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Sumário CAPA FOLHA DE ROSTO APRESENTAÇÃO INTRODUÇÃO HOMILIA 1 HOMILIA 2 HOMILIA 3 HOMILIA 4 HOMILIA 5 HOMILIA 6 HOMILIA 7 HOMILIA 8 HOMILIA 9 HOMILIA 10 HOMILIA 11 HOMILIA 12 HOMILIA 13 HOMILIA 14 HOMILIA 15 HOMILIA 16 HOMILIA 17 HOMILIA 18 HOMILIA 19 HOMILIA 21 HOMILIA 22 HOMILIA 23 HOMILIA 24 HOMILIA 25 HOMILIA 26 HOMILIA 27 HOMILIA 28 HOMILIA 29 HOMILIA 30 HOMILIA 31 HOMILIA 32 HOMILIA 33 HOMILIA 34 HOMILIA 35 HOMILIA 36 HOMILIA 37 HOMILIA 38 HOMILIA 39 HOMILIA 40 HOMILIA 41 HOMILIA 42 HOMILIA 43 HOMILIA 44 HOMILIA 45 HOMILIA 46 HOMILIA 47 HOMILIA 48 HOMILIA 49 COLEÇÃO FICHA CATALOGRÁFICA Landmarks Cover Title Page Table of Contents Introduction Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter Chapter APRESENTAÇÃO Surgiu, pelos anos 1940, na Europa, especialmente na França, um movimento de interesse voltado para os antigos escritores cristãos, conhecidos tradicionalmente como “Padres da Igreja”, ou “santos Padres”, e suas obras. Esse movimento, liderado por Henri de Lubac e Jean Daniélou, deu origem à coleção “Sources Chrétiennes”, hoje com centenas de títulos, alguns dos quais com várias edições. Com o Concílio Vaticano II, ativou-se em toda a Igreja o desejo e a necessidade de renovação da liturgia, da exegese, da espiritualidade e da teologia a partir das fontes primitivas. Surgiu a necessidade de “voltar às fontes” do cristianismo. No Brasil, em termos de publicação das obras desses autores antigos, pouco se fez. A Paulus Editora procura, agora, preencher esse vazio existente em língua portuguesa. Nunca é tarde ou fora de época para rever as fontes da fé cristã, os fundamentos da doutrina da Igreja, especialmente no sentido de buscar nelas a inspiração atuante, transformadora do presente. Não se propõe uma volta ao passado através da leitura e estudo dos textos primitivos como remédio ao saudosismo. Ao contrário, procura-se oferecer aquilo que constitui as “fontes” do cristianismo, para que o leitor as examine, as avalie e colha o essencial, o espírito que as produziu. Cabe ao leitor, portanto, a tarefa do discernimento. A Paulus Editora quer, assim, oferecer ao público de língua portuguesa, leigos, clérigos, religiosos, aos estudiosos do cristianismo primevo, uma série de títulos não exaustiva, cuidadosamente traduzida e preparada, dessa vasta literatura cristã do período patrístico. Para não sobrecarregar o texto e retardar a leitura, procurou-se evitar as anotações excessivas, as longas introduções, estabelecendo paralelismos de versões diferentes, com referências aos empréstimos da literatura pagã, filosófica, religiosa, jurídica, às infindas controvérsias sobre determinados textos e sua autenticidade. Procurou-se fazer com que o resultado desta pesquisa original se traduzisse numa edição despojada, porém séria. Cada obra tem uma introdução breve, com os dados biográficos essenciais do autor e um comentário sucinto dos aspectos literários e do conteúdo da obra, suficientes para uma boa compreensão do texto. O que interessa é colocar o leitor diretamente em contato com o texto. O leitor deverá ter em mente as enormes diferenças de gêneros literários, de estilos em que estas obras foram redigidas: cartas, sermões, comentários bíblicos, paráfrases, exortações, disputas com os heréticos, tratados teológicos vazados em esquemas e categorias filosóficas de tendências diversas, hinos litúrgicos. Tudo isso inclui, necessariamente, uma disparidade de tratamento e de esforço de compreensão a um mesmo tema. As constantes, e por vezes longas, citações bíblicas ou simples transcrições de textos escriturísticos devem-se ao fato de que os Padres escreviam suas reflexões sempre com a Bíblia numa das mãos. Julgamos necessário um esclarecimento a respeito dos termos patrologia, patrística e Padres ou Pais da Igreja. O termo “patrologia” designa, propriamente, o estudo sobre a vida, as obras e a doutrina dos Pais da Igreja. Ela se interessa mais pela história antiga, incluindo também obras de escritores leigos. Por “patrística” se entende o estudo da doutrina, das origens dela, suas dependências e empréstimos do meio cultural, filosófico, e da evolução do pensamento teológico dos Pais da Igreja. Foi no século XVII que se criou a expressão “teologia