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DE ACORDO COM O NOVO CPC - L E I 13.105/2015 Diretora Responsável Marisa Harms Diretora de Operações de Conteúdo Juliana Mayumi Ono Editores:Andreia Regina Sehneider Nunes, Cristiane Gonzalez Basile de Faria, Iviê A. M. Loureiro Gomes e Luciana Felix Assistente Administrativo Editorial: Juliana Camilo Menezes Produção Editorial Coordenação Juliana De C icco Bianco Analistas Editoriais: Danielle Rondon Castro de Morais, Flávia Campos Marcelino Martines, Gabriele Lais Sant'Anna dos Santos, George Silva Melo, Luara Coentro dos Santos e Luciano Mazzolenis J. Cavalheiro Analistas de Qualidade Editorial: Carina Xavier Silva, Cinthia Santos Galarza, Cíntia Mesojedovas Nogueira e Maria Angélica Leite Capa: Chrisley Figueiredo Administrativo e Produção Gráfica Coordenação Caio Henrique Andrade Analista Administrativo: Antonia Pereira Assistente Administrativo: Francisca Lucélia Carvalho de Sena Analista de Produção Gráfica: Rafael da Costa Brito Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Mitidiero, Daniel Colaboração no processo civil : pressupostos sociais, lógicos e éticos / Daniel Mitidiero. ~ 3. ed. rev., atual, e ampl. de acordo com o novo código de processo civil. — São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2015. Bibliogrtafia. ISBN 978-85-203-6502-1 1. Processo civil - Brasil I. Título. 15-06019 CDU-347.9(81) índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Direito processual civil 347.9(81) Parte I A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 1. Processo e cultura Ao apresentar o Projeto do Código de Processo Civil de 1973, expondo-lhe os motivos, Alfredo Buzaid asseverava que a elaboração de um Código de Processo encerra uma empresa “eminentemente técnica”.1 Em outra oportunidade, ao traçar as linhas fundamentais de nosso Có digo anterior em conferência na Universidade de Keyo, Buzaid foi ainda mais enfático: o “processo civil é uma instituição técnica”.2 Essas asser tivas encerram o espírito de toda uma época: o processualismo , período de efetiva construção da ciência processual civil (“ Prozessrechtsmssenschaft"),3 cujo início normalmente se assinala com Oskar Bülow no final dos Oitocentos,4 parcialmente sistematizado ainda 1. Alfredo Buzaid (1914-1991), Exposição de motivos. Brasília, 1972, n. 5. 2. Linhas fundamentais do sistema do Código de Processo Civil brasileiro, Estudos e pareceres de direito processual civil, com notas de adaptação ao direito vigente de Ada Pellegrini Grinover e Flávio Luiz Yarshell. São Paulo: Ed. RT, 2002, p. 34. 3. Bemhard Hahn, Kooperationsmaxime im Zivilprozess ? Kõln: Carl Heymanns, 1983, p. 7. 4. Niceto Alcalá-Zamora y Castillo (1906-1985), Evolución de la DoctrinaPro- cesal (1950), Estúdios de Teoria General e Historia dei Proceso (1945-1972). México: Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1974, t. II, p. 308. Alude Niceto à conhecidíssima obra de Bülow (1837-1907), Die Lehre von den Processeinreden und die Processvoraussetzungen. Giessen: EmilRoth, 1868. Essa é a communis opinio doctorum (Miguel Teixeira de Sousa, Apontamento sobre a ciência processual civil, Revista de Processo, p. 70-71, n. 235. São Paulo: Ed. RT, 2014). Todavia, para uma defesa do início do processo civil 2 2 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS àquele tempo por Adolf W ach,5 desembarcado no Brasil pela mão da Escola Italiana da primeira metade dos Novecentos (a chamada Escola “sistemática"),6 cujo mestre maior foi Giuseppe Chiovenda,7 trazido na bagagem de seu discípulo Enrico Tullio Liebman.8 Não se mostra difícil associar o intento de Buzaid ao de Chioven da, que, no início dos Novecentos, postulava a assimilação do direito processual civil germânico e austríaco na Itália.9 Percebe-se subjacente a esse modo de pensar o direito processual civil a mesma ideia central: o processo como fenômeno técnico, como algo em larga medida inde pendente de fatores culturais.10 como disciplina autônoma a partir da ideia de procedimento no período do jusnaturalism o, igualmente com boas razões, Knut Wolfgang Nòrr, Naturrecht und Zivilprozess. Tübingen: Mohr Siebeck, 1976, p. 18 e ss.; Vittorio Denti (1919-2001), Dottrine dei Processo e Riforme Giudiziarie tra Iluminismo e Codificazioni (1981), Un Progetto per la Bologna: II Mulino, 1982, p. 97 e ss. 5. Adolf Wach (1843-1926), Handbuch des Deutschen Lei- pzig: Duncker & Humblot, 1 8 8 5 ,1.1. 6. Vittorio Denti, Sistemática e Post-sistematica nell’Evoluzione dele Dottrine dei Processo Civile (1986), Sistemi e Riforme - Studi sulla Giustizia Cviile. Bologna: II Mulino, 1999, p. 13 e ss. 7. Giuseppe Chiovenda (1872-1937), “fundador da nova escola processual italiana”, como observa Alfredo Buzaid à Introdução da edição brasileira das Instituições de direito processual civil (1933). Trad. J . Guimarães Menegale e notas de Enrico Tullio Liebman (1942). 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1969, vol. I, p. VII. 8. Enrico Tullio Liebman (1903-1986). Sobre o assunto, Daniel Mitidiero, O processualismo e a formação do Código Buzaid, Revista de Processo, n. 183. São Paulo: Ed. RT, 2010. Ainda, Marinoni; Arenhart; Mitidiero, Novo curso de processo civil-Teoria do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2015, vol. I, p. 558 e ss.; Jonathan Iovane de Lemos, A organização do processo civil - Uma análise cultural da estruturação do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 105 ess. 9. Giuseppe Chiovenda, Del Sistema negli Studi dei Processo Civile (1908), Saggi di DirittoProcessuale Civile (1894-1937). Milano: Giuffrè, 1993, vol. I,p . 229. 10. Nada obstante abaixo dessa aparente neutralidade técnica escondessem-se opções culturais, conforme GiovanniTarello (1934-1987), II Problemadella PARTE 1 - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 23 Essa não nos parece, porém, a melhor compreensão do tema. É certo que o direito processual civil contém uma estruturação técnica.11 Isso não elide, no entanto, o caráter cultural das opções técnicas eleitas para conformação do próprio processo,12 viés que acaba condicionando a organização do tecido processual.13 O direito processual civil não Riforma Processuale in Italia nel Primo Quarto dei Secolo. Per uno Studio delia Genesi Dottrinale e Ideológica dei Vigente Códice Italiano di Procedura Civile (1977), Dottrine dei Processo Civil - Studi Storici sulla Formazione dei Diritto Processuale Civile, a cura di R. Guastini e G. Rebuffa. Bologna: II Mulino, 1989, especialmente p. 43 e ss.; LOpera di Giuseppe Chiovenda nel Crepúsculo delloStato Liherale (1973), Dottrine dei Storici sulla Formazione dei Diritto Processuale Civile, a cura di R. Guastini e G. Rcbu/fa. Bologna: II Mulino, 1989, p. 109-214. As observações de Ta- rello quanto ao papel de Chiovenda na história do direito processual civil italiano, todavia, foram vivamente criticadas por Enrico Tullio Liebman, Storiografia Giuridica “Manipolata”, Rivisía di Diritto Processuale, p. 100 e ss. Padova: Cedam, 1974, especialmente p. 122-123. Sobre o assunto, ainda, Michele Taruffo, La Giustizia Civile in Italia dal’700 a Oggi. Bologna: II Mulino, 1980, p. 183-192; Sistema e Funzione dei Processo Civile nel Pensiero de Giuseppe Chiovenda, Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. p. 1.133-1.168. Milano: Giuffrè, 1986. 11. Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil (2001). 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, vol. I, p. 58. 12. O problema da conformação do processo - tanto na sua perspectiva subjetiva quanto objetiva - foi tratado na doutrina brasileira principalmente a partir da expressão “formalismo do processo” (Álvaro de Oliveira (1942-2013), Do formalismo no processo civil (1997). 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010), que abrange “a totalidade formal do processo, compreendendo não só a forma, ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, coordenaçãode sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com vistas a que sejam atingi das suas finalidades primordiais”, investindo-se, assim, na “tarefa de indicar as fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a ser formado, estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e agir as pessoas atuantes no processo para o seu desenvolvimento”, com o que “con tém, portanto, a própria ideia do processo como organização da desordem, emprestando previsibilidade a todo o procedimento” (Idem, p. 28). 13. Idem, p. 92-98. Sobre as relações entre processo e cultura, ainda, Daniel Mitidiero, Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasi leiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 11-16. 24 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS escapa à sorte do direito em geral: compete à autonomia da pessoa humana, sendo fruto dessa percepção de m undo.14 Embora a caracterização do direito em geral e do processo ci vil em especial como fenômenos culturais seja algo pouco mais do que evidente hoje, a ponto mesmo de autorizada doutrina colocar com o uma das características incontroversas do direito atual a sua humanidade,15 certo é que a discussão a respeito do tema se coloca se tivermos presente a perspectiva histórica do problema. Quem quer que tenha se interessado em compreender o direito a partir da filosofia dos Setecentos certamente não estranhará a necessidade de uma justificação um pouco mais aprofundada a respeito do assunto. A partir dos Seiscentos, como é notório, fixa-se o paradigma científico da modernidade,16 fincando aí a contraposição entre ciências naturais e ciências culturais ou, como às vezes igualmente se alude, entre ciências técnicas e ciências culturais (no fundo, contraposição entre natureza e pessoa humana),17 ainda hoje normalmente utilizada.18 A 14. Conforme, para o direito em geral, Antônio Castanheira Neves, Metodolo gia jurídica-Problem as fundamentais. Coimbra: Coimbra Ed., 1993, p. 47; Norbert Hom, Einführung in die Rechtswissenschaft und Rechtsphilosophie (1996). 5. ed. Heidelberg: C. E Müller, 2011, p. 33-35 ; para o direito pro cessual civil em particular, Ovídio Baptista da Silva (1929-2009) Jurisdição e execução na tradição Romano-Canônica (1996). 