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Fu n ciona l ismo:
Sua F u ndação
e S u a Evol uçã o
A Evolução Chega aos
Estados Unidos
Por volta de 1900, a psicologia nos Estados Unidos havia
assumido um caráter próprio, distinto da psicologia de
Wundt e do estruturalismo de Titchener, já que nenhum
dos dois se preocupava com o objetivo ou com a utilidade
das funções da consciência.:. O movimento funcionalista
�eriva<ig dos tra11�Jhg_s de_QMW.D-�. Galton coÍlç�ntrava-sé
no moaus operandi dos processos conscientes e não na
estrutura ou no conteúdo. Para realizar um estudo do
desenvolvimento formal
'da psicologia funcional como
uma escola de pensamento, é necessário passarmos da
Inglaterra para os Estados Unidos do final do século XIX e
início do XX.
Por que a psicologia funcional prosperou nos Estados
Unidos e não na Inglaterra, o berço do espírito funciona
lista? A explicação está no temperamento americano, nas
suas características sociais, econômicas e políticas ímpa
res. O Zeitgeist americano estava pronto para aceitar a
evolução e a atitude funcionalista dela derivada.
il A Evolução Chega aos
Estados Unidos
Herbert Spencer (1 820-1903)
O Darwinismo Social
A Filosofia Sintética
A Evolução Contínua das
Máquinas
Henry Hollerith e os Cartões
Perfurados
William James (1 842-
1 91 O): o Precursor da
Psicologia Funcional
A Biografia de ]ames
Os Princípios da Psicologia
O Objeto de Estudo da
Psicologia: a Nova Visão
sobre a Consciência
Texto Original: Trecho sobre
a Consciência, Extraído
de Psychology (Briefer
Course) (1892), de
William ]ames
Os Métodos da Psicologia
O Pragmatismo
A Teoria das Emoções
O Hábito
A Desigualdade Funcional
das Mulheres
Mary Whiton Calkins (1863-
1930)
Helen Bradford Thompson
Woolley (1874-1947)
Leta Stetter Hollingworth
(1886-1939)
1 5 1
1 5 2 H iSTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
I
A Fundação do
Funcionalismo
A Escola de Chicago
John Dewey (1 859-1952)
O Arco Reflexo
Comentários
)ames Rowland Angell
(1 869-1 949)
A Biografia de Angell
A Esfera de Ação da
Psicologia Funcional
Comentários
Harvey A. Carr (1 873-1 954)
Funcionalismo: o Formato
Final
O Funcionalismo na
Columbia University
Robert Sessions
Woodworth (1 869-1962)
A Biografia de Woodworth
A Psicologia Dinâmica
As Críticas ao
Funcionalismo
As Contribuições do
Funcionalismo
Herbert Spencer (7820- 1903)
Em 1882, Herbert Spencer, um filósofo inglês autodidata
de 62 anos que costumava usar protetores de orelhas para
proteger os pensamentos das interferências externas, che
gou aos Estados Unidos e acabou sendo aclamado herói.
Spencer foi recebido em Nova York por Andrew Carnegie,
o multimilionário patriarca da indústria siderúrgica ame
ricana. Carnegie costumava chamar o filósofo de messias
e, aos olhos de vários líderes americanos da economia,
ciência, política e religião, Spencer era um verdadeiro sal
vador. Diversos jantares e festas foram promovidos em
sua homenagem.
Batizado de "nosso filósofo" por Charles Darwin, seu
impacto no cenário americano foi monumental. Dotado
de mente prolífera, produzia grande quantidade de
livros, muitos dos quais ditados a uma secretária entre
sets de partidas de tênis ou durante passeios em um barco
a remo. Seus trabalhos foram publicados em série nas
revistas populares, milhares de cópias dos seus livros
foram vendidas e seu sistema de filosofia foi ensinado em
quase todas as disciplinas universitárias. Seu biógrafo
observou que Spencer "atingiu as universidades america
nas no início da década de 1860 como um raio, dominan
do-as por 30 anos" (Peel, 1971 . p. 2). Suas idéias atraíram
pessoas de todos os níveis sociais e influenciaram uma
geração de americanos. Se a televisão já tivesse sido in
ventada, ele teria aparecido em vários programas de
entrevista e se tornado alvo de muita publicidade e noto
riedade. Teria escrito. mais obras se não fosse acometido
por uma neurose aos 35 anos, agravada pela presença de
pessoas indesejáveis e pela interrupção de sua rotina diá
ria. Os protetores de orelha asseguravam que ele não fosse
perturbado por vozes, permitindo assim que trabalhasse
com tranqüilidade. Entretanto, sempre que se sentia per
turbado por interferências externas, queixava-se de insô
nia, palpitações cardíacas e indisposição estomacal. Assim
como Darwin, seus males físicos começaram exatamente
quando ele deu início ao desenvolvimento do sistema ao
qual acabou dedicando a vida inteira.
O Darwinismo Social
A filosofia que rendeu a Spencer o reconhecimento e a
aclamação foi o darwinismo - a noção da evolução e da
sobrevivência do mais apto. Spencer levou a teoria muito
mais adiante do que o próprio Darwin.
CAPÍTULO 7 FUNCIONALISMO: SUA FUNDAÇÃO E SUA EVOLUÇÃO 1 53
O interesse na teoria de Darwin nos Estados Unidos era muito grande � suas idéias
foram aceitas com entusiasmo. O evolucionismo foi abarcado não apenas pelas univer
sidades e sociedades científicas, como também pelas revistas populares e até' mesmo por
algumas publicações religiosas.
Spencer alegava ser evolucionário o desenvolvimento de todas as espécies, inclusive
do caráter humano e das instituições sociais, em conformidade com o princípio da
"sobrevivência do mais apto" (expressão cunhada por ele). Essa ênfase na aplicação da
teoria evolucionista à natureza humana e à sociedade é que se constituiu no denomina
do darwinismo social, recebido com muito entusiasmo nos Estados Unidos.
Na visão utópica de Spencer, se o princípio da sobrevivência do mais apto operasse
com liberdade, apenas os melhores sobreviveriam. Portanto, a perfeição humana seria
inevitável, caso nenhuma ação interferisse na ordem natural das coisas. O individualis
mo e o sistema econômico do laissez-faire eram vitais, ao passo que a interferência gover
namental na economia e no bem-estar da população (com subsídios à educação, moradia
e pobreza) era uma força contrária.
A população, as organizações e a sociedade deveriam ter liberdade para se desenvol
ver por contra própria, utilizando-se de meios próprios, do mesmo modo que as demais
espécies vivas se desenvolviam e adaptavam-se livremente ao ambiente natural. Qualquer
auxílio do Estado interfere no processo evolutivo natural. As pessoas, os programas, a eco
nomia ou as instituições que não se adaptassem eram considerados inaptos para sobre
viver e deviam perecer (tornarem-se "extintos"), para a melhoria de toda a sociedade. Se
o Estado continuasse a sustentar empresas que não funcionassem bem, elas conseguiriam
sobreviver, mas acabariam enfraquecendo a sociedade, violando a lei básica natural de
que apenas o mais forte e mais apto deve sobreviver. Mais uma vez, a idéia de Spencer
era que somente com a sobrevivência dos melhores a sociedade atingiria a perfeição.
Essa mensagem era compatível com o espírito individualista americano e as expres
sões "sobrevivência do mais apto" e "a luta pela existência" rapidamente passaram a
fazer parte da consciência nacional. ]ames J. Hill, o magnata da indústria ferroviária, rei
terou a mensagem de Spencer: "O êxito das companhias ferroviárias é determinado pela
lei da sobrevivência do mais apto". E John D. Rockfeller declarou: "O crescimento das
grandes empresas é apenas o resultado da sobrevivência do mais apto" (Hill e Rockefeller
apud Hofstadter, 1992, p. 45). A expressão refletia claramente a sociedade norte-america
na do final do século XIX, ou seja, os Estados Unidos consistiam um exemplo vivo das
idéias de Spencer.
Essa nação pioneira estava sendo formada por sérios trabalhadores que acredita
vam na livre iniciativa, na auto-suficiência e na independência da interferência do
Estado. E eles conheciam bem de perto a lei da sobrevivência do mais apto no seu dia
a-dia. A terra estava disponível para os dotados de coragem, sagacidade e habilidade
para tomá-la e transformá-la no seu meio de vida. Os princípios da seleção natural
eram claramente demonstrados nas experiências diárias, principalmentena fronteira
oeste dos Estados Unidos, onde a sobrevivência e o sucesso dependiam da capacidade
de adaptação do homem às difíceis condições e exigências do ambiente; quem não se
adaptou não sobreviveu.
O historiador americano Frederick ]ackson Turner descreveu assim os sobreviventes:
Aquela rudeza e força combinadas com a agudeza e curiosidade; aquela mentalidade prá
tica engenhosa e astuta para encontrar recursos; aquele hábil domínio das coisas mate-
1 54 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
riais ( ... ) poderoso para realizar grandes feitos; aquela energia incansável e agitada; aque
le individualismo dominante. (Turner, 1947, p. 235.)
Os americanos eram voltados ao prático, útil e funcional. Os estágios iniciais da psi
cologia americana refletiram essas qualidades. Por essa razão, a teoria evolucionista foi
mais bem aceita nos Estados Unidos do que em outras nações. A psicologia americana
transformou-se em uma psicologia funcional porque a evolução e o espírito funcional
eram compatíveis com esse temperamento básico, assim como a compatibilidade entre
a visão de Spencer e o ethos americano permitiu que seu sistema fiiosófito influenciasse
todos os campos do conhecimento. O famoso pastor americano Henry Ward Beecher
escreveu a Spencer, dizendo: "As condições peculiares da sociedade americana permiti
ram que seus escritos produzissem efeitos mais rápidos aqui do que na Europa" (Beecher,
apud Hofstadter, 1992, p. 3 1) .
A Filosofia Sintética
Spencer formulou um sistema denominado filosofia sintética. (Ele usou a palavra "sin
tética" no sentido de sintetização ou combinação e não com o significado de algo artifi
cial ou não natural.) Ele baseou esse sistema amplamente abrangente na aplicação dos
princípios evolucionistas ao conhecimento e à experiência humana. Suas idéias foram
publicadas em uma série de 10 livros, entre 1860 e 1897. Os volumes foram considera
dos pelos principais intelectuais da época um trabalho de gênio. Conwy Lloyd Morgan
escreveu a ele, dizendo: "A nenhum outro mestre intelectual devo tanta gratidão quan
to ao senhor". Alfred Russel Wallace batizou seu primeiro filho com o nome de Spencer.
Darwin disse, após ler um dos livros de Spencer, que ele "era uma dúzia de vezes supe
rior a mim" (apud Richards, 1987, p. 245).
Filosofia sintética: a idéia de Spencer que atribui a explicação sobre o conhecimento e a experiên
cia aos princípios do evolucionismo.
Dois volumes da filosofia sintética constituíram a obra The Principies of Psychology,
publicada inicialmente em 1855, mais tarde adotada por William James como livro-base
para o primeiro curso de psicologia que lecionou em Harvard. Nesse livro, Spencer dis
cute a noção de que a forma atual da mente é resultado dos esforços passados e contí
nuos na adaptação a diversos ambientes. Ele enfatizava a natureza adaptável dos processos
nervosos e mentais e afirmava que uma complexidade crescente de experiência - e
assim de comportamento - faz parte do processo normal de evolução. O organismo pre
cisa se adaptar ao ambiente se desejar sobreviver.
O História On-/ine
http:/ /www.utm.edu/research/iep/s/spencer.htm
Esse site contém informações sobre a vida e o trabalho de Spencer, além de
uma análise de suas contribuições e uma bibliografia.
CAPiTULO 7 FUNCIONALISMO: SuA FUNDAÇÃO E SUA EvOLUÇÃO 1 5 5
A Evolução Contínua das Máquinas
_. ... . .-' ;
Observou-se no Capítulo 2 que as máquinas, assim como os seres humanos, precisam
adaptar-se ao ambiente para sobreviverem. Esse processo contínuo de adaptação e evolu
ção aplica-se prirtcipalmente às máquinas destinadas a copiar ou a imitar o funcionamen
to cognitivo humano. Por volta do final do século XIX, o tipo de máquina calculadora de
Babbage não era mais adequado. Os cálculos realizados por dispositivos mecânicos ou por
meios humanos exigiam máquinas cada vez mais adequadas. Um fato que exemplificou
essa necessidade foi o censo populacional norte-americano de 1890.
O censo realizado 10 anos antes fora tão complexo que levou sete anos para ser con
cluído. Cerca de 1 .500 funcionários computaram a mão dados referentes a idade, sexo,
etnia, residência e outras características (que esperavam obter) de cada cidadão america
no. Os resultados foram compilados em um relatório de mais de 21 mil páginas. Nesse
intervalo, a população cresceu tão rapidamente que era óbvia a necessidade de uma
mudança nos procedimentos ou, do contrário, o censo de 1890 não seria concluído
antes de 1900, já no início do censo seguinte. Havia a necessidade de uma nova e avan
çada máquina processadora de informações.
