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Sumário
CAPA
FOLHA	DE	ROSTO
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
HOMILIA	1
HOMILIA	2
HOMILIA	3
HOMILIA	4
HOMILIA	5
HOMILIA	6
HOMILIA	7
HOMILIA	8
HOMILIA	9
HOMILIA	10
HOMILIA	11
HOMILIA	12
HOMILIA	13
HOMILIA	14
HOMILIA	15
HOMILIA	16
HOMILIA	17
HOMILIA	18
HOMILIA	19
HOMILIA	21
HOMILIA	22
HOMILIA	23
HOMILIA	24
HOMILIA	25
HOMILIA	26
HOMILIA	27
HOMILIA	28
HOMILIA	29
HOMILIA	30
HOMILIA	31
HOMILIA	32
HOMILIA	33
HOMILIA	34
HOMILIA	35
HOMILIA	36
HOMILIA	37
HOMILIA	38
HOMILIA	39
HOMILIA	40
HOMILIA	41
HOMILIA	42
HOMILIA	43
HOMILIA	44
HOMILIA	45
HOMILIA	46
HOMILIA	47
HOMILIA	48
HOMILIA	49
COLEÇÃO
FICHA	CATALOGRÁFICA
Landmarks
Cover
Title	Page
Table	of	Contents
Introduction
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
Chapter
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Chapter
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Chapter
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Chapter
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Chapter
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Chapter
Chapter
Chapter
APRESENTAÇÃO
Surgiu,	pelos	anos	1940,	na	Europa,	especialmente	na	França,	um	movimento	de
interesse	voltado	para	os	antigos	escritores	cristãos,	conhecidos
tradicionalmente	como	“Padres	da	Igreja”,	ou	“santos	Padres”,	e	suas	obras.
Esse	movimento,	liderado	por	Henri	de	Lubac	e	Jean	Daniélou,	deu	origem	à
coleção	“Sources	Chrétiennes”,	hoje	com	centenas	de	títulos,	alguns	dos	quais
com	várias	edições.	Com	o	Concílio	Vaticano	II,	ativou-se	em	toda	a	Igreja	o
desejo	e	a	necessidade	de	renovação	da	liturgia,	da	exegese,	da	espiritualidade
e	da	teologia	a	partir	das	fontes	primitivas.	Surgiu	a	necessidade	de	“voltar	às
fontes”	do	cristianismo.
No	Brasil,	em	termos	de	publicação	das	obras	desses	autores	antigos,	pouco	se
fez.	A	Paulus	Editora	procura,	agora,	preencher	esse	vazio	existente	em	língua
portuguesa.	Nunca	é	tarde	ou	fora	de	época	para	rever	as	fontes	da	fé	cristã,	os
fundamentos	da	doutrina	da	Igreja,	especialmente	no	sentido	de	buscar	nelas	a
inspiração	atuante,	transformadora	do	presente.	Não	se	propõe	uma	volta	ao
passado	através	da	leitura	e	estudo	dos	textos	primitivos	como	remédio	ao
saudosismo.	Ao	contrário,	procura-se	oferecer	aquilo	que	constitui	as	“fontes”
do	cristianismo,	para	que	o	leitor	as	examine,	as	avalie	e	colha	o	essencial,	o
espírito	que	as	produziu.	Cabe	ao	leitor,	portanto,	a	tarefa	do	discernimento.	A
Paulus	Editora	quer,	assim,	oferecer	ao	público	de	língua	portuguesa,	leigos,
clérigos,	religiosos,	aos	estudiosos	do	cristianismo	primevo,	uma	série	de	títulos
não	exaustiva,	cuidadosamente	traduzida	e	preparada,	dessa	vasta	literatura
cristã	do	período	patrístico.
Para	não	sobrecarregar	o	texto	e	retardar	a	leitura,	procurou-se	evitar	as
anotações	excessivas,	as	longas	introduções,	estabelecendo	paralelismos	de
versões	diferentes,	com	referências	aos	empréstimos	da	literatura	pagã,
filosófica,	religiosa,	jurídica,	às	infindas	controvérsias	sobre	determinados
textos	e	sua	autenticidade.	Procurou-se	fazer	com	que	o	resultado	desta	pesquisa
original	se	traduzisse	numa	edição	despojada,	porém	séria.
Cada	obra	tem	uma	introdução	breve,	com	os	dados	biográficos	essenciais	do
autor	e	um	comentário	sucinto	dos	aspectos	literários	e	do	conteúdo	da	obra,
suficientes	para	uma	boa	compreensão	do	texto.	O	que	interessa	é	colocar	o
leitor	diretamente	em	contato	com	o	texto.	O	leitor	deverá	ter	em	mente	as
enormes	diferenças	de	gêneros	literários,	de	estilos	em	que	estas	obras	foram
redigidas:	cartas,	sermões,	comentários	bíblicos,	paráfrases,	exortações,
disputas	com	os	heréticos,	tratados	teológicos	vazados	em	esquemas	e
categorias	filosóficas	de	tendências	diversas,	hinos	litúrgicos.	Tudo	isso	inclui,
necessariamente,	uma	disparidade	de	tratamento	e	de	esforço	de	compreensão	a
um	mesmo	tema.	As	constantes,	e	por	vezes	longas,	citações	bíblicas	ou	simples
transcrições	de	textos	escriturísticos	devem-se	ao	fato	de	que	os	Padres
escreviam	suas	reflexões	sempre	com	a	Bíblia	numa	das	mãos.
Julgamos	necessário	um	esclarecimento	a	respeito	dos	termos	patrologia,
patrística	e	Padres	ou	Pais	da	Igreja.	O	termo	“patrologia”	designa,
propriamente,	o	estudo	sobre	a	vida,	as	obras	e	a	doutrina	dos	Pais	da	Igreja.
Ela	se	interessa	mais	pela	história	antiga,	incluindo	também	obras	de	escritores
leigos.	Por	“patrística”	se	entende	o	estudo	da	doutrina,	das	origens	dela,	suas
dependências	e	empréstimos	do	meio	cultural,	filosófico,	e	da	evolução	do
pensamento	teológico	dos	Pais	da	Igreja.	Foi	no	século	XVII	que	se	criou	a
expressão	“teologia	patrística”	para	indicar	a	doutrina	dos	Padres	da	Igreja,
distinguindo-a	da	“teologia	bíblica”,	da	“teologia	escolástica”,	da	“teologia
simbólica”	e	da	“teologia	especulativa”.	Finalmente,	“Padre	ou	Pai	da	Igreja”
se	refere	a	escritor	leigo,	sacerdote	ou	bispo,	da	Antiguidade	cristã,	considerado
pela	tradição	posterior	como	testemunha	particularmente	autorizada	da	fé.	Na
tentativa	de	eliminar	as	ambiguidades	em	torno	desta	expressão,	os	estudiosos
convencionaram	em	receber	como	“Pai	da	Igreja”	quem	tivesse	estas
qualificações:	ortodoxia	de	doutrina,	santidade	de	vida,	aprovação	eclesiástica
e	Antiguidade.	Mas	os	próprios	conceitos	de	ortodoxia,	santidade	e	Antiguidade
são	ambíguos.	Não	se	espera	encontrar	neles	doutrinas	acabadas,	buriladas,
irrefutáveis.	Tudo	estava	ainda	em	ebulição,	fermentando.	O	conceito	de
ortodoxia	é,	portanto,	bastante	largo.	O	mesmo	vale	para	o	conceito	de
santidade.	Para	o	conceito	de	Antiguidade,	podemos	admitir,	sem	prejuízo	para
a	compreensão,	a	opinião	de	muitos	especialistas	que	estabelece,	para	o
Ocidente,	Igreja	latina,	o	período	que,	a	partir	da	geração	apostólica,	se
estende	até	Isidoro	de	Sevilha	(560-636).	Para	o	Oriente,	Igreja	grega,	a
Antiguidade	se	estende	um	pouco	mais,	até	a	morte	de	São	João	Damasceno
(675-749).
Os	“Pais	da	Igreja”	são,	portanto,	aqueles	que,	ao	longo	dos	sete	primeiros
séculos,	foram	forjando,	construindo	e	defendendo	a	fé,	a	liturgia,	a	disciplina,
os	costumes	e	os	dogmas	cristãos,	decidindo,	assim,	os	rumos	da	Igreja.	Seus
textos	se	tornaram	fontes	de	discussões,	de	inspirações,	de	referências
obrigatórias	ao	longo	de	toda	a	tradição	posterior.	O	valor	dessas	obras	que
agora	a	Paulus	Editora	oferece	ao	público	pode	ser	avaliado	neste	texto:
Além	de	sua	importância	no	ambiente	eclesiástico,	os	Padres	da	Igreja	ocupam
lugar	proeminente	na	literatura	e,	particularmente,	na	literatura	greco-romana.
São	eles	os	últimos	representantes	da	Antiguidade,	cuja	arte	literária,	não	raras
vezes,	brilha	nitidamente	em	suas	obras,	tendo	influenciado	todas	as	literaturas
posteriores.	Formados	pelos	melhores	mestres	da	Antiguidade	clássica,	põem
suas	palavras	e	seus	escritos	a	serviço	do	pensamento	cristão.	Se	excetuarmos
algumas	obras	retóricas	de	caráter	apologético,	oratório	ou	apuradamente
epistolar,	os	Padres,	por	certo,	não	queriam	ser,	em	primeira	linha,	literatos,	e
sim	arautos	da	doutrina	e	moral	cristãs.	A	arte	adquirida,	não	obstante,	vem	a
ser	para	eles	meio	para	alcançar	esse	fim.	[…]	Há	de	se	lhes	aproximar	o	leitor
com	o	coração	aberto,	cheio	de	boa	vontade	e	bem-disposto	à	verdade	cristã.	As
obras	dos	Padres	se	lhe	reverterão,	assim,	em	fonte	de	luz,	alegria	e	edificação
espiritual	(B.	Altaner	e	A.	Stuiber,	Patrologia,	São	Paulo:	Paulus,	1988,	p.	21-
22).
A	Editora
INTRODUÇÃO
Os	comentários	agostinianos	a	São	João
Ir.	Nair	de	Assis	Oliveira,	CSA	(†)
Heres	Drian	de	O.	Freitas
À	parte	alguns	sermones	sobre	passagens	do	Evangelho	de	João¹	–	não
contemplados	aqui	–,	Santo	Agostinho	dedicou	especificamente	duas	obras	a
textos	bíblicos	do	discípulo	amado:²	uma	a	seu	evangelho,	outra	a	sua	primeira
carta.	Ambas	gozaram	de	grande	apreço	ao	longo	dos	séculos.³	Não	sem	razão,
pois	são	densas	de	elaborada	e	refinada	teologia,	apresentada,	porém,	com	a
simplicidade	e	a	clareza	didática	do	experiente	pastor	preocupado	em	nutrir	seu
auditório	–	e	seusleitores	–	com	aquele	que	é	seu	próprio	nutrimento.⁴	Tais	obras
não	são,	portanto,	para	Agostinho	de	Hipona	–	nem	devem	sê-lo	para	o	cristão	–,
matéria	de	estudo	ou	exposição	simplesmente,	mas	conteúdo	da	própria	piedade
e	devoção.
Títulos	e	gênero	literário
Os	tomos	deste	volume,	intitulado	Comentários	a	São	João,	contêm	as	duas
obras	a	que	acabamos	de	nos	referir,	cujos	títulos	originais	são,	respectivamente,
In	Iohannis	evangelium	tractatus	CXXIV⁵	e	In	epistulam	Iohannis	ad	Parthos
tractatus	decem.
De	ambos	os	títulos,	o	que	pode	causar	estranheza	é,	no	segundo,	a	expressão	ad
Parthos,	aos	quais	o	Hiponense	considera	endereçada	a	primeira	epístola
joanina,⁷	o	que,	de	fato,	não	ocorre.	Sem	qualquer	comentário	ou	explicação,
Santo	Agostinho	menciona	alhures	esse	endereçamento	da	Primeira	epístola	de
João	aos	partos,⁸	e	Possídio	repete-o	em	seu	Indiculum. 	Isso	talvez	signifique
que	a	primeira	epístola	joanina	fosse,	pelo	menos	naquela	região,	conhecida	sob
tal	endereçamento,	que	parece	atestado	somente	na	literatura	patrística
posterior.¹
A	esse	respeito,	basta	dizer	que	foram	apresentadas	diversas	possibilidades	de
explicação	para	tal	endereçamento.	Uma	delas	–	e	que	convence	grande	parte
dos	estudiosos,	embora	permaneça	uma	conjectura¹¹	–	diz	ser	ad	Parthos
tradução,	ou	transcrição,	equivocada	do	acusativo	grego	Párthous,	não	relativo
aos	partos,	mas	como	corruptela	de	Parthénous	(Virgem),	epíteto	dado	ao
apóstolo	João.
Quanto	ao	autor	das	obras	comentadas,	o	discípulo	amado,	que	se	identifique
com	João,	filho	de	Zebedeu	e	discípulo	do	Senhor,	Agostinho	não	duvida,¹²	e
afirma	inspiração	e	canonicidade	tanto	do	quarto	evangelho	quanto	da	primeira
epístola	joanina.¹³
Acerca	do	termo	tractatus,	presente	em	ambos	os	títulos	latinos,¹⁴	seu
correspondente	imediato	em	português,	isto	é,	“tratado”,	sugeriria	ao	leitor
contemporâneo	a	ideia	de	uma	obra	de	determinada	ordem,	mais	científica,
monográfica	–	talvez,	por	quanto	possível	–,	não	correspondente	ao	sentido	com
que	o	Hiponense	o	emprega.
Com	efeito,	tractatus	aparece	na	literatura	clássica	com	o	sentido,	entre	outros,
de	comentário,	exposição,¹⁵	e	o	cristianismo	primitivo	assimila-o	como
pregação,¹ 	fundamentalmente	sobre	o	conteúdo	das	Escrituras.¹⁷	Mais
especificamente	ainda,	para	Santo	Agostinho,	tractatus	designa	homilia	popular,
sermões	populares,¹⁸	isto	é,	pregações	em	geral	de	caráter	exegético,¹ 	mas
didáticas,	pastorais,	destinadas	à	assembleia	litúrgica.² 	Considerando-se	tais
aspectos	das	exposições	agostinianas	acerca	das	duas	obras	joaninas	de	que	nos
ocupamos,	o	título	(tractatus)	bem	identificaria	o	gênero	destas	obras.²¹
Em	ambos	os	comentários,	enquanto	gênero	literário,	o	tractatus	é	algo
complexo,	rico	e	flexível,	sem	manter-se	em	esquemas	prévios;	comporta	o
exame	de	códices,²²	das	línguas	originais,²³	da	gramática,²⁴	a	parênese,²⁵	o
comentário	espiritual,² 	a	reflexão	filosófico-dogmática,²⁷	as	exegeses	literal²⁸	e
alegórica,² 	e	mesmo	múltiplas	possibilidades	interpretativas.³ 	Tal	gênero
literário	harmoniza-se	bem	com	o	gênio	agostiniano	e	com	as	necessidades	de
um	auditório	heterogêneo	quanto	a	conhecimento,	idade,	cultura	e	vivência	da
própria	fé.³¹
Estilo	e	método
As	homilias	de	Io.	ev.	tr.	–	embora	tenham	tido	lugar	em	distintas	fases³²	–	e	as
de	ep.	Io.	tr.	são	obras	unitárias.³³	Em	geral,	as	pregações	são	ricas	em
comparações	diretas,	tiradas	da	vida	cotidiana.³⁴	O	estilo	é	francamente	popular,
de	linguagem	clara,	simples,³⁵	mantendo	com	seu	auditório	o	tom	de	uma
conversa	familiar	–	cuja	matéria	o	autor	convida	a	retomar	fora	do	contexto
litúrgico³ 	–,	de	partilha	à	mesa	do	Senhor,³⁷	particularmente	do	pão	da
verdade.³⁸	Para	ser	entendido	–	e	cumprir	seu	dever	de	instrumento	do	Verbo³ 	–,
o	pregador	não	teme	repertir-se,⁴ 	ser	severo⁴¹	ou	polêmico,⁴²	mesmo	se	o	tom
geral	costuma	ser	serenamente	paterno,	instrutivo.⁴³	Para	não	tratar	rapidamente
de	questões	importantes	ou	complexas,	pospõe-nas	a	outra	homilia.⁴⁴	Diante	de
sua	assembleia,	reconhece	os	próprios	limites	e	dificuldades,⁴⁵	pede-lhe	que	por
ele	reze⁴ 	e	com	ela	reza,	e⁴⁷	com	ela	reconhece	o	próprio	pecado	que	precisa	de
purificação.⁴⁸
Obviamente,	ponto	de	partida	são	sempre	os	textos	joaninos	–	Evangelho	e
Primeira	Epístola	–,	particularmente	explicados	em	seu	contexto	e	pela	própria
Escritura,	cujos	textos	obscuros	são	esclarecidos	por	aqueles	mais	claros	e	cujas
aparentes	contradições	são	destrincadas.⁴
Embora	os	Io.	ev.	tr.	tenham	um	teor	geral	exegético-dogmático	e	a	interpretação
aflore	em	elementos	anti-heréticos,⁵ 	como	os	ep.	Io.	tr.	–	onde	isto	é	evidente	–,
os	tractatus	são	basicamente	pastorais,	com	objetivo	de	tornar	conhecidos,
amados	e	seguidos	os	ensinamentos	de	Cristo	nas	obras	joaninas	a	que	Santo
Agostinho	dedica-se.
Nos	Io.	ev.	tr.,	geralmente	são	comentados	grandes	blocos	de	versículos	ou
determinados	versículos	complexos⁵¹	e,	ainda	que	isso	ocorrra	também	em	ep.
Io.	tr.,	nestes	últimos	o	Hiponense	é	mais	escrupuloso	ao	comentar	o	conteúdo
dos	versículos.	Mas,	as	homilias,	em	ambos	os	comentários,	têm	ritmo	próprio,
não	têm	todas	a	mesma	dimensão,	nem	é	comentado	o	mesmo	número	de
versículos.	Nosso	autor	deixa-se	levar	pelo	texto	bíblico.	Em	Io.	ev.	tr.,	quanto
aos	milagres	–	ou,	melhor,	sinais⁵²	–	do	Senhor,	o	Hiponense	concentra-se
somente	em	pontos	específicos.⁵³	Essa	concentração	em	pontos	específicos	do
texto	evangélico,	contudo,	torna-se	muito	mais	intensa	a	partir	de	Io.	ev.	tr.	55.
Isso	tem	explicação:	em	determinado	momento,	há	uma	mudança	no	modo
expositivo,	e	as	homilias	são	mais	ao	modo	de	comentário	propriamente	dito,
enquanto	no	caso	da	exposição	com	grandes	blocos	de	versículos,	ou	de
determinados	versículos	complexos,	as	homilias	são	mais	ao	modo	dos	tractatus
populares.
Tecnicamente,	o	comentário	–	nos	moldes	dos	comentários	gramaticais	pagãos	–
é	composto	de	“breves	explicações	[...]	de	caráter	variado	(histórico,	antiquário,
gramatical,	retórico)”;	são,	basicamente,	notas	marginais.⁵⁴	Já	os	tractatus
populares	agostinianos	têm,	com	todas	as	características	já	indicadas,⁵⁵	esta
particularidade	do	sermo:	discursividade,	oralidade.⁵
Em	ambas	as	obras	que	temos	em	mãos,	Santo	Agostinho,	sem,	obviamente,	a
pretensão	de	fazer	trabalho	exegético	científico	à	moda	dos	nossos	atuais
exegetas,	ocupa-se	de	explicar	objetivamente	o	texto	escriturístico,	mas,	ao
mesmo	tempo,	procura	dar	a	seus	fiéis	um	ensino	proveitoso	para	o
enfrentamento	das	dificuldades	do	momento,	não	de	qualquer	modo,	porém,	mas
conforme	a	fé	da	Igreja.	O	conteúdo	da	fé,	o	ensinamento,	é	para	ser	vivido.
Embora	ele	não	apresente	um	plano	ou	esquema	definido	para	estes	comentários,
e	pareça	não	preocupar-se	com	a	estrutura	das	obras	e	a	coordenação	das	ideias,
ambos,	contudo,	têm	sua	unidade	garantida	pelo	pensamento	de	conjunto	e	o
desejo	de	comentá-los	por	completo,⁵⁷	além	de,	a	essa	unidade,	parecer
subjazerem	cinco	regras	fundamentais	para	a	leitura	dos	textos	joaninos:	1)	não
há	salvação	senão	no	Verbo	encarnado,	2)	cuja	compreensão	correta	exclui
heresias	e/ou	cismas	e	3)	pauta-se	pela	Escritura,	que	se	explica	por	si	mesma,	e
4)	é	vivida	na	dupla	caridade	–	único	objeto	da	Escritura,	particularmente	de	1Jo
–,	que	faz	que	5)	Cabeça	e	membros	formem	a	unidade	do	Corpo	de	Cristo.⁵⁸
Ocasião,	datação,	divisão
Mesmo	que	os	Io.	ev.	tr.	resultem	do	projeto	de	um	ciclo	de	pregações⁵ 	em
Hipona,	suas	124	homilias	tiveram	lugar	em	diversas	etapas	ao	longo	de	um	arco
temporal	bastante	amplo:	de	dezembro	de	405-quaresma	de	406	a	depois	de
420.
Nosso	autor	não	fala	da	motivação	para	tais	pregações. ¹	No	entanto,	Io.	ev.	tr.
pode	ter	tido	o	intento	catequético	de	“pregar	o	mistério	de	Cristo,	Deus	e
homem,	cheio	de	graça	e	de	Verdade”, ²	como	preparação	paralela	à	formação
dos	catecúmenos	para	o	batismo,	a	partir	de	um	texto	central	da	Escritura,
planejado	para	de	dezembro	–	preparação	para	o	Natal	–	à	Páscoa,	e	cuja
extensão	pode	ter	levado	à	pregação	além	do	domingo. ³
De	fato,	embora	as	pregações	tenham	ocorrido	tanto	em	domingos ⁴como	em
dias	feriais, ⁵	não	é	impossível	que	se	tivesse	proposto	comentar	todo	o	quarto
evangelho	a	partir	de	textos	dispostos	para	a	liturgia. 	O	uso	litúrgico	do	texto
poderia	ser	uma	das	causas	das	interrupções,	juntamente	com	circunstâncias
históricas	da	igreja	africana. ⁷	A	esse	respeito,	destacam-se	particularmente
certos	acentos	polêmicos	heterogêneos	nas	homilias.	Essa	heterogeneidade
polêmica	evidente	levou	os	estudiosos	a	dividirem	as	homilias	do	Io.	ev.	tr.	em
blocos	distintos.
Desses	blocos,	o	primeiro	compreende	as	homilias	1-16,	pregadas	entre	405	e
411,	período	de	forte	polêmica	antidonatista, ⁸	que	se	faz	sentir	no	conteúdo	e	no
tom.	Também	a	aparente	liberdade	de	culto	de	que	os	donatistas	parecem	gozar
leva	a	datar	esse	bloco	antes	da	Conferência	de	Cartago	(junho	de	411),	que
define	oficialmente	a	cassação	do	partido	de	Donato,⁷ 	já	que	as	homilias
posteriores	cedem	espaço	a	outros	embates	polêmicos.
Nesse	bloco,	as	homilias	de	1-12	(ou	1-16⁷¹)	parecem	ter	sido	proferidas	quase
sucessivamente	em	domingos	de	dezembro	de	405	até	a	quaresma	do	ano
seguinte.⁷²	Esse	bloco	de	pregações	suscessivas	é	interrompido	na	semana	de
Páscoa	para	as	pregações	sobre	a	Primeira	Epístola	de	S.	João.⁷³	Em	geral,
considerou-se	que	as	homilias	13-16	foram	retomadas	entre	407-411,⁷⁴	não
sendo	certo	que	–	embora	seu	conteúdo	seja	afim	ao	das	homilias	pré-pascais
precedentes	–	tenham	sido	pregadas	sucessivamente	à	homilia	12	no	mesmo	ano
406.⁷⁵
Io.	ev.	tr.	17-54	compõe	o	segundo	bloco,⁷ 	considerado	normalmente	de
homilias	antiarianas.	Os	estudiosos	costumam	situá-lo	cerca	de,	pelo	menos,
uma	dozena	de	anos	depois	(418)	de	iniciado	o	ciclo,	isto	é,	quando	começa	a
campanha	antiariana	de	Agostinho.⁷⁷	Mas	pode	ser	anterior	a	418,⁷⁸	e	mais	uma
oposição	genérica	ao	arianismo	que	uma	verdadeira	e	própria	investida
antiariana.⁷ 	De	fato,	as	referências	diretas	ao	arianismo	não	são	tantas	quantas
se	esperaria	em	aberta	polêmica,⁸ 	cujo	tom	nem	sequer	se	faz	marcadamente
presente.⁸¹	Talvez	devido	a	sua	possível	intenção	catequética,	o	Hiponense
inclua	neste	bloco	outras	heresias	cristológicas,⁸²	de	modo	a	apresentar,	de
maneira	simples,	a	reta	fé	em	relação	ao	mistério	do	Cristo.⁸³
Embora	se	tenha	afirmado	que	este	bloco	de	homilias	tenha	sido	pronunciado	em
curto	espaço	de	tempo,⁸⁴	excetuadas	a	recordação	da	homilia	do	dia	anterior	e	a
promessa	da	do	dia	seguinte,⁸⁵	referências	e	indícios	cronológicos	são	raros.⁸
Poucos	acenos	a	teses	pelagianas,⁸⁷	cuja	aberta	polêmica	(418)	seria	um	terminus
ante	quem,⁸⁸	podem	oferecer	um	critério	para	sua	datação.⁸
O	terceiro	e	último	bloco	(Io.	ev.	tr.	55-124)	foi	iniciado	(Io.	ev.	tr.	55-60)	em
novembro	de	419, 	para	completar	o	comentário	ao	respectivo	evangelho,	e
estende-se	a	depois	de	420-422.	Referindo-se	a	Io.	ev.	tr.	55-60,	Agostinho
mesmo	diz	que	essas	homilias	são	breves	–	aliás,	evidente	e	consideravelmente
mais	breves	que	as	dos	blocos	anteriores ¹	–,	e	acena	à	possibilidade	de	este
bloco	ter	sido	encomendado	pelo	bispo	Aurélio	de	Cartago,	sem	cuja	aprovação
talvez	o	Hiponense	não	tivesse	concluído	Io.	ev.	tr. ²	–	o	que	em	nada
compromete	a	possível	intenção	agostiniana	original	do(s)	primeiro(s)	bloco(s). ³
Há,	nesse	bloco,	por	um	lado,	maior	quantidade	de	versículos	citados	no	todo	de
uma	homilia	–	sem	que	se	comente	cada	um	deles ⁴	–	e,	por	outro,	versículos
tomados	isoladamente	e	tratados	de	modo	mais	conforme	à	técnica	do
comentário, ⁵	isto	é,	com	maior	dedicação	à	análise	de	expressões 	–	mas	sem
perder	de	vista	o	quadro	mais	amplo	de	uma	perícope	ou	das	Escrituras. ⁷
Quanto,	porém,	aos	ep.	Io.	tr.,	Santo	Agostinho	é	claro	acerca	de	suas
circunstâncias	e	motivação:	não	muito	tempo	antes,	ele	havia	encetado	a
explicação	do	Evangelho	de	São	João,	e,	tendo	interrompido	esse	comentário	–
que	se	encontrava	já	na	homilia	12,	ou	16 ⁸	–	para	dar	lugar	às	leituras	prescritas
para	as	celebrações	pascais,	em	Hipona,	por	ocasião	da	Oitava	da	Páscoa,	achou
conveniente	iniciar	o	da	Primeira	Epístola	joanina	(ep.	Io.	tr.).	Seu	conteúdo,	de
fato,	parecia-lhe	em	perfeita	harmonia	com	as	alegrias	pascais,	e	seria	como	que
continuidade	de	trabalho	com	o	mesmo	autor	sacro,	com	o	objetivo	de	nutrir
uma	chama	já	acesa,	ou	de	acendê-la.
O	Hiponense	esperava	terminar	a	explicação	da	Epístola	durante	a	Oitava	da
Páscoa,¹ 	mas	foi	necessário	ir	um	pouco	além.	Durante	a	Oitava,	de	fato,
conseguiu	pregar	os	ep.	Io.	tr.	1-8,¹ ¹	e	os	ep.	Io.	tr.	9-10	adentraram	o	tempo
pascal	e	foram	pronunciados	depois	do	Segundo	Domingo	de	Páscoa,	que
encerra	a	Oitava.¹ ²	Diversamente	da	obra	que	as	antecede	neste	volume,	as
homilias	ep.	Io.	tr.,	pregadas	quase	ininterruptamente	e	em	curto	espaço	de
tempo,	não	apresentam	divisões.
A	interrupção	das	homilias,	então	havia	pouco	iniciadas	(405	ou	406),	sobre	o
Evangelho,	com	o	aproximar-se	da	Páscoa¹ ³	e	a	passagem	quase	imediata	à
dedicação	ao	comentário	da	Primeira	Epístola	de	S.	João,	iniciado	na	Oitava	da
Páscoa,	e	concluído	durante	o	tempo	pascal,	permitem	datar	estas	últimas
pregações	em	406	ou	407.¹ ⁴
Este	último	comentário	agostiniano,	infelizmente,	não	chega	exatamente	até	o
final	da	Epístola	joanina,	faltando	a	explicação	dos	últimos	dezoito	versículos.
Exposições	orais	ou	escritas?
Destinados	à	assembleia	litúrgica,	os	tractatus	podem	ser	composições	orais	ou
escritas,¹ ⁵	e,	nestas	páginas,	até	o	momento,	referiu-se	às	homilias	dos
comentários	agostinianos	a	S.	João	ora	como	pregadas	ora	como	compostas.
Cabe,	então,	antes	de	ir	além,	precisar	se	foram,	de	fato,	proferidas	diante	da
comunidade	reunida	de	fiéis	ou	não.
A	comparação	entre	as	dez	homilias	de	ep.	Io.	tr.	e	os	dois	primeiros	blocos	de
homilias	de	Io.	ev.	tr	com	as	últimas	setenta	desse	comentário	evangélico	pode
causar	estranheza,	não	só	pela	dimensão	das	homilias,	mas	também	pelo	grau	de
espontaneidade	claramente	distinto	entre	elas	e	pela	diferença	no	modo
expositivo.	Enquanto	todas	as	dez	homilias	sobre	a	Primeira	Epístola	joanina	e
os	dois	primeiros	blocos	de	homilias	ao	Evangelho	de	S.	João	foram	pregados	ao
povo,	não	é	esse	o	caso	do	último	bloco	de	setenta	homilias	de	Io.	ev.	tr.	A
indicar	isso	são	o	tom,	o	movimento	oratório	e	o	diálogo	espontâneo	com	o
auditório,	constantes	nos	primeiros,	mas	praticamente	ausentes	nas	últimas.¹
Com	efeito,	enquanto	as	primeiras	eram	anotadas	por	estenógrafos	no	momento
em	que	eram	proferidas	para	a	assembleia	reunida	na	liturgia,	as	últimas	foram
ditadas,	o	Hiponense	mesmo	no-lo	diz.¹ ⁷
Ao	assinalar	que	foram	ditadas,	ele	deixa	claro	que	não	foram	pregadas,	mas
publicadas,	pelos	menos	Io.	ev.	tr.	55-60	–	e	considere-se,	ainda,	que	seu	ditado
ocorria	à	noite,¹ ⁸	sem	qualquer	aceno	a	fiéis	reunidos.	Mas	é	muito	provável	que
também	os	tractatus	seguintes	tenham	sido	ditados,	e	publicados,	não	proferidos
ao	povo,	como	o	foram	Io.	ev.	tr.	1-54	e	ep.	Io.	tr.,	pois	ele	acena	à	possibilidade
de	continuar	o	trabalho	de	completar	o	comentário	a	todo	o	evangelho	joanino
após	a	recepção	das	homilias	55-60	por	Aurélio	de	Cartago	e	sua	aprovação	para
prosseguir.¹ 	Posto	que	temos	o	comentário	todo,	a	conclusão	é	inegável:	o
bispo	de	Cartago	aprovou-as	e	o	Hiponense	completou	o	ditado	do	comentário.
Assim,	as	referências	ao	auditório	no	último	bloco	de	homilias	de	Io.	ev.	tr.
seriam	recurso	retórico,¹¹ 	talvez	não	meramente	estilístico,	porém.	Vale	notar
que,	embora	Io.	ev.	tr.	55-124	tenha	sido	escrito	–	e	haja,	portanto,	algo	de
distinto	nesse	bloco,	em	comparação	a	Io.	ev.	tr.	1-54¹¹¹	–,	nosso	autor	define
essas	setenta	homilias	como	tractatus	populares.	Isso	significa	que	são	para	a
pregação	na	liturgia,	quer	fossem	lidas	–	integralmente	ou	não	–	por	outros
pregadores,	quer	lhes	servissem	de	modelo.¹¹²
Conteúdo
Mesmo	que	os	textos	do	evangelho	e	da	primeira	carta	joaninos	sejam	a	matéria
basilar	das	exposições	agostinianas,	os	mais	diversos	elementos	afloram	deles
nas	homilias	agostinianas.	Nesta	seção,	contudo,	destacamos	apenas	alguns
desses	elementos,	que	são	fundamentais	na	intenção	catequética	do	Bispo	de
Hipona:	a	cristologia,a	ação	do	Espírito	Santo	e	a	caridade.
Cristologia
Embora	Santo	Agostinho	não	perca	de	vista	a	Trindade	em	sua	teologia,	a
cristologia	ocupa	um	lugar	central	nestes	comentários	e	as	primeiras	homilias	de
Io.	ev.	tr.	(1-3),	dedicadas	ao	prólogo	joanino	(Jo	1,1-14),	podem	dar	a	chave	de
leitura	desta	última	obra:	nos	mistérios	salvíficos	da	encarnação	de	Cristo,
grande	e	humilde,	o	que	falta	à	filosofia	deste	mundo.¹¹³
Com	efeito,	a	partir	do	prólogo	joanino,	o	primeiro	bloco	de	homilias	(Io.	ev.	tr.
1-16,	que	expõe	Jo	1,1-4,53)	concentra-se	na	realidade	da	Encarnação	do	Verbo,
o	Cristo	Mediador	e	Salvador:¹¹⁴	não	há	salvação	fora	de	Cristo,¹¹⁵	caminho	e
destino,¹¹ 	Verbo	eterno	e	Verbo	encarnado;¹¹⁷	Deus,¹¹⁸	com	o	Pai	e	o	Espírito
Santo,¹¹ 	igual	ao	Pai	e	em	nada	inferior	a	Ele;¹² 	Deus	e	homem;¹²¹	Deus
humilde,¹²²	que	assume	a	carne	humana¹²³	e	sua	mortalidade¹²⁴	na	forma	de
servo,¹²⁵	para	humildemente	sofrer	e,	voluntariamente,	morrer	pela
humanidade.¹² 	Mas,	nascido	de	Maria	na	carne	humana,	Ele	ressuscita,¹²⁷
tornando	sua	cruz	meio	para	que	a	humanidade	chegue	à	eternidade.¹²⁸	N’Ele,
Deus	torna-se	acessível.¹² 	Ele	é	Luz,¹³ 	Verdade¹³¹	e	Vida;¹³²	que,	como	Médico,
cura	a	humanidade	da	cegueira	de	seu	coração;¹³³	salvador,	por	sua	paixão,	mata
sua	morte¹³⁴	e	redime	do	pecado;¹³⁵	mestre	(doctor	e	magister),	ensina	a
caridade¹³ 	e	a	humildade.¹³⁷
Já	no	segundo	bloco	de	homilias	(Io.	ev.	tr.	17-54,	dedicado	a	Jo	5,1-12,50),	o
Hiponense	concentra-se	na	realidade	da	unidade	das	duas	naturezas	de	Cristo.
Dois	versículos	do	prólogo	são	constantemente	aproximados	(Jo	1,1	e	14),
frequentemente	com	dois	versículos	paulinos	(Fl	2,6	e	7),	para	enfatizar	a
unidade	Cristo-Deus	e	Cristo-homem:	o	Verbo	eterno	e	criador	é	o	Verbo
encarnado,¹³⁸	o	Filho	de	Deus	é	o	Filho	do	homem¹³ 	–	pontos	retomados
frequentemente,	com	repetição	dos	já	indicados	no	parágrafo	precedente,	mesmo
sem	o	emparelhamento	dos	referidos	versículos.	Na	unidade	ímpar	de	suas	duas
naturezas	em	uma	pessoa,¹⁴ 	sem	confusão,¹⁴¹	Cristo	é	o	único	Mediador	e
Salvador.¹⁴²
Sendo,	portanto,	Deus,	Ele	é	um	com	o	Pai	e	igual	a	Ele,¹⁴³	contra	a	arianismo,
que	O	afirmava	inferior;	mas	não	é	o	Pai,	contra	o	sabelianismo,	que	afirmava
serem	ambos	o	mesmo.¹⁴⁴	Sendo,	por	outro	lado,	homem,	Ele	não	perde	nada	de
sua	divindade,¹⁴⁵	e	mostra	a	humildade.¹⁴ 	E	na	humildade	de	Sua	encarnação,
faz-se	caminho¹⁴⁷	por	amor	à	humanidade¹⁴⁸,	para	resgatá-la.¹⁴ 	Isso	quer	dizer
que	Cristo	é	real	em	sua	carne	humana,	não	se	trata,	contra	o	docetismo
maniqueu,	de	uma	aparência,¹⁵ 	e	tem,	contra	o	apolinarismo,	uma	verdadeira	e
própria	alma	racional	humana;¹⁵¹	mas	sem	pecado	algum.¹⁵²	Cristo	é,	então,
plena	e	verdadeiramente	Deus	e	é	plena	e	verdadeiramente	homem;	essa	é	a	fé
que	a	Igreja	conserva¹⁵³	e	segundo	a	qual	vive	o	fiel,¹⁵⁴	e	pela	qual	esse	é
salvo.¹⁵⁵
No	terceiro	bloco	(Io	ev.	tr.	55-124,	que	expõe	Jo	13,1-21,25),	sobre	o	discurso
do	Senhor	na	última	ceia	e	os	eventos	da	paixão,	morte	e	ressurreição,	são
tratados,	mais	frequentemente,	os	significados	de	expressões	usadas	pelo	Senhor,
mas	nosso	santo	doutor	volta-se	também	–	e	pouco	mais	incisavamente	que	nos
blocos	anteriores,	ainda	que	não	o	faça	de	modo	contínuo	ou	abundante	–	para	o
Espírito	Santo.
O	Espírito	Santo	é	Deus,	e	o	é	com	o	Pai	e	o	Filho	na	unidade	da	Trindade,	do
Deus	único,¹⁵ 	da	mesma	substância	divina,	inseparavelmente.¹⁵⁷	Ele	procede	do
Pai¹⁵⁸	e	é	igual	ao	Pai	e	ao	Filho.¹⁵ 	Entre	eles	não	há	qualquer	distinção	que
implique	superioridade	de	um	sobre	o	outro.¹
A	ação	do	Espírito	Santo
É	o	Espírito	de	amor	que	nos	faz	gemer,	que	geme	em	nós,¹ ¹	com	gemidos	de
amor	e	de	desejo	da	Pátria	definitiva;¹ ²	presente	no	fiel,	qual	templo	da
divindade¹ ³	–	em	sua	unidade	trina	–,	prepara-o	para	a	instrução	das	realidades
divinas¹ ⁴	e	confirma	a	sua	fé	católica.¹ ⁵	A	instrução	das	realidades	divinas	e	a
confirmação	da	fé	católica	dizem	respeito	à	ação	de	ensino	do	Espírito	Santo.
Quanto	ao	ensinamento	da	verdade,	que	o	leitor	contemporâneo	facilmente
desenvolveria	a	partir	de	Jo	14,17;	15,16	e	16,13	(sobre	o	Espírito	da	verdade),
para	Agostinho,	o	ensinamento	do	Espírito	Santo	é	lido	em	textos	distintos,
sobremaneira	simbolicamente,	dos	quais	destacamos	duas	manifestações
visíveis:	a	pomba	no	batismo	do	Senhor	e	as	línguas	de	fogo	no	Pentecostes.¹
Simbolicamente,	os	gemidos	das	pombas	–	os	fiéis	na	unidade	batismal	da	única
Igreja	–	são	o	desejo	da	Pátria	e	tal	desejo	não	surge	da	própria	vontade	humana,
mas	é	ensinado	pelo	Espírito	Santo.	Com	isso,	o	Espírito	ensina	que	a	felicidade
eterna	não	se	encontra	nesta	vida	e	é,	aqui,	possuída	somente	na	esperança.¹ ⁷
Mas	o	ensinamento	da	verdade	ministrado	pelo	Espírito	Santo	é	um	conteúdo
que	implica,	necessariamente,	um	modo	de	agir.
Para	o	Hiponense,	quem	conhece	tais	verdades	aprende	do	Espírito	Santo	a	ser
simples	–	simples	é	aquele	em	quem	não	há	má-fé	–	e	a	permanecer	na	unidade,
quem	é	simples	não	é	cismático;	aprende	igualmente	o	fervor,	que	defende	a
verdade	da	própria	fé	sem	ofender	ninguém,	o	fervoroso	não	vocifera	contra	o
outro.	Simplicidade	e	fervor,	ensinados	pelo	Espírito,	convivem	nas	pombas,	que
gemem	de	Seu	amor	e	mantêm	a	paz.¹ ⁸	À	unidade	da	pomba	não	se	opõe	a
multiplicidade	das	línguas	no	Pentecostes,	pois	no	único	Espírito	Santo	–	na
única	Igreja¹ 	–	reuniram-se	os	muitos	e	diferentes	povos.¹⁷
Contudo,	além	dessas	manifestações	simbólicas	e	passageiras	do	Espírito
Santo,¹⁷¹	ele	ensina	também	de	outros	dois	modos:	“por	revelação”¹⁷²	e	por
“espiritualização”.¹⁷³	Por	revelação,	antes	da	encarnação	do	Verbo,	o	Espírito
Santo	ensina	sobre	as	verdades	vindouras	acerca	do	Cristo¹⁷⁴	e	instrui	os
profetas¹⁷⁵	e	os	hagiógrafos.¹⁷ 	Espiritualização	é	a	passagem	–	por	efeito	da
caridade¹⁷⁷	–	de	carnal	a	espiritual,¹⁷⁸	e	é	carnal	qualquer	um	que	somente	confie
nas	próprias	forças	naturais	e	julgue	a	partir	do	próprio	raciocínio.¹⁷
O	homem	carnal	considera	o	que	se	lhe	aparece;	o	espiritual,	ensinado	pelo
Espírito,	compreende	uma	realidade	ulterior	à	que	se	lhe	manifesta	e,	por	isso,
do	mesmo	Espírito	recebe	o	estar	“espiritualizado”	na	vida	do	mistério	que
aprende.¹⁸ 	Assim,	o	dizer	crer	nos	e	o	proclamar	os	mistérios	de	Cristo	não
implicam,	por	si	só	e	necessariamente,	espiritualização,	assim	como	a
espiritualização	não	se	adquire	de	uma	vez	por	todas:¹⁸¹	considere-se	que	os
discípulos	mesmos,	embora	já	espiritualizados,¹⁸²	são	tidos	pelo	Mestre	como
carnais	que	precisam	do	Espírito	Santo	para	tornarem-se	espirituais.¹⁸³
O	homem	espiritualizado	segue	Cristo	até	a	morte¹⁸⁴	e	tem,	por	dom,	ciência
mais	clara	–	e,	por	isso,	acertada	–	de	quem	é,¹⁸⁵	ciente	igualmente	de	que	a
plenitude	da	vida	no	Espírito	Santo	–	com	as	plenitudes	da	vida	na	caridade	e	do
conhecimento	da	verdade	–	não	pertence	a	esta	vida,¹⁸ 	na	qual	se	deve,	todavia,
permanecer	enraizado	na	caridade,	para	que	essa	aumente,	por	ação	do	Espírito
Santo,	sempre	mais¹⁸⁷	com	sua	presença,	pois	Ele	é	a	caridade¹⁸⁸	e	sua	fonte.¹⁸
Assim,	além	de	agir	ensinando,	o	Espírito	Santo	age	igualmente	difundindo	a
caridade	no	coração	do	fiel.
A	esse	respeito,	Agostinho	cita	–	ou	alude	a	–	Rm	5,5	(o	dom	da	caridade
difundido	nos	corações	pelo	Espírito)	mais	de	vinte	vezes¹ 	em	meio	aos	textos
joaninos	comentados	nestas	obras	para	sublinhar	a	precedência	do	dom	da
caridade	e	a	ação	do	Espírito	Santo¹ ¹	–	cujo	resultado	é	a	santidade¹ ².
O	distintivo	da	caridade
Do	dom	divino	da	caridade,	derramada	nos	corações	humanos	pelo	Espírito,
advêm	os	maiores	benefícios,¹ ³	como	a	vida	da	alma¹ ⁴	e	a	da	fé	mesma,¹ ⁵
porque	é	a	caridade	que	distingue	a	fé	verdadeira	da	fé	dos	demônios;¹ 	e	a	vida
do	fiel	na	fé	e	na	caridade	vivas	requer,	primeiramente,	o	nascimento	–	ou
renascimento	–	no	batismo,¹ ⁷	pelo	qual	se	passa	a	fazer	parte	do	Cristo	total.	A
vida	conferida	pelo	Espírito,	então,	flui	no	Corpo	de	Cristo¹ ⁸	e,	pelo	vínculo	da
mesma	caridade,¹ 	o	Espírito	une	os	membros	do	Corpo	entre	si	e	a	sua	Cabeça
e	submete-os	–	não	por	coerção,	obviamente	–	a	ela.²
Dom	também	do	Senhor,² ¹	epor	ele	ensinada,² ²	a	caridade	sintetiza	todo	o
conteúdo	da	Lei	e	dos	Profetas,² ³	e,	por	isso,	todo	o	conteúdo	de	ambos	os
Testamentos	das	Escrituras.² ⁴	A	partir	dessa	sintetização	de	dois	elementos	–	Lei
e	Profetas,	Antigo	e	Novo	Testamentos	–	na	caridade,	Agostinho	identifica	no
número	2	também	um	símbolo	do	amor	a	Deus	e	ao	próximo.² ⁵	Inseparáveis,	de
fato,	um	remete	necessariamente	ao	outro,	mesmo	quando	se	cita	um	só	desses
amores.² 	Porque	a	caridade	é	uma,	desdobrada	em	duplo	mandamento,² ⁷	sua
observação	é	o	único	modo	de	amar	verdadeiramente	a	si	mesmo.² ⁸	Sem	a
caridade,	tudo	o	que	se	possa	ter,	ser,	fazer,	saber...	é	nada	–	Agostinho	repete-o
por	mais	de	dez	vezes	citando	–	ou	aludindo	a	–	o	Hino	à	Caridade	de	São
Paulo.²
Não	há	lei	ou	realidade	que	substitua	a	caridade,	nem	qualquer	outro	grande	dom
que	lhe	seja	superior.²¹ 	É	ela	a	plenitude	da	Lei²¹¹	e	é	ela,	por	impreterivelmente
estabelecer	a	relação	com	o	próximo,	a	distinguir	–	interiormente²¹²	–	o	discípulo
de	Cristo	daqueles	que	não	O	seguem;²¹³	pois,	embora	o	amor	a	Deus	seja	o
primeiro	na	ordem	dos	preceitos,	o	amor	ao	próximo	é	o	primeiro	na	prática.²¹⁴
De	fato,	a	Deus,	transcendente	que	se	nos	escapa,²¹⁵	não	se	pode	chegar	sem	a
perfeição	da	caridade,²¹ 	que	é	exercitada	no	encontro	com	o	próximo.²¹⁷	Não	há,
para	quem	quer	que	seja,	outra	via	pela	qual	estar	com	o	Cristo	e	ser	honrado
pelo	Pai	além	do	amor	gratuito,	que	determina	quem	serve	a	Cristo²¹⁸	e	tem	Deus
em	si.²¹ 	O	sentimento	natural	humano	não	realiza	essa	união.	Por	isto	Cristo
chama	de	novo	o	mandamento	do	amor	mútuo:	não	é	sentimento,	é	seguimento
responsivo	gratuito	d’Aquele	único	que	ama	o	fiel	de	modo	a	transformá-lo	a
ponto	de	estender	amor	mesmo	aos	inimigos,	como	o	amor	de	Cristo.²² 	Que
dizer	então	do	amor	à	unidade	do	Corpo	de	Cristo?!
A	presença	da	caridade	implica,	necessariamente,	amor	à	unidade	do	corpo	de
Cristo,	que	é	Igreja,²²¹	da	qual	se	faz	parte	e	na	qual	se	permanece	por	amor,²²²
pois	o	amor	divino	produz	entre	os	homens	unidade	semelhante	à	unidade
divina.²²³	Isso,	naturalmente,	sem	esquecer	a	distância	imensa	que	existe	entre	o
Criador	e	as	criaturas	–	o	Deus	santo	e	o	homem	pecador.	Mas	o	amor	de	Deus
como	que	abole	essa	distância	–	insuperável	por	iniciativa	humana	–	e	faz-nos
entender	a	humilde	e	única	resposta	a	dar-Lhe;	a	acolhida	do	dom	divino	torna-
se	o	dom	humano	a	Ele	–	o	reconhecimento	do	amor,	de	fato,	faz-se	resposta	de
amor.
O	amor	divino	trinitário	é	oferta	de	dons	mútuos.	Assim	também	entre	os
homens	que	vivem	do	amor	divino.	Por	isso,	ofensas	e	cismas	não	ferem	pontos
doutrinais	–	por	fundamentais	que	sejam	–	exclusivamente,	mas	dilaceram	o
corpo	do	Cristo	total.²²⁴	Agostinho	insiste	que	o	amor	é	essencialmente
benevolência,	oblação,	dom.	Quem	ama,	quer	que	os	outros	lhe	sejam	iguais,
tenham	o	que	tem,	estejam	onde	está,	não	que	sejam	excluídos	ou	subjugados,
nem	mesmo	dogmaticamente.	Se	caridade	é	palavra	doce,	sua	realidade	o	é	mais
ainda.²²⁵
A	caridade	para	com	aqueles	que	laceram	a	unidade	do	Corpo	de	Cristo	não	se
mostra	na	polêmica	–	que,	enraizada	no	amor	pelo	próximo,	não	se	exclui	como
desnecessária	–,	mas	em	atitudes	que	expressam	a	dor	de	ver	a	laceração	do
corpo	do	qual	se	é	membro.²² 	No	fiel	que	assim	age,	age	a	Trindade,	que	age
também	naqueles	que	se	separaram	da	unidade.²²⁷	O	fiel,	então,	não	converte	os
separados,	quem	o	faz	é	o	mestre	interior.	A	ação	do	amor	na	unidade	do	corpo	é
ação	divina.	Por	isso,	quando	o	fiel	ama	–	e	ama-se	somente	quando	se	ama	com
a	caridade	divina	–	a	Igreja,	ama	sua	unidade	e	torna-se	sinal	efetivo	da	presença
do	Espírito	Santo	de	modo	a	estender	esse	amor	a	todos	os	povos,²²⁸	para
proveito	do	próximo,	não	do	próprio	fiel.²² 	A	caridade,	portanto,
agostinianamente	falando,	não	é	algo	que	se	faz,	nem	é	mera	matéria	de	discurso
teológico	tendente	a	individuais	espiritualidades	sentimentais	genéricas,	mas
sinal	real	da	presença	de	Cristo	na	história,	com	exigências	morais	–	ou	éticas	–
profundas.²³
A	teologia	cristológica	destas	obras	e	toda	sua	teologia	da	caridade,	apenas
indicadas	acima,	afloram,	evidente	e	inegavelmente,	na	eclesiologia:	não	há
Igreja	que	não	seja	comunhão	no	único	Corpo	de	Cristo,	que	estende
universalmente	o	mistério	salvífico	da	encarnação	do	Verbo	a	todos	os	homens
que	se	tornam	filhos	no	único	Filho,	e	podem,	por	isso,	amar-se	e	amar	o	Pai
com	o	amor	imaculado	do	Filho.
Santo	Agostinho	não	pretendia,	com	as	homilias	destes	comentários,	levar	os
fiéis	a	refletirem	sobre	a	essência	divina	ou	sobre	o	dogma	da	Trindade,	nem
sobre	regra	da	fé	ou	o	reto	conteúdo	dogmático	da	fé	professada	pela	Igreja.	O
ensinamento	destes	comentários	é	idêntico	ao	do	Evangelho	e	ao	da	Epístola	que
comentam:	o	amor	fraterno	que	aparentemente	liga	uma	pessoa	a	outra,	na
realidade,	une	a	pessoa	humana	a	Deus,	porque	Deus	é	substancialmente	o	amor
do	qual	o	homem	participa	ao	amar	seu	irmão,	e	isso	só	é	real	na	realidade	do
Verbo	encarnado	que	se	estende	em	seu	corpo	que	é	a	Igreja.	Só	sob	esse	prisma
entende-se	o	cuidado	agostiniano	de	preservar	a	fé	dos	católicos	e	de	esclarecer
os	hereges²³¹	–	cuidado	que	explica	as	exposições	anticismáticas	e	anti-heréticas
ao	pôr	em	relevo	o	caráter	universal	da	Igreja	e	as	exigências	da	verdadeira
caridade,	que	–	por	sua	natureza	–	não	suporta	que	a	unidade	do	Corpo	seja
dilacerada.
Ainda	hoje,	ao	ler	estas	homilias,	sentimos	vibrar	muito	da	alma,	cheia	de	ardor
e	zelo	apostólico,	de	seu	autor.	Por	certo,	para	sentir	plenamente	o	poder	de
sedução	das	palavras	de	Santo	Agostinho,	seria	preciso	escutá-lo,	pessoalmente,
partilhando	de	sua	vida,	pois	estes	comentários	são	obra	de	sua	maturidade,	são
duas	de	suas	obras	mais	profundas	e	belas.	Neles,	o	Hiponense	revela-se	teólogo,
filósofo,	exegeta,	pastor,	mas	particularmente	asceta	e	místico	enamorado	da	fé
no	mistério	que	professa	e	prega	e	que	ardentemente	deseja	viver.
A	presente	edição
Em	1989,	foi	publicado,	por	Edições	Paulinas,	o	Comentário	da	Primeira
Epístola	de	São	João,	em	tradução	da	Ir.	Nair	de	Assis	Oliveira,	CSA,	que,	então,
dedicou-se	a	traduzir	o	comentário	agostiniano	ao	quarto	evangelho.	Ela	faleceu
antes	de	concluir	os	trabalhos,	tendo	traduzido	as	homilias	1-43,	que	entregara	à
Paulus	com	o	esboço	de	um	esquema	de	introdução	para	a	obra	toda.	A
introdução	que	se	acaba	de	ler	resulta	desse	esboço.	Este	último,	porém,	repetia
textos	e	citações	quanto	a	insistência	agostiniana	no	tema	da	caridade	–	alguns
dos	quais	constavam	na	introdução	do	comentário	já	publicado.	Tais	repetições
explicam-se,	provavelmente,	pela	intenção	da	tradutora	de	publicar	este	último
comentário	em	vários	volumes,	talvez	correspondentes	aos	blocos	em	que	se
divide	a	obra.	Para	evitar	essas	repetições,	mas	também	para	atualizar	a
bibliografia	e	a	discussão	acerca	da	cronologia	do	comentário	que	já	havia	sido
publicado,	decidimos	integrar	as	introduções,	publicando	juntas	as	duas	obras.
Ainda	com	relação	à	publicação	de	1989,	o	leitor	notará	que	as	citações	latinas
nas	notas	de	rodapé	foram	enxugadas,	mantendo-se	somente	aquelas
consideradas	necessárias,	para	indicar,	por	exemplo,	uma	tradução	mais	livre,	ou
mais	complexa,	como	costuma	ser	nesta	coleção;	as	poucas	notas	inseridas	são
remissões	a	obras	agostinianas,	salvo	uma	ou	outra	explicativa,	como	a	nota
sobre	a	lua	nova	visível	em	seu	terceiro	dia,	em	1,13.	Com	a	tradução	de
Luciano	Rouanet	Bastos	das	homilias	44-124,	temos	o	comentário	agostiniano
ao	quarto	evangelho	completo.	Este	volume	de	Comentários	a	São	João,	no	qual
constam	as	últimas	traduções	realizadas	por	Ir.	Nair,	quer	ser	uma	homenagem
póstuma	a	ela,	que	muito	se	empenhou	pela	divulgação	da	obra	de	Santo
Agostinho.
HOMILIA	1
O	Verbo	que	as	trevas	não	receberam	(Jo	1,1-5)
Estado	de	espírito	do	pregador
1	Examinando	bem	o	que	acabamos	de	ouvir	da	leitura	apostólica:	“O
homem	psíquico	não	percebe	as	coisas	que	são	do	Espírito	de	Deus”,²³²	e
pensando	que,	na	presente	multidão	da	vossa	caridade,	deve	haver	muitos
que,	psíquicos,	ainda	percebam	as	coisas	segundoa	carne	e	não	sejam
capazes	de	elevar-se	a	uma	compreensão	espiritual,	hesito	veementemente
com	relação	a	como	poderia	expor,	conforme	o	Senhor	o	conceder,	ou
explicar,	com	os	meus	fracos	recursos,	esse	texto	do	Evangelho	que	acaba	de
ser	lido.	“No	princípio	era	o	Verbo	e	o	Verbo	estava	junto	de	Deus,	e	o
Verbo	era	Deus”.²³³	Com	efeito,	o	homem	psíquico	ou	animal,	não	percebe
tais	coisas.	O	que	dizer,	irmãos?	Silenciaremos	a	respeito?	E	por	que	razão,
então,	foi	lido	o	texto,	se	havemos	de	calar-nos?	E	por	que	se	escuta,	se	não
se	explica?	Mas,	por	outro	lado,	por	que	se	explica,	se	não	se	compreende?
Não	duvido,	todavia,	que	haja,	em	vosso	número,	pessoas	que	possam	não	só
compreender	a	explicação,	como	até	mesmo	entender	o	texto	antes	que	seja
explicado.	Espero	não	defraudar	os	que	o	compreendem,	mesmo	com	risco
de	tornar-me	desmedido	aos	ouvidos	dos	que	não	o	podem	entender.	Enfim,
conto	em	tudo	com	a	assistência	da	misericórdia	de	Deus	para	ficarmos,
quiçá,	todos	satisfeitos	e	entender,	cada	um,	o	que	puder,	pois	também
aquele	que	fala	diz	o	que	pode.	E	quem	seria	capaz	de	explicar	as	coisas
como	elas	são,	na	verdade?	Atrevo-me	a	afirmar,	meus	irmãos,	que	talvez
nem	o	próprio	João	as	tenha	dito	tal	como	são,	mas	certamente	disse	quanto
pôde,	porque	era	ele	um	homem	que	falou	sobre	Deus,	e	embora	fosse,	sem
dúvida,	inspirado	por	Deus,	não	deixava	de	ser	um	homem.	Por	ter	sido
inspirado,	disse	algo;	se	não	tivesse	sido	inspirado,	nada	teria	dito.	Por	ser,
no	entanto,	um	homem	inspirado,	não	disse	toda	a	realidade,	mas
certamente	disse	quanto	pode	um	homem.
João,	o	evangelista
2	Efetivamente,	caríssimos	irmãos,	João	era	daqueles	montes	dos	quais	está
escrito:	“Recebam	os	montes	a	paz	para	o	teu	povo,	e	as	colinas	a	justiça”.²³⁴
Os	montes	são	as	almas	excelsas,	e	as	colinas,	as	almas	pequeninas.	Os
montes,	precisamente,	recebem	a	paz	para	que	as	colinas	possam	receber	a
justiça.	Que	justiça	é	essa	que	recebem	as	colinas?	Recebem	a	fé,	porque	“o
justo	vive	de	fé”.²³⁵	As	almas	mais	pequeninas	não	receberiam	a	fé,	se	as
maiores,	que	se	chamam	montes,	não	fossem	iluminadas	pela	própria
Sabedoria,	para	poderem	transmitir	aos	pequeninos	o	que	estes	são	capazes
de	compreender,	e	as	colinas	possam	viver	da	fé.	É	por	isso	que	os	montes
recebem	a	paz.	Foi	dito	pelos	montes	à	Igreja:	“A	paz	esteja	convosco”.	Os
próprios	montes,	ao	anunciarem	a	paz	à	Igreja,	não	se	separaram	d’Aquele
de	quem	recebiam	a	paz,	para	que	anunciassem	a	paz	com	veracidade,	e	não
de	um	modo	fingido.
Promotores	de	cismas	e	heresias	são	montes	que	causam	naufrágios
3	Na	verdade,	há	outros	montes	que	causam	naufrágios	a	todos	os	que
dirigem	sua	embarcação	para	junto	deles.	Acontece	que,	quando	a	terra	é
avistada	pelos	que	se	encontram	em	perigo	numa	embarcação,	facilmente	se
envidam	esforços	em	direção	a	ela.	Por	vezes,	a	terra	é	vista	como	se	fosse
um	monte.	Por	debaixo	deste	escondem-se,	todavia,	escolhos.	Quando	a
embarcação	tenta	aproximar-se	do	monte,	vai	de	encontro	a	esses	escolhos	e
ali	não	encontra	um	porto,	mas	lamento.	De	modo	idêntico,	apareceram
entre	os	homens	certos	montes	de	grande	vulto,	que	levantaram	heresias	e
cismas,	estabelecendo	a	divisão	na	Igreja	de	Deus.	Esses	que	dividiram	a
Igreja	de	Deus	não	eram,	porém,	os	montes	sobre	os	quais	foi	dito:
“Recebem	os	montes	a	paz	para	o	povo”.²³ 	Como	podem	ter	recebido	a	paz,
os	que	dividiram	a	unidade?
João	contemplou	a	Sabedoria
4	Os	que	receberam	a	paz	que	devia	ser	anunciada	ao	povo	contemplaram	a
própria	Sabedoria,	na	medida	em	que	é	possível	aos	corações	humanos
alcançarem	“o	que	nem	os	olhos	viram	nem	os	ouvidos	ouviram,	nem	jamais
passou	pelo	pensamento	do	homem”.²³⁷	Se	a	Sabedoria,	todavia,	não	sobe	ao
coração	humano,	como	subiu	ao	coração	de	João?	Ou	será	que	João	não	era
um	homem?	Ou,	talvez,	a	Sabedoria	não	tenha	subido	ao	coração	de	João,
mas	o	coração	de	João	subido	até	ela?	Porque	o	que	sobe	ao	coração	do
homem	é	inferior	ao	mesmo	homem,	mas	aquilo	para	o	qual	se	eleva	o
coração	do	homem	é	superior	ao	homem.	E	também	isso	se	pode	dizer,
irmãos;	com	efeito,	se	de	algum	modo	se	pode	dizer	que	a	Sabedoria	subiu
ao	coração	de	João,	ela	o	fez	na	medida	em	que	João	não	era	homem.	O	que
quer	dizer:	“João	não	era	homem”?	Que,	de	alguma	forma,	começara	a	ser
anjo,	pois	todos	os	santos	tornam-se	anjos,	ao	serem	anunciadores	de	Deus.
O	que	diz,	então,	o	Apóstolo	aos	homens	carnais	e	naturais,	“que	não	podem
compreender	as	coisas	que	são	de	Deus”?	Vós	que	dizeis:	“Eu	sou	de	Paulo
e	eu	de	Apolo”²³⁸,	não	sois	por	acaso	apenas	homens?	O	que	desejava,	então,
o	Apóstolo	fazer	desses	homens,	a	quem	censurava	por	serem	apenas
homens?	Quereis	saber	o	que	queria	fazer	deles?	Escutai	o	que	está	escrito
nos	Salmos:	“Eu	disse:	sois	deuses	e	todos	sois	filhos	do	Altíssimo”.²³ 	Deus
chama-nos	a	isto:	a	que	não	sejamos	apenas	homens.	E	nós	seremos	mais	do
que	homens,	na	medida	em	que	primeiro	reconhecermos	que	somos
homens,	isto	é,	na	medida	em	que	nos	elevarmos	da	humildade	àquela
grandeza.	Ao	contrário,	se	julgarmos	ser	alguma	coisa,	quando	afinal	nada
somos,	não	só	não	havemos	de	receber	o	que	não	somos,	como	viremos
também	a	perder	o	que	somos.
João	ultrapassa	toda	a	criação
5	Irmãos,	João,	que	disse:	“No	princípio	era	o	Verbo,	e	o	Verbo	estava	em
Deus,	e	o	Verbo	era	Deus”,²⁴ 	era	um	desses	montes.	Recebera	esse	monte	a
paz,	e	contemplava	a	divindade	do	Verbo.	De	que	modo	se	erguia	esse
monte?	Que	altura	ele	tinha?	Transcendera	todos	os	cumes	da	terra,
transcendera	todas	as	regiões	do	ar,	transcendera	todas	as	alturas	dos
astros,	transcendera	todos	os	coros	e	legiões	de	anjos.	Caso	não	se	tivesse
elevado	acima	de	tudo	o	que	foi	criado,	não	teria	chegado	Àquele	por	quem
“tudo	foi	criado”.²⁴¹	Não	podeis	imaginar	o	quanto	transcendeu,	se	não
observardes	até	onde	chegou.	Perguntas	pela	terra	e	pelo	céu?	Foram
criados!	Perguntas	pelos	seres	que	existem	no	céu	e	na	terra?	Ora,	com
muito	maior	razão	são,	eles	também,	criaturas.	Perguntas	pelas	criaturas
espirituais:	anjos,	arcanjos,	tronos,	dominações,	virtudes	e	principados?
Também	elas	foram	criadas!	Quando	o	Salmo	enumerava	todas	essas	coisas,
concluiu	assim:	“Ele	falou	e	tudo	foi	feito;	mandou	e	tudo	foi	criado”.²⁴²	Se
Deus	falou	e	logo	tudo	foi	criado,	a	obra	da	criação	foi	realizada	por
intermédio	do	Verbo.	Se	tudo	foi	feito	pelo	Verbo,	o	coração	de	João	não
poderia	ter	chegado	àquilo	que	diz:	“No	princípio	era	o	Verbo,	e	o	Verbo
estava	junto	de	Deus,	e	o	Verbo	era	Deus”,	a	não	ser	que	tivesse
transcendido	todas	as	criaturas	que	foram	feitas	pelo	Verbo.	Que	tipo	de
monte	é	esse,	quão	santo	é	e	quão	elevado,	entre	aqueles	montes	que
receberam	a	paz	para	o	povo	de	Deus,	a	fim	de	que	as	colinas	pudessem
receber	a	justiça?²⁴³
João	é	monte	que	traz	o	auxílio	do	alto
6	Vede,	pois,	irmãos,	se	não	é	João	um	daqueles	montes	acerca	dos	quais
cantamos	há	pouco:	“Levantei	os	meus	olhos	para	os	montes,	de	onde	me
virá	o	auxílio?”²⁴⁴	Se,	portanto,	quiserdes	compreender,	levantai	os	olhos
para	esse	monte,	isto	é,	erguei-vos	até	o	evangelista,	erguei-vos	ao	seu
pensamento.	Visto	que,	no	entanto,	tais	montes	recebem	a	paz,	e	não	pode
estar	em	paz	quem	põe	no	homem	a	sua	esperança,	não	ergais	os	olhos	ao
monte,	pensando	que	vossa	esperança	se	há	de	depositar	num	homem.
Assim,	dizei:	“Levantei	os	meus	olhos	para	os	montes:	de	onde	me	virá	o
auxílio?”,	mas	acrescentando	em	seguida:	“O	meu	auxílio	vem	do	Senhor,
que	fez	o	céu	e	a	terra”.²⁴⁵	Levantemos,	pois,	os	olhos	para	os	montes	de
onde	nos	virá	o	auxílio.	A	nossa	esperança,	contudo,	não	deve	ser	depositada
nos	próprios	montes,	porque	os	montes	recebem	também	o	que	nos	hão	de
oferecer.	É,	portanto,	lá,	de	onde	também	os	montes	recebem,	que	se	há	de
depositar	a	nossa	esperança.	Quando	erguemos	os	olhos	para	as	Escrituras,
–	uma	vez	que	as	Escrituras	foram-nos	dadas	por	meio	de	homens	–
erguemo-los	para	os	montes,	de	onde	nos	virá	o	auxílio.	No	entanto,	como
eram	homens	os	que	escreveram	as	Escrituras,	não	reluziam	eles	por	si
mesmos.	Mas	Aquele	“era	a	luz	verdadeira	que	ilumina	todoo	homem	que
vem	a	este	mundo”.²⁴ 	Monte	era	também	o	mesmo	João	Batista,	que	disse:
“Eu	não	sou	o	Cristo”.²⁴⁷	E	para	que	ninguém	se	afastasse	d’Aquele	que
ilumina	os	montes,	por	colocar	num	monte	toda	a	sua	esperança,
acrescentou:	“Todos	nós	recebemos	de	Sua	plenitude”.²⁴⁸	Por	isso,	deves
dizer:	“Levantei	os	olhos	para	os	montes	de	onde	me	virá	o	auxílio”;	mas,
para	não	atribuíres	aos	montes	o	auxílio	que	te	vem,	hás	de	prosseguir,
dizendo:	“O	meu	auxílio	vem	do	Senhor,	que	fez	o	céu	e	a	terra”.
Só	Deus	ilumina	a	inteligência
7	Irmãos,	recordei-vos	isso	para	que,	ao	terdes	levantado	o	coração	para	as
Escrituras,	quando	ressoava	o	Evangelho:	“No	princípio	era	o	Verbo,	e	o
Verbo	estava	junto	de	Deus,	e	o	Verbo	era	Deus”,	e	as	restantes	palavras
que	foram	lidas,	entendais	que	levantastes	os	olhos	para	os	montes.	Se	os
montes	não	dissessem	essas	coisas,	não	encontraríeis,	absolutamente,
matéria	de	reflexão.	Veio	até	vós,	portanto,	o	auxílio	dos	montes,	para	que
ouvísseis	isso,	mas	ainda	não	podeis	compreender	o	que	ouvistes.	Invocai	o
auxílio	do	Senhor,	que	fez	o	céu	e	a	terra,	porque	os	montes	puderam	falar,
sem	que	possam,	no	entanto,	eles	próprios	iluminar,	por	terem	sido
iluminados	também	eles,	ao	ouvirem	a	mensagem.	Daí	que	nos	tenha	dito
essas	coisas,	irmãos,	aquele	João	que	as	recebeu,	que	se	recostava	sobre	o
peito	do	Senhor,	e	do	peito	do	Senhor	bebia	o	que	nos	daria	a	beber.	Deu-
nos	a	beber,	porém,	palavras;	o	sentido	dessas	palavras,	todavia,	deves	ir
buscar	ali	de	onde	bebera	aquele	que	tas	deu	a	beber.	E	assim,	pois,	hás	de
levantar	os	olhos	para	os	montes	de	onde	te	virá	o	auxílio,	para	deles
receberes	como	que	um	cálice,	isto	é,	a	palavra	que	se	te	dá	a	beber,	e,
contudo,	porque	o	teu	auxílio	vem	do	Senhor	que	fez	o	céu	e	a	terra,	hás	de
encher	o	peito	lá	onde	ele	também	o	encheu,	razão	pela	qual	disseste:	“O
meu	auxílio	vem	do	Senhor	que	fez	o	céu	e	a	terra”.	Que	o	encha,	portanto,
quem	pode	fazê-lo.	Digo-vos	isto,	irmãos:	que	levante	cada	um	o	seu
coração,	na	medida	em	que	o	notar	idôneo,	e	compreenda	o	que	se	está	a
dizer.	Talvez	digais	que	estou	mais	presente	a	vós	do	que	o	próprio	Deus.
Longe	de	nós	pensá-lo!	Ele	está	muito	mais	presente.	Eu	apareço	ante	os
vossos	olhos,	mas	Ele	preside	às	vossas	consciências.	Enquanto	dirigis	a	mim
vossos	ouvidos,	levantai	para	Ele	o	coração:	para	que	possais,	assim,	encher
tanto	um	como	os	outros.	Eis	que	levantais	para	nós	os	vossos	olhos	e	esses
sentidos	do	corpo,	ou	melhor,	não	para	nós,	pois	não	somos	daqueles
montes,	mas	para	o	Evangelho,	para	o	próprio	evangelista	é	que	os	deveis
levantar,	e	o	coração	deve	encher-se	diante	do	Senhor.	E	cada	um	eleve	o
coração	de	modo	tal	que	saiba	o	que	eleva	e	para	onde	o	eleva.	E	o	que	quis
dizer:	“o	que	eleva	e	para	onde	o	eleva”?	O	seguinte:	veja	cada	um	que
coração	é	esse	que	eleva,	já	que	o	eleva	ao	Senhor;	não	suceda	que,	antes	de
ter	sido	elevado,	ele	caia	oprimido	pelo	fardo	da	voluptuosidade	carnal.	E
nota	alguém	que	é	esmagado	pelo	peso	da	carne?	Esforce-se,	por	meio	da
continência,	para	purificar	o	que	eleva	a	Deus.	“Bem-aventurados,	pois,	os
puros	de	coração,	porque	verão	a	Deus”.²⁴
A	Palavra	de	Deus	e	as	nossas	palavras
8	Ora,	qual	é	o	proveito	de	terem	ressoado	estas	palavras:	“No	princípio	era
o	Verbo	e	o	Verbo	estava	junto	de	Deus,	e	o	Verbo	era	Deus”²⁵ ?	Ao
falarmos,	também	nós	pronunciamos	palavras.	Será	que	uma	palavra	tal
existia	junto	de	Deus?	Por	acaso,	as	palavras	que	dissemos	não	ressoaram	e
passaram?	Dir-se-á,	então,	que	também	o	Verbo	divino	ressoou	e
desapareceu?	Como,	então,	“tudo	se	fez	por	Ele	e	nada	se	fez	sem	Ele”?²⁵¹
Como	pode	por	Ele	reger-se	o	que	por	Ele	foi	criado,	se	ressoou	e	passou?
Que	Verbo	será	esse	que	se	diz,	e	não	passa?	Esteja	atenta	a	vossa	caridade:
trata-se	aqui	de	algo	grande.	Por	falarmos	diariamente,	as	palavras
perderam	para	nós	seu	valor,	porque	se	vilificaram,	ao	ressoarem	e
desaparecerem,	e	não	se	nos	apresentam	já	senão	como	meras	palavras.