patrística” para indicar a doutrina dos Padres da Igreja, distinguindo-a da “teologia bíblica”, da “teologia escolástica”, da “teologia simbólica” e da “teologia especulativa”. Finalmente, “Padre ou Pai da Igreja” se refere a escritor leigo, sacerdote ou bispo, da Antiguidade cristã, considerado pela tradição posterior como testemunha particularmente autorizada da fé. Na tentativa de eliminar as ambiguidades em torno desta expressão, os estudiosos convencionaram em receber como “Pai da Igreja” quem tivesse estas qualificações: ortodoxia de doutrina, santidade de vida, aprovação eclesiástica e Antiguidade. Mas os próprios conceitos de ortodoxia, santidade e Antiguidade são ambíguos. Não se espera encontrar neles doutrinas acabadas, buriladas, irrefutáveis. Tudo estava ainda em ebulição, fermentando. O conceito de ortodoxia é, portanto, bastante largo. O mesmo vale para o conceito de santidade. Para o conceito de Antiguidade, podemos admitir, sem prejuízo para a compreensão, a opinião de muitos especialistas que estabelece, para o Ocidente, Igreja latina, o período que, a partir da geração apostólica, se estende até Isidoro de Sevilha (560-636). Para o Oriente, Igreja grega, a Antiguidade se estende um pouco mais, até a morte de São João Damasceno (675-749). Os “Pais da Igreja” são, portanto, aqueles que, ao longo dos sete primeiros séculos, foram forjando, construindo e defendendo a fé, a liturgia, a disciplina, os costumes e os dogmas cristãos, decidindo, assim, os rumos da Igreja. Seus textos se tornaram fontes de discussões, de inspirações, de referências obrigatórias ao longo de toda a tradição posterior. O valor dessas obras que agora a Paulus Editora oferece ao público pode ser avaliado neste texto: Além de sua importância no ambiente eclesiástico, os Padres da Igreja ocupam lugar proeminente na literatura e, particularmente, na literatura greco-romana. São eles os últimos representantes da Antiguidade, cuja arte literária, não raras vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todas as literaturas posteriores. Formados pelos melhores mestres da Antiguidade clássica, põem suas palavras e seus escritos a serviço do pensamento cristão. Se excetuarmos algumas obras retóricas de caráter apologético, oratório ou apuradamente epistolar, os Padres, por certo, não queriam ser, em primeira linha, literatos, e sim arautos da doutrina e moral cristãs. A arte adquirida, não obstante, vem a ser para eles meio para alcançar esse fim. […] Há de se lhes aproximar o leitor com o coração aberto, cheio de boa vontade e bem-disposto à verdade cristã. As obras dos Padres se lhe reverterão, assim, em fonte de luz, alegria e edificação espiritual (B. Altaner e A. Stuiber, Patrologia, São Paulo: Paulus, 1988, p. 21- 22). A Editora INTRODUÇÃO Os comentários agostinianos a São João Ir. Nair de Assis Oliveira, CSA (†) Heres Drian de O. Freitas À parte alguns sermones sobre passagens do Evangelho de João¹ – não contemplados aqui –, Santo Agostinho dedicou especificamente duas obras a textos bíblicos do discípulo amado:² uma a seu evangelho, outra a sua primeira carta. Ambas gozaram de grande apreço ao longo dos séculos.³ Não sem razão, pois são densas de elaborada e refinada teologia, apresentada, porém, com a simplicidade e a clareza didática do experiente pastor preocupado em nutrir seu auditório – e seusleitores – com aquele que é seu próprio nutrimento.⁴ Tais obras não são, portanto, para Agostinho de Hipona – nem devem sê-lo para o cristão –, matéria de estudo ou exposição simplesmente, mas conteúdo da própria piedade e devoção. Títulos e gênero literário Os tomos deste volume, intitulado Comentários a São João, contêm as duas obras a que acabamos de nos referir, cujos títulos originais são, respectivamente, In Iohannis evangelium tractatus CXXIV⁵ e In epistulam Iohannis ad Parthos tractatus decem. De ambos os títulos, o que pode causar estranheza é, no segundo, a expressão ad Parthos, aos quais o Hiponense considera endereçada a primeira epístola joanina,⁷ o que, de fato, não ocorre. Sem qualquer comentário ou explicação, Santo Agostinho menciona alhures esse endereçamento da Primeira epístola de João aos partos,⁸ e Possídio repete-o em seu Indiculum. Isso talvez signifique que a primeira epístola joanina fosse, pelo menos naquela região, conhecida sob tal endereçamento, que parece atestado somente na literatura patrística posterior.