinião, prevalecer 
em relação a qualquer outro poder, incluindo o da memória e o do 
tempo."52 Tal era exatamente o projeto que permitiria viver, por assim 
dizer, no mesmo nível com as origens, mediante uma verdadeira "tra-
vessia" dos tempos intermediários, em particular de toda a civilização 
do Antigo Regime. O conjunto dessas características esboçava um 
patrimônio sem outro proprietário além da humanidade inteira, tendo 
atingido a idade da razão. Verificava-se, segundo parece, a fusão entre 
passado, presente e futuro, respaldada na garantia dos princípios de 
que a Nação era, daí em diante, depositária. 
50. Carla Hesse, Publishing and Cultural Politics in Revolutionary Paris, 1789-1810, 
Berkeley: University of California Press, 1991, p. 122-123. 
51. Mona Ozouf, "Régénération", in François Furet e Mona Ozouf (orgs.), Dictionnaire 
critique, op. cit. 
52. Benjamin Constant, "De l'Usurpation", in Marcel Gauchet (org.), De la Liberté chez 
les modernes, Paris: Le Livre de Poche, 1980, p. 189-190. 
108 
O museu regenerador 
O museu constituiu uma instituição-chave do empreendimento 
de regeneração; acima de tudo, ele encarnava uma súbita e espeta-
cular publicidade das artes, sob a forma da reivindicação atendida, da 
"conquista" coletiva. Simples episódio ou transição de aparência lógica 
no resto da Europa, a abertura de museus inspirou-se, na França, na 
retórica da ruptura instauradora. Mas, sobretudo, o museu era um 
espaço em que o estatuto a atribuir às imagens herdadas do Antigo 
Regime revelou-se como um desafio crucial: um dispositivo para ale-
gorizar o passado. 
 Se alguns — entre eles, o abbé Grégoire — chegaram a evocar a 
possibilidade de uma memória do Antigo Regime, a fim de votá-lo 
a um "pelourinho eterno", o projeto de um estudo esclarecido dos 
erros do passado, a partir da hipótese de uma história negativa, cujo 
ensino teria efeitos positivos, afigurava-se difícil, uma vez que, eviden-
temente, limitar-se-ia a estigmatizar os mal-intencionados. O desejo 
de uma amnésia generalizada — que seria a antítese da lembrança da 
militância — deveria ler-se, nessas condições, como falta de segurança 
ou como extremismo político? De fato, esses debates participavam 
do que Mona Ozouf designa por comum "pessimismo original sobre 
a história da França" ou, no mínimo, de uma convicção da instabi-
lidade histórica." Uma leitura radical sobre o tema foi fornecida, há 
pouco, por Bernard Groethuysen: "Entre os revolucionários [...] a fé 
no reinado futuro da razão compensa a visão pessimista dos tempos 
passados. Essa falta de racionalidade na vida dos homens não deve 
ser atribuída ao ser humano. Cada homem está dotado de razão e, 
como criatura da natureza, faz parte de um todo coerente. Não é 
ele nem a natureza que é irracional, mas sua situação atual de vida. 
E essa situação tem a ver com as lacunas da organização social [...]. 
O século XVIII é dominado pela ideia da antinomia entre racionalismo 
inerente à natureza do homem e o irracionalismo da vida humana, 
tal como é testemunhado pelo curso da história: ele é pessimista em 
53. Mona Ozouf, "De thermidor à brumaire..." , in Revue Historique, op. cit., p. 40-41. 
109 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
sua concepção da história e, ao mesmo tempo, otimista na concepção 
que tem da natureza. Para explicar essa antinomia, deve existir um 
terceiro elemento (:) a sociedade."" De fato, em Condorcet, como é 
resumido por Keith Baker, "o progresso histórico (é percebido) como 
um processo de incrementação, dependendo do acúmulo constante e 
da disposição dos conhecimentos (em que) o erro é uma consequência 
natural da defasagem entre o que podemos e o que desejamos conhecer, 
defasagem perpetuada e tornada nociva por poderosos interesses bem 
arraigados"." Em suma, quando a razão se amplia à custa da supersti-
ção e da tradição, o uso do passado desenvolve-se contra ele próprio. 
Enviada, em março de 1794, para todos os departamentos pela 
Comissão Temporária das Artes, a célebre Instruction sur la manière 
d'inventorier et de conserver dans toute l'étendue de la Republique tous 
les objets qui peuvent servir aux arts, aux sciences et à l'enseignement -
cuja redação havia sido confiada a F. Vicq d'Azyr e Dom Poirier, 
beneditino de Saint-Germain-des-Prés — proclamava que "as lições 
do passado, marcadas indelevelmente, podem ser repertoriadas 
por nosso século, que terá condições de transmiti-las, com novas 
páginas, à lembrança da posteridade". Nessa perspectiva, F. Vicq 
d'Azyr escrevia que "todos esses objetos preciosos, que têm sido 
mantidos longe do povo ou que lhe eram mostrados apenas para 
suscitar seu espanto ou respeito, todas as riquezas [...], daqui em 
diante, servirão para a instrução pública: elas servirão para formar 
legisladores com base filosófica, magistrados esclarecidos, agricul-
tores instruídos. [...] A indiferença [...] seria um crime".56 Aqui, a 
evocação da impostura, sacerdotal e régia, que mantinha as obras a 
distância do povo, suscitando o temor e a admiração, justificava a ini-
ciativa que acabava de ser empreendida no sentido de proceder a um 
inventário e à sua preservaçáo. A fórmula evoca o que Condorcet havia 
54. Bernard Groethuysen, La Philosophie de la Révolution Française, Paris: Gallimard, 
1982, p. 249. O tema é desenvolvido por Henry Vyverberg, Historical Pessimism in 
the French Enlightenment, Cambridge: Harvard University Press, 1958. 
55. Keith M. Baker, Condorcet from Natural Philosophy to Social Mathematics, op. cit., p. 467. 
56. Cf. Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, 3. ed., São Paulo: Unesp/Estação 
Liberdade, 2006, p. 114, nota 45. [N.T.] 
110 
escrito na introdução de seu livro: se a filosofia forçou a superstição 
a encontrar regras nas condutas do passado, "não será que ela deve 
compreender, na mesma proscrição, o preconceito que rejeitasse com 
orgulho as lições da experiência?" A abertura da "10a época" justificava, 
de fato, a "tentativa de delinear com alguma verossimilhança o quadro 
dos destinos futuros da espécie humana, de acordo com os resultados de 
sua história".57 Como é resumido por Keith M. Baker: "A história 
deveria, portanto, tornar-se a auxiliar da ciência social".58. Assim, a 
obra-prima do passado não tem virtude pedagógica a não ser mediante 
a comprovação de que os valores presentes já existiam outrora, mas 
haviam sido combatidos pelos mal-intencionados. 
O escritor e moralista N. de Chamfort já havia garantido que 
"a única história digna de atenção é a dos povos livres, enquanto a 
dos povos subjugados ao despotismo não passa de uma coletânea de 
historietas"." Eis a distinção reivindicada por P. Daunou — na época, 
presidente da Convenção (período da Revolução Francesa entre setem-
bro de 1792 e outubro de 1795) — por ocasião da Festa da Queda do 
Trono em 10 de agosto, 23 de thermidor do ano III, ao lembrar que 
"os anais de um povo inteiro eram suprimidos pela história de uma 
família, forçando a nação a procurar nesse episódio as causas de sua 
alegria e os períodos anuais de seus folguedos públicos"; entretanto, 
no tempo presente, "os cidadãos dos países livres limitam-se a cele- 
brar e a prestar homenagem aos acontecimentos imortais da família 
nacional". O periódico literário La Décade Philosophique, Littéraireet Politique (1794-1804) dirá, de forma mais sóbria, em germinal do 
ano X: "A história da França, propriamente falando, existe apenas após 
a Revolução."69 Essa tarefa permanente de apropriação transformou 
57. Condorcet, Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain, apres. Alain 
Pons, Paris: Garnier-Flammarion, 1988. 
58. Keith M. Baker, op. cit., p. 463. 
59. Sébastien-Roch N. de Chamfort, Produits de la civilisation perfectionnée: Maximes et 
pensées — Caracteres et anecdotes (1795), Paris: Gallimard, 1970, Máxima n. 486. 
60. Pierre Daunou, Essai sur l'instruction publique, 27 jul. 1793, in James Guillaume, 
op. cit., 1, p. 581: "Para instituir uma República, é insuficiente derrubar um trono 
se ainda não tiverem sido abolidas todas as obras da realeza, se não tiverem sido 
suprimidas suas criações morais, se não tiverem sido desenraizados os hábitos que 
1 1 1 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
o patrimônio em um dos símbolos da vontade revolucionária e par-
ticipou de um imaginário de utopia no sentido em que ela previa, 
como afirmava Pierre Francastel, "os efeitos sociais benéficos das artes 
depuradas" — no caso concreto, o fim da idolatria.61 
Sob o Antigo Regime, de fato, por uma impostura premeditada, o 
ídolo usurpava um respeito a que não tinha direito; com efeito, ele era uma 
imagem sobreavaliada, cujo gesto iconoclasta manifestava a vacuidade. 
Eis o que, desde 1757, na introdução de sua obra, Guillaume-Alexandre 
de Méhégan havia afirmado: "A idolatria estava associada à constituição 
dos Estados; ela havia sido transformada pelo tempo em uma espécie de 
fundamento dos Impérios, dos quais esperava receber toda a proteção."62 
Repetia-se, incessantemente, que os objetos em questão eram outros tantos 
"chocalhos" com os quais o adulto regride à enfermidade da infância. 
A retórica da iconoclastia opunha a um adversário irracional, obscuran-
tista, até mesmo obsceno, o bom senso do patriota. Na edição de 1792 de 
sua obra, que obteve grande sucesso, tendo sido vivamente recomendada 
pelos panfletos radicais, Louis Lavicomterie de Saint-Samson — jurista, 
polígrafo e membro da Convenção, além de primeiro historiógrafo repu-
blicano — afirmava o seguinte: "Se, depois de ter lido esta obra, algum 
vil idólatra ainda rasteja diante deles, tendo percorrido sem pavor catorze 
séculos de infortúnios e crimes, neste caso, afirmo que a servidão quebrou, 
em sua alma, a mola da natureza; afirmo que se trata de um cego nato."63 
ela havia imposto, se, finalmente, não houver apropriação das ideias e dos costumes 
políticos para harmonizá-los com uma constituição republicana." Sobre essa posição 
de La Décade, cf. Jacques Le Goff, Histoire et mémoire, Paris: Gallimard, 1988, p. 253. 
Em relação à iconoclastia da Revolução sobre ela própria — assim como sobre a 
destruição simbólica das leis anteriores à medida de sua radicalização cf. Jonathan 
Ribner, Broken Tablets: The Cult of the Law in French Art from David to Delacroix, 
Berkeley: University of California Press, 1993. 
61. Bronislaw Baczko, Lumières de l'utopie, Paris: Payot, 1978, p. 36, 51. Cf. ainda Ale-
xandre Cioranescu, L'Avenir du passé: Utopie et littérature, Paris: Gallimard, 1972; 
Christian Marouby, Utopie et primitivisme: Essai sur L'imaginaire anthropologique à 
l'âge classique, Paris: Le Seuil, 1990. 
62. Guillaume-Alexandre de Méhégan, Origine, progrès et décadence de L'idolâtrie, Paris: 
Paul-Denys Brocas, 1757, p. 18. 
63. Louis Lavicomterie de Saint-Samson, Crimes des rois de France, depuis Clovis jusqu'à 
Louis XVI, Paris: Au Bureau des Révolutions de Paris, 1792, p. 3. Cf. ainda o caso da 
historiadora Louise de Kéralio em Carla Hesse, The Other Enlightenment: How French 
112 
Entretanto, o temor de sucumbir ao ídolo antigo era permanente", 
alimentado pela fragilidade comum dos homens diante da imagem; 
esse medo tinha a ver com a "dúvida no cerne do sensualismo", a qual 
suscita "o pavor de não ter conseguido pensar em tudo".65 
O ato iconoclasta por excelência é a destruição, total ou parcial, 
executada in situ, que aniquila a mensagem original da obra: o melhor 
exemplo dessa operação é fornecido pela demolição da Bastilha. Mas, 
se a lei de 23 de outubro de 1790 previa a fundição geral dos objetos 
preciosos encontrados nas igrejas, as Instructions concernant les châsses, 
reliquaires et nutres pièces d'orfevrerie provenant du mobilier des maisons 
ecclésiastiques et destines à la fonte, publicadas no ano seguinte, ordenavam 
a conservação de todas as obras anteriores a 1300 nas quais o valor do 
trabalho artístico fosse superior ao do metal e que tivessem algum inte-
resse por sua qualidade histórica ou pelas informações sobre a evolução 
do traje — aliás, a lógica do materiam superabat opus. Tal lógica levou os 
membros da Comissão dos Monumentos — que, em 4 de agosto de 
1793, examinaram as estátuas restantes da abadia de Saint-Denis — 
Women Became Modern, Princeton: Princeton University Press, 2001. Sobre o título 
de historiógrafo, cf. François Fossier, "La Charge d'historiographe du XVI' au XIX' 
siècle", in Revue Historique, vol. 523, 1977; e "A Propos du Titre d'historiographe 
sous l'Ancien Régime", in Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine, vol. 32, 1985. 
64. Cf. ainda Robert Sauzet, "L'Iconoclasme dans le diocèse de Nîmes au XVI' et au dé-
but du XVII' siècle", in Revue d'Histoire de l'Église de France, vol. 56, 1980, p. 5-15. 
A iconoclastia revolucionária tem numerosas características das iconoclastias clássicas 
da modernidade. Desse ponto de vista, podemos apenas indicar o interesse de uma 
abordagem "antropológica" dos gestos iconoclastas que permitisse enfatizar certas 
regularidades (por exemplo, a decapitação das estátuas). Cf. alguns elementos em 
Natalie Zemon Davis, Les Cultes du peuple, Paris: Aubier, 1979, p. 251-307; Phyllis 
Mack Crew, Calvinist Preaching and Iconoclasm in the Netherlands, Ie544-1569, 
Cambridge: Cambridge University Press, 1978 (que insiste sobre a "magia" do ato e 
sobre seu caráter, finalmente, pedagógico); John Phillips, The Reformation of Images: 
Destruction of Art in England Ie535-1660, Berkeley: University of Califórnia Press, 
1973; Ann Kibbey, The Interpretation of Material Shapes in Puritanism: A Study of 
Rethoric, Prejudice and Violente, Cambridge: Cambridge University Press, 1986 (que 
evoca, nas p. 42-64, um "materialismo iconoclasta"). Prestemos atenção para não 
esquecer a relação da iconoclastia com o medo: Jean Delumeau, em La peur en Occi-
dent, Paris: Fayard, 1978, p. 185, apresenta o vandalismo como "um rito coletivo de 
exorcismo", derradeiro recurso para conjurar "a profundidade de um medo coletivo". 
65. Mona Ozouf evoca uma verdadeira "reconstituição do meio ambiente", em que "nada 
pareceu insignificante" ("Régénération", in Dictionnaire critique, op. cit., p. 825). 
113 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
a conservar, no depósito de Petits-Augustins, as estátuas jacentes dos 
séculos XIV e XV, interessantes pelo realismo de suas características 
e da indumentária. Ao mesmo tempo, eles decidiram abandonar as 
esculturas dos séculos precedentes por não oferecerem qualquer carac-
terística notável, "seja para as artes ou para a história".66 
Essas diferentes intervenções contaram com a participação, em 
diversos planos, do povo e de uma elite de especialistas; a operação 
foi tanto oficial e regular (nesse caso, organizada por gestores públicos 
ou multidões convidadas) quanto espontânea, até mesmo anárquica. 
A ação pôde também desenrolar-se alhures: nesse caso, a eliminação do 
objeto foi diferida, seja com o objetivo de cumprir uma tarefa delicada, 
uma reutilização técnica (retomada do Hôtel de la Monnaie), seja para 
integrar sua destruição a uma festa ulterior, em um lugar mais propício. 
Enquanto o motim, a favor da conservação ou da destruição, se desen- 
cadeava sempre diante do monumento in situ e assumia um caráterglobal, a iconoclastia parcial associada à conservação assemelhava-se 
à "limpeza" dos monumentos, efetuada no próprio local (rasurar as 
inscrições) ou intervenções limitadas, realizadas por profissionais, após 
transferência para o "centro de triagem" ou para o ateliê (apagar os 
brasões estampados nos livros, etc.). Aliás, a remoção — por exemplo, 
de objetos de culto — fazia-se às vezes de forma discreta, até mesmo 
secreta, para evitar os roubos ou os protestos populares. Assim, os 
atores e o caráter do ato iconoclasta eram, evidentemente, diferentes 
de acordo com as circunstâncias — na praça pública, na discrição de 
um gabinete ou de uma biblioteca — de sua realização. Seu alcance, 
porém, permaneceu idêntico, ou seja, uma nova ponderação do va-
lor do passado para o presente, em nome de um saber autêntico dos 
princípios e da ciência. 
Ocorre que a aplicação de semelhante "doutrina" assumiu um cará-
ter bastante pragmático, como é ilustrado pelo exemplo da catedral de 
Amiens: enquanto "ela é considerada pela Comissão das Armas, sem 
66. Em relação à abadia de Saint-Denis, cf. a síntese de Pamela Z. Blum, Early Gothic 
Saint-Denis: Restorations and Survivals, Berkeley: University of Califórnia, 1992; além 
de Roger Bourderon (org.), Saint-Denis ou le Jugement dernier des Rois, Saint-Denis: 
PSD, 1993 (Atas do Colóquio). 
114 
dúvida, mal informada, como um edifício que pode ser descartado e 
destruído sem inconveniente, como um amontoado de objetos, sem 
outro valor além da matéria bruta, a Comissão dos Trabalhos Públicos, 
suficientemente esclarecida [...], vai apreciá-la como um dos mais belos 
monumentos da Europa, que não pode deixar de ser conservado em 
bom estado para a honra da nação". Por conseguinte, a municipalidade 
reivindicou que, em nome do patrimônio, as despesas de manutenção 
fossem assumidas pelo governo: "Como a supracitada catedral é um 
monumento público que, por ser obra-prima de arquitetura, pode ser 
considerado como pertencente à França inteira e não ao departamento 
de Somme, nem à cidade de Amiens, tampouco a uma seção dessa 
comuna; além disso, é palpável que os cidadãos, em reduzido número, 
que se reúnem nesse local para o culto, nunca terão condições de 
conservar, em bom estado, esse imenso prédio; sobretudo depois de ter 
sido menosprezado, como foi o caso após a Revolução, é evidente que a 
administração terá toda a razão em continuar reivindicando os recursos 
do governo para as reformas." 
O reconhecimento do valor artístico podia ser acompanhado ou não 
por mutilações, assim como sua reutilização podia operar-se no próprio 
local ou exigir uma transferência. A conservação do monumento podia 
servir-se da dissimulação de toda espécie de recursos (estátua por trás 
de uma paliçada, quadro virado para a parede, símbolos escamoteados, 
etc.). Tal conservação era, em geral, efêmera: a pretensão em garantir 
a subsistência do objeto levava, logicamente, a depositá-lo em um 
museu. Podia tratar-se então de coleções acessíveis ao público em 
geral, ou de acervos de obras úteis, mas repreensíveis, destinadas aos 
artistas e cientistas. A transferência para o museu impunha-se, par- 
ticularmente no caso de alguns monumentos, cuja permanência na 
praça pública havia sido rejeitada. O decreto de 3 de brumaire do ano 
II (24 de outubro de 1793), promulgado na sequência do Relatório de 
Romme, indicava no artigo 2º que "os monumentos públicos remo-
víveis, que suscitam o interesse das artes e da história, portadores de 
algum dos sinais proscritos, cujo desaparecimento causaria um prejuízo 
real, serão transportados para o museu mais próximo, no qual deverão 
ser conservados para a instrução nacional". Daí, a ideia, proposta por 
1 1 5 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
Alexandre Lenoir, de um "Museum inacessível ao público no qual são 
reunidos os objetos que, por seu caráter e nas circunstâncias atuais, 
não podem ser expostos, mas estarão disponíveis aos artistas para seu 
progresso". A proibição de obras nocivas foi, explicitamente, conce-
bida como provisória: com a consolidação da República, as imagens 
"feudais" perderão seus poderes e poderão ser mostradas sem risco. 
O combate pela autenticidade 
A iconoclastia identificava-se com uma hábil restauração; ela remo-
via das obras as marcas contingentes da história para enfatizar o valor 
atual, autêntico, mas outrora ignorado, desconhecido, negado ou mani-
pulado de maneira mal-intencionada. Essa retórica da restauração tinha 
como complemento lógico, a propósito das remoções das obras-primas 
estrangeiras, a da repatriação. A vinda de "Roma a Paris" manifestava 
uma verdadeira substituição de um passado transitório pelo presente 
eterno. O melhor testemunho foi deixado neste discurso de François de 
Neufchâteau: "Os homens ilustres trabalharam não para os reis, nem 
para os pontífices, tampouco para seus equívocos. Pode-se dizer que 
o gênio é o ouro da divindade; nada de impuro chega a conspurcá-lo. 