Existe	também	no	homem,	contudo,	uma	palavra	que	permanece	dentro,
pois	o	som	sai	pela	boca.	Há	uma	palavra	que	se	pronuncia
verdadeiramente	com	o	espírito.	E	ela	é	o	que	entendes	a	partir	do	som,	não
o	próprio	som.	Eis	que	ao	dizer:	“Deus”,	pronuncio	uma	palavra.	Quão
breve	é	o	que	disse:	são	quatro	letras	e	uma	só	sílaba!²⁵²	Será	que	esse
conjunto	de	sinais	é	Deus:	quatro	letras	e	uma	sílaba?	Ou	acaso,	dir-se-á,
quanto	menos	digno	de	apreço	é	o	som	exterior,	tanto	mais	apreciável	é	seu
significado?	Que	se	passou	em	teu	coração,	quando	ouviste	dizer:	Deus?	E
que	se	passou	em	meu	coração,	quando	eu	dizia:	Deus?	Vem-nos,
instantaneamente,	ao	pensamento	certa	natureza	grande	e	suma,	que
transcende	toda	criatura	mutável,	carnal	e	animal.	E,	caso	eu	te	diga:	É
Deus	mutável	ou	imutável?	Responderias	logo:	Longe	de	mim,	crer	ou
pensar	que	Deus	seja	mutável.	Deus	é	imutável!	Tua	alma,	embora
diminuta,	e	talvez	ainda	carnal,	não	me	pôde	responder	senão	que	Deus	é
imutável	e	que	mutável	é	toda	criatura.	Como,	então,	pudeste	vislumbrar	o
que	transcende	toda	criatura,	a	ponto	de	me	responderes,	com	certeza,	que
Deus	é	imutável?	O	que	há,	pois,	em	teu	coração,	quando	te	representas
uma	natureza	viva,	eterna,	onipotente,	infinita,	presente	em	toda	parte	e
encontrando-se	toda	ela	em	toda	parte,	sem	que	nada	a	possa	limitar?
Quando	assim	pensas,	é	o	Verbo	de	Deus	que	está	em	teu	coração!	Trata-se
daquele	som	composto	de	quatro	letras	e	uma	sílaba?	O	que	se	pronuncia	e
desaparece	são	sons,	letras	e	sílabas.	O	que	passa	é	a	palavra	que	ressoa.
Mas	a	que	é	significada	pelo	som	e	que	se	encontra	em	quem	pensa	e	a
pronunciou,	bem	como	em	quem	entende	o	que	escutou,	esta	permanece,
mesmo	depois	de	os	sons	desaparecerem.
O	mundo	visível	reflete	a	grandeza	do	Verbo
9	Fixa	a	atenção	de	teu	espírito	naquele	verbo	mental.	Se	podes	conservar
tal	verbo	no	coração,	como	pensamento	nascido	em	tua	mente,	é	como	se
tua	mente	desse	à	luz	o	pensamento	e	este	estivesse	ali	dentro,	como	prole	de
tua	mente,	como	filho	de	teu	coração.	O	coração	gera,	primeiramente,	um
pensamento	quando	queres	levantar	qualquer	construção	ou	algo	grande	na
terra.	O	pensamento	já	nasceu,	e	a	obra	ainda	não	foi	realizada.	Tu	vês	o
que	intentas	realizar.	Ninguém,	porém,	se	admira,	senão	depois	de	teres
levantado	e	construído	aquela	massa,	aquela	obra	em	sua	forma	e	perfeição
definitiva.	Os	homens	olham,	então,	com	atenção	a	bela	obra	e	admiram-se
do	plano	do	artífice.	Maravilham-se	do	que	veem,	e	amam	o	que	não	veem.
Com	efeito,	quem	pode	contemplar	um	pensamento?	Se,	portanto,	a	partir
de	alguma	construção	imponente,	pode-se	louvar	um	pensamento	humano,
queres	ver	agora	a	sublimidade	do	pensamento	de	Deus	que	é	o	Senhor
Jesus	Cristo,	isto	é,	o	Verbo	de	Deus?	Contempla	a	construção	do	mundo.
Vê	o	que	foi	feito	pelo	Verbo	e,	então,	terás	uma	ideia	de	como	seja	o	Verbo.
Considera	as	duas	partes	do	universo,	o	céu	e	a	terra.	Quem	poderá	explicar
com	palavras	toda	a	beleza	do	céu?	Quem	poderá	explicar	com	palavras
toda	a	fecundidade	da	terra?	Quem	poderá	louvar	dignamente	o	ciclo	das
estações	e	a	força	das	sementes?	Vedes	as	outras	realidades	que	calo;	não
aconteça	que,	por	uma	enumeração	mais	longa,	eu	acabe	dizendo	menos,
talvez,	do	que	podeis	pensar.	A	partir	dessa	construção,	pois,	conjeturai
como	é	o	Verbo	por	meio	de	quem	foi	feita.	E	não	foi	ela	a	única	realidade
feita.	Tudo	isso	que	se	vê,	é	visto	porque	diz	respeito	ao	sentido	do	corpo.
Por	aquele	Verbo,	porém,	foram	criados	também	os	anjos.	Pelo	Verbo,
foram	criados	também	os	arcanjos,	as	potestades,	os	tronos,	as	dominações,
os	principados.	Tudo	foi	criado	por	aquele	Verbo:	por	aí,	podeis	pensar	de
que	natureza	seja	o	Verbo.
O	Verbo	é	a	Palavra	de	Deus
10	Dir-me-á	agora,	talvez,	não	sei	quem:	E	quem	pensa	nesse	Verbo?	Não
penses	nada	de	banal,	quando	ouvires	o	termo	“Verbo”.	Não	reduzas	o
Verbo	às	palavras	humanas	que	se	ouvem	cada	dia:	Este	pronunciou	tais
palavras,	aquele	exprimiu	tais	outras,	narras-me	tu	ainda	outras.	Com	seu
uso	assíduo,	as	palavras	como	que	perderam	o	seu	valor.	Assim,	aoouvires
dizer:	“No	princípio	era	o	Verbo”,	para	não	imaginares	algo	de	pouco	valor,
semelhante	ao	que	costumas	pensar	quando	ouves	falar	palavras	humanas,
ouve	o	que	deves	pensar:	“E	o	Verbo	era	Deus”.²⁵³
“O	Verbo	era	Deus”
11	Apresente-se	agora	não	sei	que	infiel	ariano,	e	venha	dizer	que	o	Verbo
de	Deus	foi	feito.	Como	pode	ser	que	o	Verbo	de	Deus	tenha	sido	feito,
quando	Deus,	pelo	Verbo,	fez	tudo?	Se	o	Verbo	de	Deus	foi	feito,	por	meio
de	que	outro	verbo	foi	Ele	feito,	então?	Se	disseres	que	existe	um	Verbo	do
Verbo,	por	quem	aquele	foi	feito,	é	este	último	que	eu	denomino	Filho	único
de	Deus.	Mas	se	não	dizes	que	há	um	Verbo	do	Verbo,	deves	admitir	que
não	foi	criado	Aquele	por	quem	tudo	foi	criado.	Não	Se	pode	fazer	por	Si
mesmo	Aquele	que	criou	todas	as	coisas:	crê,	portanto,	no	evangelista!	Ele
poderia	ter	dito:	“No	princípio,	Deus	fez	o	Verbo”,	como	Moisés	disse:	“No
princípio,	Deus	fez	o	céu	e	a	terra”.²⁵⁴	E	logo	enumera	tudo,	servindo-se	da
fórmula:	“Deus	disse:	‘Faça-se’;	e	foi	feito”.	Se	disse,	quem	disse?	Sem
dúvida,	Deus.	E	o	que	foi	feito?	Alguma	criatura.	Entre	Deus	que	diz	e	a
criatura	feita,	o	que	existe	senão	o	Verbo,	por	meio	de	quem	ela	se	fez?	De
fato,	Deus	disse:	“Faça-se”,	e	foi	feito;	é	esse	o	Verbo	imutável.	Conquanto
as	realidades	mutáveis	sejam	feitas	pelo	Verbo,	Ele	próprio	é	imutável.
O	Verbo	é	quem	nos	cria	e	recria
12	Não	creias,	pois,	que	foi	feito	o	Verbo,	por	quem	todas	as	coisas	foram
feitas,	para	que	não	sejas	privado	da	restauração	que	nos	vem	pelo	Verbo,
por	quem	todas	as	coisas	são	restauradas.	Pelo	Verbo,	tu	já	foste	feito;	mas	é
igualmente	necessário	que	sejas	restaurado	pelo	Verbo.	Se	defeituosa	for,
contudo,	a	tua	fé	no	Verbo,	não	poderás	ser	restaurado	pelo	Verbo.	Pelo
Verbo,	foste	feito,	mas	é	preciso	ainda	que	sejas	refeito	pelo	Verbo.	Se	te
tocou	em	sorte	seres	feito	pelo	Verbo,	de	modo	tal	que	por	Ele	foste	feito,
por	ti	te	desfazes.	Se	te	desfazes,	é	preciso	que	te	refaça	Aquele	que	te	fez.	Se
por	ti	mesmo	te	tornaste	pior,	é	preciso	que	te	recrie	Aquele	que	te	criou.
Como,	porém,	Ele	te	há	de	recriar	pelo	Verbo,	se,	em	algum	aspecto,	pensas
mal	acerca	do	Verbo?	Diz	o	evangelista:	“No	princípio	era	o	Verbo”,	e	tu
dizes:	No	princípio	foi	feito	o	Verbo.	Ele	diz:	“Tudo	foi	feito	por	meio
d’Ele”,²⁵⁵	e	tu	dizes:	O	próprio	Verbo	foi	feito.	O	evangelista	poderia	ter
dito:	No	princípio,	o	Verbo	foi	feito,	mas	o	que	disse?	“No	princípio,	era	o
Verbo”.	Se	era,	não	foi	feito.	E	assim,	todas	as	coisas	seriam	feitas	por	Ele,	e
sem	Ele,	nada.	Se	não	podes	entender	que:	“No	princípio	era	o	Verbo,	e	o
Verbo	estava	junto	de	Deus,	e	o	Verbo	era	Deus”,	espera	que	cresças.	Ele	é
um	alimento;	nutre-te,	pois,	com	leite	até	te	tornares	mais	robusto,	para
poderes	assimilar	então	o	alimento.²⁵
Tudo	foi	feito	pelo	Verbo
13	Atenção,	irmãos,	ao	que	se	segue:	“Tudo	foi	feito	por	meio	d’Ele,	e	sem
Ele	nada	foi	feito.²⁵⁷	Não	penseis	que	o	nada	seja	alguma	coisa.	São	muitos
os	que,	por	má	compreensão	do	texto:	“e	sem	Ele	nada	foi	feito”,	imaginam
que	o	nada	seja	alguma	coisa.	Certamente,	o	pecado	não	foi	feito	por	ele,
pois	é	evidente	que	o	pecado	é	o	nada.	E	os	homens,	ao	pecarem,	tornam-se
nada.	E	o	ídolo	não	foi	feito	pelo	Verbo,	embora	tenha	certa	forma	humana.
O	homem	é	que	foi	feito	pelo	Verbo,	e	não	a	forma	do	homem	no	ídolo,	pois
está	escrito:	“Nós	sabemos	que	o	ídolo	nada	é	no	mundo”.²⁵⁸	Tais	coisas	não
foram	feitas	pelo	Verbo,	mas	sim	as	que	são	naturalmente	feitas,	que
existem	entre	as	criaturas	–	tanto	as	que	estão	fixas	no	céu,	e	que
resplandecem	sobre	as	nossas	cabeças,	como	as	que	voam	sob	o	céu,	e	as	que
se	movem	em	toda	a	natureza	das	coisas:	tudo	é	absolutamente	criatura
Sua.	Di-lo-ei	mais	claramente;	di-lo-ei,	irmãos,	para	entenderdes:	desde	o
anjo	até	o	menor	verme.	Haverá	entre	as	criaturas	alguma	superior	ao
anjo?	E	acaso,	algo	mais	vil	do	que	um	pequeno	verme?	Pois	Aquele	por
quem	se	fez	o	anjo	é	o	mesmo	por	quem	se	fez	o	vermezinho;	mas	o	anjo	é
digno	do	céu,	e	o	verme,	digno	da	terra.	O	próprio	Criador	o	dispôs.	Se
pusesse	o	verme	no	céu,	tu	O	censurarias.	Do	mesmo	modo,	haverias	de
censurá-l’O	se	tivesse	querido	que	os	anjos	nascessem	de	carnes	em
putrefação.	Deus	realizou,	no	entanto,	algo	semelhante,	e	não	deve	ser
censurado.	Todos	os	homens	que	nascem,	pois,	da	carne,	o	que	são	senão
vermes?	E,	de	vermes,	Deus	faz	anjos.	Se,	pois,	o	próprio	Senhor	diz:	“Eu
sou	um	verme	e	não	um	homem”,²⁵ 	hesitará	alguém	em	afirmar	o	que	está
escrito	em	Jó:	“Quanto	mais	o	homem,	essa	podridão	e	o	filho	do	homem,
esse	verme”?² 	O	texto	começa	dizendo:	“O	homem	é	podridão”,	e	depois:
“O	filho	do	homem,	verme”,	pois	o	verme	nasce	da	podridão	e,	portanto,	o
homem	é	podridão,	e	o	filho	do	homem,	um	verme.	Eis	o	que	Se	quis	fazer
por	ti	Aquele	que	“no	princípio	era	o	Verbo	e	o	Verbo	estava	junto	de	Deus,
e	o	Verbo	era	Deus”.	Por	que	Se	fez	isso	por	ti?	Para	dar-te	um	alimento
suave,	pois	não	podias	ainda	mastigar.² ¹	Compreendei	assim,	pois,	irmãos,	e
não	de	outro	modo,	as	palavras:	“Tudo	foi	feito	por	Ele	e	sem	Ele	nada	se
fez”.	A	universalidade	das	criaturas	foi	feita	por	Ele,	tanto	as	maiores	como
as	menores,	tanto	as	superiores	como	as	inferiores,	tanto	as	espirituais	como
as	corporais:	tudo	foi	feito	por	Ele.	Forma	alguma,	com	efeito,	estrutura
alguma,	harmonia	de	partes	ou	substância	alguma,	qualquer	que	seja,	que
possa	ter	peso,	número	e	medida,	nada	existe	senão	por	meio	daquele	Verbo,
senão	provindo	daquele	Verbo	criador,	a	quem	foi	dito:	“Tudo	dispuseste
com	medida,	número	e	peso”.² ²
Artimanhas	dos	maniqueus
14	Que	ninguém	vos	engane,	pois,	quando	vos	sentirdes,	talvez,
incomodados	com	as	moscas.	Algumas	pessoas	foram,	de	fato,	ludibriadas
pelo	diabo	e	deixaram-se	prender	ante	as	moscas.	Com	efeito,	os	caçadores
de	aves	costumam	usar	moscas	em	suas	armadilhas,	no	intuito	de	aprisionar
as	aves	famintas.	Assim	também,	tais	pessoas	foram	enganadas	pelo	diabo
com	as	moscas.	Ora,	estava	não	sei	quem	muito	incomodado	com	as	moscas,
e	Manes	encontrou-o	em	meio	a	seu	aborrecimento.	Quando	o	homem	disse
que	não	podia	aguentar	mais	as	moscas	e	que	as	detestava	profundamente,
Manes	perguntou-lhe,	então,	logo	em	seguida:	–	Quem	as	fez?	–
Importunado	como	estava	o	outro,	em	seu	ódio	por	aquelas	moscas,	não
ousou	afirmar:	“Deus	as	fez.”	Esse	homem	era,	no	entanto,	um	católico.
Manes	retrucou	de	imediato:	–	Se	não	foi	Deus,	então	quem	as	fez?	–	E	o
católico	respondeu:	–	A	falar	francamente,	creio	que	foi	o	diabo.	Torna-lhe
mais	que	depressa	o	maniqueu:	–	Se	o	diabo	fez	a	mosca,	como	vejo	que
confessas	–	pois	vais	entendendo	prudentemente	–,	quem	fez	a	abelha,	que	é
pouco	maior	do	que	a	mosca?	–	Aquele	não	ousou	dizer	que	Deus	teria	feito
a	abelha,	e	não	a	mosca,	já	que	se	tratava	de	uma	realidade	próxima.	Da
abelha,	o	maniqueu	fê-lo	passar	ao	gafanhoto;	do	gafanhoto	ao	lagarto;	do
lagarto	à	ave;	da	ave	à	ovelha,	em	seguida	ao	boi,	depois	ao	elefante	e,
finalmente,	ao	homem.	E	persuadiu	aquele	homem	de	que	o	homem	não	foi
feito	por	Deus.	Dessa	maneira,	aquele	infeliz	importunado	pelas	moscas
tornou-se,	ele	mesmo,	uma	mosca,	de	quem	tomou	posse	o	diabo.
Efetivamente,	diz-se	que	Beelzebul	significa	“príncipe	das	moscas”,	e	delas
está	escrito:	“As	moscas	mortas	estragam	o	óleo	perfumado”.² ³
Razão	para	suportar	males	das	criaturas
15	O	que	dizer,	irmãos?	Por	que	disse	eu	essas	coisas?	Fechai	os	ouvidos	do
vosso	coração	às	astúcias	do	inimigo.	Compreendei	que	Deus	fez	todas	as
coisas,	e	colocou	cada	uma	em	seu	lugar.	Por	que,	então,	suportamos	muitos
males	de	uma	criatura	feita	por	Deus?	Porque	ofendemos	a	Deus.	Por	acaso
sofrem	os	anjos	esses	males?	Também	nós	poderíamos,	talvez,	não	temer
tais	incômodos	nesta	vida!	Culpa	o	teu	pecado,	e	não	o	Juiz,	pelo	teu
castigo!	Devido	à	soberba,	na	verdade,	Deus	estabeleceu	uma	criatura	muito
pequena	e	abjeta,	a	fim	de	que	nos	atormentasse.	Assim,	quando	o	homem
se	mostrar	soberbo,	exaltando-se	diante	de	Deus;	quando,	mortal	como	é,
atemorizar	a	outro	mortal	e,	homem	como	é,	não	reconhecer	como	próximo
a	outro	homem;quando,	enfim,	se	erguer,	há	de	ficar	submetido	às	pulgas.
Por	que	te	inchas	com	a	humana	soberba?	Se	um	homem	te	insultou,	ficaste
entumescido	e	irado;	não	obstante,	terás	de	resistir	às	pulgas	para	dormires.
Reconhece	quem	és!	Como	sabeis,	irmãos,	para	domar-nos	a	soberba	foram
criados	esses	seres	pequeninos	a	fim	de	que	nos	molestassem.	Deus	poderia
ter	subjugado	aquele	povo	orgulhoso	do	Faraó,	com	ursos,	leões	e	serpentes;
enviou-lhes,	porém,	moscas	e	rãs,² ⁴	para	lhes	domar	a	soberba	com	as
realidades	mais	desprezíveis.
Tudo	o	que	n’Ele	foi	feito	é	vida
16	“Todas	as	coisas”,	irmãos,	absolutamente	“todas	as	coisas	foram	feitas
por	meio	d’Ele,	e	sem	Ele	nada	foi	feito”.² ⁵	Mas	de	que	modo	tudo	foi	feito
por	Ele?	“O	que	foi	feito,	n’Ele	é	vida”.² 	Isso	também	pode	ser	dito	assim:
“O	que	foi	feito	n’Ele,	é	vida”.	Logo,	tudo	é	vida,	se	assim	o	lermos.	Haverá,
com	efeito,	alguma	coisa	que	não	tenha	sido	feita	por	Ele?	Pois	Ele	é	a
Sabedoria	de	Deus	e	diz-se	no	Salmo:	“Tudo	fizeste	na	Sabedoria”.² ⁷	Ora,
se	Cristo	é	a	Sabedoria	de	Deus	e	o	Salmo	diz:	“Tudo	fizeste	na	Sabedoria”,
então,	assim	como	tudo	foi	feito	por	Ele,	também	foi	feito	n’Ele.	E	se	tudo
foi	feito	n’Ele,	irmãos	caríssimos,	e	o	que	n’Ele	foi	feito	é	vida,	então	a	terra
é	vida,	e	o	lenho	é	vida	também.	Na	verdade,	dizemos	que	o	lenho	é	vida,
mas	entendendo	que	nos	referimos	ao	lenho	da	cruz,	do	qual	recebemos
vida.	Portanto,	a	pedra	é	igualmente	vida.	Esse	modo	de	interpretação	não
seria,	no	entanto,	acertado.	Não	aconteça	vir-nos	novamente	a	insidiar	a
mesma	seita	mui	abominável	dos	maniqueus,	pondo-se	a	dizer	que	a	pedra
possui	vida,	que	o	muro	possui	uma	alma,	bem	como	que	uma	cordinha
possui	alma,	e	de	igual	modo	a	possuem	a	lã	e	a	veste.	Costumam,	pois,	dizê-
lo	em	seus	delírios	e,	quando	são	reprimidos	e	rebatidos,	como	que	citam
das	Escrituras	e	exclamam:	Por	que,	então,	foi	dito:	“Tudo	o	que	foi	feito
n’Ele,	é	vida”?	Com	efeito,	se	tudo	foi	feito	n’Ele,	tudo	é	vida.	Não	te
enganem,	porém!	Lê	tu,	assim:	“O	que	foi	feito”,	coloca	aqui	uma	vírgula,	e
continua	em	seguida:	“n’Ele	é	vida”.	O	que	quer	dizer	isso?	A	terra	foi	feita,
mas	a	própria	terra,	que	foi	feita,	não	é	vida;	mas,	na	própria	Sabedoria,
existe	espiritualmente	como	que	certa	ideia,	pela	qual	a	terra	foi	feita,	tal
ideia	é	a	vida.
Como	no	Verbo	as	criaturas	são	vida
17	Como	posso,	explicá-lo-ei	à	vossa	caridade.	O	carpinteiro	constrói	uma
arca.	Ele	tem	a	arca,	primeiramente,	na	sua	imaginação;	pois,	se	na
imaginação	não	a	tivesse,	como	haveria	de	expressá-la	mediante	a
construção?	A	arca	está,	porém,	em	sua	imaginação,	não	como	a	própria
arca	é,	quando	contemplada	pelos	olhos.	Na	imaginação,	ela	existe
invisivelmente;	na	obra,	existirá	visivelmente.	Eis	a	arca	executada!	Por
acaso	deixou	de	existir	na	imaginação?	Ela	se	encontra	já	fabricada	na
obra,	e	permanece	aquela	que	está	na	imaginação.	A	arca	material	pode	vir
a	apodrecer,	e	pode	fabricar-se	de	novo	outra,	a	partir	da	que	está	na
imaginação.	Prestai	atenção,	pois,	à	arca	que	está	na	imaginação	e	à	arca	na
obra.	A	arca	na	obra	não	é	vida,	mas	a	arca	na	imaginação	é	vida;	pois	vive
a	alma	do	artífice,	onde	se	encontram	todas	as	realidades	antes	de
ganharem	expressão	exterior.	Assim,	pois,	irmãos	caríssimos,	porque	a
Sabedoria	de	Deus,	por	quem	tudo	foi	feito,	contém	em	Si,	ao	modo	de
imaginação	artística,	todos	os	seres,	antes	de	criá-los	a	todos,	segue-se	que
tudo	o	que	é	realizado	por	meio	dessa	imaginação	não	é,	por	isso	mesmo,
vida,	mas	tudo	o	que	foi	feito	é	vida	n’Ele.	Vês	a	terra,	existe	a	terra	na
imaginação	do	Artífice.	Vês	o	céu,	existe	o	céu	na	imaginação	do	Artífice.
Assim	também,	vês	o	sol	e	a	lua,	os	quais	estão	igualmente	na	imaginação	do
Artífice.	Exteriormente	são	corpos,	mas,	na	medida	em	que	estão	na
imaginação	do	Artífice,	são	vida.	Compreendei	isso,	se	de	algum	modo	o
puderdes,	pois	o	que	se	acaba	de	dizer	é	algo	grande.	Ainda	que	não	o	seja
por	causa	de	mim,	nem	por	meio	de	mim,	que	não	sou	grande;	mas	sim	por
causa	de	Alguém	que	é	grande.	Não	disse	essas	coisas	por	mim	mesmo,	que
sou	pequeno.	Não	é	pequeno,	contudo,	Aquele	a	quem	dirijo	meu	olhar,
para	vo-las	dizer.	Compreenda-as	cada	um	como	puder,	e	na	medida	em	que
o	puder.	Quem	não	pode,	nutra	seu	coração,	para	que	o	possa.	E	como	há	de
nutri-lo?	Nutra-o	com	leite,	até	que	possa	chegar	ao	alimento.	Não	se	afaste
do	Cristo	nascido	na	carne,	até	que	chegue	ao	Cristo	nascido	do	único	Pai,
ao	Verbo	de	Deus	que	está	junto	de	Deus,	por	quem	todas	as	coisas	foram
feitas,	pois	é	Ele	aquela	vida	que,	n’Ele,	é	a	luz	dos	homens.
“A	vida	era	a	luz	dos	homens”
18	Seguem-se	estas	palavras:	“E	a	vida	era	a	luz	dos	homens”.² ⁸	É	por	essa
mesma	vida	que	os	homens	são	iluminados.	Os	animais	não	são	iluminados
porque	eles	não	possuem	mentes	racionais,	capazes	de	contemplar	a
Sabedoria.	Mas	o	homem,	feito	à	imagem	de	Deus,	possui	mente	racional
por	meio	da	qual	pode	perceber	a	Sabedoria.	Portanto,	a	vida,	pela	qual
tudo	foi	feito,	essa	mesma	vida	é	luz.	Não	é	luz	de	quaisquer	animais,	mas
luz	dos	homens.	Daí	que	o	evangelista	diga,	um	pouco	depois:	“Era	a	luz
verdadeira	que	ilumina	todo	homem	que	vem	a	este	mundo”.² 	Por	essa	luz,
João	Batista	foi	iluminado	e,	por	ela	mesma,	também	o	próprio	evangelista
João.	Dessa	luz	estava	repleto	quem	disse:	“Eu	não	sou	o	Cristo.	É	Ele	o	que
vem	depois	de	mim,	do	qual	não	sou	digno	de	desatar	a	correia	das
sandálias”.²⁷ 	E	por	essa	luz	estava	iluminado	quem	disse:	“No	princípio	era
o	Verbo	e	o	Verbo	estava	junto	de	Deus	e	o	Verbo	era	Deus”.²⁷¹	Aquela	vida
é,	pois,	a	luz	dos	homens.
Só	os	corações	puros	percebem	essa	luz
19	Mas,	talvez,	os	corações	insensatos	ainda	não	possam	captar	essa	luz,
porque	se	acham	oprimidos	pelos	seus	pecados,	de	modo	que	não	a	possam
ver.	Não	pensem,	por	isso,	que	a	luz	esteja	como	que	ausente	deles,	uma	vez
que	não	a	podem	ver.	É	por	causa	de	seus	próprios	pecados	que	eles	são,
com	efeito,	trevas.	“E	a	luz	brilha	nas	trevas,	mas	as	trevas	não	a
compreenderam”.²⁷²	Por	conseguinte,	irmãos,	tal	como	acontece	ao	homem
cego	exposto	ao	sol:	o	sol	lhe	está	presente,	mas	é	como	se	ele	próprio
estivesse	ausente,	isso	mesmo	sucede	a	todo	aquele	que	é	insensato,	iníquo,
ímpio,	cego	de	coração.	A	Sabedoria	lhe	está	presente,	mas,	como	para
alguém	que	é	cego,	está	ausente	dos	seus	olhos:	não	que	lhe	esteja	ausente;
ao	contrário,	é	ele	próprio	que	dela	se	ausenta.	O	que,	pois,	há	de	fazer	este
homem?	Purifique	aquela	faculdade	pela	qual	Deus	pode	ser	visto.	A	uma
pessoa	que	não	pode	enxergar	por	ter	os	olhos	sujos	ou	doentes,	tendo	caído
neles	poeira,	secreção	ou	fumaça,	diz	o	médico:	limpa	do	teu	olho	tudo
aquilo	que	nele	há	de	mal,	para	que	possas	ver	a	luz	dos	teus	olhos.	A
poeira,	a	secreção	e	a	fumaça	são	os	pecados	e	as	iniquidades.	Retira	tudo
isso	daí	e	então	verás	a	Sabedoria	que	está	presente,	pois	Deus	é	a	própria
Sabedoria	e	está	escrito:	“Bem-aventurados	os	puros	de	coração,	porque
verão	a	Deus”.²⁷³
HOMILIA	2
Jesus,	o	Verbo	que	revela	Deus	(Jo	1,6-14)
Introdução
1	É	bom,	irmãos,	que	estudemos	a	fundo,	na	medida	de	nossa	possibilidade,
o	texto	das	divinas	Escrituras,	e	especialmente	o	do	Santo	Evangelho,	sem
deixar	passar	trecho	algum.	Sejamos	assim	apascentados,	segundo	a	nossa
capacidade,	e	vos	sirvamos	do	mesmo	alimento	do	qual	também	nos
nutrimos.	Recordamos	que,	no	domingo	passado,	tratado	foi	o	primeiro
capítulo,	isto	é,	“No	princípio	era	o	Verbo	e	o	Verbo	estava	junto	de	Deus,	e
o	Verbo	era	Deus.	Todas	as	coisas	foram	feitas	por	meio	d’Ele	e	sem	Ele,
nada	foi	feito.	O	que	foi	feito	n’Ele	é	vida.	E	a	vida	era	a	luz	dos	homens.	E
a	luz	brilha	nas	trevas,	mas	as	trevas	não	a	compreenderam”.²⁷⁴	Creio	que
se	tratou	até	este	ponto.	Recordai,	todos	os	que	estivestes	presentes,	e	vós,
que	não	estivestes,	crede	em	nós	e	naqueles	que	quiseram	estar.	Agora,	pois,
já	que	não	podemos	repetir	sempre	tudo	por	causa	daqueles	que	querem
ouvir	o	que	se	segue	e,	se	se	repetissem	as	considerações	anteriores,	com
prejuízo	do	que	vem	a	seguir,	isto	lhes	seria	um	peso,	consintam	os	quenão
estiveram	presentes	em	não	exigir	o	que	passou,	mas	sim,	na	companhia	dos
que	estavam,	em	ouvir	agora	o	que	corresponde	ao	dia	de	hoje.
O	Verbo	imutável,	meta	de	nossas	aspirações
2	Segue:	“Surgiu	um	homem	enviado	por	Deus,	cujo	nome	era	João”.²⁷⁵
Com	efeito,	o	que	se	disse	anteriormente,	irmãos	caríssimos,	foi	dito	da
inefável	divindade	de	Cristo,	e	quase	que	inefavelmente.	Quem	poderá
compreender	que:	“No	princípio	era	o	Verbo,	e	o	Verbo	estava	junto	de
Deus?”.²⁷ 	E	não	te	pareça	banal	o	termo	Verbo	[isto	é,	Palavra],	por	causa
do	costume	das	palavras	de	uso	cotidiano:	“E	o	Verbo	era	Deus”.	Este	é	o
mesmo	Verbo	do	qual	falamos	muito	no	último	dia.	Queira	Deus	que,	ao	ter
falado	tanto,	pelo	menos	algo	tenhamos	levado	a	vossos	corações.	“No
princípio	era	o	Verbo”.	É	o	mesmo,	é	no	mesmo	modo,	assim	como	existe
sempre,	não	pode	mudar,	isto	é,	“é”.	Disse	Ele	este	Seu	nome	ao	Seu	servo
Moisés:	“Eu	sou	Aquele	que	sou”;	e:	“Eu-sou	enviou-me”.²⁷⁷	Quem,	pois,
poderá	compreender	isto,	uma	vez	que	tudo	o	que	vedes	é	mortal?	Pois
vedes	não	apenas	variarem	os	corpos	pelas	qualidades,	nascendo,	crescendo,
definhando,	morrendo,	mas	também	as	próprias	almas	incharem-se	e
rasgarem-se	pelo	afeto	de	diversas	vontades,	vedes	que	os	homens	tanto
podem	receber	a	sabedoria,	se	forem	movidos	pela	sua	luz	e	calor,	quanto	a
podem	perder,	se	dela	se	afastarem	por	causa	de	um	mau	afeto.	Porquanto
vedes	que	todas	essas	coisas	são	mutáveis,	o	que	é	aquilo	que	é,	senão	o	que
transcende	a	todas	elas,	as	quais	são	de	tal	modo	qual	se	não	fossem?	Quem
compreende	isto,	pois?	Ou	quem,	de	qualquer	maneira	que	estenda	as
forças	de	sua	mente	para	atingir	de	alguma	forma	aquilo	que	é,	pode	chegar
ao	que,	seja	como	for,	tiver	alcançado	com	a	mente?	É	assim	como	alguém
vislumbrar	a	pátria	de	longe,	estando	o	mar	de	permeio:	vê	aonde	vai,	mas
não	tem	como	ir.	Também	nós	queremos	chegar	àquela	estabilidade	nossa,
onde	o	que	é,	é,	porque	é	o	único	que	sempre	é	do	mesmo	modo:	está	de
permeio	o	mar	deste	século	pelo	qual	vamos,	embora	já	vejamos	aonde
vamos,	pois	muitos	há	que	nem	sequer	veem	aonde	vão.	Para	que	existisse
um	meio	pelo	qual	fôssemos,	veio	de	lá	Aquele	a	quem	queríamos	ir.	E	o	que
Ele	fez?	Instituiu	o	lenho	para	atravessarmos	com	ele	o	mar.	Ninguém	pode
atravessar	o	mar	deste	século	se	não	for	transportado	pela	cruz	de	Cristo.
Esta	cruz	é	abraçada,	algumas	vezes,	também	pelo	enfermo	dos	olhos:	quem
não	vê	de	longe	aonde	vai,	dela	não	se	afaste,	e	ela	mesma	o	conduzirá	até
lá.
Vai-se	a	Deus	somente	pela	humanidade	de	Cristo
3	Oxalá,	meus	irmãos,	tenha	eu	feito	entrar	isto	em	vossos	corações:	se
quiserdes	viver	de	maneira	piedosa	e	cristã,	permanecei	unidos	a	Cristo	de
acordo	com	o	que	por	nós	Ele	Se	fez,	a	fim	de	que	chegueis	a	Ele	conforme	o
que	é	e	o	que	era.	Veio	para	que	por	nós	Se	fizesse	isso,	e,	de	fato,	foi	feito
por	nós	isso	em	que	são	transportados	os	enfermos,	atravessam	o	mar	e
chegam	à	pátria,	onde	já	não	haverá	necessidade	de	navio,	visto	que	mar
algum	se	atravessa	já.	Mais	vale,	pois,	não	ver	com	a	mente	aquilo	que	é	e,
contudo,	não	se	afastar	da	cruz	de	Cristo,	que	vê-lo	com	a	mente	e
desprezar	a	cruz	de	Cristo.	Muito	melhor	é,	se	possível,	que	tanto	se	veja
aonde	se	vai	quanto	se	tenha	o	meio	com	que	é	transportado	quem	avança.
Puderam-no	as	grandes	mentes	dos	montes,	os	quais	assim	se	chamam
porque	são	mais	iluminados	pela	luz	da	justiça:	puderam	e	viram	Aquele
que	é.	Vendo-O,	pois,	João	dizia:	“No	princípio	era	o	Verbo,	e	o	Verbo
estava	junto	de	Deus,	e	o	Verbo	era	Deus”.²⁷⁸	Viram-n’O	e,	para	chegarem
ao	que	viam	de	longe,	não	se	afastaram	da	cruz	de	Cristo,	não	desprezaram
a	humildade	de	Cristo.	Os	pequenos	que	o	não	podem	entender,	ao	não	se
afastarem	da	cruz,	da	paixão	nem	da	ressurreição	de	Cristo,	são	conduzidos
até	o	que	não	veem	na	mesma	nave	em	que	viajam	também	aqueles	que
veem.
Fracasso	dos	filósofos	que	desprezaram	a	mediação	de	Cristo
4	Existiram,	porém,	certos	filósofos	deste	mundo	que	procuraram	com
cuidado	o	Criador	por	meio	da	criatura,	já	que	Ele	pode	ser	encontrado
através	da	criatura,	como	diz	o	Apóstolo	de	um	modo	evidente:	“Desde	a
criação	do	mundo,	as	perfeições	invisíveis	de	Deus,	o	Seu	sempiterno	poder
e	divindade,	tornam-se	inteligíveis	por	meio	das	realidades	criadas,	de	sorte
que	não	se	podem	escusar”.	E	prossegue:	“Pois,	tendo	conhecido	a	Deus…”
Ele	não	diz:	Porque	não	conheceram	a	Deus,	mas:	“Tendo	conhecido	a
Deus,	não	O	honraram	como	Deus,	nem	Lhe	renderam	graças;	pelo
contrário,	extraviaram-se	em	vãos	arrazoados	e	se	lhes	obscureceu	o
coração	insensato”.	Por	que	se	lhes	obscureceu?	O	Apóstolo	continua	e
declara-o	mais	abertamente:	“Pretendendo-se	sábios,	tornaram-se
estultos”.²⁷ 	Viram	aonde	se	tinha	de	ir,	contudo,	ingratos	para	com	Aquele
que	lhes	possibilitou	o	que	viram,	a	si	mesmos	quiseram	atribuir	o	que
viram.	Caídos	na	soberba,	perderam	o	que	viam,	tendo-se	convertido	então
aos	ídolos	e	simulacros,	bem	como	à	adoração	dos	demônios,	a	adorar	a
criatura	e	a	desprezar	o	Criador.	Já	abatidos	fizeram	tais	coisas:	mas,	para
que	fossem	abatidos,	ensoberbeceram-se,	e	ao	ensoberbecer-se,	disseram-se
sábios.	São,	pois,	aqueles	a	cujo	respeito	disse	o	Apóstolo:	“Tendo	conhecido
a	Deus”.	Eles	viram	o	que	diz	João,	a	saber,	que	“pelo	Verbo	de	Deus	tudo
foi	feito”,	pois	também	isso	se	encontra	nos	livros	dos	filósofos,	ou	seja,	que
Deus	tem	um	Filho	único,	por	quem	todas	as	coisas	existem.	Puderam	vê-lo,
mas	o	viram	de	longe:	não	quiseram	guardar	a	humildade	de	Cristo,	nave
na	qual	chegariam	seguros	ao	que	puderam	ver	de	longe.	E	desprezível	foi
para	eles	a	cruz	de	Cristo!	Há	de	se	atravessar	o	mar	e	desprezas	o	lenho?	Ó
sabedoria	soberba,	zombas	de	Cristo	crucificado,	o	mesmo	a	quem	viste	de
longe:	“No	princípio	era	o	Verbo	e	o	Verbo	estava	junto	de	Deus”.²⁸ 	Mas
por	que	foi	Ele	crucificado?	Porque	te	era	necessário	o	lenho	da	Sua
humildade.	Pela	soberba,	incharas-te	e	tinhas	sido	lançado	longe	daquela
pátria.	O	caminho	foi	interrompido	pelas	ondas	deste	século,	e	não	há	como
passar	à	pátria	se	não	fores	levado	pelo	lenho.	Ingrato,	zombas	d’Aquele
que	veio	a	ti	para	que	retornes.	Ele	mesmo	Se	fez	o	caminho	–	e	pelo	meio
do	mar	–,	por	isso	andou	por	sobre	o	mar,²⁸¹	para	mostrar	que	há	no	mar
um	caminho.	Mas	tu	que	não	podes	como	Ele	caminhar	sobre	o	mar,	sê
transportado	pela	nave,	sê	transportado	pelo	lenho.	Crê	no	crucificado,	e
poderás	chegar.	Foi	crucificado	por	tua	causa,	para	ensinar	a	humildade;
pois,	se	viesse	como	Deus,	não	seria	reconhecido.	Se	viesse	como	Deus,	não
viria	para	os	que	não	podiam	ver	a	Deus.	Pois,	não	é	conforme	a	Sua
divindade	que	Ele	veio	e	partiu,	haja	vista	que	está	presente	em	toda	parte	e
lugar	algum	O	contém.	Mas,	como	veio	Ele?	Veio	como	homem!
João	Batista,	o	enviado	por	Deus
5	Porque	era	Ele	um	homem	no	qual	Se	ocultava	o	próprio	Deus,	foi
enviado	antes	d’Ele	um	homem	grande,	por	meio	de	cujo	testemunho	fosse
Ele	reconhecido	como	mais	que	um	homem.	E	quem	é	este?	“Houve	um
homem”.	E	como	poderia	esse	homem	dizer	a	verdade	sobre	Deus?
“[E]nviado	por	Deus”.	Como	se	chamava?	“[E]	seu	nome	era	João”.	A	que
veio	ele?	“Veio	como	testemunha,	para	dar	testemunho	da	luz,	a	fim	de	que
todos	cressem	por	meio	dele”.²⁸²	Quem	era	esse	que	devia	dar	testemunho
da	luz?	Uma	pessoa	notável	era	esse	João,	de	ingente	mérito,	de	grande
graça,	de	elevada	altura!	Admira-te;	admira-te	sim,	mas	como	se	admira
alguém	de	um	monte.	O	monte	estará	em	trevas	se	não	for	revestido	pela
luz.	Portanto,	admira-te	de	João;	mas,	desde	que	ouças	o	que	se	segue:	“Ele
não	era	a	luz”:²⁸³	não	te	ocorra	que,	pensando	ser	o	próprio	monte	luz,
encontres	nele	naufrágio,	e	não	consolação.	De	que	te	deves	admirar?	Deves
admirar-te	do	monte,	como	monte	que	é.	Eleva-te,	portanto,	Àquele	que
ilumina	o	monte,	que	a	Ele	está	elevado	para	receber	primeiro	os	seus	raios
e	anunciá-lo	a	teus	olhos;	portanto:	“Ele	não	era	a	luz”.
“Veio	para	testemunhar	a	luz	verdadeira”
6	Por	que	veio,	pois?	“Veio	para	dar	testemunho	da	luz”.	E	isso,	para	quê?
“Para	que	todos	cressem	por	meio	dele”.E	de	que	luz	devia	ele	dar
testemunho?	D’Aquele	que	“era	a	luz	verdadeira”.²⁸⁴	Por	que	foi
acrescentado:	“verdadeira”?	Porque	o	homem,	uma	vez	iluminado,	é
também	chamado	luz,	mas	luz	verdadeira	é	aquela	que	ilumina.	Desse
modo,	os	nossos	olhos	também	se	dizem	luzes	e,	entretanto,	se	de	noite	não
for	acesa	a	lâmpada,	ou	se	de	dia	não	sair	o	sol,	estas	nossas	luzes	se	abrem
sem	razão.	Assim,	pois,	também	João	era	luz,	mas	não	luz	verdadeira,	uma
vez	que,	não	fosse	ele	iluminado,	estaria	em	trevas	e,	pela	iluminação,	fez-se
luz.	Se	não	fosse	iluminado,	estaria	em	trevas,	assim	como	todos	os	ímpios,
aos	quais,	quando	já	criam,	disse	o	Apóstolo:	“Outrora	éreis	trevas…”	O
que	se	tornaram	agora,	depois	que	já	creram?	Diz	ele:	“Agora,	porém,	sois
luz	no	Senhor”.²⁸⁵	Se	ele	não	acrescentasse	“no	Senhor”,	não
compreenderíamos.	“Luz”,	diz	ele,	mas	“no	Senhor”:	éreis	trevas,	mas	não
no	Senhor.	“Outrora	éreis	trevas”,	aí	não	acrescenta	“no	Senhor”.	Trevas
éreis,	por	conseguinte,	em	vós	mesmos;	sois	luz	no	Senhor.	Assim,	também
se	diz	daquele	que	“não	era	a	luz,	mas	veio	para	dar	testemunho	da	luz”.²⁸
“Luz	que	ilumina	todo	homem	vindo	ao	mundo”
7	Onde	está	essa	luz?	“Ele	era	a	luz	verdadeira	que	ilumina	todo	homem
que	vem	ao	mundo”.²⁸⁷	Se	ilumina	todo	homem	que	vem	a	este	mundo,	Ele
também	ilumina	o	próprio	João.	O	próprio	Verbo	iluminava	aquele	por
meio	do	qual	queria	ser	manifestado.	Que	a	vossa	caridade	o	entenda:	Ele
vinha	às	mentes	fracas,	aos	corações	feridos,	aos	olhos	de	uma	alma
remelosa.	Viera	para	isso.	E	como	poderia	a	alma	ver	o	que	perfeitamente
é?	Do	mesmo	modo,	como	amiúde	ocorre,	em	que	através	de	algum	corpo
iluminado	se	conhece	ter	despontado	o	sol,	que	não	podemos	enxergar	com
nossos	próprios	olhos.	Também	os	que	têm	os	olhos	feridos	são	capazes	de
ver	a	parede	iluminada,	ou	um	monte,	ou	uma	árvore	abrilhantada	pelo	sol,
ou	qualquer	coisa	do	gênero.	No	outro	ser	iluminado,	revela-se	aquele
nascimento	aos	que	ainda	possuem	um	olhar	pouco	capaz	de	vê-lo.	Do
mesmo	modo,	todos	aqueles	para	os	quais	Cristo	viera,	pouco	idôneos	eram
para	vê-l’O.	Brilhou	João	e,	por	meio	daquele	que	confessava	ter	sido
alumbrado,	ter	sido	iluminado	e	não	ser	quem	alumbrava	e	iluminava,
conheceu-se	o	que	ilumina,	conheceu-se	o	que	alumbra,	conheceu-se	o	que
dá	plenitude.	E	quem	é	este?	Diz:	“Aquele	que	ilumina	todo	homem	que
vem	a	este	mundo”.	Pois,	se	o	homem	não	se	tivesse	afastado	d’Ele,	não
teria	necessidade	de	ser	iluminado,	mas,	por	isso,	deve	ser	iluminado,	pois	se
afastou	dali,	onde	o	homem	podia	ser	sempre	iluminado.
A	luz	estava	no	mundo,mas	não	podia	ser	vista	pelos	pecadores
8	Que	diremos?	Se	veio	até	aqui,	onde	estava?	“Ele	estava	no	mundo”.²⁸⁸	Ele
estava	aqui	e	veio	para	cá.	Estava	aqui	pela	divindade;	veio	para	cá	pela
carne.	Ainda	que	estivesse	aqui	pela	divindade,	não	podia	ser	visto	pelos
estultos,	cegos	e	iníquos.	Esses	mesmos	iníquos	são	as	trevas,	das	quais	foi
dito:	“A	luz	brilha	nas	trevas,	mas	as	trevas	não	a	compreenderam”.²⁸ 	Eis
que	está	aqui	agora,	e	aqui	estava	e	está	sempre	aqui.	Nunca	Se	afasta,	não
Se	afasta	para	parte	alguma.	É	mister	que	tenhas	como	ver	Aquele	que	de	ti
nunca	Se	afasta.	É	mister	que	não	te	afastes	d’Aquele	que	para	parte
alguma	Se	afasta,	é	mister	que	não	abandones	e	não	serás	abandonado.	Não
caias,	e	Ele	não	morrerá	para	ti.	Se	caíres,	Ele	declinará	para	ti;	mas,	se
ficares	de	pé,	Ele	estará	presente	a	teu	lado.	Mas,	na	verdade,	não
permaneceste	de	pé,	lembra-te	donde	caíste,	donde	te	lançou	aquele	que
caiu	antes	de	ti.	Lançou-te,	pois,	não	por	força	nem	por	impulso,	mas	pela
tua	vontade.	Se	não	tivesses	consentido	no	mal,	estarias	de	pé,
permanecerias	iluminado.	Agora,	uma	vez	que	já	caíste	e	te	converteste
num	ferido	de	coração,	faculdade	com	a	qual	pode	ser	vista	aquela	luz,	ela
veio	a	ti	de	modo	que	a	pudesses	ver.	De	tal	modo	Se	mostrava	como
homem,	que	procurava	o	testemunho	de	um	homem.	Deus	busca	o
testemunho	de	um	homem	e	tem	ao	homem	por	testemunha.	Deus	tem	ao
homem	por	testemunha,	mas	em	favor	do	próprio	homem,	tão	enfermos
somos.	Buscamos	o	dia	com	uma	lâmpada,	pois	o	próprio	João	foi	chamado
“lâmpada”,	ao	declarar	o	Senhor:	“João	foi	o	facho	que	arde	e	ilumina,	e
vós	ficastes	alegres	por	um	momento,	com	essa	luz.	Eu,	porém,	tenho	um
testemunho	maior	do	que	o	de	João”.²
João,	a	luz	preparada	para	mostrar	Cristo
9	Mostrou,	pois,	que	quis	revelar-Se	pela	lâmpada,	em	favor	dos	homens,
para	a	fé	dos	que	creem,	a	fim	de	que,	pela	mesma	lâmpada,	Seus	inimigos
se	confundissem;	aqueles	inimigos	que	O	tentavam,	e	diziam:	“Dize-nos,
com	que	autoridade	fazes	estas	coisas?	Eu	também,	respondeu	Ele,	vou
propor-vos	uma	questão...	Dizei-me:	o	batismo	de	João	de	onde	vem,	do	céu
ou	dos	homens?	Eles	ficaram	perturbados	e	se	diziam	a	si	mesmos:	Se
respondermos:	Do	céu,	Ele	nos	dirá:	Por	que	então,	não	crestes	nele?	–
porque	João	tinha	dado	testemunho	de	Cristo	e	dissera:	Eu	não	sou	o
Cristo,	mas	Ele	–² ¹;	se,	pelo	contrário,	respondermos:	O	batismo	de	João
vem	dos	homens,	tememos	que	o	povo	nos	lapide,	porque	tinham	a	João
como	um	profeta”.² ²	Temendo	a	lapidação,	e	temendo	mais	a	confissão	da
verdade,	responderam	à	verdade	uma	mentira	e	a	iniquidade	mentiu-se	a	si
mesma.² ³	Disseram,	então:	Não	sabemos,	e	o	Senhor,	já	que	eles	tinham
fechado	[a	porta]	contra	si	mesmos,	negando	que	sabiam	o	que	já
conheciam,	tampouco	lhes	abriu,	pois	não	bateram.	Na	verdade	está	escrito:
“Batei,	e	ser-vos-á	aberto”.² ⁴	Não	só	não	bateram	para	que	se	lhes	abrisse,
mas,	negando,	obstruíram	a	própria	porta	contra	si.	“E	o	Senhor	lhes	disse:
Eu	tampouco	vos	direi	com	que	autoridade	faço	estas	coisas”.² ⁵	Eles	foram
confundidos	por	João,	e	a	palavra	da	Escritura	encontrou	neles
cumprimento:	“Preparei	uma	lâmpada	ao	meu	Cristo,	cobrirei	Seus
inimigos	de	confusão”.²
O	Verbo	“estava	no	mundo”	como	o	Criador	que	tudo	governa
10	“Ele	estava	no	mundo	e	o	mundo	foi	feito	por	meio	d’Ele”.² ⁷	Não	penses
que	estava	no	mundo	como	estão	no	mundo	a	terra,	o	céu,	o	sol,	a	lua	e	as
estrelas,	como	estão	no	mundo	as	árvores,	os	animais	e	os	homens.	Não	era
assim	que	Ele	estava	no	mundo.	Como	estava,	então?	Como	um	artífice,	que
dirige	o	que	faz.	Mas	Ele	não	fez	o	mundo	ao	modo	de	um	artesão.	Fora	está
a	arca	de	quem	a	fabrica	e	ela,	quando	é	fabricada,	põe-se	noutro	lugar.
Ainda	que	o	tenha	perto	de	si,	o	artesão	senta-se	num	lugar	separado
daquilo	que	fabrica.	Deus,	porém,	de	dentro	do	mundo	o	fabrica,	fabrica
estando	presente	em	todas	as	partes	e	não	Se	afasta	para	qualquer	outro
lugar,	como	quem	está	fora	da	obra	que	fabrica.	Com	uma	presença	de
majestade,	faz	o	que	faz:	com	Sua	presença,	governa	o	que	fez.	Assim	estava
no	mundo,	como	Aquele	por	quem	o	mundo	foi	feito,	porque	“o	mundo	foi
feito	por	meio	d’Ele,	mas	o	mundo	não	O	conheceu”.² ⁸
“E	o	mundo	não	O	conheceu”
11	O	que	significa:	“O	mundo	foi	feito	por	meio	d’Ele”?	O	céu,	a	terra,	o
mar	e	tudo	o	que	eles	encerram:	eis	o	que	se	diz	“mundo”.	Noutro	sentido,
dizem-se	também	“mundo”	os	que	amam	o	mundo.	“O	mundo	foi	feito	por
meio	d’Ele,	mas	o	mundo	não	O	conheceu”.	Acaso	não	conheceram	os	céus
a	seu	Criador,	ou	os	anjos	não	terão	conhecido	o	seu	Criador,	ou	ainda	os
astros	não	conheceram	Aquele	a	quem	confessam	os	demônios?	Tudo,	sob
todos	os	aspectos,	dá	testemunho.	Mas	quem	são	os	que	não	conheceram?
Aqueles	que,	amando	o	mundo,	são	chamados	“mundo”.	Amando,	pois,
habitamos	com	o	coração:	amando,	eles	mereceram	chamar-se	assim,	como
o	lugar	onde	habitavam.	Da	mesma	forma	que,	quando	dizemos:	“Aquela
casa	é	má”	ou	“Aquela	casa	é	boa”,	não	estamos	a	acusar	suas	paredes	ao
qualificá-la	de	má	nem	a	louvá-las	quando	a	declaramos	boa,	mas	sim	aos
seus	maus	habitantes	ou	aos	seus	habitantes	bons.	Isso	seja	dito	também	do
mundo,	ou	seja,	dos	que,	amando,	habitam	o	mundo.	Quem	são?	Os	que
amam	o	mundo	habitam	o	mundo	com	o	coração.	Pois	os	que	não	amam	o
mundo,	passam	por	ele	com	a	carne,	mas	com	o	coração	habitam	o	céu,
como	diz	o	Apóstolo:	“Nossa	cidade	está	nos	céus”.² 	Por	isso,	o	mundo	foi
feito	por	meio	d’Ele,	mas	o	mundo	não	Oconheceu.
“Veio	para	o	que	era	Seu	e	os	Seus	não	O	receberam”
12	“Veio	para	o	que	era	Seu”,	visto	que	todo	o	universo	foi	feito	por	Ele,	“e
os	Seus	não	O	receberam”.³ 	Quem	são	os	Seus?	Os	homens	que	fez;	os
judeus,	que	Ele	constituiu	originariamente	sobre	todas	as	nações,	porque	as
outras	nações	adoravam	os	ídolos	e	serviam	aos	demônios.	Aquele	povo,
porém,	tinha	nascido	da	estirpe	de	Abraão	e	eram	eles,	especialmente,	os
Seus,	uma	vez	que,	até	pela	carne	que	Se	dignou	tomar,	eram	parentes.
“Veio	para	o	que	era	Seu,	e	os	Seus	não	O	receberam”.	Não	O	acolheram	de
forma	alguma,	ninguém	O	acolheu?	Ninguém,	então,	se	salvou?	Ninguém	se
salvará	a	não	ser	quem	receber	o	Cristo	que	vem.
“Mas	a	todos	os	que	O	receberam	deu	o	poder	de	se	tornarem	filhos	de	Deus”
13	O	evangelista,	porém,	acrescenta:	“Mas	a	todos	os	que	O	receberam”.	O
que	lhes	deu	Ele?	Usou	para	com	eles	de	grande	benevolência,	de	grande
misericórdia!	Ele	nasceu	único,	e	não	quis	permanecer	único.	Muitos
homens,	quando	não	têm	filhos,	depois	de	passada	a	idade,	adotam-nos	para
si;	e	fazem	com	a	vontade	o	que	não	puderam	por	natureza,	eis	o	que	fazem
os	homens.	Se,	pelo	contrário,	alguém	tem	um	filho	único,	nele	mais	se
alegra,	já	que	há	de	possuir	tudo	sozinho	e	não	terá	quem	com	ele	venha	a
dividir	a	herança,	para	que	fique	mais	pobre.	Mas	Deus	não	é	assim:	enviou
a	este	mundo	aquele	mesmo	Único	que	Ele	tinha	gerado	e	por	meio	do	qual
criara	todas	as	coisas,	para	que	não	fosse	um,	mas	que	tivesse	irmãos
adotados;	pois	não	nascemos	de	Deus	da	mesma	maneira	que	o	Unigênito,
mas	fomos	adotados	pela	Sua	graça.	Esse	Unigênito	veio	para	destruir	os
pecados,	nos	quais	estávamos	atados,	a	fim	de	não	nos	adotar	com	aquele
impedimento:	aos	que	queria	fazer	irmãos	para	Si,	Ele	mesmo	os	libertou	e
fez	deles	co-herdeiros.	Assim	diz	o	Apóstolo:	“Se	és	filho,	és	também
herdeiro,	graças	a	Deus”,³ ¹	e	ainda:	“Herdeiros	de	Deus	e	co-herdeiros	de
Cristo”.³ ²	Não	teve	medo	de	ter	co-herdeiros:	pois	aquela	herança	não	se
diminui	ao	serem	muitos	os	seus	possuidores.	Eles	mesmos,	certamente,
sendo	possuídos	por	Ele,	constituem-se	em	Sua	herança	e	Ele,
reciprocamente,	faz-Se	herança	deles.	Ouve	de	que	maneira	se	tornam	eles	a
Sua	herança:	“O	Senhor	me	disse:	Tu	és	meu	Filho,	eu	hoje	te	gerei.	Pede,	e
eu	te	darei	as	nações	como	herança”.³ ³	E	Ele,	o	Filho	de	Deus,	como	Se
torna	a	herança	deles?	O	salmo	responde:	“O	Senhor,	minha	parte	na
herança	e	minha	taça”.³ ⁴	Possuamo-l’O	nós	e	Ele	nos	possua:	possua-nos
Ele	como	Senhor,	possuamo-l’O	nós	como	salvação,	possuamo-l’O	como	luz.
O	que	foi	que	deu	aos	que	O	receberam?	“A	todos	os	que	O	receberam,	deu
o	poder	de	se	tornarem	filhos	de	Deus,	isto	é,	aos	que	creem	no	Seu
nome”;³ ⁵	deu-lhes	segurar	o	lenho	e	atravessar	o	mar.
Esse	novo	nascimento	não	procede	do	sangue
14	E	de	que	modo	nascem	eles?	Certamente	nasceram,	porquanto	se
fizeram	filhos	de	Deus	e	irmãos	de	Cristo:	e,	se	não	nasceram,	como	podem
ser	filhos?	Os	filhos	dos	homens	nascem,	porém,	da	carne	e	do	sangue,	da
vontade	do	homem	e	da	união	dos	cônjuges.	Mas	aqueles,	como	é	que
nasceram	para	Ele?	Não	nasceram	dos	sangues,³ 	vale	dizer,	do	sangue	do
homem	e	da	mulher.³ ⁷	O	plural	“sangues”³ ⁸	não	é	latino,	mas	porque	o
termo,	em	grego,	está	no	plural,	quem	traduzia	preferiu	deixá-lo	assim,
falando	de	um	modo,	por	assim	dizer,	menos	latino	segundo	os	gramáticos,
e,	não	obstante,	explicar	a	verdade	conforme	o	ouvido	dos	débeis.	Se
dissesse,	com	efeito,	“sangue”	no	singular,	não	explicaria	o	que	queria,	uma
vez	que	os	homens	nascem,	pois,	dos	“sangues”	do	homem	e	da	mulher.
Digamo-lo,	pois,	e	não	tenhamos	medo	das	chibatas	dos	gramáticos,	desde
que	cheguemos	à	verdade	sólida	e	mais	certa.	Repreende-o	quem	o	entende,
ingrato	por	ter	entendido.	“Não	nasceram	dos	sangues,	nem	da	vontade	da
carne,	nem	da	vontade	do	homem”.³ 	Pôs	a	palavra	“carne”	no	lugar	de
“mulher”,	pois	tendo	sido	feita	da	costela,	Adão	disse:	“Esta	é	osso	de	meus
ossos	e	carne	de	minha	carne”.³¹ 	E	diz	o	Apóstolo:	“Quem	ama	a	sua
mulher,	ama-se	a	si	mesmo,	pois	ninguém	jamais	quis	mal	à	sua	própria
carne”.³¹¹	Por	isso,	o	termo	“carne”	está	posto	em	lugar	de	esposa,	como	por
vezes	“espírito”	é	empregado	em	lugar	de	“marido”.	Por	quê?	Porque	este
rege,	aquela	é	regida:	ele	deve	imperar,	ela	servir.	Onde	impera	a	carne	e	o
espírito	serve,	tem-se	uma	casa	pervertida.	O	que	há	de	pior	que	uma	casa
em	que	a	mulher	tem	o	domínio	sobre	o	varão?	Casa	bem	ordenada	é
aquela	em	que	o	varão	manda	e	a	mulher	obedece.	Bem	ordenado	é	o
próprio	homem	em	quem	o	espírito	manda	e	a	carne	serve.³¹²
“E	o	Verbo	Se	fez	carne	e	habitou	entre	nós”
15	“Não	nasceram	[...],	nem	da	vontade	da	carne,	nem	da	vontade	do
homem,	mas	de	Deus”.³¹³	Para	que	os	homens	nascessem	de	Deus,	Deus
antes	nasceu	deles.	Cristo,	pois,	é	Deus	e	Cristo	nasceu	dos	homens.	Não
procurou	senão	mãe	na	terra,	porquanto	pai	tinha	já	no	céu.	Nasceu	de
Deus	Aquele	por	quem	seríamos	feitos,	nasceu	de	mulher	Aquele	por	quem
seríamos	refeitos.	Não	te	admires,	ó	homem,	porque	és	feito	filho	por	graça,
porque	nasces	de	Deus	segundo	o	Seu	Verbo.	Antes,	o	próprio	Verbo	quis
nascer	do	homem	para	que	tu,	seguro,	nascesses	de	Deus	e	te	dissesses:	“Não
sem	motivo	quis	nascer	Deus	do	homem,	senão	porque	me	considerou	de
certa	importância	e,	para	que	me	fizesse	imortal,	Ele	nasceu	mortal	por
mim”.	Assim,	depois	de	ter	dito:	“Eles	nasceram	de	Deus”,	para	que	não
ficássemos	por	demais	impressionados	nem	nos	atemorizássemos,	diante	de
graça	tão	grande,	e	talvez	nos	parecesse	incrível	que	homens	nascessem	de
Deus,	como	que	para	assegurar-te,	diz:	“E	o	Verbo	Se	fez	carne	e	habitou
entre	nós”.³¹⁴	Por	que	te	admiras,	então,	de	que	homens	nasçam	de	Deus?
Contempla	o	próprio	Deus	nascido	dos	homens:	“E	o	Verbo	Se	fez	carne	e
habitou	entre	nós”.
Curando-nos,	o	Verbo	encarnado	tornou-nos	capazes	de	ver	Sua	glória
16	De	fato,	porque	“o	Verbo	Se	fez	carne	e	habitou	entre	nós”,	pelo	Seu
próprio	nascimento	fez	um	colírio	com	o	qual	fossem	purificados	os	olhos	do
nosso	coração	e	assim	pudéssemos	ver,	por	meio	de	Sua	humildade,	a	Sua
majestade.	“O	Verbo	Se	fez	carne	e	habitou	entre	nós”.	Curou	os	nossos
olhos.	E	o	que	se	segue?	“E	nós	vimos	a	Sua	glória”.	Sua	glória,	ninguém
poderia	ver,	se	não	fosse	curado	pela	humildade	de	Sua	carne.	E	por	que
não	podíamos	ver?	Que	a	vossa	caridade	preste,	pois,	toda	a	atenção!	Vede	o
que	digo:	tinha	entrado	como	que	poeira	nos	olhos	do	homem,	tinha
entrado	terra,	tinha	ferido	o	olho,	e	não	podia	ver	a	luz:	este	olho	ferido	é
ungido.	Tinha-se	ferido	pela	terra	e	terra	ali	se	introduz	para	que	se
curasse.	Todos	os	colírios	e	remédios	nada	são	senão	algo	da	terra.	Tu	te
cegaste	pelo	pó,	pelo	pó	és	curado;	cegara-te,	pois,	a	carne;	a	carne	te	cura.
Tua	alma	tinha-se	tornado	carnal,	consentindo	nos	afetos	da	carne,	e	os
olhos	de	teu	coração	ficaram	cegos.	“O	Verbo	Se	fez	carne”,	esse	Médico
preparou-te	um	colírio.	E	porque	Ele	veio	de	tal	modo	para	extinguir,	a
partir	da	carne,	os	vícios	da	carne	e	matar	a	morte	com	a	morte,	aconteceu-
te	que,	porque	“o	Verbo	Se	fez	carne”,	possas	dizer:	“E	nós	vimos	a	Sua
glória”.	Que	glória	é	essa?	A	de	ter	Se	tornado	Ele	filho	do	homem?	Aí	está
Sua	humildade,	não	Sua	glória!	Mas	aonde	é	conduzido	o	olhar	do	homem,
curado	pela	carne?	“Nós	vimos	a	Sua	glória,	como	a	glória	do	Unigênito	do
Pai,	cheio	de	graça	e	de	verdade”.³¹⁵	A	respeito	da	graça	e	da	verdade,
trataremos	mais	abundantemente	em	outro	lugar	neste	mesmo	Evangelho,
se	o	Senhor	se	dignar	conceder-nos.	Sejam-nos	suficientes,	por	agora,	as
coisas	que	dissemos.	Edificai-vos	em	Cristo,	confortai-vos	na	fé	e	vigiai	nas
boas	obras:	e	não	vos	afasteis	do	lenho	por	meio	do	qual	podeis	atravessar	o
mar.
HOMILIA	3
O	testemunho	de	João	(Jo	1,15-18)
Objetivo	do	sermão
1	Assumimos,	em	nome	do	Senhor,	e	à	vossa	caridade	prometemos	que
havíamos	de	distinguir	do	Antigo	Testamento	a	graça	e	a	verdade	de	Deus,
cheio	das	quais	o	Filho	Unigênito,	nosso	Senhor	e	Salvador	Jesus	Cristo,
apareceu	aos	olhos	dos	santos,	porque	são	realidades	próprias	do	NovoTestamento.	Assisti,	pois,	atentos,	para	que,	na	medida	de	quanto
compreendo,	Deus	o	conceda	e,	na	medida	de	quanto	compreendeis,	o
ouçais.	Resultará,	então,	que,	se	a	semente	que	se	esparze	em	vosso	coração
não	for	arrebatada	pelas	aves,	nem	sufocada	pelos	espinhos,	nem	tampouco
ressecada	pelo	ardor	do	verão,	e	houver	o	concurso	da	chuva	das	exortações
cotidianas	com	os	vossos	bons	pensamentos,	com	os	quais	se	trabalha	no
coração	tal	como	os	ancinhos	fazem	no	campo,	para	que	a	terra	seja
sulcada,	a	semente	seja	recoberta	e	possa	germinar,³¹ 	produzireis	o	fruto	de
que	há	de	gozar	e	se	alegrar	o	agricultor.	Se,	no	entanto,	em	troca	dessa	boa
semente	e	da	chuva	benfazeja,	nós	produzimos	não	um	fruto,	e	sim
espinhos,	não	se	acusará	a	semente,	nem	se	recriminará	a	chuva,	mas	para
os	espinhos	se	prepara	o	devido	fogo.
Não	estamos	mais	sob	a	Lei,	mas	sob	a	graça
2	Nós	somos	homens	cristãos	–	e,	acerca	disso,	não	creio	que	devo	persuadir
demoradamente	a	vossa	caridade	–,	e,	se	cristãos,	até	por	nosso	nome,	sem
dúvida,	pertencemos	a	Cristo.	Trazemos	na	fronte	o	sinal	d’Ele,	pelo	qual
nunca	haveremos	de	sentir	rubor,	se	o	trouxermos	também	no	coração.	O
sinal	d’Ele	é	Sua	humildade.	Foi	por	uma	estrela	que	os	Magos	O
reconheceram,³¹⁷	e	tal	sinal	celeste	e	refulgente	proveio	do	Senhor.	Ele	não
quis	que	uma	estrela	estivesse,	como	sinal	Seu,	na	fronte	dos	fiéis,	mas	a	Sua
cruz.	A	partir	dali,	donde	fora	humilhado,	foi	glorificado;	a	partir	dali,
donde,	humilhado,	Ele	próprio	desceu,	ergueu	os	humildes.	Nós
pertencemos,	pois,	ao	Evangelho,	pertencemos	ao	Novo	Testamento.	“A	lei
foi	dada	por	meio	de	Moisés,	a	graça	e	a	verdade	nos	vieram	por	Jesus
Cristo”.³¹⁸	Interrogamos	o	Apóstolo,	e	ele	nos	diz	que	não	estamos	“sob	a
Lei,	mas	sob	a	graça”.³¹ 	“Deus,	portanto,	enviou	o	seu	Filho	nascido	de	uma
mulher,	nascido	sob	a	Lei	para	remir	os	que	estavam	sob	a	Lei,	a	fim	de	que
recebêssemos	a	adoção	filial”.³² 	Eis	que	Cristo	veio	para	isto:	para	remir	os
que	estavam	sob	a	Lei	e	para	que	já	não	estejamos	sob	a	Lei,	mas	sob	a
graça.	Quem	deu,	pois,	a	Lei?	Aquele	mesmo	que	deu	a	Lei	é	quem	deu
também	a	graça;	mas	enviou	a	Lei	por	intermédio	de	um	servo,	ao	passo
que	desceu	Ele	próprio	com	a	graça.	E	por	que	os	homens	foram	colocados
sob	a	Lei?	Por	não	cumprirem	a	Lei.	Com	efeito,	quem	cumpre	a	Lei	não
está	sob	a	Lei,	mas	com	a	Lei.	Mas	aquele	que	está	sob	a	Lei	não	é	erguido,
mas	oprimido	pela	Lei.	Assim,	a	todos	os	homens	constituídos	sob	a	Lei,	a
Lei	os	torna	réus.	E	ela	lhes	fica	sobre	a	cabeça,	para	fazer	ver	os	seus
pecados,	não	para	tirá-los.	A	Lei	dá,	então,	ordens,	e	o	Doador	da	Lei	Se
compadece	naquilo	que	ordena	a	Lei.	Esforçando-se	para	cumprir	com	suas
próprias	forças	o	preceituado	pela	Lei,	os	homens	caíram,	vítimas,
precisamente,	da	sua	temerária	e	irrefletida	presunção,	e	não	estão	com	a
Lei,	mas	tornaram-se	réus	sob	a	Lei.	E	porque	lhes	era	impossível	cumprir
a	Lei	com	as	próprias	forças,	tornaram-se	réus	sob	a	Lei,	imploraram	o
auxílio	do	Libertador	e	a	condição	de	réus	sob	a	Lei	produziu	a	doença	dos
soberbos.	A	doença	desses	soberbos	tornou-se	confissão	dos	humildes.	Os
doentes	confessam	já	que	estão	doentes.	Que	venha,	então,	o	Médico	e	cure
os	doentes!
O	nosso	médico	é	Cristo,	encarnado	e	crucificado
3	Quem	é	esse	médico?	Nosso	Senhor	Jesus	Cristo.	E	quem	é	nosso	Senhor
Jesus	Cristo?	Aquele	que	foi	visto	mesmo	pelos	que	O	crucificaram.	Aquele
que	foi	preso,	esbofeteado,	flagelado,	coberto	de	escarros,	coroado	de
espinhos,	suspenso	à	cruz,	que	morreu,	foi	transpassado	por	uma	lança,
descido	da	cruz	e	deposto	no	sepulcro.	Esse	mesmo	é	nosso	Senhor	Jesus
Cristo!	Sim,	é	bem	Ele,	e	Ele	é	o	completo	Médico	de	nossas	feridas,	aquele
Crucificado,	a	quem	se	insultou	e	diante	de	quem,	pendente	da	cruz,	os
perseguidores	sacudiam	a	cabeça,	dizendo:	“Se	é	o	Filho	de	Deus,	que	desça
da	cruz”.³²¹	Ele	mesmo	é	o	nosso	Médico	completo;	Ele	o	é	nitidamente!	Por
que	não	mostrou	aos	que	O	insultavam,	que	Ele	era,	de	fato,	o	Filho	de
Deus?	Ora,	se	permitiu	que	O	erguessem	na	cruz,	pelo	menos	quando	Lhe
diziam:	“Se	é	o	Filho	de	Deus,	que	desça	da	cruz”,	Ele	então	poderia	descer
e	mostrar-lhes	que	Aquele	de	quem	ousavam	escarnecer	era
verdadeiramente	o	Filho	de	Deus.	Não	o	quis.	E	por	que	não	o	quis?	Acaso
porque	não	o	podia?	Certamente	o	pôde.	Com	efeito,	o	que	é	mais:	descer
da	cruz	ou	ressuscitar	do	sepulcro?	Suportou,	porém,	os	que	O	insultavam,
porque	a	cruz	foi	aceita	para	dar	não	uma	prova	de	força,	mas	um	exemplo
de	paciência.	Ele	curou	tuas	feridas	ali	onde,	por	um	demorado	tempo,
suportou	as	próprias.	Ele	te	livrou	da	morte	eterna	ali	mesmo,	onde	Se
dignou	morrer	temporalmente.	E	teria	Ele	morrido	ou,	antes,	a	morte	é	que
n’Ele	morreu?	E	que	morte	é	essa	que	mata	a	morte?
Cristo:	o	Verbo,	a	Sabedoria	criadora,	a	luz	dos	espíritos
4	E,	contudo,	Aquele	que	era	visto,	detido	e	crucificado,	era	nosso	Senhor
Jesus	Cristo	todo	inteiro?	Ele	próprio,	em	Sua	completude,	era	isso?	Na
verdade,	era	Ele	mesmo;	mas	o	que	os	judeus	viram	não	era	Ele	todo,	não
era	isso	o	Cristo	em	Sua	completude.	E	o	que	é?	“No	princípio	era	o	Verbo”.
Em	que	princípio?	“E	o	Verbo	estava	junto	de	Deus”.	E	que	tipo	de	Verbo?