¹ A esse respeito, basta dizer que foram apresentadas diversas possibilidades de explicação para tal endereçamento. Uma delas – e que convence grande parte dos estudiosos, embora permaneça uma conjectura¹¹ – diz ser ad Parthos tradução, ou transcrição, equivocada do acusativo grego Párthous, não relativo aos partos, mas como corruptela de Parthénous (Virgem), epíteto dado ao apóstolo João. Quanto ao autor das obras comentadas, o discípulo amado, que se identifique com João, filho de Zebedeu e discípulo do Senhor, Agostinho não duvida,¹² e afirma inspiração e canonicidade tanto do quarto evangelho quanto da primeira epístola joanina.¹³ Acerca do termo tractatus, presente em ambos os títulos latinos,¹⁴ seu correspondente imediato em português, isto é, “tratado”, sugeriria ao leitor contemporâneo a ideia de uma obra de determinada ordem, mais científica, monográfica – talvez, por quanto possível –, não correspondente ao sentido com que o Hiponense o emprega. Com efeito, tractatus aparece na literatura clássica com o sentido, entre outros, de comentário, exposição,¹⁵ e o cristianismo primitivo assimila-o como pregação,¹ fundamentalmente sobre o conteúdo das Escrituras.¹⁷ Mais especificamente ainda, para Santo Agostinho, tractatus designa homilia popular, sermões populares,¹⁸ isto é, pregações em geral de caráter exegético,¹ mas didáticas, pastorais, destinadas à assembleia litúrgica.² Considerando-se tais aspectos das exposições agostinianas acerca das duas obras joaninas de que nos ocupamos, o título (tractatus) bem identificaria o gênero destas obras.²¹ Em ambos os comentários, enquanto gênero literário, o tractatus é algo complexo, rico e flexível, sem manter-se em esquemas prévios; comporta o exame de códices,²² das línguas originais,²³ da gramática,²⁴ a parênese,²⁵ o comentário espiritual,² a reflexão filosófico-dogmática,²⁷ as exegeses literal²⁸ e alegórica,² e mesmo múltiplas possibilidades interpretativas.³ Tal gênero literário harmoniza-se bem com o gênio agostiniano e com as necessidades de um auditório heterogêneo quanto a conhecimento, idade, cultura e vivência da própria fé.³¹ Estilo e método As homilias de Io. ev. tr. – embora tenham tido lugar em distintas fases³² – e as de ep. Io. tr. são obras unitárias.³³ Em geral, as pregações são ricas em comparações diretas, tiradas da vida cotidiana.³⁴ O estilo é francamente popular, de linguagem clara, simples,³⁵ mantendo com seu auditório o tom de uma conversa familiar – cuja matéria o autor convida a retomar fora do contexto litúrgico³ –, de partilha à mesa do Senhor,³⁷ particularmente do pão da verdade.³⁸ Para ser entendido – e cumprir seu dever de instrumento do Verbo³ –, o pregador não teme repertir-se,⁴ ser severo⁴¹ ou polêmico,⁴² mesmo se o tom geral costuma ser serenamente paterno, instrutivo.⁴³ Para não tratar rapidamente de questões importantes ou complexas, pospõe-nas a outra homilia.⁴⁴ Diante de sua assembleia, reconhece os próprios limites e dificuldades,⁴⁵ pede-lhe que por ele reze⁴ e com ela reza, e⁴⁷ com ela reconhece o próprio pecado que precisa de purificação.⁴⁸ Obviamente, ponto de partida são sempre os textos joaninos – Evangelho e Primeira Epístola –, particularmente explicados em seu contexto e pela própria Escritura, cujos textos obscuros são esclarecidos por aqueles mais claros e cujas aparentes contradições são destrincadas.⁴ Embora os Io. ev. tr. tenham um teor geral exegético-dogmático e a interpretação aflore em elementos anti-heréticos,⁵ como os ep. Io. tr. – onde isto é evidente –, os tractatus são basicamente pastorais, com objetivo de tornar conhecidos, amados e seguidos os ensinamentos de Cristo nas obras joaninas a que Santo Agostinho dedica-se. Nos Io. ev. tr., geralmente são comentados grandes blocos de versículos ou determinados versículos complexos⁵¹ e, ainda que isso ocorrra também em ep. Io. tr., nestes últimos o Hiponense é mais escrupuloso ao comentar o conteúdo dos versículos. Mas, as homilias, em ambos os comentários, têm ritmo próprio, não têm todas a mesma dimensão, nem é comentado o mesmo número de versículos. Nosso autor deixa-se levar pelo texto bíblico. Em Io. ev. tr., quanto aos milagres – ou, melhor, sinais⁵² – do Senhor, o Hiponense concentra-se somente em pontos específicos.