Esses homens ilustres, durante séculos de servidão, cederam à necessi-
dade da criação. Eles elaboraram suas obras não tanto para sua época, 
mas para obedecer ao instinto da glória e, se é que se pode falar assim, 
à consciência do futuro. Sem dúvida, eles adivinhavam os destinos dos 
povos; e seus quadros sublimes constituíram o testamento pelo qual 
eles legaram ao gênio da liberdade o cuidado de oferecer-lhes a verda-
deira apoteose e a honra de discernir-lhes a verdadeira palma de que 
eles se sentiam dignos."67 Nesse aspecto, tratava-se de uma restituição 
do valor; de fato, as obras desempenhavam o papel de alegorias revo-
lucionárias ao tomarem o lugar das ilusões, daí em diante destruídas, 
que elas estavam incumbidas, inicialmente, de fazer perdurar. 
67. Sobre o contexto, cf. Martin Rosenberg, "Raphael's Transfiguration and Napoleon's 
cultural politics", in Eighteenth-Century Studies, vol. 19, 1986, p. 180-205. 
116 
Nas imagens herdadas do passado, esse desígnio de regeneração 
operava uma dissociação fundamental entre o trabalho despendido, 
o savoir-faire desenvolvido pelo artista e o sentido exigido por seus 
patrões. O efeito direto de semelhante distinção acarretou uma reifi-
cação do legado que se traduziu pelo primado atribuído ao trabalho, 
até mesmo a seu estatuto de prova para a ciência social. Desse modo, 
enviados pela Comissão dos Monumentos nos primeiros dias de 
setembro de 1793, Cossard e Mulot sublinharam o interesse de con-
servar o medalhão de Luís XIV na prefeitura de Troyes: certamente, 
foi necessário "removê-lo da vista dos republicanos que, por seu ódio 
contra o despotismo, não teriam suportado observá-lo durante muito 
tempo"; mas "tais ornamentos, elaborados pelo cinzel de Girardon, 
exigem serem conservados por respeito à arte, por reconhecimento 
de seu autor e pelo interesse na formação dos alunos". Entre uma 
infinidade de textos similares, o depoimento do membro a Conven-
ção, Lequinio, em 7 de setembro de 1793, sobre os túmulos dos reis 
na abadia de Saint-Denis resumia esse expediente instrumentalista: 
"Não convém, de modo algum, que esses monumentos sejam objetos 
de idolatria para o povo; mas eles devem existir para alimentar a ad-
miração dos amigos das artes, assim como a emulação e o gênio dos 
artistas." O valor patrimonial do objeto remetia, em primeiro lugar, 
ao elogio do trabalho que o havia produzido; em seguida, tal valor 
participava da permanência da lembrança artesanal e artística, além 
do culto da memória dos homens ilustres; por último, ele sugeria um 
mundo subjacente da arte, submetido tanto a critérios constantes (os 
da natureza humana), quanto às "revoluções" da história. Portanto, 
diferentes estratégias poderão manifestar-se no interior do mesmo 
quadro conceitual, mais ou menos propensas a reconhecer a obra como 
presente e, nesse caso, a confirmar seu estatuto ou, pelo contrário, a 
compartilhá-la entre parcela eterna e parcela caduca — o que obriga a 
um cuidado especial na sua apresentação.Nos museus, além de forne-
cerem modelos aos artistas, as obras-primas serviam de instrução sobre 
o que é justo e injusto nas sociedades, assim como formavam, em cada 
cidadão, o legislador das artes. Apresentado em 1808 por Joachim Le 
Breton, em nome do Institut de France, o Rapport historique sur l'état 
117 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
et les progrès des beaux-arts en France afirmava que "a história das belas-
artes de uma nação é, de alguma forma, a história de seu governo e de 
seus costumes", reivindicando uma leitura política e social das obras. 
Mas, enquanto os revolucionários julgavam ter substituído a ilusão 
pela verdade — a imagem, daí em diante, considerada como o que ela 
representava para o ídolo, o qual, anteriormente, encarnava o erro ao 
ocultar sua própria natureza —, a contrarrevolução lia, simetricamente, 
uma alteração absurda ou falsa da herança. Para além de um equívoco 
primordial — o museu alimentava-se com as ruínas do mundo —, a 
tese contrarrevolucionária denunciava a carência de gosto e a igno-
rância: eis o que A. Rivarol transformou em motivo recorrente do 
discurso da reação. Ao exigir que o Diretório (período da Revolução 
Francesa entre outubro de 1795 e setembro de 1799) suspendesse a 
pilhagem dos monumentos romanos, a petição dos artistas afirmava 
recear somente que "tal entusiasmo que nos deixa apaixonados pelas 
produções do gênio não venha a desencaminhar até mesmo os amigos 
mais ardorosos em relação aos verdadeiros interesses". Entretanto, a 
obra de Quatremère de Quincy, Lettres à Miranda — que havia inspi-
rado a petição —, criticava abertamente uma "tola afeição pelas artes" 
e uma "sabença" de "supostos eruditos": "Nada é tão perigoso quanto 
um amigo ignorante." A idolatria condenada, aqui, remetia a um pro-
letariado de semicultos e a intelectuais mambembes ("Outras tantas 
crianças que se disputam imagens"); ela evocava também a figura de 
um desenraizamento que se referia a operações comerciais, quando "as 
obras tornam-se outros tantos 'fardos de mercadorias' a transportar". 
O aspecto mais pernicioso dessa idolatria do gênio, identificado por 
Quatremère com o espírito revolucionário, tinha a ver com o ativismo 
artístico que ela alimentava: sabe-se como o horror da ação era uma pedra 
de toque inabalável da posição contrarrevolucionária." Winckelmann 
havia insistido sobre o fato de que a melhor qualidade da escultura grega 
correspondia a um período bem determinado, ou seja, o produto de 
circunstâncias ao mesmo tempo geográficas, políticas e religiosas que 
não podiam voltar a manifestar-se. Simultaneamente, segundo parece, 
68. Cf. Stéphane Riais, Révolution et contre-révolution au XI» siècle, Paris: Albatros, 1987. 
118 
ele esperava assistir ao renascimento da arte grega: mas como conciliar 
uma visão messiânica da liberdade com um organicismo?69 Daí, um 
debate capital entre aqueles que consideram os dois postulados como 
incompatíveis e aqueles que propõem (sem grande sucesso) sua conci-
liação. Concretamente, a Revolução Francesa fornecia a seus admirado-
res a expectativa de igualar os gregos, para não dizer de superá-los, em 
nome de um democratismo estético, baseado no efeito das instituições: 
a força das leis regeneradoras, segundo o que se julgava, não podia ser 
sobreavaliada. Entre os revolucionários, as obras patrimonializadas 
eram outras tantas figuras dos princípios eternos: elas remetiam não 
tanto a um passado específico, mas à atualidade de uma promessa. 
Inversamente, para seus adversários, a impossibilidade de um retorno à 
perfeição antiga tornara-se, no plano político, um artigo de fé. As causas 
físicas do milagre grego eram, naturalmente, enfatizadas; por sua vez, no 
campo oposto, a valorização incidia sobre as causas morais." 
As representações antagonistas do Museum universal são, nesse 
aspecto, exemplares. Enquanto ele era identificado por Quatremère 
com Roma, Mathieu imaginava-o confundido, no futuro, com a 
República, a partir da transformação utópica: "Ao considerar tudo 
o que a Natureza e a arte fizeram e podem fazer na França, a Repú-
blica inteira será um imenso e esplêndido Museum."71 O museu do 
futuro dava testemunho, aqui, de um ideal ainda a realizar — o de 
uma humanidade superior —, enquanto Roma-museu encarnava, em 
Quatremère, a república das artes e das letras, espaço homogêneo da 
inteligência europeia, hoje destruído. Em um caso (Mathieu), bastava 
que a vontade geral mantivesse tal expectativa; no outro (Quatremère 
ou, ainda, Carlo Fea), um conjunto de circunstâncias, de condições 
69. Sobre o debate ulterior, cf. Brian Vick, "Greek Origins and Organic Metaphors: Ideais 
of Cultural Autonomy in Neohumanist Germany from Winckelmann to Curtius", 
in Journal of the History of Ideas, vol. 63, n. 3, 2002, p. 483-500. 
70. O tema é desenvolvido, em particular, por Pierre Chaussard, em seu &sai philosophique 
 sur la dignité des arts, Paris: Impremerie des Sciences et des Arts, ano VI; assim 
como pelo tradutor de Winckelmann, Hendrick Jansen (1742-1812), em seu Projet 
tendam' à conserver les arts en France..., Paris, 1791. 
71. Mathieu, presidente do Comitê das Artes, fevereiro de 1794. 
119 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE 
geográficas, históricas, políticas — em que tinha sido preponderante 
o papel desempenhado pela memória, pelos costumes e pela rotina - 
haviam reunido, sob o céu romano, o essencial do Belo.72 A demons- 
tração resumia-se à negação da eficácia, por si só, dos modelos formais 
que a educação de museu propunha de acordo com esta fórmula da VIe 
Lettre à Miranda: "O infortúnio é que a virtude associada ao conjunto 
de uma escola não se comunica, como é o caso de uma relíquia, a cada 
uma de suas partes isoladamente." 
 A reflexão histórica revolucionária culminava na construção pri-
mordial do passado nacional como inimigo, sob as características do 
Antigo Regime: nada, ou muito pouco dessa época parecia utilizável 
para a regeneração já empreendida, enquanto uma política da memória 
visava manter a lembrança renovada de uma época inédita em todas 
as suas encarnações e que deve ser perpetuamente renovada ou sobre-
carregada de exemplaridade, sob pena de conhecer o estiolamento e o 
declínio. Nesse caso, as obras herdadas do passado eram submetidas ao 
imperativo de manifestar a atualidade; daí em diante, debilitadas em 
seus desígnios, elas davam testemunho do talento — outrora oprimido 
— de seus criadores. Quatremère de Quincy defendia, inversamente, 
a ineficácia das obras-primas do passado desde que fossem privadas 
de seus destinos e separadas de suas lembranças. Tais representações 
opostas do "patrimônio" — idolatria do passado ou, ao contrário, 
alegoria contemporânea — não devem dissimular, porém, uma cliva-
gem mais profunda, que interferia na própria possibilidade de pensar 
um patrimônio de um ponto de vista "cultural" e não de um modo 
exclusivamente político. 
Em seu livro Opinion sur les musées, o escultor L.-P. Deseine criti-
cava o museu de Lenoir por configurar a vertente da hybris denunciada 
por Quatremère, na transferência de "Roma". 'Alguém poderá ques-
tionar-se", escreve ele, "como a demência chegou ao ponto de imaginar 
que um recinto com algumas polegadas, no qual existem oito túmulos, 
algumas estátuas de diferentes épocas e alguns baixos-relevos, bastará para 
72. Pascal Griener, "Carlo Fea and the Defense of the Museum of Rome, 1783-1815", 
in Georg-Bloch Jahrbuch, n. 7, 2000, p. 96-110. 
120 
dar à posteridade uma ideia apropriada das maravilhas do século XVII?" 
A esta crítica contra um fetichismo museográfico, acrescentava-se a 
crítica conta a desnaturalização de monumentos "democratizados", 
que lhes forneceu, "sucessivamente, o caráter de diferentes facções que 
dominavam a opinião pública"." Desse modo, Deseine denunciava 
uma idolatria inédita em que a obra transportada era avaliada, daí em 
diante, como imagem do novo regime e não comolegado da história; 
de maneira notável, ele enfatizava sobretudo a necessidade de despoli-
tizar a definição dos monumentos para fazer aparecer, precisamente, a 
noção de patrimônio nacional. Enquanto a nação estiver identificada 
com a Revolução, em uma completa absorção, será impossível apa-
recer sua verdadeira caracterização cultural Com a campanha contra 
o vandalismo do abbé Grégoire e dos Thermidoriens , com a despoli-
tização dos museus, a herança do passado pôde ser nacionalizada e 
estetizada (François Guizot reconhecerá o mérito de Lenoir por ter 
sido o primeiro a considerar os monumentos franceses do ponto de 
vista da arte, e não mais somente como outras tantas antiguidades para 
eruditos). Desde então, a nação pôde apropriar-se do passado como 
recurso e não mais como ameaça, além de pensar seu futuro em termos 
de definição progressiva de uma identidade; assim, as peripécias do 
decênio legavam um fecundo repertório de conflitos aos séculos XIX 
e XX. Entre herança revolucionária e mania nascente por estátuas, 
David d'Angers escreveu em uma carta de 1847: "É necessário que 
[...] a França se torne um vasto panteão."74 Mas, a orientação geral 
está bem definida: a ênfase será colocada, daí em diante, no fato de 
que, tendo sido patrimonializado, o passado da cultura representava 
73. Louis-Pierre Deseine, Opinion sur les mùsées, où se troùvent retenus tous les objets 
d'art qui sont la propriété des temples consacrés à la religion catholiqùe, Paris, 1801. 
Louis-Pierre Deseine (1749-1822), escultor francês que participava, regularmente, 
dos Salons, expondo os bustos de artistas ou de personalidades da época. Em 1780, 
obteve o Prêmio de Roma de escultura. [N.T.] 
74. ApùdViviane Huchard (org.), Aux Grands Hommes, David d'Angers, Fondation Cou-
bertin, 1990, p. 52 (Catálogo da exposição). [Pierre Jean David, chamado "David 
d'Angers" (1788-1856)), escultor e estatuário francês. Entre a produção de grande 
número de obras de diversos gêneros — monumentos, túmulos, bustos, medalhões, 
baixos-relevos —, destaca-se o célebre frontão do Panthéon, em Paris. (N.T.)] 
121 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
de maneira ideal, segundo a fórmula de Étienne François, "os três 
valores fundamentais, ou seja, a identidade (a nação é pensada e 
apresentada como uma pessoa), a continuidade (no decorrer de toda 
a sua história, a nação permanece a mesma; além disso, os diferentes 
momentos de seu passado só adquirem sentido ao serem relacionados 
uns com os outros) e a unidade (a única garantia da existência da 
nação é a unidade de todos os seus membros)".75 O mesmo ocorreu 
relativamente aos seguintes aspectos: invenção dos antepassados fun-
dadores; construção de uma história amplamente compartilhada e que 
havia passado ao estado, por assim dizer, de conhecimento difuso no 
corpo social; afirmação de uma língua e de uma literatura comuns; 
e, por último, progressiva sensibilização em relação a uma paisagem 
concebida como uma representação do território nacional [pays]. 76 
 
75. Étienne François, "Les Mythologies historiques des nations européennes", in Pùblics et 
projets culturels: Un Enjeu des musées en Europe, Paris: L'Harmattan, 2000, p. 126-137. 
76. Em uma imensa bibliografia, cf. Denis E. Cosgrove e Stephen Daniels (orgs.), The 
Iconography of Landscape: Essays on the Symbolic Representation, Design and Use of 
Past Environments, Cambridge: Cambridge University Press, 1988; Simon Schama, 
Le Paysage et la mémoire, Paris: Le Seuil, 1999; François Walter, Les Figures paysagères 
de la nation: Paysage et territoire en Eùrope (XVIe-XXe siècle), Paris: EHESS, 2004. 
122 
3 
A MEMÓRIA INSPIRADORA 
Não existe homem iletrado, ignorante, nem espírito indiferente
, insensível, qùe possa evitar ùma emoção de respeito 
— eu diria quase de terror — ao entrar nas salas de nosso 
museu de história natural [...] Façamos votos de qùe [ . .1, 
ao lado dos naturalistas ilustres, sejam colocadas as imagens 
dos navegantes corajosos e dos viajantes perseverantes; todos 
eles, pelas pesqùisas empreendidas e pelos perigos enfrentados, 
arriscando incessantemente suas vidas, trouxeram-nos estes 
tesouros. Apesar de serem valiosos em si mesmos, seu valor 
é, talvez, ainda maior pelo heroísmo e destemor de quem os 
obteve para nós. [...] Essa é a dùpla grandeza deste lugar. 
Alguns heróis enviaram esses objetos qùe firam coletados, 
classificados, harmonizados por homens importantes, para 
qùem tùdo afluía como se tratasse de um centro legítimo; 
além disso, tanto por sua posição como por seù gênio, eles cria-
ram as condições de operar, aqui, a centralização da natùre-
za. [ De modo que essas coleções, sùpostamente mortas, 
estão vivas; animadas pelos ilustres espíritos qùe convocaram 
todos esses seres como testemunhas de seu combate fecùndo, 
elas guardam ainda a palpitação dessa luta. 
Jules Michelet, L'Oiseaù, 1856. 
A Revolução Francesa — escreveu, alhures, o mesmo Michelet -
abriu "dois imensos museus", na sequência da festa de 10 de agosto 
de 1793, que legaram "uma impressão indelével" a seus visitantes': 
um deles é o Louvre, "museu das nações", que reunia todas as escolas 
artísticas nacionais e que, após disputas complexas com o programa 
de um museu da École Française, em Versalhes, irá expor as melhores 
obras dessa escola; observava-se nesse espaço, em uma perspectiva uni-
versal, cada povo "representado por sua arte e por imortais pinturas".2 
Entretanto, ele permanecia como que privado desse caráter intimamente 
nacional que, pelo contrário, caracterizou desde o início o espaço dos 
1. J. Michelet, Histoire de la Révolùtion Française, II, livro XII, cap. VII. Paris: R. I affont, 
1979, p. 548-549. 
2. Ibidem, p. 549. 
123 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
Petits-Augustins, museu de monumentos — ou seja, de túmulos e até 
mesmo, mais precisamente, como veremos, de corpos históricos. Neste 
livro, vamos defender que os "monumentos" conservados pela França 
regenerada ilustram uma dimensão fundamental, ou seja, aquela que 
o antropólogo Ernesto De Martino define como "o poder formal de 
transformar em valor o que, na natureza, nos conduz para a morte.3 
Ao separar-se da França do Antigo Regime, a Revolução tornava pos-
sível uma apreensão sem precedentes do passado nacional; o que, porém, 
não se efetuou de maneira evidente ou imediata. Como foi demonstrado 
por Lionel Gossman, somente o romantismo político e religioso da década 
1830-1840 conduziu o labor dos antiquários, por exemplo, o de Lacurne 
de Saint-Palaye, à narrativa nacional. Segundo parece — pelo menos 
retrospectivamente —, tal desfecho correspondia a uma evolução lógica. 
O espanto manifestado pela geração da primeira metade do século XIX 
diante da indiferença de seus pais pela história nacional dava testemunho 
de uma sensibilidade inédita; aliás, ela constituiu uma das figuras da rup-
tura moderna. Com efeito, entretempo, foi necessário apropriar-se dos 
corpos desaparecidos: passar dos monumentos inacabados do século XVIII 
e das ruínas fictícias para verdadeiros túmulos densos, por assim dizer, de 
diversas presenças, tais como eles foram reconhecidos pelo século XIX. 
Assim, Michelet faz uma leitura retrospectiva, em forma de estética da 
nação, do museu de Alexandre Lenoir, e seu encantamento data de 1846. 
"Na juventude de Michelet, não havia discurso apropriado para exprimir 
uma relação viva e afetiva com as imagens do passado", o que será o caso, 
em seguida, com a geração do historiador e político barão de Barante e 
de Walter Scott — cuja epístola na dedicatória do romance Ivanhoé, em 
1819, propunha pela primeira vez a metáfora da ressurreição.' Essa era 
uma leitura fantasmática do museu: a dos corpos do passado a ressuscitar.5 
3. Ernesto De Martino, Morte e planto rituale nel mondo antico: Dal lamento pagano al 
planto di Maria (Turim: Bollari Boringhieri, 3. ed., 2000), apud Roberto Harrison, 
Les Morts, Paris: Le Pommier, 2003, p. 107. 
4.Stephen Bann, "The Road to Roscommon", in Oxford Art Journal, vol. 17, n. 1, 
1994, p. 98-102. 
5. "A História é, afinal de contas, a história do lugar fantasmático por excelência, a saber, 
o corpo humano; ao partir desse fantasma, associado nele à ressurreição lírica dos 
124 
O culto dos homens ilustres 
Sob o Antigo Regime, a memória dos defuntos tinha a ver com um 
conjunto de representações, ao mesmo tempo, religiosas e sociais. De acordo 
com a proposta de Reinhart Koselleck, elas foram identificadas com duas 
características principais: "Por um lado, o além da morte é plasticamente 
representado; por outro, a morte é, em sua relação com o mundo, diferen- 
ciada segundo cada ordem e cada estado. [ Verifica-se uma interferência 
recíproca entre a transcendência cristã da morte e a diferenciação, segundo 
a ordem, da morte empírica." 
Na sequência, o culto dos homens ilustres constituiu um ele-
mento essencial da representação da sociedade das Luzes que, por seu 
intermédio, "não cessa de narrar a si mesma seu próprio advento".6 
Em particular, "por volta de 1760 e até a Revolução, a apologia do 
letrado transformou-se uma verdadeira glorificação, associada em um 
tom grandioso a uma doutrina geral de emancipação e de progresso". 