“E	o	Verbo	era	Deus”.	Por	acaso,	esse	Verbo	teria	sido	feito	por	Deus?	Não,
porque,	“no	princípio,	estava	junto	de	Deus”.	O	que	dizer,	então?	As	outras
criaturas	que	Deus	fez	não	são	semelhantes	ao	Verbo?	Não,	porque	“tudo
foi	feito	por	Ele	e	nada	foi	feito	sem	Ele”.	Como	tudo	foi	feito	por	Ele?	“O
que	foi	feito,	era	vida	n’Ele”,	e,	antes	de	ser	feito,	“era	vida”.³²²	O	que	foi
feito	não	é	vida;	mas,	na	imaginação	do	artífice,	isto	é,	na	Sabedoria	de
Deus,	antes	de	ser	feito,	era	vida.	O	que	foi	feito	passou;	o	que	existe	na
Sabedoria	não	pode	passar.	O	que	foi	feito	era,	portanto,	vida	n’Ele.	E	que
vida?	Ora,	também	a	alma	é	a	vida	do	corpo.	Nosso	corpo	possui	sua
própria	vida	e,	quando	a	tiver	perdido,	dar-se-á	a	morte	do	corpo.	Era,	pois,
de	tal	espécie	aquela	vida?	Não!	“Mas	a	vida	era	a	luz	dos	homens”.	Era	ela
também	a	luz	dos	animais?	Haja	vista	que	esta	luz	é	tanto	dos	homens	como
dos	animais.	Existe,	contudo,	certa	luz	exclusiva	dos	homens.	Vejamos	em
que	os	homens	se	diferem	dos	animais,	e	compreenderemos,	então,	o	que	é	a
luz	dos	homens.	Tu	não	diferes	dos	animais,	senão	pela	inteligência:	não	te
glories	de	nada	mais.	Presumes	de	tuas	forças?	És	vencido	pelas	feras.
Presumes	de	tua	agilidade?	És	vencido	pelas	moscas.	Presumes	de	tua
beleza?	Quanta	beleza	há	nas	penas	do	pavão?	De	onde	vem,	então,	que
sejas	melhor?	Da	imagem	de	Deus.	Onde	se	encontra	essa	imagem	de	Deus?
Na	mente,	na	inteligência.	Se	és,	então,	melhor	que	o	animal	precisamente
por	teres	um	espírito	com	que	compreendes	o	que	o	animal	não	pode
compreender,	e	por	isso	és	um	homem,	melhor	que	o	animal,	a	luz	dos
homens	não	é	senão	a	luz	dos	espíritos.	A	luz	dos	espíritos	está	acima	dos
espíritos,	e	ultrapassa-os	a	todos.	Eis	aquela	vida	pela	qual	tudo	foi	feito.
Ele	estava	no	mundo,	mas	sem	ser	visto	pelo	mundo
5	Onde	estava	a	luz?	Estava	aqui?	Ou	estava	junto	do	Pai,	e	aqui	não
estava?	Ou,	o	que	é	mais	verdadeiro,	estava	ela,	ao	mesmo	tempo,	junto	do
Pai	e	aqui?	Se	ela	estava	aqui,	por	que	não	era	vista?	Porque	“a	luz	brilha
nas	trevas	e	as	trevas	não	a	compreenderam”.	Ó	homens,	não	sejais	trevas,
não	sejais	infiéis,	injustos,	iníquos,	cobiçosos,	avarentos,	afeiçoados	ao
século:	estas	são	as	trevas.	A	luz	não	está	ausente,	mas	vós	estais	ausentes	à
luz.	O	cego,	ao	sol,	tem	o	sol	presente	a	si,	mas	ele	mesmo	está	ausente	do
sol.	Não	sejais	trevas,	pois.	Esta	é,	talvez,	a	graça	sobre	a	qual	vos	hei	de
falar:	a	de	que	não	sejamos	mais	trevas,	e	que	o	Apóstolo	nos	diga:
“Outrora,	éreis	trevas,	mas	agora	sois	luz	no	Senhor”.³²³	E	como	não	se	via,
de	fato,	a	luz	dos	homens,	isto	é,	a	luz	dos	espíritos,	era	preciso	que	um
homem	desse	testemunho	da	luz.	Não,	por	certo,	um	homem	tenebroso,	mas
já	iluminado.	Não	por	estar	iluminado,	era	ele	a	própria	luz,	mas	viera
“para	dar	testemunho	da	luz”,	pois	“não	era	ele	a	luz”.	E	que	luz	era	essa?
“A	Luzverdadeira	que	ilumina	todo	homem	que	vem	a	este	mundo”.	E
onde	estava	ela?	“Estava	neste	mundo”.	Como	estava	ela	neste	mundo?
Porventura	à	semelhança	desta	luz	do	sol,	da	luz	da	lua	e	das	lâmpadas	é
que	a	referida	luz	está	também	neste	mundo?	Não,	porque	“o	mundo	foi
feito	por	Ele,	e	o	mundo	não	O	reconheceu”,	isto	é,	“a	luz	brilha	nas	trevas	e
as	trevas	não	a	compreenderam”.	O	mundo	é	todo	ele	trevas,	na	verdade,
porque	o	mundo	são	aqueles	que	amam	o	mundo.	Então,	a	criatura	não
reconheceu	o	seu	Criador?	O	céu	deu	testemunho	por	meio	da	estrela;³²⁴	o
mar	deu	testemunho	e	sustentou	o	Senhor	que	caminhava;³²⁵	os	ventos
deram	testemunho	e	apaziguaram-se	à	Sua	ordem;³² 	a	terra	deu
testemunho	e	tremeu	por	ocasião	de	Sua	crucificação.³²⁷	Se	todas	essas
criaturas	deram	testemunho,	como	é	que	o	mundo	não	O	conheceu,	a	não
ser	porque	o	mundo	significa	os	amigos	do	mundo,	esses	que	habitam	o
mundo	com	o	coração?	O	mundo	é	mau,	porque	seus	habitantes	são	maus,
assim	como	uma	casa	é	má,	não	por	suas	paredes,	mas	por	seus	moradores.
“Ele	veio	para	o	que	era	Seu”
6	“Ele	veio	ao	que	era	Seu”:	isto	é,	àquilo	que	Lhe	pertencia,	“e	os	Seus	não
O	receberam”.	E	que	esperança	há,	senão	a	de	que	“a	todos	os	que	O
receberam	deu	o	poder	de	se	tornarem	filhos	de	Deus”?³²⁸	Se	filhos	se
tornam,	é	porque	nasceram.	E,	se	nasceram,	como	nasceram?	Não	da	carne,
“nem	dos	sangues,	nem	da	vontade	da	carne,	nem	da	vontade	do	homem,
mas	de	Deus”.	Regozijem-se,	pois,	os	que	nasceram	de	Deus,	que	se	ufanem
por	pertencer	a	Deus,	que	recebam	a	prova	de	que	nasceram	de	Deus:	“E	o
Verbo	Se	fez	carne	e	habitou	entre	nós”.³² 	Se	o	Verbo	não	Se	envergonhou
de	nascer	do	homem,	envergonhar-Se-ão	os	homens	de	nascer	de	Deus?
Porque	Ele	o	fez,	trouxe-nos	a	cura;	e	porque	nos	curou,	vemos.	Pelo	fato	de
que	“o	Verbo	Se	fez	carne	e	habitou	entre	nós”,	tornou-Se	nosso	remédio,	a
fim	de	que,	nós	que	ficáramos	cegos	por	causa	da	terra,	com	a	terra
fôssemos	curados;	e	para	que	víssemos	o	quê,	uma	vez	curados?	“Nós
vimos,	diz,	a	Sua	glória,	a	glória	do	Unigênito	do	Pai,	cheio	de	graça	e	de
verdade”.³³
O	testemunho	de	João:	“Ele	existia	antes	de	mim”
7	“João	dá	testemunho	d’Ele	e	clama:	‘Este	é	Aquele	de	quem	eu	disse:	o
que	vem	depois	de	mim,	passou	adiante	de	mim,	porque	existia	antes	de
mim’”.³³¹	Veio	depois	de	mim	e	precedeu-me.	O	que	significa:	“Existia	antes
de	mim?”	Ele	precedeu-me,	não	que	tenha	sido	feito	antes	que	fosse	feito	eu,
mas:	foi	anteposto	a	mim.	Tal	é	o	sentido	de:	“Porque	existia	antes	de	mim”.
Por	que	foi	anteposto	a	ti,	se	veio	depois	de	ti?	“Porque	existia	antes	de
mim”.	Antes	de	ti,	ó	João?	O	que	há	de	extraordinário	que	Ele	exista	antes
de	ti?	Bom,	já	que	dás	testemunho	d’Ele,	ouçamo-l’O	a	Ele	mesmo	dizer:
“Antes	que	Abraão	fosse,	eu	sou”.³³²	Mas	o	próprio	Abraão	nasceu	em	meio
ao	gênero	humano.	Houve	muitos	homens	antes	dele,	e	muitos	depois.
Escuta,	então,	a	voz	do	Pai	dirigida	ao	Filho:	“Antes	da	aurora,	eu	te
gerei”.³³³	Aquele	que	foi	gerado	antes	da	aurora,	a	todos	ilumina.	Diz-se	que
Lúcifer,	com	efeito,	era	o	nome	de	alguém	que	caiu:	era	um	anjo,	tornou-se
diabo,	e	dele	diz	a	Escritura:	“Caiu	do	céu	o	astro	brilhante,	que	nascia	de
manhã”.³³⁴	Por	que	era	chamado	Lúcifer?	Porque,	tendo	sido	iluminado,
reluzia.	E	por	que	se	tornou	tenebroso?	“Porque	não	permaneceu	na
verdade”.³³⁵	O	Verbo	existia,	pois,	antes	da	aurora,	antes	de	tudo	o	que	foi
iluminado,	uma	vez	que	é	necessário	que	exista,	antes	de	tudo	o	que	foi
iluminado,	Aquele	por	quem	são	iluminados	todos	os	seres	que	o	podem
ser³³ .
“Pois	de	Sua	plenitude	todos	nós	recebemos”
8	Assim,	eis	o	que	segue:	“E	de	Sua	plenitude	nós	todos	recebemos”.	O	que
recebestes?	“E	graça	por	graça”.³³⁷	Tais	são,	com	efeito,	as	palavras
evangélicas,	confrontadas	com	os	manuscritos	gregos.	Não	diz:	E	de	Sua
plenitude	nós	todos	recebemos	graça	por	graça;	mas	diz	assim:	“E	de	Sua
plenitude	nós	todos	recebemos,	e	–	isto	é,	recebemos–	graça	por	graça”,	de
modo	que	o	texto	nos	quis	dar	a	entender	que,	de	Sua	plenitude,	nós
recebemos	não	sei	o	quê	e,	além	disso,	graça	por	graça.	Com	efeito,	de	Sua
plenitude,	nós	recebemos	primeiramente	uma	graça	e,	de	novo,	outra	graça
–	“graça	por	graça”.	Que	graça	recebemos	primeiro?	A	fé.	Os	que
caminhamos	à	luz	da	fé,	caminhamos	à	luz	da	graça.	E	donde	é	que	o
merecemos?	Em	virtude	de	que	méritos	anteriores	de	nossa	parte?	Que
ninguém	se	envaideça,	volte	cada	um	à	sua	consciência,	perscrute	o
esconderijo	dos	seus	pensamentos,	examine	o	conjunto	dos	seus	atos.	Que
ninguém	preste	atenção	no	que	é,	se	é	já	alguma	coisa,	mas	no	que	foi,	para
chegar	a	ser	alguma	coisa:	encontrará	não	ter	sido	merecedor	senão	de
castigo.	Se,	pois,	tu	eras	digno	de	castigo	e	veio	Aquele	que	não	punia
pecados,	mas	os	perdoava,	foi-te	dada	uma	graça,	não	te	foi	pago	um
salário.	Por	que	é	ela	denominada	graça?	Porque	gratuitamente	se	dá.	Não
foi	por	méritos	anteriores	que	compraste,	então,	o	que	recebeste.	O	pecador
recebeu,	pois,	esta	primeira	graça:	que	lhe	fossem	perdoados	os	pecados.	O
que	mereceu?	Que	ele	interrogue	a	justiça	e	terá	como	resposta	um	castigo.
Que	interrogue	a	misericórdia	e	encontrará	a	graça.	Mas	isso,	Deus	o
prometera	pelos	profetas,	e	assim,	quando	Ele	veio	dar	o	que	havia
prometido,	não	foi	somente	a	graça	que	Ele	deu,	mas	também	a	verdade.
Como	se	manifestou	a	verdade?	Por	se	ter	feito	o	que	fora	prometido.
“[…]	e	graça	por	graça”
9	O	que	significa,	então:	“graça	por	graça”?	Pela	fé,	nós	conquistamos	o
favor	de	Deus.	E	isso	é	chamado	graça	porque	os	que	não	éramos	dignos	de
que	se	nos	perdoassem	os	pecados	recebemos,	apesar	de	nossa	indignidade,
um	tão	grande	dom.	O	que	é	graça?	Um	dom	gratuito.	O	que	é	um	dom
gratuito?	O	que	foi	concedido	como	favor,	e	não	pago	como	uma
retribuição.	Se	fosse	uma	dívida,	seria	mercê	paga	pelo	trabalho,	e	não	uma
graça	dada.	E	se	houvesse,	realmente,	uma	dívida,	é	porque	foste	bom.	Se,
no	entanto,	como	é	verdade,	foste	mau,	mas	creste	“n’Aquele	que	justifica	o
ímpio”	–	o	que	significa	“que	justifica	o	ímpio”?	Que	faz	de	um	ímpio	um
piedoso	–,	pensa	no	que	devia	cair	sobre	ti	por	força	da	Lei	e	no	que
alcançaste	mediante	a	graça.	Tendo	obtido	essa	graça	da	fé,	serás	justo	em
virtude	da	fé,	porque	“o	justo	vive	da	f锳³⁸	e,	vivendo	da	fé,	conquistarás	o
favor	de	Deus;	e	tendo	conquistado	o	favor	de	Deus,	vivendo	da	fé,
receberás	como	recompensa	a	imortalidade	e	a	vida	eterna.	E	essa	é
também	uma	graça.	Pois,	em	virtude	de	que	mérito	recebes	a	vida	eterna?
Por	força	de	uma	graça.	Com	efeito,	se	a	fé	é	uma	graça	e	se	a	vida	eterna	é
como	que	a	recompensa	da	fé,	Deus	parece,	por	assim	dizer,	pagar	a	vida
eterna	como	se	fosse	devida.	Devida	a	quem?	Ao	fiel,	porque	a	mereceu	pela
fé.	Como,	porém,	a	fé	é	ela	mesma	uma	graça,	a	vida	eterna	é,	também,
graça	por	graça.
O	exemplo	de	Paulo	comprova	essa	interpretação
10	Ouve	o	apóstolo	Paulo	a	confessar	a	graça	e,	depois,	a	reclamar	o	que	lhe
era	devido.	Qual	é	essa	confissão	da	graça	em	Paulo?	“Comecei	por	ser
blasfemador,	perseguidor	e	insultador,	mas	–	ele	diz	–	obtive
misericórdia”.³³ 	Declara	ter	sido	indigno	de	obtê-la,	e	que	a	alcançou,
todavia,	não	em	virtude	de	seus	méritos,	mas	pela	misericórdia	de	Deus.
Ouve-o,	agora,	a	reclamar	o	devido;	ele	que,	primeiramente,	recebera	a
graça	imerecida:	“Já	estou	para	ser	imolado	–	diz	–	e	o	tempo	de	minha
morte	está	próximo.	Combati	o	bom	combate,	terminei	minha	carreira,
guardei	a	fé.	Quanto	ao	resto,	a	coroa	da	justiça	me	está	reservada...”.	E	já
reclama	algo	como	devido,	já	exige	a	dívida;	vê,	também,	as	palavras	que
seguem:	“Está-me	reservada	a	coroa	de	justiça	que	me	dará,	naquele	dia,	o
Senhor,	Juiz	justo”.³⁴ 	Para	receber	a	graça	anteriormente,	ele	precisou	de
um	Pai	misericordioso.	Para	receber	a	recompensa	da	graça,	ele	precisa	de
um	Juiz	justo.	Pois,	Aquele	que	não	condenou	o	ímpio	haverá	de	condenar	o
fiel?	E,	refletindo	bem,	no	entanto,	o	próprio	Senhor	começou	por	dar-te	a
fé	pela	qual	conquistaste	o	Seu	favor,	porque	não	o	conquistaste	com	o	que	é
teu,	a	ponto	de	que	se	te	devesse	alguma	coisa.	Ao	conceder-tea	seguir,
portanto,	a	recompensa	da	imortalidade,	Deus	coroa	os	Seus	dons,	não	os
teus	méritos.	Por	conseguinte,	irmãos,	“de	Sua	plenitude	todos	nós
recebemos”,	da	plenitude	de	Sua	misericórdia,	da	abundância	de	Sua
bondade,	nós	recebemos.	O	quê?	A	remissão	de	nossos	pecados,	para	que
fôssemos	justificados	pela	fé.	E	o	que	mais?	“Graça	por	graça”,	isto	é,	por
essa	graça	na	qual	vivemos	da	fé,	havemos	de	receber	ainda	outra.	E	que
outra,	senão	uma	nova	graça?	Com	efeito,	se	eu	também	digo	que	isso	me	é
devido,	atribuo-me	algo	como	se	a	mim	se	me	devesse;	pois	Deus	coroa	em
nós	os	dons	de	Sua	misericórdia,	contanto,	porém,	que	caminhemos	até	o
fim,	perseverantemente,	naquela	graça	que	recebemos	como	primeira.
Deus	havia	dado	a	Lei	para	dobrar	o	orgulho	dos	homens
11	“A	Lei	foi	dada	por	Moisés”,³⁴¹	a	qual	retinha	os	culpados.	O	que	diz,
pois,	o	Apóstolo?	“A	Lei	sobreveio	para	que	o	delito	abundasse”.³⁴²	Para	os
orgulhosos	foi	de	utilidade	que	o	delito	abundasse;	eles	estavam,	de	fato,
cheios	de	si	mesmos,	atribuíam	muito	às	próprias	forças	e	eram	incapazes
de	cumprir	a	justiça,	a	menos	que	os	ajudasse	Aquele	que	lhes	impunha	os
preceitos.	Querendo	dobrar	o	orgulho	deles,	Deus	lhes	deu	a	Lei,	como	que
dizendo:	Ei-la,	cumpri-a,	e	não	julgueis	que	falta	quem	a	imponha.	Não
falta	quem	a	imponha,	mas	sim	quem	a	cumpra.
Cristo	nasceu	sem	pecado	para	arrancar	o	homem	do	pecado
12	Ora,	se	falta	quem	a	cumpra,	por	que	o	homem	não	a	cumpre?	Por	ter
nascido	com	o	aguilhão	do	pecado	e	da	morte.	Nascido	de	Adão,	ele	trouxe
consigo	o	que	ali	se	concebeu.	O	primeiro	homem	caiu	e	todos	aqueles	que
dele	nasceram,	dele	arrastaram	a	concupiscência	da	carne.	Era	preciso	que
nascesse	outro	homem,	que	não	arrastou	concupiscência	alguma.	Um
homem	e	outro	homem:	um	para	a	morte	e	outro	para	a	vida.	Assim	diz	o
Apóstolo:	“Porque	a	morte	veio	por	um	homem,	é	também	por	um	homem
que	vem	a	ressurreição	dos	mortos”.³⁴³	Por	meio	de	que	homem	veio	a
morte,	e	por	meio	de	que	homem	vem	a	ressurreição	dos	mortos?	Não	te
apresses.	O	Apóstolo	continua,	dizendo:	“Com	efeito,	assim	como	todos
morrem	em	Adão,	também	do	mesmo	modo	todos	serão	vivificados	em
Cristo”.³⁴⁴	Quais	são	os	que	pertencem	a	Adão?	Todos	os	nascidos	de	Adão.
E	quais	os	que	pertencem	a	Cristo?	Todos	os	nascidos	por	meio	de	Cristo.
Por	que	estão	todos	em	pecado?	Porque	não	há	quem	tenha	nascido	à
margem	de	Adão.	Que	nascessem	de	Adão	foi	uma	necessidade	imposta	pela
condenação,	mas	nascer	por	meio	de	Cristo	vem	da	vontade	e	da	graça.	Os
homens	não	são	forçados	a	nascer	por	meio	de	Cristo;	mas	não	porque
quiseram	nasceram	eles	de	Adão.	Todos	os	nascidos	de	Adão	são,
entretanto,	pecadores	e	trazem	consigo	o	pecado;	todos	os	que	nasceram	por
meio	de	Cristo	são	justificados	e	justos,	não	em	si	mesmos,	mas	n’Ele.	Se
interrogares,	pois,	pelo	que	são	em	si,	eles	são	de	Adão;	mas,	se	os
considerares	n’Ele,	são	de	Cristo.	Por	quê?	Porque	Ele,	que	é	a	Cabeça,
nosso	Senhor	Jesus	Cristo,	não	veio	com	o	aguilhão	do	pecado,	embora
tenha	vindo	com	uma	carne	mortal.
Cristo	morreu	para	libertar	o	homem	da	morte	eterna
13	A	morte	era	o	castigo	dos	pecados.	No	Senhor,	era	um	dom	da
misericórdia,	não	o	castigo	do	pecado.	Nada	havia	no	Senhor	por	que
justamente	devesse	morrer.	Ele	mesmo	o	diz:	“Eis	que	o	príncipe	deste
mundo	vem,	e	ele	nada	encontra	em	mim”.	Por	que,	pois,	morres?	“Mas
para	que	todos	saibam	que	eu	faço	a	vontade	de	meu	Pai;	levantai-vos,
vamo-nos	daqui”.³⁴⁵	Ele	nada	tinha	em	Si	por	que	devesse	morrer	e,	todavia,
morreu.	Tu	tens	um	motivo	por	que	deves	morrer,	e	te	recusas?	Digna-te
sofrer	com	alma	serena,	para	mérito	teu,	o	que	Ele	mesmo	Se	dignou	sofrer
para	livrar-te	da	morte	eterna.	Um	homem	e	outro	homem.	Mas	o	primeiro
não	é	senão	um	homem,	o	outro	é	Deus	e	homem.	O	primeiro	é	o	homem	do
pecado;	o	outro,	o	homem	da	justiça.	Tu	morreste	em	Adão;	ressuscita,
agora,	em	Cristo,	porque	as	duas	coisas	te	são	devidas.	Já	deste	tua	fé	a
Cristo;	deverás,	porém,	pagar	a	dívida	que	tens	por	causa	de	Adão.	O
vínculo	do	pecado	não	te	dominará	para	sempre,	visto	que	a	morte	temporal
de	teu	Senhor	matou	a	tua	morte	eterna.	Tal	é	a	graça,	meus	irmãos,	tal	é
também	a	verdade,	pois	foi	prometida	e	mostrada.
A	Lei,	uma	preparação;	o	Senhor,	médico	que	cura
14	Essa	graça	de	que	falamos	não	se	encontrava	no	Antigo	Testamento,	pois
a	Lei	proferia	ameaças,	não	trazia	socorro.	Ditava	ordens,	não	curava.
Manifestava	a	doença,	não	a	suprimia.	Fazia,	entretanto,	uma	preparação
para	aquele	Médico	que	havia	de	vir,	com	a	graça	e	a	verdade.	Do	mesmo
modo,	um	médico	que	deseja	curar	um	doente	começa	por	enviar-lhe	um
servo	seu,	a	fim	de	encontrá-lo	vendado.	O	homem	não	gozava	de	boa
saúde,	não	queria	ser	curado	e,	por	receio	de	ser	curado,	vangloriava-se	de
estar	são.	A	Lei	foi	enviada	e	vendou-o.	Reconheceu-se	culpada	a	criatura
humana,	e	já	clama	do	meio	de	suas	bandagens.	O	Senhor	vem.	Trata-a	com
remédios	um	tanto	amargos	e	ácidos.	Diz	ao	enfermo:	Suporta!	Diz	ainda:
Tolera!	Não	ames	o	mundo.	Tem	paciência,	que	o	fogo	da	continência	te	seja
um	remédio,	que	tuas	chagas	aguentem	o	ferro	das	perseguições.	Apesar	das
ataduras,	tremias	de	espanto.	O	Médico,	porém,	estava	livre	e,	sem	atadura
alguma,	bebeu	o	que	te	dava	a	beber.	Ele	sofreu	primeiro	para	consolar-te,
como	que	dizendo:	Sofro	primeiro	por	ti	aquilo	que	temes	sofrer	por	ti
mesmo.	Tal	é	a	graça,	e	que	grande	graça!	Quem	poderá	louvá-la
dignamente?
Se	a	humildade	de	Cristo	realizou	tal	obra,	o	que	dizer	de	Sua	majestade	de
Verbo?
15	Falo	sobre	a	humildade	de	Cristo,	meus	irmãos.	E	o	que	se	há	de	falar
sobre	a	majestade	de	Cristo,	a	divindade	de	Cristo?	Ao	explicar	e	discorrer,
sentimos	que	não	somos	capazes	de	falar	de	algum	modo	da	humildade	de
Cristo,	ou	melhor,	que	somos	totalmente	incapazes	de	fazê-lo.	Deixamo-lo
tudo	a	vós	que	meditais,	não	conseguimos	esgotá-lo	perante	a	vossa
audiência.	Meditai	a	humildade	de	Cristo!	Mas	–	replicas-me	–	quem	no-la
há	de	explicar,	se	não	nos	falares	sobre	isso?	Que	fale	Ele	mesmo,	dentro	de
vós.	Aquele	que	habita	em	vosso	interior	fala	muito	melhor	sobre	isso	do
que	quem	grita	no	exterior.	Descubra-vos	a	graça	de	Sua	humildade	Aquele
mesmo	que	começou	a	habitar	em	vossos	corações.	Se,	porém,	nós	somos
incapazes	de	discorrer	como	é	devido	acerca	de	Sua	humildade,	quem
poderá	falar	de	Sua	majestade?	Se	nos	conturba	o	Verbo	feito	carne,	quem
explicará:	“No	princípio	era	o	Verbo”?	Retende,	pois,	irmãos,	essa	solidez.
A	Lei	os	fez	culpáveis,	o	Cristo	os	libertou
16	“A	Lei	foi	dada	por	meio	de	Moisés,	a	graça	e	a	verdade	nos	vieram	por
Jesus	Cristo”.³⁴ 	A	Lei	foi	dada	por	intermédio	de	um	servidor,	e	ela
estabeleceu	os	culpados;	a	indulgência	foi	dada	pelo	Imperador,	libertou
esses	culpados.	“A	Lei	foi	dada	por	meio	de	Moisés”:	que	o	servo	não	se
arrogue	mais	do	que	foi	feito	por	ele:	foi	escolhido	para	um	cargo
importante,	tal	como	um	servo	fiel	na	casa,³⁴⁷	e	todavia	um	servo:	pode	agir
segundo	a	Lei,	mas	não	pode	absolver	da	culpa	contra	a	Lei.	Então,	“a	Lei
foi	dada	por	meio	de	Moisés,	a	graça	e	a	verdade	vieram	por	Jesus	Cristo”.
A	graça	e	a	verdade	não	vieram	por	meio	de	Moisés
17	E	para	que	ninguém	proteste:	–	mas	a	graça	e	a	verdade	não	nos	vieram
por	meio	de	Moisés,	que	viu	a	Deus?	–,	o	evangelista	acrescenta	em	seguida:
“Ninguém	jamais	viu	a	Deus”.³⁴⁸	–	Como	então	Deus	Se	deu	a	conhecer	a
Moisés?	O	Senhor	revelou-Se	a	Seu	servo.	Que	Senhor?	O	próprio	Cristo,
que	enviou	primeiramente	a	Lei	por	meio	de	Seu	servo,	a	fim	de	vir	depois,
Ele	próprio,	com	a	graça	e	a	verdade,	porque	“ninguém	jamais	viu	a	Deus”.
E	como	Ele	apareceu	àquele	servo,	na	medida	em	que	este	O	pudesse
perceber?	Responde	o	Evangelho:	“O	Filho	Unigênito	que	está	no	seio	do
Pai,	este	O	deu	a	conhecer”.³⁴ 	O	que	significa:	“Que	está	no	seio³⁵ 	do	Pai”?
No	segredo	do	Pai!	Com	efeito,	Deus	não	tem	um	seio³⁵¹	como	nós	o	temos
nas	vestes,	nem	se	há	de	pensar	que	Se	sente	como	nós	o	fazemos,	nem,
talvez,	que	se	cinja,	para	que	tenha	um	seio,	mas	porque	o	nosso	seio	é	algo
íntimo,	o	segredo	do	Pai	é	chamado	de	“seiodo	Pai”.	Aquele	que,	no	segredo
do	Pai,	conhece	o	Pai,	deu-O	Ele	mesmo	a	conhecer,	pois	“ninguém	jamais
viu	a	Deus”.	Ele	veio,	pois,	e	narrou	tudo	quanto	viu.	O	que	viu	Moisés?
Moisés	viu	uma	nuvem,	viu	o	anjo,	viu	o	fogo:	tudo	isso	são	apenas
criaturas,	que	traziam	a	imagem	de	seu	Senhor,	sem	revelar	a	presença	do
próprio	Senhor.	Tens	bem	claro	na	Lei:	“E	Moisés	falava	com	o	Senhor	face
a	face,	como	um	amigo	com	seu	amigo”.	Continuas	a	ler	nessa	mesma
passagem	da	Escritura	e	te	deparas	com	estas	palavras	de	Moisés:	“Se
encontrei	graça	diante	de	teus	olhos,	mostra-te	a	descoberto,	a	fim	de	que	te
veja”.	E	é	pouco	que	o	tenha	dito;	ele	recebeu	ainda	esta	resposta:	“Tu	não
podes	ver	minha	face”.³⁵²	Com	Moisés,	pois,	falava	um	anjo	meus	irmãos,
que	trazia	a	imagem	do	Senhor;	e	tudo	o	que	então	foi	feito	pelo	anjo,
prometia	essa	graça	e	essa	verdade	vindouras.	Sabem-no	os	que	perscrutam
bem	a	Lei.	E	quando	se	apresenta	a	ocasião	de	que	nós	também	vos	digamos
alguma	coisa	sobre	isso,	na	medida	em	que	o	Senhor	no-lo	revela,	não	nos
calamos	ante	a	vossa	caridade.
A	natureza	divina	é	invisível	no	Filho	como	no	Pai
18	É	preciso	que	o	saibais:	tudo	o	que	foi	visto	corporalmente	não	era	a
substância	de	Deus.	Vemos	aquelas	realidades,	com	efeito,	com	nossos	olhos
de	carne,	mas	a	substância	de	Deus,	como	é	vista?	Interroga	o	Evangelho:
“Bem-aventurados	os	de	coração	puro,	porque	verão	a	Deus”.³⁵³	Houve
homens,³⁵⁴	iludidos	pela	vaidade	de	seu	coração,	que	chegaram	a	dizer	que	o
Pai	é	invisível,	mas	que	o	Filho	é	visível.	Visível,	como?	Se	por	causa	da
carne,	por	Ele	ter	assumido	a	carne,	é	claro	que	sim.	Com	efeito,	dentre	os
que	viram	a	carne	de	Cristo,	uns	creram	n’Ele,	outros	O	crucificaram.	E
aqueles	mesmos	que	creram,	vacilaram	ao	vê-l’O	crucificado	e,	se	não
houvessem	tocado	a	própria	carne	d’Ele	após	a	ressurreição,	a	fé	não	teria
sido	chamada	de	volta	a	seu	coração.	Então,	se	é	pela	carne	que	o	Filho	é
visível,	nós	o	concedemos,	e	essa	é	a	fé	católica;	mas,	se	para	aqueles	tais,
como	dizem	eles	mesmos,	Ele	era	visível	antes	mesmo	dessa	carne,	isto	é,
antes	de	encarnar-Se,	deliram	muito	e	grande	é	o	seu	erro.	Aquelas
aparições	visíveis	produziram-se,	com	efeito,	por	meio	de	uma	criatura,
para	que	nelas	se	fizesse	ver	uma	figura	tipológica,	e	não	se	mostrava	nem
se	manifestava	ali,	por	certo,	a	substância	mesma.	Esteja	atenta	a	vossa
caridade	também	a	esta	prova	sucinta:	não	pode	ser	vista	a	Sabedoria	de
Deus	com	os	olhos.	Irmãos,	se	Cristo	é	“a	Sabedoria	de	Deus	e	o	Poder	de
Deus”³⁵⁵	–	e	se	Cristo	é	o	Verbo	de	Deus	–,	uma	vez	que	não	se	vê	a	palavra
de	um	homem	com	os	olhos,	pode	ser	visto	desse	modo	o	Verbo	de	Deus?
O	Antigo	Testamento	impunha	aos	judeus	os	mesmos	mandamentos	que	nos
são	impostos
19	Expulsai,	pois,	de	vossos	corações	os	pensamentos	carnais,	a	fim	de
estardes	verdadeiramente	sob	a	graça	e	de	pertencerdes	ao	Novo
Testamento.	É	por	esse	motivo	que	se	promete	no	Novo	Testamento	a	vida
eterna.	Lede	o	Antigo	Testamento,	e	vede	que	àquele	povo	ainda	carnal	se
impunham,	por	certo,	os	mesmos	preceitos	que	a	nós.	Ora,	adorar	a	um	só
Deus	é	algo	que	também	a	nós	se	nos	ordena.³⁵ 	“Não	tomarás	em	vão	o
nome	do	Senhor	teu	Deus”:³⁵⁷	está	ordenado	igualmente	a	nós,	e	esse	é	o
segundo	preceito.	“Observa	o	dia	do	sábado”³⁵⁸	é	um	mandamento	que	nos
obriga	ainda	mais,	visto	ser-nos	prescrito	que	se	observe	de	modo	espiritual.
Os	judeus	observavam	o	sábado	de	modo	servil,	entregando-se	à	devassidão
e	à	embriaguez.	Quão	preferível	seria	que	suas	mulheres	fiassem	lã	naquele
dia,	em	vez	de	dançarem	pelos	terraços	das	casas!	Longe	de	nós,	irmãos,
afirmar	que	aquela	gente	observava	o	sábado!	O	cristão,	sim,	observa	o
sábado	espiritualmente,	abstendo-se	da	obra	servil.	E	o	que	é	abster-se	da
obra	servil?	É	abster-se	do	pecado.	E	como	o	provamos?	Interroga	o
Senhor:	“Quem	comete	o	pecado	é	escravo	do	pecado”.³⁵ 	A	observância	do
sábado	é-nos	prescrita	espiritualmente,	portanto,	também	a	nós.	E	todos
aqueles	preceitos	se	nos	impõem,	ainda	mais	a	nós,	e	se	hão	de	observar:
“Não	matarás.	Não	cometerás	adultério.	Não	roubarás.	Não	prestarás	falso
testemunho.	Honrarás	pai	e	mãe.	Não	cobiçarás	o	bem	do	próximo.	Não
cobiçarás	a	mulher	de	teu	próximo”.	Não	nos	é	ordenado	tudo	isso	a	nós
também?	Mas	indaga	a	respeito	da	recompensa,	e	encontrarás	o	que	ali	se
diz:	“A	fim	de	que	vossos	inimigos	sejam	expulsos	de	vossa	face,	e	recebais	a
terra	que	Deus	prometeu	a	vossos	pais”.³ 	Como	não	podiam	compreender
realidades	invisíveis,	sujeitavam-se	pelas	visíveis.	Por	que	se	sujeitavam?
Para	que	não	perecessem	de	todo,	e	não	resvalassem	para	os	ídolos.	Pois
fizeram	precisamente	isso,	meus	irmãos,	como	se	lê,	esquecidos	de	tão
grandes	milagres	que	Deus	realizou	diante	de	seus	olhos:	o	mar	foi	separado
em	dois,	um	caminho	foi	aberto	em	meio	às	vagas;	seus	inimigos,	que	os
perseguiam,	foram	engolidos	por	essas	mesmas	águas	pelo	meio	das	quais
acabavam	de	atravessar.³ ¹	E	quando	Moisés,	o	homem	de	Deus,
desapareceu	de	diante	de	seus	olhos,	pediram	um	ídolo,	dizendo:	“Faze-nos
deuses	que	caminhem	à	nossa	frente,	porque	aquele	homem	nos
abandonou”.³ ²	Toda	a	sua	esperança	estava	colocada	num	homem,	e	não
em	Deus.	Eis	que	o	homem	morreu.	Por	acaso	morreu	Deus,	que	os	tirara
da	terra	do	Egito?	E,	após	terem	fabricado	para	si	a	imagem	de	um	novilho,
adoraram-no,	dizendo:	“Aí	estão	os	teus	deuses,	ó	Israel,	que	te	livraram	da
terra	do	Egito”.³ ³	Quão	rapidamente	se	esqueceram	de	graça	tão
manifesta!	Com	que	meios	se	sujeitaria	um	povo	tal,	a	não	ser	com
promessas	carnais?
Aos	cristãos	é	prometida	a	vida	eterna
20	Ordena-se	ali,	no	decálogo	da	Lei,	o	mesmo	que	a	nós,	mas	não	se
prometem	as	mesmas	coisas	que	a	nós.	O	que	nos	é	prometido?	A	vida
eterna!	“Ora,	a	vida	eterna	é	esta:	que	eles	te	conheçam	a	ti,	o	Deus	único	e
verdadeiro,	e	aquele	que	enviaste,	Jesus	Cristo”.³ ⁴	É-nos	prometido	o
conhecimento	de	Deus:	este	é	“a	graça	por	graça”.	Irmãos,	nós	por	ora
cremos,	não	vemos.	Por	essa	fé,	haverá	uma	recompensa:	ver	o	que	cremos.
Sabiam-no	os	profetas,	mas	isso	estava	oculto	antes	que	Cristo	viesse.	Com
efeito,	certo	amante	que	suspira	nos	salmos	diz:	“Uma	só	coisa	pedi	ao
Senhor	e	a	procurarei”.	Queres	saber	o	que	pede?	Talvez	peça	a	terra	em
que	materialmente	correm	leite	e	mel,	conquanto	se	deva	procurá-la	e	pedi-
la	em	sentido	espiritual;	ou,	então,	pede	a	sujeição	de	seus	inimigos,	ou	a
morte	dos	adversários,	ou,	ainda,	reinos	e	bens	deste	século.	De	fato,	arde	de
amor	e	muito	suspira,	está	abrasado,	anelante.	Vejamos	o	que	pede:	“Uma
só	coisa	pedi	ao	Senhor	e	a	procurarei”.	O	que	procura?	“Habitar	na	casa
do	Senhor	todos	os	dias	de	minha	vida”.	Supondo	que	habites	na	casa	do
Senhor:	donde	te	virá,	ali,	a	tua	alegria?	De	“contemplar	as	delícias	do
Senhor”,³ ⁵	responde	ele.
Amemos	e	desejemos	os	bens	espirituais
21	Meus	irmãos,	por	que	clamais?	Por	que	exultais	e	amais,	a	não	ser
porque	há	aí	uma	centelha	dessa	caridade?	O	que	desejais?	–	pergunto-vos
eu.	Pode-se	com	os	olhos	ver?	Pode-se	tocar?	É	alguma	beleza	que	deleita	os
olhos?	Acaso,	não	são	os	mártires	amados,	por	nós,	com	veemência	e,
quando	celebramos	a	sua	memória,	não	nos	inflamamos	de	amor?	O	que
amamos	neles,	meus	irmãos?	Membros	dilacerados	pelas	feras?	O	que	há	de
mais	hediondo,	se	interrogares	os	olhos	da	carne?	O	que	há	de	mais	belo,	se
interrogares	os	olhos	do	coração?	O	que	achas	de	um	adolescente	belíssimo
que	é	ladrão?	Não	se	horrorizam	os	teus	olhos?	Porventura	teus	olhos
carnais	ficam	horrorizados?	Se	os	interrogares,	nada	há	tão	bem	constituído
quanto	aquele	corpo,	nada	tão	bem	ordenado:	a	harmonia	dos	membros,	o
encanto	da	tez	seduzem	os	olhos.	Ao	ficares	sabendo,	não	obstante,	que	é	um
ladrão,	tu	te	afastas	do	homem	em	espírito.	Se,	pelo	contrário,	vires	um
ancião	encurvado,	apoiado	num	bastão,	movendo-se	com	dificuldade	e	todo
enrugado,	o	que	vês	que	te	deleita	os	olhos?	Ao	ouvires	que	é	um	justo,	tu	o
amas	e	o	abraças.	Tais	são	as	recompensas	que	nos	foram	prometidas,	meus
irmãos:	amai	um	bem	assim,	suspirai	por	esse	Reino,	desejai	essa	pátria,se
quiserdes	chegar	àquelas	realidades	com	que	veio	nosso	Senhor,	isto	é,	à
graça	e	à	verdade.	Se,	pelo	contrário,	desejares	de	Deus	as	recompensas
corporais,	ainda	estás	sob	a	Lei	e,	portanto,	não	cumpres	a	própria	Lei.
Quando	vês,	com	efeito,	a	abundância	desses	bens	temporais	naqueles	que
ofendem	a	Deus,	vacilam	os	teus	passos	e	te	dizes:	“Eis	que	honro	a	Deus,
corro	à	igreja	a	cada	dia,	meus	joelhos	estão	macerados	por	conta	das
orações	e	sinto-me	mal;	no	entanto,	homicidas	e	ladrões	exultam	e	vivem	em
abundância,	tudo	lhes	vai	bem”.	Eram	tais	coisas,	então,	que	reclamavas	de
Deus?	Ora,	visavas	à	graça.	Se,	pois,	Deus	te	fez	dom	da	graça,
precisamente	porque	gratuitamente	ta	deu,	ama-O	gratuitamente!	Não
ames	a	Deus	em	vista	de	uma	recompensa,	que	seja	Ele	mesmo	a	tua
recompensa.	Que	tua	alma	diga:	“Pedi	uma	só	coisa	ao	Senhor	e	a
procurarei:	habitar	na	casa	do	Senhor	todos	os	dias	de	minha	vida	a	fim	de
contemplar	as	delícias	do	Senhor”.³ 	Não	receies	desfalecer	sob	o	peso	do
fastio.	Aquele	deleite	da	beleza	será	tal,	que	sempre	te	estará	presente	e
jamais	ficarás	saciado;	ou	melhor,	estarás	sempre	saciado,	e	nunca	te
saciarás.	Se	eu	disser,	com	efeito,	que	não	ficarás	saciado,	haverá	fome;	se
disser	que	estarás	saciado,	temo	o	fastio.	Onde	não	haverá	fastio	nem	fome,
não	sei	o	que	dizer.	Deus	tem,	no	entanto,	o	que	oferecer	àqueles	que	não
encontram	modo	de	exprimir-se,	mas	creem	que	haverão	de	recebê-lo.
HOMILIA	4
João,	a	testemunha,	não	é	o	Salvador	(Jo	1,19-33)
João	recebeu	a	missão	de	mostrar	Cristo
1	A	vossa	santidade	ouviu	muito	amiúde,	e	sabe	muito	bem,	que	quanto
mais	ilustre	era	João	Batista	entre	os	nascidos	de	mulher,	e	quanto	mais
humilde	no	reconhecimento	do	Senhor,	tanto	mais	mereceu	ser	amigo	do
Esposo,	ao	zelar	pelo	Esposo,	não	por	si	mesmo,	ao	não	procurar	sua
própria	honra,	mas	a	do	seu	Juiz,	a	quem	precedia	como	arauto.	Aos
profetas	precedentes,	fora	concedido	predizer	os	acontecimentos	futuros	a
respeito	de	Cristo;	a	este,	porém,	mostrá-l’O	com	o	dedo.	Assim,	pois,	como
Cristo	era	ignorado,	antes	de	Sua	vinda,	por	aqueles	que	não	acreditaram
nos	profetas,	era,	do	mesmo	modo,	ignorado	por	eles,	ainda	que	estivesse
presente.	Cristo	viera,	primeiramente,	oculto	e	humilde;	tanto	mais	oculto,
quanto	mais	humilde.	Os	povos,	porém,	menosprezando	por	sua	soberba	a
humildade	de	Deus,	crucificaram	o	seu	Salvador	e	O	transformaram	em	seu
Condenador.
A	primeira	e	a	segunda	vinda	de	Cristo
2	Aquele	que	veio	primeiramente	oculto,	por	ter	vindo	humilde,	não	há	de
vir	depois	manifestamente,	por	vir	em	Sua	grandeza?	Há	pouco,	ouvistes	o
salmo:	“Deus	virá	manifestamente,	e	nosso	Deus	não	calará”.³ ⁷	Calou-Se,
para	ser	julgado,	mas	não	ficará	calado	quando	começar	a	julgar.	O	salmo
não	diria	que	virá	manifestamente,	se	primeiro	não	houvesse	dito	que	veio
de	modo	oculto.	Nem	diria	que	não	calará,	a	não	ser	porque	primeiro	calou.
Como	calou?	Pergunta	a	Isaías:	“Tal	como	cordeiro,	foi	levado	para	o
matadouro;	como	ovelha	muda	diante	do	tosquiador,	não	abriu	a	boca”.³ ⁸
Mas	há	de	vir	manifestamente,	e	não	calará.	Como	virá	de	maneira
manifesta?	“À	Sua	frente,	irá	um	fogo	devorador	e,	ao	Seu	redor,
tempestade	violenta”.³ 	A	tempestade	tem	de	remover	da	eira	toda	a	palha
que	agora	é	triturada;	e	o	fogo	há	de	queimar	o	que	a	tempestade	tiver
removido.	Ele	guarda	silêncio,	agora;	cala	no	juízo,	mas	não	cala	no
preceito.	Se	Cristo	cala,	o	que	significam	estes	Evangelhos?	O	que	querem
dizer	as	palavras	apostólicas,	os	cânticos	dos	salmos,	os	vaticínios	dos
profetas?	Em	todas	essas	coisas,	pois,	Cristo	não	cala.	Cala-Se	agora,
porém,	porque	não	castiga,	mas	não	como	se	não	advertisse.	Virá	cheio	de
glória	para	castigar,	e	manifestar-Se-á	a	todos,	também	aos	que	n’Ele	não
creem.	Por	ora,	mesmo	presente,	estava	oculto,	convinha	que	fosse
desprezado.	Se	não	fosse	desprezado,	não	seria	crucificado;	se	não	fosse
crucificado,	não	derramaria	o	Sangue,	o	preço	com	que	nos	remiu.	Para
pagar	por	nós	o	preço,	foi	crucificado;	para	ser	crucificado,	foi	desprezado;
para	ser	desprezado,	apareceu	humilde.
João	confessa	não	ser	o	Cristo
3	Haja	vista	ter	aparecido,	porém,	como	que	à	noite,	em	um	corpo	mortal;
acendeu-Se	uma	lâmpada	para	que	fosse	visto.	Essa	lâmpada	era	João,	a
cujo	respeito	já	ouvistes	muitas	coisas.	A	presente	leitura	do	Evangelho
contém	palavras	de	João	que,	em	primeiro	lugar,	–	e	isso	é	o	mais
importante	–	confessa	que	não	era	o	Cristo.	Tão	grande	excelência	havia,
por	outro	lado,	em	João,	que	bem	se	podia	acreditar	fosse	o	Cristo.	A
humildade	dele	foi	comprovada	precisamente	por	ter	dito	que	não	o	era,
embora	se	pudesse	acreditar	que	fosse.	E,	portanto,	“Este	foi	o	testemunho
de	João,	quando	os	judeus	enviaram	de	Jerusalém	sacerdotes	e	levitas	para
o	interrogarem:	Quem	és	tu?”	Eles	não	teriam	enviado	essa	delegação,	a
menos	que	se	sentissem	impressionados	pela	excelência	da	autoridade	de
João,	por	ter	ele	ousado	batizar.	E	“ele	confessou,	e	não	negou”.	O	que
confessou	ele?	“Confessou:	Eu	não	sou	o	Cristo”.³⁷
Cristo,	a	pedra	deslocada	do	monte
4	“Perguntaram-lhe:	Quem	és,	então?	És	tu	Elias?”	Sabiam	eles	que	Elias
havia	de	preceder	a	Cristo.	O	nome	de	Cristo	não	era,	pois,	desconhecido
para	quem	quer	que	fosse	entre	os	judeus.	Não	acreditaram,	porém,	que
aquele	Jesus	fosse	o	Cristo;	nem	por	isso	deixaram	absolutamente	de	crer
que	viria.	Esperando	que	houvesse	de	vir,	toparam	com	Ele,	já	presente;
toparam	como	que	numa	pequena	pedra.	Aquela	pedra	era	ainda	pequena,
mas	já	fora	deslocada	do	monte,	por	certo,	sem	auxílio	de	mãos	humanas,
conforme	diz	o	profeta	Daniel:	“Vira	o	rei	uma	pedra	cortada	do	monte,
sem	ser	tocada	por	mão	alguma.”	E	o	que	segue?	“A	pedra	cresceu	–	diz	–	e
transformou-se	numa	enorme	montanha	que	cobriu	a	inteira	face	da
terra”.³⁷¹	Veja	a	vossa	caridade,	por	conseguinte,	o	que	digo:	Cristo	presente
entre	os	judeus	já	fora	destacado	do	monte.	Esse	monte	quer	significar	o
reino	dos	judeus.	O	reino	dos	judeus,	porém,	não	enchera	a	inteira	face	da
terra.	Dali	fora	separada	aquela	pedra,	pois	o	Senhor	nasceu	ali	em	nossos
dias.	E	por	que,	diz	o	profeta,	a	pedra	foi	cortada	sem	auxílio	de	mãos?
Porque	uma	Virgem	deu	à	luz	Cristo,	sem	concurso	de	varão.³⁷²	Essa	pedra
já	fora	cortada,	sem	o	concurso	de	mãos	humanas,	à	vista	dos	judeus;	mas
era	humilde,	e	não	sem	razão.	Ainda	não	havia	crescido,	pois,	nem	enchia
toda	a	face	da	terra;	isso	mostra	no	Seu	reino,	que	é	a	Igreja,	a	qual	encheu
toda	a	face	da	terra.	Porque	ainda	não	havia	crescido,	todavia,	os	judeus
foram	de	encontro	a	ela,	como	se	vai	ao	encontro	de	uma	pedra.	Verificou-se
neles	o	que	está	escrito:	“Aquele	que	cair	sobre	essa	pedra	vai	quebrar-se
todo,	e	aqueles	sobre	quem	ela	cair,	ela	os	esmagará”.³⁷³	Caíram,
primeiramente,	sobre	a	pedra	humilde;	elevada,	há	de	vir	sobre	eles.	Antes
de	esmagá-los,	porém,	quando	vier	cheia	de	majestade,	quebrou-os,	sendo
ainda	humilde.	Foram	de	encontro	a	ela,	e	quebraram-se.	Não	ficaram
esmagados,	mas	quebrados.	Virá	excelsa,	e	então	haverá	de	esmagá-los.	Os
judeus	tropeçaram	contra	a	pedra	que	ainda	não	crescera	e,	por	isso,	são
passíveis	de	desculpa.	O	que	dizer,	porém,	daqueles	que	tropeçaram	contra
o	próprio	monte?	Já	percebeis	a	respeito	de	quem	falo.³⁷⁴	Aqueles	que
negam	a	Igreja,	já	difundida	por	toda	a	terra,	não	tropeçam	diante	de	uma
humilde	pedra,	mas	no	próprio	monte	em	que	aquela	pedra	se	transformou,
crescendo	progressivamente.	Os	cegos	judeus	não	viram	a	humilde	pedra;
que	grande	cegueira	é,	porém,	não	ver	o	monte!
João	Batista	e	Elias
5	Viram,	portanto,	os	judeus	ao	Senhor	em	Seu	estado	de	humildade,	e	não
O	reconheceram.	Ele	Se	lhes	manifestava	por	uma	lâmpada.	Pois	esse
homem	–	maior	do	que	o	qual	“entre	os	nascidos	de	mulher	não	surgira
nenhum”³⁷⁵	–	disse	em	primeiro	lugar:	“Eu	não	sou	o	Cristo”.
Perguntaram-lhe:	“És	Elias?	E	ele	respondeu:	Eu	não	o	sou”.³⁷ 	Na	verdade,
Cristo	envia	Elias	diante	de	Si.	Mas	João	disse:	“Eu	não	o	sou”	e,	com	isso,
suscitou	uma	dificuldade	para	nós.	Com	efeito,	há	de	temer-se	que,	ao	não
compreenderem	bem,	pensem	algunsque	João	teria	dito	o	contrário	do	que
disse	Cristo.	Lemos,	com	efeito,	noutra	passagem,	que	falando	o	Senhor
Jesus	certas	coisas	de	Si	mesmo	no	Evangelho,	“os	Seus	discípulos
perguntaram-Lhe:	Por	que	razão	os	escribas,	isto	é,	os	peritos	da	Lei,	dizem
que	é	preciso	que	Elias	venha	primeiro?	E	o	Senhor	lhes	disse:	Elias	já
veio…	e	fizeram	com	ele	tudo	quanto	quiseram”.³⁷⁷	“Se	quereis	saber	quem
é	ele,	ficai	sabendo	que	Elias	é	João	Batista”.³⁷⁸	O	Senhor	Jesus	Cristo	disse
que	Elias	já	veio,	e	que	ele	é	João	Batista.	João,	por	sua	vez,	tendo	sido
interrogado,	confessou	não	ser	Elias,	do	mesmo	modo	como	já	confessara
não	ser,	tampouco,	o	Cristo.	Tal	como	declarou	a	verdade,	por	certo,	ao
dizer	não	ser	o	Cristo,	declarou-a	também,	dizendo	não	ser	Elias.	Como,
pois,	concordar	entre	si	as	palavras	do	arauto	com	as	do	Juiz?	Não	vamos
pensar	que	o	arauto	minta,	pois	fala	o	que	ouve	do	Juiz.	Por	que,	então,
declara:	“Eu	não	sou	Elias”,	enquanto	o	Senhor	afirma:	“Ele	é	Elias”?	É
que	o	Senhor	Jesus	Cristo	quis	prefigurar	nele	o	Seu	futuro	advento,	e	dizer
que	João	viera	com	o	espírito	de	Elias.	O	que	era	João	com	respeito	à	Sua
primeira	vinda,	Elias	o	será	com	respeito	à	segunda.	Assim	como	há	duas
vindas	do	Juiz,	também	há	dois	pregoeiros.	O	Juiz	é,	sem	dúvida,	Ele
mesmo,	mas	dois	são	os	Seus	pregoeiros,	e	não	dois	juízes.	Com	efeito,	era
preciso	que	viesse	o	Juiz,	primeiramente,	para	ser	julgado.	Jesus	enviou
diante	de	Si	o	primeiro	precursor	e	chamou-o	de	Elias,	porque	Elias	será,	na
segunda	vinda,	o	que	foi	João	na	primeira.
Ainda	o	confronto	entre	João	Batista	e	Elias
6	Atente,	agora,	a	vossa	caridade	para	a	tão	grande	verdade	que	eu	digo.
Quando	João	foi	concebido,	ou	melhor,	quando	nasceu,	o	Espírito	Santo
profetizou	a	respeito	daquele	homem	o	que	havia	de	realizar:	“Ele
caminhará	à	frente	do	Altíssimo,	com	o	espírito	e	o	poder	de	Elias”.³⁷ 	Logo,
não	era	Elias,	ele	mesmo,	mas	caminharia	“com	o	espírito	e	o	poder	de
Elias”.	O	que	é:	“com	o	espírito	e	o	poder	de	Elias”?	No	mesmo	Espírito
Santo,	fazendo	as	vezes	de	Elias.	E	por	que	fazendo	as	vezes	de	Elias?
Porque	o	que	Elias	deverá	ser	na	segunda	vinda,	João	o	foi	na	primeira.
Portanto,	João	respondeu	corretamente,	no	sentido	próprio	da	palavra.	O
Senhor	fala,	pois,	em	sentido	figurado:	“Elias	é	João”;	mas	João,	como	eu
disse,	em	sentido	próprio:	“Eu	não	sou	Elias”.	Se	considerares	a	figura	da
precedência,	João	é	Elias,	visto	que	aquilo	que	o	primeiro	foi,	na	primeira
vinda	de	Cristo,	o	segundo,	isto	é,	Elias,	será	na	segunda	vinda.	Se
perguntares,	contudo,	em	sentido	pessoal	e	próprio,	João	é	João,	e	Elias	é
Elias.	O	Senhor	afirma,	pois,	corretamente,	pensando	na	prefiguração:	“Ele
é	Elias”,	enquanto	João	diz,	com	igual	retidão,	falando	em	sentido	próprio:
“Eu	não	sou	Elias”.	Não	foi	falso	João,	nem	o	foi	o	Senhor;	não	foi	falso	o
arauto,	nem	o	Juiz:	mas	hás	de	entendê-lo	bem.	Quem	o	entenderá,	porém?
Aquele	que	tiver	imitado	a	humildade	do	arauto	e	reconhecido	a	grandeza
do	Juiz.	Na	verdade,	ninguém	foi	mais	humilde	do	que	o	arauto.	Meus
irmãos,	João	jamais	teve	tão	grande	mérito	como	o	que	lhe	veio	desse	ato	de
humildade,	porque,	tendo	podido	enganar	os	homens	e	passar	por	Cristo,	e
ser	considerado	Cristo	–	tão	grande	era	a	sua	graça,	tão	magnífica	sua
excelência!	–,	ele	confessou	claramente,	todavia,	e	disse:	“Eu	não	sou	o
Cristo!”	“Acaso	és	Elias?”	Se	ele	dissesse:	Eu	sou	Elias,	daria	a	entender
que	Cristo	estaria	vindo	já,	em	Sua	segunda	vinda,	para	julgar;	e	não	ainda
na	primeira,	para	ser	julgado.	Assim,	como	que	dizendo	que	Elias	também
estava	para	vir,	respondeu:	“Eu	não	sou	Elias”.	Mas	considerai	o	Cristo
humilde,	ante	O	qual	veio	João,	para	não	sentirdes	o	peso	do	Cristo	elevado,
ante	O	qual	deverá	vir	Elias;	pois	o	Senhor	também	acrescentou:	“Ele	é
João	Batista	que	deve	vir”.	Veio	João	Batista	em	prefiguração	do	que,
propriamente,	será	Elias	em	sua	vinda.	Então,	Elias	será	Elias,	no	sentido
próprio,	o	que	agora	é	João	Batista	por	semelhança.	Mas	agora,	João	é
João,	no	sentido	próprio,	e	Elias,	por	semelhança.	Por	ora,	João	é,	em
sentido	próprio,	João;	mas,	por	semelhança,	Elias.	Ambos	os	arautos
partilham	mutuamente	suas	semelhanças,	a	guardaram	suas	propriedades.
Há,	porém,	um	só	Senhor	e	Juiz,	quer	Lhe	vá	adiante	um	arauto,	quer
outro.
“Eu	sou	a	voz	que	clama	no	deserto”
7	“Perguntaram-lhe:	Quem	és,	então?	–	És	tu	Elias?	Disse	ele:	–	Não	o	sou.
–	És	o	profeta?	–	Não!	Disseram	então:	–	Quem	és,	para	darmos	uma
resposta	aos	que	nos	enviaram?	Que	dizes	de	ti	mesmo?	Disse	ele:	–	Sou	a
voz	do	que	clama	no	deserto”.³⁸ 	Isaías	disse	aquilo.	Essa	profecia	cumpriu-
se	em	João.	“Sou	a	voz	do	que	clama	no	deserto”.	Do	que	clama	o	quê?	–
“Aplanai	o	caminho	do	Senhor,	fazei	retas	as	sendas	do	nosso	Deus”.³⁸¹	Não
vos	parece	ser	próprio	do	arauto	dizer:	–	Afastai-vos	e	dai	passagem?
Enquanto	um	arauto	diz:	Afastai-vos!,	João	diz:	“Vinde!”	O	arauto	afasta
do	juiz,	João	chama	para	junto	do	Juiz;	ou	antes:	João	chama	para	junto	do
Cristo	humilde,	para	que	não	se	tenha	de	sentir	a	severidade	do	Juiz
excelso.	“Sou	a	voz	do	que	clama	no	deserto:	Aplanai	o	caminho	do	Senhor,
como	disse	o	profeta	Isaías”.	Ele	não	disse:	Sou	João,	sou	Elias,	sou	um
profeta.	Mas	o	que	disse	ele?	Chamo-me	assim:	“A	voz	do	que	clama	no
deserto:	Aplanai	o	caminho	do	Senhor”.	Eu	sou	a	própria	profecia.
“Ele	é	mais	do	que	um	profeta”
8	“Os	que	tinham	sido	enviados,	eram	dos	fariseus”,	isto	é,	aqueles
principais	dentre	os	judeus.	“Interrogaram-no	ainda,	e	disseram:	Por	que,
então,	batizas,	se	não	és	o	Cristo,	nem	Elias,	nem	o	profeta?”.³⁸²	Como	o	ato
de	batizar	lhes	parecesse	uma	ousadia,	era	como	se	lhe	perguntassem:	Em
nome	de	quem	o	fazes?	Perguntamos	se	tu	és	o	Cristo,	e	dizes	que	não	és.
Perguntamos	se	acaso	és	o	precursor	d’Ele,	porque	sabemos	que	Elias	há	de
vir	antes	da	vinda	de	Cristo,	e	igualmente	o	negas.	Perguntamos	se	és,	quem
sabe,	algum	arauto	que	há	de	vir	à	Sua	frente	com	muita	antecedência,	isto
é,	um	profeta,	e	se	terias	recebido	este	poder,	e	respondes	que	tampouco	és
um	profeta.	João	não	era,	pois,	um	profeta:	era	mais	do	que	um	profeta!	O
Senhor	deu	a	respeito	dele	este	testemunho:	“Que	foste	ver	no	deserto?	Um
caniço	agitado	pelo	vento?”.³⁸³	Está	subentendido,	sem	dúvida,	que	não	era
agitado	pelo	vento;	pois	João	não	era	isso,	como	um	que	fosse	movido	pelo
vento.	Sopra	por	todas	as	partes,	pois,	ao	redor	de	quem	é	movido	pelo
vento,	um	espírito	de	sedução.	“Mas	que	fostes	ver	no	deserto?	Um	homem
vestido	de	roupas	finas?”.³⁸⁴	João	vestia-se	de	roupas	de	tecidos	ásperos,	isto
é,	de	uma	túnica	feita	de	pelos	de	camelo.	“Mas	os	que	se	vestem	de	roupas
finas	vivem	nos	palácios	dos	reis”.	Logo,	não	saístes	a	ver	um	homem
vestido	de	roupas	finas.	“Então,	o	que	fostes	ver?	Um	profeta?	Eu	vos
afirmo	que	sim,	e	mais	do	que	um	profeta”,³⁸⁵	porque	os	profetas
prenunciaram	com	muita	antecedência	Aquele	a	quem	João	anunciava
presente.
“Não	sou	digno	de	desatar	a	correia	de	Suas	sandálias”
9	“Perguntaram-lhe	ainda:	E	por	que	batizas	então,	se	não	és	o	Cristo,	nem
Elias,	nem	o	profeta?	João	lhes	respondeu,	dizendo:	Eu	batizo	com	água,
mas,	no	meio	de	vós	está	quem	vós	não	conheceis”.³⁸ 	O	Humilde	não	era
visto	e,	por	isso,	foi	acesa	uma	lâmpada.	Vede	como	cede	o	lugar	quem	se
podia	fazer	passar	pelo	que	não	era.	“Aquele	que	vem	depois	de	mim,	que
foi	feito	antes	de	mim”,	–	isto	é,	como	já	dissemos	–	que	foi	anteposto	a	mim
“e	do	qual	não	sou	digno	de	desatar	a	correia	das	sandálias…”.³⁸⁷	Quanto	se
rebaixa!	Por	isso,	foi	muito	exaltado,	já	que	“quem	se	humilha,	será
exaltado”.³⁸⁸	A	vossa	santidade,	por	conseguinte,	deve	ver,	por	ter-se	João
humilhado	a	ponto	de	dizer:	“não	sou	digno	de	desatar	a	correia”,	como
têm	de	humilhar-se	aqueles	que	dizem:	Nós	é	que	batizamos,	nós	damos	do
que	é	nosso,	e	o	que	é	nosso	é	santo.³⁸ 	João	diz:	Não	eu,	mas	Ele!	Esses
outros,	ao	contrário,	dizem:	Nós!	João	não	é	digno	de	desatar	a	correia	das
sandálias	de	Jesus.	E	se	dissesse	ser	digno	disso,	quão	humilde	não	seria,
ainda	assim?	Por	mais	que	se	declarasse	digno	e	houvessedito	estas
palavras:	“Após	mim,	há	de	vir	Alguém	que	foi	feito	antes	de	mim,	de	quem
sou	digno	apenas	de	desatar	a	correia	das	sandálias”,	muito	se	teria
humilhado.	Quando,	porém,	nem	mesmo	disso	se	julgou	digno,
verdadeiramente	cheio	do	Espírito	Santo	estava	ele	que,	como	servo,	assim
reconheceu	o	seu	Senhor	e	mereceu	passar	da	condição	de	servo	à	de	amigo.
“Eis	o	Cordeiro	de	Deus!”
10	“Isso	se	passou	em	Betânia,	do	outro	lado	do	Jordão,	onde	João	batizava.
No	dia	seguinte,	ele	vê	Jesus	aproximar-Se,	e	diz:	Eis	o	Cordeiro	de	Deus,
que	tira	o	pecado	do	mundo”.³ 	Que	ninguém	se	arrogue	tal	poder,	que
ninguém	diga	que	pode	tirar,	por	si	mesmo,	o	pecado	do	mundo.	Atentai	já
para	os	orgulhosos	contra	os	quais	apontava	João	o	seu	dedo.	Os	hereges
ainda	não	haviam	nascido	e	eram	já	apontados.	Clamava	contra	eles	João,
lá	das	margens	do	rio,	e	contra	eles	mesmos	clama	agora	do	Evangelho.
Jesus	vem,	e	o	que	diz	João?	“Eis	o	Cordeiro	de	Deus!”	Se	o	cordeiro	é
inocente,	João	é	também	cordeiro.	Ou	não	era	também	ele	inocente?	Mas
quem	é	inocente?	E	até	que	ponto?	Todos	provêm	daquela	mergulhia	e
daquela	propagem,	acerca	da	qual	canta	Davi,	gemendo:	“Fui	concebido	na
iniquidade	e,	em	pecados,	já	me	concebeu	minha	mãe”.³ ¹	Logo,	só	pode	ser
Cordeiro	Aquele	que	não	veio	ao	mundo	dessa	forma.	Jesus	não	foi
concebido	na	iniquidade,	porque	não	foi	concebido	da	mortalidade.	E	Sua
mãe	não	concebeu	em	pecados	Aquele	a	quem	concebeu	sendo	virgem	e,
permanecendo	virgem,	deu	à	luz,	visto	que	ela	O	concebeu	pela	fé	e,	pela	fé,
O	recebeu.	“Eis	o	Cordeiro	de	Deus!”	Ele	não	possui	o	mergulhão	de	Adão.
De	Adão,	só	tomou	a	carne,	não	o	pecado.	O	que	não	assumiu	o	pecado	da
nossa	massa	é,	precisamente,	quem	destrói	o	nosso	pecado.	“Eis	o	Cordeiro
de	Deus,	que	tira	o	pecado	do	mundo”!
“Eis	o	que	tira	o	pecado	do	mundo”
11	Sabeis	que	certos	homens³ ²	dizem,	por	vezes:	“Nós,	que	somos	santos,
tiramos	os	pecados	dos	homens.	Pois,	se	quem	batiza	não	for	santo,	como
tira	o	pecado	do	outro,	já	que	ele	próprio	é	um	homem	cheio	de	pecado?”
Contra	tais	disputas,	não	digamos	palavras	nossas.	Leiamos	o	que	diz	este:
“Eis	o	Cordeiro	de	Deus,	eis	o	que	tira	o	pecado	do	mundo”.	Que	os	homens
não	presumam	de	outros	homens.	Que	o	pássaro	não	fuja	para	os	montes,
mas	confie	no	Senhor.³ ³	E	ao	levantar	os	olhos	para	os	montes,	de	onde	o
auxílio	lhe	deve	vir,	saiba	que	esse	auxílio	vem	do	Senhor,	que	fez	o	céu	e	a
terra.³ ⁴	João	era	dotado	de	suma	excelência.	Quando,	entretanto,	se	lhe	diz:
“És	o	Cristo?	Ele	responde:	Não!	És	Elias?	Responde:	Não!	És	um	profeta?
Responde:	Não!	–	Por	que	batizas	então?	Diz	ele:	Eis	o	Cordeiro	de	Deus,
que	tira	o	pecado	do	mundo.	D’Ele	é	que	eu	disse:	Depois	de	mim,	vem	um
homem	que	passou	adiante	de	mim,	porque	existia	antes	de	mim”.³ ⁵	Vem
depois	de	mim,	porque	nasceu	depois	de	mim.	Passou	adiante	de	mim,
porque	Se	me	antepôs.	Existia	antes	de	mim,	porque	“No	princípio	era	o
Verbo,	e	o	Verbo	estava	junto	de	Deus	e	o	Verbo	era	Deus”.³
O	porquê	do	batismo	dado	por	João
12	João	disse:	“Eu	não	O	conhecia,	mas,	para	que	Ele	fosse	manifestado	a
Israel,	vim	batizar	com	água.	E	João	deu	testemunho,	dizendo:	Vi	o	Espírito
descer	do	céu	como	uma	pomba	e	permanecer	sobre	Ele.	Eu	não	O
conhecia,	mas	Aquele	que	me	enviou	para	batizar	com	água,	disse-me:
Aquele	sobre	quem	vires	o	Espírito	descer	e	permanecer	é	que	batiza	no
Espírito	Santo.	E	eu	vi	e	atesto	que	ele	é	o	Filho	de	Deus”.³ ⁷	Preste	a	vossa
caridade	um	pouco	de	atenção.	Quando	João	conheceu	a	Cristo?	Ele	fora
enviado	para	batizar	com	água.	Foi-lhe	perguntado	o	motivo,	e	respondeu:
“Para	que	Ele	fosse	manifestado	a	Israel”.³ ⁸	Para	que	serviu	o	batismo	de
João?	Meus	irmãos,	se	o	batismo	de	João	teve	alguma	utilidade,	até	hoje
subsistiria,	os	homens	se	continuariam	a	batizar	com	o	batismo	de	João	e,	só
depois,	viriam	ao	batismo	de	Cristo.	Mas	o	que	diz	João?	“Para	que	Ele
fosse	manifestado	a	Israel”.	Em	suma,	João	veio	batizar	com	água,	para	que
Cristo	fosse	manifestado	ao	próprio	Israel,	ou	seja,	ao	povo	de	Israel.	João
recebeu	o	ministério	de	batizar	com	água	de	penitência	para	preparar	o
caminho	ao	Senhor,	que	ainda	não	Se	manifestara.	Desde	o	momento,
porém,	em	que	o	Senhor	foi	conhecido,	já	se	tornara	supérfluo	preparar-
Lhe	o	caminho,	porque	Ele	mesmo	Se	tornou	Caminho	para	os	que	O
conheciam.	Por	isso,	o	batismo	de	João	não	perdurou	por	muito	tempo.
Como	Se	manifestou	o	Senhor?	Humilde,	a	fim	de	que,	por	isso,	João
recebesse	o	batismo	no	qual	o	próprio	Senhor	seria	batizado.
Razão	pela	qual	Cristo	quis	ser	batizado	por	João
13	Era	necessário	que	Cristo	fosse	batizado?	Perguntando-me	a	mim
mesmo,	logo	respondo:	E	havia	necessidade	de	que	o	Senhor	nascesse?	De
que	fosse	crucificado?	De	que	morresse?	De	que	fosse	sepultado?	Se	Ele
assumiu	por	nós	tão	grande	humilhação,	por	que	não	haveria	de	receber	o
batismo?	E	de	que	serviu	ter	recebido	Ele	o	batismo	do	servo?	Recebeu-o
para	que	tu	não	desdenhasses	receber	o	batismo	do	Senhor.	Preste	atenção	a
vossa	caridade!	Deveria	haver,	na	Igreja,	alguns	catecúmenos	dotados	de
graça	mais	elevada.	Com	efeito,	acontece,	por	vezes,	que	se	encontre	um
catecúmeno	que	se	abstenha	de	todo	comércio	carnal,	renuncie	ao	mundo	e
a	todos	os	bens	que	possuía,	distribuindo-os	aos	pobres.	É	apenas	um
catecúmeno,	mas,	talvez,	mais	instruído	do	que	muitos	fiéis	na	doutrina
salutar.	É	de	se	recear	que	este	diga	consigo	mesmo,	a	respeito	do	santo
batismo	por	meio	do	qual	se	perdoam	os	pecados:	–	Que	mais	tenho	eu	a
receber?	Eis	que	sou	melhor	do	que	este	ou	aquele	fiel!	Ele	pensa	nos	fiéis
casados,	ou	nos	de	pouca	instrução,	ou	naqueles	que	guardam	as	suas
fortunas,	coisas	que	ele	próprio	já	distribuiu	aos	pobres,	e,	julgando-se
melhor	do	que	quem	já	foi	batizado,	desdenha	apresentar-se	ao	batismo,
dizendo:	–	O	que	estou	para	receber	é	o	que	já	tem	este	ou	aquele.	Só	pensa
naqueles	que	despreza,	desgosta-lhe,	por	assim	dizer,	receber	o	que
receberam	os	que	ele,	por	já	se	considerar	superior,	tem	na	conta	de
inferiores	a	si;	não	obstante,	todos	os	pecados	estão	sobre	ele	e,	a	menos	que
venha	ao	batismo	salutar,	em	que	se	perdoam	os	pecados,	apesar	de	toda	a
sua	excelência,	não	pode	entrar	no	Reino	dos	céus.	Foi	justamente	para
convidar	essa	excelência	a	Seu	batismo,	a	fim	de	que	se	lhe	perdoassem	os
pecados,	que	o	próprio	Senhor	veio	ao	batismo	de	Seu	servo.	Conquanto	o
Senhor	mesmo	não	tivesse	algo	que	se	Lhe	devesse	perdoar,	nem	algo	que
n’Ele	se	devesse	lavar,	recebeu	o	batismo	das	mãos	do	servo.	É	como	se
falasse	a	um	filho	orgulhoso,	que	a	si	mesmo	se	incha	e,	talvez,	faça	pouco
de	receber	com	os	simples	aquilo	de	que	lhe	pode	vir	a	salvação;	e	lhe
dissesse:	Até	onde	se	ergue	teu	orgulho?	Quanto	te	exaltas?	Quão	grande	é
a	tua	excelência?	Será	maior	do	que	a	minha?	Se	eu	vim	ao	servo,	tu
desdenhas	vir	ao	Senhor?	Se	eu	recebi	o	batismo	de	um	servo,	tu	desdenhas
ser	batizado	pelo	Senhor?