⁵³ Essa concentração em pontos específicos do texto evangélico, contudo, torna-se muito mais intensa a partir de Io. ev. tr. 55. Isso tem explicação: em determinado momento, há uma mudança no modo expositivo, e as homilias são mais ao modo de comentário propriamente dito, enquanto no caso da exposição com grandes blocos de versículos, ou de determinados versículos complexos, as homilias são mais ao modo dos tractatus populares. Tecnicamente, o comentário – nos moldes dos comentários gramaticais pagãos – é composto de “breves explicações [...] de caráter variado (histórico, antiquário, gramatical, retórico)”; são, basicamente, notas marginais.⁵⁴ Já os tractatus populares agostinianos têm, com todas as características já indicadas,⁵⁵ esta particularidade do sermo: discursividade, oralidade.⁵ Em ambas as obras que temos em mãos, Santo Agostinho, sem, obviamente, a pretensão de fazer trabalho exegético científico à moda dos nossos atuais exegetas, ocupa-se de explicar objetivamente o texto escriturístico, mas, ao mesmo tempo, procura dar a seus fiéis um ensino proveitoso para o enfrentamento das dificuldades do momento, não de qualquer modo, porém, mas conforme a fé da Igreja. O conteúdo da fé, o ensinamento, é para ser vivido. Embora ele não apresente um plano ou esquema definido para estes comentários, e pareça não preocupar-se com a estrutura das obras e a coordenação das ideias, ambos, contudo, têm sua unidade garantida pelo pensamento de conjunto e o desejo de comentá-los por completo,⁵⁷ além de, a essa unidade, parecer subjazerem cinco regras fundamentais para a leitura dos textos joaninos: 1) não há salvação senão no Verbo encarnado, 2) cuja compreensão correta exclui heresias e/ou cismas e 3) pauta-se pela Escritura, que se explica por si mesma, e 4) é vivida na dupla caridade – único objeto da Escritura, particularmente de 1Jo –, que faz que 5) Cabeça e membros formem a unidade do Corpo de Cristo.⁵⁸ Ocasião, datação, divisão Mesmo que os Io. ev. tr. resultem do projeto de um ciclo de pregações⁵ em Hipona, suas 124 homilias tiveram lugar em diversas etapas ao longo de um arco temporal bastante amplo: de dezembro de 405-quaresma de 406 a depois de 420. Nosso autor não fala da motivação para tais pregações. ¹ No entanto, Io. ev. tr. pode ter tido o intento catequético de “pregar o mistério de Cristo, Deus e homem, cheio de graça e de Verdade”, ² como preparação paralela à formação dos catecúmenos para o batismo, a partir de um texto central da Escritura, planejado para de dezembro – preparação para o Natal – à Páscoa, e cuja extensão pode ter levado à pregação além do domingo. ³ De fato, embora as pregações tenham ocorrido tanto em domingos ⁴como em dias feriais, ⁵ não é impossível que se tivesse proposto comentar todo o quarto evangelho a partir de textos dispostos para a liturgia. O uso litúrgico do texto poderia ser uma das causas das interrupções, juntamente com circunstâncias históricas da igreja africana. ⁷ A esse respeito, destacam-se particularmente certos acentos polêmicos heterogêneos nas homilias. Essa heterogeneidade polêmica evidente levou os estudiosos a dividirem as homilias do Io. ev. tr. em blocos distintos. Desses blocos, o primeiro compreende as homilias 1-16, pregadas entre 405 e 411, período de forte polêmica antidonatista, ⁸ que se faz sentir no conteúdo e no tom. Também a aparente liberdade de culto de que os donatistas parecem gozar leva a datar esse bloco antes da Conferência de Cartago (junho de 411), que define oficialmente a cassação do partido de Donato,⁷ já que as homilias posteriores cedem espaço a outros embates polêmicos. Nesse bloco, as homilias de 1-12 (ou 1-16⁷¹) parecem ter sido proferidas quase sucessivamente em domingos de dezembro de 405 até a quaresma do ano seguinte.⁷² Esse bloco de pregações suscessivas é interrompido na semana de Páscoa para as pregações sobre a Primeira Epístola de S. João.⁷³ Em geral, considerou-se que as homilias 13-16 foram retomadas entre 407-411,⁷⁴ não sendo certo que – embora seu conteúdo seja afim ao das homilias pré-pascais precedentes – tenham sido pregadas sucessivamente à homilia 12 no mesmo ano 406.