Henry Hollerith e os Cartões Perfurados
Henry Hollerith (1859-1929) foi o engenheiro que desenvolveu a nova e avançada forma
de processar as informações. Dois historiadores sobre a origem dos computadores descre
veram a inovadora criação de Hollerith dizendo que seu método
registrava as respostas dos questionários de cada cidadão em uma fita de papel com um
padrão de perfuração ou em um conjunto de cartões perfurados, parecidos com os utili
zados para a gravação de músicas dos pequenos órgãos de exposição (como os pianos]
daquela época. Desse modo, era possível utilizar uma máquina para contar automatica
mente os orifícios e tabular os resultados. (Campbell-Kelly e Aspray, 1996. p. 22.)
Hollerith utilizou 56 milhões de cartões para computar os resultados obtidos de 62
milhões de pessoas. Cada cartão tinha capacidade para armazenar o equivalente a até 36
bytes de 8 bits de informações (Dyson, 1997).
Assim, o censo norte-americano de 1890 produziu mais informações do que se havia
acumulado até então e, em apenas dois anos, rendeu uma economia de 5 milhões de
dólares em comparação com o método de tabulação manual. O sistema de cartão perfu
rado de Hollerith alterou radicalmente o processamento desse tipo de informação e reno
vou as esperanças (e os temores) de que as máquinas, com o tempo, seriam capazes de
reproduzir o funcionamento cognitivo humano. Um artigo na revista Scientific Arnerican
foi publicado com o seguinte título "How strips of paper can endow inanimate machi
nes with brains of their own" (Como tiras de papel podem dotar as máquinas inanima
das de mentes próprias) (Dyson, 1997) .
Em 1896, Hollerith estabeleceu a própria empresa, a Tabulating Machine Company,
que foi vendida em 1911 . A nova corporação, a Computing-Tabulating-Recording
Company, foi rebatizada em 1924, sendo hoje a famosa IBM.
1 5 6 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
William James (784 2- 79 7 0): o Precursor da
Psicologia Funcional
Tanto o próprio William ]ames como o seu papel na psicologia americana são muito
paradoxais. Seu trabalho foi o principal precursor americano da psicologia funcional e
ele foi o pioneiro da nova psicologia científica desenvolvida nos Estados Unidos. Uma
pesquisa realizada pelos historiadores da psicologia 80 anos após a morte de ]ames reve
lou que ele era considerado a segunda figura mais importante da psicologia, perdendo
apenas para Wilhelm Wundt, além de ser apontado como o principal psicólogo ameri
cano (Korn, David, e Davis, 1991).
No entanto, alguns colegas de ]ames o consideravam uma força contrária ao desen
volvimento da psicologia científica. Ele mantinha um notório interesse em assuntos
como telepatia, clarividência, espiritismo, comunicação com os mortos em sessões espí
ritas e outros fatos místicos. Os psicólogos americanos, como Titchener e Cattell, critica
vam a sua entusiástica exposição a esses fenômenos psíquicos e mentalísticos que eles,
como psicólogos experimentais, estavam tentando banir do campo.
]ames não fundou nenhum sistema formal de psicologia ou sequer teve algum dis
cípulo; não houve uma escola de pensamento "jamesiana". Embora a forma de psicolo
gia a ele associada fosse uma tentativa de ser científica e experimental, a própria atitude
e as realizações de ]ames não eram experimentalistas. A psicologia, que um dia ele cha
mara de "pequena ciênciadetestável", não era a sua paixão eterna, como era para Wundt
e Titchener. ]ames trabalhou com a psicologia durante algum tempo e depois mudou sua
área de interesse.
Nos últimos anos da vida, esse homem complexo e fascinante, que tanto contribuí
ra para a psicologia, acabou deixando-a de lado. (Em uma ocasião, quando ia realizar
uma palestra na Princeton University, pediu para que não fosse apresentado como psi
cólogo.) Ele até insistia em afirmar que a psicologia não passava de "uma elaboração do
óbvio". Mesmo que com a sua ausência a psicologia não deixasse de seguir adiante, e às
vezes cambaleante, ]ames ocupou o seu lugar e teve a sua importância garantida na his
tória da psicologia.
]ames não fundou a psicologia funcional, mas apresentou de forma clara e eficaz as
suas idéias dentro da atmosfera funcionalista impregnada na psicologia americana.
Dessa forma, influenciou o movimento funcionalista, inspirando as gerações posteriores
de psicólogos.
A Biografia de James
William ]ames nasceu no Astor House, um hotel da cidade de Nova York, em uma famí
lia destacada e rica. Seu pai (naquela época, o segundo homem mais rico dos Estados
Unidos) dedicou-se com entusiasmo, embora de forma inconsistente, à educação dos
filhos, que alternava entre a Europa e os Estados Unidos. Assim, os anos escolares iniciais
de ]ames foram passados na Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Suíça e nos Estados
Unidos. Essas experiências estimulantes expuseram ]ames às vantagens culturais e inte
lectuais da Inglaterra e do restante da Europa.
Durante toda a sua vida, ]ames viajou muitas vezes para o exterior. O método favo
rito do pai para tratar das pessoas doentes da família era mandá-las para a Europa, e não
CAPÍTULO 7 FUNCIONALISMO: SUA FUNDAÇÃO E SUA EVOLUÇÃO 157
para o hospital. E a sua mãe dispensava atenção e carinho aos filhos somente quan
do estavam doentes. Talvez não fosse surpresa o fato de ]ames dificilmente apresen-
tar boa saúde. "'" ' '
Embora o velho ]ames não esperasse que nenhum dos filhos se preocupasse em
ganhar a vida, incentivou o interesse precoce de William pela ciência. Deu-lhe um jogo
de química contendo um "bico de Bunsen e pequenas amostras de líquidos estranhos
que, para desgosto do pai, misturava, aquecia e transfundia, manchando os dedos e as
roupas, chegando até a provocar perigosas explosões" (Allen, 1967, p. 47).
Com 18 anos, ]ames decidiu tornar-se artista, e seis meses no ateliê do pintor
William Hunt em Newport, Rhode Island, convenceram-no de que, apesar da boa técni
ca, não era dotado de talento suficiente para tornar-se um grande artista. Desistiu da car
reira e acabou matriculando-se na Lawrence Scientific School em Harvard. Nessa época
estourava a guerra civil americana e, mais tarde, ]ames confessou que desejara servir o
exército, mas o pai o proibira, alegando não existir nenhum governo ou qualquer outra
causa que valesse a vida como sacrifício.!
Pouco tempo depois de chegar a Harvard, começou a perder a autoconfiança e a
saúde, transformando-se em uma pessoa extremamente neurótica para o resto da vida.
Abandonou o interesse pela química, aparentemente em função da precisão exigida no
trabalho laboratorial, e tentou prosseguir com a medicina que, no entanto, não lhe des
pertava muito interesse, tal como comentou:
Há muito farsante nesse meio. ( ... ) Exceto nas cirurgias, em que às vezes é possível obter
algum resultado positivo, o médico realiza mais pelo efeito moral da sua presença diante
do paciente e da sua família do que por qualquer outro motivo, além de poder extrair -lhe
o dinheiro. Games apud Allen, 1967, p. 98.)
]ames abandonou a medicina para auxiliar o zoólogo Louis Agassiz em uma expedi
ção à bacia do rio Amazonas, para colher espécies de animais marinhos. A viagem deu
lhe a oportunidade de ter uma amostra da carreira na biologia, mas logo percebeu que
não conseguiria suportar a precisão das coletas e da classificação das espécies, bem como
as exigências físicas do trabalho de campo. Em uma carta que escreveu para a família,
disse: "Minha vinda foi um erro. Estou definitivamente convencido de que sou talhado
para a elaboração teórica e não para o trabalho de campo" (apud Simon, 1998, p. 93).
Essa reação ao trabalho científico na química e na biologia professava a sua posterior
aversão pela experimentação no campo da psicologia.
Embora a viagem ao Brasil, em 1865, não conseguisse tornar a medicina de alguma
forma atraente para ]ames, ele relutou mas acabou retomando os estudos médicos por
não haver nenhuma outra área que lhe despertasse o interesse. Estava freqüentemente
doente, queixando-se de depressão, problemas digestivos, insônia, dificuldades visuais e
dores nas costas. "Era óbvio que ele estava sofrendo de América; a Europa era a única
cura." (Miller e Buckhout, 1973, p. 84).
]ames recuperou-se em um balneário na Alemanha, dedicando-se à literatura e escre
vendo longas cartas aos amigos, mas a depressão persistia. Freqüentou aulas de psicolo
gia na University of Berlin que o levaram a refletir que talvez fosse chegada a hora de a
"psicologia começar a se tornar ciência" (apud Allen, 1967, p. 140). Também afirmou
1 Seu irmão Henry james também não serviu na guerra, mas outros dois irmãos mais novos serviram.
1 5 8 HiSTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
que, se sobrevivesse à doença e conseguisse suportar o inverno, desejava aprofundar os
estudos de psicologia com o grande Helmholtz e, usando exatamente estas palavras, com
um homem chamado Wundt. Sobreviveu ao inverno, mas não conheceu Wundt naque
la época. No entanto, o fato de ter ouvido falar de Wundt mostra a consciência que ele
tinha das tendências científica e intelectual, mesmo 10 anos antes de Wundt fundar seu
laboratório.
]ames conseguiu formar-se em medicina na universidade de Harvard em 1 869, mas
sua insegurança e depressão pioravam. Acometido de males indeterminados e medos ter
ríveis, chegou a pensar em suicídio. Seu pavor era tão imenso que não conseguia sair de
casa sozinho à noite. Internou-se em uma clínica de repouso em Somerville, Massa
chusetts, mas nenhum tratamento era capaz de aliviar seu sofrimento (Townsend, 1996) .
]ames não era a única pessoa a sofrer desse mal naquela época.
Uma epidemia de neurastenia. O neurologista americano George Beard cunhou o
termo "neurastenia" para referir-se a um estado nervoso peculiar do americano. Listou
uma variedade de sintomas como insônia, hipocondria, dor de cabeça, erupções cutâ
neas, cansaço nervoso e um estado que chamou de colapso cerebral (Lutz, 1991). ]ames
chamou a síndrome de "americanite" (Ross, 1991) .
Durante a segunda metade do século XIX, aquilo que muitos observadores chamaram de
"epidemia de neurastenia" varria as classes mais altas. ( ... ) Neurastenia era, literalmente,
a falta de força nervosa, ou seja, depressão paralisante e perda de ânimo. Os mais educa
dos e conscientes eram os que tinham mais chances de sucumbirem. O adiamento na
escolha da carreira tornou-se uma experiência comum entre esses filhos problemáticos
da burguesia. (Lears, 1987, p. 87.)
Muitos \amigos, parentes e colegas de ]ames sofriam desses sintomas debilitantes.
Um amigo escreveu-lhe, dizendo: "Fico imaginando se alguém na Nova Inglaterra tenha
conseguido chegar aos 35 anos sem pensar em suicídio". E James respondeu: "Creio não
haver nenhum intelectual que não haja flertado com a idéia do suicídio" (apud
Townsend, 1996, p. 32-33). A condição estava tão disseminada entre o segmento mais
rico e intelectual da sociedade americana que uma revista foi lançada com o título de
Anybody Who Was Anybody Was Neurasthenic (Miller, 1991). Obviamente, William ]ames
estava bem acompanhado.
A indústria farmacêutica Rexall tirou proveito da oportunidade criada por essa doen
ça, introduzindo um remédio patenteado com o nome de Americanitis Elixir (Elixir para
Americanitis), recomendado para distúrbios nervosos, fadiga e todos os problemas cau
sadospela americanite (Marcus, 1998).
As mulheres que sofriam desse mal, claramente as intelectuais e feministas, eram
aconselhadas a "passar seis semanas ou mais de cama, sem executarem qualquer traba
lho, leitura ou atividade social e ganhar muito peso por meio de uma dieta à base de
muita gordura". Os homens não precisavam se submeter a um tratamento tão rígido
assim. O conselho para eles incluía "viagens, aventuras [e] muito exercício físico"
(Showalter, 1997, p. 50, 66).
Descobrindo a psicologia. No período de depressão em 1869, ]ames começou a
desenvolver uma filosofia de vida incentivado não tanto pela curiosidade intelectual,
mas pelo desespero. Leu muita filosofia, inclusive os ensaios de Charles Renouvier sobre
o livre-arbítrio, o que o convenceu da sua existência. Decidiu que seu primeiro ato de
CMiTULO 7 fUNCIONAUS,\\0: SUA FUNDAÇÃO E SUA EVOLUÇÃO 1 59
vontade própria seria a crença no livre-arbítrio. Em seguida, passou a crer que consegui
ria curar a depressão apenas acreditando na força de vontade. Aparentemente obteve
certo êxito, pois, em 1872, aceitou lecionar fisiologia em Harvard, comentando ser
"nobre para o espírito de uma pessoa ter um trabalho responsável para rea1izar" Games,
1902, p. 167) . No entanto, apenas um ano depois, teve de tirar licença para visitar a
Itália, mas retornou pouco tempo depois e continuou lecionando.