Por	que	foram	muitos	os	que	receberam	o	batismo	de	João
14	Para	que	vos	deis	conta,	meus	irmãos,	de	que	o	Senhor	não	vinha	a	João
por	estar	atado	a	qualquer	vínculo	de	pecado,	ao	acercar-Se	Jesus	de	João,
para	ser	batizado,	–	conforme	dizem	outros	evangelistas	–	este	último
exclamou:	“Tu	vens	a	mim?	Eu	é	que	devo	ser	batizado	por	ti”.	E	o	que	lhe
respondeu	o	Senhor?	“Deixa	estar	por	enquanto,	pois	assim	nos	convém
cumprir	toda	a	justiça”.³ 	O	que	significa:	“Cumprir	toda	a	justiça”?	–	Vim
para	morrer	pelos	homens	e	recusar-me-ei	a	ser	batizado	por	eles?	O	que
significa,	pois:	“Cumprir	toda	justiça”?	–	Cumprir	toda	a	humildade.	O
quê?	Não	haveria	de	receber	o	batismo	de	um	servo	bom	Aquele	que	sofreu
a	paixão	das	mãos	de	servos	maus?	Atentai,	pois!	Se	João	batizou
unicamente	para	que,	no	batismo	dele,	o	Senhor	mostrasse	a	humildade;
depois	de	batizado	o	Senhor,	ninguém	mais	seria	batizado	com	o	batismo	de
João?	Ora,	muitos	foram	batizados	com	o	batismo	de	João.	O	Senhor	foi
batizado	com	o	batismo	de	João,	e	o	batismo	de	João	cessou.	João	foi,	em
seguida,	encerrado	no	cárcere	e,	daí	em	diante,	não	se	acha	mais	quem
tenha	sido	batizadocom	o	seu	batismo.	Se,	portanto,	João	veio	batizar	para
que	a	humildade	do	Senhor	nos	fosse	manifestada,	a	fim	de	que	nós	não
desdenhássemos	receber	o	batismo	do	Senhor,	visto	que	Ele	recebeu	o	de	um
servo,	João	não	deveria	ter	batizado	somente	o	Senhor?	Ora,	se	João	não
tivesse	batizado	senão	o	Senhor,	não	faltaria	quem	pensasse	que	o	batismo
de	João	teria	sido	mais	santo	do	que	o	de	Cristo,	visto	que	só	Cristo	teria
merecido	ser	batizado	com	o	batismo	de	João,	enquanto	todo	o	gênero
humano	o	seria	com	o	batismo	de	Cristo.	Que	a	vossa	caridade	preste
atenção!	Nós	fomos	batizados	com	o	batismo	de	Cristo,	e	não	somente	nós,
mas	o	mundo	todo,	e	até	o	fim	dos	tempos	se	continuará	a	batizar.	Quem
dentre	nós	pode,	de	algum	modo,	ser	comparado	a	Cristo,	de	cujas	sandálias
João	declarava	não	ser	digno	de	desatar	a	correia?	Se,	pois,	aquele	Cristo	de
tão	grande	excelência,	o	homem	Deus,	tivesse	sido	o	único	a	ser	batizado
com	o	batismo	de	João,	o	que	haveriam	de	dizer	os	homens?	Que	tipo	de
batismo	é	esse	que	teve	João?	Um	grande	batismo	ele	teve,	um	sacramento
inefável!	Vê	que	só	o	Cristo	mereceu	ser	batizado	com	o	batismo	de	João!
Assim,	o	batismo	do	servo	pareceria	ser	maior	que	o	do	Senhor.	Outros,
todavia,	foram	batizados	também	com	o	batismo	de	João,	para	que	o
batismo	de	João	não	parecesse	melhor	do	que	o	de	Cristo.	O	Senhor	foi,	por
Sua	vez,	batizado	também,	a	fim	de	que,	tendo	recebido	Ele	o	batismo	de
um	servo,	os	outros	servos	não	desdenhassem	receber	o	batismo	do	Senhor.
Eis	por	que	João	fora	enviado.
Uma	dificuldade:	em	que	momento	conheceu	João	ao	Senhor?
15	Será	que	João	conhecia	o	Senhor,	ou	não	O	conhecia?	Se	não	O	conhecia,
por	que	dizia,	quando	Cristo	veio	até	o	rio,	“Eu	é	que	tenho	necessidade	de
ser	batizado	por	ti”?⁴ 	Em	outros	termos:	Eu	sei	quem	és.	Se,	pois,	ele	já	O
conhecia,	é	certo	que	O	reconheceu	no	momento	em	que	viu	descer	a	pomba
sobre	Ele.	E	é	evidente	que	a	pomba	não	desceu	sobre	o	Senhor,	senão
depois	que	Ele	saiu	da	água	do	batismo.	O	Senhor,	tendo	sido	batizado,	saiu
da	água,	os	céus	abriram-se	e	João	viu	a	pomba	sobre	Ele.	Se	a	pomba
desceu	depois	do	batismo,	e	se	foi	antes	de	batizar-Se	o	Senhor	que	João	Lhe
disse:	“Tu	vens	a	mim?	Eu	é	que	tenho	necessidade	de	ser	batizado	por	ti”,	é
porque	já	conhecia	aquele	a	quem	disse:	“Tu	vens	a	mim?	Eu	é	que	tenho
necessidade	de	ser	batizado	por	ti”.	Ora,	nesse	caso,	como	disse	ele	então:
“Eu	não	O	conhecia,	mas	Aquele	que	me	enviou	para	batizar	com	água
disse-me:	Aquele	sobre	quem	vires	o	Espírito	descer	e	permanecer	é	que
batiza	no	Espírito	Santo”?⁴ ¹	Não	se	trata	de	pequena	questão,	meus	irmãos!
Se	o	vistes,	não	vistes	pouco.	Resta	que	dela	o	Senhor	nos	dê	a	solução.
Repito-o,	no	entanto,	se	vistes	a	questão,	não	é	pouca	coisa.	Eis	que	João
está	posto	aí,	diante	de	vossos	olhos;	João	Batista	está	de	pé,	à	margem	do
rio.	Eis	que	vem	o	Senhor	para	receber	o	batismo,	ainda	não	fora	batizado.
Ouve	a	voz	de	João:	“Tu	vens	a	mim,	e	sou	eu	que	tenho	necessidade	de	ser
batizado	por	ti”.	Logo,	ele	já	conhecia	o	Senhor,	por	quem	deseja	ser
batizado.	Uma	vez	batizado	o	Senhor,	Ele	sai	da	água,	os	céus	abriram-se	e
o	Espírito	desce;	nesse	momento,	João	O	conhece.	Mas,	se	agora	O	conhece,
por	que	disse	antes:	“Eu	é	que	tenho	necessidade	de	ser	batizado	por	ti”?	E
se	não	é	só	então	que	O	conhece,	visto	que	já	O	conhecia,	o	que	significa	que
tenha	dito:	“Eu	não	O	conhecia,	mas	Aquele	que	me	enviou	para	batizar
com	água,	disse:	Aquele	sobre	quem	vires	o	Espírito	descer	e	permanecer,	é
que	batiza	no	Espírito	Santo”?
Advertência	final
16	Não	duvido	de	que	vos	há	de	resultar	pesado,	irmãos,	se	essa	questão	for
resolvida	hoje,	porque	muitas	coisas	já	foram	ditas.	Que	saibais,	entretanto,
ser	ela	de	tal	monta,	que,	sozinha,	bastaria	para	destruir	a	seita	de	Donato.
Eis	por	que	o	disse	à	vossa	caridade:	para	tornar-vos	atentos,	tal	como	é
meu	costume.	Ao	mesmo	tempo,	para	que	oreis	por	nós	e	por	vós;	para	que
o	Senhor	nos	conceda	dizer	coisas	dignas,	e	vós	as	mereçais	compreender.
Dignai-vos,	entretanto,	diferi-lo	por	hoje.	Enquanto	não	se	solucionar	a
questão,	digo-vos	brevemente	o	seguinte:	interrogai	de	modo	pacífico,	sem
rixa	nem	contenda,	sem	discussões	nem	inimizades.	Consultai-vos	entre	vós
e	perguntai	aos	outros,	dizendo:	Nosso	bispo	propôs-nos	hoje	esta	questão,
havendo	de	resolvê-la	algum	dia,	se	o	Senhor	o	conceder.	Quer	se	resolva,
quer	não,	sabei	que	propus	uma	questão	que	me	preocupa;	estou,	com
efeito,	deveras	preocupado.	Disse	João:	“Sou	eu	que	tenho	necessidade	de
ser	batizado	por	ti”,	como	se	conhecesse	a	Cristo;	de	fato,	se	não	conhecesse
aquele	por	quem	queria	ser	batizado,	seria	temerário	dizer:	“Sou	eu	que
tenho	necessidade	de	ser	batizado	por	ti”.	Ele	O	conhecia,	portanto.	Mas,	se
O	conhecia,	o	que	significa	o	que	segue:	“Eu	não	O	conhecia,	mas	Aquele
que	me	enviou	para	batizar	com	água,	disse-me:	Aquele	sobre	quem	vires	o
Espírito	descer	e	permanecer	é	que	batiza	no	Espírito	Santo”?⁴ ²	Que
diremos?	Que	não	sabemos	quando	terá	vindo	a	pomba?	Para	que	não	se
refugiem	nesse	texto,	leiam-se	os	outros	evangelistas,	que	o	narraram	com
mais	precisão.	Encontraremos,	afirmado	muito	claramente,	que	a	pomba
desceu	no	momento	em	que	o	Senhor	saiu	da	água.	Abriram-se	os	céus,
efetivamente,	acima	d’Ele	que	acabava	de	ser	batizado,	e	João	viu	o	Espírito
descer.⁴ ³	Se	ele	não	O	conheceu	senão	depois	de	batizado,	como	é	que	diz	a
quem	chegava	para	receber	o	batismo:	“Sou	eu	que	tenho	necessidade	de
ser	batizado	por	ti”?	Ruminai	convosco,	por	ora,	essa	questão;	conferenciai
entre	vós	mesmos,	tratai-a	juntos.	Que	o	Senhor	nosso	Deus	Se	digne	revelar
a	solução	primeiro	a	alguém	dentre	vós,	antes	que	a	ouçais	de	mim.	Sabei,
não	obstante,	irmãos,	que,	por	meio	da	solução	desta	questão,	a	seita	de
Donato,	mesmo	se	ainda	demonstrar	audácia,	já	não	terá	absolutamente
uma	palavra	a	dizer	acerca	da	graça	do	batismo,	no	tocante	à	qual	lançam
névoas	sobre	os	ignorantes	e	armam	redes	às	aves	em	voo:	suas	bocas
fechar-se-ão	de	todo.
HOMILIA	5
A	testemunha	reconhece	o	Salvador	(Jo	1,33)
Vem	de	Deus	o	que	o	homem	possui	de	verdade
1	Como	quis	o	Senhor,	chegamos	ao	dia	de	minha	promessa.	O	Senhor
também	dará	que	ao	cumprimento	dessa	mesma	promessa	possamos	chegar.
Ora,	aquilo	que	dizemos,	pois,	caso	seja	útil	tanto	para	nós	como	para	vós,
d’Ele	provém;	o	que	procede	do	homem,	pelo	contrário,	são	mentiras.	Foi	o
que	disse	nosso	próprio	Senhor	Jesus	Cristo:	“Quem	fala	mentira,	fala	do
que	lhe	é	próprio”.⁴ ⁴	Ninguém	possui	de	si	mesmo,	a	não	ser	mentira	e
pecado.	Se,	no	entanto,	o	homem	tiver	alguma	parcela	de	verdade	e	de
justiça,	isso	brota	daquela	fonte	da	qual,	neste	deserto,	devemos	ter	sede,	a
fim	de	que,	aspergidos	como	que	por	certas	gotas	suas	e	reconfortados,	por
ora,	durante	o	tempo	desta	peregrinação,	não	desfaleçamos	pelo	caminho	e
possamos	chegar	ao	Seu	descanso	e	à	Sua	saciedade.	Se	“quem	profere	a
mentira	fala	do	que	lhe	é	próprio”,	quem	profere	a	verdade	fala	do	que	é	de
Deus.	João	é	veraz.	A	verdade	é	Cristo.	João	é	veraz,	mas	todo	aquele	que	é
veraz	só	o	é	em	virtude	da	verdade.	Se,	portanto,	João	é	veraz,	e	não	pode
ser	veraz	o	homem	a	não	ser	em	virtude	da	verdade,	de	quem	veio	a	João
que	fosse	veraz,	a	não	ser	d’Aquele	que	disse:	“Eu	sou	a	Verdade”?⁴ ⁵	Em
consequência,	a	verdade	não	poderia	falar	contra	o	veraz;	nem	o	veraz
contra	a	verdade.	A	verdade	é	quem	enviou	o	veraz.	E	o	veraz	o	era
precisamente	por	isso,	a	saber,	por	ter	sido	enviado	pela	verdade.	Se	a
verdade	enviara	João,	Cristo	o	enviara.	Mas	o	Pai	faz	o	que	faz	Cristo	com
o	Pai;	assim	como	Cristo	faz	o	que	faz	o	Pai	com	Cristo.	O	Pai	nada	realiza
separado,	sem	o	Filho;	nem	o	Filho	realiza	algo	sozinho,	sem	o	Pai.
Inseparável	é	a	caridade,	inseparável	a	unidade,	inseparável	a	majestade,
inseparável	a	potestade,	segundo	aquelas	palavras	que	Ele	próprio	afirmou:
“Eu	e	o	Pai	somos	um”.⁴ 	Quem,	pois,	enviou	João?	Se	dissermos	que	foi	o
Pai,	diremos	a	verdade.	Se	dissermos	que	foi	o	Filho,	diremos	a	verdade.
Mais	claro	será,	porém,	que	digamos:	o	Pai	e	o	Filho.Um	único	Deus	enviou
aquele	que	foi	enviado	pelo	Pai	e	o	Filho,	porque	o	Filho	disse:	“Eu	e	o	Pai
somos	um”.	Como	não	havia	João	de	conhecer	Aquele	por	quem	foi
enviado?	Pois,	efetivamente	disse:	“Eu	não	O	conhecia,	mas	Aquele	que	me
enviou	para	batizar	com	água,	disse-me…”.⁴ ⁷	Pergunto	a	João:	O	que	te
disse	Aquele	que	te	enviou	a	batizar	com	água?	–	“Aquele	sobre	quem	vires
o	Espírito	Santo	descer	e	permanecer	é	que	batiza	no	Espírito	Santo”.	Isso
te	disse,	ó	João,	quem	te	enviou?	–	Claro	que	sim!	–	E	quem	te	enviou
então?	–	Talvez	o	Pai.	O	Pai	é	verdadeiro	Deus,	e	Deus	Filho	é	a	Verdade.	Se
o	Pai	te	enviou	sem	o	Filho,	Deus	te	enviou	sem	a	verdade.	Mas	se	és	veraz
precisamente	porque	falas	a	verdade	e	em	virtude	da	verdade,	o	Pai	não	te
enviou	sem	o	Filho,	enviaram-te	juntamente	o	Pai	e	o	Filho!	Se,	com	o	Pai,	o
Filho	te	enviou,	como	é	que	não	conhecias	Aquele	por	quem	foste	enviado?
Aquele	que	tu	viras	na	Verdade	é	o	mesmo	que	te	enviou	para	que	Ele	fosse
reconhecido	na	carne,	e	disse:	“Aquele	sobre	quem	vires	o	Espírito	descer	e
permanecer	é	que	batiza	no	Espírito	Santo”.⁴ ⁸
João,	sob	um	aspecto,	conhecia	o	Senhor;	sob	outro	aspecto,	não
2	Ouviu	João	essas	palavras	para	conhecer	a	quem	não	conhecia,	ou	para
que	com	mais	plenitude	conhecesse	a	quem	já	conhecia?	Se	João	não	tivesse
conhecimento	algum	de	Cristo,	não	poderia	ter	dito	a	quem	Se	acercava	do
rio	para	ser	batizado:	“Eu	é	que	tenho	necessidade	de	ser	batizado	por	ti,	e
tu	vens	a	mim?”.⁴ 	Ele	O	conhecia,	portanto.	Quando,	porém,	desceu	a
pomba?	Foi	depois	que	o	Senhor	tinha	sido	já	batizado,	ao	sair	Ele	da	água.
E	se	Aquele	que	o	enviou	é	o	mesmo	que	disse:	“Aquele	sobre	quem	vires	o
Espírito	descer	e	permanecer	é	que	batiza,	no	Espírito	Santo”,⁴¹ 	e	João	não
O	conhecia,	mas	O	conheceu	ao	descer	a	pomba	–	o	que	se	deu	quando	o
Senhor	saiu	da	água	–	e,	por	outro	lado,	João	reconhecera	o	Senhor	quando
vinha	até	ele,	junto	à	água,	demonstra-se	claramente	para	nós	que	João	já
conhecia	o	Senhor	sob	algum	aspecto	e,	sob	outro,	não	O	conhecia	ainda.	Se
não	entendermos	as	coisas	desse	modo,	João	era	mentiroso.	Como	pode	ter
sido	veraz	ao	reconhecê-l’O,	quando	disse:	“Eu	é	que	tenho	necessidade	de
ser	batizado	por	ti	e	tu	vens	a	mim?”.⁴¹¹	Ele	é	veraz	quando	diz	isso?	E	como
ele	é	veraz,	também,	quando	diz:	“Eu	não	O	conhecia,	mas	Aquele	que	me
enviou	para	batizar	com	água,	disse-me:	Aquele	sobre	quem	vires	o	Espírito
Santo	descer	e	permanecer	é	que	batiza	no	Espírito	Santo”?⁴¹²	O	Senhor
deu-Se	a	conhecer	por	meio	da	pomba,	não	a	quem	O	desconhecia
totalmente,	mas	a	quem	conhecia	n’Ele	algo,	e	desconhecia	algo.	Cabe-nos,
portanto,	indagar	o	que	João	ainda	desconhecia	n’Ele,	tendo-o	conhecido
por	meio	da	pomba.
Razão	pela	qual	João	foi	enviado	a	batizar
3	Por	que	foi	João	enviado	a	batizar?	Lembro-me	de	já	tê-lo	dito	à	vossa
caridade,	conforme	me	foi	possível.	Caso	o	batismo	de	João	fosse	necessário
à	nossa	salvação,	deveria	ser	ministrado	ainda	hoje,	pois	não	se	pode
conceber	que	os	homens	não	sejam	salvos	atualmente,	nem	que	não	o	sejam
agora	em	maior	número,	nem	que	a	salvação	fosse	outrora	uma,	e	agora
outra.	Se	Cristo	mudou,	a	salvação	também	teria	mudado.	Ora,	se	a
salvação	está	em	Cristo,	e	Cristo	é	sempre	o	mesmo,⁴¹³	nossa	salvação	é
sempre	a	mesma.	Mas	por	que	foi	João	enviado	a	batizar?	Porque	era
preciso	que	Cristo	fosse	batizado!	E	por	que	era	necessário	que	Cristo	fosse
batizado?	Por	que	era	preciso	que	Cristo	nascesse?	E	fosse	crucificado?
Visto	que	veio	para	mostrar-nos	o	caminho	da	humildade	e	para	tornar-Se,
Ele	mesmo,	esse	caminho	de	humildade,	haveria	de	cumprir-se	em	tudo,	por
Ele,	a	humildade.	Dignou-Se,	por	esse	gesto,	dar	autoridade	ao	Seu	batismo,
de	modo	que	os	servos	reconhecessem	com	que	alegria	deveriam	acorrer	ao
batismo	do	Senhor,	quando	Ele	próprio	não	desdenhou	receber	o	batismo
do	servo.	Tal	batismo	foi,	de	fato,	concedido	a	João,	para	que	fosse
designado	como	batismo	dele.
O	batismo	de	João,	privilégio	único
4	Que	a	vossa	caridade	preste	atenção	nisto,	que	o	distinga	e	conheça.	O
batismo	que	João	recebeu	foi	chamado	“batismo	de	João”.	Somente	ele
recebeu	tal	dom.	A	nenhum	dos	justos	antes	dele,	a	nenhum	dos	que	vieram
depois	dele	foi	dado	que	recebesse	um	batismo	que	se	designasse	como
batismo	dele	próprio.	Por	certo,	recebeu	João	esse	privilégio,	pois,	de	si
mesmo,	nada	podia	fazer.	E,	se	alguém	fala	por	si	mesmo,	mente	a	seu
respeito.⁴¹⁴	E	de	quem	recebeu	ele	esse	privilégio,	a	não	ser	do	Senhor	Jesus
Cristo?	Recebeu	o	poder	de	batizar	d’Aquele	mesmo	a	quem,	logo	mais,
batizou.	Não	vos	admireis	disso.	Cristo	fez	tal	coisa	em	João,	do	mesmo
modo	como	algo	fez	em	Sua	mãe.	Com	efeito,	a	respeito	de	Cristo	foi	dito:
“Tudo	foi	feito	por	meio	d’Ele”.⁴¹⁵	Se	tudo	foi	feito	por	Ele,	também	foi	feita
por	Ele	Maria,	da	qual,	mais	tarde,	Cristo	nasceu.	Preste	atenção	a	vossa
caridade!	Assim	como	Cristo	criou	Maria	e	foi	criado	por	meio	de	Maria,
deu	igualmente	a	João	o	poder	de	batizar	e	foi	batizado	por	João.
Por	qual	motivo	Cristo	não	foi	o	único	a	receber	o	batismo	de	João?
5	Para	isto,	Cristo	recebeu	o	batismo	das	mãos	de	João:	para	que,
recebendo	de	um	inferior	o	que	era	inferior,	exortasse	os	inferiores	a
receberem	o	que	era	superior.	Por	que,	então,	não	foi	Ele	o	único	a	ser
batizado	por	João,	uma	vez	que	este,	por	quem	seria	batizado	Cristo,	fora
enviado	para	preparar	o	caminho	do	Senhor,⁴¹ 	isto	é,	do	mesmo	Cristo?	A
respeito	disso,	nós	já	dissemos	algo,	mas	vamos	recordá-lo	porque	a
presente	questão	o	exige.	Se	nosso	Senhor	Jesus	Cristo	fosse	o	único	a	ser
batizado	com	o	batismo	de	João...	–	guardai	bem	o	que	dizemos,	de	modo
que	o	mundo	não	consiga	arrancar	de	vossos	corações	o	que	o	Espírito	de
Deus	aí	escreveu,	que	os	espinhos	das	preocupações	não	possam	sufocar	a
semente	que	foi	semeada	em	vós.⁴¹⁷	Pois,	por	que	somos	obrigados	a	repetir
as	mesmas	coisas,	senão	por	não	nos	sentirmos	seguros	quanto	à	memória
do	vosso	coração?	–	Se,	portanto,	o	Senhor	fosse	o	único	a	ser	batizado	com
o	batismo	de	João,	não	faltariam	homens	que	o	considerassem	de	tal	modo,
a	ponto	mesmo	de	pensarem	que	o	batismo	de	João	fosse	superior	ao
batismo	de	Cristo.	Diriam,	com	efeito:	Esse	batismo	é	a	tal	ponto	superior,
que	unicamente	Cristo	mereceu	ser	com	ele	batizado.	A	fim	de	que	se	nos
desse,	por	parte	do	Senhor,	um	exemplo	de	humildade,	para	que
recebêssemos	a	salvação	do	batismo,	Cristo	recebeu	o	que	não	Lhe	era
necessário,	mas	necessário	se	fazia	por	nossa	causa.	Por	outro	lado,	para
que	a	esse	batismo,	que	Cristo	recebeu	de	João,	não	se	desse	a	preferência
em	relação	a	Seu	próprio	batismo,	a	outras	pessoas	se	permitiu	que	fossem
igualmente	batizadas	por	João.	Aos	que	foram	batizados	por	João,	no
entanto,	isso	não	lhes	bastou:	foram	batizados,	pois,	com	o	batismo	de
Cristo,	uma	vez	que	o	batismo	de	Cristo	não	era	o	de	João.	Aqueles	que
recebem	o	batismo	de	Cristo	não	procuram	o	de	João,	mas	aqueles	que
receberam	o	batismo	de	João	procuraram	o	de	Cristo.	Bastou	a	Cristo,
então,	o	batismo	de	João.	E	como	não	Lhe	bastaria,	se	nem	mesmo	esse
batismo	Lhe	era	necessário?	Nenhum	batismo	era	necessário	para	Ele,	mas
para	exortar-nos	a	receber	Seu	próprio	batismo,	Ele	recebeu	o	batismo	do
servo.	E	para	que	o	batismo	do	servo	não	fosse	preferido	ao	do	Senhor,
outras	pessoas	foram	batizadas	com	o	batismo	do	seu	companheiro	de
serviço.	Os	que	foram	batizados	com	o	batismo	do	seu	companheiro	de
serviço	deviam	fazer-se	batizar	com	o	batismo	do	Senhor;	pelo	contrário,	os
que	são	batizados	com	o	batismo	do	Senhor	não	têm	necessidade	do	batismo
do	companheiro.
O	Batismo	do	Senhor	é	unicamente	do	Senhor	Deus
6	Ora,	porquanto	João	recebera	o	poder	de	administrar	um	batismo,	que	se
designaria	propriamente	como	batismo	de	João,	e	o	Senhor	Jesus	Cristo,
por	Sua	vez,	não	quis	dar	Seu	batismo	a	ninguém	–	não	para	que	ninguém
fosse	batizado	com	o	batismo	do	Senhor,	mas	para	que	o	próprio	Senhor
fosse	quem	sempre	batizasse	–,	segue-se	daí	que,	também	mediante	os
ministros,	é	o	Senhor	quem	batiza;	em	outras	palavras,	o	próprio	Senhorhavia	de	batizar	aqueles	a	quem	os	ministros	do	Senhor	batizariam,	e	não
eles.	Com	efeito,	uma	coisa	é	batizar	em	virtude	de	um	ministério,	outra	é
batizar	em	virtude	de	uma	potestade.	O	batismo	é	tal	qual	é	aquele	em
virtude	de	cuja	potestade	se	administra,	e	não	qual	é	aquele	por	cujo
ministério	se	administra.	O	batismo	de	João	era	tal	como	era	João:	um
batismo	justo,	procedente	de	um	justo,	batismo	de	um	homem,	não
obstante;	mas	de	um	homem	que	havia	recebido	do	Senhor	essa	graça	–	e
graça	tão	grande!	–	de	que	fosse	digno	de	caminhar	à	frente	do	Juiz,	de
mostrá-l’O	com	o	dedo	e	de	cumprir	a	palavra	daquela	profecia:	“Voz	do
que	clama	no	deserto,	preparai	o	caminho	do	Senhor”.⁴¹⁸	Por	outro	lado,	o
batismo	do	Senhor	é	tal	como	é	o	Senhor;	portanto,	é	divino	o	batismo	do
Senhor,	porque	o	Senhor	é	Deus.
Características	do	ministro	do	batismo
7	Nosso	Senhor	Jesus	Cristo	teria	podido,	se	o	quisesse,	confiar	a	algum	de
Seus	servos	a	potestade	de	batizar,	como	que,	fazendo	Suas	vezes,	teria
podido	transmitir	o	poder	de	batizar,	constituí-l’O	nalgum	servo	Seu	e
comunicar,	ao	batismo	transferido	ao	servo,	tanta	eficácia	como	teria	o
batismo	dado	pelo	Senhor.	Mas	não	o	quis,	precisamente	para	que	a
esperança	dos	batizados	estivesse	n’Aquele	por	quem	eles	se	reconheceriam
batizados.	Não	quis,	pois,	que	um	servo	pusesse	sua	esperança	noutro	servo.
E,	por	isso,	clamava	o	Apóstolo	ao	ver	homens	que	pretendiam	colocar	sua
esperança	nele	próprio:	“Paulo	terá	sido	crucificado	em	vosso	favor?	Ou
fostes	batizados	em	nome	de	Paulo?”.⁴¹ 	Paulo	batizou,	portanto,	como
ministro,	não	como	a	potestade	mesma.	O	Senhor,	porém,	batizou	como
potestade.	Atentai!	Ele	pôde	dar	essa	potestade	aos	servos,	mas	não	quis.
Com	efeito,	se	tivesse	dado	essa	potestade	aos	servos,	de	maneira	que	fosse
destes	o	que	era	do	Senhor,	tantos	batismos	haveria	quantos	servos.	E	assim
como	se	diz:	batismo	de	João,	dir-se-ia	igualmente:	batismo	de	Pedro,
batismo	de	Paulo,	batismo	de	Tiago,	batismo	de	Tomé,	de	Mateus,	de
Bartolomeu;	pois	aquele	foi	denominado	batismo	de	João.	Mas,	talvez
alguém	ainda	resista,	dizendo:	Prova-nos	que	aquele	batismo	era	chamado
“de	João”.	Prová-lo-ei,	conforme	o	dizer	da	própria	Verdade,	quando
perguntou	aos	judeus:	“O	batismo	de	João	de	onde	era?	Do	céu	ou	dos
homens?”.⁴² 	Assim,	pois,	para	que	não	se	dissesse	que	há	tantos	batismos
quantos	fossem	os	servos	que	batizassem,	em	virtude	da	potestade	recebida
do	Senhor,	o	próprio	Senhor	reservou	para	Si	a	potestade	de	batizar;	aos
servos	deu	o	ministério.	O	servo	diz	que	batiza,	e	fala	com	correção,	tal
como	fala	o	Apóstolo:	“Batizei	a	casa	de	Estéfanas”,⁴²¹	mas	como	ministro.
Eis	por	que,	mesmo	se	o	ministro	for	mau	e	lhe	couber	ter	o	ministério,	–
pode	ser	que	os	homens	não	o	saibam,	Deus,	porém,	o	sabe	–	Deus,	que	Se
reservou	dita	potestade,	permite	que	se	confira	o	batismo	por	meio	dele.
O	que	João	não	conhecia	sobre	o	Senhor
8	Eis,	pois,	o	que	João	não	conhecia	no	Senhor.	Sabia	que	Ele	era	o	Senhor,
sabia	que	deveria	ser	batizado	por	Ele.	Confessou	que	o	Senhor	era	a
Verdade,	e	que	ele	próprio	era	veraz,	enviado	pela	Verdade.	Tudo	isso	ele
sabia.	O	que,	porém,	não	conhecia	no	Senhor?	Que	o	Senhor	havia	de
reservar-Se	a	potestade	sobre	Seu	batismo,	sem	o	transmitir	nem	o	confiar	a
servo	algum;	e,	quer	batizasse	ministerialmente	um	servo	bom,	quer
batizasse	ministerialmente	um	servo	mau,	quem	fosse	batizado	havia	de
saber	que	não	o	batizava	senão	Aquele	que	Se	reservou	a	potestade	de
batizar.	E	para	que	saibais,	irmãos,	ser	bem	isso	o	que	João	não	conhecia	no
Senhor,	e	que	ele	o	aprendeu	pela	pomba	–	pois	conhecia	o	Senhor,	mas
ainda	não	sabia	que	Ele	Se	havia	de	reservar	a	potestade	de	batizar	e	não	a
havia	de	dar	a	servo	algum	–	e,	nesse	sentido,	disse:	“Eu	não	O	conhecia”.	E
para	que	saibais	ter	sido	então	que	João	adquiriu	esse	conhecimento,	notai
bem	o	que	segue:	“Mas	Aquele	que	me	enviou	para	batizar	com	água,	disse-
me:	Aquele	sobre	quem	vires	o	Espírito	descer	como	pomba	e	permanecer,	é
Ele	...”.⁴²²	Ele,	quem?	O	Senhor.	Mas	ele	já	conhecia	o	Senhor!	Suponde,
pois,	que	João	tenha	dito	apenas:	“Eu	não	O	conhecia,	mas	Aquele	que	me
enviou	batizar	na	água	disse-me…”	Procuremos	o	que	disse	Ele.	Eis	o	que
segue:	“Aquele	sobre	quem	vires	o	Espírito	descer	como	pomba	e
permanecer...”.	Não	digo	o	que	segue,	prestai	atenção	por	um	momento:
“sobre	quem	vires	o	Espírito	descer	como	pomba	e	permanecer,	é	Ele...”
Mas	quem	é	Ele?	O	que	me	quis	ensinar	pela	pomba	Aquele	que	me	enviou?
Que	Ele	era	o	Senhor?	Mas	eu	já	conhecia	Aquele	por	quem	fora	enviado,
já	conhecia	Aquele	a	quem	disse:	“Tu	vens	a	mim	para	seres	batizado?	Eu	é
que	tenho	necessidade	de	ser	batizado	por	ti!”.⁴²³	Eu	conhecia	tão	bem	o
Senhor,	a	ponto	de	querer	ser	batizado	por	Ele	e	não	que	fosse	Ele	por	mim
batizado.	Ele	disse-me	então:	“Deixa	estar,	por	enquanto,	pois	assim	nos
convém	cumprir	toda	a	justiça”.⁴²⁴	Eu	vim	para	sofrer,	não	viria	para	ser
batizado?	Que	se	cumpra	toda	a	justiça	–	disse-me	o	meu	Deus;	que	se
cumpra	toda	a	justiça,	pois	eu	ensinarei	a	humildade,	em	toda	sua
plenitude.	Sei	que	haverá	orgulhosos,	no	meio	do	meu	futuro	povo;	sei	que
haverá	homens	dotados	de	tão	excelente	graça	que,	quando	virem	que
pessoas	simples	recebem	o	batismo,	sentindo-se	eles	próprios	superiores	por
sua	continência,	por	suas	esmolas	ou	por	sua	doutrina,	talvez	desdenhem
receber	o	que	receberam	tais	pessoas,	consideradas	por	eles	inferiores	a	si.	É
preciso	que	eu	os	cure,	para	que	não	desdenhem	vir	ao	batismo	do	Senhor,
porquanto	vim,	eu	mesmo,	ao	batismo	do	servo.
O	que	o	Espírito	Santo	deu	a	conhecer	a	João
9	João	já	sabia	tudo	isso,	e	também	conhecia	o	Senhor.	O	que	lhe	ensinou,
pois,	a	pomba?	O	que	lhe	quis	ensinar	por	meio	da	pomba,	isto	é,	por	meio
do	Espírito	Santo	que	assim	vinha,	Aquele	que	o	enviara	e	lhe	diz:	“Aquele
sobre	quem	vires	o	Espírito	descer	como	pomba	e	permanecer	é	Ele”?⁴²⁵	–
Quem	é	Ele?	–	É	o	Senhor!	Eu	sei.	–	E,	por	acaso,	já	sabias	que	esse	Senhor,
tendo	a	potestade	de	batizar,	não	a	havia	de	dar	a	servo	algum,	mas	havia
de	reservá-la	para	Si,	a	fim	de	que	todo	o	que	se	batiza	pelo	ministério	de
um	servo,	não	o	atribua	ao	servo,	mas	ao	Senhor?	Já	o	sabias,	por	acaso?	–
Não,	não	o	sabia.	E	tanto	é	assim,	que	Ele	me	disse:	“Aquele	sobre	quem
vires	o	Espírito	descer	como	pomba	e	permanecer	é	que	batiza	no	Espírito
Santo”.	Ele	não	disse:	“Esse	é	o	Senhor”.	Não	disse:	“É	o	Cristo”.	Não	disse:
“É	Deus”.	Não	disse:	“É	Jesus”.	Não	disse:	“É	o	que	nasceu	da	Virgem
Maria,	o	que	veio	depois	de	ti	e	é	anterior	a	ti”.	Nada	disso	ensinou,	porque
João	já	o	sabia.	–	Mas	o	que	não	sabia	João?	–	Que	o	próprio	Senhor	havia
de	ter	a	tão	grande	potestade	do	batismo	e	que	a	havia	de	reservar	para	Si,
quer	enquanto	estivesse	presente	na	terra,	quer	quando	Se	ausentasse	e
estivesse	no	céu,	quanto	ao	corpo,	mas	presente	pela	majestade;	Ele	havia,
pois,	de	reservar-Se	a	potestade	do	batismo,	para	que	Paulo	não	dissesse:
“O	meu	batismo”,	nem	Pedro	dissesse:	“O	meu	batismo”.	Vede,	pois,	e	notai
as	palavras	dos	apóstolos.	Nenhum	dos	apóstolos	disse:	“O	meu	batismo”.
Ainda	que	fosse	um	só	o	Evangelho	de	todos,	encontras,	no	entanto,	que
tenham	dito:	“O	meu	Evangelho”,	mas	não	encontras	que	tenham	dito:	“O
meu	batismo”.
Razão	pela	qual	João	aprendia	da	pomba
10	Foi	isso,	portanto,	meus	irmãos,	que	João	aprendeu.	E	o	que	aprendeu
pela	pomba,	aprendamo-lo	nós	também.	Pois,	não	se	concebe	que	a	pomba
tenha	ensinado	a	João	e	que	não	ensine	à	Igreja,	à	qual	foi	dito:	“Única	é	a
minha	pomba”.⁴² 	Que	a	pomba	ensine	à	pomba…	Que	a	pomba	saiba	o	que
João	aprendeu	por	meio	da	pomba.	O	Espírito	Santo	desceu	em	forma	de
pomba.	Mas	isso	que	aprendia	João	na	pomba,	por	que	o	aprendeu	na
pomba?	Era	preciso,	certamente,	que	ele	o	aprendesse,	e	talvez	fosse	preciso
que	o	aprendesse	não	de	outro	modo,	senão	através	da	pomba.	O	que	direi
sobre	a	pomba,	meus	irmãos?	Ou	quando	me	há	de	bastar	a	faculdade	do
coração	ou	da	língua	para	dizê-lo	tal	como	eu	quero?	E	talvez	não	queira	eu
dizê-lo	de	modo	tão	digno	como	se	háde	dizer;	e,	se	não	posso	dizê-lo	como
quero,	quanto	menos	o	poderei	dizer	como	se	deve?	Quisera	eu	ouvi-lo	de
alguém	melhor,	não	dizê-lo	a	vós.
Não	é	para	temer	o	ministério	dos	maus
11	João	ficou	conhecendo	Aquele	a	quem	já	conhecia.	Mas	n’Ele	aprendeu
algo	segundo	o	qual	ainda	não	O	conhecia.	Não	aprendeu	aquilo	segundo	o
qual	já	O	conhecia.	O	que	conhecia	ele?	O	Senhor!	O	que	não	conhecia?
Que	a	potestade	do	batismo	do	Senhor	nunca	seria	transferida	pelo	Senhor
a	homem	algum,	mas	o	ministério,	sim,	seria	transferido.	Que	a	potestade
não	passaria	do	Senhor	a	mais	ninguém;	mas	o	ministério	passaria	tanto	a
bons,	como	a	maus.	Não	fique	a	pomba	horrorizada	ante	o	ministério	dos
maus:	considere	a	potestade	do	Senhor.	Que	mal	te	pode	fazer	um	mau
ministro,	quando	o	Senhor	é	bom?	Em	que	te	pode	prejudicar	um	malicioso
arauto,	se	o	juiz	é	benévolo?	Eis	aí	o	que	João	aprendeu	por	intermédio	da
pomba.	O	que	aprendeu	ele?	Que	ele	mesmo	no-lo	repita:	“Ele	me	disse,
afirma,	Aquele	sobre	quem	vires	o	Espírito	descer	como	pomba	e
permanecer	é	que	batiza	no	Espírito	Santo”.	Não	te	enganem,	ó	pomba,	os
sedutores	que	dizem:	“Nós	é	que	batizamos”.	Reconhece,	pomba,	o	que	a
pomba	te	ensinou:	“É	Ele	que	batiza	no	Espírito	Santo”.	Pela	pomba	se
aprende	que	é	Ele,	e	tu	pensas	ser	batizado	pelo	poder	daquele	por	cujo
ministério	és	batizado?	Se	assim	pensas,	ainda	não	estás	no	Corpo	da
pomba,	e	se	não	estás	no	Corpo	da	pomba,	não	admira	que	não	tenhas
simplicidade;	pois	a	simplicidade	é	principalmente	representada	pela
pomba.
Malevolência	dos	donatistas
12	Meus	irmãos,	por	que	teria	aprendido	João,	da	simplicidade	da	pomba,
que	é	Ele,	Jesus,	quem	batiza	no	Espírito	Santo,	senão	porque	pombas	não
eram	os	que	dilaceraram	a	Igreja?	Eram,	antes,	falcões,	eram	milhafres.	A
pomba	não	dilacera.	E	vês	que	eles	nos	desejam	o	mal,	por	causa	das
perseguições	que,	por	assim	dizer,	sofreram.	Sofreram,	por	certo,
perseguições	corporais,	embora	se	tratasse	de	castigos	do	Senhor,	que
manifestamente	lhes	dava	um	ensinamento	temporal,	a	fim	de	não	ter	de
condená-los	eternamente,	caso	não	o	reconhecessem,	nem	se	corrigissem.
Por	sua	vez,	perseguem	verdadeiramente	a	Igreja	os	que	o	fazem	tramando
fraudes	contra	ela.	Ferem	mais	profundamente	o	coração	os	que	ferem	com
o	gládio	da	língua.	Mais	cruelmente	derramam	sangue	os	que,	na	medida
em	que	deles	mesmos	depende,	matam	a	Cristo	no	homem.	Parecem	como
que	aterrados	com	o	juízo	das	autoridades.	Mas	o	que	te	faz	a	autoridade,	se
és	bom?	Se,	porém,	és	mau,	teme	a	autoridade:	porque	ela	não	à	toa	traz	a
espada,	diz	o	Apóstolo.⁴²⁷	Não	desembainhes	a	tua	espada	com	que	golpeias
a	Cristo!	Cristão,	o	que	persegues	num	cristão?	O	que	perseguiu	em	ti	o
imperador?	Perseguiu	a	carne,	enquanto	tu,	no	cristão,	persegues	o	espírito.
Tu	não	matas	a	carne.	Não	obstante,	nem	a	carne	poupam	estes.	Mataram	a
golpes	a	todos	quantos	puderam	e	não	pouparam	nem	mesmo	os	seus,	nem
os	estranhos.	Este	é	um	fato	notório	a	todos.	A	autoridade	é	malvista
precisamente	por	ser	legítima.	Quem	age	conforme	o	direito	procede
maldosamente;	mas	sem	maldade	age	quem	atua	à	margem	da	lei.
Considere	cada	um	de	vós,	meus	irmãos,	o	que	o	cristão	possui.	O	fato	de
ser	homem	lhe	é	comum	com	muitos	outros;	mas	que	seja	cristão	é	coisa	que
o	distingue	de	muitos.	E	mais	lhe	pertence	o	ser	cristão	do	que	o	ser	homem.
Com	efeito,	pelo	fato	de	ser	cristão,	é	renovado	à	imagem	de	Deus,	por
quem	o	homem	foi	feito	à	imagem	de	Deus,⁴²⁸	mas	pelo	fato	de	ser	homem
poderia	também	ser	mau,	poderia	ser	pagão,	poderia	ser	idólatra.	O	que	tu
persegues	no	cristão	é	o	que	ele	tem	de	melhor,	porque	queres	tirar-lhe
aquilo	que	o	faz	viver.	Ele	vive,	pois,	no	tempo	segundo	o	espírito	de	vida
com	que	é	animado	o	seu	corpo,	mas	vive	para	a	eternidade	segundo	o
batismo	que	recebeu	do	Senhor.	Queres	roubar-lhe	o	que	ele	recebeu	do
Senhor.	Queres	arrancar-lhe	aquilo	de	que	ele	vive.	Ladrões	querem	agir	em
relação	aos	que	pretendem	espoliar,	de	modo	que	eles	próprios	possuam
mais,	enquanto	aqueles	fiquem	sem	coisa	alguma.	E	tu	a	um	cristão
arrebatas	também	algo,	porém,	junto	de	ti,	nada	mais	haverá,	pois	não	se
acrescenta	o	que	tens	por	lho	arrebatares.	Na	verdade,	tais	pessoas	fazem	o
que	fazem	aqueles	que	tiram	uma	vida:	roubam-na	a	outrem	e,	entretanto,
eles	próprios	não	têm	duas	vidas.
Diálogo	insidioso	dos	donatistas	com	fiéis	já	batizados
13	Que	queres,	pois,	arrebatar?	Em	que	te	desagrada	aquele	a	quem	queres
rebatizar?	Tu	não	lhe	podes	dar	o	que	já	tem,	mas	tratas	de	fazer	com	que
renegue	o	que	tem.	Que	crueldade	maior	fazia	o	pagão,	perseguidor	da
Igreja?	Desembainhavam-se	as	espadas	contra	os	mártires,	soltavam-se	as
feras,	acendiam-se	as	fogueiras.	Para	que	tudo	isso?	Para	que	quem	sofria
tais	coisas	dissesse:	“Não	sou	cristão”.	O	que	ensinas	tu	àquele	a	quem
queres	rebatizar,	senão	que	confesse	primeiro:	“Não	sou	cristão”?	Para
conseguir	esse	fim,	o	perseguidor	aplicava	por	vezes	o	fogo,	mas	tu	estiras	a
língua.	E	consegues,	seduzindo,	o	que	o	primeiro,	matando,	não	fez.	O	que
hás	de	dar	tu,	e	a	quem	o	darás?	Se	o	fiel	te	disser	a	verdade,	caso	não
minta,	levado	por	tua	sedução,	responderá	ele:	“Tenho!”	Perguntas:	“Tens	o
batismo?”	“Tenho”,	responde.	Enquanto	diz:	“Eu	o	tenho”,	pensas	tu:	“Não
lho	hei	de	dar”.	“Não	mo	dês,	o	que	me	queres	dar	não	se	pode	aderir	a
mim;	pois	o	que	já	recebi,	não	me	pode	ser	tirado.	Mas,	espera.	Quero	saber
o	que	me	queres	ensinar”.
“Dize	primeiro:”	–	assim	fala	–	“Não	tenho	o	batismo!”	“Mas	eu	o	tenho!	E	se
disser	que	não	o	tenho,	estou	mentindo.	O	que	tenho,	tenho.”	“Não	o	tens”,	diz
ele.	“Ensina-me	por	que	não	o	tenho.”	“Um	homem	mau	é	quem	o	deu	a	ti.”	“Se
Cristo	é	mau,	foi	um	homem	mau	que	mo	deu.”	“Não”,	–	responde	ele	–	“Cristo
não	é	mau;	mas	não	foi	Ele	quem	te	deu	o	batismo.”	“Então,	dize-me:	Quem	mo
deu?	Quanto	a	mim,	sei	que	o	recebi	de	Cristo.”	“Quem	te	deu	não	foi	Cristo,
mas	não	sei	que	traidor.”	“Verei	quem	foi	o	ministro,	verei	quem	foi	o	arauto;
mas	não	quero	discutir	acerca	do	ministro,	considero	somente	o	Juiz.	E	o	que
objetas	ao	ministro	talvez	seja	mentira.	Mas	não	o	quero	discutir.	O	Senhor	de
ambos	instrua	a	causa	do	Seu	ministro.	Se	exijo	provas,	é	possível	que	não
proves.	Mentes,	aliás,	pois	está	comprovado	que	não	pudeste	prová-lo.	Mas	não
pretendo	tratar	aqui	de	defender	minha	causa,	para	não	pensares	que,	ao	pôr-me
a	defender	com	empenho	a	homens	inocentes,	teria	colocado	eu	minha	esperança
ao	menos	em	homens	inocentes.	Sejam	quais	forem	os	homens,	eu	recebi	o
batismo	de	Cristo,	fui	batizado	por	Cristo.”	“Não!”	–	responde	–	“Quem	te
batizou	foi	aquele	bispo;	e	aquele	bispo	está	em	comunhão	com	eles.”	“É	por
Cristo	que	fui	batizado.	Eu	o	sei”.
“Como	o	sabes?”	“Ensinou-me	a	pomba	que	João	viu.	E	tu,	ó	milhafre	mau,	não
me	arranques	das	entranhas	da	pomba.	Conto-me	entre	os	membros	da	pomba,
porque	sei	o	que	a	pomba	ensinou.	Tu	dizes-me:	‘batizou-te	este	ou	batizou-te
aquele’.	Ao	passo	que,	mediante	a	pomba,	tanto	a	mim	como	a	ti	se	diz:	‘É	Ele
que	batiza’.	A	quem	devo	dar	crédito,	ao	milhafre	ou	à	pomba?”.
O	Senhor	Jesus	dá	testemunho	de	João
14	“Responde-me	claramente,	para	que	sejas,	assim,	confundido	por	aquela
mesma	lâmpada	por	que	ficaram	confundidos	também	os	primeiros
inimigos,	os	fariseus,	que	são	teus	pares”.	Quando	eles	perguntavam	ao
Senhor	com	que	poder	Ele	agia,	“Jesus	respondeu:	Vou	propor-vos	também
eu	uma	questão,	dizei-me:	o	batismo	de	João,	de	onde	era?	Do	céu	ou	dos
homens?”.⁴² 	E	eles,	que	procuravam	armar	ciladas,	ficaram	enredados	com
a	pergunta	e	puseram-se	a	pensar,	dizendo	lá	consigo:	“Se	respondermos:
Do	céu,	Ele	nos	dirá:	Por	que	então	não	crestes	nele?”.	Porque	João	havia
dito	do	Senhor:	“Eis	o	Cordeiro	de	Deus.	Eis	Aquele	que	tira	o	pecado	do
mundo”.⁴³ 	Por	que	perguntais,	então,	com	que	poder	eu	faço	essas	coisas?
Ó	lobos,	o	que	eu	faço,	faço-o	pelo	poder	do	Cordeiro.	Mas	para	que
pudésseis	conhecer	o	Cordeiro,	por	que	não	acreditastes	em	João	que	disse:
“Eis	o	Cordeiro	de	Deus,	eis	Aquele	que	tira	o	pecado	do	mundo”?	Sabendo
eles	o	que	Joãoafirmara	do	Senhor,	disseram	lá	consigo:	“Se	respondermos
que	o	batismo	de	João	vem	do	céu,	Ele	nos	dirá:	Por	que,	então,	não	crestes
nele?	Se	respondermos:	Dos	homens,	seremos	lapidados	pela	multidão,	pois
todos	consideram	João	como	profeta”.	Por	um	lado,	temiam	os	homens;	por
outro,	envergonhavam-se	de	confessar	a	verdade.	As	trevas	responderam
trevas,	mas	foram	vencidas	pela	luz.	O	que	responderam,	pois?	“Não	o
sabemos”.	Quanto	ao	que	sabiam,	disseram:	“Não	sabemos”.	E	o	Senhor:
“Nem	eu	vos	digo”	–	respondeu-lhes	–	“com	que	autoridade	faço	essas
coisas”.⁴³¹	E,	assim,	ficaram	confundidos	os	primeiros	inimigos.	Como?	Pela
lâmpada.	E	quem	era	a	lâmpada?	João!	Provamos	que	ele	era	uma
lâmpada?	Provamo-lo.	Com	efeito,	o	Senhor	disse:	“João	foi	um	facho	que
arde	e	ilumina”.⁴³²	E	provamos	que	também	por	ele	os	inimigos	de	Cristo
foram	confundidos.	Escuta	o	salmo:	“Acenderei	uma	lâmpada	para	o	meu
Cristo.	Revestirei	seus	inimigos	de	confusão”.⁴³³
Devem	os	ministros	ser	santos?
15	Caminhamos	ainda	nas	trevas	desta	vida,	à	luz	da	lâmpada	da	fé.
Tenhamos	em	mãos,	nós	também,	a	João,	como	lâmpada,	e	confundamos
com	isso	os	inimigos	de	Cristo,	ou	melhor,	que	Ele	mesmo	confunda	Seus
inimigos	por	meio	de	Sua	lâmpada.	Levantemos,	por	nossa	vez,	a	questão
colocada	pelo	Senhor	aos	judeus,	e	perguntemos:	“O	batismo	de	João	de
onde	era?	Do	céu	ou	dos	homens?”.⁴³⁴	O	que	haverão	de	dizer?	Vede	se	não
saem	confundidos	também	eles,	apontados	pela	lâmpada	como	inimigos.
Mas,	o	que	dirão	eles?	Se	disserem	que	o	batismo	é	dos	homens,	seus
próprios	correligionários	os	apedrejarão.	Se,	porém,	disserem	que	é	do	céu,
nós	replicaremos:	Por	que,	então,	não	crestes	nele?	Talvez	digam:	Cremos
nele.	Mas	por	que,	então,	dizeis	que	vós	batizais,	quando	João	disse:	“É	Ele
que	batiza”?	Respondem-nos	eles:	“É,	porém,	conveniente	que	sejam	justos
os	ministros	de	um	tão	grande	Juiz,	por	meio	dos	quais	se	batiza”.	“Eu
também	o	digo,	e	afirmamos	todos,	que	é	conveniente	serem	justos	os
ministros	de	tão	grande	Juiz.	Sejam	justos	os	ministros,	se	quiserem.	Se	não
quiserem	ser	justos,	porém,	os	que	se	sentam	na	cátedra	de	Moisés,	o	meu
Mestre,	a	respeito	de	quem	Seu	Espírito	diria:	‘É	Ele	que	batiza’,	deu-me
toda	segurança.	E	como	me	deu	tal	segurança?	‘Os	escribas	e	fariseus	–	diz
Ele	–	estão	sentados	na	cátedra	de	Moisés.	Portanto,	fazei	e	observai	tudo
quanto	vos	disserem,	mas	não	imiteis	as	suas	ações,	pois	dizem,	e	não
fazem’”.⁴³⁵	Se	o	ministro	for	justo,	ponho-o	ao	lado	de	Paulo,	ponho-o	ao
lado	de	Pedro.	É	no	número	deles	que	coloco	os	ministros	justos.	Os
ministros	verdadeiramente	justos	não	buscam,	pois,	sua	própria	glória.	São
ministros,	e	não	querem	ser	tidos	na	conta	de	juízes.	Ficam	indignados	que
se	deposite	esperança	neles.	Por	isso,	ponho	o	ministro	justo	ao	lado	de
Paulo.	E	o	que	diz	Paulo,	então?	“Eu	plantei,	Apolo	regou.	Mas	era	Deus
quem	fazia	crescer.	Assim,	pois,	aquele	que	planta	nada	é.	Aquele	que	rega
nada	é.	Mas	importa	tão	somente	Deus,	que	dá	o	crescimento”.⁴³ 	O	ministro
que	for	soberbo	deve	ser	posto	ao	lado	do	diabo,	mas	o	dom	de	Cristo	não
fica	contaminado,	corre	puro	através	dele	e,	passando	límpido	por	ele,	vem
a	cair	sobre	a	terra	fértil.	Pensa	que	ele	é	de	pedra,	porque	da	água	não
pode	tirar	fruto	algum.	A	água	passa	através	do	canal	da	pedra,	e	vai	até	os
canteiros.	Ela	nada	produz	no	canal,	entretanto,	muito	fruto	produz	nos
jardins.	A	virtude	espiritual	do	sacramento,	na	verdade,	é	tal	como	luz.
Aqueles	corpos	que	devem	ser	iluminados	por	ela	recebem-na	em	sua
pureza;	e,	ainda	que	passe	por	meios	contaminados,	não	se	mancha.	Sim,
que	os	ministros	sejam	justos,	que	não	procurem	sua	própria	glória,	mas	a
glória	d’Aquele	de	quem	são	ministros.	Que	não	digam:	“O	batismo	é	meu”,
porque	não	é	deles.	Que	considerem	o	próprio	João.	Eis	que	João	estava
cheio	do	Espírito	Santo.	Possuía	um	batismo	do	céu,	e	não	dos	homens.	Mas
em	que	medida	o	possuía?	Ele	mesmo	o	disse:	“Preparai	o	caminho	do
Senhor”.⁴³⁷	Quando	o	Senhor	foi	conhecido,	tornou-Se	Ele	mesmo	o
Caminho.	Já	não	era	necessário,	pois,	o	batismo	de	João	para	que	se
preparasse	o	caminho	do	Senhor.
Objeção	dos	donatistas:	batizaram	depois	de	João!
16	O	que	costumam	dizer-nos,	no	entanto?	“Eis	que	batizaram	depois	de
João!”.	Com	efeito,	antes	que	essa	questão	fosse	tratada	como	convinha	na
Igreja	Católica,	muitos	dentro	dela	erraram,	mesmo	sendo	pessoas
importantes	e	boas;⁴³⁸	contudo,	porque	faziam	parte	dos	membros	da
pomba,	não	se	separaram,	e	realizou-se	neles	o	que	disse	o	Apóstolo:	“Se
tendes	de	alguma	coisa	outro	sentir,	também	sobre	isso	Deus	vos
esclarecerá”.⁴³ 	Os	que	se	separaram,	porém,	tornaram-se	rebeldes.	Que
costumam	eles	dizer?	“Batizou-se	depois	de	João,	por	que	não	se	deve
batizar	depois	dos	hereges?”.	De	fato,	Paulo	ordenou	batizar	certos	homens
que	haviam	recebido	o	batismo	de	João:⁴⁴ 	esses	não	tinham	ainda	o	batismo
de	Cristo.	–	Por	que	exageras	o	mérito	de	João,	e	menosprezas	o	infortúnio
dos	hereges?	–	Concedo-te	que	os	hereges	sejam	criminosos,	mas	os	hereges
deram	o	batismo	de	Cristo,	um	batismo	que	João	não	deu.
Considerações	sobre	o	batismo	dado	depois	de	João
17	Recorro	novamente	a	João	e	digo	com	ele:	“Este	é	que	batiza”.	Na
verdade,	João	é	mais	digno	do	que	um	herege,	assim	como	é	mais	digno	que
um	ébrio,	e	do	que	um	homicida.	Se	devemos	batizar	de	novo	alguém	que
foi	batizado	por	uma	pessoa	pior,	já	que	os	apóstolos	batizaram	depois	de
pessoa	melhor,	o	que	dizer	dos	que	foram	batizados	entre	os	hereges	por	um
ébrio...	–	não	digo	por	um	homicida,	não	digo	pelo	sequaz	de	algum
criminoso,	por	um	raptor	de	coisas	alheias,	por	um	opressor	de	órfãos,	por
um	separador	de	cônjuges,	nada	disso	digo:	digo	o	que	é	comum,	o	que	é
cotidiano,	falo	disso	a	que	todos	são	chamados,	mesmo	nesta	cidade,	quando
se	lhes	diz:	“Vamos	divertir-nos!	Passemos	um	bom	momento!	Não	deves
jejuar	em	tal	festa	de	janeiro!”.⁴⁴¹	Coisas	corriqueiras	digo	eu,	cotidianas	–	o
que	dizer	de	quem	foi	batizado	por	um	homem	embriagado?	Quem	é
melhor,	João	ou	o	embriagado?	–	Responde,	se	puderes,	que	teu	ébrio	é
melhor	que	João…	Ousarás	dizê-lo?	Então,	tu	que	és	sóbrio,	batiza	depois
do	teu	ébrio!	Pois,	se	os	apóstolos	batizaram	depois	de	João,	com	mais	razão
deve	o	sóbrio	batizar	depois	do	ébrio!	Ou	dirás,	talvez:	“O	ébrio	está	em
comunhão	comigo?”.	Ora,	João,	o	amigo	do	Esposo,	não	estava	em
comunhão	com	o	Esposo?
Batizavam	depois	de	João	porque	ele	não	dava	o	batismo	de	Cristo
18	Mas,	pergunto-te	ainda,	quem	quer	que	sejas:	–	Quem	é	melhor:	tu	ou
João?	Não	ousarás	responder:	–	Sou	melhor	que	João.	Que	os	teus
comparsas	batizem,	então,	depois	de	ti,	se	forem	melhores	do	que	tu.	Pois,
visto	que	se	batizou	depois	de	João,	envergonha-te	de	que	não	se	batize
depois	de	ti.	Dirás:	“Mas	eu	tenho	o	batismo	de	Cristo,	e	o	ensino”.
Reconhece,	ao	menos	uma	vez,	o	Juiz	e	não	te	faças	de	arauto	orgulhoso.
Dás	o	batismo	de	Cristo	e	é	por	isso	que	não	se	batiza	depois	de	ti.
Batizaram	depois	de	João,	porque	ele	não	dava	o	batismo	de	Cristo,	mas	o
seu	próprio,	visto	que	recebera	o	privilégio	de	ter	um	batismo	próprio.	Tu
não	és,	portanto,	melhor	que	João,	mas	o	batismo	que	dás	é	melhor	que	o	de
João;	porque	este	é	o	batismo	de	Cristo,	e	aquele	é	só	o	batismo	de	João.	O
batismo	que	era	dado	por	Paulo	e	o	que	era	dado	por	Pedro	eram	o	de
Cristo.	E	se	foi	dado	por	Judas,	era	de	Cristo.	Judas	o	deu,	e	não	se	batizou
depois	de	Judas.	Deu-o	João,	e	se	batizou	depois	de	João.	Isso	se	deve	a	que,
se	foi	dado	por	Judas	um	batismo,	era	este	o	batismo	de	Cristo,	ao	passo	que
o	batismo	dado	por	João	não	era	senão	o	de	João.	Não	colocamos	Judas
acima	de	João,	mas	antepomos	corretamente	o	batismo	de	Cristo,	mesmo
dado	pelas	mãos	de	Judas,	ao	batismo	de	João,	mesmo	dado	pelas	mãos	de
João.	Está	escrito,	com	efeito,	a	respeito	do	Senhor	que,	antes	de	padecer,
“Ele	batizava	mais	do	que	João”.	E,	então,	se	acrescenta:	“Ainda	que,	de
fato,	Jesus	mesmo	não	batizasse,	mas	os	Seus	discípulos”.⁴⁴²	Era	ele,	e	não
era	Ele:	Ele,	por	Sua	potestade;	mas	os	discípulos,	pelo	ministério.
Exerciamaqueles	um	serviço	ao	batizar,	mas	em	Cristo	permanecia	a
potestade	de	batizar.	Seus	discípulos,	pois,	batizavam,	e	ali	ainda	estava
Judas,	em	meio	aos	Seus	discípulos.	E	os	que	Judas	batizou	não	foram
batizados	de	novo,	enquanto	os	que	João	batizou	deviam	ser	batizados
novamente?	Estes	últimos	foram	batizados,	sim,	uma	segunda	vez,	mas	não
com	um	reiterado	batismo.	Porque,	aqueles	que	João	batizou,	batizou-os
João;	mas	os	que	Judas	batizou,	batizou-os	Cristo.	Assim	também	acontece
com	os	que	um	ébrio	batizou,	com	os	que	um	homicida	batizou,	com	os	que
um	adúltero	batizou:	se	era	o	batismo	de	Cristo,	foi	Cristo	quem	os	batizou.
Eu	não	temo	o	adúltero,	nem	o	ébrio,	nem	o	homicida,	porque	presto
atenção	na	pomba,	por	meio	da	qual	se	me	diz:	“É	Ele	que	batiza”.
O	batismo	de	Cristo	vale	por	si,	não	pelo	ministro
19	Quanto	ao	mais,	meus	irmãos,	seria	loucura	pretender	–	já	não	falo	de
Judas,	mas	de	qualquer	homem	–	que	alguém	tenha	ultrapassado	em	mérito
aquele	de	quem	foi	dito:	“Entre	os	nascidos	de	mulher,	não	surgiu	nenhum
maior	do	que	João,	o	Batista”.⁴⁴³	Não	se	lhe	antepõe,	portanto,	qualquer
servo;	mas	o	batismo	do	Senhor,	mesmo	que	administrado	por	um	servo
mau,	antepõe-se	inclusive	ao	do	servo	amigo.	Ouve	de	que	tipo	de	falsos
irmãos	se	recorda	Paulo,	os	quais	pregavam	a	Palavra	de	Deus	por	inveja:
“Com	isso	eu	me	regozijo,	mas	também	me	regozijarei”.⁴⁴⁴	Com	efeito,	eles
anunciavam	Cristo,	sem	dúvida,	por	inveja,	mas	Cristo	era	anunciado.	Não
repares	no	meio,	mas	no	objeto	da	pregação.	Cristo	te	é	pregado	por	inveja?
Vê	a	Cristo,	evita	a	inveja.	Não	imites	o	mau	pregador,	mas	imita	o	Bom	que
te	é	pregado.	Cristo	era,	portanto,	pregado	por	alguns	que	se	deixaram
levar	pela	inveja.	E	o	que	é	invejar?	Um	mal	horrível.	É	por	esse	mal	que	o
diabo	foi	precipitado,	uma	peste	muito	maligna	o	precipitou.	Alguns
pregadores	de	Cristo	estavam	contaminados	por	ela,	mas	o	Apóstolo
permitiu-lhes	pregar.	Por	quê?	Porque	pregavam	a	Cristo.	Quem	tem	inveja
tem	ódio.	E	quem	odeia,	o	que	se	diz	dele?	Ouve	o	apóstolo	João:	“Todo
aquele	que	odeia	o	seu	irmão	é	homicida”.⁴⁴⁵	Eis	que	se	batizou	depois	de
João,	mas,	depois	de	um	homicida,	não	se	batizou.	João	deu,	pois,	o	seu
próprio	batismo,	enquanto	o	homicida	deu	o	batismo	de	Cristo.	Que
sacramento	tão	santo	é	esse,	que	não	fica	profanado,	ainda	que	seja
administrado	por	um	homicida!
Conclusão
20	Eu	não	desprezo	João;	pelo	contrário,	acredito	em	João.	E	acredito	em
João	a	respeito	de	quê?	A	respeito	daquilo	que	ele	aprendeu	por	intermédio
da	pomba.	E	o	que	aprendeu	ele	por	meio	da	pomba?	“Esse	é	que	batiza
com	o	Espírito	Santo”.	Retende-o,	pois,	já,	irmãos,	e	gravai-o	em	vosso
coração.	Se	eu	quiser	explicar	hoje,	mais	abundantemente,	por	que	João
aprendeu	tal	verdade	por	meio	da	pomba,	o	tempo	não	será	suficiente.	Até
onde	o	vejo,	expus	à	santidade	vossa	que	a	João	se	insinuou	algo	que	ele
havia	de	aprender	por	meio	da	pomba,	algo	que	ainda	não	conhecia	em
Cristo,	por	mais	que	já	conhecesse	a	Cristo.	Mas	a	razão	por	que	tal	coisa
devia	ser-lhe	mostrada	pela	pomba,	caso	pudesse	dizer-se	em	poucas
palavras,	eu	a	diria.	Como,	porém,	é	assunto	que	demora	a	ser	dito	e	eu	não
quero	sobrecarregar-vos;	assim	como	fui	ajudado	por	vossas	orações	a
cumprir	o	que	vos	prometi,	do	mesmo	modo,	com	a	instante	ajuda	da	vossa
piedosa	atenção	e	dos	vossos	bons	desejos,	aparecer-vos-á	também	por	que
João	não	deveu	aprender	senão	pela	pomba	o	que	aprendeu	no	Senhor,	a
saber,	que	“Esse	é	que	batiza	com	o	Espírito	Santo”	e,	ainda,	que	a	nenhum
servo	legou	Ele	a	potestade	de	batizar.
HOMILIA	6
“Eu	vi	o	Espírito	descer	como	uma	pomba”	(Jo	1,32-33)
Motivação
1	Confesso	à	santidade	vossa	ter	eu	temido	que	o	frio	vos	tornasse	frios	para
acudir	à	Igreja.	Como,	porém,	com	essa	grande	afluência,	demonstrastes
que	sois	fervorosos	em	espírito,	não	duvido	de	que	tenhais,	igualmente,
orado	por	mim,	a	fim	de	que	vos	pudesse	pagar	a	minha	dívida.	Prometera-
vos,	em	nome	de	Cristo,	discorrer	hoje,	dado	que	a	falta	de	tempo	impediu
então	que	o	pudéssemos	explicar,	acerca	da	razão	pela	qual	Deus	quis
mostrar	o	Espírito	Santo	sob	a	forma	de	uma	pomba.	Brilhou-nos,	pois,	o
dia	de	hoje	para	que	isso	fosse	explicado;	e	noto-vos	reunidos	em	maior
número,	com	desejo	de	ouvir	e	uma	piedosa	devoção.	Que	Deus	satisfaça
plenamente	à	vossa	expectativa,	por	meio	de	minha	boca.	Amastes,	com
efeito,	para	virdes	até	nós.	Mas,	o	que	amastes?	Se	nos	amastes,	está	bem.
Desejamos	ser	amados	por	vós,	mas	não	queremos	ser	amados	em	nós
mesmos.	Já	que	em	Cristo	nós	vos	amamos,	amai-nos,	de	volta,	em	Cristo.	E
esse	nosso	amor	recíproco	solte	gemidos	em	direção	a	Deus,	pois	tal	é	o
gemido	da	pomba.
Os	inefáveis	gemidos	no	Espírito
2	Se	tal	é	o	gemido	da	pomba	e,	como	sabemos,	as	pombas	gemem	de	amor,
ouvi	o	que	diz	o	Apóstolo	e	não	vos	admireis	de	que	o	Espírito	Santo	tenha
querido	mostrar-Se	sob	a	imagem	de	uma	pomba:	“Não	sabemos	o	que
pedir	como	convém,	mas	o	próprio	Espírito	intercede	por	nós	com	gemidos
inefáveis”.⁴⁴ 	Como	diremos	isso,	meus	irmãos,	ou	seja,	que	o	Espírito	Santo
geme,	se	tem	felicidade	plena	e	eterna	juntamente	com	o	Pai	e	com	o	Filho?
Na	verdade,	o	Espírito	Santo	é	Deus,	assim	como	é	Deus	o	Filho	de	Deus,	e
como	é	Deus	o	Pai.	Eu	disse	três	vezes:	“Deus”,	e	não	disse:	três	deuses.	Ele
é,	antes,	três	vezes	Deus,	e	não	três	deuses,	porque	o	Pai,	o	Filho	e	o	Espírito
Santo	são	um	só	Deus.	Vós	o	sabeis	perfeitamente.	Ora,	o	Espírito	Santo	não
geme	em	Si	mesmo	e	consigo	mesmo,	naquela	Trindade,	naquela	felicidade,
naquela	eternidade	de	substância.	Geme,	porém,	em	nós,	porque	nos	faz
gemer.	Nem	é	de	pouca	importância	que	o	Espírito	Santo	nos	ensine	a
gemer.	E	não	é	pouco	que	o	Espírito	Santo	nos	ensine	a	gemer:	sugere-nos
que	peregrinamos	e	ensina-nos	a	suspirar	pela	pátria,	e	nós	gememos	com
esse	desejo.	Aquele	a	quem	tudo	vai	bem	neste	mundo,	ou	melhor,	que	pensa
que	tudo	lhe	vai	bem;	que	exulta	pela	alegria	das	realidades	carnais,	pela
abundância	de	bens	temporais,	com	uma	vã	felicidade,	tem	a	voz	do	corvo.
A	voz	do	corvo	é	gritante,	não	é	feita	de	gemidos.	Geme	aquele	que	sabe	que
está	sob	a	opressão	desta	mortalidade,	que	peregrina	longe	do	Senhor⁴⁴⁷	e
que	ainda	não	possui	aquela	bem-aventurança	perpétua,	a	nós	prometida,
mas	a	tem	em	esperança,	havendo	de	possuí-la	na	plena	realidade,	quando
vier	glorioso	em	Sua	manifestação	o	Senhor	que	primeiro	veio	oculto	na
humildade.	Quem	o	sabe,	geme.	E	enquanto	geme	por	isso,	geme	bem.	O
Espírito	Santo	ensina-o	a	gemer,	da	pomba	aprendeu	a	gemer.	Muitos
gemem	na	infelicidade	terrena,	abatidos	por	dissabores,	ou	acabrunhados
pela	doença	do	corpo,	ou	encerrados	em	cárceres,	ou	presos	por	algemas,	ou
sacudidos	pelas	ondas	do	mar,	ou	cercados	por	algumas	ciladas	dos
inimigos.	Não	gemem,	entretanto,	com	o	gemido	da	pomba,	não	gemem	com
o	amor	de	Deus,	não	gemem	no	Espírito.	Por	isso,	ao	se	verem	libertados
dessas	tribulações,	exultam	com	grandes	vozerios,	e	por	aí	se	vê	que	são
corvos,	não	pombas.	Com	razão	foi	o	corvo	lançado	da	arca,	e	não	voltou;
foi	lançada	a	pomba,	mas	ela	voltou.⁴⁴⁸	Noé	soltara	aquelas	duas	aves.	Ele
tinha	ali	um	corvo,	tinha	também	uma	pomba.	Aquela	arca	continha
animais	de	uma	e	de	outra	espécie.	E	se	a	arca	era	a	figura	da	Igreja,	vedes
como	é	necessário	que,	neste	dilúvio	do	mundo,	a	Igreja	contenha	ambas	as
espécies	de	animais:	tanto	o	corvo,	como	a	pomba.	Quem	são	os	corvos?	Os
que	procuram	seus	próprios	interesses.	E	as	pombas?	Os	que	procuram	os
interesses	de	Jesus	Cristo.⁴⁴
As	aparições	do	Espírito	Santo
3	Quando	o	Senhor	enviou	o	Espírito	Santo,	mostrou-O	visivelmente	de	dois
modos:	pela	pomba	e	pelo	fogo;	pela	pomba,	que	pousou	sobre	o	Senhor
batizado;	pelo	fogo,	que	veio	sobre	os	discípulos	congregados.	Quando	o
Senhor	tinha	já	subido	ao	céu,	depois	da	ressurreição,	após	haver	passado
quarenta	dias	com	Seus	discípulos,	tendo	chegado	o	dia	de	Pentecostes,
enviou-lhes	o	Espírito	Santo	conforme	prometera.	Vindo,	então,	o	Espírito
Santo,	encheu	aquele	recinto.	Ouviu-se	primeiro	um	ruído	do	céu,	como	se
soprasse	umvento	impetuoso,	conforme	lemos	nos	Atos	dos	Apóstolos,	“E
apareceram	umas	como	línguas	de	fogo,	que	se	distribuíram	e	foram	pousar
sobre	cada	um	deles”.	Então,	o	Espírito	Santo	“veio	sobre	cada	um	deles	e
começaram	a	falar	em	outras	línguas,	conforme	o	Espírito	os	impelia	a
falar”.⁴⁵ 	No	primeiro	fato,	vimos	a	pomba	sobre	o	Senhor;	no	segundo,
línguas	repartidas	sobre	os	discípulos	congregados.	Ali	transparece	a
simplicidade,	aqui	o	fervor.	Há	homens	que	se	dizem	simples,	mas	são
preguiçosos;	denominam-se	simples,	mas	são	indolentes.	Não	era	desses
Estêvão,	cheio	do	Espírito	Santo:	era	simples,	pois	a	ninguém	ofendia;	era
fervoroso,	pois	repreendia	os	ímpios.	Não	se	calou	perante	os	judeus,	e	dele
são	aquelas	palavras	inflamadas:	“Homens	de	dura	cerviz,	incircuncisos	de
ouvido	e	coração,	vós	sempre	resististes	ao	Espírito	Santo!”.⁴⁵¹	Grande
ímpeto,	mas	a	pomba	se	enfurece	sem	fel.	E	para	que	saibais	que	sem	fel	se
enfurecia,	uma	vez	que	ouviram	tais	palavras,	aqueles	homens,	que	eram
corvos,	recorreram	imediatamente	às	pedras	contra	a	pomba.	E	Estêvão
começou	a	ser	apedrejado.	Aquele	que,	pouco	antes,	com	um	espírito
fremente	e	inflamado,	arremetera	de	certo	modo	contra	os	inimigos	e,
violento,	os	invectivara	com	palavras	ígneas	e	tão	cheias	de	ardor,	como
ouvistes:	“Homens	de	dura	cerviz,	incircuncisos	de	ouvido	e	coração”	–	de
modo	que	quem	ouvisse	tais	palavras,	julgaria	que	Estêvão	quisesse
aniquilá-los	de	um	só	golpe,	se	isso	lhe	fosse	permitido	–,	quando	eram
contra	si	arremessadas	das	mãos	deles	aquelas	pedras,	caído	de	joelhos,
exclamava:	“Senhor,	não	lhes	imputes	este	pecado”.⁴⁵²	Tinha-se	aderido	à
unidade	da	pomba.	Primeiro	o	fizera	aquele	Mestre	sobre	quem	desceu	a
pomba	e	que,	ao	pender	da	cruz,	disse:	“Pai,	perdoa-lhes	porque	não	sabem
o	que	fazem”.⁴⁵³	Foi	mostrado,	pois,	na	pomba,	que	os	santificados	pelo
Espírito	não	devem	ter	dolo;	e,	no	fogo,	que	a	simplicidade	não	deve
permanecer	fria.	Não	cause	impressão	o	fato	de	se	terem	dividido	as	línguas.