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 1997, p. 192-219; Luiz Guilherme Marinoni, Novas linhas do processo civil (1993). 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 20-21 ; Galeno Lacerda (1922- 2012), Processo e cultura, Revista de Direito Processual Civil, p. 74, vol. III. São Paulo: Saraiva, 1961. 15. Por todos, Ângelo Falzea, Introduzione alie Scienze Giuridiche - II Concetto di Diritto (1975). 5. ed. Milano: Giuffrè, 1996, p. 492. 16. Michel Villey (1914-1988), a propósito dos Seiscentos, fala mesmo em “nascimento” da ciência moderna (La Formation de la Pensée Juridique Modeme (1961-1966) (2003). 2. ed. Paris: PUF, 2013, p. 493). 17. Boaventura de Sousa Santos, Um Discurso sobre as ciências (1987). 13. ed. Porto: Edições Afrontamento, 2002, p. 12. 18. Vide, por exemplo, a referência em Peter Háberle, Constitución como Fenô meno Cultural, Constitución como Cultura (1998). Trad. Ana Maria Montoya. Bogotá: Instituto de Estúdios Constitucionales Carlos Restrepo Piedrahita, 2002, p. 63. PARTE 1 - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCIPIO DO HROCESSO CIVIL 25 ciência está onde há exatidão e certeza, onde há mensurabilidade,|g sendo protótipo do saber científico aquele desenvolvido no campo das ciências da natureza - como, por excelência, a matemática.19 20 Nessa quadra, o direito vai adquirindo uma feição cada vez mais técnica com o correr da história, afeiçoando-se lcntamente às ciências de pesar e contar. Vale dizer, vai matemat izando-se, orientando-se para um discurso natural e técnico.21 Essa inclinação histórica inicia com Althusius,22 23 já nos Seiscentos, cujo intento central estava em aplicar ao direito a lógica de Picrre de la Ramée‘' 1 - com o que pretendeu construir um sistema coerente para o direito, ordenando os conceitos essenciais ao trato do fenômeno jurídico.24 25 Essa empreitada preparou o caminho para logo em seguida os cartesianos deduzirem todo o direito de axiomas.2> Daí para a “genealogia dos conceitos", de Puchta,26 em pleno Oitocentos, em que se procurou organizar o direito como uma “pirâmide de conceitos" não há qualquer ruptura.27 A compreensão do direito como um conjunto de normas formais e abstratas, deduzidas conceitualmente, teve como consequência a sua própria colocação fora do âmbito cultural. O fenômeno jurídico 19. Michel Villey, La Formation de la Pensée Modeme (1961 -1966) (2003). 2. ed. Paris: PUF, 2013, p. 494. 20. Boaventura de Sousa Santos, Um discurso sobre as ciências (1987). 13. ed. Porto: Edições Afrontamento, 2002, p. 14-15. 21. Ovídio Baptista da Silva, Processo e ideologia-O paradigm a racionalista. Rio dejaneiro: Forense, 2004, p. 58. 22. Johannes Althusius (1557 ou 1563-1638). 23. Pierre de la Ramée (1515-1572), também conhecido como Petrus Ramus. 24. Michel Villey, La Formation de la Pensée Juridique Moderne (1961-1966) (2003). 2. ed. Paris: PUF, 2013, p. 520. 25. Idem, ibidem. Para uma análise das consequências do pensamento de Al thusius especificamente para o direito processual civil, consulte-se Nicola Picardi, I - Processo Civile: c) Diritto Moderno, Enciclopédia dei Diritto, Milano: Giuffrè, 1987, vol. XXXVI, p. 106 e ss. 26. Georg Puchta (1798-1846). 27. Karl Larenz (1 9 0 3 -1 9 9 3 ), Metodologia da ciência do direito (1960). Trad. José Lamego (1986). 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 23. 26 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS - seus problemas e suas respectivas soluções - acabou congelado no tempo e desligado da realidade social. Nenhuma surpresa, portanto, que já se tenha observado que essa maneira de pensar tenha levado a um inevitável “alheamento da ciência jurídica em relação às realidades sociais, políticas e morais do direito”.28 Daí por que, quando hoje se afirma o caráter cultural do direito, sublinham-se justamente as características de humanidade, socialidade e normatividade, frisando-se a gênese axiológica e cultural de nossa ciência.29 A ligação entre sistema cultural e sistema jurídico é hoje insuprimível do horizonte do jurista.30 A colocação do direito no campo da cultura, porém, ainda não explica totalmente o problema. Isso porque o próprio conceito de cultura reclama uma maior precisão. Já se observou que “é difícil escapar à conclusão de que a palavra ‘cultura’ é ao mesmo tempo ampla demais e restrita demais para que seja de muita utilidade”.31 Nada obstante, visando outorgar-lhe contornos menos fluidos, é possível reconhecer ao menos dois significados básicos que normalmente se lhe imputam: o de e o de civilidade.32 No primeiro sentido, normalmente associado à Antiguidade Grega, reconhece-se ao termo cultura a própria educação do indivíduo 28. Franz Wieacker (1908-1994), Privatrec der Neuzeit (1952). 2. ed. Gòttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1967, p. 401. 29. Ângelo Falzea, Introduzione alie Scienze Giuridiche. 5. ed. Milano: Giuffrè, 1996, p. 492. 30. Ângelo Falzea, Sistema Culturale e Sistema Giuridico (1988), Ricerche di Teoria Generale dei Diritto e di Dogmatica Giuridica. Milano: Giuffrè, 1999, p. 189-219. 31. Terry Eagleton, A ideia de cultura (2000). Trad. Sandra Castello Branco. Revisão técnica Cezar Mortari. São Paulo: Unesp, 2005, p. 51. 32. Ângelo Falzea, Sistema Culturale e Sistema Giuridico (1988), Ricerche di Teoria Generale dei Diritto e di Dogmatica Giuridica. Milano: Giuffrè, 1999, p. 189; na doutrina brasileira, Miguel Reale (1910-2006) igualmente parte de semelhantes acepções do termo cultura (uma pessoal e subjetiva e outra social e objetiva) para explicá-la (Conceito de cultura - Seus temas fun damentais, Paradigmas da cultura contemporânea (1996). 2. ed. São Paulo: Saraiva,2005, p. 3). PARTE I - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 27 dentro das disciplinas superiores (por exemplo, a filosofia), o seu refinamento e o desenvolvimento das suas capacidades intelectuais e morais. A tônica dessa acepção de cultura vai posta no indivíduo, embora a polis e a civitas constituam o local em que se manifesta e se realiza a cultura individual (aspecto social do con ceito).33 No segundo, a palavra cultura exprime uma ideia mais coletiva, social, transindividual, identificando-se com determinados estágios de evo lução social (ou mesmo com o seu progressivo desenvolvimento), aparecendo essa maneira de compreender o tema principalmente a partir dos Setecentos.34 O aspecto social ganha destaque. Em ambos os sentidos, contudo, aparece o termo marcado pela especificidade humana. Nesse particular, interessa notar que a dupla acepção do termo contribui para explicar o direito como um produto cultural, como algo inerente aos domínios da cultura. A partir da ideia de cultura como cultura animi, explica-se a ligação entre cultura e espiritualidade (entrando em cena a pessoa, considerada individualmente), servindo a sua compreensão como civilidade para marcar o elemento social, bem marcando os laços entre espiritualidade e sociedade.35 Aparece, então, a ideia de cultura como algo que espiritualiza a vida social,36 bem apontando os nexos indeléveis existentes entre a cultura e o tipo de vida levado por determinada agremiação de pessoas, fundado em valores comuns.37 Nessa linha, a cultura realiza os valores sociais.38 Segue-se daí que o direito, com as suas características de huma nidade e de socialidade, pode ser caracterizado como um autêntico produto cultural, entendida a cultura como a espiritualidade inerente à 33. Ângelo Falzea, Sistema Culturale e Sistema Giuridico (1988), Ricerche di Teoria Generale dei Diritto e di Dogmatica Giuridica. Milano: Giuffrè, 1999, p. 189-190. 34. Idem, p. 190-191. 35. Idem, p. 195. 36. Idem, p. 196. 37. Idem, p. 197. 38. Johannes Hessen (1889-1971), Filosofia dos valores (1937). Trad. Luís Cabral de Moncada. Coimbra: Almedina, 2001, p. 184. 28 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS realidade humana socialmente considerada.39 Dentre todas as manifes tações da cultura, o direito é fruto da cultura positiva, isto é, da cultura encarnada em comportamentos sociais reconduzíveis aos valores que caracterizam determinado contexto histórico.40 Partindo-se dessa perspectiva cultural, compreendem-se facil mente as razões pelas quais o direito processual civil tenha experimen tado diferentes perspectivas metodológicas, já que toda experiência nesse fecundo campo encerra um modo de ver e trabalhar com o processo, evidentemente condicionada à cultura social historicamente conside rada41 - j á que essa opera mesmo como uma “lente através da qual o homem vê o mundo”.42 Náo constitui privilégio do direito processual civil, a propósito, essa evolução metodológica, dado facilmente com- provável na rápida e livre consulta da bibliografia sobre outros ramos jurídicos.43 39. Ângelo Falzea, Sistema Culturale e Sistema Giuridico (1988), Ricerche di Teoria Generale dei Diritto ed i Dogmatica Giuridica. Milano: Giuffrè, 1999, p. 198-199. 40. Idem, p. 198-205. 41. Elio Fazzalari (19 2 5 - 2 0 1 0 ), EEsperienza dei Processo nella Cultura Contemporânea, Rivistadi Diritto Processuale,p. 29. Padova: Cedam, 1965; Fritz Baur (1911-1992), II Processo e le Correnti Culturali Contemporanee. Trad. Corrado Ferri. Rivista di Diritto Processuale, p. 253. Padova: Cedam, 1972. Nesse sentido, o processo pode ser encarado como uma espécie de “sismógrafo, um aparelho de grande precisão, capaz de registar, a distân cia, os mínimos movimentos e deslocações das camadas de terreno mais profundas no subsolo da vida social”, conforme a sugestiva imagem de Luís Cabral de Moncada (1888 - 1974), O processo civil perante a filosofia do direito (1945), Estudos de filosofia do direito e do Estado, p. 167-168, vol. II. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004. 42. Roque de BarrosLaraia, Cultura-U m (1986). 19. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006 , p. 67. 43. Apenas a título de exemplificação, tomemos o direito privado, conforme Natalino Irti, Códice Civile e Plusvalore Político, Códice Civile e Società Politica (1995). 7. ed. Roma: Laterza, 2005 , p. 5-18 ; Judith Martins-Costa, Direito e cultura: entre as Veredas da Existência e da História, Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 169 e ss., em coautoria com Gerson Luiz Carlos Branco; Luiz Edson Fachin, Teoria crítica do direito civil (2000). 