Mais ou menos nessa mesma época, ]ames interessou-se pelos efeitos de alguns
elementos químicos na alteração da mente. Leu a respeito das experiências por que
passaram pessoas sob a influência do óxido nitroso (o "gás hilariante") e do nitrato de
amila, que afetam a oxigenação do cérebro, causando assim movimentos bruscos.
Decidiu experimentar essas substâncias. Como escreveu um biógrafo, essa fora "a pri
meira entre as várias experiências [de ]ames] com estados conscientes alterados, que o
fascinaram devido à forma como as alterações físicas influenciavam a consciência"
(Croce, 1 999, p. 7) .
No ano letivo de 1875-1876, ]ames lecionou seu primeiro curso de psicologia, que
chamou de The Relations between Physiology and Psychology (As relações entre a fisiologia
e a psicologia). Por isso, a Harvard foi a primeira universidade dos Estados Unidos a ofe
recer o curso de psicologia experimental. ]ames nunca freqüentara cursos formais de psi
cologia - o primeiro foi o seu. Pediu dinheiro à faculdade para adquirir um laboratório
e equipamentos de demonstração para suas aulas e recebeu 300 dólares.
Em 1878, dois acontecimentos importantes marcaram a vida de ]ames: o casamen
to com Alice Howe Gibbens, a mulher escolhida por seu pai, e a assinatura de um con
trato com o editor Henry Holt, que resultou em um dos livros clássicos da psicologia. Ele
levou 12 anos para escrever o livro, que começara durante a lua-de-mel.
Uma das razões de tanta demora para ]ames escrevê-lo é que ele era um viajante
compulsivo. Quando não estava na Europa, podia ser facilmente encontrado nas mon
tanhas de Nova York ou New Hampshire.
Suas cartas dão a entender que suas relações familiares eram muito desgastantes e que
freqüentemente sentia necessidade de ficar sozinho. As viagens eram a única forma de
conseguir lidar com essa situação. Ele arranjava uma viagem após o nascimento de cada
um dos seus filhos e, obviamente, sentia-se culpado. Freqüentemente se ausentava das
comemorações de Natal, Ano Novo e aniversários, mesmo não estando muito distante,
como, por exemplo, em Newport. ( . . . ) As viagens de ]ames eram fugas das confusões
familiares para a natureza, a solidão e o alívio místico. (Myers, 1986, p. 36-37.)
Os nascimentos dos filhos foram muito perturbadores para o temperamento sensí
vel de ]ames. Não conseguia trabalhar direito e ressentia-se da atenção dispensada pela
esposa aos recém-nascidos. Depois do nascimento do segundo filho, passou um ano no
exterior, viajando de uma cidade a outra.
Escreveu de Veneza para sua esposa, dizendo-se apaixonado por uma italiana. Ele
disse: "Você vai acabar se acostumando com esses meus entusiasmos e acabará gostan
do" (apud Lewis, 1991, p. 344). Mas Alice ficava contrariada com o que ela mesma des
crevia como a "tendência [do meu marido] de flertar casualmente com conhecidas e até
mesmo com as empregadas da família". Ficara furiosa quando ele lhe contara haver bei
jado uma delas. ]ames, no entanto, achava que essa sua natureza afetiva devia deixá-Ia
feliz. Conforme explicava, muitas vezes tinha o "desejo de beijar as pessoas" (apud
Simon, 1998, p. 215-216).
1 6 0 HiSTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
]ames continuava a lecionar em Harvard quando se encontrava na cidade e, em
1 885, foi promovido a professor de filosofia. Quatro anos mais tarde, passou a ter o títu
lo de professor de psicologia. Nessa época já havia conhecido vários psicólogos europeus,
dentre eles Wundt, que "causou-me uma agradável impressão pessoal, com a sua voz
agradável e o eterno sorriso franco nos lábios". No entanto, alguns anos depois, ]ames
percebeu que Wundt "não é um gênio, ele é um professor, um ser cuja tarefa é conhecer
tudo e ter opinião própria sobre qualquer assunto" Games apud Allen, 1967, p. 25 1, 304).
O livro de ]ames, The principies of psychoiogy, foi finalmente publicado em 1890, em
dois volumes. Foi um tremendo sucesso e uma importante contribuição para a área.
Quase 80 anos após a sua publicação, um psicólogo declarou: "O livro Principies de ]ames
é sem sombra de dúvida a obra mais culta e provocante e, ao mesmo tempo, o livro de
psicologia mais compreensível escrito até hoje em inglês e em qualquer outro idioma"
(MacLeod, 1969, p. iii). Essa obra foi o livro de referência mais importante para várias
gerações de estudantes de psicologia e até hoje é lida por várias pessoas que não têm a
obrigatoriedade de lê-la.
A reação favorável ao livro não foi unânime. Wundt e Titchener, criticados na obra,
não reagiram bem. Wundt declarou: "Trata-se de uma literatura dotada de beleza, mas
não é psicologia" (Wundt, apud Bjork, 1983, p. 12). Wundt continuou criticando severa
mente o trabalho de ]ames na psicologia. De acordo com C. H. Judd, um estudante ame
ricano do laboratório de Wundt em Leipzig, havia
tido muito pouco respeito pelos líderes da psicologia americana que houvessem estuda
do em outro lugar que não em Leipzig. Havia especial antipatia por ]ames. Ele fez algo
considerado totalmente insensato, não somente criticou Wundt ( . . . ) como o fez de forma
sarcástica. Isso era demais. ( . . . ) ]ames não era considerado um pensador de primeira
linha. (1930/1961, p. 215.)
O próprio ]ames não reagiu favoravelmente ao seu livro. Escreveu uma carta ao edi
tor e descreveu o manuscrito como uma "massa repugnante, distendida, intumescida,
inflada e hidrópica que certifica nada além de dois fatos: primeiro, não existe uma ciên
cia da psicologia; segundo, que [William James] é um incapaz" Games apud Allen, 1967,
p . 3 14-3 15).
Com a publicação do livro The principies, ]ames decidiu que não tinha nada mais a
dizer a respeito da psicologia. Além disso, não se interessava mais na supervisão do labo
ratório de psicologia em Harvard. Conseguiu que Hugo Münsterberg, naquela época na
University of Freiburg, Alemanha, se tornasse diretor do laboratório e lecionasse os cur
sos de psicologia, ficando livre para trabalhar com a filosofia. Münsterberg nunca chegou
a desempenhar o papel que ]ames esperava dele: tornar-se uma liderança na pesquisa
experimental em Harvard. Ao contrário, Münsterberg procurava estudar uma variedade
de problemas do mundo real e dedicava pouca atenção ao laboratório. Ele foi importan
te por ter ajudado a popularizar a psicologia e transformá-la em uma disciplina mais apli
cada (veja no Capítulo 8).
Embora ]ames houvesse instalado e equipado o laboratório de psicologia de
Hatvard, ele não era experimentalista. Nunca se convencera do valor do trabalho labo
ratorial e pessoalmente não gostava de realizar essa tarefa. Dizia que as universidadesamericanas tinham laboratórios demais e, no livro The principies, destacou que os resul
tados do trabalho de laboratório não eram proporcionais aos enormes esforços exigidos.
Portanto, não causa estranheza o fato de sua contribuição à psicologia constituir-se de
tão pouco trabalho experimental.
CAPiTULO 7 FUNCIONALISMO: SUA FUNDAÇÃO E SUA EVOLUÇÃO ' 1 6 1
]ames passou os últimos 20 anos da vida refinando seu sistema filosófico e, por volta
da década de 1890, foi reconhecido como o principal filósofo americano. Entre os princi
pais trabalhos de filosofia publicados está The varieties ofreligious experience_(l�02). A sua
obra Talks to teachers (1899) marcou o início da psicologia educacional e divtilgou as idéias
de ]ames sobre a aplicação da psicologia na sala de aula em situações de aprendizagem.
História On-Jine
http:/ /www.emory.edu/EDUCATION/mfp/james. html
Esse site contém tudo que se deseja conhecer sobre James, inclusive textos
completos da maioria de seus livros, artigos, ensaios, além de uma cronolo
gia, fotos, bibliografias e artigos a seu respeito e links para outros sites.
http:/ /www.sh ip.edu/-cgboeree/wundtjames.html
Esse endereço apresenta uma comparação interessante entre as vidas e os
trabalhos de James e Wundt e as divergências entre eles.
http:/ /website.lineone.net/ -williamjames1 I
Esse site apresenta a biografia de James, comentários sobre a sua influên
cia na psicologia e o texto completo da sua obra The varieties of religious
experience.
Os Princípios da Psicologia
Por que tantos estudiosos consideram ]ames o maior psicólogo americano? Três hipóte
ses são levantadas para explicar tamanha importância e influência creditadas a ele.
Primeiro, ]ames escrevia com uma clareza rara na ciência. Sua escrita era dotada de mag
netismo, espontaneidade e charme. Segundo, ele se posicionou contra o objetivo de
Wundt na psicologia - a análise da consciência a partir dos seus elementos. E terceiro,
]ames ofereceu uma forma alternativa de analisar a mente, uma visão congruente com a
abordagem funcional da psicologia. Em resumo, a era da psicologia americana estava
preparada para ouvir o que ]ames tinha a dizer.
No livro The principies of psychology, ]ames apresentou a visão que acabou tornando
se a doutrina central do funcionalismo americano - a psicologia não tem como meta a
descoberta dos elementos da experiência, mas o estudo da adaptação dos seres humanos
ao seu meio ambiente. A função da nossa consciência é guiar-nos aos fins necessários para
a sobrevivência. A consciência é vital para as necessidades dos seres complexos em um
ambiente complexo; de outra forma, a evolução humana não ocorreria.
]ames também enfatizava os aspectos não-racionais da natureza humana. As pessoas
eram criaturas dotadas de emoção e paixão, assim como de pensamento e razão. Mesmo
quando discutia os processos puramente intelectuais, ]ames destacava o não-racional.
Alegava que a condição física afetava o intelecto, que os fatores emocionais determina
vam as crenças e que as necessidades e os desejos humanos influenciavam a formação da
razão e dos conceitos. Assim, ]ames não considerava as pessoas seres totalmente racionais.
Em The principies, ]ames escreveu sobre as mais variadas áreas.
1 62 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
O Objeto de Estudo da Psicologia: a Nova Visão sobre a Consciência
]ames afirmava logo no início da obra que "A psicologia é a ciência da vida mental,
abrangendo tanto os seus fenômenos como as suas condições" (James, 1890, v. 1, p. 1) .
No que tange ao objeto de estudo, as palavras-chave são fenômenos e condições. Com fenô
menos, ele queria dizer que o objeto de estudo da psicologia devia ser buscado na expe
riência imediata; com condições, referia-se à importância do corpo, principalmente do
cérebro, na vida mental.
De acordo com ]ames, as subestruturas físicas da consciência formam uma parte
básica da psicologia. A consciência deve ser analisada no seu ambiente natural, que é o
físico do ser humano. Essa noção biológica da ação do cérebro sobre a consciência é uma
característica exclusiva da abordagem de psicologia de ]ames.
Ele rebelava-se contra a artificialidade e a estreiteza da posição de Wundt. Acreditava
serem as experiências conscientes simplesmente experiências conscientes e não grupos
ou conjuntos de elementos. A descoberta de elementos mínimos da consciência por
meio da análise introspectiva não demonstra que eles existam independentemente de
um observador treinado. Os psicólogos realizam leituras da experiência com base na sua
posição sistemática e com o seu ponto de vista.
Um degustador treinado é capaz de distinguir os elementos individuais do sabor de
um alimento que não são percebidos por uma pessoa não-treinada, a qual percebe um
misto de sabores, uma mistura total de ingredientes impossível de distinguir. Do mesmo
modo, o fato de algumas pessoas serem capazes de analisar suas experiências conscien
tes em um laboratório de psicologia não quer dizer que os elementos por elas relatados
estejam presentes na consciência de qualquer outra pessoa exposta à mesma experiên
cia. ]ames considerava essa afirmação uma "falácia dos psicólogos".
Atingindo bem no ponto central a abordagem de Wundt, ]ames declarou que as sen
sações simples não existem na experiência consciente, existindo apenas como resultado
de algum processo retorcido de inferência ou abstração. Em uma declaração grosseira e
eloqüente, disse:
Ninguém jamais experimentou uma sensação simples por si próprio. A consciência,
desde o dia do nosso nascimento, gera urna imensa multiplicidade de objetos e relações
e o que denominamos sensações simples é resultado da atenção discriminativa, levada a
um grau muito alto. Uarnes, 1890, v. 1, p. 224.)
No lugar da análise artificial e da redução da experiência consciente aos ditos elemen
tos componentes, ]ames criou um novo programa de psicologia. A vida mental consiste
em uma unidade, em uma experiência total que se modifica. A consciência é um fluxo
constante e qualquer tentativa de dividi-la em fases temporariamente distintas pode dis
torcê-la. Para expressar essa idéia, ]ames cunhou a expressão fluxo de consciência.