As	línguas	diferem,	de	fato,	entre	si,	por	isso	o	Espírito	apareceu	em	línguas
divididas.	“Apareceram	línguas	–	diz	–	repartidas	como	de	fogo,	que	pousou
sobre	cada	um	deles”.	As	línguas	diferem	entre	si,	mas	a	diferença	delas	não
são	cismas.	Não	receies	a	dispersão	nas	línguas	divididas;	reconhece,	antes,
na	pomba	a	unidade.
A	pomba,	símbolo	da	paz
4	Assim,	pois,	convinha	que	o	Espírito	Santo	Se	manifestasse	ao	vir	sobre	o
Senhor,	a	fim	de	que	cada	um	entenda	que,	se	possui	o	Espírito	Santo,	deve
ser	simples	como	a	pomba	e	conservar	com	os	irmãos	uma	verdadeira	paz,
que	é	simbolizada	pelos	beijos	das	pombas.	Também	os	corvos	têm	beijos,
mas	há,	nos	corvos,	uma	paz	falsa;	na	pomba,	está	a	verdadeira	paz.	Por
conseguinte,	nem	todo	o	que	diz	“A	paz	esteja	convosco”	há	de	ser	ouvido
como	se	fosse	pomba.	Como	se	distinguir,	então,	os	ósculos	dos	corvos	dos
ósculos	das	pombas?	Osculam-se	os	corvos,	mas	dilaceram-se.	A	natureza
das	pombas	é	inocente	de	laceração.	Onde	há,	portanto,	laceração,	não	há
nos	beijos	uma	verdadeira	paz.	Possuem	verdadeira	paz	aqueles	que	não
dilaceraram	a	Igreja.	Os	corvos	alimentam-se,	pois,	de	morte,	uma
característica	que	a	pomba	não	tem.	Esta	vive	dos	frutos	da	terra,	seu
alimento	é	inocente,	e	isso,	irmãos,	é	realmente	de	admirar	na	pomba.	Há
pássaros	bem	pequeninos	que	matam	pelo	menos	moscas.	A	pomba	nada	faz
de	semelhante.	Ela	não	se	alimenta,	pois,	da	morte.	Os	que	despedaçaram	a
Igreja	alimentam-se	de	mortos.	Mas	Deus	é	poderoso,	roguemos	que
revivam	aqueles	que	são	devorados	por	eles,	sem	o	perceber.	Muitos	vêm	a
reconhecer	tal	fato,	porque	revivem.	E,	à	sua	vinda,	nós	nos	congratulamos,
todos	os	dias,	em	nome	de	Cristo.	Quanto	a	vós,	sede	simples,	mas	de	forma
que	sejais,	ao	mesmo	tempo,	fervorosos.	E	que	o	vosso	fervor	manifeste-se
nas	línguas.	Não	vos	caleis,	mas,	falando	com	línguas	ardentes,	abrasai	os
que	se	acham	frios.
Manifestação	da	Trindade
5	O	que	dizer,	pois,	meus	irmãos?	Quem	não	vê	o	que	eles	não	veem?	E	não
admira,	pois	os	que	não	querem	regressar	dali	são	como	o	corvo	que	da	arca
foi	solto.	Quem	não	vê	o	que	eles	não	veem?	Mostraram-se	ingratos	ao
próprio	Espírito	Santo.	Eis	que	a	pomba	desceu	sobre	o	Senhor,	e	sobre	o
Senhor	que	acabava	de	ser	batizado.	Apareceu	então,	ali,	aquela	santa	e
verdadeira	Trindade,	que	é	para	nós	o	único	Deus.	“Saiu,	pois,	o	Senhor	da
água	–	como	lemos	no	Evangelho	–	e	logo	os	céus	se	abriram,	e	viu	o
Espírito	que	descia	como	uma	pomba	e	pousou	sobre	Ele.	Ao	instante,
seguiu-se	uma	voz:	Tu	és	o	meu	Filho	amado,	em	quem	me	comprazo”.⁴⁵⁴
Aparece,	com	toda	a	evidência,	a	Trindade:	o	Pai	na	voz,	o	Filho	no	homem
e	o	Espírito	na	pomba.	Para	onde	foram	enviados	os	apóstolos	em	nome
dessa	Trindade?	Vejamos	o	que	nós	vemos,	e	admira	que	eles	não	vejam,
conquanto	não	seja	certo	dizer	que	não	vejam,	mas	sim	que	fecham	os	olhos
à	luz	que	lhes	golpeia	as	faces.	Para	onde	foram	enviados	os	discípulos,	em
nome	do	Pai,	do	Filho	e	do	Espírito	Santo,	por	aquele	de	quem	foi	dito:
“Este	é	que	batiza”?	Disse-o,	com	efeito,	aos	ministros,	Aquele	que	Se
reservou	essa	potestade.
No	poder	de	batizar,	exclusivo	de	Cristo,	a	unidade	da	Igreja
6	Com	efeito,	é	isso	o	que	João	viu	em	Jesus,	e	conheceu	o	que	ainda	não
conhecia.	Não	porque	ignorasse	que	Ele	era	o	Filho	de	Deus,	ou	não
soubesse	que	fosse	o	Senhor,	que	fosse	o	Cristo,	nem,	por	outro	lado,	porque
ignorasse	que	Ele	devia	batizar	na	água	e	no	Espírito	Santo.	Também	isso
sabia.	Mas	que	o	Senhor	guardaria	para	si	de	tal	modo	essa	potestade	e	a
nenhum	de	seus	ministros	a	transferiria,	eis	o	que	João	aprendeu	na	pomba.
De	fato,	por	essa	potestade	que	Cristo	Se	reservou	apenas	para	Si	e	que	a
nenhum	dos	ministros	comunicou,	ainda	que	Se	tenha	dignado	batizar	por
meio	de	Seus	ministros,	por	essa	potestade,	digo,	firma-se	a	unidade	da
Igreja,	simbolizada	pela	pomba,	da	qual	foi	dito:	“Uma	só	é	a	minha
pomba,	uma	só	para	sua	mãe”.⁴⁵⁵	Ora,	meus	irmãos,	se	essa	potestade
passasse	do	Senhor	ao	ministro,	haveria,	como	já	disse,	tantos	batismos
quantos	ministros	houvesse	e	já	não	subsistiria	a	unidade	do	batismo.
Ainda:	a	revelação	da	pomba	a	João
7	Observai,	irmãos.	Antes	que	viesse	nosso	Senhor	Jesus	Cristo	ao	batismo,
João	sabia	que	Ele	batizava	no	Espírito	Santo.	De	fato,	é	depois	do	Seu
batismo	que	a	pomba	desceu	e,	por	ela,	João	conheceu	uma	propriedade
exclusiva	do	Senhor,	ao	ser-lhe	dito:	“Aquele	sobre	quem	vires	o	Espírito
descer	e	permanecer	é	que	batiza	no	Espírito	Santo”.⁴⁵ 	O	que	João
aprendeu	ali	foi	que	o	Senhor	batiza	com	tal	prerrogativa	que	Seu	poder
não	passaria	d’Ele	a	nenhum	outro,	ainda	que	este	administrasse.	E	como
provamos	que	João	já	sabia	que	o	Senhor	havia	de	batizar	no	Espírito
Santo,	de	forma	que	se	entenda	ter	aprendido	ele	na	pomba	que	o	Senhor	de
tal	modo	batizaria	no	Espírito	Santo,	que	aquele	poder	não	se	transferiria
para	homem	algum?	Como	o	provamos?	A	pomba	desceu	quando	o	Senhor
já	estava	batizado.	Mas,	antes	que	Ele	viesse	para	ser	batizado	por	João	no
Jordão,	dissemos	que	João	O	conhecia,	como	testemunham	as	palavras:	“Tu
vens	a	mim	para	ser	batizado?	Eu	é	que	tenho	necessidade	de	ser	batizado
por	ti”.⁴⁵⁷	Eis	que	ele	O	conhecia	como	o	Senhor,	como	o	Filho	de	Deus.	Mas
como	provamos	que	ele	já	sabia	que	o	Senhor	devia	batizar	no	Espírito
Santo?	Antes	que	o	Senhor	viesse	ao	rio,	quando	muitos	corriam	a	João
para	receberem	o	batismo,	este	lhes	dissera:	“Eu	vos	batizo	com	água,	para
a	conversão,	mas	Aquele	que	vem	depois	de	mim	é	mais	forte	do	que	eu.	De
fato,	eu	não	sou	digno	nem	ao	menos	de	Lhe	desatar	a	correia	das	sandálias.
Ele	vos	batizará	com	o	Espírito	Santo	e	com	fogo”.⁴⁵⁸	Ele	já	sabia	isso
também.	O	que	aprendeu,	pois,	por	meio	da	pomba,	para	não	ser	tido,
depois,	por	mentiroso?	–	Que	Deus	afaste	de	nós	tal	pensamento!	–	O	que
aprendeu	ele,	a	não	ser	que	Cristo	possuiria	essa	prerrogativa	pessoal,	pela
qual,	apesar	dos	muitos	ministros,	justos	ou	injustos,	que	haveriam	de
batizar,	não	se	atribuísse	a	santidade	do	batismo	senão	Àquele	sobre	quem
desceu	a	pomba,	e	de	quem	foi	dito:“Esse	é	que	batiza	com	o	Espírito
Santo”?	Batize	Pedro,	é	Ele	quem	batiza.	Batize	Paulo,	é	Ele	quem	batiza.
Batize	Judas,	é	Ele	quem	batiza.
A	unidade	do	batismo
8	Pois,	se	a	santidade	do	batismo	depender	da	diversidade	dos	méritos,	haja
vista	serem	os	méritos	diferentes,	haveria	batismos	diferentes;	e	cada	um
tanto	mais	pensaria	ter	recebido	algo	melhor,	quanto	mais	parecesse	que	o
teria	recebido	de	alguém	melhor.	Entendei,	meus	irmãos:	os	próprios
santos,	os	bons	que	pertencem	à	pomba,	que	pertencem	ao	lote	daquela
cidade	de	Jerusalém,	os	justos	da	Igreja,	de	quem	o	Apóstolo	diz:	“O
Senhor	conhece	os	que	Lhe	pertencem”,⁴⁵ 	possuem	graças	diferentes,	e	não
possuem	todos	os	mesmos	méritos.	Uns	são	mais	santos	do	que	outros,	uns
são	melhores	do	que	outros.	Por	que,	então,	se	um	for	batizado,	por
exemplo,	por	um	ministro	justo	e	santo,	e	outro	por	aquele	de	mérito
inferior	diante	de	Deus,	de	grau	inferior,	de	continência	inferior,	de	vida
inferior,	o	que	ambos	receberam	será,	apesar	disso,	uma	única	realidade,
uma	realidade	igual,	idêntica,	a	não	ser	porque	“Esse	é	que	batiza”?	Assim,
pois,	quando	um	homem	bom	e	outro	melhor	ainda	conferem	o	batismo,	não
receberam	num	caso	algo	bom,	e	noutro	algo	melhor,	mas	apesar	da
excelência	diferente	dos	ministros,	os	dois	receberam	algo	idêntico,	igual,
que	não	será	superior	em	um,	e	inferior	no	outro.	Igualmente,	quando	um
ministro	mau	batiza,	quer	porque	a	Igreja	o	ignore	ou	o	tolere	–	pois	os
maus	são	ignorados	ou	tolerados,	como	é	tolerada	a	palha	até	que,	por	fim,
seja	limpa	na	eira	–,	o	que	for	dado	será	único,	e	não	diferente	em
decorrência	dos	diferentes	ministros;	será	idêntico,	igual,	porque	“Esse	é
quem	batiza”.
O	envio	dos	ministros
9	Portanto,	diletíssimos,	vejamos	o	que	eles	não	querem	ver.	Não	é	que	não	o
vejam,	mas,	porque	se	afligem	ao	vê-lo,	isso	permanece	como	que	vedado	a
seus	olhos.	Para	onde	foram	enviados	os	discípulos	a	fim	de	batizarem	como
ministros,	em	nome	do	Pai,	e	do	Filho	e	do	Espírito	Santo?	Para	onde?
“Ide”,	disse	o	Senhor,	“e	batizai	as	nações”.	Ouvistes,	irmãos,	como	se
adquiriu	aquela	herança:	“Pede-me,	e	eu	te	darei	as	nações	em	herança,	e
estenderei	o	teu	domínio	até	as	extremidades	da	terra”.⁴ 	Ouvistes	como
“de	Sião	saiu	a	lei,	e	a	Palavra	de	Deus,	de	Jerusalém”.⁴ ¹	Com	efeito,	foi	lá
que	os	discípulos	ouviram:	“Ide	e	batizai	as	nações,	em	nome	do	Pai,	e	do
Filho	e	do	Espírito	Santo”.⁴ ²	Redobramos	nossa	atenção	quando	ouvíamos:
“Ide,	batizai	as	nações”.	E	em	nome	de	quem?	“Em	nome	do	Pai,	e	do	Filho
e	do	Espírito	Santo”.	Esse	é	o	único	Deus,	porque	não	se	disse:	Nos	nomes
do	Pai,	e	do	Filho	e	do	Espírito	Santo,	mas:	“Em	nome	do	Pai,	e	do	Filho	e
do	Espírito	Santo”.	Ouves	um	só	nome,	porque	há	um	só	Deus.	Assim	se	diz,
igualmente,	da	descendência	de	Abraão,	como	explica	o	apóstolo	Paulo:
“Em	tua	descendência,	serão	abençoadas	todas	as	nações”.	Não	disse:	Em
tuas	descendências,	como	se	se	referisse	a	muitos,	mas	referindo-se	a	um	só:
“Em	tua	descendência”,	que	é	Cristo.⁴ ³	Assim	como	ali	não	se	diz:	Em	tuas
descendências,	o	Apóstolo	pretendeu	ensinar-te	que	Cristo	é	um	só.	Da
mesma	forma,	quando	se	disse:	“Em	nome”	e	não:	nos	nomes	–	tal	como	ali:
“em	tua	descendência”	–,	prova-se	que	o	Pai,	o	Filho	e	o	Espírito	Santo	são
um	único	Deus.
Diversidade	e	reunião	das	línguas	na	unidade
10	Mas,	eis	que	os	discípulos	dizem	ao	Senhor:	Ouvimos	em	que	nome	nós
devemos	batizar.	Tornaste-nos	ministros,	e	disseste-nos:	“Ide,	batizai	em
nome	do	Pai,	e	do	Filho	e	do	Espírito	Santo”.	Para	onde	devemos	ir?	–	Para
onde?	Não	ouvistes?	Para	a	minha	herança.	Perguntais:	Para	onde	devemos
ir?	Para	tudo	quanto	comprei	ao	preço	de	meu	Sangue.	–	Para	onde,	então?
–	Para	as	nações,	diz	Ele.	Pensei	que	Ele	tivesse	dito:	Ide,	batizai	os
africanos,	em	nome	do	Pai,	e	do	Filho	e	do	Espírito	Santo…	Graças	a	Deus,
o	Senhor	resolveu	a	questão!	A	pomba	ensinou!	Graças	a	Deus!	Os
Apóstolos	foram	enviados	às	nações.	E,	se	foram	enviados	às	nações,	foram
enviados	a	todas	as	línguas.	Eis	o	que	significa	o	Espírito	Santo	dividido	nas
línguas	e	reunido	na	pomba.	De	um	lado,	as	línguas	se	dividem;	de	outro,	a
pomba	reúne.	As	línguas	dos	povos	concordaram	entre	si,	e	a	única	língua
da	África	discordou?	O	que	há	de	mais	evidente,	meus	irmãos?	Na	pomba,
está	a	unidade;	nas	línguas	das	nações,	a	sociedade.	Outrora,	também	as
línguas	discordaram	por	efeito	do	orgulho	e,	então,	de	uma	única	língua
foram	feitas	muitas.	Depois	do	dilúvio,	com	efeito,	certos	homens	soberbos,
como	que	tentando	munir-se	contra	Deus,	–	como	se	para	Deus	houvesse
algum	lugar	elevado,	ou	algum	refúgio	seguro	para	a	soberba	–	levantaram
uma	torre,	para	que	não	a	pudesse	destruir,	por	assim	dizer,	um	dilúvio,
caso	ocorresse	depois.⁴ ⁴	Tinham	ouvido	dizer,	pois,	e	lembravam	bem,	que
toda	a	iniquidade	fora	destruída	pelo	dilúvio.	Eles	não	queriam	abster-se	da
iniquidade	e	recorreram	à	altura	de	uma	torre	contra	o	possível	dilúvio.
Edificaram,	pois,	uma	torre	alta.	Deus	viu	a	soberba	deles	e	fez	com	que
neles	penetrasse	esta	confusão:	que,	ao	falarem,	não	se	entendessem.	Por
soberba,	fizeram-se	diferentes	as	línguas.⁴ ⁵	Se	a	soberba	ocasionou	a
diversidade	das	línguas,	a	humildade	de	Cristo	congregou-a.	O	que	aquela
torre	dividiu,	a	Igreja	reúne.	De	uma	só	língua,	fizeram-se	muitas.	Não	te
admires:	a	soberba	é	que	o	fez.	De	muitas	línguas,	fez-se	uma	só.	Não	te
admires:	a	caridade	é	que	o	fez!	Ainda	que	os	sons	das	línguas	sejam
diversos,	o	único	Deus	é	invocado	no	coração,	e	uma	única	paz	é	custodiada.
Como	então,	caríssimos	irmãos,	o	Espírito	Santo	deveu	manifestar-Se,	qual
sinal	de	certa	unidade,	senão	por	meio	de	uma	pomba,	a	fim	de	que	se
pudesse	dizer	à	Igreja	pacificada:	“Uma	só	é	a	minha	pomba”?⁴ 	Como	a
humildade	deveu	manifestar-se,	senão	por	meio	de	uma	ave	simples	e
gemente,	e	não	por	meio	de	uma	ave	soberba,	que	se	exalta	como	o	corvo?
A	pomba	do	batismo	de	Jesus	e	a	pomba	da	arca	são	a	caridade:	objeção
donatista
11	Mas	talvez	digam:	–	Já	que	há	uma	pomba,	e	ela	é	única,	não	pode	haver
batismo	à	margem	dessa	pomba	única.	Por	conseguinte,	se	a	pomba	está
contigo,	ou	se	tu	és	a	pomba,	deves	dar-me	o	que	eu	não	tenho	quando	vou	a
ti.	Conheceis	que	é	a	linguagem	deles.	Aparecer-vos-á	em	seguida	que	ela
não	vem	da	voz	da	pomba,	mas	do	clamor	do	corvo.	Preste	um	pouco	de
atenção	a	vossa	caridade,	e	temei	as	ciladas.	Sim,	acautelai-vos,	e	não
recebais	as	palavras	desses	contraditores	a	não	ser	para	repeli-las,	não	para
degluti-las,	ou	assimilá-las	nas	entranhas.	Fazei,	assim,	o	que	fez	o	Senhor,
quando	Lhe	apresentaram	a	bebida	amarga.	Ele	experimentou-a	e	recusou-
a.⁴ ⁷	Também	vós,	ouvi	e	rejeitai.	O	que	dizem	eles,	com	efeito?	Vejamos:	–
Tu	és	a	pomba,	ó	Igreja	Católica!	É	a	ti	que	foi	dito:	“Uma	só	é	a	minha
pomba,	é	uma	só	para	a	sua	mãe”.⁴ ⁸	Por	certo,	tais	palavras	foram	ditas	a
ti.	Digo	a	meu	interlocutor:	–	Espera,	não	me	interrogues.	Prova	primeiro
que	isso	me	tenha	sido	dito.	Se	me	foi	dito,	quero	ouvi-lo	logo	de	ti.	–	Sim,	na
verdade,	foram	ditas	a	teu	respeito.	–	Respondo	em	nome	da	Igreja
Católica:	–	A	mim!	O	que	acaba	de	ressoar	tão	somente	de	minha	boca,
meus	irmãos,	julgo	eu,	procede	também	dos	vossos	corações,	e	todos	nós
afirmamos	igualmente	que	foi	dito	à	Igreja	Católica:	“Uma	só	é	a	minha
pomba.	Ela	é	a	única	para	a	sua	mãe!”.	Replicam	eles,	porém:	–	Mas,	fora
da	pomba,	não	há	batismo.	Ora,	eu	fui	batizado	fora	dessa	pomba.	Não
tenho,	pois,	o	batismo.	E,	se	não	tenho	o	batismo,	por	que	não	mo	dás,
quando	venho	a	ti?
Acaso	não	pertencem	os	maus	à	pomba?
12	Interrogo	eu,	por	minha	vez.	Deixemos	de	lado,	por	um	momento,	a
questão	de	saber	a	quem	foi	dito:	“Uma	só	é	a	minha	pomba.	Ela	é	a	única
para	a	sua	mãe”.⁴ 	Ainda	havemos	de	procurar	essa	resposta.	Quer	tenha
sido	dita	para	mim,	quer	para	ti,	deixemos	de	lado	a	questão	de	saber	para
quem	se	disse.	O	que	proponho	agora	é	isto:	–	Se	a	pomba	é	simples,
inocente,	sem	fel,	pacífica	em	seus	beijos	e	não	cruel	em	suas	garras,
pergunto	se	pertencem	aos	membros	dessa	pomba	os	avarentos,	os	ladrões,
os	traidores,os	ébrios,	os	impuros.	São	eles	membros	dessa	pomba?	–	Não,
de	modo	algum,	ele	diz.	–	De	fato,	meus	irmãos,	quem	diria	uma	coisa
dessas?	Sem	falar	dos	restantes,	se	tão	somente	me	limito	aos	ladrões,
podem	estes	ser,	sem	dúvida,	membros	do	falcão,	e	não	da	pomba.	Os
milhafres	arrebatam	a	presa,	e	também	o	fazem	os	falcões	e	os	corvos.	Mas
as	pombas	não	arrebatam,	nem	dilaceram.	Logo,	os	ladrões	não	são
membros	da	pomba.	Ora,	será	que	nunca	houve	entre	vós	um	ladrão
sequer?	E	por	que	permanece	o	batismo	dado	pelo	falcão,	não	pela	pomba?
Por	que	não	batizais	entre	vós	mesmos,	depois	dos	ladrões,	dos	adúlteros,
dos	ébrios,	ou	dos	avarentos	que	há	entre	vós	mesmos?	Ou	serão	eles
membros	da	pomba?	Ou	desonrais	de	tal	maneira	a	vossa	pomba,	a	ponto
de	atribuir-lhe	membros	de	abutre?	O	que	mais,	meus	irmãos?	O	que
dizemos?	Há	na	Igreja	Católica	pessoas	boas	e	más.	Entre	aqueles,	porém,
só	há	gente	má.	Digo	isso,	talvez,	com	ânimo	hostil	e	também	devemos
examiná-lo	depois.	Aliás,	eles	mesmos	dizem,	igualmente,	que	há	ali	bons	e
maus.	Se	disserem	que	só	há	bons,	que	neles	acreditem	os	seus,	não	os
contradigo.	Que	digam:	Entre	nós	só	há	santos,	justos,	castos	e	sóbrios;	não
há	adúlteros,	nem	usurários,	nem	fraudadores,	nem	perjuros,	nem	ébrios.
Que	o	digam,	eu	não	atenderei	às	suas	línguas,	mas	toco	os	seus	corações.
Ora,	como	eles	são	conhecidos	tanto	para	nós,	como	para	vós	e	para	os	seus,
assim	como,	na	Igreja	Católica,	vós	sois	conhecidos	para	vós	e	para	eles,	que
não	nos	ponhamos	a	repreendê-los,	e	que	eles	deixem	de	vangloriar-se.
Confessamos,	por	nossa	parte,	que	há	bons	e	maus	na	Igreja,	os	quais	são
como	o	grão	e	a	palha.	Às	vezes,	quem	é	batizado	por	um	grão	é	palha,	e
quem	é	batizado	pela	palha	é	grão.	Ora,	se	o	batismo	administrado	pelo
grão	é	válido,	mas	o	administrado	pela	palha	é	inválido,	é	falsa	aquela
expressão:	“Esse	é	quem	batiza”.	Se,	por	outro	lado,	for	verdadeira	a
expressão:	“Esse	é	quem	batiza”,	é	válido	o	que	pela	palha	se	dá,	e	batiza	tal
como	a	pomba.	Não	que	aquele	mau	seja	a	pomba,	nem	que	faça	parte	dos
membros	da	pomba.	Não	se	pode	dizer	que	este	esteja	na	Igreja	Católica,
nem	entre	eles,	no	caso	de	dizerem	que	a	sua	igreja	é	a	pomba.	O	que
entendemos,	então,	irmãos?	É	coisa	manifesta	e	conhecida	por	todos	–	e	dela
são	bem	convencidos,	ainda	que	a	isso	resistam	–	que	nem	ali,	quando	os
maus	administram	o	batismo,	depois	deles	se	batiza,	nem	aqui,	quando	os
maus	batizam,	se	batiza	depois	deles.	Se	a	pomba	não	batiza	depois	do
corvo,	por	que	quer	o	corvo	batizar	depois	da	pomba?
Fora	da	pomba,	o	batismo	é	inútil
13	Preste	atenção	a	vossa	caridade!	Por	qual	razão	foi	sinalizado	não	sei	que
mais,	por	meio	da	pomba,	a	ponto	de	que,	uma	vez	batizado	o	Senhor,	viesse
a	Ele	uma	pomba,	isto	é,	o	Espírito	Santo,	sob	a	forma	de	pomba,	e
permanecesse	sobre	Ele,	e,	graças	à	vinda	da	pomba,	João	já	conhecesse
haver	no	Senhor	certa	potestade	própria	para	batizar?	Por	essa	potestade
própria,	como	eu	disse,	foi	consolidada	a	paz	da	Igreja.	Pode	acontecer	que
alguém	tenha	recebido	o	batismo	fora	da	pomba,	mas,	que	esse	batismo	lhe
seja	útil	fora	da	pomba,	não	é	possível.	Preste	atenção	a	vossa	caridade,	e
procure	compreender	o	que	digo.	Pois,	por	meio	desse	ardil,	eles	seduzem
amiúde	os	nossos	irmãos	que	são	preguiçosos	e	frios.	Sejamos,	pois,	mais
simples	e	mais	fervorosos.	Escutai	o	que	eles	dizem:	–	Recebi	o	batismo,	ou
não?
Respondo:	–	Sim,	tu	o	recebeste.	Ora,	se	o	recebi,	nada	mais	tens	a	dar-me.
Seguro	estou	de	que	o	recebi,	e	ainda	pelo	teu	testemunho:	tanto	digo	eu	que	o
recebi,	como	também	tu	o	confessas.	A	língua	de	ambos	deixa-me	seguro.	O
que,	então,	me	prometes?	Por	que	queres	que	me	faça	católico,	quando	não	hás
de	dar-me	algo	a	mais	e	confessas	que	já	recebi	o	que	tu	dizes	ter?	Ao	contrário,
quando	te	digo:	–	Vem	a	mim,	sustento	que	tu	não	o	tens,	tu	que	confessas	que
eu	o	possuo.	Por	que	me	dizes:	–	Vem	a	mim?
A	pomba	ensina:	o	batismo	de	nada	vale	sem	a	caridade
14	A	pomba	nos	ensina.	Por	cima	da	cabeça	do	Senhor,	ela	te	responde,	e
diz:	–	Tens	o	batismo,	mas	a	caridade	em	que	gemo,	tu	não	a	tens.	–	Que
significa	isso?	–	replica	ele.	–	Tenho	o	batismo,	mas	não	a	caridade?	Possuo
os	sacramentos,	e	a	caridade	não?	–	Não	grites.	Mostra-me	apenas	como
poderia	ter	a	caridade	quem	divide	a	unidade.	–	Mas	eu	tenho	o	batismo!	–
diz.	–	Sim,	tu	o	tens.	Mas	esse	batismo	sem	a	caridade	de	nada	te	aproveita;
porque	sem	a	caridade,	tu	nada	és.⁴⁷ 	Esse	batismo,	na	verdade,	mesmo	em
quem	nada	é,	não	se	pode	dizer	que	seja	nada;	esse	batismo	é	alguma	coisa,
representa	algo	de	grande,	por	causa	d’Aquele	de	quem	se	diz:	“Este	é
quem	batiza!”.	Mas	não	imagines	que	esse	batismo,	que	é	grande,	possa
servir-te	para	alguma	coisa	se	não	estiveres	na	unidade.	A	pomba	desceu
sobre	o	Senhor	que	acabava	de	ser	batizado,	como	que	para	dizer:	“Se
possuis	o	batismo,	permanece	na	pomba,	para	que	te	seja	útil	o	que
recebeste”.	Vem,	pois,	à	pomba,	dizemos	nós;	não	para	que	comeces	a	ter	o
que	não	tinhas,	mas	para	que	te	comece	a	aproveitar	o	que	tinhas.	Fora	da
pomba	tinhas,	pois,	o	batismo,	mas	para	a	ruína;	se	o	tiveres	dentro,	ele
começará	a	servir-te	para	a	salvação.
Veemente	apelo
15	É	pouco	dizer	que	o	batismo	não	te	seja	de	proveito:	ele	pode	trazer-te
até	mesmo	um	dano.	As	coisas	santas	podem	ser	também	prejudiciais.	Elas
encontram-se	nos	bons	para	a	sua	salvação;	porém,	nos	maus,	para	a	sua
condenação.⁴⁷¹	Certamente,	irmãos,	nós	sabemos	o	que	recebemos	e	é	santo,
sem	dúvida,	o	que	recebemos;	ninguém	diz	que	não	o	seja.	Mas,	o	que
afirma	o	Apóstolo?	“Aquele	que	come	e	bebe	sem	discernir	o	Corpo,	come	e
bebe	a	própria	condenação”.⁴⁷²	Ele	não	diz	que	se	trata	de	uma	coisa	má,
mas	que	o	mau,	ao	recebê-la	mal,	recebe	para	a	sua	condenação	a	boa	coisa
que	recebe.	Teria	sido	mau,	com	efeito,	aquele	bocado	de	pão	dado	a	Judas
pelo	Senhor?⁴⁷³	De	forma	alguma!	O	Médico	não	daria	veneno.	O	Médico
deu	a	saúde.	Mas,	ao	recebê-la	de	modo	indigno,	para	sua	própria	ruína
recebeu-a	aquele,	que	não	a	recebeu	em	paz.	O	mesmo	sucede,	portanto,
com	quem	é	batizado.	Diz	ele:	–	Tenho	eu	o	batismo.	–	Confesso-o,	tu	o	tens.
Mas	vê	bem	o	que	tens.	Precisamente	porque	o	tens,	serás	condenado.	–	Por
quê?	–	Porque	possuis	um	bem	da	pomba,	fora	da	pomba.	Caso	tenhas,	na
pomba,	o	que	é	da	pomba,	estarás	seguro.	Supõe	que	sejas	um	militar.	Se,
dentro	de	teu	exército,	trouxeres	o	distintivo⁴⁷⁴	do	imperador,	estás	em
segurança;	se,	porém,	o	trouxeres	fora,	não	somente	de	nada	te	servirá	esse
distintivo	para	a	milícia,	como	serás	até	mesmo	punido	como	desertor.	Vem,
pois,	vem!	E	não	digas:	Já	tenho	o	batismo,	e	isso	me	basta.	Vem,	a	pomba
chama	por	ti,	e	chama-te	gemendo.	Meus	irmãos,	eu	vos	digo:	chamai-os
gemendo,	não	disputando;	chamai-os	orando,	chamai-os	convidando,
chamai-os	jejuando.	Que,	pela	vossa	caridade,	eles	entendam	que	vos
compadeceis	deles.	Não	duvido,	meus	irmãos,	de	que,	se	virem	a	vossa	dor,
ficarão	cobertos	de	confusão,	e	voltarão	à	vida.⁴⁷⁵	Vem,	pois,	vem!	Não
temas.	Teme,	sim,	se	não	vieres;	ou	antes,	não	temas,	mas	chora.	Vem,
alegrar-te-ás,	se	vieres.	Gemerás,	por	certo,	nas	tribulações	da	peregrinação,
mas	alegrar-te-ás	na	esperança.⁴⁷ 	Vem	para	onde	está	a	pomba,	da	qual	foi
dito:	“Uma	só	é	a	minha	pomba,	ela	é	a	única	para	sua	mãe”.⁴⁷⁷	Vês	uma
única	pomba	sobre	a	cabeça	de	Cristo,	e	não	vês	as	línguas	espalhadas	em
toda	a	superfície	do	mundo?	É	o	mesmo	Espírito	que	se	manifesta	sob	a
forma	de	pomba	e	sob	a	forma	de	línguas.	E,	se	é	o	mesmo	Espírito	que	se
mostra	em	forma	de	pomba	e	de	línguas,	é	porque	o	Espírito	Santo	foi	dado
ao	mundo	todo,	um	mundo	de	que	te	separaste	e,	por	isso,	gritas	com	o
corvo,	em	vez	de	gemeres	com	a	pomba.	Vem,	pois!
O	batismo	fora	da	Igreja
16	Mas,	talvez	estejas	apreensivo,	e	digas:	Como	fui	batizado	fora	da	Igreja,
receio	ter-me	tornado	réu	por	isso,	por	tê-lo	recebido	fora.	Já	começaste	a
perceber	por	que	se	deve	gemer.	Dizes	a	verdade:	és	culpado,	não	por	ter
recebido	o	batismo,	mas	por	tê-lo	recebido	fora.	Guarda,	pois,	o	que
recebeste,	e	emenda	o	fato	deo	teres	recebido	fora.	Recebeste	um	bem	da
pomba,	mas	fora	da	pomba.	Duas	são	as	coisas	que	escutas:	recebeste,	e	o
recebeste	fora	da	pomba.	Aprovo	que	o	tenhas	recebido,	mas	censuro	que	o
tenhas	recebido	fora.	Guarda,	pois,	o	que	recebeste:	não	é	para	ser	alterado,
mas	reconhecido.	É	o	caráter	do	meu	Rei,	não	serei	sacrílego.	Corrijo	o
desertor,	não	altero	o	caráter.
Entra	na	alma	da	Igreja
17	Não	te	glories	do	teu	batismo	por	eu	afirmar	que	se	trata	do	mesmo
batismo;	eis	que	eu	o	digo:	é	o	mesmo	batismo,	e	toda	a	Igreja	Católica
afirma	a	mesma	coisa.	A	pomba	o	vê	e	o	reconhece,	e	geme	porque	o	tens
fora	dela.	Ela	vê	ali	o	que	reconhece	e	vê,	também,	o	que	deve	corrigir.	Vem,
é	o	mesmo	batismo.	Glorias-te	de	o	teres	recebido,	e	não	queres	vir?	O	que
dizer	então	sobre	os	maus,	que	não	pertencem	à	pomba?	A	pomba	te
responde:	Os	maus,	entre	os	quais	gemo,	que	não	pertencem	a	meus
membros	–	e	é	necessário	que	eu	gema	entre	eles	–,	não	têm	aquilo	de	que	tu
te	glorias?	Não	é	verdade	que	muitos	ébrios	têm	o	batismo,	assim	como
avaros	e	idólatras?	E	o	que	é	pior,	furtivamente?	Não	é	verdade	que	os
pagãos	vão	aos	ídolos,	ou	pelo	menos	iam,	publicamente?	Agora,	os	cristãos
recorrem	ocultamente	a	adivinhos	e	consultam	astrólogos.	Esses	também
possuem	o	batismo,	mas	a	pomba	geme	entre	os	corvos.	Por	que,	pois,	te
alegras	por	teres	o	batismo?	Possuis	o	que	o	mau	também	possui.	Procura
ter	a	humildade,	a	caridade,	a	paz.	Procura	adquirir	o	bem	que	ainda	não
tens,	para	que	te	aproveite	o	bem	que	tens.
O	mau	exemplo	de	Simão,	o	Mago
18	Tens	o	mesmo	que	teve	Simão,	o	Mago.⁴⁷⁸	Os	Atos	dos	Apóstolos	o
testemunham,	aquele	livro	canônico	que	se	há	de	recitar	todos	os	anos	na
Igreja.	Como	sabeis,	tal	livro	é	recitado	cada	ano	durante	o	tempo	anual	de
festa	que	se	segue	à	Paixão	do	Senhor.	Nele	está	escrito	como	o	Apóstolo,
uma	vez	convertido,	transformou-se	de	perseguidor	em	pregador;⁴⁷ 	e
também	como,	no	dia	de	Pentecostes,	o	Espírito	Santo	foi	enviado	sob	a
forma	de	línguas	repartidas	como	que	de	fogo.⁴⁸ 	Lemos	ainda	ali,	como	um
grande	número	de	habitantes	da	Samaria	abraçou	a	fé,	graças	à	pregação
de	Filipe.	Esse	Filipe	entende-se	como	um	dos	Apóstolos,	ou	como	um	dos
diáconos;	pois	lemos,	nos	mesmos	Atos,	que	foram	ordenados	sete	diáconos,
entre	os	quais	havia	também	um	de	nome	Filipe.	Graças	à	pregação	de
Filipe,	portanto,	os	samaritanos	abraçaram	a	fé.	A	Samaria	começou	a
encher-se	de	fiéis.	Simão,	o	Mago,	encontrava-se	ali.	Por	meio	de	suas	artes
mágicas,	confundia	o	povo,	a	ponto	de	crerem	que	ele	era	a	força	mesma	de
Deus.⁴⁸¹	Impressionado,	não	obstante,	pelos	prodígios	operados	por	Filipe,
também	ele	creu.	Mas	os	fatos	que	se	seguiram	demonstram	de	que	tipo	era
a	fé	de	Simão.	Eis	que	Simão	foi,	também	ele,	batizado.	Os	apóstolos	que
estavam	em	Jerusalém	tiveram	conhecimento	de	tudo	isso.	E	foram
enviados	até	lá	Pedro	e	João,	tendo	encontrado	grande	número	de
batizados.	Como	nenhum	deles	tinha	recebido	ainda	o	Espírito	Santo	na
forma	em	que	então	descia	sobre	eles	–	de	modo	que,	para	mostrar	o
significado	das	nações	que	haviam	de	crer,	falassem	em	línguas	aqueles
sobre	os	quais	o	Espírito	Santo	descia	–,	os	apóstolos	impuseram	as	mãos
sobre	eles,	orando	por	eles,	e	eles	receberam	o	Espírito	Santo.	Simão,	o
Mago,	que	ainda	não	era	pomba	na	Igreja,	mas	corvo,	porque	procurava	os
seus	próprios	interesses	e	não	os	de	Jesus	Cristo⁴⁸²	–	razão	pela	qual	mais
amara	nos	cristãos	o	poder,	do	que	a	justiça	–,	viu	que	o	Espírito	Santo	era
dado	pela	imposição	das	mãos	dos	apóstolos	–	na	verdade,	não	porque	eles
mesmos	O	dessem,	mas	porque,	ao	rezarem	eles,	era	dado	–	e	disse	aos
apóstolos:	“Que	dinheiro	quereis	receber	de	mim,	para	que	também	por
imposição	de	minhas	mãos	o	Espírito	seja	dado?”.	Replicou-lhe	Pedro:
“Pereça	o	teu	dinheiro	e	tu	com	ele,	porque	acreditaste	ser	possível	comprar
com	dinheiro	o	dom	de	Deus”.⁴⁸³	A	quem	disse	Pedro:	Pereça	o	teu	dinheiro
e	tu	com	ele?	Certamente,	a	um	batizado;	pois	Simão	já	havia	recebido	o
batismo.	Não	se	encontrava	unido,	contudo,	às	entranhas	da	pomba.	Escuta
o	motivo	pelo	qual	não	estava	unido.	Presta	atenção	às	próprias	palavras	do
apóstolo	Pedro,	pois	segue	o	texto:	“Nesta	fé,	não	tens	parte	nem	herança,
porque	vejo	que	estás	no	fel	da	amargura”.	A	pomba	não	tem	fel,	Simão	o
tinha.	Eis	por	que	estava	separado	das	entranhas	da	pomba.	De	que	lhe
servia,	pois,	o	batismo?	Não	te	glories,	portanto,	do	batismo,	como	se	te
fosse	suficiente	a	salvação	decorrente	dele.	Não	te	irrites,	depõe	o	teu	fel,
vem	à	pomba.	É	nela	que	te	será	útil	aquilo	que,	fora	dela,	não	somente	de
nada	te	serve,	como	também	te	prejudica.
O	mesmo	batismo	é	dado	aos	católicos	e	aos	donatistas
19	E	não	digas:	“Não	vou,	porque	fui	batizado	fora”.	Começa	a	ter
caridade,	começa	a	produzir	fruto.	Encontre-se	fruto	em	ti,	e	a	pomba	te
introduzirá	em	seu	interior.	Encontramos	isso	na	Escritura:	a	arca	de	Noé
fora	construída	com	madeiras	incorruptíveis.⁴⁸⁴	Madeiras	essas	que
significam	os	fiéis	que	pertencem	a	Cristo.	Com	efeito,	como,	a	propósito	do
templo,	os	homens	fiéis	são	chamados	de	pedras	vivas	com	as	quais	o	templo
é	construído,⁴⁸⁵	assim,	os	homens	que	perseveram	na	fé	são	chamados	de
madeiras	incorruptíveis.	Nessa	arca,	pois,	incorruptíveis	eram	as	madeiras,
visto	que	a	arca	é	a	Igreja.	Aí	é	que	a	pomba	batiza.	A	arca	é	levada	sobre	a
água,	e	as	madeiras	incorruptíveis	foram	batizadas	dentro.	Mas
encontramos	certas	madeiras	que,	fora	da	arca,	foram	batizadas:	todas	as
árvores	que	havia	pelo	mundo	afora.	A	água	era,	todavia,	a	mesma,	não
outra.	Proviera	ela	do	céu	e	do	abismo	das	fontes.	Era	a	mesma	água	em
que	foram	batizadas	as	madeiras	incorruptíveis,	que	estavam	na	arca,	e	em
que	o	foram	aquelas	outras,	de	fora.	Soltou-se	uma	pomba.	Não	encontrou
ela,	de	início,	um	repouso	para	os	pés	e	voltou	à	arca.	Tudo	estava	inundado
pelas	águas;	e	ela	preferiu	voltar	a	receber	novo	batismo.	Aquele	corvo,	por
sua	vez,	foi	enviado	antes	que	abaixassem	as	águas;	rebatizado,	não	quis
voltar	e	pereceu	nas	mesmas	águas.	Livre-nos	Deus	da	morte	daquele	corvo!
Por	que	não	regressou,	senão	porque	foi	interceptado	pelas	águas?	A
pomba,	pelo	contrário,	ao	não	encontrar	repouso	para	os	pés,	ainda	que	as
águas	clamassem	por	ela	de	todos	os	lados:	–	“Vem,	vem,	batiza-te	aqui!”	–
como	gritam	esses	hereges:	“Vem,	vem,	aqui	tens	o	batismo!”	–,	retornou
para	a	arca.	Noé	enviou-a	novamente,	tal	como	a	arca	vos	envia,	para	que
lhes	faleis.	E	o	que	fez	a	pomba	depois?	Porque	havia	madeira	batizada	fora
da	arca,	levou	à	arca	um	ramo	de	oliveira.	Esse	ramo	tinha	folhas	e	frutos:
que	em	ti	não	haja	somente	palavras,	não	haja	somente	folhas,	que	haja
fruto	e	regresses	à	arca;	e	não	por	ti	mesmo,	a	pomba	te	faz	voltar.	Gemei	aí
por	fora,	a	fim	de	fazê-los	voltar	para	dentro.
O	valor	da	caridade
20	Se,	além	disso,	esse	fruto	da	oliveira	for	bem	examinado,	encontrarás	o
que	era.	O	fruto	da	oliveira	representa	a	caridade.	Como	o	provamos?
Assim	como	o	azeite	não	se	deixa	submergir	por	líquido	algum,	mas,	depois
de	atravessados	todos,	emerge	e	fica	por	cima,	assim	também	se	dá	com	a
caridade.	Ela	não	pode	ficar	presa	embaixo.	É	necessário	que	fique	por
cima.	Dela	diz,	por	conseguinte,	o	Apóstolo:	“Vou	indicar-vos	um	caminho
superior”.	Do	azeite	dissemos	que	fica	por	cima;	para	que	não	reste	dúvida
de	que	a	respeito	da	caridade	disse	o	Apóstolo:	“Vou	indicar-vos	um
caminho	superior”,	ouçamos	o	que	se	segue:	“Ainda	que	eu	falasse	em
línguas,	as	dos	homens	e	as	dos	anjos,	se	eu	não	tivesse	a	caridade,	seria
como	um	bronze	que	soa,	ou	como	um	címbalo	que	retine”.⁴⁸ 	–	Vai,	agora,
Donato,	e	grita:	“Eu	sou	eloquente!”.	Vai	e	clama:	“Eu	sou	douto!”.	Qual	a
medida	da	tua	eloquência,	a	medida	da	tua	doutrina?	Por	acaso	falaste	as
línguas	dos	anjos?	Mesmo	que	as	tivesses	falado,	no	entanto,	se	não	tiveres	a
caridade,	eu	não	ouviria	senão	bronzes	a	soar,	címbalos	a	retinir.	Ora,	busco
alguma	solidez;	oxalá	encontre	fruto	nas	folhas:	não	haja	só	palavras!	Haja
azeitona	e…	que	eles	voltem	à	arca.
Sem	a	caridade,	a	fé	não	tem	proveito21	Dirás,	contudo:	“Eu	tenho	o	sacramento”.	E	dizes	a	verdade:	o
sacramento	é	divino;	tens	o	batismo	e	eu	o	confesso.	Mas	o	que	diz	o	mesmo
Apóstolo?	“Ainda	que	eu	conhecesse	todos	os	mistérios,⁴⁸⁷	e	tivesse	o	dom	da
profecia,	ainda	que	tivesse	toda	a	fé,	a	ponto	de	transportar	os	montes…”;⁴⁸⁸
para	que	não	venhas	tu	a	dizer:	“Abracei	a	fé,	isto	me	basta!”.	E	o	que	diz	o
apóstolo	Tiago?	“Também	os	demônios	creem,	e	estremecem”.⁴⁸ 	A	fé	é	uma
grande	coisa,	mas,	sem	a	caridade,	de	nada	aproveita.	Os	demônios	também
confessavam	Cristo.	Crendo,	portanto,	não	amando,	é	que	diziam:	“Que
queres	conosco,	Jesus	Nazareno?”.⁴ 	Possuíam	a	fé,	mas	não	a	caridade;
por	isso,	eram	demônios.	Não	te	glories	da	fé,	ainda	és	comparável	aos
demônios.	Não	digas	a	Cristo:	“O	que	há	entre	mim	e	ti?”.	É	a	unidade	de
Cristo	que	te	fala:	“Vem,	conhece	a	paz,	volta	às	entranhas	da	pomba.	Foste
batizado	fora.	Produze	fruto,	e	regressas	à	arca”.
Para	que	vos	torneis	bons
22	Mas	replicas	ainda:	–	Se	somos	maus,	por	que	nos	procurais?	–	Para	que
vos	torneis	bons.	Procuramos-vos	precisamente	porque	sois	maus.	Se	não	o
fôsseis,	já	vos	teríamos	encontrado,	não	estaríamos	à	vossa	procura.	Quem	é
bom,	já	foi	encontrado;	e	quem	é	mau,	é	ainda	procurado.	Eis	porque	vos
procuramos:	regressai	à	arca.	–	Mas	eu	já	tenho	o	batismo!	–	“Ainda	que	eu
conhecesse	todos	os	mistérios,⁴ ¹	e	tivesse	o	dom	da	profecia,	ainda	que
tivesse	toda	a	fé,	a	ponto	de	transportar	os	montes,	se	não	tivesse	a	caridade,
eu	nada	seria”.⁴ ²	Que	eu	veja	aí	o	fruto,	que	eu	veja	aí	a	azeitona;	e	voltas	à
arca!
A	caridade	é	a	veste	nupcial
23	–	Mas	o	que	dizes	ainda?	–	Eis	que	suportamos	muitos	males.	–	Prouvera
a	Deus	que	os	suportásseis	por	Cristo,	e	não	por	vossas	próprias	honras!
Ouvi	o	que	se	segue:	vangloriam-se	eles,	por	vezes,	de	fazer	muitas	esmolas,
de	dar	aos	pobres,	de	sofrer	incômodos;	mas	suportam	isso	por	Donato,	e
não	por	Cristo.	Vê	de	que	modo	sofres,	pois	se	sofres	por	Donato,	é	por	um
orgulhoso	que	sofres.	Não	estás	na	pomba,	se	sofres	por	Donato.
Não	era	ele	um	amigo	do	Esposo,	pois	se	o	fosse,	buscaria	a	glória	do	Esposo,	e
não	a	sua	própria.⁴ ³	Vê	o	amigo	do	Esposo	a	dizer:	“Esse	é	quem	batiza!”.⁴ ⁴
Não	era,	pois,	um	amigo	do	Esposo,	aquele	por	quem	sofres.	Não	tens	a	veste
nupcial.	Se	ao	banquete	vieste,	tens	de	ser	lançado	fora.	Ou	melhor,
precisamente	porque	foste	lançado	fora,	és	um	miserável.	Regressa	de	uma	vez,
e	não	te	glories.	Ouve	o	que	diz	o	Apóstolo:	“Ainda	que	eu	distribuísse	todos	os
meus	bens	aos	pobres,	ainda	que	entregasse	o	meu	corpo	a	arder,	se	não	tivesse	a
caridade…”.⁴ ⁵	Eis	o	que	não	tens.	“Ainda	que	entregasse	o	meu	corpo	a
arder...”,	diz	ele	–	e	isso,	por	certo,	em	nome	de	Cristo,	mas,	como	há	muitos	que
o	fazem	por	orgulho,	e	não	por	caridade:	“Ainda	que	entregasse	o	meu	corpo	a
arder,	se	não	tivesse	a	caridade,	isso	de	nada	me	adiantaria”.	Por	caridade,
fizeram-no	os	mártires,	que	sofreram	no	tempo	das	perseguições.	Fizeram-no	por
caridade,	mas	estes	o	fazem	por	vaidade	e	por	soberba,	pois,	quando	vem	a	faltar
um	perseguidor,	eles	se	atiram	a	si	mesmos	nos	precipícios.	–	Vem,	pois,	para
teres	a	caridade!	–	Mas	nós	possuímos	mártires…	–	Que	mártires?	Não	são
pombas;	por	isso	tentaram	voar,	mas	caíram	do	alto	dos	rochedos…
Conselhos	aos	fiéis
24	Vede,	meus	irmãos,	como	tudo	brada	contra	eles:	todas	as	páginas
divinas,	toda	a	profecia,	todo	o	Evangelho,	todas	as	cartas	apostólicas,	todos
os	gemidos	da	pomba.	E,	todavia,	ainda	não	acordam,	ainda	não	se
despertam.	Se	nós	somos	a	pomba,	gemamos,	suportemos,	esperemos:	a
misericórdia	de	Deus	intervirá	para	que	o	fogo	do	Espírito	Santo	ferva	na
vossa	simplicidade,	e	eles	virão.	É	preciso	não	desesperar.	Rezai,	pregai,
amai:	o	Senhor	é,	sem	sombra	de	dúvida,	poderoso!	Alguns	já	começaram	a
conhecer	a	própria	desfaçatez:	muitos	a	reconheceram,	muitos
enrubesceram.	Cristo	intervirá	para	que	outros	também	a	reconheçam.	E,
certamente,	meus	irmãos,	que	pelo	menos	fique	ali	tão	somente	a	palha,
todos	os	grãos	sejam	recolhidos;	que	tudo	o	que	entre	eles	tiver	frutificado
volte	à	arca,	por	meio	da	pomba.
Última	objeção	dos	donatistas
25	Por	outro	lado,	uma	vez	que	perdem	espaço	por	toda	parte,	o	que
objetam	contra	nós,	ao	não	encontrarem	mais	o	que	dizer?	–	Tomaram
nossas	quintas,	levaram	nossas	propriedades	–	apresentam	como	prova
testamentos	de	homens.	–	Eis	aqui,	dizem,	um	terreno	que	Gaio	Sejo	doou	à
igreja	presidida	por	Faustino.	De	que	igreja	era	bispo	esse	Faustino?	Que
igreja	é	essa?	A	igreja,	afirmam	eles,	da	qual	Faustino	era	o	chefe.	Mas
Faustino	não	era	chefe	de	uma	igreja,	mas	de	um	partido.⁴ 	A	Igreja,
porém,	é	a	pomba.	Por	que	clamas?	Não	devoramos	essas	quintas;	que	a
pomba	as	tenha!	Procure-se	saber	quem	é	a	pomba,	e	essa	as	tenha.	Pois,
vós	o	sabeis,	meus	irmãos,	essas	quintas	não	pertencem	a	Agostinho.	E	se
não	o	sabeis,	e	julgais	que	me	regozijo	com	a	posse	delas,	Deus	o	sabe.	Ele
conhece	o	que	penso	eu	dessas	quintas,	o	quanto	elas	me	fazem	sofrer.
Conhece	meus	gemidos,	se	é	que	Se	dignou	conceder-me	algo	da	pomba.
Estão	aí	as	quintas.	Com	que	direito	as	reivindicais?	Com	direito	divino	ou
humano?	Respondei!	Encontramos	o	direito	divino	nas	Escrituras;	o	direito
humano,	nas	leis	dos	reis.	Em	virtude	de	que	direito,	cada	pessoa	possui	o
que	possui?	Não	é	em	virtude	do	direito	humano?	Pois,	pelo	direito	divino,
“Do	Senhor	é	a	terra,	com	tudo	o	que	ela	contém”.⁴ ⁷	Deus	fez,	de	um	só
barro,	pobres	e	ricos.	E	a	mesma	terra	sustenta	pobres	e	ricos.	Em	virtude
do	direito	humano,	contudo,	é	que	se	diz:	Esta	quinta	é	minha,	esta	casa	é
minha,	este	escravo	é	meu.	Trata-se,	pois,	de	um	direito	humano,	de	um
direito	dos	imperadores.	Por	quê?	Porque	Deus	distribui	ao	gênero	humano
os	próprios	direitos	humanos	por	meio	dos	imperadores	e	dos	reis	da	terra.
Quereis	que	leiamos	as	leis	dos	imperadores	e	tratemos,	de	acordo	com	elas,
a	questão	das	quintas?	Pois,	se	pretendeis	possuí-las	em	virtude	de	um
direito	humano,	recitemos	as	leis	dos	imperadores	e	vejamos	se	eles
quiseram	que	alguma	coisa	fosse	possuída	pelos	hereges.	Que	tenho	eu	a	ver
com	o	imperador?	–	dirás.	É	graças	ao	direito	dele	que	possuis	a	terra.	Ou,
então,	suprime	o	direito	dos	imperadores;	e	quem	ousará	dizer:	Esta	quinta
é	minha,	ou	este	escravo	é	meu,	ou	esta	casa	é	minha?	Mas	se,	para	que	os
homens	tivessem	em	propriedade	essas	coisas,	receberam	tais	direitos	dos
reis,	quereis	que	leiamos	as	leis,	a	fim	de	vos	alegrardes	pelo	fato	de	terdes
um	jardim	que	seja,	e	não	imputardes	senão	à	mansidão	da	pomba	que	aí	se
vos	permita	pelo	menos	permanecer?	De	fato,	leem-se	leis	muito	claras,	nas
quais	preceituaram	os	imperadores	que	nada	ousassem	possuir	em	nome	da
Igreja	os	que,	à	margem	da	comunhão	da	Igreja	Católica,	usurpam	para	si
o	nome	cristão	e	não	querem	cultuar	em	paz	o	Autor	da	paz.
Conclusão
26	Insistem	eles:	Mas,	o	que	temos	a	ver	com	o	imperador?	Eu	já	o	disse:
trata-se	do	direito	humano.	E,	no	entanto,	um	apóstolo	quis	que	se
obedecesse	aos	reis,	que	se	honrassem	os	reis,	e	disse:	“Honrai	o	rei”.⁴ ⁸	Não
digas:	Que	me	importa	o	rei?	Pois,	o	que	te	importa	a	propriedade?	É	pelo
direito	dos	reis	que	se	possuem	as	propriedades.	Disseste:	Que	me	importa	o
rei?	Não	fales,	então,	que	as	propriedades	são	tuas,	porque	renunciaste	aos
mesmos	direitos	humanos	por	força	dos	quais	se	possuem	as	propriedades.
Retomas,	por	fim:	Trata-se	de	direito	divino.	Nesse	caso,	recitemos	o
Evangelho.	Vejamos	até	onde	se	estende	a	Igreja	Católica	de	Cristo,	sobre
quem	desceu	a	pomba	que	ensinou:	“Esse	é	que	batiza”.⁴ 	Como,	pois,
poderia	possuir	por	direito	divino	quem	diz:	Sou	eu	que	batizo,	quando	a
pomba	diz:	“Esse	é	que	batiza”	e	quando	a	Escritura	diz:	“É	única	a	minha
pomba,	ela	é	única	para	a	sua	mãe”?⁵ 	Por	que	dilacerastes	a	pomba?
Antes,	por	que	dilacerastes	vossas	próprias	entranhas?	–	porque	para	vós	a
dilacerais,	a	pomba	permanece	intacta.	Portanto,	meus	irmãos,	já	que	eles
nada	mais	têm	a	dizer	em	parte	alguma,	eu	digo	o	que	têm	a	fazer:	venham
à	Igreja	Católica	e	conosco	possuirão,	não	somente	a	terra,mas	também
Aquele	que	fez	o	céu	e	a	terra.
HOMILIA	7
As	testemunhas	apontam	o	salvador	(Jo	1,34-51)
Motivos	da	falsa	e	da	verdadeira	alegria
1	Alegramo-nos	com	a	vossa	presença.	Alegramo-nos	com	a	vossa	afluência,
pois	viestes	com	uma	disposição	tal,	que	ultrapassa	o	que	pudemos	esperar.
É	isto	o	que	nos	alegra	e	consola	em	meio	a	todos	os	trabalhos	e	perigos
desta	vida:	o	vosso	amor	a	Deus,	vosso	piedoso	esforço,	vossa	firme
esperança	e	vosso	fervor	de	espírito.	Ouvistes,	quando	se	lia	o	salmo,	que,
em	meio	a	este	mundo,	o	pobre	e	indigente	clama	a	Deus.⁵ ¹	Essa	voz,	com
efeito,	que	amiúde	escutastes	e	de	que	vos	deveis	lembrar,	não	é	a	voz	de	um
único	homem	e,	contudo,	é	a	voz	de	um	único	homem.	Não	é	a	de	um	só
homem,	porque	há	muitos	fiéis,	grãos	numerosos	a	gemer	no	meio	das
palhas,	espalhados	pelo	mundo	todo;	é	de	um	único	homem,	no	entanto,
porque	todos	são	membros	de	Cristo	e,	por	conseguinte,	formam	um	só
Corpo.	Esse	povo	pobre	e	indigente	não	sabe	o	que	seja	alegrar-se	com	o
mundo:	sua	dor	é	interior;	e	igualmente	interior,	a	sua	alegria.	Nessa
interioridade,	não	penetra	senão	Aquele	que	ouve	a	quem	geme	e	coroa	a
quem	espera.	A	alegria	deste	mundo	é	vaidade.	Com	grande	ansiedade,
espera-se	que	venha,	mas,	quando	chega,	não	se	pode	reter.	O	dia	de	hoje,
devo	dizer,	é	dia	de	alegria	para	os	perdidos	nesta	cidade;	amanhã,	por
certo,	não	existirá.	Esses	mesmos	homens	tampouco	serão	amanhã	o	que	são
hoje.	Passam	todas	as	coisas,	voam	todas	e,	como	fumaça,	esvaecem.	Ai
daqueles	que	amam	tais	realidades!	Toda	alma	segue	o	que	ama.	“Toda	a
carne	é	feno,	e	toda	a	honra	da	carne	é	como	a	flor	do	feno.	Secou-se	o	feno,
caiu	a	flor,	mas	a	Palavra	do	Senhor	permanece	para	sempre”.⁵ ²	Eis	o	que
deves	amar,	se	quiseres	permanecer	para	sempre.	Poderias	dizer,	porém:
Como	posso	eu	apreender	o	Verbo	de	Deus?	Ora,	“O	Verbo	Se	fez	carne	e
habitou	entre	nós”.⁵ ³
Constatações
2	Por	isso,	caríssimos,	caiba	à	nossa	pobreza	e	indigência	condoer-nos
daqueles	que	julgam	estar	na	abundância,	pois	a	alegria	deles	é	como	a	dos
loucos.	Tal	como	o	louco	se	entrega	habitualmente	à	alegria	em	sua	loucura,
e	ri,	e	tem	dó	de	quem	está	são;	assim,	também	nós,	caríssimos,	se
recebemos	o	remédio	que	vem	do	céu	–	pois	todos	nós	éramos	também
loucos	–,	uma	vez	que	fomos	curados,	por	não	amarmos	mais	o	que
amávamos	antes,	é	preciso	que	gemamos	diante	de	Deus,	por	aqueles	que
ainda	se	encontram	na	loucura.	Deus	é,	de	fato,	poderoso	para	salvá-los
também.	É	necessário	que	olhem	para	si	mesmos,	e	se	desagradem	de	si.
Querem	assistir	a	espetáculos,	mas	não	querem	assistir	a	seu	próprio
espetáculo.	Se,	por	um	momento,	olharem	para	si,	verão	a	sua	confusão.
Enquanto	esperamos	que	isso	se	dê,	outras	sejam	as	nossas	ocupações,
outras	sejam	as	distrações	de	nossa	alma.	Mais	vale	a	nossa	dor,	que	a
alegria	deles.	No	tocante	ao	número	dos	irmãos,	é	difícil	que	haja	alguém
dentre	os	varões	que	se	tenha	deixado	arrastar	por	aquela	festa.	Quanto,
porém,	ao	número	das	irmãs,	contrista-nos	e	é	mais	de	deplorar	que	não
corram	à	igreja,	antes,	precisamente	elas,	a	quem	se	não	o	temor,	pelo
menos	o	pudor	deveu	manter	afastadas	de	um	espetáculo	público.	Ponha	os
olhos	nisso	Aquele	que	o	vê,	e	a	Sua	misericórdia	intervenha	para	curar	a
todos.	Quanto	a	nós,	que	aqui	estamos	reunidos,	alimentemo-nos	dos
manjares	de	Deus,	e	seja	Sua	Palavra	a	nossa	alegria.	Convidou-nos	Ele,
com	efeito,	a	Seu	Evangelho.	Ele	mesmo	é	nosso	alimento,	em	relação	ao
qual	nada	há	de	mais	doce,	mas	só	se	alguém	tiver	no	coração	um	paladar
sadio.⁵ ⁴
Revisão	dos	sermões	precedentes
3	Julgo	que	a	vossa	caridade	bem	se	lembra	de	que	este	Evangelho	vem
sendo	exposto	por	meio	de	leituras	convenientes,	de	forma	ordenada.	Penso,
também,	que	não	vos	escapou	o	que	já	foi	explicado,	máxime	os	comentários
mais	recentes,	a	respeito	de	João	e	da	pomba.	Sobre	João,	a	saber,	dissemos
o	que	aprendeu	de	novo	no	Senhor	por	meio	da	pomba,	ele	que	já	conhecia
o	Senhor.	E	isso	foi	descoberto	graças	à	inspiração	do	Espírito	Santo,	haja
vista	que	João	já	conhecia,	certamente,	o	Senhor,	mas	que	o	mesmo	Senhor
é	que	haveria	de	batizar,	sem	transmitir	a	ninguém	mais	a	potestade	de
fazê-lo,	isso	aprendeu	pela	pomba,	porque	a	ele	fora	dito:	“Aquele	sobre
quem	vires	o	Espírito	Santo	descer	e	permanecer,	é	esse	que	batiza	no
Espírito	Santo”.⁵ ⁵	O	que	vem	a	significar:	“Esse	é	que	batiza”?	Quer	dizer
que	não	batiza	outro,	ainda	que	Ele	venha	a	batizar	por	meio	de	outrem.
Por	que	João	o	aprendeu	por	meio	da	pomba?	Muito	já	foi	dito	a	esse
respeito,	não	posso	nem	é	preciso	repetir	tudo.	Lembrarei,	não	obstante,	que
é,	antes	de	tudo,	por	causa	da	paz;	pois	a	pomba	trouxe	para	a	arca	também
as	madeiras	que	foram	batizadas	fora,	por	ter	achado	fruto	nelas,	conforme
vos	recordais	da	pomba	enviada	da	arca	por	Noé,	a	qual	nadava	sobre	as
águas,	era	lavada	pelo	batismo,	mas	não	se	submergia.	Depois	que	foi	solta
por	Noé,	a	pomba	retornou	com	um	ramo	de	oliveira,	que	não	tinha,	porém,
apenas	folhas,	também	tinha	fruto.⁵ 	O	que	se	há	de	desejar	com	relação	a
nossos	irmãos	que	se	batizaram	fora	é	que	tragam	fruto;	a	pomba	não	os
deixará	fora,	sem	que	os	conduza	à	arca.	Todo	esse	fruto	é,	pois,	a	caridade,
sem	a	qual	o	homem	nada	é,	seja	qual	for	a	outra	coisa	que	tiver.
Recordamos	já	e	muito	abundantemente	repassamos	isso,	que	foi	dito	pelo
Apóstolo.	Diz	ele,	pois:	“Ainda	que	eu	falasse	em	línguas,	a	dos	homens	e	a
dos	anjos,	se	eu	não	tivesse	a	caridade	seria	como	um	bronze	que	soa,	ou
como	um	címbalo	que	retine.	Ainda	que	eu	tivesse	toda	a	ciência,	o
conhecimento	de	todos	os	mistérios⁵ ⁷	e	de	toda	a	profecia,	ainda	que	tivesse
toda	a	fé…”	–	o	que	queria	sugerir	com	“toda	a	fé”?	–	“…	a	ponto	de
transportar	os	montes,	se	não	tivesse	a	caridade,	eu	nada	seria.	Ainda	que
eu	distribuísse	todos	os	meus	bens	aos	pobres,	ainda	que	entregasse	o	meu
corpo	a	arder,	se	não	tivesse	a	caridade,	isso	de	nada	me	serviria”.⁵ ⁸	Ora,
não	podem	pretender	de	modo	algum	possuir	a	caridade	os	que	dividem	a
unidade.	Eis	o	que	foi	dito;	vejamos	o	que	segue.
O	Filho	de	Deus	e	os	filhos	adotivos
4	“João	deu	testemunho,	porque	viu”.	E	que	testemunho	deu	ele?	“De	que
Ele	é	o	Filho	de	Deus”.⁵ 	Era	necessário	que	batizasse	Aquele	que	é	o	Filho
único	de	Deus,	não	um	filho	adotivo.	Os	filhos	adotivos	são	os	ministros	do
Único.	O	Único	possui	a	potestade;	os	filhos	adotivos,	o	ministério.	Pode
acontecer,	entretanto,	que	batize	um	ministro	que	não	pertença	ao	número
dos	filhos,	porque	vive	mal	e	procede	mal.	O	que	nos	consola?	“Esse	é	que
batiza”.⁵¹
“Eis	o	Cordeiro	de	Deus”
5	“No	dia	seguinte,	João	se	achava	lá,	de	novo,	com	dois	de	seus	discípulos.
Ao	ver	Jesus	que	passava,	disse:	Eis	o	Cordeiro	de	Deus”.⁵¹¹	Este	é	o
Cordeiro	singularmente,	por	certo;	pois	Seus	discípulos	também	são	ditos
cordeiros:	“Eis	que	eu	vos	envio	como	cordeiros	entre	lobos”.⁵¹²	São	eles
ditos	também	luz:	“Vós	sois	a	luz	do	mundo”,⁵¹³	mas	diferentemente
d’Aquele	de	quem	se	disse:	“Ele	era	a	luz	verdadeira	que	ilumina	todo
homem	que	vem	a	este	mundo”.⁵¹⁴	Aliás,	também	o	Cordeiro	o	é	de	modo
singular,	o	único	sem	mancha,	sem	pecado;	não	um	cordeiro	cujas	manchas
se	teriam	lavado,	mas	o	Cordeiro	sem	mancha	alguma.	O	que	significa	o	que
João	disse	do	Senhor:	“Eis	o	Cordeiro	de	Deus”?	Pois	João	mesmo	não	era
um	cordeiro?	Não	era	um	santo	varão?	Não	era	o	amigo	do	Esposo?	Aquele
o	é,	por	Sua	vez,	de	maneira	singular:	“Eis	o	Cordeiro	de	Deus”,	porque
somente	pelo	Sangue	desse	Cordeiro	em	singular	é	que	puderam	ser
remidos	os	homens.
O	valor	do	Sangue	do	Cordeiro	e	suas	contrafações
6	Se	reconhecemos,	meus	irmãos,	que	nosso	preço	é	o	Sangue	do	Cordeiro,
que	classe	de	gente	será	essa	que	celebra	hoje	a	festividade	do	sangue	de	não
sei	que	mulher?⁵¹⁵	Oh,	como	são	ingratos!	Roubado	foi	o	ouro,	dizem,	e	da
orelha	da	mulher,	tendo	corrido	sangue.	Esse	ouro	foi	colocado	no	prato	ou
na	balança	e	pesou	muito	mais	em	consequência	do	sangue.	Se	o	sangue	de
uma	mulher	teve	peso	para	inclinar	o	ouro,	que	peso	não	terá,	para	inclinar
o	mundo,	o	sangue	do	Cordeiro,	porquem	o	mundo	foi	feito!	E,	certamente,
não	sei	que	espírito	foi	aquele,	que	foi	aplacado	com	o	sangue	da	mulher,
para	sobrecarregar	o	peso.	Ora,	os	espíritos	impuros	sabiam	que	Jesus
Cristo	havia	de	vir,	ouviram-no	pelos	anjos,	ouviram-no	pelos	profetas,	e
esperavam	que	Ele	viesse.	Pois,	se	não	esperassem,	por	que	exclamaram:
“Que	tens	tu	que	ver	conosco,	Jesus	Nazareno?	Vieste	para	nos	arruinar
antes	do	tempo?	Sabemos	quem	tu	és:	o	Santo	de	Deus”.⁵¹ 	Eles	sabiam	que
devia	vir,	mas	ignoravam	o	tempo	da	vinda.	O	que	ouvistes	no	salmo	a
respeito	de	Jerusalém?	“Porque	os	teus	servos	tiveram	como	beneplácito	as
suas	pedras,	compadecidos	estarão	da	sua	poeira;	levantando-te	tu,	diz,
compadecer-te-ás	de	Sião,	pois	é	tempo	de	teres	piedade	dela”.⁵¹⁷	Quando
chegou	o	tempo	de	que	Deus	Se	compadecesse,	veio	o	Cordeiro.	Mas	que
Cordeiro	é	esse,	a	quem	os	lobos	o	temem?	Que	Cordeiro	é	esse	que,	morto,
matou	o	leão?	Com	efeito,	o	diabo	é	chamado	de	“leão	que	vos	rodeia	a
rugir,	procurando	a	quem	devorar”.⁵¹⁸	Pelo	Sangue	do	Cordeiro,	vencido	foi
o	leão.	Eis	os	espetáculos	dos	cristãos.	E	mais	ainda,	enquanto	os	pagãos
com	seus	olhos	carnais	não	veem	senão	a	vaidade,	nós,	com	os	olhos	de
nosso	coração,	vemos	a	verdade.	Não	penseis,	irmãos,	que	o	Senhor	nosso
Deus	nos	tenha	deixado	sem	espetáculos;	pois,	se	não	houvesse	espetáculo
algum,	por	que	vos	congregastes	hoje?	Eis	o	que	dissemos,	vós	o	vistes	e
exclamastes.	Não	teríeis	lançado	exclamações,	se	não	o	tivésseis	visto.	E
grande	é	também	isto:	contemplar,	por	todo	o	mundo,	o	leão	vencido	pelo
Sangue	do	Cordeiro,	os	membros	de	Cristo	arrancados	aos	dentes	dos	leões
e	ajuntados	ao	Corpo	de	Cristo!	Não	sei,	pois,	que	semelhança	imitou	certo
espírito,	ao	querer	que	sua	imagem	se	compre	com	sangue,	porque	sabia
que,	nalgum	momento,	o	gênero	humano	havia	de	ser	redimido	por	um
Sangue	precioso.	Os	maus	espíritos	inventam,	com	efeito,	certas	sombras	de
honra	tributada	a	si	mesmos,	a	fim	de	enganar	assim	os	que	seguem	a
Cristo:	a	ponto,	meus	irmãos,	de	aqueles	mesmos	que	tentam	seduzir	por
meio	de	laços,	encantamentos	e	expedientes	do	inimigo,	misturarem	o	nome
de	Cristo	com	as	suas	invenções,	e,	uma	vez	que	já	não	podem	seduzir	os
cristãos,	para	ministrarem	veneno,	juntam-lhe	algo	de	mel,	de	modo	que,
sob	o	que	é	doce,	fique	escondido	o	que	é	amargo	e	seja	bebido	para	a
perdição.	A	esse	respeito,	eu	soube,	em	dado	momento,	que	o	sacerdote
daquele	Pileato	tinha	o	costume	de	proclamar:	“Pileato	mesmo	é	também
cristão!”.	Por	que	isso,	meus	irmãos,	senão	porque,	de	outro	modo,	não
podem	ser	seduzidos	os	cristãos?