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 25 e ss. PARTE 1 - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 29 Em termos de fases metodológicas, alinham-se quatro grandes linhas atinentes ao direito processual civil: o praxismo, o processualis- mo, o instrumentalismo e o processo civil no Estado Constitucional. A existência dessas diferentes formas de pensar o processo civil, aliás, já indicam o alto grau de comprometimento existente entre cultura e processo, autorizando a sua caracterização como um fenômeno emi nentemente cultural.44 O praxismo corresponde à pré-história do direito processual civil, tempo em que se aludia ao processo como “procedura" e não ainda como “diritto processual civile".45 Época em que não se vislumbrava o processo como um ramo autônomo do direito, mas como mero apêndice do direito material.46 47 Direito adjetivo, pois, que só ostentava existência útil se ligado ao direito sub 44. Sobre o assunto, ainda, Marcojobim, Cultura, escolas e fases metodológicas do processo (2011). 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 111 ess. 45. A contraposição vem indicada, por exemplo, em Salvatore Satta (1902- 1975), Diritto Processuale Civile, Enciclopédia dei Diritto. Milano: Giuffrè, 1964, vol. XII, p. 1.101. 46. Sintomática dessa orientação, a propósito, a impostação que o direito pro cessual civil merecia nos livros jurídicos de então: sirva de exemplo, conso ante aponta Riccardo Orestano (1909-1988), as Pandectas de Thibaut, que até a 7.a edição, datada de 1828, incluíam uma ampla exposição do direito processual civil em seu terceiro volume (conforme Azione. I - LAzione in Generale: a) Storia dei Problema, Enciclopédia dei Diritto. Milano: Giuffrè, 1959, vol. IV, p. 790). 47. A respeito do ponto, a acertada crítica de Galeno Lacerda: “erro arraigado, cometido até por autores de tomo, consiste em definir o direito processual como direito adjetivo, ou como direito formal. O primeiro, de improprie- dade manifesta, legou-nos Bentham. Tão impróprio é definir o arado como adjetivo da terra, o piano como adjetivo da música, quanto o processo como adjetivo do direito em função do qual ele atua. Instrumento não constitui qualidade da matéria que modela, mas ente ontologicamente distinto, embora a esta vinculado por um nexo de finalidade. Se não é qualidade, também não será forma, conceito que pressupõe a mesma e, no caso, inexistente integração ontológica com a matéria. A toda evidência, processo não significa forma do direito material. Aqui, o erro provém de indevida aplicação aos dois ramos do direito das noções metafísicas de 30 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS Leciona-se que nesse período sincretista do direito processual civil (que denominamos de praxista), “os conhecim entos eram pura mente empíricos, sem qualquer consciência de princípios, sem con ceitos próprios e sem a definição de um m étodo. O processo mesmo, como realidade da experiência perante os juízos e tribunais, era visto apenas em sua realidade física exterior e perceptível aos sentidos: confundiam-no com o mero procedimento quando o definiam como sucessão de atos, sem nada se dizerem sobre a relação jurídica que existe entre seus sujeitos (relaçãojurídica processual), nem sobre a conveniência política de deixar caminho aberto para a participa ção dos litigantes (contraditório)”.48 Nessa quadra, a jurisdição era encarada como um sistema posto para tutela dos direitos subjetivos particulares, a ação era compreendida com o um desdobramento matéria e forma, como conceito com plem entares. Definidas as normas fundamentais, reguladoras das relações juríd icas, com o direito material, ao direito disciplinador do processo outra qualificação não restaria senão a de formal. O paralelo se revela primário em seu sim plism o sofistico. O direito material há de regular as formas próprias que substanciam e especificam os atos jurídicos materiais, ao passo que o direito processual, como instrumento de definição e realização daquele em concreto, há de disciplinar, também, as formas que substanciam e especificam os atos jurídicos processuais. Em suma, a antítese não é direito material - direito formal e sim, direito material - direito instrum ental. Isto porque instru mento, como ente a se, possui matéria e formas próprias, independentes da matéria e da forma da realidade ju ríd ica, dita material, sobre a qual opera” ( Comentários ao Código de Processo Civil (1 9 8 0 ) . 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, vol. VIII, t. I, p. 2 3 -2 4 ). A despeito da crítica, alguns processualistas portugueses ainda hoje insistem em considerar o processo civil como “direito adjetivo” (com o, entre outros, José Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil. Coimbra: Coim bra Ed., 1996, p. 8; Jorge Augusto Pais de Amaral, Direito processual civil (1 9 9 9 ), 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001 , p. 160; outros, no entanto, rejeitam a termi nologia, preferindo aludir ao direito processual civil corretam ente como “direito instrum ental” (com o Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao processo civil. Lisboa: Lex, 1993, p. 3 5 -36 ; Antônio Montalvão Machado; Paulo Pimenta, O novo processo civil (1 9 9 7 ). 4. ed. Coim bra: Almedina, 2002, p. 14-15). 48. Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil (2001). 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, vol. I, p. 255. PARTE I - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 31 do direito subjetivo49 e o processo como simples procedimento.50 O clima privatista do direito material permeava integralmente o direito processual, envolvendo-o no mesmo plano.51 A dissociação operada entre o direito material e o direito proces sual foi uma empresa moderna,52 devida fundamentalmente à pro- 49. Sobre as teorias da açâo, tema que ora evidentemente desborda de nossa análise, consulte-se a coletânea de ensaios Polêmica sobre a a çã o -A tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo, organizada por Fábio Cardoso Machado e Guilherme Rizzo Amaral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, que conta com ensaios de Álvaro de Oliveira, Daniel Mitidiero, Fábio Cardoso Machado, Gabriel Pintaúde, Guilherme Rizzo Amaral, Hermes Zanetijr., Luiz Guilherme Marinoni e Ovidio Araújo Baptista da Silva. Vide ainda Álvaro de Oliveira, Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio dejaneiro: Forense, 2008; Ovidio Araújo Baptista da Silva, Jurisdição, direito material eprocesso .Rio dejaneiro: Forense, 2008, Mari noni; Arenhart; Mitidiero, Novo curso de processo civil - Teoria do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2015, vol. I, p. 189 e ss. 50. Cândido Rangel Dinamarco , A instrumentalidade do p(1987). 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 18. 51. É lugar comum, a propósito, qualificar o direito judiciário civil do início dos Oitocentos como um direito altamente “privatista e individualista”, justamente pelo seu íntimo relacionamento com o direito material (Mauro Cappelletti (1927-2004), Liberta Individuale e Giustizia Sociale nel Processo Civile Italiano (1972), Giustizia e Società. Milano: Edizioni di Comunità, 1977, p. 32). Daí, aliás, a predominância do princípio dispositivo (ou dispo sitivo em sentido formal, Mauro Cappelletti, La Testimonianza delia Parte nel Sistema deWOralità-Contributo alia Teoria delia Utilizzazione Probatória dei Saperedelle Parti nel Processo Civile. Milano: Giuffrè, 1962, vol. I,p. 353- 365) na estruturação do processo de então (Antonio Nasi, Disposizione dei Diritto e Azione Dispositiva - Contributo alio Studio dei Principio Dispositivo nel Processo Civile di Cognizione. Milano: Giuffrè, 1965, p. 07 e ss.), alta mente liberal (Giovanni Tarello, II Problema delia Riforma Processuale in Italia nel Primo Quarto dei Secolo. Per uno studio delia Genesi Dottrinale e Ideológica dei Vigente Códice Italiano di Procedura (1977), Dottrine dei Processo Civile-Studi Storici sulla Formazione dei Diritto Processuale Civile. Bologna: II Mulino, 1989, p. 42-43). 52. Como observa, entre outros, Alessandro Giuliani, II Conceito di Prova - Contributto alia Lógica Giuridica. Milano: Giuffrè, 1971, p. 232 , nota de rodapé n. 1. 32 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS cessualística alemã da segunda metade dos Novecentos. O praxismo, com o seu iniludível estado de confusão entre direito e processo, perde espaço para um tratamento científico do direito processual civil, sendo precisamente aí fundada a nova ciência. Assim, o processualismo nasce com o conceito de relação jurídica processual (Prozessrechtsverháltni/3) , sendo esse o objeto da ciência processual.53 A partir daí a tarefa da doutrina cifra-se à racional cons trução do arcabouço de conceitos do direito processual civil. Não por acaso, aponta-se como marco inicial do processo civil o direito racional, presidido pelas altas e abstratas idéias inerentes ao clima científico da modernidade.54 Nem pode surpreender que já se tenha identificado na produção intelectual de Chiovenda um mentalismo conceituai exacerbado,55 já que o “doutrinarismo”56 dominou mesmo os primei ros tempos da história do direito processual civil57 - o que se deu, vale 53. A obra de Bülow, já citada, é tida como a “certidão de nascimento do di reito processual civil” (Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil (2001). 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, vol. I, p. 258). Antes de Bülow, contudo, a doutrina já esboçava a compreensão do proces so como relação jurídica. A ideia de que o processo é uma relação jurídica veio de Hegel (1770-1831), sendo lembrada mais tarde por Theobald von Bethmann-Holweg (1856-1921) para só então ser trabalhada por Bülow (Pontes de Miranda (1892-1979), Comentários ao Código de Processo Civil (1974). 4. ed. Rio dejaneiro: Forense, 1997, t. III, p. 435). 54. Knut Wolfgang Nòrr, Alcuni Momenti delia Storiografia dei Diritto Proces suale. Trad. Rosaria Giordano, Rivista di Diritto Processuale, p. 2. Padova: Cedam, 2004. 