⁷⁵ Io. ev. tr. 17-54 compõe o segundo bloco,⁷ considerado normalmente de homilias antiarianas. Os estudiosos costumam situá-lo cerca de, pelo menos, uma dozena de anos depois (418) de iniciado o ciclo, isto é, quando começa a campanha antiariana de Agostinho.⁷⁷ Mas pode ser anterior a 418,⁷⁸ e mais uma oposição genérica ao arianismo que uma verdadeira e própria investida antiariana.⁷ De fato, as referências diretas ao arianismo não são tantas quantas se esperaria em aberta polêmica,⁸ cujo tom nem sequer se faz marcadamente presente.⁸¹ Talvez devido a sua possível intenção catequética, o Hiponense inclua neste bloco outras heresias cristológicas,⁸² de modo a apresentar, de maneira simples, a reta fé em relação ao mistério do Cristo.⁸³ Embora se tenha afirmado que este bloco de homilias tenha sido pronunciado em curto espaço de tempo,⁸⁴ excetuadas a recordação da homilia do dia anterior e a promessa da do dia seguinte,⁸⁵ referências e indícios cronológicos são raros.⁸ Poucos acenos a teses pelagianas,⁸⁷ cuja aberta polêmica (418) seria um terminus ante quem,⁸⁸ podem oferecer um critério para sua datação.⁸ O terceiro e último bloco (Io. ev. tr. 55-124) foi iniciado (Io. ev. tr. 55-60) em novembro de 419, para completar o comentário ao respectivo evangelho, e estende-se a depois de 420-422. Referindo-se a Io. ev. tr. 55-60, Agostinho mesmo diz que essas homilias são breves – aliás, evidente e consideravelmente mais breves que as dos blocos anteriores ¹ –, e acena à possibilidade de este bloco ter sido encomendado pelo bispo Aurélio de Cartago, sem cuja aprovação talvez o Hiponense não tivesse concluído Io. ev. tr. ² – o que em nada compromete a possível intenção agostiniana original do(s) primeiro(s) bloco(s). ³ Há, nesse bloco, por um lado, maior quantidade de versículos citados no todo de uma homilia – sem que se comente cada um deles ⁴ – e, por outro, versículos tomados isoladamente e tratados de modo mais conforme à técnica do comentário, ⁵ isto é, com maior dedicação à análise de expressões – mas sem perder de vista o quadro mais amplo de uma perícope ou das Escrituras. ⁷ Quanto, porém, aos ep. Io. tr., Santo Agostinho é claro acerca de suas circunstâncias e motivação: não muito tempo antes, ele havia encetado a explicação do Evangelho de São João, e, tendo interrompido esse comentário – que se encontrava já na homilia 12, ou 16 ⁸ – para dar lugar às leituras prescritas para as celebrações pascais, em Hipona, por ocasião da Oitava da Páscoa, achou conveniente iniciar o da Primeira Epístola joanina (ep. Io. tr.). Seu conteúdo, de fato, parecia-lhe em perfeita harmonia com as alegrias pascais, e seria como que continuidade de trabalho com o mesmo autor sacro, com o objetivo de nutrir uma chama já acesa, ou de acendê-la. O Hiponense esperava terminar a explicação da Epístola durante a Oitava da Páscoa,¹ mas foi necessário ir um pouco além. Durante a Oitava, de fato, conseguiu pregar os ep. Io. tr. 1-8,¹ ¹ e os ep. Io. tr. 9-10 adentraram o tempo pascal e foram pronunciados depois do Segundo Domingo de Páscoa, que encerra a Oitava.¹ ² Diversamente da obra que as antecede neste volume, as homilias ep. Io. tr., pregadas quase ininterruptamente e em curto espaço de tempo, não apresentam divisões. A interrupção das homilias, então havia pouco iniciadas (405 ou 406), sobre o Evangelho, com o aproximar-se da Páscoa¹ ³ e a passagem quase imediata à dedicação ao comentário da Primeira Epístola de S. João, iniciado na Oitava da Páscoa, e concluído durante o tempo pascal, permitem datar estas últimas pregações em 406 ou 407.¹ ⁴ Este último comentário agostiniano, infelizmente, não chega exatamente até o final da Epístola joanina, faltando a explicação dos últimos dezoito versículos. Exposições orais ou escritas? Destinados à assembleia litúrgica, os tractatus podem ser composições orais ou escritas,¹ ⁵ e, nestas páginas, até o momento, referiu-se às homilias dos comentários agostinianos a S. João ora como pregadas ora como compostas. Cabe, então, antes de ir além, precisar se foram, de fato, proferidas diante da comunidade reunida de fiéis ou não. A comparação entre as dez homilias de ep. Io. tr. e os dois primeiros blocos de homilias de Io. ev. tr com as últimas setenta desse comentário evangélico pode causar estranheza, não só pela dimensão das homilias, mas também pelo grau de espontaneidade claramente distinto entre elas e pela diferença no modo expositivo. Enquanto todas as dez homilias sobre a Primeira Epístola joanina e os dois primeiros blocos de homilias ao Evangelho de S. João foram pregados ao povo, não é esse o caso do último bloco de setenta homilias de Io. ev. tr. A indicar isso são o tom, o movimento oratório e o diálogo espontâneo com o auditório, constantes nos primeiros, mas praticamente ausentes nas últimas.