Tal desígnio de forjar um corpus de homens importantes inscrevia-se 
em uma transferência notória da sacralidade. Stendhal tornou-se sua 
testemunha militante quando evoca, em seu avô, "uma veneração e 
afeição pelos homens ilustres que haviam provocado um grande choque 
ao rev. pároco" e compreendiam "todos os homens ilustres da França, 
desde Clément Marot a Voltaire, Diderot e D'Alembert".7 
A anglomania mobilizou, na época, a imagem de Westminster 
como monumento da nação, desde Voltaire em seu livro Lettres phi-
losophiques (1734), mesmo que alguns tivessem denunciado a incon-
gruência de uma comercialização do espaço para a grande satisfação 
corpos passados, é que Michelet conseguiu transformar a História em uma imensa 
antropologia" (Roland Barthes, La leçon, Paris: Le Seuil, 1978). 
6. Jean-Claude Bonnet, Naissance du Panthéon: Estai sur le culte des grands hommes, 
Paris: Fayard, 1998, completado por Michael Garval, "A Dream of Stone: Fame, 
Vision and the Monument in Nineteenth-Century French Literary Culture", in 
College Literatùre, vol. 30, 2003, p. 82-119. 
7. Stendhal, Vie de Henry Brulard, Paris: Gallimard, p. 170. 
125 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
de diversos novos-ricos que, no local, mandaram erigir extravagantes 
monumentos.8 Mas, para além dessas relações complexas entre riqueza 
privada e devoção pública que marcaram amplamente o novo classi-
cismo fim de siècle, foi sem dúvida a literatura utópica — orientada 
pelos ideais da razão e da moralidade, além de sua preocupação em pôr 
termo à desordem de instituições ridículas ou funestas — que forneceu 
as imagens mais impressionantes do Panthéon. As origens da sociedade 
descrita por essa literatura são unicamente aquelas que o legislador lhe 
atribui; ora, em seu funcionamento, elas desempenham um papel não 
menos essencial que o da tradição para o regime absoluto. 
A mais célebre dessas elaborações continua sendo a obra Paris en 
l'an 2440, de Louis-Sébastien Mercier, em que o testamento tornou-
se o órgão exclusivo da memória coletiva; os cidadãos reconhecidos 
por seus méritos são os únicos a serem celebrados, em nome de uma 
mentalidade histórica discriminatória" (Bronislaw Baczko). "Esse 
espaço" — observa o historiador —, "além dos monumentos e templos, 
é mobiliado por uma verdadeira arquitetura ficcional": em particular, 
por galerias dos estadistas ilustres, por uma verdadeira "fila de heróis, 
cujo semblante, silencioso sem deixar de ser imponente, proclama a 
todos que é útil e grandioso angariar a estima do público". As estátuas 
de Voltaire, Rousseau e Buffon formam "um livro de moral" e todos 
conjuntamente dão "uma lição pública tão vigorosa quanto eloquente". 
O respeito pelo gênio levou, também, a homenagear os espaços 
ocupados por ele. De acordo com a observação de Jean-Claude Bonnet, 
a melhor descrição dessa nova moda deve-se a Diderot em Essai sur 
les règnes de Claude et de Néron (1778): "Uma espécie de reconheci- 
mento delicado acrescenta-se a uma curiosidade digna de elogios para 
despertar nosso interesse pela história privada dos autores, cujas obras 
8. Cf., nas perspectivas entrecruzadas aqui, os trabalhos bastante diferenciados em sua 
inspiração de Philip Connell, "Death and the Author: Westminster Abbey and the Me-
anings of the Literary Monument", in Eighteenth-Centùry Studies, vol. 38, n. 4, 2005, 
p. 557-585; Matthew Craske, "Westminster Abbey 1720-1770: A Public Pantheon 
Built upon Private Interest", in Richard Wrigley e Mattew Craske (orgs.), Pantheons: 
Transformations of a Monumental Idea, Aldershot: Ashgate, 2004, p. 57-80; além de 
David Bindman e Malcolm Baker, Roubiliac and the Eighteenth-Century Monument: 
Sculpture as Theatre, New Haven: Yale University Press, 1995, cap. 2. 
126 
suscitam nossa admiração. [...] Gostamos de visitar suas moradias." 
Portanto, na França do século XVIII, o culto pelos homens ilustres 
implicava uma peregrinação a seus túmulos ou lugares de criação, 
reativando rituais reservados até então à categoria do sagrado. Em pri-
meiro lugar, aparece a visita ao escritor famoso' que, no século XIX, 
irá conhecer certo número de avatares até configurar uma espécie de 
corpo a corpo que a simples leitura não permite alcançar, ou apenas 
de maneira insuficiente. 10 
A sanção da opinião pública tornava-se, assim, necessária para o 
sucesso de uma homenagem, mesmo que fosse pronunciada em nome 
da república das letras; aliás, desde 1765, Marc Antoine Laugier -
no capítulo "Monumentos em homenagem aos homens ilustres" de 
seu livro Observations sur l'architecture — recomendava que se fizesse 
apelo ao "voto do público" para selecionar os respectivos beneficiários. 
Na tensão entre essa reverência devotada a personagens específicos 
e a homenagem geral prestada ao engenho humano é que se esboçou, 
aos poucos, a figura do Pantheon francês. No início do reinado de Luís 
XVI, a França conheceu, na pessoa do conde d'Angiviller (1730-1809), 
nomeado diretor das Obras Públicas, uma nova política da posteridade: 
um de seus símbolos foi, em 1775, a nomeação de Thomas, autor de 
célebres Éloges, para o posto de historiógrafo dessa repartição pública." 
E, acima de tudo, o diretor anunciou, em dezembro de 1774 e em 
9. Olivier Nora, "La Visite au grand écrivain", in Pierre Nora (org.), Les Deux de 
mémoire, II: La Nation, vol. 3. Paris: Gallimard, 1986, p. 563-587. 
10. Desse ponto de vista, Marc Augé descreve a visita aos castelos em termos reveladores: 
"A percepção da casa como corpo efetua-se em dois planos: a casa é um corpo em 
si, tem sua própria personalidade, sua aparência, suas aberturas, sua intimidade, e 
por ser um corpo é que ela pode ser assimilada ao corpo daquele ou daquela que o 
ocupa, do ponto de vista seja do próprio ocupante, seja de uma testemunha exterior 
que, impelida pela energia romanesca do ódio, amor ou lembrança, será levada a 
confundir uma pessoa ainda viva ou falecida com o invólucro de pedra em que se 
dissimula seu corpo ou sua sombra." (Domaines et châteaux, Paris: Hachette, 1992.) 
11. Sobre o contexto do sucesso considerável obtido por Éloges de Thomas no âmago do 
espaço acadêmico e do campo literário, cf. Georges Armstrong Kelly, "The History 
of the New Hero: Eulogy and Its Sources in Eighteenth-Century France", in The 
Eighteenth Centùry, vol. 21, 1980, p. 3-24; Volker Schröder, "Entre l'Oraison funèbre 
et l'éloge historique: L'Hommage aux morts à l'Académie Française", in MLN, vol. 
116, 2001, p. 666-688. 
127 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
janeiro de 1775, a encomenda anual de "quadros de história e de es-
tátuas, cujo tema será a figura dos homens ilustres da França".12 
Tal iniciativa ia alimentaro projeto de museu no Louvre, já evo-
cado favoravelmente pela Encyclopédie, e que os dirigentes das Obras 
Públicas pretendiam levar a bom termo, dedicando-o "à glória tanto 
dos Reis da França como dos Homens Ilustres da Nação". De forma 
mais geral, uma série de projetos arquiteturais acalentava a ideia de 
um campo santo em que houvesse uma mistura do culto pelos homens 
ilustres com a religião dinástica na mesma exaltação da moral pública.13 
 
Ao estudar os projetos da década de 1780, John Mac Manners 
evoca um "idílio, mediante o pagamento de somas consideráveis, de 
túmulos pitorescos no meio de árvores e de canteiros de flores, or-
nado de templos, colunatas e estátuas", assim como "uma espécie de 
Panthéon nacional", construído em decorrência de um "vandalismo 
patriótico" por antecipação. Aliás, frequentemente, a posição dos tú-
mulos era ordenada segundo as famílias, assim como de acordo com 
o dever: os dois sistemas da raça e do mérito coabitavam no cerne de 
um patriotismo esclarecido. '4 
12. Andrew McClellan, "La Série des grands hommes de la France du comte d'Angiviller 
et la politique des parlements", in Clodion et la sculpture française de la fin du XVIII 
siècle: Actes du colloque du musée du Louvre, 20-21 mar. 1992, Paris, 1993. 
13. Sobre o tema da arte que serve de ilustração para a virtude, c£ a tese sempre válida de 
Jean Locquin, La Peinture d'histoire en France de Ie747 à 1785 (Paris, 1912), Arthena, 1978. 
14. Cf. John Mac Manners, Death and Enlightenment Changing Attitudes to Death among 
Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University 
Press, 1981. A publicação Nouvelles de la République des Lettres et des Arts de 3 de 
janeiro de 1787 observava que esse cemitério reúne, "em torno de nossos soberanos, 
até mesmo depois de seu óbito, aqueles que mantêm com eles vínculos de sangue, 
reconhecimento, amor, patriotismo, virtudes, ciências e talentos, a fim de que os 
sujeitos, cujos serviços ou conhecimentos haviam alicerçado a glória de nossos reis, 
sirvam ainda à sua imortalidade pela homenagem contínua e coletiva que lhes seria 
prestada pela posteridade nesses amplos monumentos" (apud Richard Etlin, The Cemetery and the City: Paris, Ie744-1804, Ph.D. Princeton University, 1978). 
128 
A funcionalização dos mortos15 
No início do século XIX, aparece o que Reinhart Koselleck designa 
como "a funcionalização da representação da morte em benefício dos 
sobreviventes". A venda dos bens da primeira ordem, no período inicial 
da Revolução, parece ter proporcionado a oportunidade de uma política 
da memória, finalmente, moral e lógica. As intervenções sobre os restos 
mortais dos homens ilustres a fim de prestar-lhes uma homenagem 
solene manifestam claramente que a Revolução entende como fundar, 
de novo, o passado em seus próprios monumentos. Alguns mausoléus 
desapareceram com as cinzas que eles continham, enquanto outros 
subsistiram na qualidade de monumentos históricos, e, finalmente, 
outros acabaram por ser erguidos no lugar dos modestos túmulos ou-
trora dedicados ao gênio, às vezes longe do local da sepultura original. 
A criação do Panthéon resultou do discurso do marquês de Vilette 
ao clube dos jacobinos, em 10 de novembro de 1790: "De acordo com 
os decretos da Assembleia Nacional, a abadia de Sellières foi vendida e, 
nesse local, jaz o corpo de Voltaire; ora, ele pertence à Nação. Os senhores 
consentirão que essa preciosa relíquia se torne a propriedade de um parti-
cular? Permitirão que ela seja vendida como bem nacional ou eclesiástico? 
Se os ingleses chegaram a reunir seus homens ilustres em Westminster, por 
que hesitaríamos em colocar a urna de Voltaire no mais belo de nossos 
templos, na nova Sainte-Geneviève, em face do mausoléu de Descartes? 
[...] Desse modo, estou decidido a erguer-lhe um monumento por minha conta."16 A 
 invenção de relevantes exemplos apropriados para suscitar 
15. Adoto, nesse ponto, a posição de Mark K. Deming no catálogo da exposição dirigida 
por Barry Bergdoll, Le Panthéon, symbole des révolùtions, Paris: CNMHS, Hôtel de 
Sully; e em "Le Panthéon révolutionnaire", Montreal: CCA/Picard, 1989, p. 97-150. 
Essa representação é, evidentemente, a herdeira de uma longa tradição; aliás, uma 
de suas etapas notórias é a publicação de Titon du Tillet, Description du Rimasse 
françois exécuté en bronze à la gloire de la France et de Louis le Grande et à la mémoire 
perpétuelle des illustres poètes et das fameux musiciens françois, Paris, 1760. Sobre esse 
projeto de 1708, cf. J. Colton, The Parnasse (rançaïs: Titon du Tillet and the Orïgins 
of the Monùment to Genius, New Haven: Yale University Press, 1979. 
16. Cf. Marie-Louise Biver, Le Panthéon à l'époque révolùtionnaire, Paris: PUF, 1982; 
assim como Les Fites révolutionnaires à Paris, Paris: PUF, 1979, p. 37-38, que fornece 
uma coletânea de textos sobre as sucessivas panteonizações. 
129 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
a emulação foi, particularmente, evidente no decorrer da Revolução"; 
além disso, a literatura contrarrevolucionária não se equivocou a esse 
respeito, transformando o tema dos "homens ilustres" em material que 
desencadeou uma profusão de sarcasmos. No livro Petit Almanach de nos 
grands hommes (1788), Rivarol descreveu o retrato coletivo das medio-
cridades literárias antes de esboçar sob a Revolução, durante seu exílio 
na Holanda, um contrarretrato do filósofo ( De la Philosophie moderne).18 
Do mesmo modo, as antiutopias floresceram no discurso dos anti-Luzes, 
exacerbado no decorrer do primeiro ano da Revolução.19 Aliás, a questão 
da legitimidade de um Panthéon para garantir a imortalidade literária 
foi formulada no próprio campo revolucionário: Louis-Sébastien Mercier 
havia assumido uma postura semelhante a propósito de Descartes. 
De qualquer modo, entre os revolucionários, subsistia uma contra-
dição fundamental — como é sublinhado por Michel Vovelle — entre 
duas mortes, objeto da atenção dos doutos por ocasião do concurso 
promovido pelo Institut, em 1800, sobre os funerais: entre "a morte 
ameaçadora, repugnante, perigosa, cuja gestão é assumida por eles, e 
a outra morte, abstrata, útil, recuperável, a serviço da vida"." Desta 
última, Arsenne Thiébaut esboçou as vantagens ao evocar em seu livro 
Réflexions sur les pompes funèbres, publicado em frimaire do ano VI 
(1797), os "efeitos maravilhosos que o busto dos homens ilustres, e as 
honras que lhes são conferidas, terão sobre os costumes, as ciências e 
as artes. [...] Nesta escola é que o professor primário formará o aluno; 
daí é que o artista extrairá seus temas; para aí é que a mãe conduzirá o 
17. Léonard Bourdon, Recueïl des actïons héroïques et civiques des Républicains français, 
ano II. 
18. Philippe Roger, "Les Grands Hommes de Rivarol", in Le Culte des grands hommes, 
Actes des troisièmes entretiens de La Garenne-Lemot, Nantes: Université de Nantes, 
1998, p. 43-52. 
19. No livro L'Île des philosophes (1790), o obscuro abbé Balthazard descreve uma viagem 
na ilha do acaso, na qual reinam as doutrinas de seus inimigos. Cf. Darrin M. Mc-
Mahon, "Narratives of Dystopia in the French Revolution", in Yale French Studies, 
n. 101, 2001, p. 103-118; e, de forma mais geral, Enemies of the Enlightenment: The 
French Counter-Enlightenment and the Making of Modernity , Nova York: Oxford 
University Press, 2001. 
20. Pascal Hintermeyer, Politiques de la mort, Paris: Payot, 1979, p. 73; Michel Vovelle, 
La mort et l'Occident, de 1300 à nos jours, Paris: Gallimard, 1983. 
130 
filho para corrigir seus vícios; aí é que o aspecto desses bustos servirá de 
veículo para a emulação e para o amor da Pátria; aí, finalmente, é que o 
viajante virá avaliar a glória da República e a felicidade do povo".21 Nessa 
perspectiva, o Panthéon transformou-se, de acordo com a expressão 
forjada por Mona Ozouf, na "escola normal dos mortos".22 
Entretanto, o advento dessa morte patriótica dependia da cons-
truçãode valores adequados, o que não aconteceu sem vicissitudes. 
As sucessivas transferências dos restos mortais do marechal da França 
Henri de La Tour d'Auvergne, visconde de Turenne (1611-1675), 
caracterizaram, nesse sentido, um percurso exemplar": a "múmia" des-
secada, removida da urna da abadia de Saint-Denis, foi mostrada, em 
primeiro lugar, aos amadores (durante uns oito meses), mediante uma 
gorjeta ao guardião; em seguida, ela foi transportada para o Museu de 
História Natural e "colocada entre o esqueleto de um rinoceronte e o 
de um elefante". Em 15 de thermidor do ano IV (2 de agosto de 1796), 
os Cinq-Cents24 deram-se conta de que os restos mortais de Turenne 
haviam sido deslocados para esse local e o Diretório ordenou que eles 
fossem depositados no Museu dos Monumentos Franceses. Depois de 
terem sido conservadas como curiosidade da física — por seu material 
—, as ossadas de Turenne voltaram então a seu túmulo, que, por isso 
mesmo, se tornou monumento histórico. Mais tarde, tendo sido infor-
mado de um destino considerado, por sua vez, inconveniente, Napoleão 
decidiu instalar, solenemente, o mausoléu no Hôtel des Invalides, contra 
a opinião de Lenoir, que pretendia estabelecer a dissociação entre os 
restos e o monumento — conservar o túmulo para a história, em seu es-
tabelecimento, e mandar erguer um novo mausoléu, adaptado à sua nova 
situação como ao gosto presente. Os restos mortais de Turenne haviam 
21. ApudRichard Etlin, op. cit., p. 327. 
22. Mona Ozouf, "Le Panthéon, l'école normale des morts", in P. Nora (org.), Les Lieùx 
de mémoire: La Republique, Paris: Gallimard, 1984, p. 139-196. 
23. Cf. ainda Suzanne Clover Lindsay, "Mummies and Tombs: Turenne, Napoleon and 
Death Ritual", in Art Bulletin, vol. 82-3, 2000, p. 476-489. 
24. Conseil des Cinq-Cents (Conselho dos Quinhentos). Sob o Diretório (1795-1799), 
essa assembleia constituía — com o Conseil des Anciens (Conselho dos Anciãos, 
formado por 250 deputados) — o poder legislativo. [N.T.] 
131 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
percorrido, de algum modo, o arco completo dos tipos e dos valores de 
conservação, tendo acabado por ilustrar um caso exemplar dessa política 
das novas sepulturas, adotada nesse período no Panthéon e alhures." 
O caso ilustra perfeitamente a constatação feita por Robert Harrison, 
segundo a qual "as leis culturais da mudança são históricas e, por-
tanto, obedecem também à lei da mudança. Sem sua substituição 
por novas leis, não há transformação de valor, porque, precisamente, 
estamos desprovidos de um saber do luto".26 Nesse momento histó-
rico particular que foi a Revolução Francesa, o desafio consistia em 
que os túmulos herdados tivessem um lugar em uma esfera pública, 
exclusivamente regida pelo valor testamentário heroico — prelúdio à 
exigência comemorativa, tal como ela será concebida pelo romantismo.27 
O Panthéon — que, de acordo com a sugestão de Quatremère de 
Quincy, deveria ser rodeado por uma cerca viva, à semelhança do 
que havia sido adotado no recinto sagrado dos templos antigos28 — e 
em seguida o museu, sob suas diferentes formas, constituíam uma 
possibilidade de outros tantos novos santuários. Na escala regional e 
local, os decretos ulteriores sobre as sepulturas davam testemunho do 
empreendimento descristianizador, além da continuidade do combate 
higienista e dos modelos de "campos de repouso" que triunfarão no 
ano XII com o decreto do Conselho de Estado sobre as sepulturas." 
25. Permito-me citar meu livro Surveiller et r'instruire: La Révolution Françaire et 
l'intelligence de l'héritage historique, Oxford: Voltaire Foundation, 1996. Para um 
balanço da reflexão contemporânea dos especialistas sobre esse tema, cf. em particular 
Gary S. McGowan e Cheryl J. LaRoche, "The Ethical Dilemma Facing Conservation: 
Cate and Trearment of Human Skeletal Remains and Mortuary Objects", in Journal 
of the American Institute for Conrervation, vol. 35, n. 2, 1996, p. 109-121. 
26. Robert Harrison, Les Mortr, Paris, Le Pommier, 2003, p. 107. 
27. Para as notas de rodapé, suprimidas na tradução francesa, cf. a edição original de 
Robert Pogue Harrison, The Dominion of the Dead, Chicago: University of Chicago, 
2003, p. 162-167. 
28. Mark K. Deming, in Barry Bergdoll, op. cit., p. 136-138. 
29. Ao lado dos famosos decretos de Fouché ou Chaumette, o de Étienne Maignet -
em Marselha, promulgado em 9 de germinal do ano II — pretende, assim, assumir 
toda a "economia da morte": cf. Régis Bertrand, "Maignet, Marseille et la mort: La 
Réorganisation des sépultures en I'an II", in Elizabeth Liris e Jean-Maurice Bizière 
(orgs.), La Révolution et la mort, Toulouse: Mirail, 1991, p. 61-73. 