Colocar	nossa	esperança	só	em	Cristo
7	Não	procureis	Cristo	noutro	lugar,	portanto,	senão	ali	onde	Cristo	quis
ser-vos	pregado.	E	conforme	Ele	quis	ser-vos	pregado,	conservai-O	e
inscrevei-O	em	vosso	coração.	É	Ele	como	um	muro	contra	todas	as
investidas	e	contra	todas	as	insídias	do	inimigo.	Não	temais!	Este	não	tenta,
a	menos	que	tenha	recebido	permissão.	Consta	que	ele	nada	faz	se	não	tiver
recebido	permissão,	se	não	tiver	sido	enviado.	Ele	é	enviado,	em	sua
qualidade	de	anjo	mau,	por	parte	de	uma	potestade	que	o	domina.	E	recebe
a	permissão	quando	algo	pede.	Mas	isso,	irmãos,	não	acontece	senão	para
que	os	justos	sejam	provados	e	os	injustos,	punidos.	Por	que	temes,	então?
Caminha	no	Senhor,	teu	Deus,	e	fica	seguro.	O	que	Ele	não	quiser	que
sofras,	não	sofrerás	tu;	mas	o	que	Ele	permite	que	sofras	é	como	o	açoite	de
quem	corrige,	não	como	o	castigo	de	quem	condena.	Em	vista	de	uma
herança	eterna	somos	educados,	e	desdenhamos	ser	flagelados?	Meus
irmãos,	se	algum	menino	resistisse	a	ser	golpeado	por	seu	pai	com	bofetadas
ou	açoites,	não	se	diria	que	é	um	orgulhoso,	rebelde	e	ingrato,	para	com	a
disciplina	paterna?	E,	entre	os	homens,	com	que	finalidade	um	pai	educa	a
seu	filho?	Para	impedir	que	perca	os	bens	temporais	que	para	ele	adquiriu;
o	pai	acumulou	para	ele	tais	bens	e	não	quer	que	sejam	perdidos,	pois	o
próprio	pai	os	deixa,	não	tendo	podido	aferrá-los	para	sempre.	Ele	não
educa	um	filho	com	quem	há	de	possuir	ditos	bens,	mas	um	que,	depois	dele,
os	vai	possuir.	Meus	irmãos,	se	um	pai	educa	com	tal	cuidado	o	filho,	que
deve	ser	o	seu	sucessor,	e	este	passará	igualmente	por	todas	aquelas
vicissitudes	por	que	teria	de	passar	aquele	que	o	admoestava;	como	não
haveis	de	querer	que	nos	eduque	o	nosso	Pai,	a	quem	não	havemos	de
suceder,	mas	a	quem	havemos	de	acercar-nos,	e	com	quem	deveremos
permanecer	para	sempre,	na	fruição	da	herança	que	não	murcha,	nem
morre,	nem	conhece	o	granizo?	Ele	mesmo	é	a	herança	e	é	–	Ele	próprio	–	o
Pai!	Possuí-l’O-emos,	e	não	havemos	de	ser	educados?	Suportemos,	pois,	a
educação	do	Pai.	Quando	nos	doer	a	cabeça,	não	recorramos	aos
encantadores,	nem	aos	adivinhos,	nem	aos	remédios	de	vaidade.	Meus
irmãos,	como	não	hei	de	lamentar-vos?	A	cada	dia,	deparo-me	com	isso;	e	o
que	hei	de	fazer?	Não	tenho	podido	ainda	convencer	os	cristãos	de	que	a
esperança	há	de	ser	posta	em	Cristo?	Eis	que	morre	alguém	a	quem	se
aplicou	um	remédio	desses	–	quantos	morreram	com	esses	remédios,	e
quantos	foram	curados	sem	eles!	–,	com	que	fronte	essa	alma	saiu	para
Deus?	Ela	perdeu	o	sinal	de	Cristo,	recebeu	sinal	do	diabo.	Talvez	diga	ela:
–	Não	perdi	o	sinal	de	Cristo!	Tiveste,	então,	o	sinal	de	Cristo	juntamente
com	o	sinal	do	diabo!	Cristo	não	quer	comunhão;	quer	possuir,	sozinho,	o
que	comprou.	E	comprou	por	tal	preço,	que	deseja	possuí-lo	sozinho.	E	tu	O
fazes	coproprietário	com	o	diabo,	a	quem	tu,	pelo	pecado,	te	venderas.	“Ai
de	quem	tem	duplicidade	de	coração!”.⁵¹ 	Ai	do	que	reserva	em	seu	coração
uma	parte	a	Deus	e	outra	ao	diabo!	Indignado	por	dares	ali	uma	parte	ao
diabo,	Deus	Se	afasta	e,	assim,	o	diabo	te	possuirá	todo.	Não	é	sem	razão,
portanto,	que	o	Apóstolo	diz:	“Não	deis	lugar	ao	diabo!”.⁵² 	Reconheçamos,
pois,	o	Cordeiro,	irmãos,	reconheçamos	o	nosso	preço.
João	dá	testemunho	do	Cordeiro	de	Deus	a	seus	discípulos
8	“João	achava-se	lá,	e	dois	de	seus	discípulos”.⁵²¹	Eis	aí	dois	dos	discípulos
de	João.	João	era	tão	profundamente	amigo	do	Esposo,	que	não	procurava
sua	própria	glória,	mas	dava	testemunho	da	verdade.	Por	acaso	quis	que	os
seus	discípulos	permanecessem	com	ele,	de	modo	que	não	seguissem	o
Senhor?	Pelo	contrário!	Ele	mesmo	mostra	aos	seus	discípulos	Aquele	a
quem	deviam	seguir.	Os	discípulos	o	tinham	por	Cordeiro,	mas	ele	disse:
Por	que	me	olhais?	Eu	não	sou	o	Cordeiro:	“Eis	o	Cordeiro	de	Deus”,	e
mostrou-lhes	Aquele	de	quem,	também	um	pouco	antes,	dissera:	“Eis	o
Cordeiro	de	Deus”.	Mas,	de	que	nos	serve	o	Cordeiro	de	Deus?	Acrescenta,
então:	“Eis	Aquele	que	tira	o	pecado	do	mundo”.⁵²²	Tendo	ouvido	isso,
seguiram-n’O	os	dois	discípulos	que	estavam	com	João.
Os	discípulos	seguem	a	Jesus
9	Vejamos	o	que	segue.	“Eis	o	Cordeiro	de	Deus”	–	foram	palavras	de	João.
“Os	seus	dois	discípulos	ouviram-no	falar	e	seguiram	Jesus.	Jesus,	voltando-
Se	e	vendo	que	O	seguiam,	disse-lhes:	O	que	procurais?	Disseram-lhe:	Rabi
–	nome	que,	traduzido,	significa	Mestre	–,	onde	moras?”.⁵²³	Não	O	seguem,
todavia,	como	se	já	quisessem	unir-se	a	Ele.	É-nos	conhecido	em	que
momento	se	uniram	a	Ele,	porque	Ele	os	chamou	da	barca.	“Entre	os	dois,
estava	André”,	como	ouvistes	há	pouco.	Ora,	André	era	o	irmão	de	Pedro	e
sabemos,	pelo	Evangelho,	que	o	Senhor	chamou	Pedro	e	André	da	barca,
dizendo:	“Vinde	após	mim,	e	eu	farei	de	vós	pescadores	de	homens”.⁵²⁴	E,	a
partir	desse	momento,	uniram-se	já	a	Ele	para	não	mais	O	deixar.	Agora,
porém,	esses	dois	discípulos	O	seguem,	mas	não	como	quem	não	houvesse	de
deixá-l’O.	Eles	quiseram	ver	onde	habitava	o	Mestre,	e	fazer	o	que	está
escrito:	“Teu	pé	gaste	a	soleira	da	porta	dele.	Levanta-te	para	vires	até	ele
assiduamente	e	instrui-te	nos	preceitos	dele”.⁵²⁵	Mostrou-lhes	Ele	onde
permanecia,	e	eles	foram	e	ficaram	com	Ele.	Que	dia	feliz	transcorreram,	e
que	feliz	noite!	Quem	há	que	nos	diga	o	que	eles	teriam	ouvido	do	Senhor?
Edifiquemos,	nós	também,	e	façamos	uma	casa	em	nosso	coração,	à	qual	Ele
venha	a	ensinar-nos	e	a	entreter-se	conosco.
Era	a	décima	hora
10	“Jesus,	voltando-Se	e	vendo	que	Oseguiam,	disse-lhes:	Que	procurais?
Disseram-Lhe:	Rabi	–	nome	que,	traduzido,	significa	Mestre	–,	onde	moras?
Disse-lhes	Ele:	Vinde	e	vede.	Eles	foram	e	viram	onde	morava,	e
permaneceram	com	Ele	aquele	dia.	Era	cerca	da	hora	décima”.⁵²
Pensamos,	por	acaso,	que	o	evangelista	nos	diz,	sem	interesse	algum,	a	hora
em	que	tal	fato	se	deu?	É	possível	que	ele	aí	não	tenha	querido	fazer-nos
notar	coisa	alguma,	nem	que	procurássemos	algo?	“Era	a	hora	décima”.
Esse	número	significa	a	Lei,	pois	a	Lei	foi	dada	em	dez	mandamentos.	Ora,
chegara	o	tempo	em	que	a	Lei	seria	cumprida	pelo	amor,	visto	que	os	judeus
não	a	puderam	cumprir	pelo	temor.	Por	isso,	declarou	o	Senhor:	“Não	vim
para	abolir	a	Lei,	mas	para	cumpri-la”.⁵²⁷	Com	razão,	portanto,	os	dois
discípulos,	na	décima	hora,	puseram-se	a	seguir	o	Senhor,	levados	pelo
testemunho	do	amigo	do	Esposo.	E	foi	na	décima	hora	que	Ele	mesmo	ouviu
a	denominação:	“Rabi”,	que	significa	Mestre.	E	se,	à	décima	hora,	o	Senhor
ouviu	“Rabi”	e	o	número	dez	corresponde	à	Lei,	é	porque	o	Mestre	da	Lei
não	é	outro	senão	Aquele	que	deu	a	Lei.	Que	ninguém	diga	ser	um	o	que
deu	a	Lei,	e	outro	o	que	a	ensina.	Aquele	que	a	ensina	é	o	mesmo	que	a	deu.
Ele	mesmo	é	o	Mestre	da	Sua	Lei,	e	é	quem	a	ensina.	A	misericórdia	está	em
Sua	língua	e,	por	isso,	Ele	ensina	a	Lei	com	misericórdia,	conforme	se	diz	da
Sabedoria:	“Traz,	porém,	na	língua	a	Lei	e	a	misericórdia”.⁵²⁸	Não	temas,	se
não	podes	cumprir	a	Lei.	Refugia-te	junto	à	misericórdia.	Se	cumprir	a	Lei
for	muito	para	ti,	usa	daquele	expediente,	usa	daquele	quirógrafo,	serve-te
das	preces	que	compôs	e	redigiu	para	ti	o	Jurisperito	celeste.
Como	Cristo	nos	ensinou	a	pedir	perdão	por	nossas	faltas
11	Aqueles	que	têm,	com	efeito,	uma	causa	a	defender,	e	desejam	dirigir
uma	súplica	ao	imperador,	procuram	algum	hábil	advogado	por	cuja	mão
se	lhes	redija	a	fórmula	da	súplica;	pois	receiam,	caso	peçam	talvez	de	modo
inconveniente,	não	somente	não	impetrar	o	que	pedem,	mas	obter	até
mesmo	um	castigo,	em	vez	do	benefício.	Quando	os	Apóstolos	procuravam
dirigir	suas	súplicas	a	Deus,	mas	não	sabiam	como	acudir	ao	Imperador,
disseram	a	Cristo:	“Senhor,	ensina-nos	a	orar”,⁵² 	isto	é:	Ó	jurisperito
nosso,	que	nos	assistes,	ou	melhor,	que	partilhas	com	Deus	o	mesmo	trono,
compõe-nos	uma	prece.	E	o	Senhor	ensinou-lhes	conforme	o	livro	do	direito
celeste.	Ensinou	como	deviam	rezar,	mas,	no	que	ensinou,	incluiu	certa
condição:	“Perdoa-nos	as	nossas	dívidas,	assim	como	nós	perdoamos	aos
nossos	devedores”.⁵³ 	Se	tu	não	pedires	conforme	a	Lei,	tornar-te-ás
culpado.	E,	tornando-te	culpado,	tu	não	vens	a	temer	diante	do	Imperador?
Oferece	o	sacrifício	da	humildade,	oferece	o	sacrifício	da	misericórdia.	Dize
em	tua	oração:	“Perdoa-me,	porque	eu	também	perdoo”.	Mas	se	o	dizes,
faze-o.	O	que	farás,	para	onde	irás,	se	tiveres	mentido	em	tuas	preces?	Não
só	ficarás,	como	se	diz	no	tribunal,	privado	do	benefício	do	rescrito,	mas
nem	mesmo	o	rescrito	obterás.	É,	com	efeito,	uma	regra	do	direito	forense
que	a	quem	mentiu	em	suas	preces	não	beneficie	o	que	impetrou.	E	isso	se
dá	entre	homens,	porque	um	homem	pode	ser	enganado.	O	imperador	pôde
ser	enganado	quando	lhe	dirigiste	tuas	preces.	Disseste	tudo	quanto
quiseste,	e	aquele	a	quem	falaste	não	sabe	se	é	verdade	o	que	disseste.	Por
isso,	ele	deixa	que	seja	o	teu	adversário	que	manifeste	a	tua	culpabilidade,
de	modo	que,	se	fores	convencido	de	mentira	ante	o	juiz	–	haja	vista	que	o
imperador,	como	ignora	se	mentiste,	não	pôde	senão	conceder-te	a	graça
que	pedias	–,	fiques	despojado	do	próprio	benefício	do	rescrito	ali	mesmo
aonde	o	levaste.	Deus,	porém,	que	conhece	se	mentes	ou	se	dizes	a	verdade,
não	só	não	permite	que	o	rescrito	te	sirva	para	algo	no	juízo,	mas	nem
mesmo	permite	que	o	obtenhas,	porque	ousaste	mentir	à	Verdade.
Recorrer	ao	Médico	divino	nas	doenças
12	Que	hás	de	fazer,	pois?	Dize-me.	Cumprir	a	Lei	em	todos	os	pontos,	sem
transgredir	em	parte	alguma,	é	coisa	difícil.	A	culpa,	portanto,	é	certa.	Não
queres	valer-te	do	remédio?	Eis,	meus	irmãos,	o	remédio	que	Deus	pôs	à
nossa	disposição,	contra	as	doenças	da	alma.	Qual	é?	Quando	sentes	dor	de
cabeça,	louvamos	que	tenhas	posto	o	Evangelho	junto	à	tua	cabeça,	em	vez
de	recorreres	a	um	amuleto.	A	fraqueza	humana	chegou	a	tal	ponto,	e	tão
dignos	de	lástima	são	os	homens	que	recorrem	aos	amuletos,	que	nós	nos
alegramos	quando	vemos	um	homem	em	seu	leito,	agitado	com	febres	e
dores,	que	não	tenha	colocado	sua	confiança	noutra	coisa	senão	em	que	o
Evangelho	se	lhe	pusesse	sobre	a	cabeça;	não	porque	o	Evangelho	tenha
sido	feito	para	isso,	mas	porque	ele	foi	preferido	aos	amuletos.	Ora,	se	o
Evangelho	é	colocado	sobre	a	cabeça	para	abrandar	as	dores,	por	que	não
se	há	de	colocar	sobre	o	próprio	coração,	para	ser	este	curado	dos	pecados?
Que	se	faça	isso,	pois.	Coloque-se	junto	ao	coração,	cure-se	o	coração!	É
bom,	sim,	é	bom	que	não	te	preocupes	com	a	saúde	corporal,	senão	para
pedi-la	a	Deus.	Se	Deus	sabe	que	ela	te	é	útil,	há	de	conceder-te	essa	graça.
Se	não	te	der,	é	porque	tê-la	não	traria	proveito.	Quantos	se	conservam
inocentes	por	estarem	no	leito,	doentes;	mas,	com	saúde,	talvez	se
entregassem	à	prática	de	crimes?	Para	quantos	é	prejudicial	a	saúde!
Quanto	melhor	seria	para	um	ladrão,	que	se	propõe	matar	alguém	num
desfiladeiro,	que	estivesse	doente?	Quanto	melhor	seria	que	estivesse
sacudido	pela	febre	quem	se	levanta	à	noite	para	demolir	o	muro	alheio?
Estaria	inocentemente	doente,	mas	goza	criminosamente	de	boa	saúde.	Deus
sabe,	portanto,	o	que	nos	convém.	Procuremos	tão	somente	que	nosso
coração	esteja	são	de	pecados	e,	se	formos	flagelados	no	corpo,	peçamos-
Lhe	nos	ajude.	O	apóstolo	Paulo	rogou-Lhe	ficar	livre	do	aguilhão	da	carne,
e	Deus	não	quis	atendê-lo.	Porventura	ficou	ele	perturbado?	Queixou-se,
com	tristeza,	de	ter	sido	abandonado?	Pelo	contrário!	Disse	que	o	Senhor
não	o	abandonara,	visto	que	não	lhe	foi	tirado	o	que	pedira	para	que	aquela
fraqueza	se	curasse.	É	o	que	descobriu	na	palavra	do	Médico:	“Basta-te	a
minha	graça,	pois	é	na	fraqueza	que	a	força	manifesta	todo	o	seu	poder”.⁵³¹
Como	sabes	que	Deus	não	te	quer	curar?	Talvez	convenha	que	sejas	ainda
provado.	Como	sabes	até	que	ponto	está	gangrenado	o	tecido	que	o	médico
corta,	fazendo	penetrar	o	bisturi	pelas	áreas	corrompidas?	Por	acaso	não
sabe	o	modo	de	proceder,	o	que	faz,	e	até	onde	deve	cortar?	Será	que	o	grito
de	quem	é	operado	retém	a	mão	do	médico	que	corta	com	habilidade?	O
doente	grita,	mas	o	médico	corta.	Será	ele	cruel	por	não	dar	ouvido	a	quem
grita,	ou	não	será,	antes,	misericordioso,	por	atacar	a	ferida	para	curar	o
doente?	Disse-vos	isso,	meus	irmãos,	para	que	ninguém	procure	algo	à
margem	do	auxílio	de	Deus,	quando,	quiçá,	nos	encontramos	nalguma
correção	do	Senhor.	Cuidado	para	que	não	venhais	a	perecer!	Cuidado	para
não	vos	afastardes	do	Cordeiro,	e	não	serdes	devorados	pelo	leão!
Jesus	é	o	ungido	de	Deus
13	Já	dissemos,	pois,	por	que	isso	aconteceu	à	hora	décima.	Vejamos	o	que
segue.	“André,	irmão	de	Simão	Pedro,	era	um	dos	dois	que,	tendo	ouvido	as
palavras	de	João,	O	haviam	seguido.	Ele	encontrou	primeiramente	Simão,
seu	irmão,	e	lhe	disse:	Encontramos	o	Messias,	–	que	quer	dizer	Cristo”.⁵³²
“Messias”,	em	hebraico,	é	“Cristo”	em	grego,	e	“Ungido”	em	latim;⁵³³	com
efeito,	da	“unção”	tira	Cristo	o	Seu	nome.	Chrĩsma,	em	grego,	quer	dizer
“unção”;	daí	que	Cristo	signifique	“Ungido”.	Ele	é	ungido	de	maneira
singular,	é	o	principalmente	Ungido;	e	a	partir	disso,	todos	os	cristãos	são
ungidos,	mas	Ele	o	é	de	modo	principal.	Ouve	como	diz	um	Salmo:	“Por
isso,	Deus,	o	teu	Deus	te	ungiu,	com	o	óleo	da	alegria,	de	preferência	aos
teus	companheiros”.⁵³⁴	Companheiros	d’Ele	são,	pois,	os	santos	todos;	mas
Ele	é,	de	um	modo	único,	o	Santo	dos	santos,	singularmente	Ungido,
singularmente	Cristo.
Jesus	troca	o	nome	de	Simão	para	Pedro
14	“André	conduziu	Simão	a	Jesus.	Fitando-o,	disse-lhe	Jesus:	Tu	és	Simão,
filho	de	João,	chamar-te-ás	Cefas	–	que	quer	dizer	Pedro”.⁵³⁵	Não	é	grande
coisa	que	o	Senhor	tenha	dito	de	quem	ele	era	filho.	O	que	há	aí	de
extraordináriopara	o	Senhor?	Ele	conhecia	o	nome	de	todos	os	Seus	santos,
daqueles	que	Ele	predestinou	antes	da	criação	do	mundo;	e	te	admiras	que
tenha	dito	a	um	só	homem:	Tu	és	o	filho	de	tal	homem	e	terás	tal	nome?
Admirável	é	que	lhe	tenha	mudado	o	nome,	e	de	Simão	tenha	feito	Pedro?
Pedro	vem	de	pedra.	Ora,	a	pedra	é	a	Igreja.	Portanto,	no	nome	de	Pedro,
figurou-se	a	Igreja.	E	quem	pode	estar	seguro,	senão	quem	edifica	sobre	a
pedra?	E	o	que	diz	o	próprio	Senhor?	“Todo	aquele	que	ouve	minhas
palavras	e	as	põe	em	prática	será	comparado	a	um	homem	sensato	que
construiu	a	sua	casa	sobre	a	rocha”	–	que	não	cede	às	tentações.	“Caiu	a
chuva,	vieram	as	enxurradas,	sopraram	os	ventos	e	deram	contra	aquela
casa,	mas	ela	não	caiu,	porque	estava	alicerçada	na	rocha.	Todo	aquele	que
ouve	estas	minhas	palavras,	mas	não	as	pratica...”	–	que	cada	um	de	nós
tema	já,	e	se	acautele	–	“será	comparado	a	um	insensato	que	construiu	a	sua
casa	sobre	a	areia.	Caiu	a	chuva,	vieram	as	enxurradas,	sopraram	os	ventos
e	deram	contra	aquela	casa,	e	ela	caiu.	E	foi	grande	a	sua	ruína”.⁵³ 	De	que
serve	entrar	na	Igreja	a	quem	quer	construir	sobre	a	areia?	Ouvindo,	e	não
praticando,	ele	constrói,	sem	dúvida,	mas	sobre	a	areia.	Se	nada	ouve,	por
outro	lado,	nada	constrói.	Ouvindo,	porém,	edifica;	mas	perguntamos	onde.
São	dois	os	gêneros	de	construtores:	sobre	a	pedra	e	sobre	a	areia.	Que
sucede	aos	que	não	ouvem?	Estão	seguros?	Acaso,	diz	o	Senhor,	que	estão
seguros	porque	nada	constroem?	Estão	desprotegidos	debaixo	da	chuva,
ante	os	ventos,	ante	os	rios.	Quando	chegam	as	intempéries,	arrastam-nos,
antes	mesmo	de	derrubar	as	casas.	Portanto,	há	somente	uma	segurança:
construir,	e	construir	sobre	a	pedra.	Se	quiseres	escutar	e	não	pôr	em
prática,	constróis,	mas	uma	ruína.	Quando	vem	a	tentação,	lança	por	terra
a	casa	e	arrasta-te	com	a	tua	própria	ruína.	Se	não	escutares,	estarás
desabrigado	e,	por	aquelas	tentações,	serás	tu	mesmo	arrastado.	Escuta,
pois,	e	põe	em	prática:	esse	é	o	único	remédio!	Quantos,	talvez,	hoje,	porque
escutaram	e	não	puseram	em	prática,	foram	arrebatados	pela	torrente	desta
festa	pagã?	Ouviram,	pois,	e	não	puseram	em	prática.	Esta	festa	anual	veio
como	um	rio,	a	torrente	transbordou:	há	de	passar	para,	depois,	secar.	Ai
daquele	que	ela	tiver	levado!	Saiba,	portanto,	a	vossa	caridade	o	seguinte:	a
não	ser	que	alguém	escute	e	ponha	em	prática,	não	constrói	sobre	a	pedra,	e
não	pertence	a	esse	tão	grande	nome	–	Pedro	–,	que	o	Senhor	assim
encomiou.	Ele	reclamou,	ao	fazê-lo,	a	vossa	atenção.	Com	efeito,	se	Pedro
tivesse	tido	antes	esse	nome,	não	notarias	o	mistério	da	pedra,	e	julgarias
que	ele	assim	se	chamasse	casualmente,	não	devido	à	Providência	de	Deus.
O	Senhor,	por	isso,	quis	que	Pedro	se	chamasse	primeiro	de	outra	forma,	de
modo	que,	pela	própria	mudança	de	nome,	se	evidenciasse	a	vivacidade	do
mistério.
O	encontro	de	Filipe	e	Natanael
15	“No	dia	seguinte,	Jesus	resolveu	partir	para	a	Galileia,	e	encontra	Filipe.
Jesus	lhe	diz:	Segue-me.	Filipe	era	da	cidade	de	André	e	de	Pedro.	Filipe
encontra	Natanael”	–	depois	de	ter	o	Senhor	chamado	já	a	Filipe	–	“e	lhe
diz:	Encontramos	Aquele	de	quem	escreveram	Moisés,	na	Lei,	e	os	profetas:
Jesus,	o	filho	de	José”.⁵³⁷	Era	Ele	considerado	filho	daquele	com	quem	Sua
mãe	estava	desposada.	Que	Ele	tenha	sido	concebido	e	nascido	dessa	mãe,
permanecendo	ela	virgem,	todos	os	cristãos	bem	o	sabem	pelo	Evangelho.
Assim	falou	Filipe	a	Natanael,	e	acrescentou	também	o	lugar:	“de	Nazaré”.
“Natanael	lhe	diz:	De	Nazaré	pode	sair	algo	de	bom”.	Como	se	compreende
isso,	irmãos?	Não	como	fazem	alguns;	costuma-se,	pois,	pronunciá-lo	assim:
De	Nazaré	pode	sair	algo	de	bom?	“Então	Filipe	responde	e	diz:	Vem	e
vê”.⁵³⁸	Essa	expressão	pode	ser	pronunciada	de	ambas	as	formas:	quer	a
leias	como	uma	confirmação:	“De	Nazaré	pode	sair	alguma	coisa	que	seja
boa”,	e	então	Filipe	acrescenta:	“Vem	e	vê”;⁵³ 	quer	a	leias	como	uma	frase
dubitativa,	que	interroga:	“De	Nazaré	pode	sair	alguma	coisa	que	seja
boa?”	–	“Vem	e	vê”.	Como	as	palavras	que	seguem	não	repugnam	uma
interpretação	nem	a	outra,	cabe	a	nós	procurar	o	que	havemos
preferencialmente	de	entender	a	seu	respeito.
Testemunho	dado	por	Jesus	de	Natanael
16	Quem	era	esse	Natanael	é	coisa	que	demonstramos	no	que	segue.	Escutai
que	tipo	de	homem	era:	o	próprio	Senhor	dá	testemunho	dele.	Grande	é	o
Senhor,	conhecido	pelo	testemunho	de	João.	Bem-aventurado	é	Natanael,
conhecido	pelo	testemunho	da	Verdade.	Mesmo	sem	que	tivesse	o
testemunho	de	João	para	recomendá-l’O,	o	próprio	Senhor	dava
testemunho	de	Si	mesmo,	porque	a	Verdade	basta-Se	a	Si	mesma	para	dar
testemunho	de	Si.	Mas	porque	eram	os	homens	incapazes	de	perceber	a
Verdade,	eles	procuravam-na	por	meio	de	uma	lâmpada	e,	por	isso,	foi
enviado	João,	para	que,	por	meio	dele,	o	Senhor	fosse	mostrado.	Ouve	o
Senhor	que	dá	testemunho	de	Natanael:	“Natanael	lhe	diz	[a	Filipe]:	De
Nazaré	pode	sair	algo	de	bom?	Vem	e	vê	–	respondeu-lhe	Filipe.	E	viu	Jesus
a	Natanael	que	Lhe	vinha	ao	encontro,	e	diz	a	seu	respeito:	Eis	um
verdadeiro	israelita,	em	quem	não	há	fingimento”.⁵⁴ 	Grande	testemunho!
Não	foi	dito	de	André,	nem	de	Pedro,	nem	de	Filipe,	o	que	foi	dito	de
Natanael:	“Eis	um	verdadeiro	israelita,	em	quem	não	há	fingimento”.
Natanael	não	foi	um	dos	apóstolos
17	Que	conclusão	tirar	daí,	irmãos?	Deveria	esse	Natanael	figurar	como	o
primeiro	entre	os	apóstolos?	Todavia,	não	somente	não	se	acha	como
primeiro	entre	os	apóstolos,	como	tampouco	como	médio	ou	como	último
entre	os	Doze	está	Natanael,	do	qual	o	Filho	de	Deus	deu	um	testemunho
tal:	“Eis	um	verdadeiro	israelita,	em	quem	não	há	fingimento”.	Procura-se
o	motivo?	Na	medida	em	que	o	Senhor	no-lo	esclarecer,	provavelmente	o
encontraremos.	Com	efeito,	devemos	compreender	que	esse	Natanael	era
um	homem	erudito,	um	perito	na	Lei.	Por	isso,	o	Senhor	não	quis	colocá-lo
no	número	dos	discípulos,	uma	vez	que	escolheu	ignorantes,	a	fim	de
confundir	o	mundo.	Ouve	o	Apóstolo	a	dizer	essa	verdade:	“Vede,	pois,	a
vossa	vocação,	irmãos;	não	há	entre	vós	muitos	poderosos,	nem	muitos
nobres,	mas	o	que	é	fraqueza	no	mundo,	Deus	o	escolheu	para	confundir	os
fortes;	e	o	que	é	no	mundo	é	vil	e	desprezado,	e	o	que	não	é,	Deus	o	escolheu
como	o	que	é,	para	reduzir	a	nada	o	que	é”.⁵⁴¹	Se	fosse	escolhido	um	douto,
talvez	ele	dissesse	que	fora	escolhido	porque	por	sua	ciência	mereceu	sê-lo.
Nosso	Senhor	Jesus	Cristo,	querendo	dobrar	a	cerviz	dos	soberbos,	não	Se
serviu	de	um	orador	para	chegar	a	um	pescador,	mas,	a	partir	de	um
pescador,	ganhou	o	imperador.	Cipriano	foi	um	grande	orador,	mas
primeiro	foi	chamado	Pedro,	o	pescador,	por	meio	de	quem	haveria	de	crer
não	somente	o	orador,	mas	também	o	imperador.	Nenhum	nobre	foi
escolhido	em	primeiro	lugar,	nenhum	douto,	porque	“Deus	escolheu	o	que	é
fraco	no	mundo,	a	fim	de	confundir	o	que	é	forte”.	Esse	Natanael	era
grande,	e	sem	fingimento.	Não	foi	escolhido,	e	somente	por	isso	não	foi
escolhido:	para	que	a	ninguém	parecesse	que	o	Senhor	havia	escolhido	os
sábios.	Por	seu	conhecimento	da	Lei,	explica-se	sua	reação	ao	ouvir	falar	de
Nazaré,	pois,	por	conhecer	ele	as	Escrituras,	sabia	que	dali	havia	de	ser
esperado	o	Salvador	–	o	que	não	sabiam	tão	facilmente	os	outros	escribas	e
fariseus.	Mostra-se	ele,	portanto,	muito	instruído	na	Lei,	quando	ouviu	de
Filipe:	“Encontramos	Aquele	de	quem	escreveram	Moisés	na	Lei	e	os
Profetas:	Jesus,	o	filho	de	José	de	Nazaré”.	Ele,	que	conhecia	perfeitamente
as	Escrituras,	tendo	ouvido	o	nome	“Nazaré”,	reanimou-se	em	sua
esperança,	e	disse:	“De	Nazaré	pode	vir	alguma	coisa	de	bom”.
Em	Natanael,	não	havia	fingimento
18	Vejamos	a	seguir	as	palavras	restantes	acerca	de	Natanael:	“Eis	um
verdadeiro	israelita,	em	quem	não	há	fingimento”.⁵⁴²	O	que	significa	“em
quem	não	há	fingimento”?	Que	ele,	talvez,	não	tivesse	pecado?	Que,	quiçá,
não	estivesse	doente?	Que,	talvez,	o	Médico	não	lhe	fosse	necessário?	De
modo	algum!	Ninguém	nasceu	neste	mundo	sem	que	tivesse	necessidade
daquele	Médico.	O	que	significa,	pois:	“Em	quem	não	há	fingimento”?
Procuremos	com	um	pouco	mais	atenção,	e	ser-nos-árevelado	em	nome	do
Senhor.	O	Senhor	disse	“fingimento”.⁵⁴³	Todos	os	que	compreendem	as
palavras	latinas	sabem	que	há	dolo	ou	fingimento,	quando	se	faz	uma	coisa
simulando	outra.	Preste	atenção	a	vossa	caridade!	Dolo	não	é	dor.⁵⁴⁴	Digo
isso,	porque	muitos	irmãos	nossos,	pouco	versados	no	latim,	falam	do
seguinte	modo:	“O	dolo	atormenta-o”,	tomando	a	palavra	“dolo”,	por
“dor”⁵⁴⁵.	O	dolo	é	uma	fraude,	uma	simulação.	Quando	alguém	esconde
uma	coisa	no	coração	e	diz	outra,	isso	é	dolo,	fingimento.	Ele	tem	como	que
dois	corações.	Tem	como	que	um	receptáculo	no	coração	em	que	vê	a
verdade,	e	outro,	onde	concebe	a	mentira.	Para	que	saibais	que	isso	é	dolo,
foi	dito	nos	salmos:	“lábios	dolosos”.⁵⁴ 	O	que	quer	dizer:	“lábios	dolosos”?
O	que	vem	a	seguir:	“Falaram	coisas	más	no	coração,	e	com	o	coração”.⁵⁴⁷
O	que	significa:	“no	coração,	e	com	o	coração”,	senão	“com	duplicidade	de
coração”?	Portanto,	ao	não	haver	fingimento	em	Natanael,	o	Médico	por
isso	o	julgou	curável,	porém	não	curado.	Com	efeito,	uma	coisa	é	estar
curado,	outra	é	ser	curável,	e	outra	ainda,	ser	incurável.	Quem	está	doente
com	esperança	de	obter	a	cura,	é	dito	curável.	Quem	está	doente	e	desespera
de	obter	a	cura,	é	dito	incurável.	Quanto	ao	que	está	curado,	não	precisa	de
médico.	O	Médico,	que	veio,	pois,	para	curar,	viu	que	Natanael	era	curável,
porque	não	havia	fingimento	nele.	Como	não	havia	fingimento	nele?	Se	é
pecador,	confessa-se	pecador;	pois,	se,	sendo	pecador,	se	confessasse	como
justo,	haveria	dolo	em	seus	lábios.	O	Senhor	louvou	em	Natanael	a	confissão
do	pecado,	não	considerou	que	não	fosse	pecador.
O	exemplo	da	pecadora	em	casa	do	fariseu
19	É	por	isso	que,	quando	os	fariseus,	que	se	tinham	na	conta	de	justos,
repreendiam	o	Senhor,	porque	Ele,	como	médico,	Se	misturava	com	os
doentes,	e	murmuravam:	“Por	que	come	o	vosso	Mestre	com	os	publicanos
e	os	pecadores?”,	o	Médico	respondeu	àqueles	loucos:	“Não	são	os	que	têm
saúde	que	precisam	de	médico,	mas	sim	os	doentes”…	“Eu	não	vim	chamar
os	justos	mas	os	pecadores”.⁵⁴⁸	Foi	como	se	dissesse:	Vós	vos	dizeis	justos,
mas	sois	pecadores.	Julgais	que	estais	com	saúde,	mas	sois	enfermos;	repelis
o	remédio,	mas	sem	gozardes	de	saúde.	Aquele	fariseu	que	convidara	o
Senhor	a	comer	julgava-se,	portanto,	sadio.	Uma	mulher	doente,	não
obstante,	irrompeu	em	sua	casa,	aonde	não	fora	convidada,	e	mostrou-se
inconveniente,	levada	pelo	desejo	da	saúde.	Aproximou-se	não	da	cabeça	do
Senhor,	nem	das	mãos,	mas	de	Seus	pés.	Lavou-os	com	lágrimas,	enxugou-
os	com	os	cabelos,	cobriu-os	de	beijos,	ungiu-os	com	perfume	e,	pecadora
que	era,	fez	as	pazes	com	as	pegadas	do	Senhor.	Aquele	fariseu,	que	ali
estava	reclinado	junto	à	mesa,	crendo-se	são,	pôs-se	a	repreender	o	Médico,
dizendo-se	interiormente:	“Se	este	homem	fosse	profeta,	saberia	bem	quem
é	a	mulher	que	o	toca”.⁵⁴ 	Suspeitara	que	o	Senhor	ignorasse	a	condição	da
mulher	pelo	fato	de	não	a	repelir,	e	de	não	impedir	que	ela	O	tocasse	com
suas	mãos	impuras.	O	Senhor	conhecia-a,	porém,	e	deixou-Se	tocar	para
que	o	próprio	tato	a	curasse.	Ao	ver	o	Senhor	o	coração	do	fariseu,	propôs-
lhe	uma	parábola:	“Um	credor	tinha	dois	devedores,	um	lhe	devia
cinquenta	denários	e	o	outro,	quinhentos.	Como	não	tivessem	com	que
pagar,	perdoou	a	ambos.	Qual	dos	dois	o	amará	mais?”.	Simão	respondeu:
“Suponho	que	aquele	a	quem	mais	perdoou”.	E	voltando-Se	Jesus	para	a
mulher,	disse	a	Simão:	“Vês	esta	mulher?	Entrei	em	tua	casa	e	não	me
derramaste	água	nos	pés;	ela,	ao	contrário,	regou-me	os	pés	com	lágrimas	e
enxugou-os	com	os	cabelos.	Não	me	deste	um	ósculo;	ela,	porém,	desde	que
eu	entrei	não	parou	de	beijar-me	os	pés.	Não	me	ofereceste	óleo;	ela	ungiu-
me	os	pés	com	perfume.	Por	essa	razão,	eu	te	digo,	seus	numerosos	pecados
lhe	são	perdoados,	porque	ela	demonstrou	muito	amor;	mas	aquele	a	quem
pouco	foi	perdoado,	mostra	pouco	amor”.⁵⁵ 	Foi	como	se	dissesse:	Estás
mais	doente	do	que	ela,	e	tu	te	consideras	são.	Pensas	que	te	foi	perdoado
pouco,	quando,	porém,	és	um	devedor	maior.⁵⁵¹	Porque	não	havia
fingimento	nela,	esta	mulher	mereceu	o	remédio.	O	que	significa:	Não	havia
fingimento	nela?	Ela	confessava	seus	pecados.	É	precisamente	isso	que	o
Senhor	louva	em	Natanael:	nele	não	havia	fingimento.	Ao	passo	que	muitos
fariseus,	repletos	de	pecados,	diziam-se	justos	e	mostravam	fingimento,	em
decorrência	do	qual	não	podiam	ser	curados.
A	proclamação	de	Natanael
20	Jesus	viu,	portanto,	aquele	homem	em	quem	não	havia	fingimento	e
disse:	“Eis	um	verdadeiro	israelita,	em	quem	não	há	fingimento.	–	De	onde
me	conheces?	–	diz-Lhe	Natanael.	–	Antes	que	Filipe	te	chamasse,
respondeu	Jesus,	eu	te	vi,	quando	estavas	sob	a	figueira.	Respondeu-Lhe
Natanael:	Rabi,	tu	és	o	Filho	de	Deus,	és	o	Rei	de	Israel”.⁵⁵²	Natanael	deve
ter	compreendido	algo	de	grande	nessa	palavra	que	lhe	foi	dita:	“Antes	que
Filipe	te	chamasse,	eu	te	vi,	quando	estavas	sob	a	figueira”,	pois	proferiu	a
frase:	“Tu	és	o	Filho	de	Deus,	és	o	Rei	de	Israel”,	tal	como	Pedro	proferiria,
muito	tempo	depois,	quando	o	Senhor	lhe	diria:	“Bem-aventurado	és	tu,
Simão,	filho	de	Jonas,	porque	não	foi	a	carne	ou	o	sangue	que	te	revelaram
isso,	e	sim	o	meu	Pai	que	está	nos	céus”.⁵⁵³	E	aí	nomeou-o	“pedra”,	e	louvou,
nessa	fé,	o	fundamento	da	Igreja.	Natanael	diz,	então:	“Tu	és	o	Filho	de
Deus,	és	o	Rei	de	Israel”.	Por	quê?	Porque	o	Senhor	lhe	dissera:	“Antes	que
Filipe	te	chamasse,	eu	te	vi,	quando	estavas	sob	a	figueira”.
O	símbolo	da	figueira
21	Deve-se	procurar	se	essa	figueira	significa	alguma	coisa.	Escutai-o,	pois,
meus	irmãos.	Sabemos	que	uma	figueira	foi	amaldiçoada	por	não	ter	senão
folhas,	e	não	produzir	fruto	algum.⁵⁵⁴	Nas	origens	da	humanidade,	Adão	e
Eva,	depois	de	seu	pecado,	fizeram	tangas	para	si,	com	folhas	de	figueira.⁵⁵⁵
As	folhas	de	figueira	significam,	então,	os	pecados.	Estava,	pois,	Natanael
sob	a	figueira,	como	que	à	sombra	da	morte.	Viu-o	o	Senhor,	de	quem	está
escrito:	“Aos	que	estavam	assentados	à	sombra	da	morte,	nasceu	a	Luz”.⁵⁵
O	que	foi	dito,	depois,	a	Natanael?	–	“Perguntas-me,	ó	Natanael:	De	onde
me	conheces?”	Tu	me	falas,	agora,	porque	Filipe	te	chamou.	Mas	o	Senhor
tinha	visto	já	que	pertencia	à	Sua	Igreja,	aquele	a	quem	chamou	por	meio
de	um	apóstolo.	Ó	tu,	Igreja;	ó	tu,	Israel,	em	quem	não	há	dolo,	se	és
realmente	esse	povo	de	Israel	no	qual	não	há	dolo,	já	conheces,	agora,	o
Cristo,	por	meio	dos	apóstolos,	tal	como	Natanael	conheceu	o	Cristo	por
meio	de	Filipe.	Mas,	em	Sua	misericórdia,	Ele	viu-te	antes,	quando	jazias
sob	o	pecado.	Por	acaso	fomos	nós	que	procuramos	o	Cristo	primeiro,	ou
não	foi,	antes,	Ele	que	nos	procurou?	Fomos	nós,	os	doentes,	que	viemos	ao
Médico,	ou	foi	o	Médico	que	veio	aos	doentes?	Não	estava	perdida	aquela
ovelha,	quando	o	Pastor,	deixando	as	noventa	e	nove,	pôs-se	à	sua	procura	e
a	encontrou,	trazendo-a	de	volta,	cheio	de	alegria,	aos	ombros?	Não	estava
perdida	aquela	dracma,	quando	a	mulher	acendeu	a	lâmpada	e	a	procurou
por	toda	a	sua	casa,	até	que	a	encontrou?	E,	tendo-a	encontrado,	disse	às
suas	vizinhas:	“Alegrai-vos	comigo,	porque	achei	a	dracma	que	havia
perdido”.⁵⁵⁷	Assim	também	nós,	estávamos	perdidos	como	a	ovelha,
perdidos	como	a	dracma.	Nosso	Pastor,	porém,	encontrou	a	ovelha,	mas
procurou	a	ovelha.	E	a	mulher	encontrou	a	dracma,	mas	procurou	a
dracma.	Que	mulher	é	essa?	É	a	carne	de	Cristo.	Que	lâmpada	é	essa?	“Eu
preparei	uma	lâmpada	ao	meu	Cristo”.⁵⁵⁸	Fomos,	pois,	procurados	a	fim	de
sermos	achados,	e	só	depois	de	encontrados	é	que	viemos	a	falar.	Não	nos
enchamos	de	orgulho,	porque,	antes	de	sermos	encontrados,	estávamos
perdidos	se	não	fôssemos	procurados.	Não	nos	digam	aqueles	a	quem	nós
amamos	e	queremos	ganhar	para	a	paz	da	Igreja	Católica:	–	Que	quereis	de
nós?	Por	que	nos	procurais,	se	somos	pecadores?	–	Nós	vos	procuramos,
precisamente,	para	que	não	venhais	a	perecer.	Procuramos-vos,	porque
também	nós	fomos	procurados.	Queremos	achar-vos,	porque	também	nós
fomos	achados.
A	promessa	de	Jesus
22	Assim,	tendo	dito	Natanael:	“De	onde	me	conheceis?”,	o	Senhor
respondeu-lhe:	“Antes	que	Filipe	te	chamasse,	eu	te	vi,	quando	estavassob	a
figueira”.	Ó	tu,	Israel,	sem	fingimento,	povo	que	vive	da	fé	–	sejas	lá	quem
fores	–,	antes	mesmo	de	chamar-te	por	meus	apóstolos,	quando	estavas	à
sombra	da	morte,	e	ainda	não	me	vias,	eu	te	vi.	O	Senhor	acrescentou	então:
“Crês	só	porque	te	disse:	Eu	te	vi	sob	a	figueira?	Verás	coisas	maiores	do
que	estas”.	O	que	significa:	“Verás	coisas	maiores	do	que	estas?”.	Ele	lhe
diz:	“Verás	o	céu	aberto	e	os	anjos	de	Deus	subindo	e	descendo	sobre	o	Filho
do	homem”.⁵⁵ 	Irmãos,	eu	disse	não	sei	que	palavra	maior	do	que	essa:	“Eu
te	vi	debaixo	da	figueira”.	É	algo	maior	que	o	Senhor	nos	tenha	justificado
depois	de	nos	ter	chamado,	do	que	o	fato	de	ter-nos	visto	à	sombra	da
morte.	De	que	nos	teria	servido	que	Ele	nos	tivesse	visto,	se	tivéssemos
permanecido	lá,	onde	nos	viu?	Não	teríamos	ficado	lá	como	que	sepultados?
Mas	que	graça	maior	é	essa	de	que	nos	fala	o	Senhor?	Quando	é	que	vimos
os	anjos	de	Deus,	subindo	e	descendo	sobre	o	Filho	do	homem?
Vereis	os	anjos	de	Deus	subindo	e	descendo
23	Já	vos	falara	em	outra	ocasião	desses	anjos	que	sobem	e	descem;	mas,
por	receio	de	o	terdes	esquecido,	direi	algumas	palavras	a	modo	de
recordação.	Falaria	muito	mais	se	não	estivesse	a	recordar,	mas	se	vo-lo
desse	a	conhecer	agora.	Jacó	viu	em	sonho	algumas	escadas	e,	sobre	essas
escadas,	viu	anjos	a	subir	e	a	descer.	Depois,	ungiu	a	pedra	onde	pousara	a
cabeça.⁵ 	Ouvistes	que	Messias	quer	dizer	Cristo,	e	que	Cristo	significa
Ungido.	Jacó	não	depositou	ali	a	pedra	ungida,	para	vir	adorá-la	mais
tarde.	Teria	sido	isso	um	ato	de	idolatria,	e	não	significação	de	Cristo.
Produziu-se,	pois,	uma	significação	–	até	o	ponto	em	que	foi	oportuno
produzir-se	–	e	Cristo	foi	significado.	A	pedra	foi	ungida,	mas	não	como	um
ídolo.	Uma	pedra	ungida:	mas,	por	que	uma	pedra?	“Eis	que	eu	ponho,	em
Sião,	uma	pedra	eleita	e	preciosa.	E	quem	nela	crer	não	será	confundido”.⁵ ¹
E	por	que	ungida?	Porque	Cristo	deriva	de	crisma,	unção.	E	o	que	viu	Jacó
nas	escadas?	Anjos	a	subir	e	a	descer.	É	o	que	acontece,	igualmente,	na
Igreja,	irmãos.	Os	anjos	de	Deus	são	os	bons	pregadores,	aqueles	que
pregam	Cristo,	isto	é,	sobem	e	descem	sobre	o	Filho	do	homem.	Como
sobem	e	descem?	A	partir	de	um	só,	temos	o	exemplo.	Ouve	o	apóstolo
Paulo.⁵ ²	O	que	notarmos	nele,	creiamo-lo	também	a	respeito	dos	outros
pregadores	da	verdade.	Vê	como	Paulo	sobe:	“Conheço	um	homem	em
Cristo,	que	há	quatorze	anos,	foi	arrebatado	ao	terceiro	céu	–	se	em	seu
corpo,	se	fora	do	corpo,	não	o	sei:	Deus	o	sabe	–	e	ouviu	palavras	inefáveis
que	não	é	lícito	ao	homem	repetir”.⁵ ³	Ouvistes	Paulo	a	subir.	Ouvi	agora,
quando	desce:	“Não	vos	pude	falar,	irmãos,	como	a	homens	espirituais,	mas
tão	somente	carnais,	como	a	crianças,	em	Cristo.	Dei-vos	a	beber	leite,	não
alimento	sólido”.⁵ ⁴	Eis	que	desce	o	que	subira.	Procura	até	onde	subira.
“Até	o	terceiro	céu”.	Procura	até	onde	desceu.	Até	“dar	leite	aos
pequeninos”.	Ouve	que	desceu:	“Fiz-me	pequeno,	diz	ele,	no	meio	de	vós,
como	ama	que	acaricia	os	seus	pequeninos”.⁵ ⁵	De	fato,	observamos	que	as
amas	e	as	mães	descem	ao	nível	dos	pequeninos.	Mesmo	sabendo
pronunciar	corretamente	as	palavras	latinas,	encurtam-nas	e	dobram,	de
certo	modo,	sua	língua,	para	que	de	uma	língua	erudita	brotem	como	que
carícias	infantis.	Pois,	se	o	fizessem	de	outro	modo,	a	criança	não	ouviria,
nem	tampouco	progrediria.	E	por	mais	eloquente	e	grande	orador	que	seja
um	pai,	a	ponto	de	que	por	sua	palavra	ressoem	os	fóruns	e	se	abalem	os
tribunais,	se	ele	tiver,	por	acaso,	um	filho	pequeno,	quando	volta	para	casa,
deixa	de	lado	a	eloquência	forense	com	a	qual	se	elevara	e,	com	uma
linguagem	infantil,	desce	ao	nível	do	pequeno.	Ouve,	ainda,	numa	só
passagem,	o	mesmo	Apóstolo	a	subir	e	a	descer	numa	única	sentença:	“Se
nos	deixamos,	diz	ele,	arrebatar	como	para	fora	do	bom	senso,	foi	por	causa
de	Deus	e,	se	somos	sensatos,	é	por	causa	de	vós”.⁵ 	Que	quer	dizer:	“se	nos
deixamos	arrebatar,	como	para	fora	do	bom	senso,	por	causa	de	Deus”?
Que	vemos	aquilo	que	o	homem	não	pode	dizer.	O	que	quer	dizer:	“Se
somos	sensatos	é	por	causa	de	vós”?	“Por	acaso	julguei	saber	outra	coisa
entre	vós,	a	não	ser	Jesus	Cristo,	e	Jesus	Cristo	crucificado”?⁵ ⁷	Se	o	próprio
Senhor	subiu	e	desceu,	é	manifesto	que	Seus	pregadores	sobem	pela
imitação	e	descem	pela	pregação.
Exortação	final
24	Se	vos	retivemos	um	pouco	mais	longamente,	foi	no	intuito	de	deixar	que
passassem	as	horas	inoportunas.	Pensamos	que	aqueles	terão	já	terminado
a	sua	vaidade.	Quanto	a	nós,	irmãos,	tendo-nos	saciado	com	iguarias
salutares,	façamos	o	que	nos	resta,	de	modo	a	completar	solenemente	o	dia
do	Senhor,	entre	alegrias	espirituais.	Comparemos	as	alegrias	da	verdade
com	as	da	vaidade.⁵ ⁸	E	se	ficamos	horrorizados,	compadeçamo-nos;	se	nos
compadecemos,	oremos;	se	oramos,	sejamos	ouvidos;	se	somos	ouvidos,
também	os	ganhamos.
HOMILIA	8
As	bodas	de	Caná	(Jo	2,1-4)
O	mundo	criado	é	um	grande	milagre
1	O	milagre	de	nosso	Senhor	Jesus	Cristo,⁵ 	por	meio	do	qual	da	água	fez
vinho,	não	é	motivo	de	grande	admiração	para	os	que	sabem	que	Deus	o	fez.
Quem,	naquele	dia	durante	as	bodas,	fez	vinho	nas	seis	talhas	que	mandou
se	enchessem	de	água,	é	o	mesmo	que,	a	cada	ano,	faz	isso	nas	videiras.	Com
efeito,	assim	como	o	que	foi	lançado	nas	talhas	pelos	serventes	foi
transformado	em	vinho	por	obra	do	Senhor,	também	o	que	cai	das	nuvens	é
transformado	em	vinho	por	obra	do	mesmo	Senhor.	Isto,	porém,	já	não	nos
causa	espanto,	por	acontecer	a	cada	ano:	por	sua	assiduidade,	perdeu	em
admiração;	por	mais	que	merecesse,	na	realidade,	uma	consideração	maior
do	que	o	realizado	nas	talhas	de	água.	Quem	pode,	com	efeito,	considerar	as
obras	de	Deus,	com	que	se	governa	e	administra	todo	este	mundo,	e	não
ficar	cheio	de	admiração,	deslumbrado	pelos	milagres?	Se	alguém
considerar	o	poder	de	um	só	grão,	de	qualquer	semente	que	seja,	verá	certa
realidade	grande,	que	deixará	estupefato	a	quem	a	considera.	Mas	porque
os	homens,	ocupados	com	outras	coisas,	deixaram	de	considerar	as	obras	de
Deus,	pelas	quais	deveriam,	a	cada	dia,	dar	louvor	ao	Criador,	Deus,	por
assim	dizer,	reservou	para	Si	o	poder	de	realizar	certas	obras	inusitadas,	a
fim	de	despertar	os	homens	que	estavam	como	que	adormecidos,	e	estimulá-
los	à	adoração	por	meio	de	eventos	admiráveis.	Um	morto	ressuscitou,	e	os
homens	ficam	admirados.	Há	tantos	nascimentos	todos	os	dias,	e	ninguém	se
admira!	Se	considerarmos	com	mais	discernimento,	é	um	milagre	maior	dar
o	ser	a	quem	não	o	tinha,	do	que	fazer	reviver	quem	existia.	Não	obstante,	é
o	mesmo	Deus,	Pai	de	nosso	Senhor	Jesus	Cristo,	quem	realiza	tudo	isso,
por	meio	de	Seu	Verbo,	e	governa	tudo	o	que	criou.	Os	primeiros	milagres,
Ele	os	fez	por	Seu	Verbo	–	Deus	junto	a	Si;	os	milagres	seguintes,	Ele	os	fez
por	Seu	mesmo	Verbo,	encarnado	e	feito	homem	por	nós.	Assim	como
admiramos	o	que	foi	feito	pelo	Homem	Jesus,	admiremos	também	o	que	foi
feito	pelo	Deus	Jesus.	Pelo	Deus	Jesus,	foram	feitos	o	céu	e	a	terra,	o	mar	e
todo	o	ornamento	do	céu,	a	opulência	da	terra,	a	fecundidade	do	mar;	todas
essas	realidades	que	se	oferecem	aos	olhos	foram	feitas	pelo	Deus	Jesus.	Nós
vemos	todas	essas	coisas	e,	se	Seu	Espírito	estiver	em	nós,	isso	nos	deleitará
de	tal	modo,	que	será	louvado	o	Artífice,	não	a	ponto	de	que,	voltados	para
as	obras,	nos	desviemos	do	Artífice	e,	dirigindo,	por	assim	dizer,	o	rosto	às
obras	que	Ele	fez,	demos	as	costas	Àquele	que	as	fez.⁵⁷
As	grandezas	da	alma
2	E	tudo	isso,	por	certo,	são	realidades	que	vemos,	estão	ao	alcance	dos
olhos;	o	que	dizer,	porém,	das	coisas	que	não	vemos,	tais	como	os	anjos,	as
virtudes,	as	potestades,	as	dominações	e	todos	os	habitantes	do	edifício
supraceleste,	que	não	estão	ao	alcance	dos	nossos	olhos?	Ainda	que,	muitas
vezes,	os	anjos	se	tenham	mostrado	aos	homens,	quando	foi	conveniente.	E
não	foi	por	acaso	Deus,	e	por	Seu	Verbo,	isto	é,	por	Seu	Filho	único,	nosso
Senhor	Jesus	Cristo,	quem	fez	tudo	isso?	O	que	dizer	da	própria	alma
humana,	que	não	se	vê,	mas	que,	pelas	obras	que	manifesta	na	carne,
suscita	uma	grande	admiração	nos	que	a	consideram	bem?	Por	quemela	foi
feita,	senão	por	Deus?	E	por	meio	de	quem	foi	feita,	senão	por	meio	do	Filho
de	Deus?	E	não	falo	ainda	sobre	a	alma	do	homem.	Como	a	alma	de
qualquer	animal	governa	todo	o	seu	corpo?	Anima	todos	os	sentidos:	os
olhos	para	verem,	os	ouvidos	para	escutarem,	as	narinas	para	perceberem	o
odor,	o	juízo	da	boca	para	discernir	os	sabores	e,	enfim,	os	próprios
membros	para	cumprirem	as	suas	funções.	Por	acaso	será	o	corpo	que
realiza	essas	coisas,	e	não	é	a	alma,	isto	é,	a	habitante	do	corpo,	que	as
realiza?	E	não	é	vista,	entretanto,	pelos	olhos,	mas,	a	partir	das	suas	ações,
causa	admiração.	Que	a	tua	consideração	se	volte	agora	para	a	alma
humana,	à	qual	Deus	concedeu	inteligência	para	que	conhecesse	o	seu
Criador,	para	que	discernisse	e	distinguisse	o	bem	do	mal,	isto	é,	o	justo	do
injusto:	quantas	coisas	ela	realiza	por	meio	do	corpo!	Observai	todo	o	orbe
terrestre,	ordenado	na	própria	sociedade	humana	com	quantas
administrações,	com	quantas	hierarquias	de	potestades,	com	as	instituições
das	cidades,	com	leis,	costumes,	artes!	Tudo	isso	é	gerido	pela	alma	humana,
e	a	força	mesma	da	alma	não	é	vista.	Se	a	alma	se	separa	do	corpo,	não	resta
senão	um	cadáver.	Se,	porém,	estiver	presente	ao	corpo,	começa	por	mitigar,
de	algum	modo,	os	elementos	de	corrupção	deste.	Com	efeito,	toda	carne	é
corruptível	e	desfaz-se	em	podridões,	caso	não	seja	mantida	por	certo
condimento	da	alma.	Essa	condição,	porém,	lhe	é	comum	com	a	alma	do
animal.	Muito	mais	admirável	é	o	que	eu	disse,	concernente	à	mente	e	à
inteligência,	em	cujo	âmbito	o	homem	é	também	renovado	à	imagem	de	seu
Criador,	a	cuja	imagem	foi	feito.⁵⁷¹	Qual	não	será,	pois,	a	virtude	da	alma,
quando	também	este	corpo	“for	revestido	de	incorruptibilidade,	quando
esta	natureza	mortal	se	revestir	de	imortalidade”?⁵⁷²	Se	tantas	coisas	já
pode	a	alma	por	meio	desta	carne	corruptível,	o	que	não	poderá	fazer
mediante	um	corpo	espiritual,	após	a	ressurreição	dos	mortos?	Como	já	o
disse,	no	entanto,	essa	alma	de	natureza	e	substância	admiráveis	é	uma
realidade	invisível	e	inteligível,	mas	foi	feita	pelo	Deus	Jesus,	porque	Ele	é	o
Verbo	de	Deus.	“Tudo	foi	feito	por	meio	d’Ele	e	sem	Ele	nada	foi	feito”.⁵⁷³
O	ensinamento	oculto	desse	milagre
3	Ao	vermos	tantas	maravilhas	realizadas	pelo	Deus	Jesus,	por	que	nos
admiramos	de	que	a	água	se	tenha	convertido	em	vinho	por	obra	do
Homem	Jesus?	Pois	Ele	não	Se	fez	homem	para	perder	o	que	era	como
Deus;	o	homem	se	Lhe	acrescentou,	mas	não	Se	perdeu	Deus.⁵⁷⁴	Fez,	pois,
esse	prodígio,	Aquele	mesmo	que	fez	tudo	o	mais.	Não	nos	admiremos,
portanto,	já	que	é	Deus	quem	o	fez,	mas	amemo-lo,	porque	o	fez	entre	nós,	e
para	a	nossa	reparação.	Alguma	coisa	nos	deu	a	entender,	com	efeito,	nos
próprios	fatos.	Penso	que	Jesus,	não	sem	motivo,	veio	às	núpcias.	Deixando
de	lado	milagre,	no	fato	mesmo	algo	de	mistério	e	de	sagrado	se	esconde.
Batamos	à	porta	para	que	abra	e	nos	inebrie	com	o	vinho	invisível⁵⁷⁵;	pois
nós	também	éramos	água	e	Ele	transformou-nos	em	vinho,	tornou-nos
sábios,	pois	saboreamos	a	Sua	fé	os	que	éramos,	primeiro,	insipientes.	E,
talvez,	pertença	a	essa	mesma	sabedoria,	acompanhada	da	honra	de	Deus,
do	louvor	da	Sua	majestade	e	da	caridade	de	Sua	poderosíssima
misericórdia,	que	compreendamos	o	que	se	passou	nesse	milagre.
As	núpcias	do	Senhor
4	Tendo	sido	convidado,	o	Senhor	veio	às	núpcias.	O	que	há	de	admirável
em	que	Ele	tenha	vindo	às	núpcias	naquela	casa,	se	veio	a	este	mundo	para
núpcias?	Se	não	tivesse	vindo	às	núpcias,	não	teria	esposa	aqui.	O	que
significa,	então,	o	que	diz	o	Apóstolo:	“Desposei-vos	a	um	Esposo	único,	a
Cristo,	a	quem	devo	apresentar-vos	como	virgem	pura”?⁵⁷ 	Por	qual	motivo
teme	o	Apóstolo	que	a	virgindade	da	esposa	de	Cristo	seja	corrompida	pela
astúcia	do	diabo?	“Receio	–	diz	–	que,	como	a	serpente	seduziu	Eva	por	sua
astúcia,	vossas	mentes	se	corrompam	desviando-se	da	simplicidade	e	da
castidade	para	com	Cristo”.⁵⁷⁷	O	Senhor	possui,	pois,	aqui	na	terra	uma
esposa,	que	Ele	remiu	com	o	Seu	próprio	Sangue	e	à	qual	deu,	como	penhor,
o	Espírito	Santo.	Arrancou-a	do	jugo	do	demônio,	“morreu	por	seus
pecados	e	ressuscitou	para	a	sua	justificação”.⁵⁷⁸	Quem	seria	capaz	de
oferecer	tanto	à	sua	esposa?	Que	ofereçam	os	homens	quaisquer
preciosidades	da	terra:	ouro,	prata,	pedras	preciosas,	cavalos,	escravos,
propriedades,	campos;	mas	será	que	alguém	oferece	o	próprio	sangue?	Pois,
se	oferecer	o	sangue	à	noiva,	já	não	estará	lá	para	desposá-la.	O	Senhor,
porém,	ao	morrer	seguro,	deu	Seu	Sangue	por	aquela	que	viria	a	possuir,	ao
ressuscitar,	e	com	a	qual	já	Se	tinha	unido	no	seio	da	Virgem.	Com	efeito,	o
Esposo	é	o	Verbo,	e	a	esposa	é	a	carne	humana.	Ambas	as	naturezas	são	o
único	Filho	de	Deus,	e	é	Ele	mesmo	Filho	do	Homem.	O	seio	da	Virgem
Maria	é	Seu	tálamo,	onde	Ele	Se	tornou	a	Cabeça	da	Igreja,	daí	partiu
como	o	esposo	parte	de	seu	tálamo,	segundo	predisse	a	Escritura:	“Ele,	à
semelhança	do	esposo	que	sai	de	seu	tálamo,	exultou	como	um	gigante,	para
percorrer	o	Seu	caminho”.⁵⁷ 	Do	tálamo	adiantou-Se	como	Esposo	e,
convidado,	veio	às	núpcias.
“Mulher,	o	que	há	entre	ti	e	mim?”	O	mistério	da	resposta	dada	à	Maria
5	É	em	razão	de	certo	mistério	que	o	Senhor	parece	não	reconhecer	a	mãe,
da	qual	saiu	como	Esposo,	e	dizer-lhe:	“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?
Minha	hora	ainda	não	chegou”.⁵⁸ 	O	que	quer	isso	dizer?	Teria	Jesus	vindo
à	festa	de	casamento	para	ensinar	a	desprezar	as	mães?	Ora,	aquele	a	cujas
núpcias	Ele	assistia,	contraía	matrimônio	precisamente	para	ter	filhos	e,
certamente,	desejava	ser	honrado	por	aqueles	mesmos	filhos	que	teria.	O
Senhor	viera,	então,	às	núpcias	para	desrespeitar	Sua	mãe,	quando	as
próprias	núpcias	são	celebradas	e	esposas	são	tomadas,	justamente	para	a
procriação	de	filhos,	aos	quais	preceitua	Deus	que	honrem	a	seus	pais?	Sem
dúvida	alguma,	irmãos,	algo	se	esconde	aqui.	E	é	coisa	tão	importante	que
certos	homens	–,	em	relação	aos	quais	nos	advertiu	o	Apóstolo,	com
antecedência,	para	que	nos	puséssemos	em	guarda,	conforme	acima
recordamos,	dizendo:	“Receio	que	como	a	serpente	seduziu	Eva	por	sua
astúcia,	vossas	mentes	se	corrompam	desviando-se	da	simplicidade	e	da
castidade	para	com	Cristo”⁵⁸¹	–,	certos	homens,	digo	eu,	que,	contrariando	o
Evangelho	e	afirmando	que	Jesus	não	é	filho	da	Virgem	Maria,⁵⁸²	intentam
fundamentar	seu	erro	a	partir	daqui,	dizendo:	Como	pode	ser	mãe	dele,
aquela	a	quem	dirigiu	estas	palavras:	“Mulher	,o	que	há	entre	mim	e	ti”?	É
preciso,	pois,	que	se	lhes	responda	e	explique	por	que	o	Senhor	falou	dessa
maneira,	para	que	não	venham	eles	a	pensar,	em	seu	furor	contra	a
verdadeira	fé,	que	encontraram	um	meio	de	corromper	a	castidade	da
esposa-virgem,	ou	seja,	de	violar	a	fé	da	Igreja.	Na	verdade,	irmãos,
corrompe-se	a	fé	daqueles	que	colocam	a	mentira	acima	da	verdade.	Pois,	os
que	parecem	honrar	de	tal	modo	a	Cristo,	a	ponto	de	negar	que	Ele	tenha
tido	uma	carne,	assim	procedendo,	nada	mais	fazem	que	proclamá-l’O	um
mentiroso.	Aqueles	que	edificam	a	mentira	entre	os	homens,	o	que
arrancam	deles	senão	a	verdade?	Introduzem	neles	o	diabo,	expulsam	a
Cristo;	introduzem	neles	o	adúltero,	expulsam	o	Esposo!	São	padrinhos,	ou
melhor,	alcoviteiros	da	serpente.	O	que	dizem	tem,	pois,	como	finalidade,
que	a	serpente	os	possua	e	Cristo	venha	a	ser	deles	expulso.	Como	os	possui
a	serpente?	Na	medida	em	que	toma	posse	deles	a	mentira.	Quando	a
falsidade	os	possui,	é	a	serpente	quem	os	possui;	quando	a	verdade	os
possui,	é	Cristo	quem	os	possui.	Com	efeito,	Ele	mesmo	disse:	“Eu	sou	a
Verdade”.⁵⁸³	E	referindo-Se	à	serpente,	disse	que	“não	permanece	na
verdade,	porque	a	verdade	não	está	nela”.⁵⁸⁴	Ora,	Cristo	é	tão	perfeitamente
a	Verdade,	que	n’Ele	deves	considerar	tudo	como	verdadeiro:	verdadeiro
Verbo,	Deus	igual	ao	Pai;	verdadeira	alma;	verdadeira	carne;	verdadeiro
homem;	verdadeiro	Deus;	verdadeiro	nascimento;	verdadeira	paixão;
verdadeira	morte	e	verdadeira	ressurreição.	Caso	declares	que	algo	disso	é
falso,	entra	a	podridão;	do	veneno	da	serpente,	nascem	os	vermes	das
mentiras,	e	nada	permanecerá	íntegro.
Estudar	o	texto	com	critério6	O	que	significa,	portanto,	–	pergunta	o	objetor	–	essa	palavra	do	Senhor:
“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?”.	Talvez	o	Senhor	nos	mostre	nas
palavras	que	seguem	–	“Minha	hora	ainda	não	chegou”	–	o	motivo	pelo
qual	Se	exprimiu	dessa	maneira.	Com	efeito,	essa	foi	a	resposta:	“Mulher,	o
que	há	entre	ti	e	mim?	Minha	hora	ainda	não	chegou”.	O	sentido	dessas
últimas	palavras	também	havemos	de	procurar.	Mas,	antes	disso,	refutemos
os	hereges	a	partir	daqui.	O	que	diz	a	letárgica	serpente,	a	velha
inspiradora	sibilante	de	venenos?	O	que	diz	ela?	Que	Jesus	não	teve	por
mãe	uma	mulher!	Como	provas	isso?	Por	ter	o	Senhor	proferido,	diz	ela:
“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?”.	E	quem	narrou	isso,	para	que
acreditemos	que	o	Senhor	tenha	proferido	tais	palavras?	Quem	o	narrou?
Ora,	o	evangelista	João!	Mas	o	mesmo	evangelista	João	disse:	“…	e	a	mãe
de	Jesus	estava	lá”.	Com	efeito,	assim	narra	ele:	“No	dia	seguinte,	houve	um
casamento	em	Caná	da	Galileia,	e	a	mãe	de	Jesus	estava	lá.	Jesus	também
tinha	ido,	convidado	para	as	bodas	com	os	Seus	discípulos	também”.⁵⁸⁵
Temos	aí	duas	sentenças	proferidas	pelo	evangelista.	A	primeira	diz:	“A	mãe
de	Jesus	estava	lá”.	A	segunda	menciona	o	que	Jesus	disse	à	Sua	mãe.
Ambas	as	afirmações	vêm	do	mesmo	evangelista.	E	vede	bem,	irmãos,	como
ele	observa	que	é	à	Sua	mãe	que	Jesus	respondeu,	pois	escreve	antes:	“A
mãe	de	Jesus	Lhe	diz”;	que	conserveis	a	virgindade	do	vosso	coração
protegida	contra	a	língua	da	serpente!	Nesse	texto,	no	mesmo	Evangelho,
narrado	pelo	mesmo	evangelista,	está	escrito:	“A	mãe	de	Jesus	estava	lá”	e
“A	mãe	de	Jesus	Lhe	diz”.	Quem	o	narrou?	João,	o	evangelista.	E	o	que
Jesus	respondeu	à	mãe?	“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?”.	Quem	o	narra?
O	mesmo	evangelista	João.	Ó	evangelista	fidelíssimo	e	veracíssimo,	tu	me
contas	que	Jesus	disse:	“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?”;	e	por	que	Lhe
deste	por	mãe	uma	mulher	que	Ele	não	reconhece?	Pois	afirmaste	que	“A
mãe	de	Jesus	estava	lá”	e	que	“A	mãe	de	Jesus	Lhe	diz…”.	Por	que	não
disseste:	Encontrava-se	lá	Maria,	e:	Maria	disse-Lhe?	Mas	tu	declaras
ambas	as	coisas:	“A	mãe	de	Jesus	Lhe	diz”;	e	que	Jesus	lhe	respondeu:
“Mulher,	que	há	entre	mim	e	ti?”.	Qual	o	motivo?	Senão	porque	tanto	uma
afirmação	como	a	outra	é	verdadeira?	Aqueles	homens	estão	dispostos,	no
entanto,	a	acreditar	no	evangelista	quando	conta	que	Jesus	disse	à	Sua	mãe:
“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?”,	mas	não	querem	acreditar	no
evangelista,	em	relação	ao	que	diz:	“A	mãe	de	Jesus	disse-Lhe”.	Quem	é,
porém,	aquele	que	resiste	à	serpente	e	mantém	a	verdade?	Quem	é	aquele
cuja	virgindade	de	coração	não	se	corrompe	pela	astúcia	do	diabo?	É	quem
acredita	que	ambas	as	afirmações	são	verdadeiras,	tanto	“Que	a	mãe	de
Jesus	estava	lá”,	como	que	Jesus	tenha	dado	à	mãe	aquela	resposta.	Não
obstante,	se	ainda	não	compreende	em	que	sentido	Jesus	disse:	“Mulher,	o
que	há	entre	mim	e	ti?”,	creia,	por	ora,	que	Jesus	o	disse,	e	que	o	disse	à	Sua
mãe.	Que	haja,	primeiro,	piedade	em	quem	crê	e	haverá,	em	seguida,	fruto
em	quem	entende.⁵⁸
É	preciso	crer	para	compreender
7–	Ó	fiéis	cristãos,	interrogo-vos:	A	mãe	de	Jesus	estava	lá?	Respondei:	“Estava!
–	Como	o	sabeis?	Respondei:	“É	o	Evangelho	que	o	fala”.	–	O	que	respondeu
Jesus	à	Sua	mãe?	Respondei:	“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?	Minha	hora
ainda	não	chegou”.	–	E	como	sabeis	isso?	Respondei:	“É	o	Evangelho	que	o
fala”.	Que	ninguém	vos	corrompa	esta	fé,	se	quiserdes	conservar	uma	casta
virgindade	para	o	Esposo.	E	se	vos	perguntarem	por	que	respondeu	Ele	desse
modo	à	Sua	mãe,	quem	o	souber,	responda;	e	quem	ainda	não	o	souber,	creia,
porém,	e	mui	firmemente,	que	Jesus	deu	essa	resposta,	e	a	deu	à	Sua	mãe.	Por
essa	piedade,	merecerá	também	compreender	a	razão	de	tal	resposta,	caso	bata	à
porta	da	verdade	por	meio	da	oração,	e	dela	não	se	aproxime	com	uma	atitude	de
contestação.	Apenas	tome	cuidado	para	não	lhe	suceder	que,	enquanto	supõe
saber	ou	se	envergonha	de	não	saber	por	que	motivo	Jesus	assim	respondeu,	se
veja	constrangido	a	admitir	ou	que	o	evangelista	tenha	mentido	ao	dizer:	“A	mãe
de	Jesus	estava	lá”,	ou	ainda,	que	o	próprio	Cristo	teria	padecido	uma	falsa
morte	pelos	nossos	delitos,	que	teria	ostentado	falsas	cicatrizes	pela	nossa
justificação	e	teria	declarado	uma	falsidade:	“Se	permanecerdes	na	minha
palavra,	sereis	em	verdade	meus	discípulos;	e	conhecereis	a	Verdade,	e	a
Verdade	vos	libertará”.⁵⁸⁷	Com	efeito,	se	não	teve	verdadeira	mãe,	se	Sua	carne	é
falsa,	se	Sua	morte	é	falsa,	se	as	chagas	de	Sua	paixão	são	falsas	e	falsas	as
cicatrizes	da	Sua	ressurreição,	então,	não	é	a	Verdade,	mas,	antes,	a	falsidade	que
libertará	os	que	n’Ele	creem.	Mas	não!	Que	a	falsidade	ceda	diante	da	Verdade,	e
sejam	confundidos	todos	quantos	querem	passar	por	verdadeiros,	esforçando-se
em	provar	que	Cristo	é	falaz,	e	não	querem	que	se	lhes	diga:	“Não	acreditamos
em	vós,	porque	mentis”,	enquanto	eles	dizem	que	a	própria	Verdade	teria
mentido.	Se	nós	lhes	perguntarmos,	no	entanto:	Como	sabeis	que	Cristo	disse:
“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?”,	eles	responderão	que	creram	no	Evangelho.