Fluxo de consciência: o conceito de James que afirma ser a consciência um processo de fluxo con
tínuo e qualquer tentativa de reduzi-la a elementos pode distorcê-la.
Como a consciência está em constante modificação, não é possível experimentar o
mesmo pensamento ou a mesma sensação mais de uma vez. Pode-se pensar em um obje
to ou um estímulo em mais de uma ocasião, mas os pensamentos não são idênticos em
CAPiTULO 7 fUNCIONALISMO: SUA fUNDAÇÃO E SUA EVOLUÇÃO ; 1 63
cada situação. São diferentes devido às experiências intervenientes. Desse modo, a cons
ciência é definida como cumulativa e não recorrente.
A mente é igualmente contínua. Não há interrupção abrupta no fluxo . .de consciên
cia. É possível notar lapsos de tempo, por exemplo, quando estamos sonolentos, mas,
quando estamos despertos, não temos dificuldade de estabelecer relações com nosso
fluxo de consciência em andamento. Além disso, a mente é seletiva: como somos capa
zes de prestar atenção em apenas uma pequena parte do universo das nossas experiên
cias, ela escolhe entre os vários estímulos aos quais é exposta. A mente filtra algumas
experiências, combina ou separa outras, seleciona e rejeita outras mais. O principal cri
tério de seleção é a relevância - a mente seleciona os estímulos relevantes de modo que
permita que a consciência opere de modo lógico, criando assim uma série de idéias que
possam resultar em uma conclusão racional.
Por fim, ]ames destacou a função ou o propósito da consciência. Acreditava que ela
desempenhava alguma função biológica, de outro modo não teria sobrevivido ao tempo.
A função da consciência é proporcionar a capacidade de adaptação ao ambiente, permitin
do-nos escolher. Para desenvolver essa idéia, ]ames fazia a distinção entre a escolha e ohábito; acreditava que os hábitos eram involuntários e não conscientes. Quando estamos
diante de um novo problema e temos de escolher uma forma de enfrentá-lo, a consciên
cia entra em cena. Essa ênfase da intencionalidade reflete o impacto da teoria da evolução.
� Texto Original
..
Trecho sobre a Consciência, Extraído de Psychology
(Briefer Course) (1 892), de William James
A consciência encontra-se em constante mudança. Não quero dizer com essa afirmação que
o estado mental seja dotado de alguma duração - e mesmo que fosse verdade, seria difí
cil estabelecer essa duração. O que desejo destacar com essa afirmação é a impossibil idade
de um estado do passado recorrer e ser idêntico ao que fora anteriormente. Neste momen
to sentimos, ouvimos; pensamos, desejamos; lembramos, esperamos; amamos, odiamos; e
vivenciamos outras centenas de estados que sabemos estarem relacionados alternadamen
te em nossas mentes. Todavia todos esses estados são complexos, podendo-se assim dizer,
produzidos pela combinação dos estados mais simples; mas os estados simples não seriam
regidos por uma lei distinta? Não seriam, por exemplo, as sensações extraídas do mesmo
objeto sempre as mesmas? A tecla do piano pressionada com a mesma intensidade não pro
vocaria a sensação de ouvirmos e o mesmo som? Não provocaria a mesma grama a idênti
ca sensação de verde, o mesmo firmamento, a igual sensação de azul, e não teríamos a
mesma sensação olfativa independentemente do número de vezes que encostamos o nosso
nariz no mesmo frasco do perfume? Pode soar como um sofisma metafísico a sugestão de
que não percebemos as sensações dessa forma; e uma atenção mais cuidadosa do assunto
demonstra que não há provas de que a sensação de receber um choque elétrico provoque
duas vezes percepções corporais idênticas.
O que está presente duas vezes é o mesmo objeto. Ouvimos a mesma nota executada
diversas vezes; enxergamos a mesma tonalidade da cor verde, a fragrância do mesmo perfu
me ou a experiência da mesma espécie de dor. As realidades, concretas e abstratas, físicas e
1 64 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
ideológicas, em cuja permanente existência acreditamos, parecem surgir constantemente no
nosso pensamento e conduzir-nos, devido à nossa falta de cautela, a supor que as nossas
" idéias" a respeito dessas realidades consistem nas mesmas idéias. ( . . . ) A grama que vislum
bro pela janela parece ter o mesmo tom de verde tanto sob o sol como sob a sombra, e, no
entanto, o pintor pode pintar uma parte dela de marrom escuro, outra parte de amarelo claro,
tentando criar o efeito sensorial da realidade. Normalmente, não prestamos atenção nas d ife
rentes formas de aparência, som e odor que os mesmos objetos assumem quando observados
de distâncias distintas e sob diversas circunstâncias. A igualdade dos objetos é que consiste no
alvo de nossa investigação; e qualquer sensação que nos garanta essa igualdade será prova
velmente considerada, de um modo geral, como a mesma para todos.
Essa característica é que traz o ju lgamento precipitado sobre a identidade subjetiva das
diferentes sensações bem próximo da invalidade como u ma evidência do fato. Toda a des
crição daqu ilo que se chama sensação consiste em um comentário sobre a nossa incapaci
dade de afirmar se duas qualidades sensoriais recebidas separadamente são exatamente
idênticas . O q ue chama a nossa atenção m u ito mais do q ue a qualidade absoluta de uma
i mpressão é a sua proporção em relação a q ualquer outra impressão que possamos vivenciar
ao mesmo tempo. Quando a escuridão é total, a mínima sensação de claridade nos faz
enxergar u m objeto branco. Helmholtz calcula que o mármore branco pintado em uma tela
representando uma paisagem arquitetônica sob o luar, quando visto à luz do dia, é de 1 O a
20 vezes mais claro do que seria o mármore visto sob o luar verdadeiro.
U m a diferença como essa n u nca poderia ser aprendida por meio da sensação; teria
de ser deduzida com base em uma série de considerações indiretas. Isso tudo nos faz crer
q u e a n ossa sensibi l idade vai se a lterando com o tempo, de modo que o mesmo objeto
não nos proporciona facilmente a mesma sensação novamente. Sentimos os objetos de
modo d iferente, de acordo com o nosso estado, se estamos sonolentos ou despertos, com
fome ou satisfeitos, d ispostos ou cansados; de forma distinta à noite e pela manhã, no
verão e no i nverno; e, acima de tudo, na infância, na vida adulta e na velh ice. No entan
to, n u nca duvidamos de que os nossos sentimentos revelam o mesmo universo, com as
mesmas características sensoriais e com os mesmos objetos sensoriais o ocupando. A dife
renciação da sensibilidade é mais bem demonstrada por meio da distinção da nossa emo
ção a respeito dos objetos de uma idade a outra, ou quando nos encontramos em estados
orgânicos distintos. O que era alegre e excitante torna-se tedioso, simples e inúti l . O canto
do pássaro é entediante, a brisa é melancólica e o céu é triste. ( . . . )
É óbvio e palpável que nosso estado mental jamais é exatamente o mesmo. Cada pen
samento produzido por meio de um determinado fato é, falando rigorosamente, exclusivo,
e possui apenas certa semelhança com os demais pensamentos provenientes do mesmo
fato. Quando o fato idêntico for recorrente, devemos pensar nele de forma independente,
a n alisá-lo de um ângulo distinto e compreendê-lo dentro das diferentes relações nas quais
s u rg i u a nteriormente. E o pensamento por meio do qual o percebemos é aquele que surge
dentro das d iferentes relações, que se espalhou com a consciência de todo aquele contex
to i n d istinto. M uitas vezes nos vemos atingidos por estranhas diferenças nas nossas visões
s ucessivas do mesmo objeto. Pensamos como pudemos opinar desse modo no mês passa
do sobre o mesmo assunto. Acabamos de desenvolver a possibilidade daquele estado men
tal e nem sabemos como. De um ano para o outro visual izamos os objetos sob u ma nova
l uz. O q u e era irreal torna-se real e o que era excitante torna-se insípido. Os a migos mais
i mportantes do mundo passaram para a obscuridade; a mulher antes divina, as estrelas, as
florestas, as á guas, como podem ser agora tão estúpidas e banais !
Os Métodos da Psicologia
CAPÍTULO 7 FUNCIONALISMO: SUA FUNDAÇÃO E SUA EVOLUÇÃO 1 65
Como a psicologia lida com a consciência pessoal e imediata, a introspecÇaó 'deve ser
o seu método básico. }ames dizia: "A observação introspectiva é o método em que
devemos nos basear primeiramente e sempre ( ... ) a visão da nossa mente e a descrição
do que observamos. Todos concordam que é na nossa mente que descobrimos os esta
dos da consciência" Games, 1890, v. 1, p. 185). ]ames tinha ciência das dificuldades da
introspecção e a aceitava mesmo considerando-a um método imperfeito de observa
ção. No entanto acreditava na possibilidade de uma verificação mais apurada dos
resultados produzidos mediante a comparação das constatações obtidas por diversos
observadores.
Embora não utilizasse amplamente o método experimental, considerava-o um cami
nho importante para o conhecimento psicológico, especialmente nas pesquisas psicofí
sicas, como na análise da percepção espacial e no estudo da memória.
Como complementação dos métodos introspectivo e experimental, }ames reco
mendava o método comparativo. A averiguação do funcionamento psicológico de
populações distintas, como de animais, crianças e pessoas não-alfabetizadas ou indiví
duos emocionalmente desequilibrados, permitiria descobrir variações significativas na
vida mental.
Os métodos citados na sua obra The principies salientam a principal diferença entre
a psicologia estrutural e a funcional: o movimento funcionalista não se restringia a um
único método como as formas de introspecção de Wundt ou Titchener. Ele também acei
tava e adotava outras metodologias. Esse tratamento eclético ampliou consideravelmen
te a área de estudo da psicologia americana.
O Pragmatismo
]ames enfatizavaa importância do pragmatismo na psicologia, cuja doutrina baseia-se
na comprovação da validade de uma idéia ou de um conceito mediante a análise das
conseqüências práticas. A conhecida expressão do ponto de vista pragmático afirma que
"se funcionar, é verdadeiro".
Pragmatismo: doutrina que afirma estar o significado das idéias em suas conseqüências práticas.
O pragmatismo foi desenvolvido na década de 1870 por Charles Sanders Peirce,
matemático, filósofo e amigo de longa data de]ames. Seu trabalho somente foi reconhe
cido após a publicação da obra escrita por ]ames, Pragmatism (1907), que formalizou a
doutrina como um movimento filosófico. (Peirce foi o primeiro a escrever a respeito da
nova psicologia de Fechner e Wundt para os intelectuais americanos em um artigo publi
cado em 1869.)
A Teoria das Emoções
A teoria das emoções de ]ames, publicada em um artigo em 1884 e posteriormente no
livro The principies, contradizia o pensamento corrente sobre a natureza dos estados emo-
1 66 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
cionais. Os psicólogos partiam do princípio de que a experiência mental subjetiva da
emoção antecedia a expressão ou a ação corporal. O exemplo clássico de avistar um ani
mal selvagem, sentir medo e fugir correndo, ilustra a idéia de que a emoção (o medo)
ocorre antes da reação do corpo (a fuga).
]ames inverteu essa ordem e afirmou que a reação física ocorre antes do surgimento
da emoção, principalmente das emoções que considerava "grosseiras" como o medo, a
ira, a dor e a compaixão. Por exemplo: vemos o animal, corremos e, então, vivenciamos
a emoção do medo. "Nosso sentimento em relação às reações [físicas] que ocorrem é a
emoção" Uames, 1890, v. 2, p. 449).
Para defender essa idéia, ]ames analisou, mediante a observação introspectiva, que,
quando não ocorrem alterações físicas, como a aceleração do batimento cardíaco, a res
piração ofegante e a tensão muscular, não há emoção. As visões de ]ames acerca das emo
ções provocaram muita polêmica e incentivaram a realização de diversas pesquisas.2
O Hábito
O capítulo do livro The principies que trata do hábito reafirma o interesse de ]ames pelas
influências psicológicas. Ele descreve todas as criaturas vivas como um "pacote de hábi
tos" Uames, 1890, v. 1, p. 104). As atitudes repetitivas ou habituais envolvem o sistema
nervoso e servem para aumentar a plasticidade da matéria neural. Como conseqüência,
os hábitos facilitam a execução das subseqüentes repetições e exigem menor atenção
consciente.
Os hábitos têm enormes implicações sociais, como exemplifica o trecho a seguir.
O hábito ( . . . ) per se é o que nos mantém dentro dos limites da ordem. ( . . . ) Ele nos con
dena a lutar a batalha da vida de acordo com as orientações da nossa criação ou da nossa
escolha inicial e a fazer o melhor de uma atividade, mesmo que nos desagrade, porque
não há outra para a qual estamos aptos e é tarde demais para recomeçar ( . .. )
Já com 25 anos é possível enxergar o tino profissional de um jovem representante
comercial, do jovem médico, ministro ou advogado. É possível enxergar as tênues linhas
divisórias do caráter, das elaborações do pensamento, dos preconceitos ( . . . ) das quais logo
o homem não consegue mais escapar, assim como são inevitáveis as marcas deixadas
pelo tempo. No final, é melhor que ele não escape e que, para o bem da humanidade, a
maioria de nós, aos 30 anos, já tenha o caráter solidificado e que nunca mais volte a amo
lecer. aames, 1890, v. 1, p. 121.)