132 
Por toda parte, o reordenamento revolucionário pretendia supe-
rar o que Mark K. Deming designa como "os conjuntos confusos e 
labirínticos da abadia de Saint-Denis e da Abadia de Westminster" 
em nome de uma obrigação imperiosa de classificação. A pedagogia 
tomou o lugar do status diferenciado dos mortos por ordens e estados: 
o desígnio didático tornou-se, daí em diante, exclusivo de qualquer 
outra preocupação e exigiu um esforço de clareza e de eficácia até 
então incongruente. Alexandre Lenoir, zelador ainda jovem de um 
depósito de monumentos, oriundos das igrejas parisienses, começou 
apresentando um catálogo das obras de arte conservadas ao Comitê 
da Instrução Pública e à Comissão Temporária das Artes; nesse texto, 
ele explicava ter "tido o cuidado, na medida do possível, de reunir 
tudo o que pode fornecer ideias das indumentárias antigas, seja civis, 
masculinas e femininas, seja militares, segundo as patentes. Espero, 
acrescentava ele, que essa reunião seja interessante também para os 
artistas que desejarem reconstituir indumentárias que seriam difíceis 
de encontrar se, porventura, a vigilância e a solicitude da Convenção 
Nacional negassem a autorização para conservar tais obras." Em suma, 
esta era sua conclusão: "Esses monumentos, apresentados deste modo, 
devem ser considerados apenas como uma reunião de figurinos, uti-
lizando indumentárias segundo as épocas a que pertencem e segundo 
as posições ocupadas por aqueles que eles representam."" A fórmula 
remetia, de maneira exemplar, tanto a uma tradição dos estudos de 
antiquários marcada pelo gênero da coletânea de modas31 como a uma 
dessacralização propriamente revolucionária do túmulo, considerado 
como simples figurino e representante de uma posição social e de uma 
época, em vez de um defunto específico. Assim, ao dar a impressão de 
metamorfosear a coleção dos reis em outros tantos artefatos de exposição, 
Lenoir pretendia romper, de forma brutal e negociada, com qualquer 
evocação de figuras individualizadas, assim como concentrar a atenção 
no dispositivo de representação dos antiquários. Tudo se passa como se 
30. Cf. Archiver du Mude des Monuments Français, Paris: Inventaire Général des Richesses 
d'Art de la France, 1883-1897, II, peça CXLII. 
31. Laure Beaumont-Maillet, "Les Collectionneurs au cabinet des Estampes", in Noùvelles 
de l'Estampe, n. 132, 1993, p. 5-27. 
133 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
os iconoclastas revolucionários, ao observarem a imagem, ignorassem o 
médium, enquanto uma percepção "profissional" — no caso concreto, 
a do artista e conservador — limitava-se, pelo contrário, a considerar 
o médium, ou seja, o figurino. 
Tal interesse vai subsistir: a revista Musée do ano IX compreendia 
"uma dissertação sobre a indumentária", e a sexta edição do ano X 
acrescentava "uma dissertação sobre a barba". Entretanto, sua museo-
grafia imaginava, em breve, associar os membros da mesma família 
ou do mesmo contexto histórico. Em março de 1803, Lenoir reivin-
dicava a urna do condestável Olivier de Clisson "para colocá-la, no 
Museu, ao lado do túmulo de Du Guesclin, seu êmulo; assim, esses 
dois monumentos, depositados perto do túmulo de Carlos V, suscita-
rão mutuamente um novo interesse".32 Como é resumidopelo barão 
de Norvins, a propósito de um projeto concorrente para o jardim 
de Élysée, trata-se de agrupar "túmulos segundo a vida ou o caráter de 
seus antigos ocupantes". Para solicitar a transferência, para seu museu, 
do túmulo do chanceler da França, Michel de l'Hôpital, erguido em 
uma aldeia perto de Étampes, Lenoir exprimia-se, em 13 de prairial 
do ano VIII, nos seguintes termos: "Quem poderá observar, insensi-
velmente, a estátua de l'Hôpital, ao lado dos túmulos dos príncipes 
lorenos, dos Médicis e dos Valois que tiveram de enfrentar, em várias 
oportunidades, a coragem desse homem ilustre ao defender os interes- 
ses do povo de quem ele declarava ser o pai?"33 Michelet tornou-se o 
intérprete fiel desses diálogos mortuários quando, em sua aula de 5 de 
janeiro de 1843 no Collège de France, escreveu que os monumentos 
"haviam tido uma felicidade, sem precedentes e jamais experimentada 
depois, isolados nas igrejas, de se verem uns aos outros e conversarem 
entre si".34 Em suma, ele desenvolvia, a posteriori, a nostalgia da con- 
versation Piece que teria sido encarnada pelo estabelecimento concebido 
por Lenoir: "Todas essas figuras, isoladas nas igrejas ou reunidas nos 
museus, deixaram de se exprimir; mas aí, no Museu dos Monumentos 
32. Cf. Archives du Musée des Monuments Français, op. cit., peça CCXCV. 
33. Carta para Lucien Bonaparte, in Archives dù Musée des Monuments Français, I, p. 174. 
34. J. Michelet, Cours du Collège de France, I, Ie838-Ie844, Paris: Gallimard, 1995, p. 524. 
134 
Franceses, organizadas de acordo com a posição ocupada na sociedade 
de suas épocas e segundo as respectivas sensibilidades, sob a claridade 
suave dos vitrais, elas tornavam-se expressivas [...J." 
35 
A primeira sala do museu oferecia uma visão panorâmica de todos 
os séculos, ordenados de forma cronológica. "O artista e o amador", 
sublinhava Lenoir, "hão de observar, em um piscar de olhos, a infân-
cia da arte entre os godos, seu avanço sob Luís XII e sua perfeição sob 
Francisco P, além da origem de sua decadência no reinado de Luís XIV 
e sua restauração no final de nosso século." Resumo de todo o estabele-
cimento, a sala prefigurava as "colagens" arquiteturais do século XIX e, 
especificamente, as de Duban, sucessor de Lenoir. Nas salas seguintes, a 
distribuição das obras obedecia a uma classificação "por época e por ordem 
cronológica, ou seja, em outras tantas peças separadas quanto o número 
de períodos notáveis que a arte nos oferece". Uma sala "primitiva" — pre-
vista em 1806 como "sala do século XI, época que nos apresenta poucos 
monumentos de arte (e que) seria única na Europa" — permaneceu no 
estado de projeto. No final do percurso, Lenoir imaginou, por assim dizer, 
uma sala da atualidade, cuja definição hesitava, de maneira característica, 
entre um Panthéon napoleônico e um museu de arte contemporânea.
% 
Em 1809, surgiu a ideia de uma sala dos fatos heroicos de Napoleão, o 
Grande, Imperador dos Franceses — composta "por modelos das estátuas 
e dos baixos-relevos encomendados atualmente por ele" —, que "formaria 
35. Ibidem , p. 524. Sobre a conversatïon piece, cf. Mario Praz, Consersation Pieces: A Survey 
of the Informal Group Portrait ïn Europe and America, University Park: Pennsylvania 
State UR 1971; e sua crítica por Francis Haskell, in Art Bulletin, vol. 56, n. 2, assim 
como Simon Schama, "The Domestication of Majesty: Royal Family Portraiture 
1500-1850", in Journal of Interdisciplinary Hïstory, vol. 17, n. 1, 1986, p. 155-183. 
36. "Uma grande e esplêndida entrada pelo cais deixaria ver um grande pátio que seria 
decorado com estátuas erguidas a intervalos regulares. As salas do térreo seriam 
utilizadas da seguinte forma: 
1) uma coleção de retratos dos homens célebres da França; 
2) uma sequência cronológica de armaduras de todas as épocas; 
3) uma coleção completa de medalhas francesas; 
4) uma biblioteca cujo acervo seria formado unicamente por livros necessários para 
o conhecimento dos monumentos existentes no museu. 
Finalmente, todos os objetos relativos à instrução, seja da arte ou da história relati-
vamente à França. [...] Esse monumento, único por sua classificação, tornar-se-ia 
extraordinário." (Archïves du Musée des Monuments Frangis, I, peça CLXXXII.) 
135 
A MEMÓRIA INSPIRADORA 
naturalmente o século XIX".37 Mas, sob o título "Século XIX, viagem 
ao Egito do imperador e rei Napoleão I", Lenoir projetava também 
uma sala egípcia. Por último, em 1811, outro plano esboçou uma sala 
de vitrais em que estes "seriam o ornamento principal e, ao mesmo 
tempo, dariam a conhecer os primeiros passos da pintura e das artes 
do desenho, cujos progressos seriam em breve constatados"38. 
Esses diferentes projetos comprovavam como a especificidade do 
depósito dos Petits-Augustins empenhava-se no desígnio de conferir, 
"a cada uma das salas, o caráter, a fisionomia exata do século que ela deve 
representar"39, mediante a reutilização de "detalhes". Com efeito, "em ma-
téria de antiguidade", eis a conclusão do conservador, "são as partes que, 
essencialmente, constituem a arte, servindo habitualmente para reconhe-
cer o povo a que pertence o objeto que deve ser explicado ou descrito". 
De forma mais geral, Lenoir escolheu uma obra particular como espécime 
da arte de um século e, à sua volta, organizou toda a decoração da sala. 
Assim, alguns monumentos "matriciais" ordenavam, com um maior ou 
menor grau de fidelidade, o conjunto do quadro da exposição. Tal foi o 
princípio declarado da sala do século XV em que ele "compôs (seu) teto, 
(suas) janelas e, em geral, toda a decoração de acordo com o tipo do túmulo 
de Luís XII que, por sua vez, ocupa o centro". Esse tipo de organização 
permite conferir como que um "ar de família" à coleção reunida nesse es-
paço, desenhando a imagem de uma comunidade de personagens ilustres. 
Nesse quadro, o epitáfio continuava sendo uma fonte indispensável 
para a compreensão do monumento; mas sobretudo, com a divisa, ele 
permite definir a personagem por inteiro, fornecendo de forma mais 
conveniente o ponto culminante de um retrato.40 
 Por exemplo, a de 
Valentina de Milão, "a mulher inconsolável ao perder o marido": "Nada 
mais é importante para mim" ["Rien ne m'est plus, Plus rien ne m'est"]. 
Por sua vez, a placa dedicada a François Chevert, na igreja parisiense 
37. Ibidem, I, peça CCCC. 
38. Archives Louvre, Z 62-63. 
39. Cf. Musée, 1810, p. 6. 
40. Cf. John Mac Manners, Death and Enlightenment:• Changing Attitudes to Death among 
Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University 
Press, 1981, p. 328-330. 
136 
de Saint-Eustache, que data do decênio de 1770 e cuja celebridade é 
enorme, ilustrava o percurso excepcional de um patriota de mérito, 
cuja exemplaridade continuava sendo atual. Igualmente, a divisa de 
Dominique Sanède de Vic d'Ermenonville, amigo de Henrique IV, 
que morreu de desgosto dois dias depois do rei, assumia um caráter 
emocionante. À semelhança do que se passava no jardim com fabri-
ques, o epitáfio desempenhava, então, o papel tanto de uma lição de 
moral como de um apelo à memória: semelhantes usos inscreviam-se 
no gênero dos "derradeiros escritos", para citar Armando Petrucci.
41 
Por último, essa predileção remetia, de forma mais abrangente, à 
moda, por volta da década de 1770, de historietas benfazejas, de ações 
louváveis e de modelos éticos, associados, em particular, à difusão dos 
temas filantróp icos .42 
O preço a pagar por essa nova vida — a ressurreição dos mortos 
— constituía, para Michelet, o heroísmo de Lenoir; de fato, o histo-
riador retomou a compilação de lendas que havia sido elaborada desde 
thermidor, transformando os monumentos em outros tantos feridos 
que tivessem ressuscitado pelo sacrifício de seu conservador. O mu-
seu tornou-se o espetáculo de vítimas de pedra, reunidas em torno 
da ideia de nação.43 Graças a seu sacrifício, instrumento de qualquer 
patrimonialização, Lenoir "havia curado os ferimentosdessas vítimas, 
ajustando seus frágeis membros que se encontravam dispersos [...] Por 
seu intermédio, esses monumentos receberam uma nova consagração 
por terem sido cobertos com seu nobre coração e tingidos com seu 
sangue[...]" .44 O martirológio prosseguiu no decorrer de toda a aula 
41. Armando Petrucci, Le scritture ultime: Ideologia della morte e strategie dello scrivere 
nella cultura occidentale, Turim: Einaudi, 1995, p. 141-142. 
42. Catherine Duprat, Le Temps der philanthropes, Paris, Comité des Travaux Historiques 
et Scientifiques, 1993, p. 52-53, 203. Sobre os catecismos revolucionários e outros 
suportes de propaganda, cf. Colporter la Révolution, Montreuil, 1989 (Catálogo da 
exposição). 
43. Para Deborah Jenson, essa perspectiva anuncia a conferência de Renan sobre a nação 
(1882), o que parece ser algo de arriscado: Trauma and its Representations: The Social Life 
 of Mimesis in Post-Revolutionary France, Baltimore: Johns Hopkins University 
Press, 2001, cap. 1. 
44. J. Michelet, Cours du Collège de France, op. cit., p. 521. 
137 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA 1NSPIRADORA 
de Michelet, em 29 de dezembro de 1842: "O senhor Lenoir havia 
salvaguardado todos os túmulos da França, por um lado, ao propor à 
Assembleia que eles fossem conservados e, por outro, ao cobri-los com 
seu corpo. E acabou por ser vítima desses ferimentos." Desse modo, 
ele retomava o discurso do próprio Lenoir, que, em diferentes edições 
de seu catálogo, afirmava ter machucado a mão ao afastar as baionetas que 
ameaçavam destruir o túmulo do cardeal de Richelieu, obra-prima de 
Girardon. No lado oposto a esse patrimonializador, como homem 
ferido que podia orgulhar-se de seu estigma, manifestou-se uma leitura 
contrarrevolucionária que, pelo contrário, limitava-se a perceber, no 
museu, o sparagmos, a dispersão dos corpos dos heróis, a derrota e a 
anarquia, em suma, o desmembramento da comunidade, em vez de 
sua reunião em uma nova coletividade." 
O colecionismo de Alexandre Lenoir correspondia, em sua busca e 
em suas modalidades, a figuras banais desde o Antigo Regime (ele não 
perdia de vista os marchands nem os leilões, "mantendo-se incógnito" para 
negociar as peças "a um preço moderado")." Entretanto, alguns episódios 
inauguravam as narrativas ulteriores, as do século XIX, com achados no 
meio dos detritos da nova vida. Assim, em 14 de novembro de 1796, 
Lenoir identificou o túmulo de Diana de Poitiers, favorita de Henrique II, 
em Anet — cidade em que ela possuía um magnífico castelo, cuja constru-
ção se deve a Philibert de l'Orme, por encomenda do rei: tendo sido "ven-
dido a um cidadão das redondezas, o túmulo era utilizado como cocho 
para dar de beber aos porcos e às aves".47 Às vezes, o proprietário exigia a 
menção da dívida contraída a seu respeito: assim, o dr. Boysset, detentor 
do túmulo do filósofo e teólogo Abelardo, em Chalon-sur-Saône, "não 
pede de modo algum a restituição do valor despendido por esse bloco 
de pedra da antiguidade", mas "reivindica [...] que a inscrição histórica 
(destinada) a esse túmulo faça menção e designe o nome daquele que o 
havia conservado e sem o qual ele não teria subsistido". 
45. Retomo, aqui, a figura elaborada por Northrop Frye, Anatomie de la critique, Paris: Gallimard, 1969. 
46. Musée, n. 446, p. 200. 
47. Musée, n. 91, p. 191; n. 443, p. 195. 
138 
Enfim, quando faltava o monumento desejado, Lenoir recorria a 
diversos expedientes, incluindo a encomenda aos artistas contemporâ-
neos. Sua primeira iniciativa data de 11 de agosto de 1796 e diz respeito 
a bustos de Sarrazin, Poussin e Le Sueur48; em relação ao século XVI, 
Montaigne, Fabri de Peiresc e Goujon; enfim, para o século XVIII, 
Rousseau, Helvétius, Raynal, Chamfort e o incontornável Winckelmann 
— aliás, uma escolha bastante significativa de uma opção "democrática". 
O historiador abbé Guillaume Raynal, falecido recentemente (1796), 
representava, antes da Revolução, o arquétipo do filósofo vítima do 
despotismo, em decorrência de sua detenção em 1781. Apesar de ter 
deixado de pertencer ao panteão republicano a partir de maio de 1791, 
ele continuou sendo uma ilustração do anticlericalismo — e, obvia-
mente, o defensor das "Colônias", assumindo uma posição contra a 
colonização." Por sua vez, Sébastien-Roch N. de Chamfort — que ga-
nhou notoriedade com o livro Caractères, publicado postumamente, em 
1795 — pôde simbolizar o talento como vítima dos tempos de Terror. 
Por conseguinte, o museu demonstrava como o patrimônio voltava a 
reivindicar as genealogias, em termos de filiação invertida pela qual os 
filhos engendram os próprios pais." 
A busca de um santuário do Estado 
O jardim de Lenoir herdou um imaginário de Élysée, cujas carac-
terísticas principais já foram abordadas; no entanto, os primeiros anos 
48. Cf. Jules Guiffrey, "Bustes commandés à Michallon et Deseine", in Nouveller Archives 
de l'Art Français, 1880-1881, II, p. 383. 
49. O pintor Girodet-Trioson (1767-1824) expôs no Salon de 1798 (n. 194) o "retrato 
de C. Belley, ex-representante das Colônias", diante de um busto de G. Raynal à 
moda antiga (Versalhes, Museu Nacional do Castelo). Cf. Hans-Jurgen Lüsebrink 
e Manfred Tietz (orgs.), Lectures de Raynal: L'Hirtoire des deux Meles en Europe et en 
Amérique auXVIIIe siècle, Oxford: Voltaire Foundation, 1991; e Muriel Brot, "Raynal 
au printemps 1793", in Sacie, vol. 27, 1995, p. 317-322. 
50. Yann Thomas, "Res, chose et patrimoine; note sur le rapport sujet-objet en droit romain", 
 in Archives de la Philosophie du Droit, Paris, Sirey, 1980, p. 425; "Les or-
nements, la cité, le patrimoine", in Images romaines, Paris: ENS, 1998. 
139 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
da Revolução haviam tentado dar-lhe uma nova fisionomia. Uma boa 
representação dessa tentativa foi o Plan allégorique d'un jardin de la 
Republique française et des vertus re'publicaines, proposto pelo cidadão 
Verhelst ao Comitê de Salvação Pública, em 16 de prairial do ano II; 
organizado à volta de falsas ruínas que estão em nítida oposição aos 
dispositivos anteriores, ele configura uma damnatio memorie didática. 
O programa detalhado é o seguinte: 
"Na Praça da Revolução, serão instaladas as ruínas de um Palácio 
de Tirano e, sobre elas, será erguida uma plataforma. No centro dessa 
praça, será colocada a estátua da Liberdade, que fica observando 
incessantemente seus Filhos. Por baixo dessas ruínas, haverá quatro 
salas destinadas a demonstrar as causas da justa destruição dos Reis: 
na primeira sala, serão inscritos os Vícios da Monarquia; na segunda, 
a Política e a Adulação dos Cortesãos; na terceira, a Injustiça e os 
Privilégios; enfim, na quarta, o Fanatismo e a Fraude. Neste aspecto é 
que todos os Estrangeiros, ao lerem as causas de nossa bem-sucedida 
Revolução, assim como da destruição do Tirano, impregnar-se-ão 
do horror pela escravidão e proclamarão: Não haverá felicidade sem 
a Liberdade e a Igualdade. No local reservado ao Jardim Nacional, 
à direita e à esquerda, serão erguidas duas colunas destinadas aos 
mártires da Revolução. Da plataforma será possível descobrir vários 
caminhos, dissimulados até então pelo Palácio do Tirano, dedicados às 
Virtudes e às afeições puras de todas as épocas. Desse modo, veremos: 
1) o caminho da Honra, da Verdade, da Liberdade, da Igualdade e da 
Imortalidade; 2) o caminho da Virtude, no qual serão encontrados 
vários objetos, tais como estátuas, escritos empolgantes ou, finalmente, 
informações capazes de inspirar sentimentos republicanos; 3) o caminho 
da Fraternidade, para alimentar a amizade e a boa harmonia entre Pai, 
Mãe, Filhos(as), Irmãos, Irmãs, Amigos e Concidadãos; 4) o caminho 
da Probidade e da Fidelidade; 5) o caminho do Amor Conjugal -
neste local, os Esposos virão prestar, mutuamente, o juramento de viver 
em bom entendimento e de ficarem juntos para sempre; 6) o caminho 
do Gênio e das Artes, no qual o Homem assumiráo compromisso 
de renunciar a fazer qualquer obra contrária aos bons costumes — o 
Poeta deixará de escrever em um estilo indecente, o Artista não irá 
140 
expor outros quadros obscenos e, finalmente, o fabricante fará questão 
de fornecer mercadorias em bom estado; 7) o caminho da Humani-
dade, em que nada será poupado para inspirar sentimentos em relação 
ao que o rico deve aos pobres que são seus irmãos e semelhantes; 
8) o caminho do Amor pela Pátria. Todos esses caminhos conduzem 
ao Templo do Ser Supremo e da Imortalidade. Se o Homem vier a 
afastar-se desses caminhos, ele cairá em outros tortuosos — tais como 
Orgulho, Cupidez, Avareza, Devassidão, Infidelidade, etc. — que o 
conduzirão à sua perda; essas estradas desembocam em cloacas, figuras 
de todos os vícios. Ao sair do Templo, entra-se nos Campos Elísios. 