Por	que,	então,	não	creem	no	Evangelho	que	diz:	“A	mãe	de	Jesus	estava	lá”,	e
ainda:	“A	mãe	de	Jesus	disse-Lhe”?	Ou	ainda,	se	o	Evangelho	mente	nesse
ponto,	como	se	lhe	há	de	dar	crédito	com	relação	a	ter	Jesus	dito:	“Mulher,	que
há	entre	ti	e	mim”?	Por	qual	motivo	esses	miseráveis	não	creem	antes,	fielmente,
que	o	Senhor	respondeu	assim,	não	a	uma	pessoa	estranha,	mas	à	própria	mãe,	e
não	procuram	conhecer,	piedosamente,	o	motivo	pelo	qual	terá	respondido	dessa
forma?	Com	efeito,	há	uma	grande	diferença	entre	quem	diz:	“Quero	saber	por
que	Cristo	deu	essa	resposta	à	Sua	mãe”,	e	quem	diz:	“Sei	que	não	foi	à	Sua	mãe
que	Cristo	respondeu	desse	modo”.	Uma	coisa	é	querer	compreender	o	que	está
obscuro,	outra	é	não	querer	acreditar	no	que	é	evidente.	Quem	diz:	“Quero	saber
por	que	Cristo	respondeu	assim	à	sua	mãe”,	deseja	que	se	lhe	abra	o	sentido	do
Evangelho,	no	qual	crê;	mas	quem	diz:	“Sei	que	não	foi	à	Sua	mãe	que	Cristo
deu	essa	resposta”,	acusa	de	mentira	o	próprio	Evangelho,	conforme	o	qual
acreditou	que	Cristo	respondeu	dessa	maneira.
Cristo	não	tem	mãe	como	Deus,	e	não	tem	pai	como	homem
8	Portanto,	irmãos,	se	vos	apraz,	deixados	de	lado	esses	homens	que,	em	sua
cegueira,	persistem	sempre	no	erro,	a	não	ser	que	humildemente	se	curem,
investiguemos	nós	por	qual	motivo	nosso	Senhor	respondeu	assim	à	Sua
mãe.	De	modo	singular,	o	Senhor	nasce	do	Pai,	sem	o	concurso	de	mãe;	e
nasce	de	mãe,	sem	pai.	Como	Deus,	não	possui	mãe;	como	homem,	não
possui	pai.	Nasceu	sem	mãe,	antes	dos	tempos;	sem	pai,	no	fim	dos	tempos.
O	que	Jesus	respondeu,	respondeu	à	mãe,	como	se	deduz	das	palavras:	“E
Sua	mãe	estava	lá”,	e:	“A	mãe	de	Jesus	disse-Lhe…”.	O	Evangelho	fala	tudo
isso.	Sabemos,	pelo	texto,	que	“Sua	mãe	estava	lá”	e,	pelo	mesmo	texto,	se
nos	diz	o	que	Ele	lhe	respondeu:	“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?	Minha
hora	ainda	não	chegou”.	Creiamos	em	tudo,	e	aquilo	que	ainda	não
compreendemos,	procuremos.	Vede,	primeiro,	o	seguinte:	talvez	do	mesmo
modo	como	os	maniqueus	acharam	ocasião	para	sua	perfídia	pelo	fato	de	o
Senhor	ter	dito:	“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?”,	também	a	encontrem
os	astrólogos⁵⁸⁸	para	suas	falácias,	por	ter	dito	Ele:	“Minha	hora	ainda	não
chegou”.	Se	o	Senhor	o	disse	no	mesmo	sentido	dos	astrólogos,	cometemos
um	sacrilégio	ao	queimar	os	livros	deles;	mas,	se	agimos	corretamente,	tal
como	sucedeu	nos	tempos	dos	apóstolos,⁵⁸ 	o	Senhor	não	disse:	“Minha	hora
ainda	não	chegou”	no	sentido	em	que	eles	o	tomam.	Dizem,	com	efeito,	esses
charlatães	e	sedutores,	vítimas	eles	mesmos	da	sedução:	Como	vês,	Cristo
estava	sujeito	à	fatalidade,	pois	disse:	“A	minha	hora	ainda	não	chegou”.	A
quem	se	há	de	responder	primeiro:	aos	hereges,	ou	aos	astrólogos?	Uns	e
outros	vêm,	pois,	da	parte	daquela	serpente,	com	a	intenção	de	corromper	a
virgindade	do	coração	da	Igreja,	que	ela	conserva	na	íntegra	fé.⁵ 	Se	vos
apraz,	responderemos,	em	primeiro	lugar,	àqueles	que	apresentamos	antes,
aos	quais,	aliás,	já	respondemos	em	grande	parte,mas,	para	que	não
estimem	que	nada	tenhamos	a	dizer	sobre	essas	palavras	que	o	Senhor
respondeu	à	Sua	mãe,	nós	vos	instruímos	um	pouco	mais	contra	eles,	uma
vez	que,	para	refutá-los,	penso	que	bastem	as	coisas	que	já	foram	ditas.
Maria	é	mãe	da	natureza	humana	de	Cristo
9	Por	que,	então,	disse	o	Filho	à	Sua	mãe:	“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?
Minha	hora	ainda	não	chegou”?	Nosso	Senhor	Jesus	Cristo	era,	ao	mesmo
tempo,	Deus	e	homem.	Como	Deus,	não	tinha	mãe;	mas,	como	homem,	a
tinha.	Ela	era	a	mãe	da	carne,	mãe	da	humanidade,	mãe	da	fraqueza	que
Ele	assumiu	por	nós.	Ora,	o	milagre	que	estava	para	operar,	Ele	o	realizaria
segundo	a	divindade,	e	não	segundo	a	fraqueza;	como	quem	era	Deus,	e	não
como	quem	nasceu	fraco.	“Todavia,	o	que	é	fraqueza	de	Deus	é	mais	forte
do	que	os	homens”.⁵ ¹	Sua	mãe	exigia,	pois,	um	milagre,	mas	Ele	parece	não
reconhecer	as	entranhas	humanas	no	momento	em	que	está	para	operar
feitos	divinos.	Ele	parece	dizer-lhe:	O	que	de	mim	realiza	o	milagre,	não
geraste	tu;	não	geraste	a	minha	divindade.	Como	geraste,	porém,	a	minha
fraqueza,	eu	te	reconhecerei	quando	essa	mesma	fraqueza	pender	da	cruz.
Eis,	pois,	o	que	quer	dizer:	“Minha	hora	ainda	não	chegou”.	Reconheceu,
então,	a	mãe	que	sempre	tinha,	por	certo,	conhecido.	Antes	mesmo	que	dela
nascesse,	Ele	conhecia	Sua	mãe	na	predestinação.	E,	antes	mesmo	de	Ele	ter
criado	como	Deus	aquela	de	quem	Ele	próprio	seria	criado	como	homem,	já
conhecia	a	Sua	mãe.	Em	certa	hora,	porém,	Ele	misteriosamente	não	a
reconheceu,	e	noutra	hora,	que	então	ainda	não	havia	chegado,	Ele	haveria
de	reconhecê-la,	de	novo	misteriosamente.	Reconheceu-a	então,	quando
morria	o	que	ela	dera	à	luz.	Não	morria	Aquele	por	meio	de	quem	Maria
fora	criada,	mas	O	que	havia	sido	formado	dela.	Não	morria	a	eternidade
da	divindade,	mas	morria	a	fraqueza	da	carne.	O	Senhor	deu	essa	resposta
a	fim	de	distinguir,	na	fé	dos	crentes,	quem	viera	e	por	que	meio	viera.	Com
efeito,	veio	por	meio	de	uma	mulher,	Sua	mãe,	Aquele	que	é	Deus	e	Senhor
do	céu	e	da	terra.	Como	Senhor	do	mundo,	Senhor	do	céu	e	da	terra,	é
evidentemente	também	o	Senhor	de	Maria;	como	Criador	do	céu	e	da	terra,
é	igualmente	Criador	de	Maria.	Mas,	à	medida	que	d’Ele	se	diz:	“Nascido
de	uma	mulher,	nascido	sob	a	Lei”,⁵ ²	é	filho	de	Maria.	Ele	mesmo	é	Senhor
de	Maria	e	filho	de	Maria;	Ele	mesmo,	Criador	de	Maria	e	criado	a	partir
de	Maria.	Não	te	admires	de	que	seja	Senhor	e	filho,	pois,	como	é	chamado
filho	de	Maria,	é	também	denominado	filho	de	Davi;	e	é	filho	de	Davi
precisamente	por	ser	filho	de	Maria.	Ouve	o	Apóstolo	a	dizer	abertamente:
“Nascido	da	estirpe	de	Davi	segundo	a	carne”.⁵ ³	Ouve	como	Ele	é	também
Senhor	de	Davi;	que	o	diga	o	próprio	Davi:	“Disse	o	Senhor	a	meu	Senhor,
senta-te	à	minha	direita”.⁵ ⁴	O	próprio	Jesus	o	propôs	aos	judeus	e,	com
isso,	os	confundiu.⁵ ⁵	Como,	pois,	é	filho	e	Senhor	de	Davi?	É	filho	de	Davi
segundo	a	carne,	é	Senhor	de	Davi	segundo	a	divindade.	É,	assim	também,
filho	de	Maria	segundo	a	carne,	Senhor	de	Maria	segundo	a	majestade.
Portanto,	porque	não	era	ela	mãe	de	Sua	divindade	e	porque	Ele	estava
para	operar,	pela	divindade,	o	milagre	que	ela	pedia,	respondeu-lhe:
“Mulher,	o	que	há	entre	mim	e	ti?”.	Mas	para	que	tu	não	penses	que	eu	te
renegue	como	mãe:	“Minha	hora	ainda	não	chegou”.	Aí,	então,	eu	te
reconhecerei,	quando	começar	a	pender	da	cruz	a	fraqueza	da	qual	és	mãe.
Provemos	se	isso	é	verdade.	Quando	o	Senhor	padeceu,	como	narra	o
mesmo	evangelista	–	que	conhecia	a	mãe	do	Senhor	e	que	nos	esclareceu
também,	nestas	núpcias,	que	ela	era	a	mãe	do	Senhor	–	esse	mesmo
evangelista	narra:	“Perto	da	cruz	de	Jesus,	permaneciam	de	pé	Sua	mãe…	e
Jesus	disse	à	Sua	mãe:	Eis	aí	o	teu	filho.	E	ao	discípulo:	Eis	a	tua	mãe!”.⁵
Ele	confia	Sua	mãe	ao	discípulo.	Confia	Sua	mãe	quem	havia	de	morrer
antes	que	a	mãe	e	havia	de	ressuscitar	antes	da	morte	da	mãe.	Um	ser
humano,	a	outro	ser	humano,	confia	um	ser	humano.	Estava	lá	o	que	Maria
dera	à	luz.	Chegara	já	a	hora	em	referência	à	qual	dissera,	naquele
momento:	“Minha	hora	ainda	não	chegou”.
“Minha	hora	ainda	não	chegou”.	A	objeção	dos	astrólogos
10	Segundo	me	parece,	irmãos,	respondeu-se	aos	hereges.	Respondamos,
agora,	aos	astrólogos.	Em	que	prova	se	apoiam	estes	para	convencer-nos	de
que	Jesus	estava	sujeito	ao	destino?	–	Ele	mesmo	o	declarou,	dizem	eles:
“Minha	hora	ainda	não	chegou”.	Nós	cremos	n’Ele,	portanto!	Se	houvesse
dito:	Eu	não	tenho	hora,	teria	assim	excluído	os	astrólogos.	Mas,	continuam
eles,	eis	que	diz	de	Si	mesmo:	“Minha	hora	ainda	não	chegou”.
Consequentemente,	se	houvesse	dito:	Eu	não	tenho	hora,	teria	excluído	os
astrólogos,	os	quais	não	teriam	mais	pretexto	para	caluniar.	Como,	porém,
assim	Se	expressou:	“Minha	hora	ainda	não	chegou”,	o	que	podemos	nós
dizer	contra	as	palavras	d’Ele?	Admira	que	os	astrólogos,	crendo	nas
palavras	de	Cristo,	se	esforcem	para	convencer	os	cristãos	de	que	Cristo
teria	vivido	sob	o	domínio	de	uma	hora	fatal.	Que	eles,	portanto,	creiam	em
Cristo,	que	declara:	“Tenho	poder	de	entregar	minha	vida	e	poder	de
retomá-la.	Ninguém	ma	arrebata,	mas	eu	a	dou	livremente	e,	de	novo,	a
retomo”.⁵ ⁷	Acaso	esse	poder	estaria	submetido	também	à	fatalidade?	Que
nos	mostrem	um	homem	com	poder	sobre	quando	há	de	morrer	e	por
quanto	tempo	há	de	viver.	Não	hão	de	mostrá-lo	absolutamente!	Que
creiam,	pois,	em	Deus	que	afirma:	“Tenho	poder	de	entregar	minha	vida	e
poder	de	retomá-la”,	e	então	procurem	saber	por	que	disse:	“Minha	hora
ainda	não	chegou”;	mas	não	ponham,	por	isso,	sob	o	domínio	da	fatalidade
o	Criador	do	céu,	que	criou	e	ordenou	os	astros.	Mesmo	supondo	que
houvesse	fatalidade	oriunda	dos	astros,	não	poderia	estar	sob	a	necessidade
dos	astros	o	Criador	dos	astros.	E	acrescenta	que	não	somente	Cristo	não
esteve	sujeito	ao	que	chamas	de	fatalidade,	mas	tampouco	tu	o	estás,	ou	eu,
ou	aquele	outro,	ou	qualquer	dos	homens.
A	escravidão	trazida	pelos	astrólogos
11	Os	que	já	foram	seduzidos,	no	entanto,	seduzem	e	propõem	falácias	aos
homens,	estendendo	armadilhas	para	capturá-los,	até	nas	praças	públicas.
Quem	prepara	armadilhas	para	caçar	feras	fá-lo	nos	bosques,	em	lugar
deserto.	Quão	tristemente	vãos	são	os	homens,	quando	em	praça	pública	se
prepara	uma	armadilha	com	o	fim	de	capturá-los!	Quando	homens	se
vendem	a	outros	homens,	recebem	dinheiro.	E	esses,	por	sua	vez,	dão
dinheiro	para	vender-se	às	vaidades.	Entram,	pois,	na	casa	do	astrólogo
para	comprar	para	si	senhores	tais,	quais	ao	astrólogo	aprouver	dar-lhes,
por	exemplo:	Saturno,	Júpiter,	Mercúrio	ou	qualquer	outra	coisa	de	nome
sacrílego.	Aquele	homem	entrou	livre	para,	após	ter	dado	seu	dinheiro,	sair
escravo!	Aliás,	não	teria,	na	verdade,	entrado	ali,	se	livre	fosse;	mas	entrou
no	lugar	aonde	o	arrastaram	o	erro	que	o	domina,	a	cobiça	que	o	tiraniza.
Daí	que	assim	fale	a	Verdade:	“Todo	aquele	que	comete	o	pecado	é	escravo
do	pecado”.⁵ ⁸
Conclusão
12	Por	qual	motivo,	então,	disse	o	Senhor:	“Minha	hora	ainda	não	chegou”?
Na	verdade,	porque	tinha	o	poder	de	escolher	quando	morreria	e	via	que
ainda	não	era	oportuno	fazer	uso	daquele	poder.	Como	nós,	irmãos,	por
exemplo,	falamos	assim:	Já	está	na	hora	de	sairmos	para	celebrar	os
mistérios	divinos?⁵ 	Caso	saiamos	antes	da	hora	oportuna,	não	somos
inoportunos	e	intempestivos?	Uma	vez	que	não	o	fazemos,	a	não	ser	quando
é	o	momento	oportuno,	por	agir	assim,	consideramos	a	fatalidade	ao
falarmos	dessa	maneira?	O	que	significa,	pois:	“Minha	hora	ainda	não
chegou”?	Ainda	não	chegou	essa	hora	em	que	sei	que	será	oportuno	que	eu
padeça,	quando	a	minha	paixão	será	proveitosa;	será	então	por	vontade
livre	que	padecerei.	Desse	modo,	manterás	ambas	as	palavras:	“Minha	hora
ainda	não	chegou”,	e:	“Tenho	poder	de	entregar	minha	vida	e	poder	de
retomá-la”.	O	Senhor	viera,	pois,	tendo	em	seu	poder	a	escolha	de	quando
morreria.	Caso	morresse,	porém,	antes	de	escolher	os	discípulos,	seria,
evidentemente,	intempestivo.	Se	ele	fosse	apenas	um	homem,	que	não	tivesse
em	seu	poder	a	sua	hora,	poderia	morrer	antes	de	ter	escolhido	os
discípulos.	Caso,	talvez,	viesse	a	morrer	depois	que	osdiscípulos	já	tivessem
sido	escolhidos	e	instruídos,	isso	seria	algo	que	se	lhe	concederia,	não	que	ele
próprio	fizesse.	Na	realidade,	porém,	quem	viera	tendo	em	mãos	o	poder	de
decidir	quando	iria,	quando	voltaria	e	até	que	ponto	chegaria,	e	a	quem	os
infernos	se	abririam,	não	somente	ao	morrer,	mas	também	ao	ressuscitar,	a
fim	de	que	se	mostrasse	à	Sua	Igreja	a	esperança	da	imortalidade,	faz	ver,
na	Cabeça,	o	que	os	membros	deveriam	esperar.	Ressuscitará,	também,	nos
outros	membros	Aquele	que	ressuscitou	como	Cabeça.	Mas	ainda	não	tinha
chegado	a	hora,	ainda	não	era	o	momento	oportuno.	Os	discípulos	tinham
de	ser	chamados,	tinha	de	ser	anunciado	o	Reino	dos	céus,	prodígios	tinham
de	ser	feitos,	havia	de	confirmar-se,	nos	milagres,	a	divindade	do	Senhor,	e
de	confirmar-se	a	Sua	humanidade	no	próprio	sofrimento	compartilhado	da
mortalidade.	Com	efeito,	Aquele	que	sentia	fome	porque	era	homem,
alimentou	com	cinco	pães	a	outros	tantos	milhares	de	homens	porque	era
Deus. ¹	Aquele	que	dormia	por	ser	homem,	dava	ordens	aos	ventos	e	às
ondas	por	ser	Deus. ²	Era	preciso,	primeiramente,	que	tudo	isso	se
comprovasse	para	que	houvesse	o	argumento	sobre	o	qual	escreveriam	os
evangelistas,	e	que	se	pregaria	à	Igreja.	Mas	logo	que	o	Senhor	fez	tanto
quanto	julgou	suficiente,	veio	a	hora	não	da	necessidade,	mas	da	vontade;
não	da	condição,	mas	da	potestade.
Temas	da	próxima	homilia
13	Que	mais,	irmãos?	Por	termos	respondido	a	uns	e	a	outros,	nada	diremos
a	respeito	do	significado	das	talhas,	da	água	convertida	em	vinho,	do
mestre-sala,	do	noivo,	da	mãe	de	Jesus,	neste	mistério,	e	das	próprias
núpcias?	É	preciso	explicar	tudo,	mas	não	haveis	de	fatigar-vos.	Em	nome
de	Cristo,	quis	tratar	disso	convosco,	sem	dúvida,	no	dia	de	ontem,	em	que
se	costuma	dever	um	sermão	à	vossa	caridade,	todavia,	não	me	foi	possível
fazê-lo	em	decorrência	de	certas	obrigações	que	mo	impediram.	Se,
portanto,	à	santidade	vossa	aprouver,	difiramos	para	amanhã	o	que	diz
respeito	ao	mistério	deste	fato	e,	assim,	não	sobrecarreguemos	a	vossa
fraqueza,	nem	a	nossa.	Aqui	talvez	haja	muitos	que	vieram	hoje	devido	à
solenidade	do	dia,	não	para	ouvir	um	sermão.	Aqueles	que	amanhã	vierem,
venham	para	escutá-lo;	de	modo	a	não	defraudarmos	os	interessados,	nem
cansarmos	os	que	experimentam	fastio.
HOMILIA	9
As	bodas	de	Caná	(II)	(Jo	2,1-11)
O	significado	misterioso	dos	fatos
1	Assista-nos	o	Senhor	nosso	Deus,	a	fim	de	conceder-nos	pagar	o	que	vos
prometemos.	No	dia	de	ontem,	com	efeito,	se	disso	se	lembra	a	vossa
caridade,	vencidos	pela	exiguidade	do	tempo	de	modo	a	não	terminarmos	o
sermão	começado,	diferimo-lo	para	hoje,	para	que	se	revelassem,	com	a
ajuda	divina,	as	realidades	que	misticamente	se	encontram,	em	termos
misteriosos, ³	neste	fato	da	leitura	evangélica.	Já	não	é,	pois,	necessário,
deter-nos	por	mais	tempo	a	encomiar	o	milagre	de	Deus;	na	verdade,	esse
mesmo	Deus	é	quem	opera,	em	toda	a	criação,	cotidianos	milagres,	que
pareceram,	aos	olhos	dos	homens	–	não	por	sua	facilidade,	mas	por	sua
assiduidade	–,	diminuir	de	valor.	Pelo	contrário,	os	milagres	excepcionais
realizados	pelo	próprio	Senhor,	isto	é,	pelo	Verbo	encarnado	por	nós,
provocaram	entre	os	homens	maior	estupefação,	não	por	serem	maiores	que
os	feitos	por	Ele	a	cada	dia	na	criação,	mas	porque,	ao	serem	cotidianos,
estes	parecem	estar	inseridos	no	curso	natural	das	coisas;	ao	passo	que	os
outros	parecem	exibir-se	aos	olhos	dos	homens	pela	eficácia	de	um	poder,
por	assim	dizer,	presente.	Dissemos,	conforme	recordais:	um	só	morto
ressuscitou,	e	os	homens	ficaram	estupefatos,	mas	ninguém	se	admira	de
que	nasçam	todos	os	dias	crianças	que	não	existiam.	De	modo	semelhante,
quem	não	se	espanta	com	a	água	convertida	em	vinho,	apesar	de	Deus	fazer
isso,	todos	os	anos,	nas	videiras!	Mas,	como	todas	as	obras	que	o	Senhor
Jesus	fez	têm	como	finalidade	não	somente	inflamar	os	nossos	corações,	por
seu	caráter	miraculoso,	mas	também	edificá-los	na	doutrina	da	fé,	é	preciso,
então,	que	perscrutemos	o	que	querem	dizer	todas	aquelas	coisas,	isto	é,	o
que	significam.	Como	lembrais,	diferimos	para	hoje	os	significados	de	todas
essas	coisas.
O	Senhor:	autor	das	núpcias
2	O	fato	de	o	Senhor,	convidado,	ter	vindo	às	núpcias,	mesmo
independentemente	de	qualquer	significação	simbólica,	quis	confirmar	que
Ele	mesmo	as	fez.	Haveria	de	surgir	homens,	a	respeito	dos	quais	disse	o
Apóstolo,	que	proibiriam	o	matrimônio, ⁴	afirmando	que	o	casamento	seria
mau,	que	o	diabo	o	teria	feito,	apesar	de	o	próprio	Senhor	dizer,	no
Evangelho,	quando	interrogado	se	era	lícito	ao	homem	despedir	a	sua
esposa	por	qualquer	motivo,	que	tal	coisa	não	é	permitida,	a	não	ser	em	caso
de	fornicação.	E,	nessa	resposta,	se	bem	vos	lembrais,	acrescentou	o
seguinte:	“Não	separe	o	homem	o	que	Deus	uniu”. ⁵	Aqueles	que	estão	bem
instruídos	na	fé	católica	sabem	que	Deus	instituiu	o	casamento;	e	que,	assim
como	a	união	conjugal	vem	de	Deus,	a	separação	vem	do	diabo.	Por	isso,	em
caso	de	fornicação,	é	lícito	que	se	despeça	a	mulher,	porque	não	quis,	por
primeiro,	ser	esposa,	aquela	mesma	que	não	guardou	fidelidade	conjugal	a
seu	marido.	Nem	mesmo	aquelas	que	consagram	a	Deus	sua	virgindade,
ainda	que	possuam,	na	Igreja,	um	grau	mais	elevado	de	honra	e	santidade,
estão	privadas	de	núpcias,	pois	participam	com	toda	a	Igreja	de	algumas
núpcias,	daquelas	núpcias	em	que	o	Esposo	é	Cristo.	Foi,	pois,	para	isto	que
o	Senhor,	tendo	sido	convidado,	veio	àquelas	bodas,	a	saber,	para	confirmar
a	castidade	conjugal	e	manifestar	o	mistério	das	núpcias.	Visto	desse	modo,
o	próprio	esposo	daquelas	bodas,	ao	qual	foi	dito:	“Reservaste	o	bom	vinho
até	agora”,	representava	a	pessoa	do	Senhor.	Com	efeito,	Cristo	guardou	o
bom	vinho	até	agora,	isto	é,	Seu	Evangelho.
O	símbolo	da	água	convertida	em	vinho.	A	água	da	profecia
3	Comecemos,	pois,	de	uma	vez,	a	descobrir	os	próprios	segredos	dos
mistérios,	pelo	menos	na	medida	em	que	o	permitir	Aquele	em	cujo	nome
nós	vo-lo	prometemos.	A	profecia	existia	desde	tempos	antigos,	e	tempo
algum	deixou	de	contar	com	a	dispensação	da	profecia.	Mas	aquela
profecia,	quando	nela	não	era	Cristo	reconhecido,	era	como	água.	O	vinho
oculta-se,	pois,	de	certo	modo	na	água.	Diz	o	Apóstolo	o	que	devemos
entender	nessa	água:	“Até	hoje”	–	diz	ele	–	“quando	se	lê	Moisés,	um	véu
permanece	sobre	o	coração	deles.	Não	é	retirado,	porque	é	em	Cristo	que	ele
desaparecerá.	É	somente	quando	te	tiveres	convertido	ao	Senhor”	–	afirma
ainda	–	“que	o	véu	será	tirado”. 	Por	esse	véu,	Paulo	entende	o
ocultamento	da	profecia,	que	leva	a	que	não	seja	ela	compreendida.	O	véu	é
retirado	quando	tu	te	convertes	ao	Senhor.	É	retirada,	então,	a
insipiência, ⁷	quando	te	convertes	ao	Senhor,	e	o	que	era	apenas	água
transformar-se-á	em	vinho	para	ti.	Lê	todos	os	livros	proféticos,	de	modo	tal
que	neles	não	entendas	Cristo;	o	que	encontrarás	de	mais	insípido	e
desprovido	de	sentido?	Entende	ali	a	Cristo,	e	não	somente	terá	sabor	o	que
leres,	mas	inebriará	até,	deslocando	do	corpo	a	tua	mente,	de	sorte	que,
esquecendo-te	do	que	fica	para	trás,	tendas	para	o	que	está	adiante. ⁸
Todo	o	Antigo	Testamento	profetiza	Cristo
4	Desde	os	tempos	antigos,	portanto,	desde	que	avança	a	ordem	dos	que
nascem	no	gênero	humano,	a	profecia	jamais	calou	a	respeito	de	Cristo;
mas	havia	ali	algo	oculto,	pois	era	ainda	água.	Como	provamos	que,	em
todos	os	tempos	anteriores	até	a	época	em	que	o	Senhor	veio,	nunca	cessou	a
profecia	a	respeito	d’Ele?	Pelo	próprio	Senhor	que	o	diz!	Com	efeito,
quando	ressuscitou	dentre	os	mortos,	Jesus	encontrou	os	discípulos	em
dúvida	com	relação	Àquele	que	haviam	seguido.	Tinham-n’O	visto	morto,
mas	não	esperavam	que	houvesse	de	ressuscitar	e	toda	a	esperança	deles
caíra	por	terra.	Por	que	aquele	ladrão	foi	louvado,	e	mereceu	estar	no
paraíso	naquele	mesmo	dia?	Porque,	pregado	na	cruz,	confessou	então	a
Cristo,	quando	os	discípulos	duvidaram	a	respeito	d’Ele. 	O	Senhor
encontrou-os,	portanto,	vacilantes	e	a	censurar-se,	de	algum	modo,	por
terem	esperado	n’Ele	a	redenção.	Lamentavam-se	por	ter	sido	morto	sem
culpa	alguma,pois	sabiam-n’O	inocente.	É	justamente	isso	que	declararam,
depois	da	ressurreição,	quando	o	próprio	Senhor	encontrou	alguns	deles
acabrunhados	pelo	caminho:	“Tu	és	o	único	forasteiro	em	Jerusalém,	que
ignora	os	fatos	que	nela	aconteceram	nestes	dias?	–	Quais?	–	disse-lhes	Ele.
Responderam:	O	que	aconteceu	a	Jesus	de	Nazaré,	que	foi	um	profeta
poderoso,	em	obras	e	em	palavras,	diante	de	Deus	e	de	todo	o	povo,	e	como
nossos	sumos	sacerdotes	e	nossos	chefes	O	entregaram	para	ser	condenado	à
morte	e	O	crucificaram.	Nós	esperávamos,	porém,	que	fosse	Ele	quem
haveria	de	redimir	Israel,	mas,	com	tudo	isso,	hoje	faz	três	dias	que	essas
coisas	aconteceram!”. ¹ 	Essas	palavras	e	outras	semelhantes	foram
pronunciadas	por	um	dos	dois	discípulos	que	o	Senhor	encontrou	no
caminho,	dirigindo-se	para	a	aldeia	próxima.	Então,	Ele	mesmo	respondeu,
dizendo:	“Ó	insensatos	e	lentos	de	coração	para	crer	em	tudo	o	que	falaram
os	profetas!	Não	era	preciso	que	o	Cristo	sofresse	tudo	isso,	e	entrasse	em
Sua	glória?	E	começando	por	Moisés	e	por	todos	os	profetas,	esteve	a
interpretar	para	eles,	em	todas	as	Escrituras,	o	que	a	Ele	próprio	dizia
respeito”. ¹¹	Igualmente,	em	outra	passagem,	quando	quis	ser	apalpado
pelas	mãos	de	Seus	discípulos	para	que	cressem	que	Ele	ressuscitara
corporalmente,	disse-lhes	ainda:	“São	estas	as	palavras	que	eu	vos	falei,
quando	ainda	estava	convosco:	era	preciso	que	se	cumprisse	tudo	o	que	está
escrito	sobre	mim	na	Lei	de	Moisés,	nos	profetas	e	nos	salmos”.	Então,
abriu-lhes	a	mente	para	que	entendessem	as	Escrituras	e	disse-lhes:	“Assim
está	escrito,	que	o	Cristo	devia	sofrer	e	ressuscitar	dos	mortos	ao	terceiro
dia,	e	que,	em	Seu	nome,	seria	proclamada	a	conversão	e	a	remissão	dos
pecados	a	todas	as	nações,	a	começar	de	Jerusalém”. ¹²
Cristo	revela	o	sentido	das	profecias
5	Uma	vez	compreendidas	essas	palavras	tomadas	do	Evangelho,	que
certamente	são	claras,	todos	os	mistérios	que	nesse	milagre	do	Senhor	estão
escondidos	tornar-se-ão	patentes.	Vede	o	que	diz:	“Era	preciso	que	se
cumprisse	no	Cristo	tudo	o	que	está	escrito	a	respeito	d’Ele”.	Onde	está
escrito?	“Na	Lei	–	diz	Ele	–,	nos	profetas	e	nos	salmos”. ¹³	Parte	alguma	das
antigas	Escrituras	foi	deixada	de	lado.	Era	a	Escritura	água,	e	o	Senhor	os
chamou,	por	isso	mesmo,	de	insensatos,	porque	ela	ainda	lhes	sabia	a	água,
não	a	vinho.	Mas	como	fez	o	Senhor	da	água	vinho?	Abrindo-lhes	a
inteligência	e	explicando-lhes	as	Escrituras,	começando	por	Moisés	e
percorrendo	todos	os	profetas.	Daí	que,	já	inebriados,	dissessem	entre	si:
“Não	ardia	o	nosso	coração	quando	nos	falava	pelo	caminho,	quando	nos
explicava	as	Escrituras?”. ¹⁴	É	que	tinham	reconhecido	a	Cristo	nesses
livros,	nos	quais,	antes,	não	O	reconheceram.	Nosso	Senhor	Jesus	Cristo
mudou,	pois,	a	água	em	vinho,	e	o	que	não	tinha	sabor	adquire-o;	o	que	não
inebriava,	inebria.	Se	Ele	tivesse	mandado	derramar	dali	a	água	e,	assim,
substituísse	por	um	vinho	tirado	das	profundidades	misteriosas	da	criação,
–	assim	fizera	também	com	o	pão,	quando	o	deu	de	comer	à	saciedade	a
tantos	milhares	de	pessoas; ¹⁵	com	efeito,	com	cinco	pães	não	se	poderia
saciar	a	fome	de	cinco	mil	homens	e	nem	sequer	encher	doze	cestos,	mas	a
onipotência	do	Senhor	era	a	fonte,	por	assim	dizer,	do	pão	e,	então,	bem
poderia	Ele	deitar	vinho	ali,	uma	vez	derramada	a	água	–	se	o	tivesse	feito,
digo,	teria	parecido	que	reprovava	as	antigas	Escrituras.	Não	obstante,	pelo
contrário,	ao	converter	a	água	em	vinho,	mostra-nos	que	também	a	antiga
Escritura	vem	d’Ele,	pois,	por	ordem	Sua,	encheram-se	as	talhas. ¹
Também	aquela	Escritura	vem,	por	certo,	do	Senhor,	mas	a	nada	sabe,	se
nela	não	for	entendido	Cristo.
As	seis	talhas	representam	as	seis	idades	do	mundo
6	Prestai	atenção,	por	outro	lado,	ao	que	o	próprio	Senhor	diz:	“O	que	está
escrito	na	Lei,	nos	profetas	e	nos	salmos,	a	meu	respeito”.	Nós	sabemos	a
partir	de	que	época	a	Lei	começa	sua	narração,	a	saber,	a	partir	da	origem
do	mundo:	“No	princípio,	Deus	criou	o	céu	e	a	terra”. ¹⁷	Desde	então,	até
este	tempo	em	que	agora	estamos	vivendo,	há	seis	idades,	conforme	ouvistes
muitas	vezes	e	o	sabeis.	A	primeira	idade	vai	desde	Adão	até	Noé;	a
segunda,	desde	Noé	até	Abraão;	e,	conforme	o	evangelista	Mateus,	por
ordem,	avança	e	distingue,	a	terceira	vai	desde	Abraão	até	Davi;	a	quarta,
desde	Davi	até	a	transmigração	para	a	Babilônia;	a	quinta,	desde	a
transmigração	para	a	Babilônia	até	João	Batista,	e	a	sexta	vai	daí	até	o	fim
do	mundo. ¹⁸	Por	isso,	também	no	sexto	dia,	Deus	criou	o	homem	à	Sua
imagem, ¹ 	pois,	nessa	sexta	idade,	manifesta-se	pelo	Evangelho	a	renovação
do	nosso	espírito	conforme	a	imagem	d’Aquele	que	nos	criou. ² 	A	água
converte-se	em	vinho	para	que	já	saboreemos	a	Cristo,	manifestado	na	Lei	e
nos	profetas.	Por	isso	havia	ali	seis	talhas	que	Ele	ordenou	se	enchessem	de
água. ²¹	Aquelas	seis	talhas	significavam,	pois,	as	seis	idades,	às	quais	não
faltou	profecia.	Aqueles	seis	tempos,	repartidos	e	como	que	divididos	em
outros	tantos	momentos	distintos,	seriam	como	talhas	vazias	se	por	Cristo
não	fossem	cheios.	Que	disse	eu?	Os	tempos	transcorreriam	vazios,	se	o
Senhor	Jesus	não	fosse	anunciado	neles?	Cumpriram-se	as	profecias,	as
talhas	já	estão	cheias.	Mas,	para	que	a	água	se	converta	em	vinho,	é
necessário	que	se	entenda	Cristo	em	toda	aquela	profecia.
O	símbolo	das	“duas	ou	três	medidas”
7	O	que	quer	dizer:	“cada	uma	contendo	de	duas	a	três	medidas”? ²²	Essa
expressão	encarece	para	nós,	especialmente,	um	mistério.	“Metretas”
designam,	pois,	certas	medidas,	como	se	fosse	dito:	urnas,	ânforas	ou	coisa
parecida.	Mas	a	palavra	“metreta”	é	o	nome	de	uma	medida,	e	da	palavra
“medida”	recebe	seu	nome	essa	medida,	pois	os	gregos	dizem	métron	à
medida,	daí	que	estas	se	chamem	“metretas”.	As	talhas	continham,
portanto,	“duas	ou	três	medidas”	cada	uma.	O	que	dizermos	sobre	isso,
irmãos?	Se	o	evangelista	falasse	só	de	três	medidas,	nosso	espírito	não
correria	senão	ao	mistério	da	Trindade.	Mas,	talvez,	nem	sequer	assim
devamos	afastar	de	uma	vez	esse	sentido,	porque	diz:	“duas	ou	três
medidas”.	De	fato,	uma	vez	nomeados	o	Pai	e	o	Filho,	é	preciso
compreender	também,	consequentemente,	o	Espírito	Santo,	uma	vez	que	o
Espírito	Santo	não	é	Espírito	tão	somente	do	Pai,	ou	do	Filho,	mas	o
Espírito	do	Pai	e	do	Filho.	Está	escrito,	pois:	“Se	alguém	ama	o	mundo,	o
Espírito	do	Pai	não	está	nele”. ²³	E	está	escrito	igualmente:	“Quem	não	tem
o	Espírito	de	Cristo,	não	pertence	a	Ele”. ²⁴	Ora,	o	Espírito	do	Pai	e	do	Filho
é	o	mesmo.	Sendo,	assim,	nomeados	o	Pai	e	o	Filho,	é	também
compreendido	o	Espírito	Santo,	porque	é	o	Espírito	do	Pai	e	do	Filho.
Quando	se	faz	menção	do	Pai	e	do	Filho	é	como	se	nomeássemos	duas
medidas;	e,	quando	aí	é	entendido	o	Espírito	Santo,	têm-se	as	três	medidas.
Por	isso,	não	foi	dito	que	algumas	talhas	tinham	duas	medidas,	e	outras	três,
mas:	“Cada	uma	–	daquelas	seis	talhas	–	continha	duas	ou	três	medidas”,
como	se	dissesse:	Quando	digo	“duas”,	quero	que	o	Espírito	do	Pai	e	do
Filho	seja	entendido	juntamente	com	Eles;	e,	quando	digo	“três”,	enuncio
claramente	a	própria	Trindade.
O	Espírito	Santo	é	a	caridade
8	Quem	quer	que	nomeie	o	Pai	e	o	Filho	deve	entender	aí	como	que	a
caridade	mútua	do	Pai	e	do	Filho,	que	é	o	Espírito	Santo.	Com	efeito,	se
fossem	talvez	esquadrinhadas	as	Escrituras...	–	não	digo	isso	como	se	vo-lo
pudesse	ensinar	hoje,	ou	como	se	não	fosse	possível	descobrir-se	outra
interpretação	–	não	obstante,	talvez	as	Escrituras	perscrutadas	mostrem
que	o	Espírito	Santo	é	a	caridade.	E	não	penseis	que	a	caridade	é	coisa	de
pouco	valor.	Como	poderia,	aliás,	ser	de	pouco	valor,	quando	tudo	o	que	se
diz	coisa	de	não	pouco	valor,	é	dito	caro?	Logo,	se	tudo	o	que	não	possui
pouco	valor	é	caro,	haverá	algo	mais	caro	do	que	a	própria	caridade?	Assim
é	enaltecida	pelo	Apóstolo	a	caridade,	a	tal	ponto	que	ele	declara:	“Vou
indicar-vos	um	caminho	superior	a	todos.	Ainda	que	eu	falasse	em	línguas,
nas	dos	homens	e	nas	dos	anjos,	se	eu	não	tivesse	a	caridade,	seria	como	um
bronze	que	soa	ou	como	um	címbalo	que	retine.	Ainda	que	euconhecesse
todos	os	mistérios ²⁵	e	toda	a	ciência,	ainda	que	tivesse	o	dom	da	profecia	e
toda	a	fé,	a	ponto	de	transportar	os	montes,	se	não	tivesse	a	caridade,	eu
nada	seria.	Ainda	que	eu	distribuísse	todos	os	meus	bens	aos	famintos,
ainda	que	entregasse	o	meu	corpo	a	arder,	se	não	tivesse	a	caridade,	isso	de
nada	me	adiantaria”. ² 	Qual	não	é,	então,	o	valor	da	caridade	que,	se	falta,
em	vão	se	têm	as	outras	coisas,	ao	passo	que,	se	está	presente,	tudo	se	tem
retamente?	Todavia,	louvando	tão	rica	e	abundantemente	a	caridade,	o
apóstolo	Paulo	diz	menos	a	respeito	dela	do	que	disse	em	breves	palavras	o
apóstolo	João,	de	quem	é	este	Evangelho.	Este	último	não	hesitou,	pois,	em
dizer:	“Deus	é	caridade”. ²⁷	E	está	escrito	ainda:	“O	amor	de	Deus	foi
derramado	em	nossos	corações	pelo	Espírito	Santo	que	nos	foi	dado”. ²⁸
Quem	pode,	então,	nomear	o	Pai	e	o	Filho,	sem	entender	aí	a	caridade	do
Pai	e	do	Filho?	Quando,	pois,	se	começa	a	possuí-la,	tem-se	o	Espírito
Santo;	e,	se	não	for	possuída,	sem	o	Espírito	Santo	se	estará.	E	assim,	como
se	o	teu	corpo	estiver	sem	espírito,	que	é	a	tua	alma,	estará	morto;	assim
também,	se	a	tua	alma	estiver	sem	o	Espírito	Santo,	isto	é,	se	estiver	sem	a
caridade,	será	tida	por	morta.	“As	jarras	continham,	portanto,	duas
medidas”,	porque,	na	profecia	de	todos	os	tempos,	o	Pai	e	o	Filho	são
anunciados.	Mas	aí	está	também	o	Espírito	Santo,	e,	por	isso,	foi
acrescentado:	“ou	três”.	Diz	o	Cristo:	“Eu	e	o	Pai	somos	um”. ² 	Longe	de
nós,	porém,	pensar	que	o	Espírito	Santo	esteja	ausente,	quando	ouvimos:
“Eu	e	o	Pai	somos	um”.	Porque	nomeou	o	Pai	e	o	Filho,	no	entanto,
contenham	as	talhas	duas	medidas;	mas	escuta	o	que	se	segue:	“ou	três”.
“Ide,	batizai	todas	as	nações,	em	nome	do	Pai,	do	Filho	e	do	Espírito
Santo”. ³ 	Assim,	quando	se	mencionam	as	duas	medidas,	a	Trindade	não
está	expressa,	mas,	sim,	entendida;	e	quando	se	fala,	por	outro	lado,	“ou	três
medidas”,	também	a	Trindade	está	expressa.
Segunda	interpretação:	a	salvação	de	todas	as	nações
9	Não	obstante,	existe	ainda	outra	interpretação	que	não	deve	ser	deixada
de	lado,	e	eu	direi	qual	é.	Que	cada	um	escolha	a	que	mais	lhe	agrada;
quanto	a	nós,	não	subtraímos	o	que	se	nos	sugere.	A	mesa	é,	pois,	do	Senhor,
e	não	convém	que	um	ministro	defraude	os	convivas,	principalmente
quando	estão	tão	famintos,	que	se	nota	a	vossa	avidez.	A	profecia,	que	se
dispensa	desde	os	tempos	remotos,	diz	respeito	à	salvação	de	todos	os	povos.
Ao	único	povo	de	Israel,	na	verdade,	foi	enviado	Moisés;	e	apenas	a	esse
povo	foi	dada	a	Lei	por	seu	intermédio.	Os	próprios	profetas	surgiram
também	desse	povo,	segundo	o	qual	se	fez	a	própria	divisão	dos	tempos.	Daí
que	aquelas	talhas	se	digam	também	destinadas	“à	purificação	dos
judeus”. ³¹	Entretanto,	é	evidente	que	a	profecia	era	também	anunciada	aos
outros	povos,	visto	que,	nesse	povo,	estava	oculto	Cristo,	em	quem	são
abençoados	todos	os	povos,	tal	como	foi	prometido	a	Abraão,	quando	o
Senhor	lhe	diz:	“Em	tua	descendência,	serão	abençoadas	todas	as
nações”. ³²	Isso	não	era	ainda	conhecido,	todavia,	porque	a	água	ainda	não
tinha	sido	convertida	em	vinho.	A	profecia	era	dispensada,	portanto,	a	todas
as	nações.	E	para	que	isso	apareça	de	modo	mais	agradável,	recordemos
certas	coisas,	dentro	do	tempo	de	que	dispomos,	sobre	cada	uma	daquelas
idades,	que	é	como	se	disséssemos:	sobre	cada	uma	das	talhas.
A	primeira	idade,	Adão	e	Eva
10	No	próprio	início	da	humanidade,	Adão	e	Eva	foram	os	progenitores	de
todos	os	povos,	não	somente	dos	judeus.	Tudo	o	que	estava	figurado	em
Adão	acerca	de	Cristo,	dizia	respeito,	por	certo,	a	todos	os	povos,	cuja
salvação	está	em	Cristo.	O	que	de	mais	apropriado	direi	eu	sobre	a	água	da
primeira	talha,	a	não	ser	o	que	o	Apóstolo	diz	sobre	Adão	e	Eva?	Na
verdade,	ninguém	dirá	que	compreendi	mal,	visto	que	não	manifesto	um
entendimento	meu,	mas	o	do	Apóstolo.	Que	grande	mistério	em	relação	a
Cristo	está	contido	naquela	unidade	enaltecida	pelo	Apóstolo,	que	diz:
“Serão	dois	em	uma	só	carne.	É	grande	este	mistério”!	E	para	que	ninguém
entendesse	que	a	grandeza	do	mistério	se	encontra	apenas	em	cada	um	dos
homens	que	possuem	esposa,	ele	acrescenta:	“Refiro-me	à	relação	entre
Cristo	e	a	Igreja”. ³³	Que	mistério	grande	é	este:	“Serão	dois	em	uma	só
carne”?	Quando	a	Escritura	do	Gênesis	falava	de	Adão	e	Eva,	chegou	a
estas	palavras:	“O	homem	deixará	o	seu	pai	e	a	sua	mãe	e	se	unirá	à	sua
mulher,	e	serão	ambos	uma	só	carne”. ³⁴	Ora,	se	Cristo	Se	uniu	à	Igreja
para	serem	dois	numa	só	carne,	como	deixou	o	Pai?	Como	deixou	a	mãe?
Deixou	o	Pai,	“porque	tendo	a	condição	divina,	não	considerou	o	ser	igual	a
Deus	como	algo	a	que	Se	apegar	ciosamente.	Mas	esvaziou-Se	a	Si	mesmo	e
assumiu	a	condição	de	escravo”. ³⁵	Eis	o	que	quer	dizer:	deixou	o	Pai.	Não
que	Ele	tenha	abandonado	o	Pai,	nem	que	Se	tenha	afastado	do	Pai,	mas
porque	não	apareceu	aos	homens	sob	aquela	forma	pela	qual	é	igual	ao	Pai.
Como	deixou	a	mãe?	Deixando	a	sinagoga	dos	judeus,	da	qual	nasceu
segundo	a	carne,	e	unindo-Se	à	Igreja	que	congregou	a	partir	de	todos	os
povos.	A	primeira	talha	continha,	portanto,	uma	profecia	acerca	de	Cristo;
mas,	enquanto	essas	verdades	de	que	falo	não	eram	pregadas	entre	os
povos,	havia	água	ainda,	não	tinha	sido	transformada	em	vinho.	Mas	como
o	Senhor	nos	iluminou	por	meio	do	Apóstolo,	com	a	intenção	de	mostrar-nos
o	que	havíamos	de	procurar	nesta	única	sentença:	“Serão	dois	numa	só
carne”,	o	grande	mistério	de	Cristo	e	da	Igreja,	é-nos	já	lícito	buscar	a
Cristo	em	toda	parte,	e	beber	o	vinho	de	todas	as	talhas.	Dorme	Adão	para
que	seja	formada	Eva. ³ 	Morre	Cristo	para	que	nasça	a	Igreja.	Eva	é
formada	do	lado	de	Adão,	enquanto	este	dormia.	Morto	Cristo,	o	Seu	lado	é
transpassado	pela	lança, ³⁷	para	que	brotem	os	sacramentos	com	que	a
Igreja	é	formada. ³⁸	Quem	não	vê	que	nesses	fatos,	já	passados,	estão
figuradas	as	realidades	futuras,	visto	que	o	Apóstolo	afirma	que	esse	Adão	é
figura	do	futuro:	“Ele	é	a	figura	de	quem	devia	vir”? ³ 	Tudo	estava
misteriosamente	prefigurado.	Na	verdade,	não	é	que	Deus	não	pudesse
extrair	verdadeiramente	uma	costela	de	Adão,	enquanto	estivesse	acordado,
e	formar	uma	mulher.	Ou	seria	necessário,	talvez,	que	ele	adormecesse
precisamente	para	que	não	lhe	doesse	o	lado,	quando	foi	extraída	a	costela?
Quem	pode	dormir	tão	profundamente	que	se	lhe	extraiam	ossos	sem	que
venha	a	acordar?	Ou	será	que,	por	ser	Deus	quem	fazia	a	extração,	o
homem,	por	causa	disso,	não	a	sentia?	Ora,	quem	pôde	tirar	sem	dor	uma
costela	ao	que	dormia,	teria	podido	também	retirá-la	sem	dor,	mesmo	se	ele
estivesse	acordado.	Mas	não	há	dúvida	de	que	a	primeira	talha	estava	já
repleta.	Com	relação	a	este	tempo	que	havia	de	chegar,	a	profecia	daquele
tempo	se	dispensava.
A	segunda	idade,	Noé
11	Cristo	foi	ainda	prefigurado	em	Noé,	assim	como	o	orbe	terrestre	o	foi
naquela	arca. ⁴ 	Por	que	foram	todos	os	animais	encerrados	na	arca,	senão
para	que	fossem	simbolizados	todos	os	povos?	Pois	a	Deus	não	faltavam
meios	de	criar	outra	vez	todas	as	espécies	de	animais.	De	fato,	quando	ainda
nenhuma	delas	existia,	não	disse	Ele:	“Que	a	terra	os	produza,	e	a	terra	os
produziu”? ⁴¹	Como	então	os	fez,	assim	tê-los-ia	refeito.	Com	Seu	Verbo	os
criou,	com	Seu	Verbo	os	tornaria	a	criar.	Não	punha	em	evidência	senão	um
mistério,	e	enchia	a	segunda	talha	da	dispensação	profética,	de	modo	que,
por	um	lenho,	se	salvasse	o	que	era	figura	do	orbe	das	terras,	pois	a	vida	do
mundo	havia	de	ser	cravada	num	lenho.
A	terceira	idade,	Abraão
12	Já	na	terceira	talha,	ao	próprio	Abraão	–	coisa	que	já	recordei	–	foi	dito:
“Em	tua	descendência,	serão	abençoadas	todas	as	nações”. ⁴²	E	quem	não	vê
de	quem	trazia	a	imagem	o	seu	filho	único,	que	carregava	consigo	a	lenha
do	sacrifício	ao	qual	era	conduzido	para	ser,	ele	próprio,	imolado?	Com
efeito,	o	Senhor	carregou	Sua	cruz,	como	fala	o	Evangelho. ⁴³	Que	seja
suficiente	ter	recordado	isso	a	respeito	da	terceira	talha.
A	quarta	idade,	Davi
13	Em	relação	a	Davi,	porém,	por	que	direi	que	sua	profecia	se	referia	a
todos	os	povos,	quando,	ainda	há	pouco,	ouvimosum	salmo,	e	é	difícil	que	se
recite	um	salmo	em	que	isso	não	ressoe?	Mas,	certamente,	como	disse,	agora
mesmo	cantamos:	“Levanta-te,	ó	Deus!	Julga	a	terra,	porque	todas	as
nações	são	tua	herança”. ⁴⁴	Eis	por	que	os	donatistas	foram	como	que
expulsos	das	núpcias,	como	aquele	homem	que	não	trazia	a	veste	nupcial.
Foi	convidado	às	bodas,	e	veio;	mas	foi	lançado	fora	do	número	dos
chamados	por	não	trazer	a	veste,	para	a	glória	do	esposo.	De	fato,	quem
procura	sua	própria	glória	e	não	a	de	Cristo,	não	possui	a	veste	nupcial.
Não	querem	eles	a	cantar	em	uníssono	com	a	voz	daquele	que	é	o	amigo	do
Esposo,	e	diz:	“Este	é	quem	batiza”. ⁴⁵	Não	sem	razão,	àquele	homem	que
não	trazia	a	veste	nupcial	foi	objetado,	por	uma	increpação,	algo	que	ele	não
era:	“Amigo,	por	que	entraste	aqui?”. ⁴ 	E	assim	como	emudeceu,	também	o
fazem	estes.	Que	aproveita	o	ruído	da	boca,	se	o	coração	está	mudo?
Reconheceram,	dentro	de	si	mesmos,	que	nada	tinham	a	dizer.
Internamente	emudeceram,	mas,	externamente,	fazem	muito	ruído.	Mas,
quer	queiram,	quer	não,	ouvem	cantar,	também	lá	entre	eles:	“Levanta-te,	ó
Deus,	julga	a	terra	porque	todas	as	nações	são	tua	herança” ⁴⁷	e,	ao	não
estarem	em	comunhão	com	todas	as	nações,	o	que	mais	reconhecem,	senão
que	foram	deserdados?
O	universalismo	da	salvação	nas	quatro	primeiras	idades
14	Como	dizia,	irmãos,	porque	a	profecia	se	refere	a	todos	os	povos...	–
quero	mostrar-vos,	pois,	outra	interpretação	do	que	se	disse:	“Continham
duas	ou	três	medidas”	–,	a	todos	os	povos,	digo,	se	refere	a	profecia,	e
lembramos	que	isso	foi	demonstrado	em	Adão,	“é	ele	a	figura	de	quem
devia	vir”. ⁴⁸	Quem	ignora	que	dele	nasceram	todos	os	povos	e	que,	nas
quatro	letras	do	seu	nome	[“Adam”],	se	mostram	as	quatro	partes	do	orbe
das	terras,	segundo	as	suas	denominações	gregas?	Na	verdade,	se
exprimirmos	em	grego	os	termos:	oriente,	ocidente,	aquilão	e	meio-dia,	tal
como	a	santa	Escritura	os	recorda	em	diversas	passagens,	nas	primeiras
letras	dessas	palavras,	encontrarás	“Adam”.	As	quatro	mencionadas	partes
do	mundo	dizem-se,	pois,	em	grego:	anatolḗ,	dúsis,	árktos,	mesēmbría”.	Se
escreveres	esses	quatro	nomes,	um	abaixo	dos	outros,	como	quem	escreve
quatro	versos,	lerás	a	palavra	“Adam”,	formada	com	as	suas	iniciais.	Esse
universalismo	também	foi	figurado	em	Noé,	por	causa	da	arca,	na	qual	se
encontravam	todas	as	espécies	de	animais,	imagens	de	todas	as	nações.
Encontra-se,	igualmente,	em	Abraão,	ao	qual	foi	dito	bem	claramente:
“Todas	as	nações	serão	abençoadas	em	tua	posteridade”. ⁴ 	Encontra-se
ainda	em	Davi,	um	de	cujos	salmos	–	para	omitir	outras	passagens	–
acabamos	de	cantar:	“Levanta-te,	ó	Deus,	julga	a	terra,	porque	todas	as
nações	são	tua	herança”. ⁵ 	A	que	Deus	está	dito	para	se	levantar,	senão
Àquele	que	dormiu?	“Levanta-te,	ó	Deus,	julga	a	terra”.	É	como	se	dissesse:
Tu	dormiste,	depois	de	teres	sido	julgado	pela	terra;	levanta-te,	agora,	para
que	julgues	a	terra.	E	até	onde	se	estende	essa	profecia?	“Porque	todas	as
nações	são	tua	herança”. ⁵¹
A	quinta	idade
15	Já	na	quinta	idade,	como	na	quinta	talha,	Daniel	viu	desprender-se	da
montanha	uma	pedra	sem	que	ninguém	a	tocasse.	Ela	lançou	por	terra
todos	os	reinos	do	mundo,	tornando-se	aquela	pedra,	depois,	um	grande
monte,	a	tal	ponto	que	enchia	toda	a	face	da	terra. ⁵²	O	que	há	de	mais
claro,	meus	irmãos?	Uma	pedra	desprende-se	do	monte.	“É	essa	pedra	que
os	construtores	rejeitaram	e	que	depois	se	tornou	a	pedra	angular”. ⁵³	De
que	monte	se	desprendeu	a	pedra,	senão	do	reino	dos	judeus,	no	qual	nosso
Senhor	Jesus	Cristo	nasceu	segundo	a	carne?	E	desprendeu-se	sem	que
ninguém	a	tocasse,	sem	o	concurso	de	homem	algum,	pois,	sem	enlace
marital	algum,	nasceu	de	uma	virgem.	O	monte	de	onde	se	desprendeu	a
pedra	não	recobrira	toda	a	face	da	terra,	porque	o	reino	dos	judeus	não
tinha	se	estendido	sobre	todos	os	povos.	Pelo	contrário,	vemos	que	o	reino
de	Cristo	ocupa	todo	o	orbe	das	terras.
A	sexta	idade
16	É	à	sexta	idade	que	pertence	João	Batista,	em	relação	ao	qual	ninguém
surgiu	que	fosse	maior	entre	os	filhos	de	mulher ⁵⁴	e	do	qual	foi	dito	que
“era	mais	do	que	um	profeta”. ⁵⁵	Como	demonstrou	também	ele	que	Cristo
foi	enviado	a	todos	os	povos?	Quando	os	judeus	vieram	a	ele	para	receber	o
batismo,	para	que	não	se	ensoberbecessem	com	o	nome	de	Abraão,	disse-
lhes:	“Raça	de	víboras,	quem	vos	ensinou	a	fugir	da	ira	que	está	para	vir?
Produzi	frutos	dignos	de	conversão”, ⁵ 	isto	é,	sede	humildes;	ora,	a
soberbos	falava.	E	eram	soberbos	com	base	em	quê?	Em	decorrência	da
geração	da	carne,	e	não	do	fruto	da	imitação	do	pai	Abraão.	O	que	lhes
disse?	“Não	penseis	que	basta	dizer:	Temos	por	pai	a	Abraão,	pois	eu	vos
digo	que,	mesmo	destas	pedras,	Deus	pode	suscitar	filhos	a	Abraão”. ⁵⁷
Designava	os	povos	com	o	nome	de	“pedras”,	não	em	virtude	da	firmeza,
como	é	o	caso	da	Pedra	“que	os	construtores	rejeitaram”, ⁵⁸	mas	em	virtude
da	insensatez	e	da	dureza	da	estultícia,	porque	eles	se	tinham	tornado
semelhantes	às	coisas	que	adoravam.	Tornaram-se	igualmente	insensatos,
porque	adoravam	ídolos	insensatos.	Por	que	insensatos?	Porque	se	diz	num
salmo:	“Iguais	aos	ídolos	hão	de	ser	os	que	os	fazem,	e	todos	os	que	neles
confiam”. ⁵ 	Assim,	quando	os	homens	começaram	a	adorar	a	Deus,	o	que
ouviram?	“Para	que	vos	torneis	filhos	de	vosso	Pai	que	está	nos	céus,
porque	Ele	faz	nascer	o	Seu	sol	igualmente	sobre	maus	e	bons,	e	cair	a
chuva	sobre	justos	e	injustos”. 	Se,	pois,	o	homem	se	torna	semelhante
àquilo	que	adora,	qual	o	sentido	das	palavras:	“Deus	pode,	destas	pedras,
suscitar	filhos	a	Abraão”?	Interroguemo-nos	a	nós	mesmos,	e	veremos	que
isso	é	o	que	se	passou.	Viemos	dos	gentios,	mas	não	teríamos	vindo	dos
gentios,	se	Deus	não	tivesse	suscitado,	das	pedras,	filhos	a	Abraão.
Tornamo-nos	filhos	de	Abraão	ao	imitar	sua	fé,	e	não	ao	nascer	mediante	a
carne.	Assim	como	os	judeus,	por	degenerar,	foram	deserdados;	nós,	por
imitar,	fomos	adotados.	Por	conseguinte,	irmãos,	também	esta	profecia	da
sexta	talha	diz	respeito	a	todos	os	povos.	E,	por	isso,	de	todas	as	talhas	foi
dito	que	“continham	duas	ou	três	medidas”.
O	simbolismo	das	duas	ou	três	medidas
17	Mas	como	havemos	de	demonstrar	que	todos	os	povos	dizem	respeito
àquelas	duas	ou	três	medidas?	Foi,	em	certo	modo,	coisa	de	quem	estimava
se	houvessem	de	dizer	duas	as	mesmas	medidas	que	dissera	serem	três,	a
fim	de	enaltecer	um	mistério.	Como	são	duas	as	medidas?	A	circuncisão	e	a
incircuncisão.	A	Escritura	recorda	esses	dois	povos,	sem	deixar	qualquer
raça	de	homens,	quando	diz:	“os	circuncisos	e	os	incircuncisos”. ¹	Nessas
duas	designações,	tens	todos	os	povos.	Eis	aí	as	duas	medidas.	A	fim	de
estabelecer	a	paz,	em	Si	mesmo,	entre	esses	dois	muros	vindos	de	lados
opostos, ²	Cristo	tornou-Se	a	Pedra	angular.	Mostremos	ainda	que	as	três
medidas	estão	nesses	mesmos	povos	todos.	Três	eram	os	filhos	de	Noé,	e	foi
por	eles	que	o	gênero	humano	se	reconstituiu. ³	Daí	que	o	Senhor
igualmente	diga:	“O	Reino	de	Deus	é	semelhante	ao	fermento	que	uma
mulher	tomou	e	escondeu	em	três	medidas	de	farinha,	até	que	tudo	ficasse
fermentado”. ⁴	Que	mulher	é	essa,	a	não	ser	a	carne	do	Senhor?	Que
fermento	é	esse,	a	não	ser	o	Evangelho?	O	que	representam	as	três	medidas,
senão	os	povos	todos,	em	razão	dos	três	filhos	de	Noé?	As	seis	talhas,	então,
“cada	uma	contendo	duas	ou	três	medidas”,	são	as	seis	idades	dos	tempos,
que	guardam	a	profecia	referente	a	todos	os	povos;	quer	sejam
representados	por	duas	classes	de	homens:	judeus	e	gregos,	como	muitas
vezes	lembra	o	Apóstolo; ⁵	quer	o	sejam	por	três,	numa	alusão	aos	três
filhos	de	Noé.	A	profecia	que	atinge	todos	os	povos	foi	prefigurada,	pois	por
atingi-los	é	que	foi	chamada	de	“medida”,	conforme	diz	o	Apóstolo:
“Recebemos	a	medida	de	chegar	até	vós”; 	enquanto	evangeliza,	com
efeito,	as	nações,	diz	ter	recebido	“a	medida	de	chegar	até	vós”.
HOMILIA	10
O	Corpo	de	Jesus:	novo	templo	(Jo	2,12-21)
Está	dentro	de	ti	quem	te	escuta	nas	tribulações
1	Ouvistes,	no	salmo, ⁷	o	gemido	do	pobre,	cujos	membros	padecem
tribulações	por	toda	a	terra,	até	o	fim	do	mundo.	Fazei	o	bastante,meus
irmãos,	para	estardes	entre	esses	membros,	para	fazerdes	parte	desses
membros,	porque	toda	tribulação	há	de	passar.	Ai	dos	que	se	alegram!	A
Verdade	diz:	“Bem-aventurados	os	que	choram,	porque	serão
consolados”. ⁸	Deus	fez-Se	homem:	o	que	virá	a	ser	o	homem	por	quem
Deus	Se	fez	homem?	Essa	esperança	nos	console	em	toda	tribulação	e
tentação	desta	vida.	O	inimigo,	com	efeito,	não	deixa	de	perseguir	e,	se	não
ataca	abertamente,	arma	ciladas.	O	que	faz	ele,	pois?	Além	da	ira,
trabalhavam	dolosamente: 	por	isso	é	denominado	leão	e	dragão.	E	o	que
se	diz	a	Cristo?	“Tu	pisarás	sobre	o	leão	e	o	dragão”. ⁷ 	O	inimigo	é	um	leão
por	sua	escancarada	ira;	é	um	dragão	pelas	ciladas	ocultas.	Como	dragão,
expulsou	Adão	do	paraíso	e,	como	leão,	perseguiu	a	Igreja,	conforme	diz
Pedro:	“Eis	que	o	vosso	adversário,	o	diabo,	vos	rodeia	como	um	leão	a
rugir,	procurando	a	quem	devorar”. ⁷¹	Não	penses	que	o	demônio	perdeu
contra	ti	a	sua	ferocidade;	se	faz	carícias,	é	então	que	mais	te	deves
acautelar.	Mas	em	meio	a	todas	essas	insídias	e	tentações	dele,	o	que
faremos,	a	não	ser	o	que	acabamos	de	ouvir	no	salmo?	“Quando	eles	me
eram	molestos,	eu	vestia-me	de	cilício	e	humilhava	a	minha	alma	com
jejum”. ⁷²	Não	hesiteis	em	orar,	pois	há	quem	escute.	Aquele	que	escuta,
permanece	dentro.	Não	dirijais	vosso	olhar	para	algum	monte,	não	levanteis
o	rosto	para	as	estrelas,	nem	para	o	sol,	nem	para	a	lua.	Não	penseis	que
sois	ouvidos	então,	quando	orais	junto	ao	mar.	Tende,	antes,	horror	a	tais
orações.	Limpa	tão	somente	o	cubículo	do	teu	coração:	onde	quer	que
estejas,	em	toda	parte	onde	orares,	está	dentro	de	ti	Aquele	que	te	há	de
ouvir,	está	aí,	no	mais	recôndito	recanto,	a	que	o	salmista	dá	o	nome	de
“seio”,	quando	diz:	“A	minha	oração	se	desenvolverá	em	meu	seio”. ⁷³
Aquele	que	te	escuta	não	está	fora	de	ti.	Não	O	procures	longe,	nem	te	eleves
como	se	quisesses	tocá-l’O	com	as	mãos.	Aliás,	se	te	elevares,	cairás;	mas	se
te	humilhares,	Ele	mesmo	Se	aproximará.	Este	é	o	Senhor	nosso	Deus,	o
Verbo	de	Deus,	Verbo	feito	carne,	Filho	do	Pai,	Filho	de	Deus,	Filho	do
homem.	Excelso	para	criar-nos,	humilde	para	recriar-nos,	que	caminhou
entre	os	homens	a	sofrer	as	misérias	humanas	e	a	esconder	as	grandezas
divinas.
Os	irmãos	do	Senhor.	O	sentido	dessa	expressão
2	Como	diz	o	evangelista:	“Depois	disso,	Jesus	desceu	a	Cafarnaum,	Ele,
Sua	mãe,	os	Seus	irmãos	e	os	Seus	discípulos,	e	ali	ficaram	não	muitos
dias”. ⁷⁴	Jesus	tem,	pois,	mãe,	irmãos	e	discípulos.	Se	tem	irmãos,	é	porque
tem	mãe.	Lembremos	que	a	nossa	Escritura	não	costuma	designar	como
irmãos	apenas	os	irmãos	nascidos	de	um	mesmo	pai	e	de	uma	mesma	mãe,
ou	de	um	mesmo	ventre,	ou	de	um	mesmo	pai,	ainda	que	de	diferentes
mães;	ou,	por	certo,	os	que	têm	o	mesmo	grau	de	parentesco,	como	os
primos-irmãos,	seja	por	parte	de	pai,	seja	por	parte	de	mãe.	Não	somente	a
esses,	a	nossa	Escritura	usa	denominar	irmãos.	Como	ela	fala,	assim	há	de
entender-se.	Possui	sua	forma	própria	de	dizer,	e	quem	quer	que	a
desconheça,	fica	perturbado	e	diz:	Então,	o	Senhor	tem	irmãos?	Porventura
voltou	Maria	a	dar	à	luz?	De	modo	algum!	Pois	a	partir	daí	teve	início	a
dignidade	das	virgens.	Essa	filha	de	homens ⁷⁵	pôde	ser	mãe,	mas	não
mulher ⁷ 	no	sentido	usual. ⁷⁷	Foi	chamada	de	mulher,	sem	dúvida,	por
causa	do	sexo	feminino,	não	pela	corrupção	da	sua	integridade.	Vê-se	isso
pelo	modo	de	falar	da	própria	Escritura.	Sabeis,	pois,	que	Eva,	logo	que	foi
formada	do	lado	do	marido,	e	antes	mesmo	de	qualquer	relação	com	ele,	foi
chamada	de	mulher:	“O	Senhor	modelou	uma	mulher	e	apresentou-a	ao
homem”. ⁷⁸	Donde,	então,	aparecem	esses	irmãos?	Os	irmãos	do	Senhor	são
parentes	de	Maria,	em	qualquer	grau	de	parentesco.	Como	o	provamos?
Pela	mesma	Escritura.	Assim,	Ló	é	chamado	irmão	de	Abraão,	e	era	filho
de	seu	irmão.	Lê,	e	encontrarás	que	Abraão	era	o	tio	paterno	de	Ló;	tratam-
se,	porém,	como	irmãos.	E	por	que,	senão	porque	eram	parentes? ⁷ 	Do
mesmo	modo,	Jacó	tinha	como	tio	materno	Labão,	o	Sírio,	pois	este	era
irmão	da	mãe	de	Jacó,	isto	é,	de	Rebeca,	esposa	de	Isaac. ⁸ 	Lê	a	Escritura,	e
encontrarás	que	tio	e	sobrinho	tratavam-se	como	irmãos. ⁸¹	Uma	vez
conhecida	essa	regra,	verás	que	todos	os	parentes	de	Maria	são
considerados	irmãos	de	Cristo.
A	verdadeira	parentela	do	Senhor
3	Mas,	os	discípulos	eram,	com	maior	razão,	considerados	irmãos	de	Jesus;
pois	nem	mesmo	Seus	parentes	seriam	irmãos,	se	não	fossem	discípulos
Seus.	De	nada	lhes	serviria	que	fossem	irmãos,	se	não	considerassem	como
irmão	o	seu	Mestre.	De	fato,	quando	em	certa	ocasião,	enquanto	Ele	falava
a	Seus	discípulos,	vieram	dizer-Lhe	que	Sua	mãe	e	os	Seus	irmãos	estavam
do	lado	de	fora,	respondeu:	“Quem	é	minha	mãe	e	quem	são	os	meus
irmãos?	E	estendendo	a	mão	para	os	Seus	discípulos,	disse:	“Eis	a	minha
mãe	e	os	meus	irmãos”.	E	acrescentou:	Aquele	que	fizer	a	vontade	de	meu
Pai,	que	está	nos	céus,	é	meu	irmão	e	irmã,	e	mãe”. ⁸²	Logo,	isso	também	se
aplica	a	Maria,	pois	ela	fez	a	vontade	do	Pai.	O	Senhor	exaltou	nela
precisamente	que	tenha	cumprido	a	vontade	do	Pai,	e	não	que	a	carne	tenha
gerado	carne.	Esteja	atenta	a	vossa	caridade!	Noutra	ocasião,	enquanto	o
Senhor	parecia	admirável	entre	a	multidão,	ao	realizar	milagres	e	prodígios,
e	manifestar,	assim,	o	que	se	ocultava	na	carne,	certas	almas	disseram
admiradas:	“Bem-aventurado	o	ventre	que	te	trouxe”.	E	Ele	respondeu:
“Antes,	bem-aventurados	os	que	ouvem	a	Palavra	de	Deus	e	a	guardam”. ⁸³
O	que	equivaleria	a	dizer:	também	minha	mãe,	a	quem	chamastes	bem-
aventurada,	assim	o	é	por	guardar	a	Palavra	de	Deus,	não	porque	nela	“o
Verbo	Se	fez	carne	e	habitou	entre	nós”; ⁸⁴	mas	sim	porque	ela	guarda	essa
mesma	Palavra	de	Deus,	por	quem	foi	criada	e	que	nela	Se	fez	carne.	Que	os
homens	não	se	alegrem	com	sua	prole	temporal,	mas	exultem	se,	no	espírito,
estiverem	unidos	a	Deus.	Nós	dissemos	essas	coisas	por	causa	do	que	diz	o
evangelista,	a	saber,	que	Jesus	ficou	poucos	dias	em	Cafarnaum,	com	Sua
mãe,	Seus	irmãos	e	Seus	discípulos.