A obra The principies exerceu grande influência na psicologia americana e, mesmo
passado um século, a sua publicação foi alvo de elogios (Donnelly, 1992; Johnson e
Henley, 1990). Ela alterou a visão de milhares de alunos e inspirou psicólogos a transfe
rirem o enfoque da nova ciência da psicologia da perspectiva estruturalista para a funda
ção formal da escola de pensamento funciona!ista.
Como exemplo de descoberta simultânea, o fisiologista dinamarquês Carl Lange publicou uma teoria parecida, em
1885. Devido à semelhança entre as duas teorias, ela acabou sendo denominada "Teoria das emoções de james
Lange".
(AI'JTULO 7 FUNCIONALISMO: Su,\ FUNDAÇÃO E SUA EVOLUÇÃO 1 67
A Desigualdade Funcional das Mulheres
Mary Whiton Ca/kins {1863- 7930)
}ames foi o grande responsável pelos estudos de pós-graduação de Mary Whiton
Calkins, ajudando-a a vencer as barreiras do preconceito e da discriminação. · Calkins
acabou desenvolvendo a técnica da associação de pares usada no estudo da memória,
além de haver contribuído de forma significativa e duradoura para a psicologia
(Madigan e O'Hara, 1 992). Foi a primeira mulher a tornar-se presidente da APA e, em
1906, ocupava a 12ª colocação entre os 50 psicólogos mais importantes dos Estados
Unidos, reconhecimento muito significativo por parte dos colegas a uma pessoa a quem
havia sido recusada a concessão do título de Ph.D. (Furumoto, 1990).
A Harvard University nunca aceitou sua matrícula formal, mas William}ames a rece
bia de braços abertos nos seus seminários e pressionava a universidade a conceder-lhe a
graduação. Quando a direção recusou-se a fazê-lo, ]ames escreveu a ela, dizendo que bas
tava "produzir explosivos juntando você e todas as mulheres. Tenho esperanças e acre
dito que a sua dedicação acabará explodindo a barreira" (]ames, apud Benjamin, 1993, p.
72). Apesar dos esforços de ]ames, a Harvard recusava-se a conceder o doutorado a uma
mulher, embora o teste de Calkins (ministrado informalmente por }ames e outros docen
tes) fosse considerado "o mais brilhante exame de Ph.D. até então realizado em Harvard"
(]ames, apud Simon, 1 998, p. 244).
Sete anos depois, quando Calkins estava lecionando na Wellesley e realizando a sua
pesquisa a respeito da memória, a Harvard ofereceu-lhe a graduação da Radcliffe College,
criada pela Harvard para oferecer cursos de graduação para as mulheres. Ela recusou, pois
havia completado as exigências de graduação na Harvard e não na Radcliffe. A Harvard
a discriminava apenas por ser mulher e ignorou várias solicitações suas de graduação
para a qual havia completado todos os requisitos. Acabou obtendo uma graduação hono
rária da Columbia University (Denmark e Fernandez, 1992).
A experiência de Calkin é um exemplo da discriminação sofrida pelas mulheres que
almejavam a educação superior, condição que persistiu até o século XX. Ainda assim,
Calkin considerava-se privilegiada, quando se comparava às mulheres das gerações
anteriores, que jamais foram admitidas nas universidades. As mulheres foram tradicio
nalmente excluídas da maioria das áreas acadêmicas das faculdades, e universidades
européias e americanas. Quando a Harvard foi fundada, em 1 636, não aceitava alunas.
Somente depois da década de 1830 algumas faculdades americanas relaxaram a sua proi
bição e admitiram mulheres para o curso de graduação.
A primeira razão alegada para essa restrição era a crença generalizada na chamada
superioridade intelectual masculina. Como afirmava esse argumento, embora certas
mulheres recebessem as mesmas oportunidades educacionais dadas aos homens, as defi
ciências intelectuais femininas inatas não permitiam que tirassem proveito dos benefícios.
Muitos cientistas importantes do século XIX - como Darwin - e a maioria dos psicólo
gos da época concordavam com essa visão.
Hoje, a maioria dos estudantes formados e que obtiveram Ph.D. em psicologia são
mulheres, assim como a maioria dos estudantes de graduação e de pós-graduação na
área. No entanto vimos que o homem dominou a história da psicologia. Apenas para
relembrar, Margaret Washburn não pôde matricular-se na Columbia University porque
era mulher. Somente depois de 1892 as universidades de Yale e de Chicago e mais algu-
1 68 HiSTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
mas outras instituições aceitaram a matrícula de mulheres nos cursos de graduação. Por
cerca de 20 anos depois da fundação formal da psicologia como disciplina científica, as
mulheres enfrentaram barreiraspara tornarem-se psicólogas e para contribuírem de
forma significativa para o desenvolvimento do campo.
Grande parte do mito da superioridade intelectual do homem surgiu da chamada
hipótese da variabilidade, baseada nas idéias de Darwin a respeito da variabilidade
masculina (Shields, 1982) . Darwin descobriu que em diversas espécies o macho demons
trava uma variedade mais ampla de desenvolvimento das características físicas e das
habilidades do que as fêmeas. As características e habilidades femininas encontravam-se
concentradas em torno de um valor médio. Acreditava-se que essa tendência mediana
feminina fazia com que a mulher se beneficiasse menos da educação formal e tivesse
menos possibilidades de êxito no trabalho intelectual ou de pesquisa. Faltava apenas um
passo para supor que o cérebro masculino fosse mais evoluído do que o feminino.
D evido à grande variedade de talentos demonstrada pelo homem, acreditava-se estar ele
mais apto a se adaptar e tirar proveito dos diversos ambientes desafiadores. Dessa forma,
a mulher era considerada inferior ao homem, tanto nas qualidades mentais como nas
físicas necessárias para se obter êxito na adaptação às exigências do ambiente. Como
conseqüência, a idéia da desigualdade funcional entre os sexos foi amplamente aceita.
Hipótese da variabilidade: noção de que o homem demonstra uma gama maior de variação no
desenvolvimento físico e mental do que a mulher; as habilidades da mulher são consideradas mais
medianas.
Uma teoria popular a esse respeito afirmava que a mulher exposta à educação supe
rior além da formação básica sofreria de danos físicos e emocionais. Alguns psicólogos
alegavam que a mulher com nível de educação superior colocava em risco as condições
biológicas necessárias para a maternidade, interrompendo o ciclo menstrual e enfraque
cendo o instinto maternal. Um psicólogo chegou a afirmar que, se a mulher desejasse
algum tipo de educação, "que fosse educada para a maternidade" (G. S. Hall, ápud Diehl,
1 986, p. 872) .
Um professor da escola de medicina de Harvard declarou que a educação produzia
n a mulher "cérebros monstruosos e corpos franzinos; atividade cerebral anormal e diges
tão extremamente deficiente; raciocínios dispersos e mal funcionamento do intestino"
(E. Clarke, apud Scarborough e Furumoto, 1987, p. 4). O professor também advertiu: "A
igualdade da educação entre os sexos é um crime perante Deus e a humanidade" (Clarke,
1 873, p. 127).
Nos primeiros anos do século XX, duas psicólogas obtiveram êxito ao desafiarem a
idéia da desigualdade funcional entre os sexos. Utilizando as técnicas empiristas da psico
logia funcional, Helen Bradford Thompson Woolley e Leta Stetter Hollingworth demons
traram que Darwin e os demais estavam equivocados a respeito da mulher.
Helen Bradford Thompson Wool/ey (7874- 7947)
Helen Bradford Thompson Woolley nasceu em Chicago, em 1874. Seus pais apoiavam
a idéia da educação das mulheres e as três filhas da família Thompson freqüentaram a
faculdade. Helen Thompson formou-se na University of Chicago, em 1897, e recebeu o
CAPÍTULO 7 FUNCIONALISMO: SUA FUNDAÇÃO E SUA EVOLUÇÃO 1 69
Ph.D. em 1900. Seus principais professores foram ]ames Rowland Angell e John Dewey,
o qual a considerava uma de suas alunas mais brilhantes (apud ]ames, 1994). Depois de
completar a pós-graduação com bolsa de estudos em Paris e em Berlim, tornou-se dire
tora do laboratório de psicologia da Mount Holyoke College, em Massachusetts.
Casou-se com o médico Paul Woolley e acompanhou-o às Filipinas, onde ele foi dire
tor de um laboratório. Em 1908, o casal mudou-se para Cincinnati, em Ohio, onde Helen
aceitou a direção do departamento vocacional do ensino público, preocupada com as
questões do bem-estar das crianças. Suas pesquisas acerca do efeito do trabalho infantil
provocaram mudanças nas leis trabalhistas estaduais. (Em vários estados, crianças de
apenas 8 anos trabalhavam, cumprindo uma jornada diária de 10 horas de trabalho, 6
dias por semana. Em poucos estados existiam leis de proteção referentes à idade, à jor
nada de trabalho e ao salário mínimo infantil.) Em 1921, Helen atuou como presidente
da National Vocacional Guidance Association (Associação Nacional de Orientação
Vocacional).
Naquele ano, sua família mudou-se para Detroit, em Michigan, e ela foi trabalhar no
Merrill-Palmer Institute (Instituto Merrill-Palmer), onde criou um programa de educação
infantil para estudar o desenvolvimento e as habilidades mentais das crianças. Em 1924,
tornou-se diretora do novo Institute of Child Welfare Research (Instituto de Pesquisa do
Bem-estar Infantil) da Columbia University e prosseguiu no seu trabalho sobre a apren
dizagem na primeira infância, a educação vocacional e a orientação educacional.
A apresentação da dissertação de doutorado de Helen Woolley na University of
Chicago foi o primeiro teste experimental do conceito darwiniano da inferioridade bio
lógica da mulher em relação ao homem, idéia considerada, na época, tão óbvia que dis
pensava qualquer comprovação científica (]ames, 1994). Ela aplicou um teste em 25
homens e 25 mulheres para medir a habilidade motora, os limiares sensoriais (paladar,
olfato, audição, visão e tato), a capacidade intelectual e os traços de personalidade.
Os resultados revelaram não haver diferenças no funcionamento emocional entre
homens e mulheres e apenas uma diferença insignificante na capacidade intelectual. Os
dados também mostraram pequena superioridade das mulheres em habilidades como a
memória e a percepção sensorial. Woolley deu um passo inédito ao atribuir as diferenças
aos fatores ambientais e sociais - às diferentes práticas na criação da criança e às expec
tativas distintas para os meninos e as meninas - e não às determinantes biológicas
(Rossiter, 1982).
Woolley publicou os resultados em The mental traits o f sex: an experimental inves
tigation of the normal mind in men and women (Thompson, 1903) . Suas conclusões
não foram bem recebidas pelos psicólogos masculinos do meio acadêmico. G. Stanley
Hall acusou-a de atribuir uma interpretação feminista aos dados (Hall, 1904). O fato de
ser uma mulher a autora da pesquisa que demonstra não haver inferioridade biológica
da mulher em relação ao homem produz, de alguma forma, resultados distorcidos ou
tendenciosos (]ames, 1994). Mais tarde, ela escreveu mais dois trabalhos a respeito da
crescente literatura de pesquisa sobre a psicologia das diferenças entre os sexos para a
renomada revista Psychological Bulletin (Woolley, 19 10, 1914).
Durante 30 anos, Woolley trabalhou como professora, pesquisadora e orientadora de
psicólogas nas áreas do desenvolvimento e da educação infantil. Quando a saúde precá
ria e o traumático divórcio forçaram-na à aposentadoria precoce, o foco da psicologia
feminina passou para outras mãos.
1 70 HISTÓRIA DA PSICOLOGitl MODERN,\
Leta Stetter Hollingworth (7886- 7939)
Leta Stetter nasceu em Nebraska e formou-se, com louvor, na University o f Nebraska, em
1906. Foi professora do ensino médio por dois anos, enquanto o seu noivo, Harry
Hollingworth, completava o doutorado em psicologia, sob a orientação de ]ames
McKeen Cattell na Columbia University. Leta e Harry casaram-se em 1 908. Ele leciona
va na Barnard College, na cidade de Nova York, mas, para surpresa e decepção de Leta,
havia uma lei que proibia a mulher casada de lecionar nas escolas públicas.
Ela começou a escrever romances, mas não conseguia publicar seus contos. O casal
levava uma vida simples e Harry aceitava trabalhos de consultoria para ter dinheiro para
que Leta pudesse freqüentar o curso de pós-graduação. Em 1916, ela obteve o doutorado
na Teacher's College da Columbia University, havendo estudado com Edward L.