55. Giovanni Tarello, Quattro Buoni Giuristi per una Cattiva Azione (1977), Dottnne dei Processo Civile - Studi Storici sulla Formazione dei Diritto Pro cessuale Civile, a cura di R. Guastini e G. Rebuffa. Bologna: II Mulino, 1989, p. 243-246. 56. Na feliz e eloquente expressão de Sérgio Chiarloni, Introduzione alio Studio dei Diritto Processuale Civile. Torino: G. Giappichelli Editore, 1975, p. 8. 57. Assertiva que de modo nenhum pode ser motivo de assombro: o pano de fundo teórico-jurídico dos Oitocentos, com o seu positivismo lógico e o seu formalismo exacerbado, apontava mesmo para a tendência de tratar-se o direito, de um modo geral, como “um puro jogo de conceitos, manobrados por uma lógica exclusivamente formal e abstrata” (Luís Cabral de Moncada, O processo civil perante a filosofia do direito (1 9 4 5 ), Estudos de filosofia do PARTE I - A COLABORACÀO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 33 frisar, por absoluta necessidade, porque se tratava de fundar uma nova ciência, surgindo então a necessidade de se forjar todos os instrumentos conceituais necessários para o alcance de semelhante objetivo. As grandes linhas do direito processualcivil - enquanto disciplina autônoma - foram traçadas no processualismo, também por isso nor malmente chamado de período “conceitualista” ou “autonomista”.58 As discussões inerentes à ação, verdadeiro polo metodológico da nova ciência,59 60 61 e à caracterização de inúmeros outros institutos do processo civil (por exemplo, atos processuais, litispendência, eficácia de senten ça e coisa julgada), dominaram a atenção dos processualistas, crentes de que praticavam uma ciência pura,80 totalmente infensa a valores-uma ciência, enfim, eminentemente técnica81 (o Código Buzaid, de 1973, a propósito, é fruto eloquente dessa postura científica).62 A partir da obra de Oskar Bülow o processo deixa de ser mero pro cedimento, convertendo-se na abstrata relação jurídica, que obedece a pressupostos próprios de existência e validade.63 A jurisdição assume a condição de poder vocacionado já não mais à tutela dos direitos sub- direito e do Estado. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, vol. II, p. 172). 58. Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil (2001). 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, vol. I, p. 255. 59. Elio Fazzalari, La Dottrina Processualistica Italiana: dali “Azione” al “Pro cesso” (1864-1994), Rivistadi Diritto Processuale, p. 911. Padova: Cedam, 1994. 60. Álvaro de Oliveira, Procedimento e ideologia no direito brasileiro atual, Revista da Ajuris.p. 79, n. 33. Porto Alegre, 1985. 61. Portanto, despolitizada (conforme Giovanni Tarello, Storia delia Cultura Giuridica Moderna. Bologna: II Mulino, 1976, p. 16), reduzindo os seus operadores a verdadeiros “escravos do poder” (consoante Ovidio Baptista da Silva, Jurisdiçãoe execução na tradição Romano-Canónica (1996). 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 1997, p. 219). 62. Daniel Mitidiero, Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 37-38; Marinoni; Arenhart; Mitidiero, Novo curso de processo civil - Teoria do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2015, vol. I, p. 557 e ss. 63. Oskar Bülow, Die Lehre von den Processeinreden und die ngen. Giessen: Ernil Roth, 1868, p. 01-04. 34 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS jetivos, mas sim voltada à função de realizar o direito objetivo estatal e pacificar a sociedade.64 65 A ação deixa de ser compreendida como um apêndice do direito material, passando a representar um direito público subjetivo autônomo de ir a juízo e obter sentença.63 Nega-se, portan to, toda a perspectiva metodológica do praxismo: o direito judiciário converte-se em direito processual - passa-se de uma “ ” de inspiração privatista para um “ diritto ” de veio publicístico. É claro, porém, que esse clima processualista acabou por isolar demasiadamente o direito processual civil do direito material e da rea lidade social. Paulatinamente, o processo passa a perder o seu contato com os valores sociais. Quanto mais precisos ficavam os seus conceitos, quanto mais elaboradas as suas teorias, mais o processo se distanciava de suas finalidades essenciais.66 Ganha consistência, então, a ideia de que o direito processual civil - sem se descuidar de sua refinada dogmática já conquistada - deve ser encarado como um instrumento a serviço do direito material, atento às necessidades sociais e políticas de seu tempo. Surge, portanto, a perspectiva instrumentalista do direito processual civil, cujo arauto maior na doutrina brasileira veio a ser Cândido Rangel Dinamarco.67 64. Adolf Wach, Handbuch des Deutschen Civilprozessrechts. Leipzig: Duncker & Humblot, 1885 ,1.1, p. 04-05; entre nós, Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil (1974). 5. ed. Rio dejaneiro: Forense, 1997, t. I, p. XVIII. 65. Eduardo Couture (1904-1956), Fundamentos dei Derecho Procesal Civil (1942). 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1969, p. 57. 66. José Roberto dos Santos Bedaque, Direito e processo - Influência do direito material sobre o processo. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 17. 67. Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do p(1987). 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. Como assinalado, a primeira edição da obra é de 1987. Na realidade, a preocupação com a instrumentalidade do processo pode ser sentida muito antes da aludida obra de Dinamarco em ensaios seminais de Galeno Lacerda (como, por exemplo, O Código como sistema de adequação legal do processo, Revista do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul - Comemorativa do Cinquentenário, p. 161-170. Porto Alegre, 1976; O Código e o Formalismo Processual, Revista daAjuris, p. 07-14, n. 28. Porto Alegre, 1983). A ele, aliás, ao que se saiba, coube a primazia com o trato do tema na doutrina brasileira (rigorosamente, além dos ensaios antes PARTE I - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 35 Constitui mérito da obra de Cândido Rangel Dinamarco a su peração em larga escala da perspectiva puramente técnica do direito processual civil. A negação do caráter puramente técnico do processo, aliás, perpassa e informa toda a sua obra de cátedra.68 A perspectiva instrumentalista do processo assume o processo civil como um sistema que têm escopos sociais, políticos e jurídicos a alcançar, rompendo com a ideia de que o processo deve ser encarado apenas pelo seu ângulo interno.69 Em termos sociais, o processo serve para persecução da paz social e para educação do povo,70 no campo político, o processo afirma-se como um espaço para afirmação da au toridade do Estado, da liberdade dos cidadãos e para participação dos atores sociais,71 no âmbito jurídico finalmente ao processo confia-se a missão de concretizar a “vontade concreta do direito”.72 Essa nova postura conceituai pressupõe a relativização do binômio direito material e processo,73 uma maior interação entre a Constituição e o direito processual civil74 e a colocação da jurisdição como instituto-centro do sistema processual.75 Processo como ins trumento mais aderente ao direito material, de matriz constitucional lembrados, já em sua clássica tese de cátedra, publicada pela vez primeira em 1953, Galeno Lacerda preocupava-se com o tema da instrumentalidade do processo; apenas, na oportunidade, aludia à “função de economia do processo” para designar aquilo que a doutrina, posteriormente, passou a identificar com a ideia de instrumentalidade, conforme Despacho saneador (1953). 3. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1990, p. 05-06). O papel de destaque que se dá a Dinamarco nesse campo deve-se, no entanto, ao fato de a ideia de “instrumentalidade” ter ganhado a partir dele foros de ideia síntese de Escola. 68. Cândido Rangel Dinamarco , A instrumenta (1987). 8. ed. Sâo Paulo: Malheiros, 2000, p. 212, nota de rodapé n. 16. 69. Idem, p. 153-154. 70. Idem, p. 159-167. 71. Idem, p. 168-176. 72. Idem, p. 209-218. 73. Idem, p. 181 ess. 74. Idem, p. 24-30. 75. Idem, p. 77-82. 36 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS e com a jurisdição posta como novo polo metodológico do direito processual civil. Quanto às relações entre direito e processo, semelhante doutrina, sem deixar de reconhecer e problematizar a existência de “pontos de estrangulamento” nesse binômio,76 opta firmemente pela teoria du- alista do ordenamento jurídico (ou “declarativa”) em detrimento da teoria unitária (ou “constitutiva”) .77 Faz ponto firme de sua tomada de posição ao afirmar, por exemplo, que “a atividade declaratória do juiz constitui exercício de típica função reveladora”.78 De conseguinte, analisando as relações entre o órgão jurisdicional e o direito material, ainda na perspectiva das relações entre direito e processo, assevera que “o clima de legalidade ditado constitucionalmente no Estado de direito repele a institucionalização de sentenças contra legem, ainda que ‘a lei vigente conduza a resultados viciados ou injustos’”.79 A mesma solução calha para pautar as relações entre o juiz e o direito processual:“a ma nutenção do clima de segurança exige também o respeito à legalidade no trato do processo pelo juiz”.80 No plano das relações entre processo e Constituição, ressalta-se a existência do “direito processual constitucional”,81 que constitui a “condensação metodológica e sistemática dos princípios constitucio nais do processo”.82 Essa colocação metodológica revela ao processua- lista “dois sentidos vetoriais” em que se podem sentir as relações entre processo e Constituição: de um lado, na via Constituição-processo, “tem-se tutela constitucional deste e dos princípios que devem regê-lo, 76. Notadamente, três pontos de estrangulam ento: condições da ação, dis ciplina da prova e disciplina da responsabilidade patrim onial, Idem, p. 183. 77. Idem, p. 189 ess. 78. Idem, p. 194. 79. Idem, p. 199. 80. Idem, p. 200. 81. Idem, p. 24. 82. Ada Pellegrini Grinover; Antônio Carlos de Araújo Cintra; Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo (1974). 