¹ Com efeito, enquanto as primeiras eram anotadas por estenógrafos no momento em que eram proferidas para a assembleia reunida na liturgia, as últimas foram ditadas, o Hiponense mesmo no-lo diz.¹ ⁷ Ao assinalar que foram ditadas, ele deixa claro que não foram pregadas, mas publicadas, pelos menos Io. ev. tr. 55-60 – e considere-se, ainda, que seu ditado ocorria à noite,¹ ⁸ sem qualquer aceno a fiéis reunidos. Mas é muito provável que também os tractatus seguintes tenham sido ditados, e publicados, não proferidos ao povo, como o foram Io. ev. tr. 1-54 e ep. Io. tr., pois ele acena à possibilidade de continuar o trabalho de completar o comentário a todo o evangelho joanino após a recepção das homilias 55-60 por Aurélio de Cartago e sua aprovação para prosseguir.¹ Posto que temos o comentário todo, a conclusão é inegável: o bispo de Cartago aprovou-as e o Hiponense completou o ditado do comentário. Assim, as referências ao auditório no último bloco de homilias de Io. ev. tr. seriam recurso retórico,¹¹ talvez não meramente estilístico, porém. Vale notar que, embora Io. ev. tr. 55-124 tenha sido escrito – e haja, portanto, algo de distinto nesse bloco, em comparação a Io. ev. tr. 1-54¹¹¹ –, nosso autor define essas setenta homilias como tractatus populares. Isso significa que são para a pregação na liturgia, quer fossem lidas – integralmente ou não – por outros pregadores, quer lhes servissem de modelo.¹¹² Conteúdo Mesmo que os textos do evangelho e da primeira carta joaninos sejam a matéria basilar das exposições agostinianas, os mais diversos elementos afloram deles nas homilias agostinianas. Nesta seção, contudo, destacamos apenas alguns desses elementos, que são fundamentais na intenção catequética do Bispo de Hipona: a cristologia,a ação do Espírito Santo e a caridade. Cristologia Embora Santo Agostinho não perca de vista a Trindade em sua teologia, a cristologia ocupa um lugar central nestes comentários e as primeiras homilias de Io. ev. tr. (1-3), dedicadas ao prólogo joanino (Jo 1,1-14), podem dar a chave de leitura desta última obra: nos mistérios salvíficos da encarnação de Cristo, grande e humilde, o que falta à filosofia deste mundo.¹¹³ Com efeito, a partir do prólogo joanino, o primeiro bloco de homilias (Io. ev. tr. 1-16, que expõe Jo 1,1-4,53) concentra-se na realidade da Encarnação do Verbo, o Cristo Mediador e Salvador:¹¹⁴ não há salvação fora de Cristo,¹¹⁵ caminho e destino,¹¹ Verbo eterno e Verbo encarnado;¹¹⁷ Deus,¹¹⁸ com o Pai e o Espírito Santo,¹¹ igual ao Pai e em nada inferior a Ele;¹² Deus e homem;¹²¹ Deus humilde,¹²² que assume a carne humana¹²³ e sua mortalidade¹²⁴ na forma de servo,¹²⁵ para humildemente sofrer e, voluntariamente, morrer pela humanidade.¹² Mas, nascido de Maria na carne humana, Ele ressuscita,¹²⁷ tornando sua cruz meio para que a humanidade chegue à eternidade.¹²⁸ N’Ele, Deus torna-se acessível.¹² Ele é Luz,¹³ Verdade¹³¹ e Vida;¹³² que, como Médico, cura a humanidade da cegueira de seu coração;¹³³ salvador, por sua paixão, mata sua morte¹³⁴ e redime do pecado;¹³⁵ mestre (doctor e magister), ensina a caridade¹³ e a humildade.¹³⁷ Já no segundo bloco de homilias (Io. ev. tr. 17-54, dedicado a Jo 5,1-12,50), o Hiponense concentra-se na realidade da unidade das duas naturezas de Cristo. Dois versículos do prólogo são constantemente aproximados (Jo 1,1 e 14), frequentemente com dois versículos paulinos (Fl 2,6 e 7), para enfatizar a unidade Cristo-Deus e Cristo-homem: o Verbo eterno e criador é o Verbo encarnado,¹³⁸ o Filho de Deus é o Filho do homem¹³ – pontos retomados frequentemente, com repetição dos já indicados no parágrafo precedente, mesmo sem o emparelhamento dos referidos versículos. Na unidade ímpar de suas duas naturezas em uma pessoa,¹⁴ sem confusão,¹⁴¹ Cristo é o único Mediador e Salvador.