Thorndike e trabalhado como psicóloga no serviço público da cidade de Nova York.
Cinco anos depois, foi citada na American Men of Science devido às suas contribuições
para a psicologia feminina.
Leta Hollingworth realizou amplapesquisa empírica a respeito da hipótese da varia
bilidade, o conceito de que, em relação ao funcionamento físico, psicológico e emocio
nal, as mulheres constituíam um grupo mais homogêneo e mediano do que os homens,
demonstrando, assim, menor variação. A pesquisa de Hollingworth entre 1913 e 1916 se
concentrou no funcionamento físico, sensorial e motor e nas habilidades intelectuais de
diversos tipos de pessoas, como crianças, estudantes universitários do sexo masculino e
do feminino, mulheres no período menstrual (quando se presume que suas condições
emocionais e mentais sejam afetadas pelos processos naturais do corpo). Seus dados des
mentiram a hipótese da variabilidade e outras noções de inferioridade feminina. Por
exemplo: ela constatou, ao contrário do que se afirmava havia muito tempo, que o ciclo
menstrual não estava relacionado com os desempenhos deficientes das habilidades
motoras e perceptuais ou das capacidades intelectuais (Hollingworth, 19 14).
Mais tarde, ela desafiou o conceito de instinto inato da maternidade, questionando
a noção de que a mulher atingia a plena satisfação somente sendo mãe e descartou o
conceito de que o desejo da mulher de obter êxito em outros campos, que não no casa
mento ou na constituição de família, fosse anormal ou não-saudável. Ela sugeriu não
serem os fatores biológicos e sim as atitudes sociais e culturais que exerciam influência,
i mpedindo as mulheres de se tornarem membros mais ativos na sociedade (Benjamin e
Shields, 1990; Shields, 1975). Hollingworth também alertou as orientadoras vocacionais
a não conduzirem as mulheres no sentido de restringir suas aspirações apenas às áreas
consideradas socialmente aceitas como a maternidade ou o trabalho doméstico, nas
quais não há reconhecimento. E afirmou: "Ninguém conhece a melhor dona de casa
americana". "Dona de casa famosa não existe e nem pode existir" (apud Benjamin e
Shields, 1990, p. 1 77) .
Leta Hollingworth também contribuiu de forma significativa para a psicologia clíni
ca, educacional e acadêmica, principalmente em relação às necessidades emocionais e
educacionais das crianças "talentosas", termo cunhado por ela (Benjamin, 1975). Apesar
da quantidade e da qualidade das suas pesquisas, nunca conseguiu apoio para realizar os
trabalhos (Hollingworth, 1943). Participou ativamente do movimento pelo sufrágio
feminino, realizando campanhas em favor do direito ao voto feminino (finalmente apro
vado em 1920) e participando de manifestações e comícios em Nova York.
CAPiTULO 7 FUNCIONALISMO: SUA FUNDAÇÃO E SUA EVOLUÇÃO 1 71
.O História On-line
http:/ /www. webster.edu/ -woolflm/ma rycalkins.html ..... . .-- ;
Esse site contém informações sobre a vida, o trabalho e as contribuições de
Mary Whiton Calkins.
http:/ /psychclassics. yorku.ca/
Clique em "CHP Special Collections" para conhecer a pesquisa sobre a hipó
tese da variabilidade e as características psicológicas da mulher.
http://www.webster.edu/-woolflm/wooley.html
http://www.webster.edu/-woolflm/letahollingsworth.html
Os dois endereços contêm informações a respeito da vida e do trabalho de
Helen Woolley e Leta Hollingworth.
A Fundação do Funcionalismo
Os estudiosos relacionados com a fundação do funcionalismo não ambicionavam iniciar
uma nova escola de pensamento. Eles apenas protestavam contra as restrições e limita
ções da psicologia de Wundt e do estruturalismo de Titchener e não desejavam substituí
los com outro "ismo" formal. A primeira razão era pessoal e não ideológica, já que
nenhum dos principais proponentes do funcionalismo ambicionava estabelecer um
movimento, do modo como fizeram Wundt e Titchener. Naquela época, o funcionalis
mo incorporava diversas características de uma escola de pensamento, mas esse não era
o objetivo dos líderes. Eles pareciam satisfazer-se apenas em modificar a ortodoxia exis
tente, sem lutar ativamente para substituí-la.
Desse modo, o funcionalismo jamais se constituiu em uma posição sistemática rígi
da ou diferenciada formalmente como o estruturalismo de Titchener. Não houve uma
psicologia funcional única, assim como houve uma psicologia estrutural única. Várias
psicologias funcionais coexistiram e, embora apresentassem algumas diferenças, todas
compartilhavam o interesse no estudo das funções da consciência. Posteriormente,
como resultado dessa ênfase nas funções mentais, os funcionalistas interessaram-se pelas
possíveis aplicações da psicologia aos problemas cotidianos em relação ao comporta
mento e à adaptação do homem nos diferentes ambientes. A rápida evolução da psico
logia aplicada nos Estados Unidos pode ser considerada a herança mais importante do
movimento funcionalista (veja no Capítulo 8).
Paradoxalmente, a formalização desse movimento de protesto foi imposta pelo fun
dador do estruturalismo: E. B. Titchener. Ele fundou indiretamente a psicologia funcional,
ao adotar a palavra "estrutural" em oposição a "funcional" no artigo "The postulates of a
structural psychology" (Os postulados da psicologia estrutural) publicado na Phi/osophical
Review em 1898. Nesse artigo, Titchener ressaltou as diferenças entre a psicologia fun
cional e a estrutural e argumentou que o estruturalismo era o único estudo adequado
de psicologia.
Ao estabelecer o funcionalismo como oposição, Titchener sem querer ofereceu-lhe
uma identidade e um status que talvez nunca viesse a obter. "O que Titchener estava cri
ticando, na verdade, não tinha nome, até ele batizá-lo; a partir de então, ele deu impu!-
1 72 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
so ao movimento, destacando e divulgando o termo funcionalismo, que acabou tornan
do-se conhecido" (Harrison, 1963, p. 395).
A Escola de Chicago
Nem todo o crédito pela fundação do funcionalismo deve-se a Titchener, mas os psicó
logos que a história batizou de fundadores da psicologia funcional foram, no máximo,
fundadores relutantes. Dois psicólogos que contribuíram diretamente na fundação da
escola de pensamento funcionalista foram John Dewey e ]ames Rowland Angell. Em
1894, eles chegaram à recém-criada University of Chicago; mais tarde, foram capa da
revista Time. Foi nada menos do que William ]ames a anunciar posteriormente Dewey e
Angel como responsáveis pela fundação do novo sistema que ele designou a "escola de
Chicago" (in Backe, 2001, p. 328).
John Dewey (7 859- 7 952)
John Dewey teve uma infância comum e não demonstrava grande capacidade intelec
tual até começar a freqüentar a University of Vermont. Depois de se formar, lecionou no
ensino médio durante alguns anos e estudou filosofia por conta própria, escrevendo
alguns artigos acadêmicos. Iniciou a pós-graduação na Johns Hopkins University, em
Baltimore, completando o doutorado em 1 884. Lecionou nas universidades de Michigan
e Minnesota e, em 1886, publicou o primeiro livro didático americano com base na nova
psicologia (intitulado, adequadamente, de Psychology), que foi bastante popular até ser
ofuscado em 1890 pelo The principies ofpsychology, de ]ames.
Dewey permaneceu 10 anos na University of Chicago. Criou a escola-laboratório,
uma inovação radical na educação que se tornou um marco do movimento educacional
progressivo. Em 1904, foi para a Columbia University, em Nova York, onde prosseguiu
com seu trabalho de aplicação da psicologia aos problemas educacionais e filosóficos, tor
nando-se, assim, outro exemplo da orientação prática de vários psicólogos funcionalistas.
Apesar de brilhante, Dewey não era bom professor. Um de seus alunos lembrou-se
de que ele usava uma boina verde.
Ele entrava [na classe], sentava-se à mesa e colocava a boina à sua frente, falando sempre
no mesmo tom de voz, como se estivesse dando aula para a boina. ( ... ) Era inevitável que
muitos alunos caíssem no sono. Todavia, se você fosse capaz de prestar atenção ao que ele
falava, realmente valia a pena! (May, 1978, p. 655.)
O Arco Reflexo
O artigo de Dewey "The reflex are concept in psychology" (O conceito do arco reflexo
na psicologia),publicado na Psychologica/ Review (1896), foi o ponto de partida da psico
logia funcional. Realmente, um historiador afirmou ter sido o artigo o "tiro inaugural"
do movimento funcionalista (Bergmann, 1956, p. 268). Ele se tornou tão popular que foi
votado como o "artigo mais importante publicado nos primeiros 50 volumes da
Psycho/ogica/ Review" (Backe, 2001, p. 329).
CAPÍTULO 7 FUNCIONAliSMO: SUA FUNDAÇÃO E SUA EVOlUÇÃà ' 1 73
Nesse importante trabalho, Dewey criticava o aspecto molecular, elementar e redu
cionista psicológico do arco reflexo, devido à sua distinção entre o estímulo e a respos
ta, Por meio dessa crítica, Dewey alegava não ser possível reduzir o comportamento ou
a experiência consciente aos seus elementos componentes, como afirmavam Wundt e
Titchener. Assim, Dewey atacava o ponto principal das suas abordagens da psicologia. Os
proponentes do arco reflexo argumentavam que qualquer unidade de comportamento
extingue a resposta a um estímulo, por exemplo, quando a criança afasta a mão do fogo.
Dewey sugeria que o reflexo formava mais um círculo do que um arco, já que a percep
ção da criança sobre a chama muda, servindo, assim, a diferentes funções.
Arco reflexo: a l igação entre os estímulos sensoriais e as respostas motoras.
Inicialmente, a chama atrai a criança, mas, logo em seguida, ao sentir seus efeitos,
repele o fogo. A resposta altera a percepção da criança sobre o estímulo (a chama). Por
tanto, a percepção e o movimento (o estímulo e a resposta) devem ser vistos como uma
unidade e não como uma composição de sensações e respostas individuais.
Assim, Dewey argumentava não ser possível a redução do comportamento envol
vido na resposta reflexiva a elementos sensório-motores básicos, assim como era
impossível analisar de forma adequada a consciência, dividindo-a em partes compo
nentes elementares.
Esse tipo de análise e redução artificiais faz com que o comportamento perca todo o
sentido, deixando apenas abstrações na mente do psicólogo que está realizando o exer
cício. Dewey observou que o comportamento não deve ser tratado como um constructo
científico artificial, mas em termos do seu significado para o organismo, na adaptação
ao ambiente. Ele concluiu que o objeto de estudo mais adequado para a psicologia seria
a análise do organismo inteiro e o seu funcionamento no ambiente.
Comentários
O evolucionismo exerceu grande influência sobre as idéias de Dewey. Na luta pela sobre
vivência, tanto a consciência como o comportamento trabalham para o organismo; a
co�s5iência gera_�_�!!!J;!Qitªme_nto ad�l:l_ado _ _g1!�.!2�!E!.\!LªQ-Qfgª!li�!llQ. . .?()Rf��v�l
Como conseqüência, a psicologia funcional dedicou-se ao estudo do organismo em fun
cionamento.
· · ··· ·- ·-- -·-······-· ·-- · · · . .. .
-t"rn:teréssante observar que Dewey jamais chamou a sua psicologia de funcionalismo.
Aparentemente, não acreditava que a estrutura e a função tivessem sentido separada
mente, apesar do seu ataque contra a premissa básica do estruturalismo. Angell e outros
psicólogos ficaram encarregados de declarar que o funcionalismo e o estruturalismo
eram formas contrárias de psicologia.
A importância de Dewey para a psicologia está na sua influência sobre os psicólogos
e outros estudiosos e no desenvolvimento da estrutura filosófica da nova escola de pen
samento. Quando ele deixou a University of Chicago em 1904, Angell passou a ser o
líder do movimento funcionalista.
1 74 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
·O História On-/ine
http://www.radicalacademy.com/phildewey.htm
Esse site apresenta informações biográficas de Dewey, além de suas contri
buições para a psicologia, a filosofia e a educação.
http:/ /psychclassics.yorku.ca/Dewey/reflex.htm
Esse endereço contém o texto completo do artigo de Dewey a respeito do
arco reflexo.
James Rowland Ange/1 (1869- 7949)
]ames Rowland Angell moldou o movimento funcionalista, transformando-o em uma
escola de pensamento utilitária. Graças ao seu trabalho, o departamento de psicologia da
University of Chicago foi o mais importante da sua época e a principal base de orienta
ção para os psicólogos funcionalistas.
A Biografia de Ange/1
Angell nasceu em uma família de acadêmicos, em Vermont. Seu avô fora reitor da Brown
University, em Providence, Rhode Island, e seu pai, reitor da Vermont University e
depois da University of Michigan, onde Angell se formou e teve aulas com Dewey. Leu
também The principies ofpsychology, de ]ames, e afirmou ter sido o livro que mais influen
ciou seu pensamento. Angell trabalhou um ano com]ames, em Harvard, e obteve o mes
trado em 1892.