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 79. PARTE I - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCIPIO DO PROCESSO CIVIL 37 alçados a nível constitucional”;83 de outro, na perspectiva processo- -Constituição, “a chamada jurisdição constitucional, voltada ao contro le da constitucionalidade das leis e atos administrativos e à preservação de garantias oferecidas pela Constituição”.84 No que concerne, finalmente, à colocação da jurisdição como elemento central da teoria processual, assevera-se que não se pode mais colocar a ação como polo metodológico do direito processual, na medida em que essa orientação revela uma postura “individualista e restrita ao processo civil”,85 não considerando a teoria geral do processo. Ainda, sustenta-se, tampouco se pode guindar o processo à dignidade de instituto-chave do direito processual, porque esse “não é fonte substancial de emanação e alvo de convergência das idéias, princípios e estruturas que integram a unidade do direito processual”.86 Para essa visão, o processo, ademais, não pode ser encarado como polo atrativo dos demais institutos de direito processual,87 porquanto “marcada- mente formal”, traz “profunda e indisfarçável marca de formalismo”. Portanto, a jurisdição ocupa o lugar de destaque na teoria do processo, haja vista que essa constitui uma manifestação do poder estatal exercido pelos juizes para consecução dos fins do próprio Estado.88 83. Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do p(1987). 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 25. 84. Idem, ibidem. 85. Idem, p. 79. 86. Idem, ibidem. 87. Idem, ibidem. 88. Consoante Dinamarco, “mediante a utilização do sistema processual, propõe-se o Estado, antes de tudo, a realizar objetivos que são seus. Quer se pense na pacificação social, educação para o exercício e respeito a direitos, ou na manutenção da autoridade do ordenamento jurídico- -substancial e da sua própria, nas garantias à liberdade, na oferta de meios de participação dem ocrática, ou mesmo no objetivo ju ríd ico- -instrumental de atuar a vontade da lei (e tais são os escopos da ordem processual) - , sempre é algo ligado ao interesse público que prepondera na justificação da própria existência da ordem processual e dos institutos, princípios e normas que a integram. Preestabelecidos os fins do Estado, ele não dispensa o poder para caminhar na direção deles; e, precisando 38 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS É interessante a compreensão do processo civil a partir de um ponto de vista mais amplo que não o meramente processual-vale dizer, interno ao próprio processo. Essa é uma importante contribuição do instrumentalismo. Todavia, não é possível confundir escopos comuns a toda a atuação estatal com o escopo do processo civil. O processo civil visa a dar tutela aos direitos89 - e não propriamente pacificar a socieda de ou educá-la. Além disso, é possível colocar em xeque igualmente a maneira como se articulam as soluções dos problemas atinentes i) às relações entre o direito material e o direito processual, ii) às relações entre o processo civil e a Constituição e iii) a colocação da jurisdição no centro da teoria do processo civil. exercer o poder, precisa também o Estado de direito estabelecer as regras pertinentes, seja para endereçar com isso a conduta dos seus numerosos agentes (no caso, os juizes), seja para ditar condições, limites e formas do exercício do poder. Em torno deste, portanto (no caso, em torno da jurisdição), é que gravitam os demais institutos do direito processual e sua disciplina. Porque os órgãos que exercem o poder speciejurisdictionis são inertes, é necessária a provocação do interessado: e por isso é que o ordenamento jurídico institui e modela a ação, como poder de exigir do Estado o exercício da jurisdição. Porque o exercício acabado da jurisdi ção projetará efeitos sobre a esfera jurídica de pelo menos duas pessoas, é natural que a ambas seja dada oportunidade de influir participando: e daí a consagração da defesa como instituto fundamental, sendo garantida constitucionalmente com referência a qualquer processo. Porque o exer cício desses três poderes não pode ser desordenado, nem arbitrário o da jurisdição, nem ilimitado qualquer deles, é preciso um plano para a sua coordenação: e tal é o procedimento ditado em lei e que, para cumprimen to da regra constitucional do contraditório, assenta sobre as situações jurídicas ativas e passivas integrantes de uma relação juríd ica de direito público (é o processo, em sua estrutura com plexa). Como se vê, da visão publicista da ordem processual, a partir de seus objetivos e inserção no sistema político-jurídico da nação, deflui com muita naturalidade a jurisdição ao centro” (Idem, p. 77-78). 89. Daniel Mitidiero, A tutela dos direitos como fim do processo civil no estado constitucional, Revista de Processo, n. 229. São Paulo: Ed. RT, 2014; Daniel Mitidiero, Cortes Superiores e Cortes Supremas - Do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente(2013). 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 23 e ss.; Marinoni; Arenhart; Mitidiero, Novo curso de processo c iv il- Teoria do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2015, vol. I,p . 151-152. PARTE I - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 39 Sem negar a teoria dualista do ordenamento jurídico,90 não se pode mais afirmar que à jurisdição cumpra tão somente uma decla- ratória da ordem jurídica preestabelecida pelo legislador. A revolução no campo do significado da interpretação do direito dos Novecentos legou aos livros de história do processo civil semelhante visão do pro blema.91 Diga-se o mesmo das lições de nossa doutrina no sentido de 90. Contra, formulando uma proposta monista para compreensão do orde namento jurídico, Darci Guimarães Ribeiro, La Pretensión Procesal y la Tutela Judicial Efectiva - Hacia una Teoria Procesal dei Derecho. Barcelona: Bosch, 2004. É preciso perceber, contudo, que o direito objetivo não se limita a hierarquizar os interesses sociais. As proposições textuais - em que muitas vezes vão implicadas preferências sobre necessidades, bens e interesses - obviamente não são ainda normas, mas inequivocamente oferecem grande parte da sua matéria-prima. Talvez aí resida o equívoco de Darci Guimarães Ribeiro: afirmar que o papel do juiz é criativo porque os dispositivos ainda não são normas. É certo que a norma que irá disciplinar o caso concreto aparece com a interpretação do Direito. Se esse momento é judicial, então o seu aparecimento ocorre no processo. Isso não autoriza, contudo, a afirmação de que antes do processo inexistem d ireitos-ou , dito de outro modo, que o direito objetivo não cria direitos. O papel do juiz no processo é de reconstrução da ordem jurídica a partir de dados preexistentes. Até meados do século XX existiam basicamente duas alternativas para o problema: entendia-se a jurisdição como atividade declaratória da norma preexistente e então se caracterizava a ordem jurídicacomo uma ordem dualista ou então se entendia a jurisdição como atividade criativa da norma e então se caracterizava o monismo do ordenamento jurídico. A percepção, contudo, de que texto e norma não se confundem, de que a interpretação é adscritiva de sentido e que a aplicação da norma não é meramente lógico- -indutiva fizeram com que aparecesse uma nova maneira de compreender o dualismo da ordem jurídica - não mais a simples e ingênua declaração, mas a reconstrução da ordem jurídica no processo. 91. Humberto Ávila, Teoria dos princípios (2003). 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 50-55; Daniel Mitidiero, Cortes Superiores e Cortes Supremas - Do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente (2013). 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014; Marinoni; Arenhart; Mitidiero, Novo curso de processo civil - Teoria do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2015, p. 47-52; Giovanni Tarello, LIntepretazione delia Legge.Milano: Giuffrè, 1980; Riccardo Gua stini, InterpretareeArgomentare. Milano: Giuffrè, 2011; Pierluigi Chiassoni, Técnica deli Interpretazione Giuridica. Bologna: 11 Mulino, 2007; Adalberto Hommerding, Fundamentos para uma compreensão hermenêutica do processo 40 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS que o juiz oferece ao mundo sempre algo novo - sempre a reconstrução da ordem jurídica a partir do diálogo judiciário - gravado pelo selo da imperatividade da jurisdição.92 civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 135 e ss.; na doutrina italiana, Giuseppe Zaccaria, EErmcneutica e la Teoria dei Diritto (1989), EArteddl’lnterpretazione-Saggisull’Ermeneutica Giuridica Contemporânea. Padova: Cedam, 1990, p. 71-118. 92. Álvaro de Oliveira, O problema da eficácia da sentença (2003), Polêmica sobre a ação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 50-51: “deve-se atentar cm que o direito material constitui a matéria-prima com que irá trabalhar o juiz, mas sob uma luz necessariamente diversa. O resultado desse trabalho, que é a tutela jurisdicional, refletida na eficácia da sentença, já não apresenta o direito material em estado puro, mas transformado, em outro nível qualitativo. O provimento jurisdicional, embora certamente se apoie no direito material, apresenta outra força, outra eficácia, e com aquele não se confunde, porque, além de constituir resultado de trabalho de reconstrução e até de criação por parte do órgão judicial, exibe o selo da autoridade estatal, proferida a decisão com as garantias do devido processo legal”. Igualmente, Ovidio Baptista da Silva, Processo e ideologia - O para digma racionalista. Rio dejaneiro: Forense, 2004, p. 26-27: “este modo de compreender o fenômeno jurídico [refere-se Ovidio à geometrização do direito] tornou-se anacrônico. Hoje ninguém mais duvida de que o processo não tenha por finalidade produzir verdades e que a lei admite duas ou mais soluções legítimas, como já proclamara Kelsen. Depois de haver François Gény, nos albores do século XX, denunciado a ilusão de imaginar a lei como um ‘sistema dotado de exatidão matemática', ou de advertir Goldschmidt que a futura sentença nada mais é do que um ‘prognóstico’ que perdurará como simples prognóstico até que se conheça seu conteúdo, depois de Chaim Perelman investir-se na condição de um Aristóteles moderno, construindo a ‘nova retórica’, ou de Theodor Viehweg recuperar a tópica aristotélica e de Luis Recasens Siches postular para a interpretação jurídica o ‘logos de lo humano' ou de Jo razonable’, ou depois de Josef Esser - para citar apenas alguns dos mais expressivos do moderno pensamento jurídico - haver transferido para o Direito as proposições básicas de Gadamer; afinal, depois de tudo o que apreendemos com o chamado realismo americano - nosso sistema permanece petrificado, na suposição de que juizes continuam irresponsáveis, enquanto a ‘boca da lei’, com o desejava o aristocrático Montesquieu, e de que o processo seria um milagroso instrumento capaz de descobrir a ‘vontade concreta da lei’ (Chiovenda)”; Hermes Zaneti Jr., A constitucionalização do processo (2007). 