Nesse local, usufruir-se-á de tudo o que pode encantar a vista; aí, ver-se-á 
um tanque de sessenta toesas de comprimento e vinte de largura. Mais 
adiante, uma grande cascata, cujas águas servirão para regar os prados. 
Em um dos lados do tanque, o Homem da Natureza, Rousseau, colo-
cado perto de uma cabana rodeada de córregos serpeantes e guarnecida 
com choupos bem altos. À esquerda da cascata, será erguido um Templo 
ao Gênio, no qual hão de figurar Voltaire e os Heróis da Liberdade. 
À direita, será construída uma coluna em que serão inscritos os nomes 
de todos os Homens Ilustres da História." Semelhante programa tem a 
vantagem de reunir facilmente quase todas as representações forjadas pelo 
decênio em relação aos elementos comemorativos, ao mesmo tempo nos 
jardins com fabriques, nos cemitérios e nos panteões; esta configuração 
topográfica e alegórica, heroicizada pelo amor da pátria, pretende ser 
um recurso eficaz, em forma de propedêutica, para homenagear os dois 
heróis das Luzes, Voltaire e Rousseau. Aliás, o gótico em ruínas, como 
metáfora para um regime desacreditado, tornar-se-á um lugar-comum da 
iconografia militante: após thermidor, uma alegoria complicada, dirigida 
contra Robespierre e intitulada Le Miroir du passe pour sauvegarde de 
l'avenir, mostrava um "tribunal terrorista" instalado em uma construção 
gótica — indício "realista" e, ao mesmo tempo, emblemático.51 
No início do século XIX, alguns jardins — tal como o de "Mousse-
aux", o território da ilusão, desenhado por L. de Carmontelle de 1773 a 
51. Lauren M. O'Connell, "Redefining the Past: Revolutionary Architecture and the 
Conseil des Bâtiments Civils", in Art Bulletin, vol. 77, n. 2, 1995, p. 207-224. 
141 
A MEMÓRIA INSPIRADORA 
1778, e no qual Rousseau colhia suas plantas — conservaram sua antiga 
celebridade, mesmo que tivessem sido degradados; entretanto, impunha-
se atribuir-lhes uma nova serventia. A ideia de "converter os jardins de 
Mousseaux — sua situação em local recuado e em posição elevada, longe 
e acima dos ruídos da cidade, parecia destiná-los a tal objetivo — no 
Élysée histórico francês" ocorreu ao barão de Norvins, secretário parti-
cular do administrador do departamento de Seine. Seu livro Mémoires 
evocava seu desígnio de instalar nesse lugar os monumentos franceses: 
"Os hóspedes naturais desse Élysée expiatório da amnésia do tempo 
e das lembranças da Revolução deveriam ser todos os túmulos e mo-
numentos [...] do depósito dos Petits-Augustins. Eu tinha estudado 
meu projeto no próprio terreno e havia tirado partido do relevo tão 
diversificado do parque de Monceaux, de suas colinas, de suas aleias 
escavadas e solitárias, de suas águas e das sombras fornecidas pelas 
folhagens de suas árvores, para colocar e abrigar túmulos, segundo a 
vida ou o caráter de seus antigos ocupantes. Além disso, uma capela 
sepulcral teria reavivado o interesse de um curso de história nacional, 
a céu aberto, ministrado a partir de peças irrecusáveis." 
Segundo parece, Nicolas Frochot (1761-1828) — 1º administrador 
do departamento de Seine, cuja capital era Paris — serviu-se amplamente 
desse projeto; com efeito, em 1800, ele solicitou que os monumentos, 
até então reunidos no depósito dos Petits-Augustins, fossem instala-
dos em Monceau, parque em que "essa lúgubre e majestosa coleção 
de arquivos da morte, colocada sob a abóbada do céu no meio de um 
Élysée guarnecido de flores, tornar-se-ia, subitamente, inspiradora para 
o gênio, além de proclamar aos séculos futuros a religião dos túmulos 
[grifo de Dominique Poulot], consagrada pelo testamento dos séculos 
passados"." Eis uma forma de anunciar o programa do cemitério pari-
siense de Père-Lachaise, sob a Restauração (1814-1815), no qual Frochot 
mandará colocar, finalmente, alguns desses mais célebres monumentos 
com o objetivo de "lançar" o novo cemitério. As opiniões divergiam, po-
rém, relativamente à adequação desse jardim ao intuito pretendido. Para 
Louis de Fontanes (1757-1821) — reorganizador do sistema educacional 
52. Sobre esse assunto, cf. Marie-Louise Biver, Le Paris de Napoléon, Paris: Plon, 1963, p. 138. 
142 
francês e criador dos liceus —, "quase todos esses monumentos têm um 
caráter grave e religioso. Teria sido bastante difícil harmonizar seu efeito 
com o aspecto sorridente dos jardins de Mousseaux; aparentemente, eles 
seriam mais adequados ao recinto de um antigo mosteiro que desperta 
sentimentos e pensamentos análogos a seu destino". De fato, "um templo 
ou um jardim moderno nunca chegarão a ser significativos para a alma 
e a imaginação como ocorre com essas antigas basílicas consagradas pela 
veneração dos séculos; para ler os epitáfios dos heróis do tempo passado, 
o ambiente mais apropriado é sob velhas abóbadas."53 Aliás, essa valori-
zação do gótico pela ancianidade inspirava-se na defesa apresentada por 
seu amigo Chateaubriand, em Génie du christianisme. 
Quanto ao parque de Monceau, Louis de Fontanes sugeria sua 
transformação em galeria dos artistas contemporâneos: "Uma espécie de 
museu campestre, um lugar semelhante a essas 'villas' que embelezam os 
subúrbios de Nápoles e de Roma. Seria possível até mesmo reservar uma 
das salas de Mousseaux para receber todas as obras dos artistas vivos: em 
vez de dois meses, como ocorre em Paris, essas obras seriam expostas em 
Mousseaux durante todo o ano." Finalmente, na sequência da visita do 
Primeiro Cônsul, Napoleão Bonaparte, ao depósito dos Petits-Augustins, 
em março de 1801, o Museu dos Monumentos Franceses acabou con-
servando seu jardim Élysée, cuja arrumação foi concluída para a Festa da 
Paz Continental. 
Sob o Império (1804-1814), o jardim organizou-se em dois pátios, 
cada qual guarnecido com vestígios arqueológicos. A fachada do castelo 
de Anet, reproduzida na capela do convento, servia de entrada princi-
pal do museu: simbolicamente, ela colocava o estabelecimento sob os 
auspícios do Renascimento, quando Philibert de l'Orme encarnava, 
segundo Lenoir, o primeiro arquiteto francês. Na extremidade do pátio 
oposto, o conservador dispôs três arcadas do castelo de Gaillon (que, 
supostamente, era o representante do século XV). Mais adiante, outro 
pátio deveria acolher peças do século XIII — da autoria do arquiteto 
francês, construtor da Sainte-Chapelle, Pierre de Montereau —, mas 
essa obra nunca chegou a ser concluída. O objetivo do Élysée consistia 
53. Archives dù Musée des Monuments Français, I, peça CLXVIII. 
143 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
em fornecer "uma paisagem augusta" para os monumentos dedicados, 
por "uma mão tímida, a homens célebres". Nesse aspecto, Lenoir reivin-
dicava a qualidade de arquiteto, mas para assimilá-lo, imediatamente, 
à elaboração de um cenário: "Sem ser arquiteto, a arte é para mim algo 
de tão familiar quanto ela deve ser para um pintor que compõe pes-
soalmente o fundo de seus quadros." Sua primeira preocupação tinha 
a ver com a organização da luz e, especialmente, com o olhar que, da 
entrada, se dirigia para o claustro ou para o próprio jardim. 
A composição dessa "paisagem" dependia amplamente do gênero dojardim inglês: "Amores-perfeitos, flores de todas as espécies guarnecem 
esses túmulos; na sua proximidade, o próprio cipreste parece ter perdido 
sua aparência lúgubre para tornar-se luminoso.."54 Em janeiro de 1807, 
454 pés de árvores e arbustos foram solicitador por Lenoir a seu minis-
tro de tutela. Diante da rejeição de seu pedido, ele baixou sua exigência 
para 164 plantas, cuja lista foi conservada escrupulosamente, graças aos 
trâmites administrativos: "11 acácias, 6 alertes, 2 bordos de açúcar, 6 
cítisos, 6 carpas, 4 anetos, 4 cerejeiras de flores duplas, 6 madressilvas, 
4 puás, 2 catleias, 6 epíceas, 8 lilases variados, 6 amoreiras da China, 
4 bolas de neve, 6 roseiras bravas enxertadas, 3 titias, 4 espinheiras, 12 
roseiras vulgares, 6 cedros da Virgínia, 4 trifólios, 4 loureiros, 6 ciprestes, 
4 freixos, 6 sarças, 4 bétulas, 6 azevinhos com espinho, 2 olmos, 2 lariços, 
2 bordos com folhas de freixo, 4 olmos ainda novos."" 
Em 1810, o catálogo da revista Musée repertoriava "mais de quarenta 
estátuas; alguns túmulos, distribuídos ao acaso sobre a grama verde, 
erguiam-se com dignidade no meio do silêncio e da tranquilidade".56 
54. Musée, edição do ano VII, n. 510. 
55. AN F17 2410. Essa amoreira da China deu seu nome ao pátio, beneficiado por sua 
sombra, da École des Beaux-Arts. A introdução de espécies exóticas do Novo Mundo ou 
do Extremo Oriente aumentou as possibilidades dos jardineiros: essa é uma das causas 
do sucesso do arquiteto-paisagista, Louis-Martin Berthault — apelidado o "Le Nôtre 
do século XIX" — em La Malmaison, que, em 1799, se tornou a residência do Pri-
meiro Cônsul, Napoleão Bonaparte, e de Josefina de Beauharnais, sua primeira esposa. 
De acordo com o resumo apresentado por um dos mais famosos paisagistas da época, 
Gabriel Thouin — em sua obra Plans raisonnés de toutes les espèces de jardins (1820) 
—, a nova arte das paisagens mescla as flores com os gramados. 
56. Musée, ed. de 1800, p. 19. Cf. ainda Ch.-P. Landon, Annales dù Mùsée et de l'École 
Moderne des Beaux-Arts, Paris, ano IX, I, 12. 
144 
De acordo com o guia, dois conjuntos se destacavam: "(Em primeiro 
lugar), na encosta de uma colina, ao lado de um canteiro de roseiras, 
murta e ciprestes, vemos erguer-se majestosamente uma capela antiga, 
cujas abóbadas em ogivas alongadas encobrem religiosamente as cinzas 
de Heloísa e de Abelardo.57 [...] Na parte alta do morro que serve de 
base às urnas imortais de nossos poetas mais célebres, observa-se um 
monumento com quatro faces que se ergue acima dos outros túmulos: 
composto por quatro nichos, ele contém os bustos de Molière, Jean de 
La Fontaine, Boileau e Racine." O caráter "falante" desse jardim era 
duplicado pelas múltiplas inscrições, disseminadas no local. 
Por esse espetáculo, o conservador entendia que, "à alma dos leitores 
e de todos aqueles que visitarão esse Élysée, fosse transmitido o santo 
respeito pelo qual, ao instalá-lo, ele havia sido impregnado através das 
luzes, talentos e virtude". Nesse lugar da imortalidade poética, será 
possível "supor que esses restos inanimados venham a receber uma nova 
vida a fim de se observarem e se entenderem, além de usufruírem de 
uma felicidade comum e inalterável"." A implicação política de tal 
iniciativa era óbvia: o jardim pretendia fornecer o novo padrão das re- 
putações, ao reparar as injustiças cometidas no passado. De acordo com 
a afirmação de Lenoir, "as homenagens públicas e a veneração nacional 
consolarão os manes desses homens ilustres pela injustiça que pesou 
sobre suas vidas e pelos ultrajes suportados após terem falecido"". 
Contrariamente à acusação de pieguice aliciante, desencadeada por 
seus adversários, o jardim Élysée colocava-se, portanto, sob o patrocínio 
da razão. Mesmo que o conservador pretenda oferecer "os monumentos 
erguidos com ternura e reconhecimento à atenção dos cientistas e às 
lágrimas das almas sensíveis", prevalecia, finalmente, a preocupação de 
adotar a perspectiva do panteão, nem que fosse para justificar o monu-
mento dedicado a Heloísa e Abelardo: "Basta abrir a história", escreve 
57. Sobre a posição do episódio na fortuna crítica, cf. Cécile A. Feilla, "From Sainted 
Maid to Wife in all Her Grandeur: Translations of Heloise 1687-1817", in Eighteenth-
Century Lifè, vol. 28, n. 2, 2004, p. 1-16. 
58. Eis o que seria, diz ele, "a recompensa mais apreciada por nosso coração" ( Musée, ed. 
de 1810, op. cit., p. 293). 
59. Archives du Musée der Monuments Français, I, peça CXXXIV. 
145 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
Lenoir, "para conhecer o mérito desse filósofo, mais notável ainda pela 
força do gênio que ele desenvolveu, em um século mergulhado nas 
trevas da superstição, que pelo interesse suscitado pela lembrança de 
seus infortúnios." Em 1806, no quinto volume de seu grande catálogo 
do Musée, Lenoir citava o famoso trecho da obra de Condorcet, já 
citada, como o inspirador de sua "imagem de um verdadeiro Élysée": 
"O quadro da espécie humana, desvencilhada de todas as suas cor-
rentes, liberada do império do acaso, assim como do inimigo de seus 
avanços, e percorrendo com um passo firme e confiante o caminho 
da verdade, da virtude e da felicidade, apresenta ao filósofo um espe-
táculo que o consola dos erros, crimes e injustiças com que a terra 
ainda continua conspurcada e de que ele é frequentemente vítima. 
[...] Aí é que ele existe verdadeiramente com seus semelhantes, em 
um Élysée que sua razão conseguiu criar para si mesma e que seu amor 
pela humanidade embeleza com as mais puras fruições."60 O museu 
ilustrava assim, amplamente, uma criminalidade histórica, não a que 
Chateaubriand havia reconhecido no princípio da Revolução, mas 
aquela que os filósofos do segundo período das Luzes — a geração do 
abbé Grégoire — observaram em ação na cronologia universal. 
Em seu guia de 1810, Lenoir justificava "o termo Élysée" neste tre-
cho: "Mas por que — poderá alguém se questionar — servir-se de uma 
palavra que se limita a designar uma quimera? [...] Somos incapazes 
de dissimular que existe uma espécie de magia associada a esse termo 
que é da alçada da linguagem das artes e da qual nos servimos, todos os 
dias, para significar nossa ideia a respeito da felicidade: ele destina-se a 
caracterizar, sobretudo, a felicidade que supomos ser compartilhada pelos 
homens virtuosos depois de terem deixado de viver neste mundo visível. 
E por que motivo não poderíamos nos conformar, nesse aspecto, com 
um uso que, graças ao conhecimento e à razão, nada tem de perigoso?"61 
Aliás, o modelo antigo havia inspirado inclusive a disposição das obras, 
uma vez que "os monumentos são colocados à beira das alamedas, à 
60. Musée, vol. 5, 1806, p. 192-193. 
61. Ibidem., ed. de 1810, p. 285. [Em relação à palavra "Élysées", cf. Musée, éd. 1810, 
p. 285. (N.T.)] 
146 
maneira dos antigos" — mesmo que a imprensa evocasse, de preferên-
cia, a poética noturna de Young.62 Apesar de inscrever-se perfeitamente 
na moda dos jardins de valores morais, tal como ela havia sido legada 
pela sensibilidade anterior à década de 1790, o jardim Élysée depende 
também das "afeições privadas" que, de acordo com o testemunho de 
Benjamin Constant, tomavam o lugar, na época, da religião. De fato, 
o jardim reunia imagens, afinal de contas, heteróclitas — herói do dia 
e figuras célebres da história da França, testemunhas da inteligência 
universal e simples pretextos para a expressão de uma sentimentalidade. 
Aliás, na sua obra, o representante da tradição, L.-P. Deseine, apre-
sentava uma descrição voluntariamente caótica da situação, a fim de 
condenar o caráter desconexo das referências, pagãs e cristãs, antigas e 
modernas: há quem tenha "levado a demência até o ponto de nos dizer 
que essa reunião de monumentos apresenta o conjunto emocionante 
de um Élysée. [...] Já se viu, algum dia, estátuas de Diana, Júpiter, 
Mercúrio, de animais e quimeras de toda a espécie, em um lugar reser-
vado a sepulturas? [...] O caráterde um Élysée é determinado não por 
arbustos, gramados e canteiros, mas certamente por seus monumentos".63 
De qualquer modo, o Élysée forneceu uma das encarnações mais 
convincentes da sensibilidade pré-romântica, ao servir-se de um vocabu-
lário formal, reconhecido e apreciado, além de ser a ilustração de valores 
amplamente compartilhados. Sem poder erigir-se em lugar da memória, 
esse "jardim de ilusões" influenciou, por sua vez, um grande número 
de empreendimentos associados à história nacional, desde o projeto 
de Saint-Morys até a reforma de La Malmaison, que foi orientada por 
Lenoir, J.-M. Morei — "o patriarca dos Jardins Ingleses" — e o arquiteto 
P. Fontaine, antes da intervenção de L.-M. Berthault.64 Como tal, o 
62. Journal des Débats [boletim oficial, criado em 1789, dos debates da Assembleia 
Nacional], de 16 de ventôse do ano X (7 de março de 1802): "Uma visita ao Museu 
dos Monumentos Franceses vale uma noite passada com Young" (p. 36). 
63. Louis-Pierre Deseine, Opinion sur les musées, oà se trouvent retenus tous les objets d'art 
qui sont la propriété des temples consacrés à la religion catholique, Paris, 1801. O panfleto 
teria uma nova edição em 1814. 
64. Cf., em geral, Louis Courajod, "L'Influence du musée des monuments (rançais sur le 
développement de l'art et des études historiques", in Revue Historique, vol. 30, n. 1, 
1886, p. 107-118. O projeto de um colecionador-antiquário, Saint-Morys, que 
147 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
Élysée constituía sem dúvida o único exemplo de um jardim, destinado 
a receber construções, que conheceu, na França, certo sucesso; eis o que 
ocorreu, na contramão tanto da frieza frequentemente glacial das insti-
tuições encarregadas de comemorar eventos oficiais como do desígnio 
exclusivo de diversão que, no mesmo momento, animava os parques 
do estilo de Tívoli e outros jardins de empresários do lazer parisiense.65 
Ao marcar a restauração do Estado em suas prerrogativas de memória, 
o Império condenava esse empreendimento como uma excentricidade 
individual. O desígnio oficial consistiu, daí em diante, em fundar uma 
nova memória dinástica e nacional, assim como em realizar a amálgama 
das ilustrações da França antiga com os homens célebres da nova. Por 
um decreto de 1806, a igreja de Sainte-Geneviève recebeu os túmulos 
depositados no museu, destinando esse templo à "sepultura dos senadores, 
grandes oficiais da Legião de Honra e generais, além de outros funcionários 
públicos que tivessem prestado bons serviços ao Estado"; paralelamente, 
previa-se instalar, na abadia de Saint-Denis, a sepultura dos imperadores. 
No diário oficial Moniteur Universel de 22 de fevereiro do mesmo 
ano, J.-B. Champagny — nomeado ministro do Interior por Napoleão, 
entendia criar em Houdainville, no departamento de Oise, em torno de seu castelo, 
"um museu que expõe, em um quadro romântico, a evolução dos monumentos 
funerários na França" foi estudado por Françoise Arquié-Bruley, "Un Précurseur: 
Le Comte de Saint-Morys (1772-1817), collectionneur d'antiquités nationales", 
in Gazette des Beaux-Arts, out. 1980, p. 109-118; fev. 1981, p. 61-77. O Élysée 
foi construído apenas depois do falecimento do conde, sob a orientação do genro, 
Engelbert Schillings, oficial prussiano que dispôs as estátuas funerárias em torno 
de rochedos e entre as árvores. No entanto, o exemplo mais nítido da influência de 
Lenoir sobre o cenário de seus contemporâneos é, evidentemente, o de La Malmaison. 
Redigido pelo próprio Lenoir, o verbete "Malmaison", da coletânea enciclopédica 
Dictionnaire de la conversation, publicada em 1836, dá uma ideia bastante precisa de 
seu papel nessa reforma; seus esforços incidiram sobretudo sobre o embelezamento 
das fachadas e sobre as fabriques do jardim à maneira inglesa, do qual ele pretendeu 
fornecer uma das peças mais importantes, ou seja, uma "capela" gótica transportada 
de Metz (e que permanecerá na embalagem). Deve-se observar que o diário de P. 
Fontaine, em sua narrativa espiritual dos arranjos do jardim, não menciona Lenoir; 
se lhe dermos crédito, foi o famoso teórico J.-M. Morei — na época, septuagenário 
— quem lhe ditou a realização de tal projeto (Marie-Louise Biver, Pierre Fontaine, 
Premier architecte de l'Empereur, Paris: Plon, 1964, p. 34). 