¹⁴² Sendo, portanto, Deus, Ele é um com o Pai e igual a Ele,¹⁴³ contra a arianismo, que O afirmava inferior; mas não é o Pai, contra o sabelianismo, que afirmava serem ambos o mesmo.¹⁴⁴ Sendo, por outro lado, homem, Ele não perde nada de sua divindade,¹⁴⁵ e mostra a humildade.¹⁴ E na humildade de Sua encarnação, faz-se caminho¹⁴⁷ por amor à humanidade¹⁴⁸, para resgatá-la.¹⁴ Isso quer dizer que Cristo é real em sua carne humana, não se trata, contra o docetismo maniqueu, de uma aparência,¹⁵ e tem, contra o apolinarismo, uma verdadeira e própria alma racional humana;¹⁵¹ mas sem pecado algum.¹⁵² Cristo é, então, plena e verdadeiramente Deus e é plena e verdadeiramente homem; essa é a fé que a Igreja conserva¹⁵³ e segundo a qual vive o fiel,¹⁵⁴ e pela qual esse é salvo.¹⁵⁵ No terceiro bloco (Io ev. tr. 55-124, que expõe Jo 13,1-21,25), sobre o discurso do Senhor na última ceia e os eventos da paixão, morte e ressurreição, são tratados, mais frequentemente, os significados de expressões usadas pelo Senhor, mas nosso santo doutor volta-se também – e pouco mais incisavamente que nos blocos anteriores, ainda que não o faça de modo contínuo ou abundante – para o Espírito Santo. O Espírito Santo é Deus, e o é com o Pai e o Filho na unidade da Trindade, do Deus único,¹⁵ da mesma substância divina, inseparavelmente.¹⁵⁷ Ele procede do Pai¹⁵⁸ e é igual ao Pai e ao Filho.¹⁵ Entre eles não há qualquer distinção que implique superioridade de um sobre o outro.¹ A ação do Espírito Santo É o Espírito de amor que nos faz gemer, que geme em nós,¹ ¹ com gemidos de amor e de desejo da Pátria definitiva;¹ ² presente no fiel, qual templo da divindade¹ ³ – em sua unidade trina –, prepara-o para a instrução das realidades divinas¹ ⁴ e confirma a sua fé católica.¹ ⁵ A instrução das realidades divinas e a confirmação da fé católica dizem respeito à ação de ensino do Espírito Santo. Quanto ao ensinamento da verdade, que o leitor contemporâneo facilmente desenvolveria a partir de Jo 14,17; 15,16 e 16,13 (sobre o Espírito da verdade), para Agostinho, o ensinamento do Espírito Santo é lido em textos distintos, sobremaneira simbolicamente, dos quais destacamos duas manifestações visíveis: a pomba no batismo do Senhor e as línguas de fogo no Pentecostes.¹ Simbolicamente, os gemidos das pombas – os fiéis na unidade batismal da única Igreja – são o desejo da Pátria e tal desejo não surge da própria vontade humana, mas é ensinado pelo Espírito Santo. Com isso, o Espírito ensina que a felicidade eterna não se encontra nesta vida e é, aqui, possuída somente na esperança.¹ ⁷ Mas o ensinamento da verdade ministrado pelo Espírito Santo é um conteúdo que implica, necessariamente, um modo de agir. Para o Hiponense, quem conhece tais verdades aprende do Espírito Santo a ser simples – simples é aquele em quem não há má-fé – e a permanecer na unidade, quem é simples não é cismático; aprende igualmente o fervor, que defende a verdade da própria fé sem ofender ninguém, o fervoroso não vocifera contra o outro. Simplicidade e fervor, ensinados pelo Espírito, convivem nas pombas, que gemem de Seu amor e mantêm a paz.¹ ⁸ À unidade da pomba não se opõe a multiplicidade das línguas no Pentecostes, pois no único Espírito Santo – na única Igreja¹ – reuniram-se os muitos e diferentes povos.¹⁷ Contudo, além dessas manifestações simbólicas e passageiras do Espírito Santo,¹⁷¹ ele ensina também de outros dois modos: “por revelação”¹⁷² e por “espiritualização”.¹⁷³ Por revelação, antes da encarnação do Verbo, o Espírito Santo ensina sobre as verdades vindouras acerca do Cristo¹⁷⁴ e instrui os profetas¹⁷⁵ e os hagiógrafos.¹⁷ Espiritualização é a passagem – por efeito da caridade¹⁷⁷ – de carnal a espiritual,¹⁷⁸ e é carnal qualquer um que somente confie nas próprias forças naturais e julgue a partir do próprio raciocínio.¹⁷ O homem carnal considera o que se lhe aparece; o espiritual, ensinado pelo Espírito, compreende uma realidade ulterior à que se lhe manifesta e, por isso, do mesmo Espírito recebe o estar “espiritualizado” na vida do mistério que aprende.