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p- PARTE I - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 41 Na mesma linha, igualmente não se pode mais sustentar que o juiz, diante do direito material e do direito processual, encontra-se atado a uma pauta de legalidade. A pauta do direito contemporâneo é a juridicidade, que aponta automaticamente à ideia de justiça,93 a qual forma o substrato material ao lado da constitucionalidade e dos direi tos fundamentais do Estado Constitucional.94 O juiz tem o dever de interpretar a legislação à luz da Constituição95 (art. l.° do CPC/2015). Esses são os novos contornos do princípio da legalidade no Estado Constitucional.96 No que tange ao direito material, registra-se que “o direito é círculo maior a ultrapassar a mera regra de lei”.97 Nesse sentido, a “decisão judicial pode revestir características praeter legem e even tualmente até contra legem. Nunca, porém contrária ao direito”.98 Trata-se de solução afinada com a importante preocupação da teoria do direito com a justiça das decisões judiciais.99 De acordo ainda com a necessidade de prolação de uma “decisão de mérito justa e 189 e ss.; na doutrina italiana, ainda, Elio Fazzalari, Sentenza. II-Sentenza Civile, Enciclopédia dei Diritto. Milano: Giuffrè, 1989, vol. XLI,p. 1.251. 93. JoséJoaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição (1997). 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 239-241. 94. Idem, p. 239. 95. Sobre o impacto do advento do Estado Constitucional, consulte-se, por todos, Gustavo Zagrebelsky, II Diritto Mite-Legge, Diritti, (1992). Torino: Einaudi, 2005, p. 20 e ss. 96. Marinoni; Arenhart; Mitidiero, Novo curso de processo civil - Teoria do pro cesso civil. São Paulo: Ed. RT, 2015, vol. I, p. 53-66. 97. Álvaro de Oliveira, Doformalismo no processo civil (1997). 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 283. 98. Idem, ibidem. 99. Conforme, na teoria do direito, Karl Larenz, Metodologia da ciência do di reito (1960). Trad. José Lamego (1986). 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 190-201; no âmbito da filosofia do direito, Michel Villey, Philosophie du Droit - Définitionset Fins du Droit (1980). Les Moyens duDroit (1982). Paris: Dalloz, 2001, p. 39-41. Na doutrina brasileira, Juarez Freitas alude à “máxima justiça possível” como sendo o resultado ideal da interpretação do direito (Juarez Freitas , (1995). 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 140 e ss.). 42 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS efetiva” como fim do processo civil (art. 6.° do C P C /2 0 1 5 )100 - ou, mais precisamente, como meio de prestação de tutela aos direitos na sua dimensão particular.101 Outra solução não se oferece ao problema quando se passa a analisá-lo na perspectiva do direito processual. A observância do sim ples processo legal cede às exigências ligadas à conformação de um processo justo.102 O fato desse se encontrar em permanente construção ante as necessidades evidenciadas pela riqueza inesgotável dos casos concretos, registrado pela doutrina,103 impede de acorrentá-lo sempre e aprioristicamente a prévias e abstratas soluções infraconstitucionais - daí a necessidade de se pensar, inclusive, o direito de ação como direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva mediante processo justo (arts. 5.°, XXXV, LIV e LXXVIII da C F/1988, e 1 ° , 3 o e 4.° do CPC/2015). 100. Álvaro de Oliveira, Do formalismo no processo civil (1997). 4. ed. São Pau lo: Saraiva, 2010, p. 283. Nesse mesmo sentido, ainda, consulte-se Sérgio Corazza, Sobreprincípio da máxima de justiça, Gênesis Revista de Direito Processual Civil, p. 396-426, n. 40. Curitiba: Gênesis, 2006. 101. Daniel Mitidiero, A tutela dos direitos como fim do processo civil no estado constitucional, Revista de Processo, n. 229. São Paulo: Ed. RT, 2014; Daniel Mitidiero,Cortes Superiores e Cortes Supremas - Do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente (2013). 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014; Ma- rinoni; Arenhart; Mitidiero, Novo curso de processo civ il-T eoria do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2015, vol. I. 102. Para uma crítica da expressão devido processo legal, Daniel Mitidiero, Direito fundamental ao processo justo, Revista de Direito Civil e Processual Civil. n. 45. Porto Alegre: Magister, 2011; Marinoni; Arenhart; Mitidiero, Novo curso de processo civil - Teoria do processo civil. São Paulo: Ed.RT, 2015, vol. I. 103. Na doutrina brasileira, Daisson Flach, Processo e realização constitucional: a construção do “devido processo”. In: Guilherm e Rizzo Amaral; Márcio Louzada Carpena (coords.), Visões críticas do processo civil brasileiro - Uma homenagem ao Prof. Dr. José Maria Rosa Tesheiner. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 11-30 ; na doutrina italiana, Giovanni Verde, Giustizia e Garanzie nella Giurisdizione Civile, Rivisía di Diritto Processuale, p. 308. Padova: Cedam, 2000. Para um m aior detalhamento bibliográfico, consulte-se, ainda, Daniel M itidiero, Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 127-128. PARTE I - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 43 O relacionamento entre o direito processual civil e o direito cons titucional, de seu turno, também evoluiu sensivelmente. Para além da tutela constitucional do processo (constitucionalização das normas jurídicas fundamentais de processo) e da jurisdição constitucional, importa observar a incorporação no âmbito do direito processual civil da metodologia constitucional, com inequívoco destaque para o incremento teórico propiciado pela nova teoria das normas,104 aí incluído obviamente o tema da interpretação, e para o processo civil encarado na perspectiva dos direitos fundamentais.105 106 Enquanto a pri meira constitucionalização do processo teve por desiderato incorporar normas processuais na Constituição, a segunda constitucionalização visa atualizar o discurso processual civil com normas principiológi- cas e com normas que visam regular a aplicação de outras normas (os postulados normativos), além de empregar como uma constante a eficácia dos direitos fundamentais para solução dos mais variegados problemas de ordem processual. Em termos de metódica constitucional, o Estado Constitucional incorporou na pauta do direito o modo de pensar por princípios (o “ diritto per principi”) ,106 o que inclusive fez o direito voltar a ser en carado como “juris pnidentia” e não mais tão somente como juris”,107 tornando a evidenciar o seu caráter marcadamente prático108 - tendencialmente sufocado pelo pensamento “moregeométrico”, pró prio do direito do Estado dos Oitocentos, cujo “espelho e metáfora”109 104. Humberto Ávila, Teoria dos princípios - Da definição à aplicação dos princípios jurídicos (2003). 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. 105. Álvaro de Oliveira, O processo civil na perspectiva dos direitos fundamen tais (2003), In :_______; Carlos Alberto (orgs.), Processo e Constituição. Rio dejaneiro: Forense, 2004, p. 01-15; Luiz Guilherme Marinoni, O direito à efetividade da tutela jurisdicional na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais, Gênesis Revista de Direito Processual Civil, n. 28. Curitiba: Gênesis, 2003. 106. Gustavo Zagrebelsky, IIDirittoMite-Legge,Diritti, Giustizia (1992). Torino: Einaudi, 2005, p. 151. 107. Idem, p. 167-173. 108. Idem, p. 163-167. 109. Judith Martins-Costa , A boa-fé no direito privado(1999). reimp. São Paulo: Ed. RT, 2000, p. 169. 44 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS constituiu o movimento codificatório (que encerra fundamentalmente um “dirittoper regole”) .110 Nesse espaço surge ainda uma nova proposta de classificação das normas, responsável pela boa acomodação teórica de normas como a igualdade, a ponderação, a razoabilidade e a propor cionalidade na categoria dos postulados normativos.111A importância de normas dessa espécie para a prática do direito contemporâneo é um dado assente. O direito processual civil evidentemente não poderia restar infenso a essa influência. Ainda, o regime eficacial dos direitos fundamentais112 trouxe inegável contribuição à compreensão e à aplicação do direito proces sual civil. A teorização acerca da aplicabilidade imediata e da plena eficácia dos direitos fundamentais (art. 5.°, § I o, da C F /1988),113 da interpretação conforme aos direitos fundamentais114 e da vinculação do Estado e dos particulares aos direitos fundamentais115 constituem aspectos que já não se podem mais ignorar no momento da aplicação do processo civil.116 Não por acaso, o art. l.° do C PC/2015, tem exa 110. Gustavo Zagrebelsky, IIDirittoMite-Legge, Diritti, Giustizia ( 1992). Torino: Einaudi, 2005, p. 151. 111. Humberto Ávila, Teoria dos princípios (2003). 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 163 e ss. Consoante a proposta de Humberto Ávila, as normas podem ser divididas em princípios, regras (normas de primeiro grau) e postulados normativos (normas de segundo grau). Muito brevemente, os princípios são normas de finalidade; as regras, normas de conduta e os postulados, normas de método. 112. Ingo Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais (1998). 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 241 e ss. 113. Idem, p. 271 ess. 114. José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (1983). 