Seguiu para a Europa para continuar seus estudos de pós-graduação nas universida
des de Halle e Berlim, na Alemanha. Em Berlim, assistiu às aulas de Ebbinghaus e
Helmholtz. Desejava seguir para Leipzig, mas Wundt não estava mais aceitando alunos
naquele ano. Angell não conseguiu completar seu trabalho de doutorado. Sua tese fora
aceita mediante a condição de que a redação em alemão fosse melhorada, mas para isso
teria de permanecer em Halle sem qualquer fonte de renda. Decidiu aceitar a indicação
para lecionar na University of Minnesota, cujo salário, embora baixo, era razoável para
quem desejava casar-se depois de um noivado de quatro anos. Apesar de jamais ter con
cluído o doutorado, orientou diversos doutorandos e, no curso da sua carreira, recebeu
23 títulos honorários.
Depois de um ano em Minnesota, Angell aceitou trabalhar na University of Chicago,
onde permaneceu por 25 anos. Seguindo a tradição familiar, foi reitor da Yale University
e ajudou a desenvolver o Instituto de Relações Humanas. Em 1906, foi eleito 15Q presi
dente da APA e, depois de se aposentar da vida acadêmica, foi conselheiro da National
Broadcasting Company (NBC).
A Esfera de Ação da Psicologia Funcional
O livro de Angell, Psychology (1904), incorpora a abordagem funcionalista e obteve tanto
sucesso que foram publicadas quatro edições em quatro anos, sinalizando o apelo da
CAPÍTULO 7 FUNCIONALISMO: SUA FUNDAÇÃO E SUA EVOLUÇÃO : 1 75
posição funcionalista. Nele, Angell afirmava ser função da consciência a melhoria da
capacidade de adaptação do organismo. O objetivo da psicologia era estudar de que
modo a mente auxilia o organismo a se adaptar ao seu ambiente. .,. - :
No discurso de posse como presidente da APA em 1906, publicado ná .
Psychological
Review, Angell descreveu o que chamou de "esfera de atuação" da psicologia funcional.
Até aqui observamos que os novos movimentos ganharam impulso somente quando se
referiram ou se opuseram à posição popular naquele momento. Angell traçou as linhas
da batalha com avidez, mas concluiu com modéstia: "Renuncio formalmente a qualquer
intenção de traçar novos planos; estou comprometido com o que se propõe ser um
sumário imparcial das condições reais" (Angell, 1907, p. 61).
A psicologia funcional, afirmou Angell, não consiste, de todo, em uma novidade
e sim em uma parte significativa da psicologia desde o seu início. Foi a psicologia
estrutural que se colocou à parte da forma de psicologia funcional mais antiga e ver
dadeiramente mais difusa. Assim Angell descreveu os três principais temas do movi
mento funcionalista:
1. A psicologia funcional é a psicologia da operação mental, ao contrário do estru
turalismo, que é a psicologia dos elementos mentais. O aspecto elementar da
psicologia de Titchener ainda contava com defensores e Angell promovia o fun
cionalismo em oposição direta a ele. A tarefa do funcionalismo é descobrir o
modus operandi do processo mental, as suas realizações e as condições sob as
quais ele ocorre.
2. A psicologia funcional é a psicologia das utilidades fundamentais da consciência.
Desse modo, a consciência é vista como um instrumento utilitário, já que faz a
mediação entre as necessidades do organismo e as condições do ambiente. As
estruturas e as funções orgânicas existem a fim de permitir que o organismo se
adapte ao ambiente para, assim, sobreviver.Angell sugeria que a consciência
· sobrevivia para executar alguma função essencial para o organismo. Os psicólo
gos funcionalistas precisavam descobrir exatamente qual era essa função, não
apenas da consciência como também dos processos mentais mais específicos,
como o julgamento e a vontade.
3 . A psicologia funcional é a psicologia das relações psicofísicas (as relações mente
corpo) e dedica-se ao estudo de todas as relações entre o organismo e seu ambien
te. O funcionalismo abrange todas as funções mente-corpo e não faz qualquer
distinção entre a mente e o corpo. Ele os considera pertencentes à mesma classe
e admite a facilidade de transferência entre eles.
Comentários
O discurso de posse de Angell na APA foi realizado em uma época em que o espírito do
funcionalismo já era amplamente aceito. Angell moldou esse espírito em uma empreita
da ativa e destacada, tendo como instrumentos um laboratório, um corpo de dados de
pesquisa, um grupo de professores entusiasmados e um núcleo de dedicados estudantes
de pós-graduação. Ao dirigir o funcionalismo para ocupar o status de escola formal, atri
buiu-lhe o enfoque e a importância para efetivá-lo. Todavia continuou a afirmar que o fun
cionalismo não constituía na verdade uma escola de pensamento separada nem devia ser
1 76 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
relacionado exclusivamente com a University of Chicago. Apesar das objeções de Angell,
o funcionalismo prosperou e freqüentemente referiam-se a ele como a "escola de
Chicago", sendo permanentemente associado com o tipo de psicologia ensinado e pra
ticado ali.
História On-line
http://spartan.ac.brocku.ca/-lward/angell/ Angell_1 906/ Angell_1 906_00.html
Esse site contém o texto completo da obra de Angell, Psycho/ogy: an intro-
ductory study of the structure and function of human consciousness (1 904).
Harvey A. Carr (7 873- 7954)
Harvey Carr fez especialização em matemática na DePauw University, Indiana, e na
University of Colorado. Passou a se interessar pela psicologia aparentemente por admi
rar o professor. "Decidi tornar-me psicólogo", declarou, "embora conheça muito pouco
a respeito da natureza da matéria" (Carr, 1930/1961. p. 71) . Não existia laboratório de
psicologia em Colorado, então, Carr transferiu-se para a University of Chicago, na qual
seu primeiro professor de psicologia experimental foi o jovem professor assistente, ]ames
Rowland Angell.
No seu segundo ano em Chicago, Carr trabalhou como assistente de laboratório de
]ohn B. Watson que, na época, era instrutor e mais tarde viria a fundar a escola de pen
samento behaviorista. Watson apresentou a Carr a psicologia animal.
Depois de obter o doutorado em 1905, Carr lecionou em uma escola de ensino
médio no Texas e, em Michigan, em uma faculdade para professores estaduais. Em 1908,
retornou a Chicago para substituir Watson que havia aceitado uma posição na Johns
Hopkins University. Por fim, Carr sucedeu Angell como chefe do departamento de psi
cologia da University of Chicago. Durante o mandato de Carr (1919-1938), o departa
mento de psicologia concedeu 150 títulos de doutorado.
Funcionalismo: o Formato Final
Carr aprimorou a posição teórica de Angell e seu trabalho representava o funcionalis
mo, quando não precisava mais batalhar contra o estruturalismo. O funcionalismo
superara a oposição e adquirira direitos legítimos sobre a própria posição. No período
de C arr, o funcionalismo em Chicago atingiu o ápice como sistema formal. Carr alega
va ser a psicologia funcional a psicologia americana. Afirmava que as demais versões de
psicologias propostas naquela época, como o behaviorismo, a psicologia da Gestalt e a
psicanálise, dedicavam-se apenas a alguns aspectos limitados do campo. Acreditava que
essas visões não tinham muito a acrescentar na tão abrangente psicologia funcionalista.
O livro básico de Carr, Psychology (1925), apresenta a forma mais refinada de funcio
nalismo, do qual se destacam dois pontos principais:
•
CAPiTULO 7 fUNCIONALISMO: SUA fUNDAÇAO E SUA EVOLUÇAO 1 77
Carr definiu a atividade mental como objeto de estudo da psicologia - os pro
cessos mentais, como a memória, a percepção, o sentimento, a imaginação, o jul-
gamento e a vontade. . ... .. :
A função da atividade mental é a aquisição, fixação, retenção, organização e ava
liação das experiências e a sua utilização para determinar a ação de uma pessoa.
Carr chamou a forma específica de ação na qual aparece a atividade mental de
comportamento de "adaptação" ou "ajuste".
É possível perceber, nas idéias de Carr, a ênfase familiar da psicologia funcional nos
processos mentais e não nos elementos nem no conteúdo da consciência. E, ainda,
observa-se uma descrição da atividade mental em termos das realizações que permitem
a adaptação do organismo a seu ambiente. É importante ressaltar que, em 1925, essas
questões já eram aceitas como fatos e não mais como objeto de debate. Nesse período, o
funcionalismo já era considerado psicologia geral.
Como muitos psicólogos se consideravam, de alguma forma, funcionalistas, essa deno
minação começou a perder o significado. Os profissionais da área denominavam-se sim
plesmente psicólogos e não era necessário afirmar que a atitude funcional fazia parte do
comportamento do psicólogo. (Wagner e Owens, 1992, p. 10.)
Carr aceitava os dados obtidos por meio dos métodos experimental e introspectivo.
Assim como Wundt, acreditava que as criações artísticas e literárias de uma cultura
dariam indicações sobre as atividades mentais que a produziram. Embora o funciona
lismo não adotasse uma metodologia única, como fazia o estruturalismo, na prática, a
ênfase estava na objetividade. Quando se empregava a introspecção, ela era limitada ao
máximo por controles objetivos. Além disso, é importante observar que o funcionalis
mo empregava nas pesquisas tanto animais como seres humanos.
A escola funcionalista de Chicago promoveu a transferência do estudo exclusivo da
mente e da consciência subjetiva para o estudo do comportamento objetivo e patente.
O funcionalismo ajudou a redefinir a psicologia americana, que acabou concentrando o
foco no comportamento e eliminando o estudo da mente como um todo. Nesse senti
do, os funcionalistas criaram uma ponte entre a psicologia estruturalista e a psicologia
comportamental de Watson, que viria a ser a subseqüente proposta revolucionária.
O Funcionalismo na Columbia University
Como observamos até agora, não existiu uma forma única de psicologia funcional nos
mesmos moldes da psicologia estrutural exclusiva de Titchener. Embora a evolução ini
cial e a fundação da escola de pensamento funcionalista houvessem ocorrido na
University of Chicago, outro ponto de vista vinha sendo formado por Robert
Woodworth na Columbia University. Essa universidade também foi a base acadêmica de
outros dois psicólogos de orientação funcionalista. Um foi ]ames McKeen Cattell, cujo
trabalho sobre os testes mentais incorporou o espírito funcionalista americano (veja no
Capítulo 8), e o outro foi E. L. Thorndike, cuja pesquisa a respeito dos problemas da
aprendizagem animal reforçou a tendência funcionalista à maior objetividade (veja no
Capítulo 9).
1 78 HISTÓRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
Robert Sessions Woodworth (7 869- 1962)
Robert Woodworth não pertencia formalmente à escola de pensamento funcionalista
como pertenciam tradicionalmente Carr e Angell. Ele não apreciava as restrições impos
tas por membros de qualquer escola de pensamento. Entretanto grande parte do traba
lho que escreveu sobre a psicologia seguia o espírito funcionalista da escola de Chicago,
além de haver introduzido um importante ponto de vista.
A Biografia de Woodworth
Woodworth trabalhou ativamente na psicologia como pesquisadôr por mais de 60 anos e
foi um amado professor, escritor e editor. Depois de obter o bacharelado na Amherst
College de Massachusetts, lecionou ciências em um colégio e matemática em uma modes
ta faculdade. Nesse período, duasexperiências mudaram a sua vida: a primeira, a palestra
a que assistiu do famoso psicólogo G. Stanley Hall e a segunda, a leitura do livro The prin
cipies of psychology, de William ]ames. Decidiu que deveria tornar-se um psicólogo.
Matriculou-se na Harvard University, onde obteve o mestrado e, em 1899, na
Columbia, recebeu o título de Ph.D., de ]ames McKeen Cattell. Woodworth deu aulas de
fisiologia em hospitais da cidade de Nova York por três anos e durante um ano trabalhou
na Inglaterra com o fisiologista Charles Scott Sherrington. Em 1903, retornou à
Columbia, onde lecionou até a sua primeira aposentadoria, em 1945. Sua popularidade
entre os alunos era tão grande que continuou a dar aulas a classes enormes até aposen
tar-se pela segunda vez, com 89 anos.
Gardner Murphy, um ex-aluno, recorda-se de Woodworth como o melhor professor
que tivera no curso de psicologia, descrevendo-o assim: ele entrava "na sala de aula ves
tindo um velho terno folgado e todo amassado e calçando coturnos do exército". Dirigia
se até o quadro-negro e "pronunciava alguma palavra inimitável pela extravagância e
perspicácia e que anotávamos no caderno para nos lembrarmos dela por muitos anos
seguintes" (Murphy, 1963, p. 132).