65. Gilles-Antoine Langlois, Folies, tivolis et attractions: Les Premiers pares de loisirs pari-
siens. Paris: Délégation à l'Action Artistique de la Ville de Paris, 1991. 
148 
em 1804 — justificava a dissolução anunciada do Museu dos Monu-
mentos Franceses em decorrência da preocupação em "restituir à 
religião os mausoléus que ela havia instituído, em restituir-lhes seu 
caráter primitivo, em restabelecê-los na sua harmonia natural com 
todas as lembranças que eles devem celebrar e sem retirá-los da admi-
ração pública, além de associar sua presença às cerimônias fúnebres e 
ao espetáculo do culto divino". Com efeito, "sofremos", prossegue ele, 
"ao observar que eles são depositados em um recinto em que tudo lhes 
é estranho, em que parece estar extinto o pensamento que reconhece 
seu valor, em que nada os explica; ora, tendo-se tornado estéreis e 
silenciosos, eles limitam-se a transmitir uma impressão incerta à alma 
do espectador"." Essa decisão foi saudada, imediatamente, por D.-V. 
Denon, que condenava "o solo salgado e destrutivo do depósito dos 
Petits-Augustins".67 Apesar de ter sido adiado, em última instância, 
esse projeto de desmantelamento do museu dava testemunho de uma 
transformação das expectativas e das representações, relativamente à 
memória nacional.68 
Após os Cem Dias, foi decidida a dissolução do museu. Um decreto 
real, promulgado em 24 de abril, restituía "os monumentos de toda a 
espécie que adornavam a igreja de Saint-Denis [...] à igreja do rei para 
retomarem seu lugar nesse recinto". Entretanto, no final de 1816, Lenoir 
dirigiu uma derradeira súplica ao rei, pela qual ele recomendava que fosse 
criado, "em Paris, um Museu de Arte Francesa de modo que os mo-
numentos, sem procedência determinada, permanecessem no depósito 
dos Petits-Augustins e se procedesse à fabricação de provas ou de moldes de 
todas as estátuas dos reis que voltariam à abadia de Saint-Denis, além 
de outras peças destinadas a ser restituídas, sem deixarem de serem es-
senciais à cronologia tanto da história da França como de nossas artes". 
Assim, o desmantelamento levou Lenoir a formular o princípio de um 
66. Archives du Musée des Monuments Français, I, peça CCCCXXV. 
67. Apud Marie-Louise Biver, Le Paris de Napoléon, op. cit., p. 260. 
68. Sobre esses panteões nacionais, cf. o catálogo da XXI Exposição do Conselho da 
Europa, 1991, Emblèmes de la liberté: L'Image de la République dans l'art du XVIe 
au siècle, Berna: Staempfli, 1991, n. 444, "Projet pour un monument national 
suisse", 1845-1846, por J. G. Müller. 
149 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
museu de moldes, anunciando, de certa maneira, a solução adotada pelo 
Museu de Escultura Comparada de Viollet-le-Duc. 
No entanto, esse recurso à cópia era, na verdade, uma solução 
inevitável. Daí, a sugestão alternativa de "santificar" de certa maneira 
o ex-museu revolucionário "no interior do qual havia sido estabelecida 
uma capela com seu capelão que, cotidianamente, rezaria uma missa 
em memória das pessoas, cujos mausoléus se encontram no depósito 
dos Petits-Augustins. O público teria a possibilidade de participar desse 
ato. Todos os bustos, estátuas ou monumentos que fazem lembrar 
ideias, sem qualquer relação com as virtudes morais, seriam retirados e 
colocados em uma sala particular". "Essa instituição santa e religiosa", 
concluía Lenoir, "acalmaria as almas inquietas que, ao admirarem nosso 
Museu, não deixam de experimentar uma espécie de mal-estar ou des-
contentamento pelo fato de ser composto por monumentos destinados 
a homenagear nossos antepassados. Ao arriscar-me a fazer tal proposi-
ção, tudo seria levado em consideração,incluindo a moral, a utilidade 
e a economia; além disso, Paris disporia realmente de um Westminster 
mais rico, mais belo e mais completo que o da abadia de Londres. 
[...] Assim, o Museu da Capela Real da Rainha Margot — ou seja, 
Margarida de Valois (1553-1615), que desposou, em 1572, Henrique 
IV — seria substituída pelo Museu Real dos Monumentos Franceses."69 
Era uma forma de tentar reunir o museu das personalidades ilustres com 
a capela dinástica, aproveitando-se do gosto gótico e do culto prestado 
ao bon roi Henri (ou seja, Henrique IV, de quem a rainha Margot havia 
sido a "primeira mulher"; de fato, ele é considerado o soberano mais 
promíscuo da história da França). No entanto, o caráter revolucionário 
do estabelecimento estava demasiado presente nos espíritos para permitir 
o sucesso de tal estratégia"; de qualquer modo, os cenotáfios pareciam 
69. Archives du Musée des Monuments Français, I, peça CCCCLXIII. 
70. Com o decreto de 18 de dezembro de 1816, o lugar — daí em diante reservado à 
École des Beaux-Arts — começou a receber uma nova coleção, desta vez de moldes 
de obras antigas. Cf. Ch. Pinarei, "Origines de la collection des moulages d'antiques 
de l'École nationale des beaux-arts de Paris, aujourd'hui à Versailles", in Annie-France 
Laurens e Krzysztof Pomian (orgs.), L'Anticomanie: La Collection d'antiquités aux 
XVIII° XIX' siècles, Paris: EHEES, 1992, p. 307-325. 
150 
reanimar seus cadáveres, negando o trabalho precedente de ocultação, 
além de restaurarem espetacularmente a evocação dos corpos defuntos 
no âmago de um espaço que acabava de ser (re)consagrado. 
A encarnação dos antepassados 
Para Michelet, o museu remetia à tradição bíblica que evoca o vale 
de Josafá, perto de Jerusalém, no vale à frente do Templo — o lugar 
do Juízo Final — em que ricos e pobres estão à espera do juiz71: "Um 
número respeitável de mortos históricos, removidos de suas capelas pelo 
vigoroso apelo da Revolução, tinha se dirigido a este vale de Josafá. [...] 
A França deparava-se, finalmente, com ela mesma em sua evolução; de 
século em século e de homem em homem, de túmulo em túmulo, ela 
podia fazer, de algum modo, seu exame de consciência."72 Essa repre-
sentação de uma nação sob a ascendência da ressurreição dos mortos e, 
sobretudo, pela "sentença" do historiador que assumia a função de juiz 
71. Livro de Joel, 4, 1-13: "Vai acontecer naqueles dias, naquele tempo: vou mudar a 
sorte de Judá e Jerusalém. Reunirei todos os povos do mundo para fazê-los descer ao 
Vale de Josafá [nome do rei piedoso, significa também "o Senhor julga"; por isso, é 
chamado no v. 14 "Vale da Decisão"]. Ali abrirei um processo contra eles, por causa 
de Israel, meu povo e minha herança. [...] Por acaso quereis vingar-vos de mim? 
Se tirardes vingança contra mim, bem depressa farei recair a vingança sobre vossas 
cabeças! Vós que roubastes minha prata e levastes meu ouro, vós que carregastes 
para vossos templos o melhor dos meus tesouros. Vós que vendestes aos gregos a 
população de Judá e de Jerusalém, só para afastá-los de seu território. Pois bem, vou 
chamá-los de volta do lugar para onde vós os vendestes e farei recair vossos atos sobre 
vossas cabeças! Venderei vossos filhos e filhas pelas mãos dos filhos de Judá que hão 
de vendê-los aos sabeus, a uma nação longínqua, porque o Senhor falou! Proclamai 
isto entre as nações: Preparai uma guerra santa! Convocai os heróis! Que avancem, 
subam todos os guerreiros! De vossos arados fazei espadas e de vossas podadeiras, 
lanças. Que o covarde diga: Sou um herói!' Apressai-vos e vinde, todas as nações 
dos arredores e reuni-vos lá! O Senhor faz descer teus guerreiros. 'Que venham 
todas as nações e subam ao Vale de Josafá! Sim, ali eu me sentarei para julgar todas 
as nações dos arredores. Lançai a foice porque a colheita está madura; vinde, pisai 
as uvas porque o lagar está cheio; as tinas transbordam, pois grande é a sua malícia!' 
Multidões e multidões no Vale da Decisão! Sim, está próximo o dia do Senhor, no 
Vale da Decisão!" (Bíblia Sagrada, Tradução da CNBB, várias editoras, 2001.) 
72. J. Michelet, Histoire de la Révolution Française, op. cit., p. 549. 
151 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
soberano, foi desenvolvida, particularmente, pela geração de 1830 
73
; ela 
não tinha a ver expressamente com a experiência do Museu dos Monu-
mentos Franceses, tal como havia sido imaginada por seu conservador 74, 
na perspectiva de uma leitura quase esotérica." Ocorre que alguns dos 
quadros que na época tinham como tema esse Museu faziam aparecer 
as personagens históricas na realidade presente do estabelecimento, 
em uma metalepse 76 que implicava a confusão dos tempos.77 Nesse 
aspecto, Michelet — ao evocar em um Cours no Collège de France 
"esses mortos em seus túmulos, fazendo com que todos os tempos 
fossem contemporâneos"78 — continuava sendo o melhor intérprete 
desse desaparecimento do tempo, concebido como modalidade da 
historicidade revolucionária do museu. 
Os retratos constituíam seu primeiro instrumento, por conser-
varem as características "daqueles que já deixaram este mundo e 
cuja memória ainda gostamos de relembrar"." Antropologicamente, 
como é sublinhado por Susan Stewart, o retrato é um dos dispositivos 
73. Sobre esse tema em Michelet, cf. Olivier Renaud, Michelet, la magistrature de L'histoire, 
Paris: Michalon, 1998. 
74. "[...] esse passado havia sido o presente; se vocês são incapazes de tal constatação, se 
esses mortos não estão ressuscitados, então vocês não os conhecem". (François Guizot, 
Histoire de la civilisation en France, 1, Paris, 1856, p. 284). E, além dos célebres trechos 
sobre a ressurreição dos mortos, a famosa narrativa da visita por Michelet: "Foi aí, e em 
nenhum outro lugar, que experimentei a vivida impressão, pela primeira vez, da histó-
ria. Com minha imaginação, eu enchia esses túmulos, eu sentia esses mortos através dos 
mármores e, certamente, com algum receio, eu penetrava na sala de abóbadas baixas 
em que repousavam Dagoberto, Chilperico e Fredegunda." ("A. M. Edgar Quinet", in 
P. Viallaneix (org.), Le Peuple, Paris, Garnier/Flammarion, 1974, p. 67-68). 
75. J. Michelet, Cours au Collège de France, op. cit., p. 520-522. 
76. Gerard Genette, Métalepse: De la Figure à la fiction, Paris: Le Seuil, 2004. 
77. Assim, o quadro de Charles-Marie Bouton — Vue de la salle du XVII siècle, ou La 
folie de Charles VI — exposto no Salon de 1817, Museu de Brou, Bourg-en-Bresse. 
Em 1821, Népomucène Lemercier escreve o livro La Démence de Charles VI. 
78. Sobre esse tema, cf. Jacques Rancière, Les Noms de L'histoire: Estai de poétique du 
savoir, Paris: Le Seuil, 1992, p. 100 ss. — a respeito de Michelet, que revolucionou 
o tempo ao neutralizar a aparência do passado para criar uma comunidade entre 
vivos e mortos. 
79. Musée, 1810, p. 79. 
152 
mais seguros da memória e da coleção80; ele é a confirmação de uma 
identidade e tem sua origem — feminina, como defendem os con-
temporâneos inspirados no mito de Dibutade — no desejo de com-
pensar a ausência do ser amado. Algumas observações incidentes do 
catálogo de Lenoir esboçavam, de maneira espetacular, essa suposta 
presença. "O túmulo de Clóvis — rei dos francos (465-511) — [...] 
mostra-nos esse rei deitado: em sua face, lê-se ainda a audácia e a 
intriga. 1...] No túmulo de Fredegunda, a lista de seus crimes aparece 
burilada em caracteres indeléveis; aliás, eles não foram desgastados 
pelo tempo. [...] O sorriso da sedução que se espelha nos lábios de 
Catarina de Médicis disfarça as pulsões criminosas de sua alma." Ou, 
a propósito de Abelardo: "Na cabeça inclinada desse sábio doutor, 
observa-se ainda a doçura amável que havia subjugado a alma de 
Heloísa."81 Uma verdadeira leitura do invisível — grande produtora 
de imagens — desenvolveu-se desse modo, fazendo apelo a uma fi-
siognomonia vulgarizada82 e, segundo parece, à retórica winckelman-
niana da imperceptível carne das estátuas da Antiguidade.Dessa 
sensibilidade de época participaram outras museografias, tal como 
aquela, contemporânea, do Louvre, em que Morel d'Arleux utilizava 
a historiografia artística — o Traité des passions do pintor Charles 
Lebrun — para orientar a exposição de desenhos.83 
Essa preocupação com o requinte das aparências e expressões re-
metia, de forma mais geral, a uma antropologia física dos cadáveres, 
cujas estátuas parecem dar uma imagem fiel. De acordo com Schlegel, 
"os Monumentos Franceses, cujo catálogo bastante detalhado foi 
80. Susan Stewart, "Death and Life, in that Order, in the Works of Charles Willson Peale", 
in Lynne Cooke e Peter Wollen (org.), Visual Display: Culture beyond Appearances, 
Dia Center for the Arts, Seattle: Bay, 1995, p. 32. 
81. Description..., edição do ano X, p. 9-10. Bárbara Maria Stafford, "Beauty of the 
Invisible: Winckelmann and the Aesthetics of Imperceptibility", in Zeitschrifi fiir 
Kunstgeschichte, 43 Bd., H. 1, 1980, p. 65-78. 
82. Cf. Melissa Percival, The Appearance of Character: Phyriognomy and Facial Expression 
in Eighteenth-Century France, Londres: Maney, 1999. 
83. L'an V Dessins des Grands Maîtres, 92" Exposition Cabinet des Dessins, Paris, Réunion 
des Musées Nationaux, 1988; Pascal Grienes, L'Usage muséographique des passions 
sous le Directoire et l'Empire", in Revue d'Esthétique, vol. 40, 2001, p. 98-103. 
153 
http://hist�-ria.Com
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA 
publicado por Lenoir, têm no mínimo a vantagem de mostrar, com 
toda a clareza possível, o que não deve ser, de modo algum, arte e, 
em particular, escultura; e seria bastante difícil fazer uma ideia, sem 
dispor da prova à sua frente, das possibilidades da imaginação humana 
— capaz, inclusive, de avançar tão longe no equívoco —, conduzindo 
um grande número de artistas franceses a esculpir cadáveres escru-
pulosamente imitados, vestidos ou até mesmo nus, estendidos em 
suas urnas, ou então as senhoras e os homens que podemos ver neste 
museu, com uma indumentária moderna, ajoelhados aqui ou ali.."
84 
 
De fato, a abordagem do museu estava focalizada na semelhança 
das efígies mortuárias e das estátuas que fazem o efeito de simulacros 
dos corpos defuntos." Eis o que é testemunhado pelas descrições de Lenoir 
a respeito das personagens de acordo com suas estátuas: por exemplo, a 
de Du Guesclin, "de pequena estatura, mas compacto; ombros amplos, 
braços repletos de nervuras; pequenos olhos, mas vivos e fogosos; nariz 
curto e avantajado, além de lábios espessos"." Os desenhos de Saint-
Denis — que Lenoir não deixa de mostrar aos visitantes de prestígio -
duplicavam o interesse, nunca desmentido, pelo corpo, cabelos, barba 
[...] das "múmias"." Tais dissertações aprofundadas tinham a ver com 
um gosto da época", testemunhado por um grande número de percursos 
turísticos que, além do depósito dos Petits-Augustins, incluíam a visita 
das Catacumbas, do Necrotério, da cripta do Panthéon, e até mesmo 
uma peregrinação aos lugares dos eventos ocorridos, em Paris, durante os 
períodos de Terror." Desse modo, o museu fornecia um excelente exemplo 
84. Friedrich Schlegel, Descriptions de tableaux, Paris: ENSBA, 2001, p. 182. 
85. Hans Belting, Pour une Anthropologie des images , Paris: Gallimard, 2004. 
86. A personagem de Du Guesclin é bastante popular: desde o Salon de 1777 (Brenet, 
Durameau) até o de 1806 (Vafflard), o herói foi objeto de importantes telas, gravu-
ras, etc. Cf. Marc Sandoz, Nicolas-Guy Brenet (1728-1792), Paris: Éditart-Quatre 
Chemins, 1979. 
87. Cf. o testemunho de James Forbes, que, no decorrer de suas numerosas visitas ao 
museu, acabou por travar amizade com a família Lenoir (Letters from France Written 
in the Years 1803 and 1804, Londres: J. White, 1806, 2 vols., I, p. 404). 
88. Sobre as escavações da época, cf. Annette Laming-Emperaire, Originer de l'archéologie 
préhistorique en France, Paris: Picard, 1964, p. 91-122. 
89. William Roots representa os fantasmas entre os túmulos do Panthéon para divertir 
154 
do triângulo homem-corpo-imagem do qual Hans Belting propôs uma 
leitura antropológica e que, no caso concreto, vai da divisa e do retrato ao 
cadáver esculpido, à "múmia" desenhada ou narrada de acordo com as exu-
mações da abadia de Saint-Denis; aliás, Lenoir afirmou ter sido testemunha 
dessa operação. Nesse museu, triunfavam, em suma, todas as formas de 
representação que se inspiram da máscara em que a morte garante a imagem. 
Os historiadores da geração seguinte demonstraram, em compen-
sação, como as imagens podem induzir em erro todo aquele que vier a 
depositar nelas uma confiança demasiado literal: a estátua não repre-
senta fielmente o cadáver, objeta Michelet, porque ela é, por si só, uma 
figura que deve ser entendida em conformidade com uma gramática 
das representaçóes.90 Contrariamente aos aprofundamentos dedicados 
por Lenoir à iconografia parisiense a respeito do primeiro bispo dessa 
cidade, são Dionísio [saint Denis], que o conduziam a "negar sua 
existência", arguindo da "semelhança que existe entre a alegoria antiga 
de Baco e a lenda de nosso são Dionísio" — "a tal ponto que, para a 
cabeça deste santo, há também um culto particular semelhante ao que 
era praticado pelos antigos em relação à cabeça de Baco" —, Michelet 
tirava a conclusão de que "Hilduíno apresenta, talvez, aqui uma his-
tória popular sugerida, sem dúvida, pela observação das estátuas que 
representavam o martírio de são Dionísio: em todas elas, o santo car-
rega a cabeça nas mãos; ora, tal representação indicava simplesmente a 
degolação. É provável que a visão de semelhante estátua terá fornecido 
a Hilduíno o fundo de sua lenda e que, sem procurar a coisa significada 
sob o signo, ele terá apresentado como um fato autêntico o que lhe 
era mostrado por essa representação figurada". Com a ruptura entre 
o signo e o significado, abria-se a possibilidade de uma leitura crítica 
das imagens, em sua profundidade histórica. 
os filhos. Além disso, na década de 1820, os restos do depósito dos Petits-Augustins 
serão associados aos do cemitério de Père-Lachaise e das Catacumbas; cf. Henry A. 
Ogle (org.), Paris in 18Ie4 or a Tour in France, Tyne, New Castle-on-Tyne, 1909, p. 
60. Desde 1791, o arquiteto Vaudoyer previa que o Panthéon seria visitado somente 
pelos estrangeiros; cf. Marc K. Deming, "Le Panthéon révolutionnaire", in Le Panthéon 
Symbole des Révolutions, Paris: Picard, 1989, p. 147 (Catálogo da exposição). 
90. J. Michelet, Cours au Collège de France, op. cit., p. 110. 
155 
4 
O TRABALHO DO LUTO 
Em Ie830, os passantes ainda podiam vero Torniquete pin-
tado na tabuleta de um comércio de vinhos; no entanto, 
mais tarde, a casa foi demolida. [ ...] Infelizmente! As construções 
 antigas de Paris desaparecem com urna rapi-
dez assustadora. Em diferentes trechos desta obra, algumas 
ainda estão de pé: seja o tipo de moradia da Idade Média, 
tal como a casa descrita no começo de Chat-qui-pelote e 
da qual ainda subristem um ou dois modelor; seja a casa 
habitada pelo juiz Popinot, na rue du Fouarre, espécime 
da velha burguesia; aqui, os vestígios da casa de Fulbert;• 
ali, toda a bacia do rio Sena, durante o reinado de Carlos 
IX Como novo Old Mortality — romance em que o idoso 
de Walter Scott reanimava os túmulor — por que motivo 
o historiador da sociedade francesa não salvaguardaria 
essas curioras expressões do passado? 
Balzac, Scènes de la vie parisienne: Splendeurs et 
misères des courtisanes, 4: Les Petits Bourgeois, cap. 1, 
"Le Paris qui s'en va", 1843. 