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 154-155. 115. Ingo Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais (1998). 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 381 e ss. 116. Para uma aplicação da teoria dos direitos fundamentais no âmbito do pro cesso civil, consulte, entre outros, Álvaro de Oliveira, O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais (2003), Processo e Constituição. Ri° dejaneiro: Forense, 2004, p. 01-15 ; Luiz Guilherme Marinoni, O direito à efetividade da tutela jurisdicional na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais, Gênesis Revista de Direito Processual Civil. n. 28. Curitiba: PARTE I - A COLABORAÇAO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 45 tamente a função de colocar o seu intérprete nessa trilha: ‘ o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código*. Pensar o processo civil sem esses aportes oriundos da teoria do direito e do direito constitucional (isto é, da Constituição, que é a forma histórica do direito do nosso tempo, tal como fora o ^Código” a forma histórica da legislação, por excelência, dos Oitocentos)117 sig nifica mantê-lo refém de uma postura descompassada das exigências do direito contemporâneo e, portanto, fundamentalmente alheio à sociedade civil - em suma, as determinantes culturais de nossa época. Finalmente, a jurisdição não pode mais ser colocada como centro da teoria do processo civil. Insistir nessa postura revela uma visão um tanto quanto unilateral do fenômeno processual, sobre ignorar a dimensão essencialmente participativa que a democracia logrou alcançar na teoria do direito constitucional hodiemo. Já diziam as nossas Ordenações Afonsinas (o que fora repetido tanto pelas Manuelinas, Livro III, Título XV, próemio, como pelas Fili pinas, Livro III, Título XX, próemio) que para composição dojuízo “£aõ neceffarias três peffoas, o Juiz, Autor, e Reo; o Autor pera demandar, e o Reo pera fe defender, e o Juiz perajulguar” (Livro III, Título XX, § 1.°).118 Vale dizer: processo é ato de três pessoas (“ est actum írium Gênesis, 2003; Marcelo Lima Guerra, Direitos do credor na execução civil. São Paulo: Ed. RT, 2003; Daniel Mitidiero, Processo civil e Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. 117. NatalinoIrti, Idea dei Códice Civile, (1995). 7. ed. Roma: Laterza, 2005, p. 21. Sobre o assunto, ainda, Pietro Rescigno, La “Forma” Códice: Storia e Geografia di una Idea, Rivista di Diritto Civile, p. 29-35. Padova: Cedam, 2002. 118. Sobre o significado da palavra “juízo” no contexto do direito comum (e, pois, das nossas Ordenações, exemplo por excelência desse período, con forme atesta, por todos, Enrico Tullio Liebman, Istituti dei Diritto Comune nel Processo Civile Brasiliano (1948), Problemi dei Processo Civile. Napoli: Morano, 1962, p. 498), vide Nicola Picardi, Processo Civile: c) Diritto Moderno, Enciclopédia dei Diritto. Milano: Giuffrè, 1987, vol. XXXVI, p. 101-118. 46 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS personarum”) .119 Não se nega, evidentemente, o papel fundamental que se atribui à jurisdição no quadro do processo. De modo nenhum. Antes, reforça-se a condição das partes, igualmente fundamental, para o bom desenlace do processo. A divisão de trabalho ideal no processo civil encerra um justo equilíbrio entre as posições jurídicas das partes e do juiz.120 Não por outra razão, o Código de Processo Civil enuncia com o uma de suas normas fundamentais a colaboração (art. 6.° do C P C /2015), deslocando o centro do processo civil da atuação do juiz para o trabalho em conjunto do juiz com as partes. Essa ideia de processo como polo metodológico central da teoria do processo civil contem porâneo bem responde ao caráter essen cialmente problemático assumido pelo direito atual,121 cuja solução concorrem , argumentativamente, todos aqueles que participam do 119. Giovanni Verde, Profili dei Processo Civile (1 9 7 8 ). 6. ed. Napoli: Jovene, 2002, vol. I, p. 107, repetindo a célebre definição atribuída a Bulgarus (1 .115-1 .166), Summa d ejudiciis (1 .1 4 1 ), Título VIII, conforme Nicola Picardi, I - Processo Civile: c) Diritto Moderno, Enciclopédia dei Diritto. Milano: Giuffrè, 1987, vol. XXXVI, p. 102. 120. Álvaro de Oliveira, Do formalismo no processo civil(1 9 9 7 ). 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 87. 121. Norbert Horn, Einführung in die Rechtswissenschaft and Rechtsphilosophie (1996). 5. ed. Heidelberg: C. E Müller, 2011, p. 132-133. O movimento pela revalorização da dialética e do pensar problemático para o direito teve em Theodor Viehweg (1907-1988) o seu precursor com a obra Topik und Jurisprudenz. München: C. H. Beck, 1953, em que o professor alemão rei vindica a tópica e a dialética de Aristóteles para caracterizar o pensamento jurídico como um pensamento essencialmente problemático (Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito (1960). Trad. José Lamego (1986). 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 211). Ademais, para uma exposição geral da obra de Viehweg, consulte-se, entre outros, Luis Recasens Siches (1903-1977), Panorama dei Pensamiento Jurídico en el Siglo Mé xico: Porrúa, 1963, t II, p. 1 .060-1 .080 ; para um debate entre pensamento sistemático e pensamento tópico, Claus-Wilhelm Canaris, Systemdenken und Systembegriffin derJurisprudenz(1969). 2. ed. Berlin: Duncker & Humblot, 1983, p. 135 e ss.; para uma conjugação da tópica e do sistema, consulte-se Judith Martins-Costa, A boa-Jé no di (1 9 9 9 ). reimp. São Paulo: Ed. RT, 2000, p. 39 e ss.; Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito (1995). 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 146 e ss. PARTE l - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 47 feito. A propósito, a passagem da jurisdição ao processo corresponde, em termos de lógica jurídica, à passagem da lógica apodítica à lógica dialética: do monólogo jurisdicional ao diálogo judiciário.122 Não por acaso, ao lado da colaboração, o novo Código prevê como um de seus compromissos fundamentais a fiel observância pelo juiz e pelas partes do direito ao contraditório (arts. 9.° e 10 do C PC/2015). Ademais, a democracia participativa, tida mesmo como um di reito fundamental de quarta dimensão,123 sugere a caracterização do processo como um espaço privilegiado de exercício direto de poder pelo povo.124 Nessa quadra, potencializa-se o valor da participação no processo, incrementando-se as posições jurídicas das partes no pro cesso a fim de que esse se constitua firmemente como um democrático ponto de encontro de direitos fundamentais125 (arts. l.°, 7.°, 9.° e 10 do CPC/2015). É importante perceber, por último, que não cabe argumentar contra a colocação do processo como polo metodológico da teoria do processo civil com o seu pretenso caráter “marcadamente formal”.126 Processo não é sinônimo de direito formal127 - na verdade, processo 122. Álvaro de Oliveira, A garantia do contraditório (1998), Do formalismo no processo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 227 e ss. 123. Paulo Bonavides, Teoria do Estado (1967). 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 475. Mais extensamente, Paulo Bonavides, Teoria constitucional da democracia participativa (2001). 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. 124. Darci Ribeiro, O papel do processo na construção da democracia: para uma nova definição de democracia participativa (2009), Da tutela jurisdicional às formas de tutela. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 105. 125. Marinoni; Arenhart; Mitidiero, Novo curso de processo civil - Teoria do pro cesso civil. São Paulo: Ed. RT, 2015, vol. I, p. 431 e ss.; na doutrina italiana, Elio Fazzalari, Procedimento: I - Procedimento e Processo (Teoria Generale), Enciclopédia dei Diritto. Milano: Giuffrè, 1986, vol. XXXV, p. 820. 126. Como sustentado por Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo (1987). 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 79. 127. Galeno Lacerda, Comentários ao Código de Processo Civil (1980). 7. ed. Rio dejaneiro: Forense, 1998, vol. VIII, 1.1, p. 23-24; Hermes ZanetiJr., A constitucionalizãção do processo (2007). 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 207 e ss. 48 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS justo constitui antes de tudo processo substancializado em sua estru tura íntima mínima pela existência de direitos fundamentais. Tendo em conta todo o exposto, parece-nos que o processo civil brasileiro já se encontra mergulhado em sua quarta fase metodológica, tendo sido superada a fase instrumentalista. Com efeito, da instrumen talidade passa-se à compreensão do processo civil no Estado Constitucio nal, que ora se assume como um verdadeiro método de pensamento e programa de reforma de nosso processo.128 Trata-se de uma nova visão metodológica, uma nova maneira de pensar o direito processual civil. E xistem várias expressões que visam delinear essa quar ta fase m etodológica. Dentre as mais conhecidas encontram-se o “neoprocessualismo”129 e o “formalism o-valorativo”130 - expressão inclusive utilizada nas edições anteriores deste livro. Ambas são boas expressões. A expressão neoprocessualismo pretende uma ancoragem direta com o neoconstitucionalism o. Com isso, a sua invocação pretende apontar para “um dos principais aspectos deste estágio metodo lógico dos estudos do direito processual: a revisão das categorias processuais (cuja definição é a marca do processualismo do final dos Oitocentos e meados dos N ovecentos), a partir de novas premissas teóricas, o que justifica o prefixo ‘neo’”.131 O principal problema da expressão, porém , está justam ente nessa imediata ligação: ao solidarizar o novo processo civil com o neoconstitucionalismo, a doutrina colabora com o esfumaçamento do pano de fundo teórico 128. Parafraseando-se notoriamente Mauro Cappelletti, Acesso alia Giustizia come Programma di Reforma e come Método di Pensiero, Rivista di Diritto Processuale, p. 233 e ss. Padova: Cedam, 1982. 129. Fredie Didier Jr., Curso de direito processual civil (2003). 