Woodworth descreveu sua visão de psicologia em diversos artigos de revistas e em
dois livros, Dynamic psychology (1918) e Dynamics of behavior (1958). ,Escreveu um texto
introdutório, Psychology (1921), que foi lançado em cinco edições, em 25 anos, e que
superou em vendagem os demais textos relativos à psicologia na época. A obra
Experimental psychology (Psicologia experimental) (1938, 1954) também tornou-se um
livro de referência clássico. Em 1956, recebeu a primeira medalha de ouro concedida pela
American Psychological Foundation (Fundação americana de psicologia) devido à sua
"inigualável contribuição na formação de destino da psicologia científica" e por ser
"integrador e organizador do conhecimento psicológico".
A Psicologia Dinâmica
Woodworth dizia que sua abordagem não consistia em nenhuma novidade e que era a
mesma seguida pelos melhores psicólogos, mesmo antes de a psicologia tornar-se ciên
cia. O conhecimento psicológico deve começar com uma investigação sobre a natureza
do estímulo e da resposta, que são, com objetividade, os fatos externos. Mas, quando os
psicólogos consideram somente o estímulo e a resposta para explicar o comportamento,
CAPÍTULO 7 FUNCION,\LISMO: SUA FUNDAÇÃO E SUA EvOLUÇAO· 1 79
perdem o que pode ser a parte mais importante do estudo, o organismo vivo propria
mente dito. O estímulo não é a única causa de determinada resposta. O orgànismo, com
seus níveis de energia variáveis e as experiências passadas e presentes, também atua para
determinar a resposta.
A psicologia precisa considerar o organismo interposto entre o estímulo e a respos
ta. Portanto, Woodworth sugeria que o objeto de estudo da psicologia fosse tanto a
consciência como o comportamento. (Essa posição foi adotada posteriormente pelos
psicólogos humanistas e pelos teóricos da aprendizagem social.)
É possíve_l estudar o organismo de forma objetiva, analisando o estímulo externo
tanto como ª resposta, mas o que ocorre dentro do organismo só pode ser conhecido
pela introspecção. Sendo assim, Woodworth aceitava a introspecção como uma ferra
menta útil para a psicologia, juntamente com os métodos experimental e de observação.
Woodworth introduziu no funcionalismo a psicologia dinâmica, que desenvolveu
com base nos ensinamentos de ]ohn Dewey e William ]ames. (Dewey usara a palavra
"dinâmico" nesse contexto já em 1884, e ]ames, em 1908.) A psicologia dinâmica diz res
peito ao estudo da motivação e a intenção de Woodworth era desenvolver o que chama
va de "motivatologia" (o estudo da motivação).
Psicologia dinâmica: sistema de psicologia de Woodworth, que se dedica aos fatores causais e às
motivações que influenciam os sentimentos e o comportamento.
Embora se observem semelhanças entre a visão de Woodworth e a dos funcionalis
tas de Chicago, ele enfatizava os fatos psicológicos que estão por trás do comportamen
to. Sua psicologia dinâmica concentrava-se nas relações causa-efeito e principalmente
nas forças que direcionam ou motivam os seres humanos. Acreditava que a psicologia
devia dedicar-se a identificar por que as pessoas se comportam de determinado modo.
Woodworth não adotou um sistema único nem desejava estabelecer a própria esco
la de pensamento. Seu ponto de vista não foi construído com base em um protesto, mas
estendendo, elaborando e sintetizando as características apropriadas de outras aborda
gens que selecionava.
-0 História On-Jine
http:/ /psychclassics. yorku.ca/Woodworth/murchison.htm
Esse site contém o texto da autobiografia de Woodworth.
As Críticas ao Funcionalismo
Os ataques contra o movimento funcionalista surgiram rápida e veementemente dos
estruturalistas. Pela primeira vez, pelo menos nos Estados Unidos, a nova psicologia divi
dia-se em facções rivais: o laboratório de Titchener na Cornell University como quartel
general do estruturalismo e o departamento de psicologia da Chicago University, para os
funcionalistas. As acusações, as investidas e os contra-ataques partiam de um lado a
outro entre os inimigos que se consideravam no direito de se denominarem, cada um, o
dono da verdade.
1 80 H ISTCÍRIA DA PSICOLOGIA 1Y\ODERNA
Uma das críticas contra o funcionalismo era que o próprio termo não era muito bem
definido. Um aluno de Titchener, C. A. Ruckmick, examinou 15 livros de introdução à
psicologia para identificar como cada autor definia o termo fimção. As duas definições
mais comuns eram no sentido de atividade ou processo e no sentido de servir a outros
processos ou ao organismo como um todo (Ruckmick, 1913) .
Na primeira definição, função é sinônimo de atividade, por exemplo: as ações de
lembrar e perceber são funções. Na segunda, a função é definida com relação à utilidade
de alguma atividade para o organismo, como as funções digestivas ou respiratórias.
Ruckmick acusava os funcionalistas de inconsistência e ambigüidade, já que às vezes
empregavam a palavra função para descrever uma atividade e outras referindo-se à sua
utilidade.
Durante 1 7 anos não houve resposta da escola funcionalista para essa acusação, até
que Harvey Carr alegou não haver inconsistência nas duas definições, já que ambas se
referiam aos mesmos processos (Carr, 1930). Os psicólogos funcionalistas estavam inte
ressados em uma atividade específica em benefício próprio (a primeira definição) e tam
bém nas suas relações com outras condições ou atividades (a segunda definição).
Observou que os biólogos geralmente seguiam uma prática semelhante. No entanto "pri
meiro o funcionalismo empregava o conceito para depois defini-lo e essa seqüência é
característica do movimento" (Heidbreder, 1933, p. 288).
Outra crítica de Titchener e seus seguidores está relacionada à definição da psicolo
gia. Os estruturalistas afirmavam que o funcionalismo não era psicologia. Por quê?
Porque, alegavam, o funcionalismo não adotava os métodos e o objeto de estudo do
estruturalismo! Assim, na visão de Titchener, qualquer abordagem da psicologia que se
desviasse da análise introspectiva da mente com base nos elementos componentes não
podia ser chamada de psicologia. E é óbvio que era exatamente essa definição de psico
logia que os funcionalistas estavam questionando.
Os críticos também consideravam equivocado o interesse dos funcionalistas pelas
questões práticas, reacendendo, assim, a interminável polêmica entre a ciência pura e
a aplicada. Os estruturalistas ignoravam qualquer aplicação do conhecimento psicoló
gico aos problemas do mundo real, enquanto os funcionalistas não viam a menor uti
lidade em manter a psicologia como uma ciência pura e jamais abriram mão do seu
interesse prático.
Carr acreditava na possibilidade de adoção do procedimento científico rigoroso
tanto na psicologia pura como na aplicada e tambémna realização de pesquisas váli
das nas fábricas, escritórios, salas de aulas, bem como nos laboratórios universitários.
É o método e não o objeto de estudo que determina a validade científica de qualquer
campo de investigação. Essa incessante disputa entre a ciência pura e a aplicada não é
mais tão acirrada na psicologia americana como foi um dia, principalmente por causa
do grande poder de penetração da psicologia aplicada. A aplicação prática da psicolo
gia nos problemas reais está entre as principais e mais duradouras contribuições dQ
funcionalismo.
As Contribuições do Funcionalismo
A forte oposição do funcionalismo ao estruturalismo teve enorme impacto na evolução
da psicologia, nos Estados Unidos. A amplitude das conseqüências da transferência da
ênfase da estrutura para a função também foi bastante significativa. Um dos resultados
CAPÍTULO 7 FUNCIONALISMO: SUA FUNDAÇÃO E SUA EVOLUÇÃO· 1 81
foi a incorporação da pesquisa do comportamento animal, que não fazia parte do trata
mento estruturalista como área de estudo da psicologia.
A ampla base da psicologia funcionalista também incorporava os e§.t�.J_dos sobre
bebês, crianças e adultos com dificuldades mentais. Os funcionalistas complementavam
o método introspectivo com dados obtidos por meio de outros métodos, como a pesqui
sa fisiológica, os testes mentais, os questionários e as descrições objetivas do comporta
mento. Essas abordagens, rejeitadas pelos estruturalistas, transformaram-se em fontes
respeitáveis de informação para a psicologia.
Na época da morte de Wundt, em 1920, e de Titchener, em 1927, suas abordagens
já estavam obscuras nos Estados Unidos. Por volta de 1 930, consolidava-se a vitória
do funcionalismo. Como veremos no Capítulo 8, o funcionalismo deixou a sua marca
na psicologia americana contemporânea mais significativamente devido à ênfase na
aplicação dos métodos e das descobertas da psicologia para a solução dos problemas
práticos.
Temas para Discussão
1 . Descreva a noção d e Spencer a respeito do darwinismo social. Por que o dar
winismo social tornou-se tão popular nos Estados Unidos?
2. Por que o tipo de calculadora criado por Babbage em meados do século XIX
não era mais adequado no final do mesmo período? Descreva a abordagem
de Hollerith quanto ao processamento de informações com a utilização da
máquina.
3. Descreva os sintomas da neurastenia. Que segmento da sociedade ameri
cana do século XIX tinha mais propensão a ser atingido por esse mal?
Qual a diferença entre o tratamento prescrito para os homens e para as
mulheres?
4. Por que ]ames foi considerado o principal psicólogo americano? Descreva a
sua atitude em relação ao trabalho laboratorial.
5 . Qual a diferença entre a visão de ]ames e a de Wundt a respeito da consciên
cia? Para ]ames, qual era o propósito da consciência?
6. Quais os métodos considerados adequados por ]ames para o estudo da cons
ciência? Qual foi o valor do pragmatismo na nova psicologia?
7. Descreva a hipótese da variabilidade e sua influência na idéia da superiori
dade masculina. Como as pesquisas de Woolley e Hollingworth refutaram
essas idéias?
8. De que forma Titchener e Dewey contribuíram para a fundação da psicolo
gia funcional? Por que o funcionalismo não era dotado de uma forma única,
assim como o estruturalismo?
9. Para Angell, quais eram os três principais temas do funcionalismo? Que
métodos de pesquisa Carr considerava adequados para a pskologia
funcional?
1 8 2 HIST<ÍRIA DA PSICOLOGIA MODERNA
10. Descreva a psicologia dinâmica de Woodworth e a sua visão sobre a intros
pecção. O próprio Woodworth considerava-se um psicólogo funcionalista?
Por que sim ou não?
1 1 . Faça uma comparação entre as contribuições do funcionalismo e do estrutu
ralismo na psicologia. Por que a psicologia aplicada desenvolveu-se no fun
cionalismo e não no estruturalismo?
Sugestões de Leitura
Campbell-Kelley, M. e Aspray, W. Computer: a history of the information machine. Nova
York: Basic Books, 1996. Traça o desenvolvimento do computador a partir do traba
lho de Hollerith e o seu tabulador de cartões perfurados utilizado no censo de 1890.
Carr, H. A. Autobiography. In Murchison, C. (Ed.). A history of psychology in autobio
graphy. Nova York: Russell & Russell, 1 961, v. 3, p.69-82. (Trabalho original publica
do em 1930.) As lembranças de Harvey Carr sobre a sua carreira.
Crissman, P. The psychology of John Dewey. Psychologica/ Review, nº 49, p. 441-462,
1942. Analisa a abordagem de Dewey para a psicologia da época.
Furumoto, L. From "paired associates" to a psychology of self: the intellectual odyssey
of Mary Whiton Calkins. In KIMBLE, G. A.; Wertheimer, M. e White, C. (Eds.) .
Portraits of pioneers in psychology. Washington, DC: American Psychological
Association, 1991, p. 57-58. Descreve a abordagem de Calkin sobre a pesquisa expe
rimental em psicologia dentro do contexto acadêmico de uma faculdade para
mulheres (Wellesley, 1887-1930).
Lewis, R. W. B. The Jameses: a family narrative. Nova York: Farrar, Straus and Giroux. Um
relato da família de ]ames, incluindo William (psicólogo), Henry (romancista) e
Alice (ativista política).
Lutz, T. American nervousness, 1903: an anecdotal history. Ithaca, NY: Cornell University
Press, 1991. Discute a neurastenia, doença cultural prevalecente nos Estados Unidos
no início do século XX, e especula sobre seus efeitos provocados em William ]ames,
entre outros.
McKinney, F. Functionalism at Chicago - memories of a graduate student: 1929-193 1 .
fournal of the History o f the Behavioral Sciences, n º 14, p. 142-148, 1978. Descreve o
corpo docente, o corpo discente, o programa do curso e o clima intelectual do depar
tamento de psicologia da University of Chicago.
Ryan, A. fohn Dewey and the high tide of American liberalism. Nova York: W. W. Norton,
1995. Examina o pragmatismo de Dewey e suas idéias a respeito da liberdade indi
vidual para produzir o aperfeiçoamento da sociedade.
Simon, L. William [ames remembered. Lincoln: University of Nebraska Press, 1996. Cole
tânea de lembranças de membros da família, amigos e líderes intelectuais daquela
época, a respeito de ]ames.
Thorne, F. C. Reflections on the Golden Age of Columbia's psychology. fournal of the
History ofthe Behavioral Sciences, nº 1 2, p. 159-165, 1976. Descreve o corpo docente
e os interesses em pesquisas do departamento de psicologia da Columbia University
(1920-1940).