A narrativa de Augustin Thierry, que relatava sua descoberta, no 
início de 1820, da grande coleção dos historiadores originais da França 
e das Gálias (a de Dom Bouquet, 1738-1767), é emblemática do des-
pertar de uma vocação para a leitura de antigos trabalhos beneditinos 
que, havia sessenta anos, tinham sido votados ao esquecimento. Mesmo 
que ela tenha sido encenada, posteriormente, tal enxerto do historia-
dor no antiquário era marcado pelaemoção de um desapossamento e 
pela vontade de restituição: "À medida que eu avançava nessa leitura", 
lê-se no prefácio de Dix Ans d'études historiques, "a viva impressão do 
prazer que me causava a descrição contemporânea dos homens e das 
coisas de nossa história antiga foi seguida por um surdo movimento 
de cólera contra os escritores modernos que, longe de reproduzirem 
fielmente esse espetáculo, haviam disfarçado os fatos, desnaturalizado 
os caracteres..." 
Se a constatação parece óbvia, a elaboração de uma nova relação de 
fidelidade com o passado exige, todavia, relações inéditas entre visível 
157 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO 
e invisível.' O projeto de história nova tem dificuldade para desligar-
se de um gênero retórico convencional, da influência de antiquários 
grudados aos detalhes, enfim, de uma exigência de pitoresco pronto 
a aceitar citações em francês antigo para fornecer a "fisionomia do 
tempo" aos leitores. Daí em diante, o desafio do historiador consistia 
em "descrever os homens de outrora com a fisionomia do tempo em 
que eles tinham vivido, mas ele próprio falando a linguagem de (seu) 
tempo". E o depoimento de Thierry prossegue: "Nesta tentativa de 
conciliação entre métodos tão diversos, eu ficava incessantemente 
hesitante entre dois obstáculos. Eu caminhava entre dois perigos: o 
de atribuir demasiada importância à regularidade clássica, perdendo 
assim a força da cor local e da verdade pitoresca; e o outro, ainda 
mais grave, de obstruir minha narração com uma infinidade de fatos 
insignificantes, talvez poéticos, mas incoerentes e desprovidos de se-
riedade e até mesmo de significação para um leitor do século XIX."' 
Após uma pesquisa obstinada, Thierry — um dos primeiros historia-
dores a trabalhar a partir de fontes originais — teve graves problemas 
de vista. Entretanto, essa nova obscuridade ou, antes, essa cegueira 
do historiador diante dos textos, deixou-lhe (somente durante um 
instante) a possibilidade de ler os monumentos graças a uma espécie 
de talento multiplicado. No decorrer de uma viagem na Provence, 
em 1825 — na companhia do historiador, linguista, crítico e erudito 
Ch.-Cl. Fauriel —, ele escreveu: "Eu dispunha de uma visão apenas 
suficiente para olhar à minha frente, mas na presença dos edifícios ou 
das ruínas, cuja época deveria ser reconhecida e cujo estilo deveria ser 
determinado, não sei que tipo de sentido interno vinha prestar ajuda 
aos meus olhos. Animado pelo que eu designaria, de bom grado, por 
1. Sobre o historiador, cf. Lionel Gossman, "Augustin Thierry and Liberal Historio-
graphy", in Between History and Literature, Cambridge: Harvard University, 1990, 
p. 83-151. 
2. Lembremos que a cegueira do cientista é, aqui, o equivalente do imposto do sangue, 
porque, neste prefácio a seus "dez anos de estudos históricos", datado de 10 de novembro 
de 1834, Thierry afirmava o seguinte: "Se, como tenho prazer em acreditar, o interesse 
pela ciência encontra-se entre os grandes interesses nacionais, dei ao meu país tudo o 
que lhe dá o soldado mutilado no campo de batalha." (Augustin Thierry, Lettres sur 
l'histoire de France: Dix Ans d'études historiques, Paris: Garnier frères, 1866, p. 310.) 
158 
paixão histórica, eu conseguia enxergar mais longe e de forma mais 
nítida."3 Ao olhar instruído, o monumento ou as ruínas oferecem 
o livro aberto da história. Uma espécie de imediatidade da leitura, 
resultado de longos esforços preliminares, culminava em uma "his-
tória que se absorve pelos olhos'', segundo a esplêndida fórmula de 
Michelet. 
Com efeito, Thierry adotou plenamente a convicção de que os mo-
numentos são os historiadores das respectivas nações. "Para o verdadeiro 
filósofo, as Artes são os historiadores populares de um grande número de 
fatos, opiniões e tradições que compõem a existência moral das nações. 
A influência dos monumentos sobre o espírito, a memória e o entendi-
mento procede, frequentemente, não tanto de sua própria perfeição, mas 
de sua ancianidade, da autenticidade de seu uso e de sua publicidade. 
Esses livros originais, sempre abertos à curiosidade pública, levam sua 
instrução para fora, comunicando-a sem reservas ao sentimento que os 
consulta sem esforço."5 
Para adquirir seu pleno valor, essa afirmação deve superar, em primeiro 
lugar, a ruptura revolucionária. As polêmicas da década de 1830 sobre a 
pertinência de uma conservação dos monumentos inscreviam-se neste 
contexto: preservar os castelos e as igrejas era reconhecer seus valores tradi-
cionais, negando de facto aos compradores a plena capacidade para servir-se 
ou usufruir desses monumentos. Eis o que era afirmado explicitamente 
por Victor Hugo: "Quaisquer que sejam os direitos da propriedade, a 
destruição de um edifício histórico e monumental não deve ser permitida 
a esses ignóbeis especuladores [...], tão imbecis que eles nem compreen- 
dem que são bárbaros."6 Inversamente, o panfletário e erudito, Paul-Louis 
Courier desejava o desmantelamento do parque de Chambord pela bande 
3. Ibidem: "Cego, sofrendo sem esperança e quase sem tréguas, posso prestar este 
testemunho que, feito por mim, não suscitará qualquer suspeita: neste mundo, a 
dedicação à ciência é preferível às fruições materiais, à fortuna e à própria saúde." 
4. De acordo com o título do artigo de Pierre Malandain, "L'histoire qui se prend par 
les yeux...': Michelet et Rubens", in Annales ESC, n. 29, 1974, 2, p. 349 ss. 
5. Augustin Thierry, op. cit., p. 47. 
6. Victor Hugo, OEuvres complètes, I: Philosophie, 1819-1834; Eugène Renduel (org.), 
Littérature et philosophie mêlées, mar. 1834, p. 73. 
159 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO 
noire7 para revender os terrenos aos camponeses. "Os monumentos 
conservam-se nos lugares, tais como Balbek, Palmira e sob as cinzas do 
Vesúvio, em que os homens pereceram; mas, alhures, ao renovar tudo, a 
indústria declara-lhes uma guerra sem tréguas [...] . O que aconteceria 
com o mundo se cada época respeitasse, reverenciasse e consagrasse, 
por critério de ancianidade, todas as obras dos tempos passados, sem 
ter a ousadia de tocar, destruir ou remover seja lá o que for? [...] Será 
pelas lembranças que esses castelos e esses claustros góticos são res-
peitáveis? À nossa volta, que ideia pode ser feita de monumentos tais 
como Chenonceau, Le Plessis-lês-Tours, Blois, Amboise, Marmoutiers? 
Evocação de vergonhosas devassidões, infamantes traições, assassinatos, 
massacres, suplícios, torturas, execráveis crimes, luxo e luxúria, além da 
crassa ignorância de párocos e monges, para não falar do que ainda é 
pior: a hipocrisia. Deus disse: 'Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei 
a terra', ou seja, cultivai a terra com esmero — com efeito, sem esse 
cuidado, como será possível povoá-la? E compartilhai a terra — mas 
sem essa partilha, como será possível cultivá-la? Ora, a bande noire 
empenha-se, precisamente, a proceder a essa partilha de comum acordo, 
amistosamente, sem disputas, o que é, afinal de contas, uma boa e santa 
obra. Esses destruidores de terras trazem um grande benefício para a 
terra, dividem o trabalho, ajudam na produção e, na execução de tais 
ações, sua contribuição para a indústria e para a agricultura é supe-
rior a tudo o que possa ter sido empreendido por qualquer ministro, 
administrador regional ou agência de fomento sob a proteção desse 
administrador."8 Nesse sentido, o verdadeiro romance do monumento 
histórico desses anos era Les Paysans de Balzac, e não tanto Notre-Dame 
de Paris. Balzac e Victor Hugo vituperavam os novos compradores, 
burgueses usurários que revendiam as grandes propriedades em lotes 
aos camponeses, enquanto P.-L. Courier e o Michelet de Le Peuple 
defendiam a regeneração do mundo rural pela pequena propriedade 
em decorrência da liquidação dos grandes domínios da aristocracia. 
7. Literalmente, "bando negro". Na época, tais grupos obstinavam-se a pilhar as grandes 
propriedades. [N.T.] 
8. P. L.- Courier,V' lettre au rédacteur du Censeur, [enviada de] Véretz, em 12 de no-
vembro de 1819, in Lettres au redacteur du Censeur, Paris: Comte, 1820. 
160 
Uma consciência literária 
A eficácia da literatura na patrimonialização é bem conhecida. Desde 
a origem, a literatura artística identificou-se com a erudição religiosa e 
cívica, associada à glória de sua localidade e preocupada em justificar sua 
preeminência em relação com a reputação de outras cidades e regiões.' 
< Mais tarde, a literatura foi um "ator do surgimento da sensibilidade ao 
patrimônio", segundo a fórmula de Jacques le Goff:10 Desse ponto de 
vista, sua análise deveria considerar a evolução de alguns gêneros -
tais como o pitoresco — e, de forma mais abrangente, as vicissitudes 
da posição e do papel do escritor na sociedade. Constatação tanto 
mais verdadeira que a emergência, no âmago da sociedade francesa, de 
um depósito de valores específicos, tal como o "patrimônio", é con-
temporânea da aparição de um novo poder espiritual laico, ou seja, o 
do escritor. Assim, seria possível explicar que, na França, a história do 
patrimônio tenha sido profundamente alimentada pela literatura, sem 
que a eminência da sacralidade literária tenha sido, algum dia, ameaçada 
pelo predomínio das belas-artes. 
Nessa elaboração complexa, os decênios de 1820-1840 são certa-
mente centrais, ao construírem, por exemplo, a imagem de Victor Hugo 
como poeta dos monumentos históricos — uma reputação fielmente su-
blinhada, em seguida, pela história da arte. Na importante obra Histoire 
de l'art depuis les premiers temps chrétiens jusqu'à nos jours, organizada 
por André Michel, em 1925, Victor Hugo aparece no início do tomo 
VIII, dedicado à arquitetura na França: de acordo com o comentário, 
Hugo — posicionado entre o barão Taylor", os historiadores, Augustin 
Thierry e François Guizot, por um lado, e, por outro, Chateaubriand 
9. Cf. G. Previtali, Le Goût des primitifs, Paris: Gerard Monfort, 1994. 
10. Jacques Le Goff, apud P. Nora, Science et conscience du patrimoine, Paris: Fayard, 
1998, p. 121. 
11. Cf. Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, 3." ed., São Paulo: Unesp/Estação 
Liberdade, 2006, p. 146, nota 50. [N.T.] 
161 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO 
ou Montalembert 12 —, no prefácio de 1831 de Notre-Dame de Paris, 
escreveu "um hino à arquitetura gótica". O poeta passava por ser o meio- 
termo, se é que podemos nos exprimir assim, entre o campo católico e 
legitimista e o campo liberal; entre os historiadores ou os arqueólogos 
e os letrados. Assim, em suas obras, o escritor romântico sancionava 
a emergência de novas curiosidades, vulgarizava os conhecimentos 
eruditos, exercia influência sobre os interesses de ordem científica e, 
finalmente, contribuía para o repertório das fontes da história." 
Basta comparar a geração literária anterior a 1789 com aquela pos-
terior a essa data para mostrar a novidade patrimonial do século XIX. 
Eis um dos textos mais famosos que, no Salon de 1767, Diderot dedicou 
aos vestígios do passado: "Oh, as belas, as sublimes ruínas! [...] Quanto 
efeito! Quanta grandiosidade! Quanta nobreza! Digam-me quem é seu 
proprietário a fim de que eu possa sutilizá-las, ou seja, o único recurso 
que resta a um indigente para se apropriar de algo. Infelizmente, talvez, 
elas nem deem qualquer felicidade a seu rico e estúpido dono; eu, pelo 
contrário, seria tão feliz em possuí-las! Proprietário indolente, esposo 
obcecado! Será que te prejudico ao apropriar-me dos encantos que 
ignoras ou menosprezas?"14 
Eis, por contraste, um dos trechos mais citados de Victor Hugo: 
"Se esta situação se mantiver durante algum tempo, em breve, o único 
monumento nacional que vai sobrar à França será a obra Voyages pitto-
resques et romantiques dans l'ancienne France, em que o lápis de Taylor 
e a pluma de Charles Nodier rivalizam em graciosidade, imaginação e 
poesia. [...] Chegou a hora de impedir que seja quem for se mantenha 
em silêncio. Impõe-se que um grito universal convoque, finalmente, a 
nova França a prestar socorro à antiga. Todos os gêneros de profanação, 
degradação e estragos têm ameaçado, simultaneamente, o pouco que 
12. Charles Forbes, conde de Montalembert (1810-1870), escritor, político e polemista 
francês. Cf. Françoise Choay, op. cit., p. 134. [N.T.] 
13. Jean Mallion, Victor Hugo et l'art architectural, Grenoble: Imprimerie Allier, 1962. 
De forma mais abrangente, cf. as reflexões de Jacques Le Goff, Histoire et mémoire, 
Paris: Gallimard, 1977, e seu prefácio para o livro de Marc Bloch, Apologie pour 
l'histoire ou Métier d'historien, Paris: A. Collin, 1997. 
14. Salon de 1767, XI, apud Diderot sur L'art, Paris: Hermann, 1978, p. 170. 
162 
nos resta dos admiráveis monumentos da Idade Média em que ficou 
impregnada a antiga glória nacional; eles associam a memória dos 
reis à tradição do povo. [...] Em um edifício, existem dois aspectos: 
seu uso e sua beleza; o primeiro pertence ao proprietário, enquanto 
sua beleza cabe de direito a todo o mundo; portanto, ao destruí-lo, 
desconsidera-se tal direito."" 
O contraste entre Diderot e Victor Hugo é instrutivo em vários as-
pectos: começando pela diferença dos objetos, já que se trata de quadro 
de ruínas no primeiro caso, enquanto no segundo de ruínas bem reais. 
Certamente, o circuito entre a fabrique representada em pintura e a 
fabrique real, ou seja, aquela que é erguida pelos jardineiros, marcou 
a segunda metade do século XVIII, como vimos mais acima; assim, 
nesta transferência das ruínas, somos tentados a ver um processo no 
mínimo idêntico. Victor Hugo, porém, lançava um apelo para reparar 
essas ruínas e interromper essa degradação, em nome do respeito pelo 
monumento original; nada disso, com toda a evidência, em Diderot, 
para quem o desmantelamento era respeitável por ser digno de interesse 
em si mesmo, além de pretexto a um desenvolvimento filosófico. Esse 
é o sentido de outro trecho do Salon de 1767: "As ruínas despertam 
em mim grandes ideias. Tudo se aniquila, tudo desaparece, tudo passa. 
Apenas o mundo subsiste. Apenas o tempo perdura. Como este mundo 
é velho! Faço meu caminho entre duas eternidades. Ao observar, de 
qualquer ponto, os objetos à minha volta, eles me anunciam um fim 
e me resignam ao fim que me espera.16 
A diferença é, também, impressionante em relação à atenção pres-
tada à propriedade e aos proprietários: Diderot dava testemunho de um 
tom de época naturalmente hostil à posse privada de objetos, seja por 
gosto ou por cultura. A equivalência entre propriedade e esterilidade 
15. V. Hugo, Guerre aux démolisseurs, versão de 1825, nova edição de Patrice Béghain, 
Guerre aux démolisseurs! Hugo, Proust, Barrès: Un Combat pour le patrimoine, Paris: 
Paroles d'Aube, 1997, p. 45-47. 
16. Salon de 1767, XI, op. cit., p. 170. Mais tarde, Alois Riegl (cf. cap. 5) designará por 
valor de ancianidade o que o século XVIII havia qualificado, naturalmente, como 
espetáculo sublime: eis porque ambos estão afastados, por razões diversas, da definição 
canônica do monumento histórico. 
163 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO 
ou, no mínimo, tédio, era comum em numerosas críticas das Luzes: 
essa é, aliás, a lição de Candide quando, na companhia de Martin, o 
herói chega a Veneza para visitar o grande senador Pococurante no 
palácio de La Brenta e usufruir das obras de Rafael, da música e 
dos livros desse faustoso personagem. No entanto, esse bibliófilo que, 
tendo lido todos os livros, os desdenhava, será verdadeiramente um 
homem superior? Do mesmo modo, contra os proprietários enfarados 
com suas posses, Rousseau defendia, em Émile, o despojamento do ama-
dor: "Eu teria renunciado a uma galeria e a uma biblioteca, sobretudo, 
se eu apreciasse a leitura e tivesse um conhecimento aprofundado de 
pintura. "
17 
 No final do século, o Dictionnaire des beaux-arts de Watelet-
Levesque fornecia a vulgata dessa desconfiança em relação aos fazedores 
de gabinetes,deplorando a confiscação de sua fruição entre as mãos de 
ignorantes ou presunçosos, além de reclamar sua abertura ao público. 
Victor Hugo é tributário, de algum modo, das condenações banais 
do filistinismo: mas o "roubo" evocado por Diderot havia deixado de 
ser atual porque, após 1789, desaparecera certa ingenuidade intelectual. 
A socialização reivindicada daí em diante foi marcada pela experiência 
das reviravoltas introduzidas pelas novas noções de nacionalização e 
de vandalismo. Assim, Chateaubriand havia estabelecido a distinção 
entre os estragos do tempo e a decadência dos homens para condenar, 
de forma mais argumentada, "a criminalidade histórica", se undo a 
expressão de Francesco Orlando ao falar dos monumentos.18 O apelo 
ao interesse geral para legitimar eventuais expropriações figurava, por 
conseguinte, entre as novidades da intervenção hugoliana: "Quando, 
cotidianamente, o interesse geral faz ouvir sua voz, a lei impõe o 
silêncio aos uivos do interesse privado. A propriedade particular foi, 
frequentemente, e continua sendo, em todos os momentos, modificada 
no sentido da comunidade social. Compra-se, à força, um terreno para 
transformá-lo em uma praça; uma casa, para se tornar um hospício. 
Um dia, o monumento privado será comprado." 
17. Rousseau, Émile, Livro IV, Paris: Garnier-Flammarion, 1990, p. 455. 
18. Francesco Orlando, Gli oggetti desueti nelle immagini della letteratura, Turim: Einaudi, 
1993, p. 306. 
164 
O novo aspecto da situação traduzia-se, finalmente, pelo apelo 
ao espaço público: enquanto Diderot dirigia-se à Europa das Luzes 
por via da correspondência de Grimm, Victor Hugo tinha a intenção 
de empreender uma verdadeira campanha de opinião, assim como 
é manifestado pelo título de seu artigo. Ele reivindicava, por isso 
mesmo, o status de porta-voz que, em caso de necessidade, podia ser 
requisitado por seu campo. "Oh Hugo! Empresta-me tua indignação 
inflamada", escreve, com humor, Mérimée a Ludovic Vitet ao narrar-
-lhe as atrocidades cometidas na abadia de Saint-Savin — o mais im-
portante conjunto de pinturas murais de estilo românico conservado 
na França.'° O monumento histórico tornava-se um programa de 
escrita e ao mesmo tempo um objeto de apropriação pelo escritor.20 
Em segundo plano, surgiam as especulações filosóficas sobre as ruínas 
marcadas pela temática do sublime, em primeiro lugar, e em seguida 
pela literatura artística; a mutação do pitoresco era seu elemento es-
sencial, que culminou em Ballades de 1826 e em Orientales de 1829, 
livros que indicavam a introdução da cor exótica e, depois, medieval 
na poesia francesa. 
A glória de Victor Hugo devia-se ao fato de ter reconhecido ao novo 
patrimônio francês — ou seja, a arte da Idade Média, com a qual ele se 
identificava inteiramente — uma modernidade e uma atualidade que, 
posteriormente, nenhum outro artista foi capaz de lhe conferir em tal 
grau, nem dessa forma.21 Com os versos sobre o Arco de Triunfo de 
1837, as igrejas góticas deixaram de ser as únicas a confundir-se com 
a natureza no âmago de civilizações soterradas. Por sua vez, o poema 
"Passé" de 1835, do livro Les Voix intérieures, é dedicado a determi-
nado "grande castelo do tempo de Luís XIII", o que correspondia a 
uma moda da época de Luís Filipe (período da Monarquia de Julho, 
1830-1848), ilustrada no mesmo momento pelos escritores, Théophile 
19. Poitiers, em 15 de julho de 1840, in Maurice Parturier (org.), Lemes de Mérimée à 
Ludovic Vitet, Paris: Plon, 1934, p. 14. 
20. Cf. Ségolène Le Men, La Cathédrale illustrée de Hugo à Monet, Paris: CNRS, 1998, 
"La cathédrale et le sacre de l'auteur", p. 24-25. 