A	expulsão	dos	vendilhões	do	templo.	O	fato
4	O	que	vem	dito	a	seguir?	“Estava	próxima	a	Páscoa	dos	judeus,	e	Jesus
subiu	a	Jerusalém”.	Narra-se	um	novo	acontecimento,	conforme	a
recordação	de	quem	o	anuncia:	“encontrou	no	templo	a	muitos	que
vendiam	bois	e	ovelhas	e	pombas,	e	os	cambistas	sentados.	E	tendo	feito	de
cordas	um	chicote,	expulsou-os	a	todos	do	templo,	também	os	bois	e	as
ovelhas,	lançou	por	terra	o	dinheiro	dos	cambistas	e	derrubou	as	mesas.	E
aos	que	vendiam	pombas,	disse:	Tirai	daqui	isto,	e	não	façais	da	casa	de
meu	Pai	uma	casa	de	negócios”. ⁸⁵	O	que	acabamos	de	ouvir,	irmãos?	Eis
que	aquele	templo	era	ainda	uma	figura	e,	apesar	disso,	o	Senhor	expulsou
dali	todos	os	que	procuravam	os	próprios	interesses,	e	aí	tinham	vindo	para
fazer	negócio.	E	o	que	vendiam	eles	ali?	Tudo	de	que	os	homens
necessitavam	para	os	sacrifícios	daquele	tempo.	Com	efeito,	a	vossa
caridade	sabe	que,	em	virtude	de	sua	propensão	carnal	e	da	dureza	do	seu
coração,	foram	concedidos	tais	sacrifícios	àquele	povo,	com	os	quais	era
impedido	de	deslizar	para	o	culto	dos	ídolos.	E	ali	imolavam	os	sacrifícios,
bois,	ovelhas	e	pombas.	Vós	o	sabeis,	porque	o	lestes.	Não	era,	portanto,	um
grande	pecado	que	vendessem	no	templo	o	que	era	comprado	para	ser
oferecido	no	templo;	e,	não	obstante,	o	Senhor	expulsou-os	de	lá.	Que	faria
o	Senhor,	se	ali	encontrasse	homens	ébrios,	quando	expulsou	os	que
vendiam	coisas	lícitas	e	que	não	lesavam	a	justiça	–	ora,	o	que	se	compra
honestamente	não	é	vendido	ilicitamente	–,	e	não	suportou	que	a	casa	de
oração	se	tornasse	uma	casa	de	negócio?	Se	a	casa	de	Deus	não	se	pode
tornar	uma	casa	de	negócio,	deve	tornar-se	casa	de	bebida?	Quando
falamos	disso,	no	entanto,	[os	donatistas]	rangem	os	dentes	contra	nós.
Consola-nos,	porém,	o	salmo	que	ouvistes:	“Rangeram	os	seus	dentes	contra
mim”. ⁸ 	Sabemos	ouvir	também	nós	que	há	como	curar-nos,	ainda	que	se
multipliquem	os	açoites	contra	Cristo,	pois	é	açoitada	a	Sua	palavra:
“Amontoaram	sobre	mim	os	açoites,	e	não	se	deram	conta”. ⁸⁷	Cristo	foi
flagelado	pelos	açoites	dos	judeus,	é	flageladopelas	blasfêmias	dos	falsos
cristãos.	Multiplicam	eles	os	açoites	contra	o	seu	Senhor,	e	não	sabem.
Quanto	a	nós,	façamos	o	seguinte,	na	medida	em	que	Ele	nos	ajudar:
“Quando	eles	me	molestavam,	vestia-me	de	cilício	e	humilhava	a	minha
alma	no	jejum”. ⁸⁸
O	simbolismo	do	chicote	de	cordas
5	Não	obstante,	irmãos,	–	uma	vez	que	o	Senhor	não	os	poupou:	quem	viria
a	ser	flagelado	por	eles,	flagelou-os	primeiro	–	dizemos	que	Ele	nos	mostrou
certo	sinal	ao	ter	feito	um	chicote	de	cordas	e	ter,	então,	flagelado	aquela
gente	indisciplinada,	que	fazia	do	templo	de	Deus	uma	casa	de	negócio.
Cada	um	tece	para	si,	na	verdade,	uma	corda	com	seus	próprios	pecados.	O
profeta	o	diz:	“Ai	daqueles	que	arrastam	pecados	como	uma	longa
corda”. ⁸ 	Quem	faz	essa	longa	corda?	Quem	junta	pecado	a	pecado.	Como
se	juntam	pecados	a	pecados?	Quando	se	cobrem	os	pecados	feitos,	com
novos	pecados.	Alguém	cometeu	um	furto;	e,	para	que	não	se	descubra	que
furtou,	procura	um	adivinho. 	Bastaria	que	tivesse	furtado:	por	que	queres
ajuntar	um	pecado	a	outro	pecado?	Eis	aí	dois	pecados.	Como	se	te	proíbe
recorrer	a	adivinhos,	blasfemas	contra	o	bispo:	eis	aí	três	pecados.	Quando
ouves	dizer:	Lança-o	fora	da	Igreja,	replicas:	Passo,	então,	para	o	lado	de
Donato!	Eis	que	acrescentas	um	quarto	pecado.	Cresce	a	corda.	Toma
cuidado	com	a	corda!	É	bom	para	ti	que,	a	partir	do	momento	em	que	és
flagelado	aqui,	tu	te	corrijas,	para	que	não	se	te	diga	no	fim:	“Amarrai-lhe
os	pés	e	as	mãos	e	lançai-o	fora,	nas	trevas	exteriores”. ¹	“Cada	qual	se
acha	ligado	pelas	cadeias	de	seus	pecados”. ²	A	primeira	sentença	é	o
Senhor	quem	diz,	a	segunda	é	tirada	de	outra	passagem	da	Escritura;	mas	o
Senhor	a	ambas	pronuncia.	Os	homens	acham-se	ligados	por	seus	próprios
pecados	e	são	lançados	nas	trevas	exteriores.
Os	que	vendem	no	recinto	da	Igreja
6	Quem	são	os	que	vendem	bois?	–	para	procurarmos	sob	a	figura	o
mistério	do	fato.	Quem	são	os	que	vendem	ovelhas	e	pombas?	São	aqueles
que	“buscam,	na	Igreja,	os	seus	próprios	interesses,	e	não	os	de	Jesus
Cristo”. ³	Tudo	têm	por	venal	aqueles	que	não	querem	ser	remidos.	Não
querem	ser	comprados,	e	querem	vender.	E	ser-lhes-ia	tão	vantajoso	serem
remidos	pelo	Sangue	de	Cristo,	a	fim	de	chegarem	à	paz	de	Cristo!	Qual	a
vantagem	que	levam	em	adquirir	neste	mundo	tudo	o	que	há	de	temporal	e
transitório,	seja	dinheiro,	seja	o	prazer	do	ventre	e	da	garganta,	seja	a
honra	no	louvor	humano?	Não	é	tudo	isso	fumo	e	vento?	Não	passam	todas
essas	coisas,	não	correm?	Ai	dos	que	se	tiverem	unido	às	realidades	que
passam,	porque	também	passam,	em	companhia	delas!	Não	são	todas	essas
coisas,	por	acaso,	um	rio	veloz	que	corre	para	o	mar?	Ai	de	quem	nele	tiver
caído,	porque	será	arrastado	para	o	mar.	Devemos,	portanto,	manter	todas
as	nossas	afeições	afastadas	de	tais	concupiscências.	Meus	irmãos,	os	que
andam	atrás	de	tais	bens,	vendem.	Com	efeito,	aquele	Simão,	o	Mago,
queria	também	comprar	o	Espírito	Santo,	porque	pretendia	vender	o
Espírito	Santo ⁴	e	julgava	fossem	os	apóstolos	negociantes,	tais	como	os	que
o	Senhor	expulsou	do	templo	com	o	chicote.	Era	Simão,	o	Mago,	desses	tais,
queria	comprar	o	que	pudesse	vender.	E	era	daqueles	que	vendiam	pombas.
De	fato,	como	pomba	apareceu	o	Espírito	Santo. ⁵	Quem	são,	portanto,	os
que	vendem	pombas,	irmãos?	Quem	são,	senão	os	que	dizem:	“Nós	é	que
damos	o	Espírito	Santo”?	E	por	que	o	dizem?	Por	que	preço	vendem?	Pelo
preço	da	própria	honra.	Recebem,	como	preço,	cátedras	temporais,	para
que	se	veja	que	eles	vendem	pombas.	Que	tomem	cuidado	com	o	chicote
feito	de	cordas!	A	pomba	não	está	à	venda,	é	dada	de	graça,	pois	se	chama
graça.	Com	efeito,	meus	irmãos,	não	vedes	que	cada	qual	louva	o	que	está	a
vender,	assim	como	fazem	os	que	vendem,	os	negociadores?	E	quantas
propostas	de	venda	têm	sido	feitas!	Primiano	tem	uma,	em	Cartago;	outra
tem	Maximiano;	Rogato	tem	uma	na	Mauritânia	e	há	ainda	outra	na
Numídia,	de	uns	e	de	outros,	que	já	nem	conseguimos	nomear.	Eis	que	anda
alguém,	de	um	lado	para	outro,	para	comprar	a	pomba,	e	cada	qual	louva	o
que	vende,	em	favor	de	sua	proposta.	Que	o	coração	dele	fuja	de	todo	e
qualquer	vendedor,	e	venha	até	onde	se	recebe	de	graça.	Eles	nem	se
envergonham	de	terem	feito	de	si	tantas	facções,	por	suas	próprias
dissensões,	amargas	e	maliciosas,	quando	se	atribuem	predicados	que	não
possuem,	quando	se	orgulham,	“julgando	ser	alguma	coisa,	quando	afinal
nada	são”. 	Mas	o	que	se	realiza	neles,	por	não	quererem	corrigir-se,	senão
o	que	ouvistes	no	salmo:	“Estavam	divididos	entre	si,	mas	não
arrependidos”? ⁷
O	simbolismo	dos	bois	nas	Escrituras
7	O	que	significam,	então,	os	que	vendem	bois?	Por	bois,	entendem-se
aqueles	que	nos	transmitiram	as	santas	Escrituras.	Eram	bois	os	apóstolos,
e	eram	bois	os	profetas.	Daí	que	o	Apóstolo	diga:	“Não	amordaçarás	o	boi
que	tritura	o	grão.	Acaso	Deus	Se	preocupa	com	os	bois?	Não	é,	sem	dúvida,
por	causa	de	nós	que	Ele	assim	fala?	Sim,	por	nossa	causa,	é	que	isso	foi
escrito,	pois	aquele	que	trabalha	deve	trabalhar	com	esperança,	e	aquele
que	pisa	o	grão	deve	ter	a	esperança	de	receber	a	sua	parte”. ⁸	Os	bois	são,
pois,	aqueles	que	nos	deixaram	a	memória	das	Escrituras.	Não	dispensaram
o	que	era	seu,	pois	procuravam	a	glória	do	Senhor.	O	que	acabais	de	ouvir
naquele	mesmo	salmo?	“Digam	sem	cessar:	‘Glorificado	seja	o	Senhor’,	os
que	desejam	a	paz	do	Seu	servo”. 	O	servo	de	Deus	é	o	povo	de	Deus,	a
Igreja	de	Deus.	Os	que	querem	a	paz	da	Igreja	d’Ele,	glorifiquem	o	Senhor,
e	não	o	servo;	e	digam	sem	cessar:	“Glorificado	seja	o	Senhor!”.	Quem	deve
falar	assim?	“Aqueles	que	querem	a	paz	de	Seu	servo”.	Desse	mesmo	povo,
desse	mesmo	servo	é	aquela	voz	clara	que	ouvistes,	em	lamentações,	no
salmo.	Vós	vos	comovestes	ao	ouvi-la,	porque	fazeis	parte	disso.	O	que	era
cantado	por	um	só,	ressoava	de	todos	os	corações.	Felizes	os	que	se
reconheciam	naquelas	vozes,	como	num	espelho.	Quais	são,	pois,	os	que
querem	a	paz	de	Seu	servo,	a	paz	de	Seu	povo,	a	paz	daquela	que	o	salmista
chama	de	Única	e	que	deseja	ver	arrebatada	da	garra	do	leão?	“Arrebata	a
minha	única	das	garras	do	cão”.⁷ 	São	os	que	dizem	sem	cessar:
“Glorificado	seja	o	Senhor”.⁷ ¹	Aqueles	bois	glorificaram,	portanto,	o
Senhor,	e	não	a	si	mesmos.	Vede	o	boi	a	glorificar	o	seu	Senhor:	“O	boi
conhece	o	seu	proprietário”.⁷ ²	E	vede	como	o	boi	receia	que	seja
abandonado	o	Possuidor	do	boi	e	que	se	apoie	alguém	no	próprio	boi.	Como
se	assusta	com	os	que	querem	colocar	sua	esperança	nele:	“Paulo	terá	sido
crucificado	em	vosso	favor?	Ou	fostes	batizados	em	nome	de	Paulo?”.⁷ ³	O
que	dei,	não	o	dei	eu.	Recebestes	gratuitamente.	A	pomba	desceu	do	céu.
“Eu	–	diz	–	plantei;	Apolo	regou,	mas	é	Deus	quem	fez	crescer.	Assim,	pois,
aquele	que	planta	nada	é;	aquele	que	rega,	nada	é;	mas	importa	tão
somente	Deus,	que	dá	o	crescimento”.⁷ ⁴	Digam,	pois,	sem	cessar,	os	que
querem	a	paz	do	Seu	servo:	“Glorificado	seja	o	Senhor”.
Os	vendilhões	do	templo
8	Quanto	àqueles	sobre	os	quais	falei,	é	com	as	próprias	Escrituras	que
enganam	os	povos,	para	receberem	deles	honrarias	e	louvores,	e	não	para
que	se	convertam	os	homens	à	verdade.
Como,	então,	com	as	próprias	Escrituras,	enganam	os	povos,	dos	quais	procuram
receber	honrarias,	vendem	bois,	vendem	também	ovelhas,	isto	é,	o	mesmo	povo.
E	a	quem	o	vendem,	senão	ao	diabo?	Meus	irmãos,	se	a	Igreja	de	Cristo	é	única,
e	é	uma	só,	tudo	o	que	daí	se	desgarra	quem	o	leva,	a	não	ser	aquele	leão	“que
anda	ao	redor	a	rugir,	buscando	a	quem	devorar”.⁷ ⁵	Ai	dos	que	se	separam!	Pois
ela	permanecerá	íntegra.	“O	Senhor	conhece	os	que	são	Seus”.⁷ 	Quanto	ao	que
deles	próprios	depende,	todavia,	vendem	bois	e	ovelhas,	e	vendem	mesmo
pombas.	Que	fixem	os	olhos	no	flagelo	de	seus	pecados.	Que	reconheçam,	por
certo,	quando	padecerem	algo	assim	por	causa	desses	pecados	seus,	que	o
Senhor	fez	um	chicote	de	cordas	e	os	adverte	a	se	converterem,	e	a	não	serem
mais	vendilhões.	Pois,	se	não	se	converterem,	hão	de	ouvir	no	fim:	“Amarrai-
lhes	os	pés	e	as	mãos	e	lançai-os	fora,	nas	trevas	exteriores”.⁷ ⁷
O	zelo	da	casa	de	Deus
9	“Então,	recordaram-seos	discípulos	do	que	está	escrito:	O	zelo	de	tua
casa	me	devora”.⁷ ⁸	Pois	o	Senhor	expulsou	aqueles	homens	do	templo,
levado	pelo	zelo	da	casa	de	Deus.	Irmãos,	que	cada	cristão,	entre	os
membros	de	Cristo,	seja	devorado	pelo	zelo	da	casa	de	Deus.	Quem	é
devorado	pelo	zelo	da	casa	de	Deus?	Aquele	que	trabalha	para	que	tudo	o
que	nela	vê,	talvez,	de	censurável	seja	corrigido,	desejando	que	seja
emendado,	e	nisso	não	descansa;	caso	não	possa	emendá-lo,	suporta	e	geme.
O	grão	não	se	atira	para	fora	da	eira,	tolera	a	palha,	para	entrar	no	celeiro
depois	que	a	palha	tiver	sido	posta	de	lado.	Se	tu	és	um	grão,	que,	enquanto
não	estás	no	celeiro,	não	te	atires	fora	da	eira,	para	não	seres	primeiro
colhido	pelas	aves,	antes	que	reunido	ao	celeiro.	As	aves	do	céu	são,	pois,	as
potestades	aéreas.	Estão	à	espreita	para	roubar	da	eira	alguma	coisa;	mas
não	arrebatam	senão	o	que	dali	tiver	sido	expulso.	Devore-te,	portanto,	o
zelo	da	casa	de	Deus.	Que	a	cada	cristão	devore	o	zelo	da	casa	de	Deus,
dessa	casa	de	Deus	em	que	é	ele	um	dos	membros.	Pois,	não	há	casa	que	seja
mais	tua	do	que	aquela	casa	onde	tens	a	salvação	eterna.	Tu	entras	em	tua
casa,	para	um	repouso	temporal;	entras	na	casa	de	Deus,	para	o	repouso
eterno.	Se	trabalhas	para	que,	em	tua	casa,	nada	de	perverso	se	faça;	na
casa	de	Deus,	onde	se	oferecem	a	salvação	e	o	repouso	sem	fim,	deves
tolerar,	caso	tenhas	algum	poder	para	impedi-lo,	que	se	cometa	o	mal?	Vês,
por	exemplo,	um	irmão	correr	ao	teatro?	Se	o	zelo	da	casa	de	Deus	te
devora,	impede-o	de	ir,	adverte-o,	mostra-te	entristecido.	Vês	outros	a
correr	e	a	querer	embriagar-se?	E	querer,	em	lugares	santos,	algo	que	não
convém	em	parte	alguma?	Impede	quantos	puderes,	retém-nos,	intimida-os
e	usa	de	suavidade	com	quantos	puderes.	Não	descanses,	porém!	É	teu
amigo?	Seja	suavemente	admoestado.	É	tua	esposa?	Seja	refreada	mui
severamente.	É	uma	escrava?	Seja	reprimida	inclusive	com	açoites.	Faze
tudo	o	que	estiver	a	teu	alcance,	conforme	a	tua	posição,	e	realizarás	a
máxima:	“O	zelo	de	tua	casa	me	devora”.⁷ 	Se	fores	frio,	desanimado,
preocupado	somente	contigo	mesmo,	como	se	isso	já	te	fosse	o	bastante,
dizendo	em	teu	coração:	“Por	que	tenho	eu	de	preocupar-me	com	os
pecados	alheios?	Basta-me	a	minha	alma;	conserve-a	eu	íntegra	para
Deus!”.	Eia,	não	vem	à	tua	mente	aquele	servo	que	escondeu	o	talento,	e	não
quis	fazê-lo	frutificar?	Porventura,	foi	acusado	de	tê-lo	perdido	ou,	antes,	de
tê-lo	conservado	sem	lucro?⁷¹ 	Assim,	pois,	ouvi	isso,	meus	irmãos,	de	modo
que	não	descanseis.	Vou	dar-vos	um	conselho;	dê-o	Aquele	que	habita
dentro,	pois,	ainda	que	o	tenha	dado	por	meu	intermédio,	é	Ele	quem	o	dá.
Sabeis	o	que	cada	um	de	vós	tem	de	fazer	em	sua	casa,	com	um	amigo,	com
um	vizinho,	com	um	cliente,	com	alguém	mais	velho,	com	alguém	mais
novo.	Sabeis	como	Deus	dá	o	meio,	como	abre	a	porta	a	Seu	Verbo.	Não
descanseis	de	lucrar	os	outros	para	Cristo,	pois	fostes	lucrados	por	Ele.
O	sinal	do	templo	O	sinal	dado	por	Jesus
10	Os	judeus,	então,	interpelaram-n’O	dizendo:	“Que	sinal	nos	mostras
para	assim	agires?”.	Respondeu-lhes	Jesus:	“Destruí	este	templo	e,	em	três
dias,	eu	o	levantarei”.	Disseram-Lhe,	então,	os	judeus:	“Quarenta	e	seis
anos	foram	precisos	para	se	construir	este	templo,	e	tu	o	levantarás	em	três
dias?”.⁷¹¹	Os	judeus	eram	carne,	apreciavam	as	coisas	por	seu	sabor	carnal.
O	Senhor	falava-lhes,	contudo,	no	sentido	espiritual.	Quem	poderia
entender,	por	outro	lado,	de	que	templo	Ele	falava?	Nós,	porém,	não
procuramos	muito.	Por	meio	do	evangelista,	Ele	no-lo	revelou,	disse	de	que
templo	se	tratava:	“Destruí	este	templo	e,	em	três	dias,	eu	o	levantarei”.
“Este	templo	foi	construído	em	quarenta	e	seis	anos,	e	tu	o	levantarás	em
três	dias?	Ele,	porém,	falava	do	templo	de	Seu	Corpo”.⁷¹²	Ora,	é	um	fato
conhecido	por	todos	que	o	Senhor,	tendo	morrido,	ressuscitou	depois	de	três
dias.	Todos	o	sabem,	mesmo	se	aos	judeus	isso	permanece	fechado,	porque
eles	se	mantêm	na	parte	de	fora;	para	nós,	no	entanto,	está	aberto,	“porque
nós	sabemos	em	quem	acreditamos”.⁷¹³	Vamos	celebrar,	na	solenidade
anual,	a	destruição	e	a	reedificação	desse	Templo;	nós	vos	exortamos	a
preparar-vos	para	ela,	se	alguns	de	vós	sois	catecúmenos,	para	receberdes	a
graça.	Agora	já	é	tempo,	seja	agora	concebido	já	o	que,	então,	haverá	de
nascer.	Nós	o	sabemos,	pois.
O	alcance	do	sinal:	o	Pai	e	o	Filho	operam	a	ressurreição	de	Cristo
11	Mas,	talvez	se	nos	exija	dizer	se	algum	mistério	há	no	fato	de	esse	templo
ter	sido	construído	em	quarenta	e	seis	anos.	Há,	evidentemente,	muitas
coisas	que,	a	esse	respeito,	podem	ser	ditas;	mas,	por	ora,	dizemos	o	que
com	brevidade	se	pode	explicar,	e	mais	facilmente	se	pode	entender.	Irmãos,
dissemos	já	no	dia	de	ontem,	se	não	estiver	enganado,	que	Adão	foi	um	só
homem	e	é,	ele	mesmo,	o	gênero	humano	todo.	Assim	o	dissemos,	se	vos
recordais.	Ele	foi	como	que	dividido,	mas,	depois	desse	retalhamento,	foi
como	que	recolhido	em	um	só,	fundido	pela	sociedade	e	concórdia
espiritual.⁷¹⁴	Agora,	geme	o	único	pobre,	o	próprio	Adão,	mas	é	renovado
em	Cristo,	o	Adão	que	veio	sem	pecado	para	destruir	em	Sua	carne	o
pecado	de	Adão,	e	para	restaurar	em	Si	Adão,	a	imagem	de	Deus.	É	de
Adão,	pois,	que	provém	a	carne	de	Cristo.	É	de	Adão	que	provém	o	Templo
que	os	judeus	destruíram	e	que	Deus	ressuscitou	em	três	dias.	Na	verdade,
Ele	ressuscitou	a	Sua	própria	carne:	vede	que	Ele	era	Deus,	igual	ao	Pai.
Meus	irmãos,	o	Apóstolo	diz:	“Aquele	que	O	ressuscitou	dentre	os
mortos”.⁷¹⁵	De	quem	se	fala?	Do	Pai.	“Cristo	foi	obediente	até	à	morte	e
morte	de	cruz!	Por	isso,	Deus	exaltou-O,	ressuscitou-O	dos	mortos	e	deu-
Lhe	um	nome	que	está	acima	de	todo	nome”.⁷¹ 	O	Senhor	foi	ressuscitado	e
exaltado.	“Ressuscitou-O”.	Quem?	O	Pai,	a	quem	Ele	Se	dirige	nos	salmos:
“Ressuscita-me,	e	eu	retribuirei”.⁷¹⁷	Foi,	pois,	o	Pai	que	O	ressuscitou.
Então,	Ele	não	Se	ressuscitou	a	Si	mesmo?	Ora,	o	que	faz	o	Pai	sem	o
Verbo?	O	que	faz	o	Pai	sem	o	Seu	Único?	Ouve,	como	também	Ele	mesmo
era	Deus:	“Destruí	este	templo,	e	eu	o	reedificarei	em	três	dias”.	Acaso,
disse	Ele:	Destruí	este	templo,	e	o	Pai	o	ressuscitará	em	três	dias?	Mas,
como	quando	o	Pai	ressuscita,	também	o	Filho	ressuscita;	assim,	quando	o
Filho	ressuscita,	também	o	Pai	ressuscita,	pois	o	Filho	disse:	“Eu	e	o	Pai
somos	um”.⁷¹⁸
O	mistério	dos	quarenta	e	seis	anos
12	O	que	significa,	pois,	esse	número	quarenta	e	seis?	Por	ora,	que	o	próprio
Adão	esteja	espalhado	através	de	todo	o	orbe	terrestre	é	coisa	que	ouvistes
já,	no	dia	de	ontem,	através	das	quatro	letras	gregas	de	quatro	palavras
gregas.	Com	efeito,	se	escreveres	essas	quatro	palavras,	uma	abaixo	da
outra,	isto	é,	os	nomes	das	quatro	partes	do	mundo,	do	oriente,	do	ocidente,
do	aquilão	e	do	meio-dia,	que	correspondem	ao	mundo	todo	–	daí	que	o
Senhor	diga	que	há	de	reunir	a	Seus	eleitos	dos	quatro	ventos,	quando	vier
para	o	juízo⁷¹ 	–	se,	como	dizia,	escreveres	estes	quatro	nomes	gregos:
anatolḗ,	que	é	oriente;	dúsis,	que	é	ocidente;	árktos,	que	é	setentrião,	e
mesēmbría,	que	é	meio-dia,	as	letras	iniciais	de	anatolḗ,	dúsis,	árktos	e
mesēmbría	farão	o	nome	de	Adão.⁷² 	Mas	como	encontraremos	aí	o	número
quarenta	e	seis?	Porque	a	carne	de	Cristo	vem	de	Adão.	Ora,	os	gregos
contam	conforme	as	letras.	O	que	nós	escrevemos	como	letra	a,	eles
designam,	em	sua	língua,	como	alfa,	e	alfa	se	chama	o	número	um.	Quando,
por	outro	lado,	entre	os	números	escrevem	beta,	que	é	o	b	deles,	é	chamado
entre	os	números	de	“dois”.	Quando	escrevem	gama,	é	chamado	de	“três”
em	sua	numeração.	Quando	escrevem	delta,	é	chamado,	em	sua	numeração,
de	“quatro”.	E	assim	por	diante,	por	meio	de	todas	as	letras,	representam	os
números.	O	que	nós	dizemos	eme,	e	eles	dizem	mi,	significa	“quarenta”.
Chamam,	com	efeito,	a	letra	mi	de	tessarákonta.	Observai,	já,	a	que	número
correspondem	essas	letras,	e	aí	encontrareis	que	em	quarenta	e	seis	anos	foi
edificado	o	templo.	Com	efeito,	o	nome	de	Adão⁷²¹	tem	um	alfa,	que	equivale
a	um;	um	delta	que	vale	quatro,	e	aí	contas	cinco;	tem	ainda	outro	alfa,	que
vale	um,	e	chegas	a	seis;	e	tem	também	um	mi,que	vale	quarenta:	contas	os
quarenta	e	seis.	Essa	interpretação,	meus	irmãos,	foi	dada	já	por	nossos
antepassados.	Descobriu-se	nas	letras	esse	número	quarenta	e	seis.	E,
porque	nosso	Senhor	Jesus	Cristo	recebeu	um	corpo	de	Adão,	mas	de	Adão
não	contraiu	o	pecado,	tomou	dele	o	templo	de	Seu	Corpo,	não	a	iniquidade
que	se	há	de	expulsar	do	templo.	Os	judeus	crucificaram	essa	mesma	carne
que	o	Senhor	tomou	de	Adão	–	porque	Maria	proveio	de	Adão,	e	a	carne	do
Senhor,	de	Maria	–,	mas	Ele	havia	de	ressuscitar	ao	terceiro	dia	a	mesma
carne	que	eles	estavam	para	matar	na	cruz.	Os	judeus	destruíram	o	templo
edificado	em	quarenta	e	seis	anos,	e	Ele	o	reedificou	em	três	dias.
Exortação	final
13	Bendizemos	o	Senhor	nosso	Deus	por	ter-nos	reunido	aqui	para	uma
alegria	toda	espiritual.	Permaneçamos	sempre	na	humildade	do	coração,	e
que	nossa	alegria	esteja	junto	a	Ele.	Não	nos	envaideçamos	com	qualquer
prosperidade	deste	mundo,	mas	saibamos	que	nossa	felicidade	não	existirá
senão	quando	essas	coisas	tiverem	passado.	Meus	irmãos,	nossa	alegria
esteja,	por	ora,	na	esperança.	Ninguém	se	alegre,	por	assim	dizer,	na
realidade	presente,	para	não	se	apegar	ao	caminho.	Toda	a	nossa	alegria
venha	da	futura	esperança,	e	todo	o	nosso	desejo	seja	o	da	vida	eterna.
Todos	os	suspiros	anelem	por	Cristo.	Seja	Ele	desejado,	o	único	belíssimo,
que	amou	até	os	feios,	para	torná-los	belos.	Corra-se	apenas	em	direção	a
Ele,	gema-se	por	Ele.	E	digam	sem	cessar:	“Glorificado	seja	o	Senhor!”,	os
que	desejam	a	paz	do	Seu	servo.⁷²²
HOMILIA	11
A	fé	é	o	nascimento	para	a	vida	nova	(Jo	2,23-3,5)
Introdução:	a	feliz	coincidência	desta	leitura
1	Oportunamente,	procurou-nos	o	Senhor,	no	dia	de	hoje,	a	sequência	desta
leitura.	Creio	que	a	vossa	caridade	terá	advertido	que	nós	nos	propusemos
considerar	e	tratar	por	ordem	o	Evangelho	segundo	João.	Oportunamente,
portanto,	ocorreu	que	hoje	ouvísseis	do	Evangelho	que	“Quem	não	renascer
da	água	e	do	Espírito,	não	verá	o	Reino	de	Deus”.⁷²³	Com	efeito,	é	tempo	de
exortar-vos	a	vós,	que	ainda	sois	catecúmenos	e	que,	apesar	de	terdes	crido
em	Cristo,	carregais	ainda	os	vossos	pecados.	Ora,	ninguém	verá	o	Reino
dos	céus	se	carregado	estiver	de	pecados;	pois	não	reinará	com	Cristo	senão
aquele	a	quem	tiverem	sido	perdoados	os	pecados,	os	quais	não	podem,
contudo,	ser	perdoados,	senão	a	quem	tiver	renascido	da	água	e	do	Espírito
Santo.	Advirtamos	com	atenção,	porém,	o	sentido	de	todas	essas	palavras,	a
fim	de	que	aí	encontrem	os	preguiçosos	com	quanta	solicitude	se	devem
apressar	em	depor	o	fardo.	Se	acaso	trouxerem	às	costas	algum	fardo
pesado,	de	pedra	ou	de	madeira,	ou	mesmo	de	algum	valor,	se	trouxerem
trigo,	vinho	ou	dinheiro,	teriam	pressa	em	depositar	os	fardos.	Acontece	que
carregam	um	fardo	de	pecados,	e	mostram-se	indolentes	em	correr.	É
preciso	correr	para	depor	essa	carga;	ela	oprime	e	prostra.
Cristo	e	os	batizados.	“Muitos	creram	em	Seu	nome,	mas	Jesus	não	Se	fiava
neles”
2	Ouvistes,	pois,	que	“Enquanto	o	Senhor	Jesus	estava	em	Jerusalém	para	a
festa	de	Páscoa,	muitos	creram	em	Seu	nome,	ao	verem	os	sinais	que	fazia”.
Muitos	creram	em	Seu	nome,	e	o	que	segue?	“Mas	Jesus	não	Se	fiava
neles”.⁷²⁴	Que	quer	isso	dizer?	“Eles	creram	em	Seu	nome”,	e	“Jesus	não	Se
fiava	neles”?	Será	porque	não	acreditavam	n’Ele	de	verdade,	mas	apenas
simulavam	crer	e,	por	esse	motivo,	Jesus	não	Se	fiava	neles?	Nesse	caso,	o
evangelista	não	diria:	“Muitos	creram	em	Seu	nome”,	se	não	houvesse	dado
deles	um	testemunho	verdadeiro.	Eis,	pois,	algo	de	grande	e	admirável!	Os
homens	creem	em	Cristo,	e	Cristo	não	Se	fia	nos	homens!	Antes	de	tudo,
por	ser	Ele	o	Filho	de	Deus,	sofreu,	sem	dúvida,	voluntariamente.	Se	não	o
quisesse,	jamais	teria	sofrido;	caso	não	o	quisesse,	tampouco	teria	nascido.
E	caso	quisesse	apenas	isto:	ter	nascido	e	não	morrer,	e	tudo	o	mais	que
quisesse,	fá-lo-ia,	porque	é	o	Filho	onipotente	do	Pai	onipotente.
Demonstremo-lo	com	os	próprios	fatos.	Quando	quiseram	lançar-Lhe	as
mãos,	afastou-Se	deles.	Diz	o	Evangelho:	“Como	tivessem	querido	precipitá-
l’O	do	cimo	do	monte,	afastou-Se	deles	ileso”.⁷²⁵	E	quando	vieram	para
prendê-l’O,	depois	que	fora	já	vendido	pelo	traidor	Judas,	por	mais	que	este
pensasse	ter	em	seu	poder	entregar	o	seu	Mestre	e	Senhor,	também	então
mostrou	o	Senhor	que	padece	por	vontade	própria,	não	por	necessidade.
Com	efeito,	quando	os	judeus	quiseram	prendê-l’O,	Ele	lhes	disse:	“A	quem
procurais?	Responderam:	A	Jesus	de	Nazaré.	E	Jesus	disse-lhes:	Sou	eu.
Ouvindo	essas	palavras,	retrocederam	e	caíram”.⁷² 	Ao	fazê-los	cair	por
terra	com	Sua	resposta,	mostrou	o	Seu	poder,	a	fim	de	mostrar	a	Sua
vontade	no	fato	de	ter	sido	preso	por	eles.	Que	tenha	Ele	padecido,	portanto,
foi	um	ato	de	misericórdia.	“Foi	entregue	pelas	nossas	faltas	e	ressuscitou
para	a	nossa	justificação”.⁷²⁷	Ouve	as	palavras	d’Ele:	“Tenho	poder	de
entregar	a	minha	vida	e	poder	de	retomá-la.	Ninguém	a	arrebata	de	mim,
mas	eu	a	dou	livremente,	a	fim	de	a	reassumir	de	novo”.⁷²⁸	Visto	que	tinha
tão	grande	poder,	que	o	afirmava	com	Suas	palavras	e	o	mostrava	com	Suas
obras,	como	explicar	que	Jesus	não	Se	fiasse	nos	homens,	como	se	estes
houvessem	de	prejudicar	em	algo	a	quem	não	o	quisesse,	ou	houvessem	de
fazer	algo	a	quem	não	o	quisesse,	principalmente	quando	eles	tinham
acreditado	já	em	Seu	nome?	Diz	o	evangelista:	“Creram	em	Seu	nome”,
precisamente	a	respeito	daqueles	de	quem	também	diz:	“Mas	Jesus	não	Se
fiava	neles”.	Por	quê?	Porque	Jesus	os	conhecia	a	todos,	e	não	necessitava
de	que	alguém	Lhe	desse	testemunho	sobre	homem	algum,	porque	Ele
mesmo	conhecia	o	que	havia	no	homem.⁷² 	Mais	sabia	o	Artífice	o	que	havia
em	Sua	obra,	do	que	a	própria	obra	o	que	havia	em	si	mesma.	O	Criador	do
homem	sabia	o	que	havia	no	homem,	algo	que	o	próprio	homem,	que	fora
criado,	não	sabia.	Porventura	não	provamos	isso	em	Pedro,	ou	seja,	que
ignorava	o	que	havia	em	si	mesmo,	quando	disse:	“Irei	contigo	até	à
morte”?	Ouve	como	o	Senhor	sabia	o	que	havia	no	homem:	“Vais	comigo
para	a	morte?	Em	verdade,	em	verdade	te	digo,	antes	que	o	galo	cante,	tu
me	negarás	por	três	vezes”.⁷³ 	O	homem,	portanto,	não	sabia	o	que	havia	em
si,	mas	o	Criador	do	homem	sabia	o	que	havia	no	homem.	“Muitos	creram	–
contudo	–	em	Seu	nome,	mas	Jesus	não	Se	fiava	neles”.	O	que	dizer	sobre
isso,	irmãos?	O	que	segue	talvez	nos	indique	o	que	significa	o	mistério
dessas	palavras.	Que	os	homens	tenham	acreditado	n’Ele,	é	claro,	é
verdade;	ninguém	o	põe	em	dúvida:	o	Evangelho	o	diz,	o	veraz	evangelista	o
atesta.	Do	mesmo	modo,	“Jesus	não	Se	fiava	neles”	é	algo	igualmente	claro	e
nenhum	cristão	duvida,	visto	que	o	Evangelho	diz	isso	também,	e	o	mesmo
evangelista	veraz	o	atesta.	Por	que,	então,	creram	eles	em	Seu	nome,	mas
Jesus	não	tinha	confiança	neles?	Vejamos	quanto	segue.
O	caso	de	Nicodemos	e	os	catecúmenos
3	“Havia,	entre	os	fariseus,	um	homem	de	nome	Nicodemos,	chefe	dos
judeus.	Veio	ele	ter	com	Jesus	à	noite,	e	Lhe	disse:	“Rabi	–	já	sabeis	que
Rabi	significa	Mestre	–,	nós	sabemos	que	vieste	da	parte	de	Deus	como
mestre,	pois	ninguém	pode	fazer	os	sinais	que	fazes,	se	Deus	não	estiver	com
ele”.⁷³¹	Esse	Nicodemos	era,	pois,	daqueles	que	tinham	crido	em	Seu	nome,
vendo	os	milagres	e	os	prodígios	que	Ele	fazia.	Com	efeito,	o	evangelista
disse	isso	acima:	“Enquanto	estava	em	Jerusalém	para	a	festa	da	Páscoa,
muitos	creram	em	Seu	nome”.⁷³²	E	por	qual	motivo	acreditaram?	“Vendo	os
sinais	que	Ele	fazia”.	E	o	que	diz	de	Nicodemos?	“Havia	um	chefe	dos
judeus,	de	nome	Nicodemos.	Veio	ter	com	Jesus	à	noite	e	Lhe	disse:	Rabi,
sabemos	que	vieste	da	parte	de	Deus	como	Mestre”.	Logo,	também	ele	havia
crido	em	Seu	nome.	E	por	que	acreditou?	Segue	o	texto:	“Pois	ninguém
pode	fazer	os	sinais	que	fazes,	se	Deus	não	estiver	com	ele”.	Se	Nicodemos
era	do	número	daqueles	que	creram	em	Seu	nome,	já	advertimos,	pois,
nesse	Nicodemos,	por	que	Jesus	não	Se	fiava	neles.	Respondeu	Jesus	e	disse-
lhe:	“Em	verdade,	em	verdade	te	digo,	a	menos	que	tenha	nascido	de	novo,
ninguém	poderá	ver	o	Reino	de	Deus”.⁷³³	Portanto,	Jesus	Se	fia	nestes,	que
tiverem	nascido	de	novo.Quanto	aos	outros,	acreditavam	n’Ele,	mas	Jesus
não	Se	fiava	neles.	Tais	são	todos	os	catecúmenos.	Eles	já	creem	no	nome	de
Cristo,	mas	Jesus	não	Se	fia	neles.	Preste	atenção	e	entenda	a	vossa
caridade!	Se	perguntarmos	a	um	catecúmeno:	Acreditas	em	Cristo?	Ele
responde:	Acredito!,	e	persigna-se.	Já	traz	a	cruz	de	Cristo	na	fronte,	e	não
se	envergonha	da	cruz	de	seu	Senhor.	Eis	que	já	acreditou	em	Seu	nome.
Mas	perguntemos	ainda:	Comes	a	Carne	e	bebes	o	Sangue	do	Filho	do
homem?	E	o	catecúmeno	não	sabe	o	que	dizemos,	porque	Jesus	ainda	não
Se	confiou	a	ele.
Cristo	confia-Se	aos	batizados
4	Como	Nicodemos	pertencia	a	esse	contingente,	foi	ter	com	o	Senhor,	mas
de	noite.	Essa	circunstância,	talvez,	tenha	relação	com	a	presente	questão.
Ele	foi	até	o	Senhor,	mas	de	noite.	Veio	até	a	Luz,	mas	em	meio	às	trevas.
Ora,	o	que	ouvem	do	Apóstolo	os	que	renasceram	da	água	e	do	Espírito?
“Outrora	éreis	trevas,	mas	agora	sois	luz	no	Senhor:	andai	como	filhos	da
luz”;⁷³⁴	e	ainda:	“Nós	que	somos	do	dia,	sejamos	sóbrios”.⁷³⁵	Os	que
renasceram,	portanto,	pertenciam	à	noite,	mas	agora	pertencem	ao	dia:
foram	trevas,	são	luz.	Jesus	já	Se	fia	neles,	e	não	mais	vão	ter	com	o	Senhor
de	noite,	como	Nicodemos.	Não	buscam	o	dia	em	meio	às	trevas.	Com	efeito,
eles	mesmos	já	confessam	que	Jesus	veio	até	eles,	e	operou	neles	a	salvação,
pois	Ele	mesmo	disse:	“Aquele	que	não	comer	a	minha	Carne	e	não	beber	o
meu	Sangue,	não	terá	a	vida	em	si”.⁷³ 	Como	os	catecúmenos	trazem	na
fronte	o	sinal	da	cruz,	já	fazem	parte	de	grande	casa.	Mas	que	se	tornem
filhos,	de	servos	que	são.	De	fato,	não	se	pode	dizer	que	nada	sejam	os	que
já	pertencem	à	grande	casa.	Quando	foi	que	o	povo	de	Israel	comeu	o
maná?	Depois	de	ter	atravessado	o	mar	Vermelho!	Para	saber	o	que
significa	o	mar	Vermelho,	ouve	o	Apóstolo:	“Não	quero	que	ignoreis,
irmãos,	que	os	nossos	pais	estiveram	todos	sob	a	nuvem,	e	que	todos
atravessaram	o	mar”.⁷³⁷	E	como	se	lhe	perguntasses:	Para	que	atravessaram
o	mar?,	ele	continua,	e	diz:	“E	todos	foram	batizados	por	Moisés,	na	nuvem
e	no	mar”.	Se	o	mar,	que	é	apenas	uma	figura,	teve	tão	grande	valor,	o	que
não	valerá	o	batismo,	que	é	a	realidade?	Se	o	que	se	realizou	em	figura
conduziu	ao	maná	o	povo	que	atravessou	o	mar,	o	que	não	mostrará	Cristo,
na	verdade	de	Seu	batismo,	a	Seu	povo	que	por	ele	atravessou?	Através	de
Seu	batismo,	Ele	faz	atravessar	os	que	creem,	depois	de	destruídos	todos	os
seus	pecados	ao	modo	de	inimigos	perseguidores,	tal	como,	naquele	mar,
todos	os	egípcios	pereceram.	Para	onde	o	Senhor	os	faz	atravessar,	meus
irmãos?	Para	onde	os	conduz	por	meio	de	Seu	batismo,	esse	Jesus	cuja
figura	era	representada	então	por	Moisés,	que	fazia	a	travessia	do	mar?
Para	onde	os	faz	passar?	Para	o	maná.	O	que	é	o	maná?	“Eu	sou	–	afirma	–
o	Pão	vivo	que	desci	do	céu”.⁷³⁸	Os	fiéis	recebem	o	maná	depois	de	terem
atravessado	já	o	mar	Vermelho.	Por	que	é	chamado	mar	Vermelho?	Já
sabemos	qual	o	significado	de	mar,	mas	por	que	era	também	vermelho?
Esse	mar	Vermelho	era	o	símbolo	do	batismo	de	Cristo.	Por	que	vermelho	é
o	batismo	de	Cristo,	senão	porque	foi	consagrado	pelo	Sangue	de	Cristo?
Para	onde,	pois,	leva	Ele	os	que	creem	e	foram	já	batizados?	Para	o	maná.
Eis	que	digo:	para	o	maná!	É	sabido	o	que	receberam	os	judeus,	aquele
povo	de	Israel.	É	sabido	o	que	fez	Deus	chover	sobre	eles	do	céu,	mas	os
catecúmenos	não	sabem	o	que	recebem	os	cristãos!	Que	se	envergonhem	por
não	o	saber	ainda.	Que	atravessem	o	mar	Vermelho	e	comam	o	maná,	a	fim
de	que,	assim	como	creram	no	nome	de	Jesus,	também	o	Senhor	Se	fie	neles.
Nicodemos	e	a	Eucaristia
5	Considerai,	por	isso,	meus	irmãos,	o	que	responde	aquele	homem	que	foi
ter	com	Jesus	de	noite.	Ainda	que	tivesse	ido	ter	com	Jesus,	porque	foi,	não
obstante,	de	noite,	é	ainda	de	em	meio	às	trevas	de	sua	carne	que	ele	fala.
Não	compreende	o	que	lhe	diz	o	Senhor.	Não	compreende	o	que	lhe	diz	“a
luz	que	ilumina	todo	homem	vindo	a	este	mundo”.⁷³ 	O	Senhor	já	lhe	disse:
“A	não	ser	quem	tiver	nascido	de	novo,	ninguém	verá	o	Reino	de	Deus”.⁷⁴
Responde-Lhe	Nicodemos:	“Como	pode	um	homem	nascer,	sendo	velho?”.
O	Espírito	fala-lhe,	mas	ele	o	aprecia	de	modo	carnal.	É	com	a	sua	própria
maneira	carnal	de	entender	que	saboreia,	porque	ainda	não	chegou	a
saborear	a	Carne	de	Cristo.	Com	efeito,	quando	o	Senhor	declarou:	“Aquele
que	não	come	a	minha	Carne	e	não	bebe	o	meu	Sangue,	não	terá	em	si	a
vida”,⁷⁴¹	alguns	daqueles	que	O	seguiam	escandalizaram-se,	e	disseram	a	si
mesmos:	“Esta	palavra	é	dura!	Quem	pode	escutá-la?”.⁷⁴²	Julgavam	que
Jesus	dissesse	que	podiam	retalhá-l’O	em	pedaços	como	a	um	cordeiro,
fazê-l’O	cozer,	e	comê-l’O.	Horrorizando-se	com	as	palavras	d’Ele,
retiraram-se	para	não	mais	O	seguir.	Assim	fala	o	evangelista:	“E	o	Senhor
ficou	com	os	Doze.	Estes	Lhe	disseram:	Senhor,	eis	que	te	abandonaram.	E
Ele:	E	vós,	por	acaso	também	quereis	ir?”,⁷⁴³	querendo,	com	isso,	mostrar
que	Ele	próprio	lhes	era	necessário,	mas	eles	não	eram	necessários	a	Cristo.
Ninguém	tenha	a	pretensão	de	aterrorizar	a	Cristo,	enquanto	se	lhe	diz	que
seja	cristão,	como	se	Cristo	fosse	mais	feliz	por	chegares	tu	a	ser	um	cristão.
É	bom	para	ti	que	sejas	cristão,	mas,	se	não	o	fores,	não	advirá	mal	algum	a
Cristo.	Ouve	a	voz	do	salmo:	“Eu	disse	ao	Senhor:	Tu	és	o	meu	Deus,
porque	não	tens	necessidade	de	meus	bens”.⁷⁴⁴	És	meu	Deus	precisamente
por	isso:	porque	não	tens	necessidade	de	meus	bens.	Se	estiveres	afastado	de
Deus,	serás	menor;	se	estiveres	com	Deus,	Deus	não	será	maior	por	isso.	Ele
não	é	maior	por	tua	causa,	mas	tu	és	menor	sem	Ele.	Cresce,	pois,	n’Ele,	e
não	te	afastes	como	se,	por	isso,	Ele	pudesse	diminuir.	Recuperar-te-ás	se	te
acercares;	se	te	afastares,	enfraquecer-te-ás.	Ele	permanece	íntegro	ao	te
aproximares,	e	continua	íntegro,	também	quando	te	afastas.	Quando,	pois,	o
Senhor	perguntou	aos	discípulos:	“E	vós	quereis	também	partir?”,	Pedro,
aquela	pedra,	respondeu	em	nome	de	todos:	“Senhor,	a	quem	iremos?	Tu
tens	palavras	de	vida	eterna”.⁷⁴⁵	Em	sua	boca,	a	Carne	do	Senhor	saboreou-
se	bem!	O	Senhor,	porém,	explicou-lhes:	“O	Espírito	é	que	vivifica”.	Com
efeito,	tendo	dito:	“Quem	não	comer	minha	Carne	e	beber	meu	Sangue	não
terá	em	si	a	vida”,	quis	acrescentar,	para	prevenir	que	fossem	carnalmente
entendidas	essas	palavras:	“O	Espírito	–	diz	–	é	que	vivifica,	a	carne	para
nada	serve.	As	palavras	que	vos	disse	são	espírito	e	vida”.
Maneiras	de	receber	o	novo	nascimento.	Os	dois	nascimentos
6	Nicodemos,	que	fora	de	noite	ao	encontro	de	Jesus,	não	saboreava	esse
espírito,	essa	vida.	Jesus	lhe	dissera:	“A	não	ser	que	tenha	nascido	de	novo,
ninguém	verá	o	Reino	de	Deus”.⁷⁴ 	Mas	ele,	que	saboreava	sua	própria
concepção	carnal	e	não	tinha	ainda	saboreado	em	sua	boca	o	gosto	da	Carne
de	Cristo,	diz:	“Como	pode	um	homem	nascer	de	novo,	sendo	velho?
Poderá	entrar	de	novo	no	seio	de	sua	mãe	e	renascer?”.⁷⁴⁷	Ele	não	conhecia
senão	o	nascimento	que	vem	de	Adão	e	Eva;	ainda	não	conhecia	aquele	que
vem	de	Deus	e	da	Igreja.	Não	conhecia	senão	os	pais	que	geram	para	a
morte;	ainda	não	conhecia	os	pais	que	geram	para	a	vida.	Não	conhecia
senão	os	pais	que	geram	filhos	que	lhes	hão	de	suceder;	ainda	não	conhecia
aqueles	pais	que,	vivendo	para	sempre,	geram	filhos	destinados	a
permanecer.	Só	conhecia	um	nascimento,	quando,	na	verdade,	há	dois:	um
vindo	da	terra,	outro	do	céu;	um	da	carne,	outro	do	Espírito;	um	da
mortalidade,	outro	da	eternidade;	um	do	homem	e	da	mulher,	outro	de
Deus	e	da	Igreja.	Mas	esses	dois	nascimentos	só	se	dão	uma	única	vez;	nem
aquele	pode	ser	repetido,	nem	este.	Nicodemos	compreendeu	corretamente	o
nascimento	da	carne;	procura	também	tu	compreender	o	nascimento	do
Espírito	tal	como	compreendeu	Nicodemos	o	nascimento	da	carne.	O	que
entendeu	Nicodemos?	“Pode	o	homem	entrar	de	novo	no	seio	de	sua	mãe,	e
nascer?”.	Assim,	a	todo	aquele	que	te	disser	que	nasças	espiritualmente	uma
segunda	vez,	responde	o	que	disse	Nicodemos:	Pode	o	homem	entrar	de
novo	no	seio	de	sua	mãe,	e	nascer?	Eu	já	nasci	de	Adão.	Adão	não	me	pode
gerar	de	novo.	Já	nasci	de	Cristo.	Cristo	não	me	pode	gerar	denovo.	Assim
como	o	parto	não	se	pode	repetir,	tampouco	pode	repetir-se	o	batismo.
O	Deus	de	Abraão,	de	Isaac	e	Jacó
7	Quem	nasce	da	Igreja	Católica	nasce	como	que	de	Sara,	nasce	da	mulher
livre.	Quem	nasce	da	heresia,	é	como	se	nascesse	da	escrava,	ainda	que
provenha	da	descendência	de	Abraão.⁷⁴⁸	Considere	a	vossa	caridade	quão
grande	é	este	mistério.	Atesta-o	Deus:	“Eu	sou	o	Deus	de	Abraão,	o	Deus	de
Isaac	e	o	Deus	de	Jacó”.⁷⁴ 	Mas	não	havia	outros	patriarcas?	Não	existiu,
antes	desses,	o	santo	Noé,	o	único	que,	entre	todo	o	gênero	humano,	mereceu
ser	salvo	do	dilúvio	com	toda	a	sua	família,	e	no	qual	e	em	cujos	filhos	se
prefigurou	a	Igreja?	Levados	pelo	lenho,	eles	evadem	o	dilúvio.	E,	depois
deles,	houve	aqueles	outros	grandes	patriarcas	que	conhecemos	e	dos	quais
a	Escritura	faz	o	elogio:	Moisés,	por	exemplo,	“que	foi	fiel	com	toda	a	sua
casa”.⁷⁵ 	Todavia,	apenas	aqueles	três	são	mencionados,	como	se	só	eles
merecessem	ouvir	a	seu	respeito	as	palavras:	“Eu	sou	o	Deus	de	Abraão,	o
Deus	de	Isaac	e	o	Deus	de	Jacó.	Este	é	o	meu	nome	para	sempre”.⁷⁵¹	Que
profundo	mistério!	O	Senhor	é	bastante	poderoso	para	abrir	os	nossos
lábios	e	os	vossos	corações,	para	que	vos	possamos	ensinar	tal	como	Se
dignou	Ele	revelar-nos,	e	vós	possais	aprender,	conforme	vos	for	mais	útil.
Quatro	categorias	de	batizados
8	Três	são,	portanto,	os	patriarcas	mencionados:	Abraão,	Isaac	e	Jacó.	Já
sabeis	que	os	filhos	de	Jacó	foram	doze,	e	que	o	povo	de	Israel	originou-se
deles,	visto	que	Jacó,	ele	mesmo,	é	denominado	Israel	e	o	povo	de	Israel
compõe-se	de	doze	tribos,	correspondentes	aos	doze	filhos	de	Israel.	Abraão,
Isaac	e	Jacó:	três	pais	e	um	só	povo.	Três	pais	que	se	colocaram,	digamos,
no	princípio	do	povo;	três	pais	em	quem	estava	figurado	o	povo,	tanto
aquele	antigo	povo	como	o	atual.	Naquele	povo	dos	judeus	figurou-se,	pois,
o	povo	dos	cristãos.	Ali	havia	a	figura;	aqui,	a	realidade.	Ali	havia	a
sombra,	aqui,	o	corpo,	conforme	o	dizer	do	Apóstolo:	“Todas	essas	coisas
sucediam-se	em	figura	para	eles	–	é	a	voz	do	Apóstolo!	–	e	foram	escritas
para	nós,	a	cujo	encontro	veio	o	fim	dos	tempos”.⁷⁵²	Volte-se	agora	o	vosso
espírito	para	Abraão,	Isaac	e	Jacó.	Cada	um	deles	teve	descendência
proveniente	de	mulheres	livres	e	descendência	proveniente	de	escravas.
Encontramos	ali	partos	das	mulheres	livres,	encontramos	ali	também	partos
das	escravas.	Uma	escrava	nada	significa	de	bom.	Está	dito:	“Expulsa	a
escrava	e	o	filho	dela,	pois	o	filho	da	escrava	não	herdará	com	o	filho	da
livre”.⁷⁵³	O	Apóstolo	recorda	esse	fato	e	diz	que,	nos	dois	filhos	de	Abraão,
houve	uma	figura	dos	dois	testamentos:	do	Antigo	e	do	Novo.⁷⁵⁴	Ao	Antigo
Testamento,	pertencem	os	que	amam	as	coisas	temporais,	os	que	amam	o
mundo;	ao	Novo,	pertencem	os	que	amam	a	vida	eterna.	Por	isso,	aquela
Jerusalém	terrestre	era	sombra	da	Jerusalém	celeste,	“a	mãe	de	todos	nós,	a
qual	está	nos	céus”.⁷⁵⁵	E	estas	são	palavras	do	Apóstolo.	Dessa	cidade,	da
qual	estamos	exilados,	muito	conheceis,	muitas	coisas	já	tendes	ouvido.	Ora,
encontramos	uma	coisa	digna	de	admiração	naquelas	descendências,	isto	é,
nessa	posteridade	de	mulheres	livres	e	de	escravas,	a	saber,	quatro	gêneros
de	homens.	Nesses	quatro	gêneros,	cumpre-se	a	imagem	do	futuro	povo
cristão	e,	assim,	já	não	admira	tanto	que	se	tenha	dito	em	relação	aos	três
patriarcas:	“Eu	sou	o	Deus	de	Abraão,	o	Deus	de	Isaac	e	o	Deus	de	Jacó”.
Com	efeito,	observai	bem,	irmãos,	o	que	acontece	entre	todos	os	cristãos:	há
bons	que	nascem	através	de	maus	e	há	maus	que	nascem	através	de	bons;
há	bons	que	nascem	através	de	bons	e	há	maus	que	nascem	através	de
maus.	Não	podeis	encontrar	nada	além	desses	quatro	gêneros.	Vou	repeti-lo,
prestai	atenção,	retende-o,	sacudi	o	vosso	coração,	não	sejais	preguiçosos.
Captai,	para	não	serdes	vós	capturados:	todos	os	cristãos	podem	classificar-
se	em	quatro	categorias:	ou	bons	nascem	por	meio	de	bons,	ou	maus	nascem
por	meio	de	maus,	ou	maus	nascem	por	meio	de	bons,	ou	bons	nascem	por
meio	de	maus.	Penso	que	isso	esteja	claro!	Por	meio	de	bons	nascem	bons,
quando	são	bons	aqueles	que	batizam,	e	os	que	são	batizados	possuem	uma
fé	reta	e,	com	razão,	pertencem	aos	membros	de	Cristo.	Por	meio	de	maus
nascem	maus,	se	são	maus	os	que	batizam,	e	maus	os	que	são	batizados,	por
se	aproximarem	de	Deus	com	coração	dissimulado	e	não	conservarem	os
costumes	que	ouvem	na	Igreja,	para	não	permanecer	ali	como	palha,	mas
como	trigo.	E	a	vossa	caridade	bem	sabe	quão	numerosos	eles	são!	Por	meio
de	maus	nascem	bons,	quando,	por	vezes,	o	que	batiza	é	um	adúltero	e	o	que
é	batizado	sai	justificado.	Por	meio	de	bons	nascem	maus,	quando,	por
vezes,	são	santos	os	que	batizam,	mas	os	que	são	batizados	não	querem
seguir	o	caminho	de	Deus.
Exemplos	da	Igreja	primitiva
9	Penso,	irmãos,	ser	conhecido	na	Igreja	e	manifestado	com	cotidianos
exemplos	o	que	acabamos	de	dizer.	Consideremo-lo,	porém,	em	nossos
antepassados,	como	houve	também	entre	eles,	essas	quatro	categorias.	Por
meio	de	bons	nascem	bons:	Ananias	batizou	Paulo.⁷⁵ 	O	que	encontramos	a
respeito	de	maus	que	nascem	por	meio	de	maus?	Falando	de	certos
pregadores	do	Evangelho,	o	Apóstolo	diz	que	eles	têm	o	hábito	de	anunciar
o	Evangelho	com	intenções	que	não	são	puras,	os	quais	Ele	tolera,
entretanto,	na	sociedade	cristã,	e	diz:	“Mas	que	importa?	De	toda	maneira	–
ou	com	segundas	intenções	ou	sinceramente	–	Cristo	é	anunciado,	e	com	isso
eu	me	regozijo”.⁷⁵⁷	Será	que	era	o	Apóstolo	malévolo,	ou	se	regozijava	com	o
mal	alheio?	Antes,	falava	assim,	porque,	mesmo	por	meio	de	maus,	a
Verdade	era	pregada,	e,	pela	boca	desses	maus,	Cristo	era	anunciado.	Se
eles	batizavam	pessoas	assemelhadas	a	eles	próprios,	eram	maus	que
batizavam	a	maus.	Caso	batizassem	homens	tais	quais	aqueles	a	quem	o
Senhor	adverte,	quando	diz:	“Fazei	tudo	quanto	vos	disserem,	mas	não
imiteis	o	que	fazem”,⁷⁵⁸	aí	havia	maus	que	batizavam	bons.	Também	havia
bons	que	batizavam	maus:	como	Simão,	o	Mago,	foi	batizado	pelo	santo
Filipe.⁷⁵ 	Conhecidas	são,	portanto,	essas	quatro	categorias,	meus	irmãos.
Eis	que,	de	novo,	as	repito,	retende-as,	contai-as,	observai-as,	acautelai-vos
quanto	às	que	são	más,	segui	as	boas.	Por	meio	de	bons	nascem	bons,
quando	os	santos	são	batizados	por	santos.	Por	meio	de	maus	nascem	maus,
quando	tanto	os	que	batizam,	como	os	que	são	batizados	por	eles,	vivem
iniquamente	e	na	impiedade.	Por	meio	de	maus	nascem	bons,	quando	são
maus	os	que	batizam,	e	bons	os	que	são	batizados.	Por	meio	de	bons	nascem
maus,	quando	são	bons	os	que	batizam	e	maus	os	que	são	batizados.
Bons	e	maus	na	descendência	dos	três	grandes	patriarcas
10	De	que	modo	encontramos	essas	quatro	categorias	naqueles	três	nomes:
“Eu	sou	o	Deus	de	Abraão,	o	Deus	de	Isaac	e	o	Deus	de	Jacó”?
Consideremos	as	escravas	entre	os	maus,	e	as	mulheres	livres	entre	os	bons.
As	livres	dão	à	luz	filhos	bons:	Sara	deu	à	luz	Isaac.⁷ 	As	escravas	dão	à	luz
filhos	maus:	Agar	deu	à	luz	Ismael.⁷ ¹	Temos	assim,	na	única	família	de
Abraão,	aquela	categoria	dos	bons	que	nascem	por	meio	de	bons,	e	aquela
dos	maus	que	nascem	por	meio	de	maus.	E	onde	se	figuraram	os	maus	que
nascem	por	meio	de	bons?	Rebeca,	esposa	de	Isaac,	era	livre.	Lede	que	ela
deu	à	luz	dois	gêmeos:	um	era	bom	e	outro	mau.	Tens	a	Escritura	a	dizê-lo
claramente,	pela	voz	de	Deus:	“Amei	a	Jacó,	e	detestei	a	Esaú”.⁷ ²	Rebeca
teve,	pois,	dois	filhos:	Jacó	e	Esaú.	Um	é	escolhido	e	outro	rejeitado.	Um
vem	a	ser	o	sucessor	na	herança,	o	outro	é	deserdado.	Deus	não	constitui	de
Esaú	o	Seu	povo,	mas	de	Jacó.	Houve	uma	só	descendência,	mas	os	filhos
concebidos	foram	diferentes;	o	mesmo	ventre,	mas	os	que	nasceram	foram
diferentes.	Porventura	não	deu	à	luz	Jacó	aquela	mulher	livre	que,	sendo
igualmente	livre,	deu	à	luz	Esaú?	Os	dois	lutavam	no	ventre	materno	e,	no
momento	em	que	ali	lutavam,	foi	dito	a	Rebeca:	“No	teu	ventre,	estão	dois
povos”.⁷ ³	São	dois	homens,	dois	povos:	um	povo	bom	e	um	povo	mau,	que
lutam,	não	obstante,	no	mesmo	ventre.	Quantos	maus	há	na	Igreja!	E	um
único	ventre	os	encerra,	até	que	sejam,	no	fim,	separados.	Os	bons	clamam
contra	os	maus,e	os	maus	protestam	contra	os	bons.	Ambos	lutam	nas
entranhas	de	uma	única	mãe.	Mas,	estarão	eles	sempre	unidos?	No	fim,	vir-
se-á	à	luz,	manifestar-se-á	o	nascimento	que	aqui,	no	mistério,	se	prefigura;
aparecerá,	então,	aquilo:	“Amei	a	Jacó	e	detestei	a	Esaú”.
Os	descendentes	de	Jacó
11	Já	encontramos,	irmãos,	bons	que	nasceram	por	meio	de	bons,	como
Isaac	que	nasceu	de	uma	mulher	livre,	bem	como	os	maus	que	nasceram	por
meio	de	maus,	como	Ismael,	nascido	de	uma	escrava,	e	também	os	maus	que
nasceram	de	bons,	como	Esaú,	nascido	de	Rebeca.	Onde	encontraremos
algo	acerca	dos	bons	que	nasceram	por	meio	de	maus?	Resta-nos	Jacó,	para
que	nos	três	patriarcas	se	complete	a	perfeição	desses	quatro	gêneros.	Jacó
teve	mulheres	livres	como	esposas,	e	também	teve	escravas.	Tanto	as	livres
como	as	escravas	dão	à	luz,	do	que	resultam	os	doze	filhos	de	Israel.	Se
contares	de	quem	todos	eles	nasceram,	verás	que	nem	todos	nasceram	das
livres,	nem	todos	das	escravas;	contudo,	todos	provêm	da	mesma	linhagem.
O	que	dizer,	pois,	irmãos?	Os	nascidos	das	escravas	não	vieram,	por	acaso,
a	possuir	a	terra	da	promissão,	juntamente	com	os	seus	irmãos?
Encontramos,	entre	eles,	bons	filhos	de	Jacó	nascidos	de	escravas,	e	bons
filhos	de	Jacó	nascidos	de	mulheres	livres.	O	fato	de	terem	nascido	de
ventres	de	escravas	em	nada	os	prejudicou,	uma	vez	que	era	reconhecida	no
pai	a	sua	linhagem	e,	por	essa	razão,	possuíram	o	reino	com	os	irmãos.
Como	o	fato	de	terem	nascido	das	escravas	não	foi	obstáculo	para
possuírem	o	reino	e	receberem	com	seus	irmãos,	em	igualdade	de	direitos,	a
terra	da	promissão	–	ao	não	se	ter	levado	em	conta	o	seu	nascimento	de
escravas,	mas	tendo	prevalecido	a	linhagem	paterna	–,	assim	também,	todos
quantos	são	batizados	por	maus	assemelham-se	aos	nascidos	de	escravas;	no
entanto,	como	procedem	da	linhagem	do	Verbo	de	Deus,	que	está	figurada
em	Jacó,	não	se	entristeçam,	pois	possuirão	a	herança	juntamente	com	seus
irmãos.	Esteja	tranquilo,	portanto,	aquele	que	nasce	de	boa	linhagem,
contanto	que	evite	imitar	a	escrava,	caso	tenha	nascido	da	escrava.	Que	não
imites	a	má	escrava,	que	se	incha	de	orgulho.	Ora,	como	entender,	pois,	que
os	filhos	de	Jacó,	nascidos	de	escravas,	possuíram	a	terra	da	promissão	com
seus	irmãos,	ao	passo	que	Ismael,	nascido	igualmente	de	uma	escrava,	foi
expulso	da	herança?	Como,	senão	porque	aquele	era	orgulhoso,	e	os	outros
eram	humildes?	Ismael	ergueu	a	cerviz	e	quis	enganar	o	seu	irmão,
brincando	com	ele.
O	caso	da	repressão	ao	donatismo.	Ismael	e	Isaac
12	Existe	aí	um	grande	mistério.	Ismael	e	Isaac	brincavam	juntos.	Sara	viu-
os	a	brincar,	e	disse	a	Abraão:	“Expulsa	a	escrava	e	o	filho	dela,	pois	o	filho
da	escrava	não	será	herdeiro	com	meu	filho	Isaac”.⁷ ⁴	E	como	Abraão
ficasse	triste,	o	Senhor	ratificou	para	ele	o	que	a	esposa	lhe	dissera.	Aqui,	já
é	manifesto	que	haja	um	mistério,	porque	não	sei	de	que	acontecimento
futuro	esse	fato	estava	prenhe.	Sara	viu-os	a	brincar,	e	disse:	“Expulsa	a
escrava	e	o	filho	dela”.	O	que	significa	isso,	meus	irmãos?	Que	mal	fez
Ismael	ao	pequeno	Isaac,	por	estar	brincando	com	ele?	É	que,	naquele
brinquedo,	havia	um	engodo.⁷ ⁵	Aquele	brinquedo	significava	um	engano.
Atente,	pois,	a	vossa	caridade,	ao	grande	mistério.	O	Apóstolo	o	chama	de
perseguição;	chama	de	perseguição	o	próprio	brinquedo,	o	próprio	jogo.
Diz,	com	efeito:	“Assim	como	então,	o	nascido	segundo	a	carne	perseguia	o
nascido	segundo	o	Espírito,	assim	também	agora”.⁷ 	Isso	significa:	os	que
nasceram	segundo	a	carne	perseguem	os	que	nasceram	segundo	o	Espírito.
Quem	são	os	que	nasceram	segundo	a	carne?	Os	que	estimam	o	mundo,	os
que	amam	o	século.	E	quais	são	os	que	nasceram	segundo	o	Espírito?	Os
que	amam	o	Reino	dos	céus,	os	que	amam	a	Cristo,	os	que	desejam	a	vida
eterna,	os	que	a	Deus	prestam	culto	de	modo	desinteressado.	Eles	brincam
juntos,	e	o	Apóstolo	fala	de	perseguição.	Após	estas	palavras,	pois:	“Mas
como	então,	o	nascido	segundo	a	carne	perseguia	o	nascido	segundo	o
Espírito,	assim	também	agora”,	o	Apóstolo	continuou,	mostrando	de	que
perseguição	estava	a	falar:	“Mas	o	que	diz	a	Escritura?	Expulsa	a	escrava	e
o	filho	dela,	pois	o	filho	da	escrava	não	será	herdeiro	com	o	meu	filho
Isaac”.⁷ ⁷	Procuramos	a	passagem	onde	se	encontram	essas	palavras	da
Escritura,	a	fim	de	ver	se	Ismael	não	havia	de	fato	começado	a	perseguir
Isaac.	Encontramos	que	tais	palavras	foram	pronunciadas	por	Sara,	no
momento	em	que	viu	os	meninos	brincarem	juntos.	Esse	jogo	que	a
Escritura	diz	que	Sara	teria	visto,	o	Apóstolo	denomina	“perseguição”.
Mais	vos	perseguem,	portanto,	aqueles	que,	iludindo-vos,	vos	seduzem:
Vem,	vem,	batiza-te	aqui:	aqui	tens	o	verdadeiro	batismo!	Não	brinques!
Não	há	senão	um	só	batismo	verdadeiro.	O	outro	é	um	engodo;	acabarás
seduzido,	e	essa	perseguição	te	fará	mal.	Seria	melhor	para	ti,	que	ganhasses
Ismael	para	o	Reino,	mas	Ismael	não	o	quer,	porque	quer	brincar.	Conserva
tu	a	herança	de	teu	pai,	e	fica	atento	a	estas	palavras:	“Expulsa	a	escrava	e
o	filho	dela,	pois	o	filho	da	escrava	não	será	herdeiro	com	meu	filho	Isaac”.
Os	donatistas	e	o	exemplo	de	Agar
13	Estes	ousam	até	dizer	que	costumam	suportar	perseguição	da	parte	de
reis	ou	de	príncipes	católicos.	Que	perseguição	eles	suportam?	Aflição
corporal!	–	dizem.	Se	a	têm	sofrido,	por	vezes,	e	de	que	maneira	a
padeceram,	eles	o	saberão	e	examinarão	a	própria	consciência.	Admito,
contudo,	que	tenham	sofrido	corporalmente,	mas	a	perseguição	que	eles
mesmos	movem	é	bem	mais	grave.	Cuidado,	quando	Ismael	quer	brincar
com	Isaac;	quando	ele	te	acaricia;	quando	te	propõe	outro	batismo,
responde:	Eu	já	tenho	o	batismo!	Com	efeito,	se	esse	batismo	é	verdadeiro,
quem	te	quer	conferir	outro,	quer	iludir-te.	Cuidado	com	o	perseguidor	da
alma!	Pois,	se	algo	padeceu	o	partido	de	Donato,	uma	vez	ou	outra,	de	parte
dos	príncipes	católicos,	padeceu-o	segundo	o	corpo,	não	segundo	a	ilusão	do
espírito.	Ouvi	e	vede	nos	próprios	fatos	antigos,	tudo	é	ali	um	sinal,	um
indício	de	acontecimentos	futuros.	Encontra-se	que	Sara	maltratou	Agar,	a
escrava.	Sara	é	a	mulher	livre.	Quando	a	escrava	começou	a	ensoberbecer-
se,	Sara	queixou-se	a	Abraão,	e	disse-lhe:	“Expulsa	a	escrava”,	porque
levantou	a	cerviz	contra	mim.	E	como	se	Abraão	tivesse	feito	isso,	a	mulher
queixou-se	dele.	Abraão,	porém,	que	se	ligava	à	escrava	não	por	uma	paixão
desordenada,	mas	pelo	encargo	de	gerar	descendência,	disse	a	Sara:	“Eis
que	é	tua	a	escrava,	trata-a	como	quiseres”.⁷ ⁸	Sara	maltratou	de	tal	modo	a
Agar,	que	ela	fugiu	de	sua	presença.	Eis	que	a	mulher	livre	maltratou	a
escrava,	e	o	Apóstolo	não	chama	isso	de	perseguição.	Ao	passo	que	o	servo
brinca	com	o	seu	senhor,	mas	ele	o	denomina	perseguição.	Não	chama
aqueles	maus-tratos	de	perseguição,	mas	chama	esse	jogo	de	perseguição.
Que	vos	parece,	irmãos?	Não	compreendeis	o	que	foi	significado?	Quando
Deus,	portanto,	quer	concitar	as	potestades	contra	os	hereges,	contra	os
cismáticos,	contra	os	dissipadores	da	Igreja,	contra	os	que	expulsam	a
Cristo,	contra	os	blasfemadores	do	batismo,	não	é	de	admirar,	porque	Deus
instiga	que	seja	Agar	golpeada	por	Sara.	Reconheça	Agar	a	sua	própria
condição,	dobre	a	cerviz,	porque	quando,	após	ter	sido	humilhada,	se
afastou	de	sua	senhora,	apresentou-se	a	ela	um	anjo	e	disse-lhe:	“O	que	se
passa,	Agar,	escrava	de	Sara?”.	E	após	queixar-se	da	senhora,	o	que	ela
ouviu	do	anjo?	“Volta	para	junto	de	tua	senhora”.⁷ 	Ela	é	maltratada
precisamente	para	isto:	para	voltar.	E	oxalá	volte,	porque,	então,	como
sucedeu	com	os	filhos	de	Jacó,	a	sua	prole	possuirá	a	herança	com	os
irmãos.
O	dever	dos	reis	cristãos
14	Admiram-se,	entretanto,	de	que	as	potestades	cristãs	se	levantem	contra
os	detestáveis	dissipadores	da	Igreja.	Não	se	levantariam,	por	acaso?	Como,
então,	prestariam	contas	a	Deus	de	seu	império?	Que	a	vossa	caridade
preste	atenção	no	que	direi:	cabe	aos	reis	cristãos	deste	mundo	querer	ver
pacificada,	nos	seus	tempos	de	reinado,	sua	mãe,	a	Igreja,	da	qual	nasceram
espiritualmente.	Nós	lemos	as	visões	e	os	atos	proféticos	de	Daniel.	Os	três
jovens	louvaram	o

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