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2010, vol. I, p. 28-29; Eduardo Cambi, Neoconstitucionalismoe neoprocesssualismo - Direitos fundamentais, políticas pública e protagonismo Judiciário. SãoPaulo: Ed. RT, 2009, p. 115. 130. Expressão notoriamente devida a Álvaro de Oliveira, Do formalismo no processo civil (1997). 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, incorporada inclusive como subtítulo a partir da 3 edição (2009). 131. Fredie Didier Jr., Curso de direito processual civil (2003). 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2010, vol. I, p. 28. PARTE I - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 49 - em termos de teoria geral do direito - com que o processo civil necessariamente tem de lidar.132 A expressão formalismo-valorativo padece de dois problemas. O primeiro deles é que a expressão “formalismo” carrega um sen tido negativo,133 normalmente relacionado no plano do processo àquilo que foi bem identificado pela doutrina como “formalismo pernicioso”.134 Aliás, a ressignificação do termo “formalismo” ope rada pela doutrina135 não foi capaz de realçar o seu conteúdo posi tivo - que, de seu turno, continuava bem associado ao conceito de procedimento, aí entendido como conjunto de posições processuais que visa disciplinar a interação entre os participantes do processo e promover o adequado desenvolvimento do processo. O segundo deles é ainda mais profundo: no campo da teoria do direito, existe um amplo debate a respeito do formalismo jurídice do formalismo inter- pretativo136- que em nada se confunde com o conceito de formalismo processual e de formalismo-valorativo. A identidade terminológica, no entanto, contribui para identificações e assimilações teóricas indevidas.137 Essa é a razão pela qual também sob o ponto de vista da 132. Para uma crítica do neoconstitucionalismo enquanto movimento teórico, Humberto Ávila, “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”, vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio dejaneiro: Lumenjuris, 2009, p. 187-202. 133. No plano do processo, A. Troller, Dos fundamentos do formalismo processual civil (1945). Trad. Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2009, p. 15; no plano da teoria do direito, Frederick Schauer, For- malism, The Yale Law Journal, 1988, n. 97. 134. Álvaro de Oliveira, O formalismo-valorativo no confronto do formalismo excessivo, Gênesis Revista de Direito Processual Civil, n. 39. Curitiba, 2006. 135. Álvaro de Oliveira, Do formalismo no processo civil (1997). 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 28-31. 136. Norberto Bobbio (1909-2004), II Positivismo Giuridico-Lezioni di Filosofia dei Diritto (1960-1961). Torino: Giappichelli, 1996, p. 143-145; Mariojori e Anna Pintore, Manuale di Teoria General (1970). 2. ed. Torino: Giappichelli, 1995, p. 123-130. 137. Como aquela formulada por Lênio Strecke Francisco Motta, Um debate com (e sobre) o formalismo-valorativo de Daniel Mitidiero, ou “colaboração no 50 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS teoria do direito a palavra formalismo mais turva do que esclarece - o que acaba recomendando a sua substituição. Daí que se opta simplesmente por referir que o processo civil deve ser, sistematicamente, interpretado e aplicado a partir das raias do Estado Constitucional e pelos avanços teóricos que os Novecentos portaram para a compreensão do direito como um todo, porque antes de tudo ele encerra um processo cuja estruturação responde, de um lado, a valores constitucionais e a direitos fundamentais138 (art. l.° do CPC/2015), e, de outro, ao caráter interpretativo do direito139 (é por essa razão, a propósito, que as Cortes Supremas devem dar unidade ao direito provendo segurança jurídica a partir de um direito coerente e universalizável, art. 926 do CPC/2015). Nessa perspectiva, o proces so aparece marcado pelos valores liberdade, igualdade, participação, segurança e justiça (arts. l.° , 7.°, 8.°, 9.° e 10 do C PC /2015), base axiológica da qual ressaem princípios, regras e postulados para sua elaboração dogmática, organização, interpretação e aplicação. Vale dizer: do plano axiológico ao plano deontológico. A compreensão do processo civil na perspectiva do Estado Cons titucional - e, portanto, dos direitos fundamentais processuais - é o pano de fundo que alimenta toda a interpretação e aplicação do processo civil atual (art. 1,° do C PC /2015). A consciência do caráter cultural do direito processual civil e de seu íntimo relacionamento com a teoria do direito, com o direito material e com direito constitucional evidenciam a necessidade de se pensar o processo civil a partir de uma renovada base teórica. Isto é, a partir de um caldo de cultura capaz não só de oferecer processo civil” é um princípio?, Revista de Processo, p. 13-34, n. 213. São Paulo: Ed. RT, 2012. 138. Sobre a diferença, na teoria dos valores, entre o “ter valor” e o “ser um valor”, consulte-se Robert Alexy, Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, p. 127 e ss. 139. Giovanni Tarello, Llnterpretazione delia Legge. Milano: Giuffrè, 1980, p. 09; Riccardo Guastini, Interpretare e Argomentare. Milano: Giuffrè, 2011, p. 08; Pierluigi Chiassoni, Técnica deWlnterpretazione Giuridica. Bologna: 11 Mulino, 2007, p. 142; Humberto Ávila, Teoria da segurança jurídica (2011)- 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 151; Marinoni; Arenhart; Mitidiero, Novo curso de processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2015, vol. I, p. 50-52. PARTE I - A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO DO PROCESSO CIVIL 51 soluções constitucionalmente comprometidas com um ângulo interno de análise do processo (como, por exemplo, aquele ligado à equilibrada distribuição do trabalho entre o juiz e as partes - a que a colaboração procura oferecer uma resposta), mas também com um ângulo externo (como, por exemplo, aquele ligado à tutela dos direitos).140 Um dos frutos mais evidentes dessa nova postura teórica é o novo Código de Processo Civil - e, mais especificamente, a previsão de normas fundamentais como compromissos centrais do legislador para com a Justiça Civil (arts. l .°a 12 do CPC/2015).141 É sintomática essa abertura: se olharmos para a ZPO alemã, de 1877, e para o Códice di Procedura Civile italiano, de 1942, perceberemos que em ambos os casos o legislador principia tratando da jurisdição: a ZPO dedica o seu § l.° à competência material dos tribunais (“ ”), ao passo que o Códice alude em seu art. l.°à jurisdição Cgiurisdizione dei giudici ordinari”). Se, porém, saltarmos no tempo, veremos que o Nouveau Code de Procédure Civile francês, de 1975, não inicia da mes ma maneira: ele começa enunciando princípios diretores do processo (“príncipesdirecteurs du procès'\ arts. l.° a 24). O legislador inglês igualmente inicia anunciando o seu objetivo fundamental (“ objective”, Rule 1.1). Nosso novo Código de Processo Civil segue nesse particular esse último caminho: desde o início, o legislador entorna normasfundamen- 140. Apontando a necessidade de o processo civil conjugar ambos os ângulos, Vicente de Paula Ataíde Júnior, Processo civil pragmático, Tese de Doutora do, UFPR, Orientador Professor Doutor Sérgio Cruz Arenhart, 2013. Para compreensão do processo civil a partir da tutela dos direitos em sua dupla dimensão (particular - ligada à produção de uma “decisão de mérito justa e efetiva”, art. 6.° do CPC/2015 - e geral - ligada à promoção da unidade do direito pelos precedentes, enriquecendo-o de forma segurança, coerente e universalizável, art. 926 do CPC/2015), Marinoni; Arenhart; Mitidiero, Novocursodeprocessocivil-Teoriadoprocessocivil. São Paulo: Ed. RT, 2015, vol. I; Daniel Mitidiero, Cortes Superiores e Cortes Supremas (2013). 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014; Daniel Mitidiero, A tutela dos direitos como fim do processo civil no Estado Constitucional, RePro n. 229. São Paulo: Ed. RT, 2014. 141. Marinoni; Arenhart; Mitidiero, Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Ed. RT, 2015, p. 90. 52 COLABORAÇÃO NO PROCESSO CIVIL - PRESSUPOSTOS SOCIAIS, LÓGICOS E ÉTICOS tais que servem para densificar o direito ao processojusto previsto na Constituição (art. 5.°, LIV) e daras linhas-mestras que o estruturam. Dentre essas normas, consta do art. 6.°: “Todos os sujeitos do proces so devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. Se adotada uma chave de leitura apropriada, trata-se de norma da mais alta importância que ao mesmo tempo visa caracterizar o processo civil brasileiro a partir de um modelo e fazê-lo funcionar a partir de um princípio: o modelo cooperativo de processo civil e o princípio da colaboração.142 143 2. Colaboração como modelo 2. 7 Pressupostos culturais A colaboração é um modelo que visa dividir de maneira equilibrada as posições jurídicas do juiz e das partes no processo civil, estruturando-o como uma verdadeira comunidade de trabalho ( em que se privilegia o trabalho processual em conjunto do juiz e das partes ( prozessualen Zusammenarbeit). 144 Em outras palavras: visa a dar feição ao aspecto subjetivo do processo, dividindo de forma equilibrada o tra balho entre todos os seus participantes - com um aumento concorrente dos poderes do juiz e das partes no processo civil.145 142. Daniel M itidiero, Kooperation ais Modell und Prinzip im Zivilprozess, Zeitschriftfür Zivilprozess International. Kõln: Carl Heymanns, 2013, p. 379-391, n. 18. Enquanto a colaboração como modelo é algo que aparece com a l .a edição deste livro, o desenvolvimento da colaboração como prin cípio é fruto principalmente dos trabalhos de Fredie Didier Jr., Princípio da cooperação: uma apresentação, Revista de , n. 127. São Paulo: Ed. RT, 2005; Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português. Coimbra: Coimbra Ed., 2010, e Antonio do Passo Cabral, Nulidades no processo moderno. Rio dejaneiro: Forense, 2009. 143. Walter Rechberger; Daphne-Ariane Simotta, Zivilprozessrecht (1982). 8. ed. Wien: Manz, 2010, p. 399-407. 144. RudolfWassermann (1925-2008), DerSozialeZivilprozess-ZurTheo Praxis des Zivilprozesses im sozialen Rechtsstaat. Neuwied und Darmstad: Luchterhand, 1978, p. 97. 145. Heitor Sica, Preclusão processual civil (2006 ). 2. ed. São Paulo: Altas, 2008, p. 324.