21. Nicole Savy e Guy Rosa (orgs.), L'OEil de Victor Hugo, Paris: Cendres/Musée d'Orsay, 
2004 (Atas do Colóquio, 19 a 21 de setembro de 2002, Paris, Musée d'Orsay). 
165 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO 
Gauthier e Gérard de Nerval.22 Em compensação, o Renascimento 
continuava sendo estigmatizado; além disso, Montalembert, na carta 
enviada a Victor Hugo, publicada na Revue des Deux-Mondes de 1º de 
março de 1833, criticava essa primeira modernidade para enaltecer 
ainda mais a arte religiosa da Idade Média." 
Victor Hugo inaugurou a figura do escritor que inventa o patrimô-
nio, porta-voz dos monumentos, em relação com uma religião estética 
que se erguia vigorosamente contra o prosaísmo burguês e contra todas 
as formas de destruição da beleza. No entanto, a ideia de um patrimônio 
assumia, nesse contexto, a forma de uma moldura, de uma encaderna-
ção — ainda de acordo com a afirmação de Victor Hugo — destinada 
a valorizar a história. Ao participar da inauguração, em 10 de junho 
de 1837, do museu de todas as glórias da França, seu olhar dava a 
impressão de atravessar o castelo para considerar, de saída, os anais do 
país: "Ao livro magnífico, cujo título é a história da França, conferiu-se 
a magnificente encadernação que é designada por Versalhes"." Assim, 
Versalhes ilustrava como o patrimônio é "enquadramento" da história: 
nesse sentido, conservar os monumentos consiste não tanto em con-
servar a história — que será lida sempre pelos historiadores —, mas 
homenageá-la ao preservar sua moldura. 
Os desafios a enfrentar por uma geração 
No âmago da genealogia oficial do "culto moderno aos monumentos", 
Guizot parece ter sido vítima de um esquecimento, em benefício de 
22. V. Hugo, OEuvres poétiques, Paris: Gallimard/La Pléiade, I, p. 970-971. Cf. ainda 
"La Statue" (1837), in OEuvres poétiques — Les Rayons et les Ombres, p. 1105-1108. 
Sobre esse tema, cf. os comentários de Francesco Orlando, op. cit., p. 313. 
23. Paul Bénichou, Les Mages romantiques, Paris: Gallimard, 1989, p. 194. 
24. V. Hugo, Choses voes, 1830-Ie846, Paris: Gallimard, 1972, p. 153-154. Eis seu co-
mentário: "Aprovo o que o rei Luís Filipe fez em Versalhes. A realização dessa obra 
demonstra que ele foi grande como rei e imparcial como filósofo; que transformou 
um monumento monárquico em um monumento nacional; que conferiu uma ideia 
imensa ao passado, tendo colocado 1789 diante de 1688, o imperador no lugar do 
rei, Napoleão no lugar de Luís XIV." 
166 
um pequeno grupo pioneiro do qual ele não faz parte, assim como 
de organismos instalados por sua iniciativa sem que ele tivesse assumido 
qualquer função direta. Assim, Antonin Proust evocaria, em 1887, 
apenas cinco antecessores: Alexandre Lenoir, talvez, na época, no auge 
de sua reputação; os indispensáveis gênios da causa, Chateaubriand e 
Victor Hugo; por último, Augustin Thierry e Prosper Mérimée. Destes 
dois últimos personagens, o primeiro havia fornecido a legitimidade 
científica do empreendimento: "Nestes livros (de pedra), encontra-se o 
que Augustin de Thierry designa por alma da história: e aprendemos a 
lê-los por ele e pelos grandes fundadores da escola histórica do século 
XIX." Por sua vez, o segundo foi considerado o fundador da adminis-
tração ao propor, após a Revolução de Fevereiro", "a reunião de todos 
os serviços que têm a ver com as artes"26. 
Este eclipse de Guizot não foi o resultado exclusivo da condenação 
do político; sua reputação de "conservador" padecia de um descrédito 
associado à sua insuficiente "francidade", por ser visto, na época, como 
discípulo do estadista prussiano Friedrich Ancillon e admirador do 
historiador britânico E. Gibbon. Ele não confessava o entusiasmo 
patriótico julgado apropriado — com o gosto romântico pela Idade 
Média — ao compromisso patrimonial. A altivez afetada de seu livro 
Cours d'histoire moderne manifestava uma carência afetiva, assim como 
aconteceu com um de seus projetos — abrir, em Versalhes, um museu 
do "Ideólogo" —, que o senso político do soberano transformou em 
espetáculo propício a influenciar a opinião pública, à semelhança — de 
acordo com a expressão forjada pelo historiador norte-americano dos 
usos da história Stanley Mellon — da "filosofia da magnanimidade".27 
25. Segunda revolução francesa do século XIX, que se desenrolou em Paris de23 a 25 de 
fevereiro de 1848. Ao imporem a abdicação do rei Luís Filipe, os revolucionários, apoia-
dos pelos liberais e republicanos, criaram a Segunda República (1848-1852). [N.T.] 
26. Antonin, Rapport fait au nom de la Commission chargée d'examiner le projet de loi..., 
Paris, 1887, Chambre des Députés, n. 1501; e Recueil de Pièces relatives à la conser-
vation der monuments (coletânea de obras diversas), Paris: Bibliothèque Nationale, 
1849-1888, 18 peças, fol. L 212, 212, peça n. 13. 
27. Um "grande museu etnográfico no qual seriam depositados os monumentos e os 
vestígios dos costumes, usos, vida civil e na guerra, em primeiro lugar, da França e 
também de todas as nações do mundo" (F. Guizot, Mémoires pour servir à l'histoire de 
167 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO 
A fórmula de Michelet — em sua dedicatória ao inspirador da república 
laica, E. Quinet, que serve de prefácio ao livro Le Peuple — era, neste caso, 
reveladora: a Guizot, ele atribuía a análise, enquanto Thierry encarnava a 
narração, e ele próprio a ressurreição. 
No entanto, ao refletir o descrédito generalizado que afetou o 
ministro de forma duradoura, sua exclusão não deixava de dar tes-
temunho de um postulado de unanimidade nacional em matéria de 
patrimônio: parecia indecente que a iniciativa e a responsabilidade 
pela proteção dos monumentos fossem atribuídas a um estadista. Em 
compensação, a evocação de uma responsabilidade coletiva — o voto 
das Assembleias Revolucionárias ou a reivindicação dos espíritos cultos 
sob a Restauração (1814-1830) — permitia sugerir uma tomada de 
consciência, pela comunidade nacional, de seu passado. 
O discurso patrimonial empenhava-se, de maneira geral, a esboçar 
as etapas de uma dedicação — desde a coragem demonstrada no com- 
bate contra os vândalos até a abnegação do cientista — e limitava-se 
a atribuir um interesse de erudição à criação de uma administração. 
Neste caso, a evocação de Guizot servia apenas para negar-lhe, de 
forma mais nítida, qualquer originalidade, até mesmo qualquer res-
ponsabilidade efetiva: ele passava por ser o intérprete, com toda a 
certeza experiente, de um progresso da opinião pública associado ao 
novo espírito das artes e da história; seu grande mérito consistiu em ter 
conseguido aplicar-lhe a conveniente sanção governamental. Tal inter-
pretação adotava grandemente a filosofia dos próprios doutrinários.28 
Em compensação, a história política clássica da Monarquia de 
Julho assimilava frequentemente sua ação patrimonial a um artifício 
destinado a desviar as energias da crítica e do combate contra a Câmara 
mon temps, 8 vols., Paris, 1858-1867, t. II, p. 69). Charles-Henri Pouthas havia subli-
nhado bastante o vínculo entre os Ideõlogos e Guizot em Guizot pendant la révolution, 
Paris: Plon, 1923; e em La jeunesse de Guizot, Paris: Alcan, 1936. Cf. ainda Stanley 
Mellon, The Political Uses of History: A Study of Historians in the French Restoration, 
Stanford: Stanford University Press, 1958; e, neste caso, "The July Monarchy and the 
Napoleonic Myth", in Yale French Studies, vol. 26, 1960, p. 70-78. 
28. No original, Doctrinnaires, denominação atribuída, sob a Restauração, ao pequeno 
grupo de monarquistas franceses que esperavam reconciliar a monarquia com a 
Revolução, assim como a autoridade com a liberdade. [N.T.] 
168 
dos Deputados; de acordo com determinada tradição, tais medidas 
eram consideradas como um plano maquiavélico para enfraquecer a 
classe intelectual. Atualmente, para alguns pesquisadores, a questão do 
patrimônio em Guizot tornou-se "a vertente oposta da farsa nacional do 
 'enriqueçam'"29; ela seria a "herança fictícia dos deserdados", o "álibi 
econômico à propriedade privada". A tal ponto que a denúncia dessa 
particular "conivência entre o capitalismo e o patrimônio"" forneceu 
a derradeira condenação do regime. Para a ideologia oposta — que 
identificava o burguês conquistador com o precursor da decadência 
— Guizot passava por ser, ao contrário, o primeiro gestor do declínio 
espiritual do Ocidente?' 
Para além de tais processos peremptórios, as análises da obra 
"patrimonial" de Guizot interessaram-se, sobretudo, pelo projeto 
de 1833, que advogava uma "publicação geral de todos os materiais 
importantes, e ainda inéditos, sobre a história da nossa pátria", assim 
como pela fundação da Sociedade da História da França e pelo Comitê 
dos Trabalhos Históricos. Aliás, ninguém contesta a importância desse 
legado; sobretudo, "essa instituição historiográfica é o aspecto que, 
acima de qualquer outro, mostra a indissociabilidade dos vínculos 
entre o estadista e o historiador".32 Assim, a iniciativa arqueológica foi 
relegada para uma quase obscuridade em relação ao trabalho arquivís-
tico; acertadamente, se levarmos em consideração que, nessa matéria, 
o interesse de Guizot parece ser, em uma primeira abordagem, singu-
larmente menos notável. Todavia, o deslocamento da curiosidade para 
um episódio, mencionado superficialmente, da carreira política e da 
reflexão sobre a história do "senhor Guizot" pode revelar-se fecundo: 
29. Pierre-Marc de Biasi, "Système et déviances de la collection à l'époque romantique", 
in Romantisme, n. 27, 1980, p. 77-93. 
30. Bernard Deloche, Museologica: Contradictions et logique du musée, Paris-Lyon: J. Vrin, 
1985. 
31. De acordo com a afirmação do narrador de Jacques Laurent em seu romance Les 
Sous-Ensembles flous, Paris: Grasset, 1981, p. 44. 
32. Charles-Olivier Carbonell, "Guizot, homme d'État, et le mouvement historiographi-
que français du XIX' siècle", in Actes du Colloque François Guizot, Paris: Société de 
I'Histoire du Protestantisme Français, 1976, p. 221 (Atas do colóquio, Paris, 22-25 
de outubro de 1974). 
169 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO 
a contrapelo de uma comemoração do primeiro artesão do patrimô-
nio, trata-se de reconhecer, neste livro, a unidade de um projeto que 
inspirou as medidas adotadas e os discursos proferidos, sem reduzi-lo, 
imediatamente, à preocupação política. 
A Restauração foi, por excelência, o período em que, de acordo com 
a constatação de Chateaubriand no prefácio de Études historiques de 
1831, "tudo — polêmica, teatro, romance, poesia — assume a forma da 
história". Tendo chegado à mesma conclusão, Guizot tirou partido dessa 
situação favorável para lançar a Collection de mémoires relatifs à l'histoire 
de France (1823), cuja apresentação afirmava o seguinte: "Os monu-
mentos originais de nossa antiga história foram até aqui o patrimônio 
exclusivo dos cientistas; tendo sido mantido a distância, o público só 
teve a oportunidade de conhecer a França e sua vida, dos séculos V ao 
XIII, por intermédio das obras de escritores modernos." Essa moda 
estendeu-se à custa das outras encarnações do universal. Enquanto as 
publicações francesas de arqueologia nacional suscitavam a admiração 
da Europa erudita do século XIX, os estudos sobre a civilização romana 
e, em menor medida, sobre a civilização grega foram abandonados a 
partir de 1815. Mais tarde, Camille Jullian poderá escrever que "a Res-
tauração é uma das épocas em que, na França, a Antiguidade Romana 
foi menos estudada e, aliás, nunca mais conseguimos recuperar o avanço 
que, então, deixamos escapar para nossos rivais"." 
A partir da década de 1830, o historiador foi levado a enfatizar 
a reunião confusa de conhecimentos que havia sido desdenhada por 
seus predecessores. Essa mutação decisiva inspirou a Chateaubriand 
— observador favorável, embora pouco preocupado em inscrever-se 
nessa corrente — uma célebre constatação: "Nas suas narrativas, os 
analistas da Antiguidade não introduziram, de modo algum, o quadro 
dos diferentes ramos da administração: as ciências, as artes, a educação 
pública eram rejeitadas da área da história; Clio prosseguia com maior 
leveza seu caminho, aliviada do pesado fardo que, atualmente, ela 
33. Camille Jullian, Notes sur l'histoire en France au XIX' siècle, Paris, 1896.Cf. ainda Les 
Politiques de l'archéologie du milieu du XIX' siècle à l'orée du XXIe siècle, Atenas: École 
française d'Athènes, 2000; e Mélanges de l'École française de Rome: Italie et Méditer-
ranée, 113/2, "Antiquité, archéologie et construction nationale au XIX siècle", 2001. 
170 
arrasta atrás de si. Agora, a história é uma enciclopédia; tudo tem de 
ser incluído no seu domínio, desde a astronomia até a química; desde 
a arte do financista até a arte do manufatureiro; desde o conhecimento 
do pintor, escultor e arquiteto até a ciência do economista; desde o 
estudo das leis eclesiásticas, civis e criminais, assim como políticas. 
Na sua tentativa para descrever uma cena de costumes e de paixões, 
o historiador moderno vai atribuir o maior destaque ao imposto do 
sal; e já se reivindica outro imposto; aflui a guerra, a navegação e o 
comércio. Como eram fabricadas, na época, as armas? De onde vinha a 
madeira para as construções? Quanto valia uma libra de pimenta? Tudo 
se perde se o autor não observou que o ano começava na Páscoa e que 
ele lhe havia atribuído a data do 1º de janeiro. A sociedade permane-
cerá desconhecida se for ignorada a cor da parte superior dos calções 
do rei e o preço de oito onças de prata."34 Enquanto o medievalismo 
do século XVIII se apoiava no direito público e no estudo das prerro-
gativas régias (através de decretos e leis, área dos feudistas e juristas), 
o do século XIX enfatizava o Povo e a Nação (essencialmente através 
das crônicas, narrativas, poesias e canções populares). 
As razões dessa postura foram perfeitamente resumidas em 
"L'Enchanteur", prefácio de Études historiques (1831): "Atualmente, ao ler-
mos nossa história do passado, ficamos mortificados pelo fato de nos sen-
tirmos perdidos [...1. Nada foi criado pelos historiadores do século XIX; 
ocorre que, à sua frente, eles deparam-se com um novo mundo que lhes 
serve de escala-padrão para avaliar o mundo antigo. Antes da Revolução, 
os manuscritos eram questionados apenas em relação aos padres, nobres 
e reis. Pelo contrário, agora, nossa pesquisa interessa-se exclusivamente 
pelo que diz respeito à vida dos povos e às transformações sociais: ora, 
esse aspecto foi completamente desdenhado pelos documentos oficiais." 
No seu esforço para manter-se acima da corrente das histórias sucessi-
vas, Chateaubriand tirou a conclusão de que, "antes da época da Revo-
lução, deve-se distinguir duas escolas históricas: a escola do século XVII 
e a escola do século XVIII, em que uma é erudita e religiosa, enquanto 
34. Chateaubriand, Études historiques (1831), prefácio, p. 4-5. Cf. A. Dollinger, Les 
Études historiques de Chateaubriand, Paris, 1932. 
171 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO 
a outra é crítica e filosófica; na primeira, os beneditinos reuniam os 
fatos e Bossuet empenhava-se em divulgá-los; na segunda escola, 
os Enciclopedistas criticavam os fatos e Voltaire dedicou-se a expô-los 
às disputas entre os letrados. Nossa escola moderna do século XIX 
pode ser designada como a escola política; ela é também filosófica, 
mas diferente da escola do século XVIII." 
Por sua vez, desde o primeiro curso sobre Les Origines du gouverne-
ment représentatif en Europe, Guizot afirmava que "o passado transforma-
se com o presente": "Tudo se transforma no homem e à sua volta [...], 
o ponto de vista a partir do qual ele considera os fatos, assim como 
suas disposições para proceder a esse exame."" O professor analisava 
a atividade historiográfica em seu contexto: "Segundo o estado político e 
o grau de civilização, os povos consideram a história sob determinado 
aspecto, procurando determinado gênero de interesses nesse estudo."" 
A "primeira época das sociedades" conheceu uma história poética, "nar-
rações brilhantes e ingênuas que encantam uma curiosidade ávida e fácil 
de satisfazer" — por exemplo, os textos de Heródoto. Em seguida, uma 
história filosófica, "série de dissertações sobre a caminhada do gênero 
humano" — de que E. Gibbon e D. Hume deixaram exemplos notáveis 
— correspondeu perfeitamente "ao tempo dos conhecimentos, da riqueza 
e do lazer". Por último, uma história "prática", tal como em Tucídides 
ou Lord Clarendon, forneceu "instruções análogas às necessidades 
experimentadas pelas pessoas em sua vida concreta"; ela correspondeu 
a "uma vida política animada e intensa". Atualmente, "por uma rara 
convergência de circunstâncias, todos esses gostos e todas essas necessi-
dades parecem estar reunidas; a história é agora, entre nós, suscetível de 
todos esses gêneros de interesse". Com efeito, ela dá testemunho de um 
respeito novo pelo princípio fundamental da civilização, "ideia pree-
minente que toma a dianteira e é predominante em toda parte em que 
se manifesta o espírito humano: a justiça equitativa, aplicada em escala 
universal". O respeito pelo passado, aqui, "não aprova nem impõe o 
35. François Guizot, Histoire eles origines du gouvernement représentatif en Europe, Paris, 
1855, t. I, 1a lição, p. 2 (doravante HOG). 
36. Ibidem, t. II, p. 6-10. 
172 
silêncio ao que é falso, culpável ou funesto. [...] O tempo não recebeu 
a ímpia missão de sancionar o mal ou o erro; pelo contrário, além de 
desvendá-los, serve-se deles". Desse imperativo absoluto, o século XIX 
manifesta uma consciência bem apurada: "É reduzido, talvez, o número 
de pessoas para quem o dever de todos os tempos é a imparcialidade, 
a qual, em meu entender, é a vocação de nossa época; mas", acrescenta 
ele imediatamente, "em vez da imparcialidade insensível e estéril que 
surge da indiferença, trata-se da imparcialidade enérgica e fecunda, 
inspirada pelo amor e pela visão da verdade."37 
A probidade intelectual da nova história está associada intimamente 
à sua eficácia social. Esse apogeu da inteligência do historiador é, si-
multaneamente, o de sua publicidade: ela "deixou de ser o patrimônio 
dos eruditos" quando os espíritos "tornaram-se capazes de compreender 
o homem em todos os graus de civilização" e serviram-se desse saber. 
Em suma, "sua utilidade deixou de ser, como outrora, uma ideia geral, 
uma espécie de dogma literário e moral, professado de preferência pelos 
escritores, e não tanto adotado e aplicado pelo público. Agora, trata-se 
de uma necessidade para o cidadão que pretenda tomar parte nos ne-
gócios de seu país ou somente ter um julgamento criterioso." A tarefa 
do historiador é, ao mesmo tempo, política e ética. 
O Cours d'histoire moderne é um Métier d'historien duplicado por 
um breviário político, cujo único programa resume-se deste modo: 
"Descobrir a verdade, realizá-la fora, nos fatos exteriores, em benefício 
da sociedade; transformá-la, dentro de nós, em crenças capazes de nos 
inspirar o desprendimento e a energia moral que são a força e a digni-
dade do homem neste mundo.."38 Sob esses dois aspectos, o empreen-
dimento de conservação assumia, em 1830, uma evidente atualidade; 
ele devia estar a serviço da sociedade, levando-a a respeitar a ordem 
sublime da justiça, tanto quanto isso fosse humanamente possível.39 
37. Ibidem, t. I, p. 13. 
38. François Guizot, Histoire de la civilisation en France depuis la chute de l'Empire romain 
jusqu'en Ie789, 11. ed. Paris, 1869, p. 30 (doravante HCF). 
39. Cf. Philippe Raynaud, "Le Libéralisme français à l'épreuve du pouvoir", in Pascal 
Ory (org.), Nouvelle Histoire des idées politiques, Paris: Hachette, 1987, p. 172, sobre 
a "antropologia pessimista". 
173 
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO 
Na sequência dos tumultos do início do século, numerosos monu-
mentos trocaram de mãos; daí em diante, eles dependiam do direito 
exclusivo de proprietários. De forma mais geral, a manutenção e a 
transmissão dos patrimônios tradicionais estavam ameaçados pela si-
tuação movimentada da época. Como reconhecer a legitimidade social 
e o interesse da civilização sem fazer apelo ao Estado? Paralelamente, a 
fisionomia da verdade histórica estava passando por uma completa mu-
tação.

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