¹⁸ Assim, o dizer crer nos e o proclamar os mistérios de Cristo não implicam, por si só e necessariamente, espiritualização, assim como a espiritualização não se adquire de uma vez por todas:¹⁸¹ considere-se que os discípulos mesmos, embora já espiritualizados,¹⁸² são tidos pelo Mestre como carnais que precisam do Espírito Santo para tornarem-se espirituais.¹⁸³ O homem espiritualizado segue Cristo até a morte¹⁸⁴ e tem, por dom, ciência mais clara – e, por isso, acertada – de quem é,¹⁸⁵ ciente igualmente de que a plenitude da vida no Espírito Santo – com as plenitudes da vida na caridade e do conhecimento da verdade – não pertence a esta vida,¹⁸ na qual se deve, todavia, permanecer enraizado na caridade, para que essa aumente, por ação do Espírito Santo, sempre mais¹⁸⁷ com sua presença, pois Ele é a caridade¹⁸⁸ e sua fonte.¹⁸ Assim, além de agir ensinando, o Espírito Santo age igualmente difundindo a caridade no coração do fiel. A esse respeito, Agostinho cita – ou alude a – Rm 5,5 (o dom da caridade difundido nos corações pelo Espírito) mais de vinte vezes¹ em meio aos textos joaninos comentados nestas obras para sublinhar a precedência do dom da caridade e a ação do Espírito Santo¹ ¹ – cujo resultado é a santidade¹ ². O distintivo da caridade Do dom divino da caridade, derramada nos corações humanos pelo Espírito, advêm os maiores benefícios,¹ ³ como a vida da alma¹ ⁴ e a da fé mesma,¹ ⁵ porque é a caridade que distingue a fé verdadeira da fé dos demônios;¹ e a vida do fiel na fé e na caridade vivas requer, primeiramente, o nascimento – ou renascimento – no batismo,¹ ⁷ pelo qual se passa a fazer parte do Cristo total. A vida conferida pelo Espírito, então, flui no Corpo de Cristo¹ ⁸ e, pelo vínculo da mesma caridade,¹ o Espírito une os membros do Corpo entre si e a sua Cabeça e submete-os – não por coerção, obviamente – a ela.² Dom também do Senhor,² ¹ epor ele ensinada,² ² a caridade sintetiza todo o conteúdo da Lei e dos Profetas,² ³ e, por isso, todo o conteúdo de ambos os Testamentos das Escrituras.² ⁴ A partir dessa sintetização de dois elementos – Lei e Profetas, Antigo e Novo Testamentos – na caridade, Agostinho identifica no número 2 também um símbolo do amor a Deus e ao próximo.² ⁵ Inseparáveis, de fato, um remete necessariamente ao outro, mesmo quando se cita um só desses amores.² Porque a caridade é uma, desdobrada em duplo mandamento,² ⁷ sua observação é o único modo de amar verdadeiramente a si mesmo.² ⁸ Sem a caridade, tudo o que se possa ter, ser, fazer, saber... é nada – Agostinho repete-o por mais de dez vezes citando – ou aludindo a – o Hino à Caridade de São Paulo.² Não há lei ou realidade que substitua a caridade, nem qualquer outro grande dom que lhe seja superior.²¹ É ela a plenitude da Lei²¹¹ e é ela, por impreterivelmente estabelecer a relação com o próximo, a distinguir – interiormente²¹² – o discípulo de Cristo daqueles que não O seguem;²¹³ pois, embora o amor a Deus seja o primeiro na ordem dos preceitos, o amor ao próximo é o primeiro na prática.²¹⁴ De fato, a Deus, transcendente que se nos escapa,²¹⁵ não se pode chegar sem a perfeição da caridade,²¹ que é exercitada no encontro com o próximo.²¹⁷ Não há, para quem quer que seja, outra via pela qual estar com o Cristo e ser honrado pelo Pai além do amor gratuito, que determina quem serve a Cristo²¹⁸ e tem Deus em si.²¹ O sentimento natural humano não realiza essa união. Por isto Cristo chama de novo o mandamento do amor mútuo: não é sentimento, é seguimento responsivo gratuito d’Aquele único que ama o fiel de modo a transformá-lo a ponto de estender amor mesmo aos inimigos, como o amor de Cristo.²² Que dizer então do amor à unidade do Corpo de Cristo?! A presença da caridade implica, necessariamente, amor à unidade do corpo de Cristo, que é Igreja,²²¹ da qual se faz parte e na qual se permanece por amor,²²² pois o amor divino produz entre os homens unidade semelhante à unidade divina.²²³ Isso, naturalmente, sem esquecer a distância imensa que existe entre o Criador e as criaturas – o Deus santo e o homem pecador. Mas o amor de Deus como que abole essa distância – insuperável por iniciativa humana – e faz-nos entender a humilde e única resposta a dar-Lhe; a acolhida do dom divino torna- se o dom humano a Ele – o reconhecimento do amor, de fato, faz-se resposta de amor. O amor divino trinitário é oferta de dons mútuos. Assim também entre os homens que vivem do amor divino. Por isso, ofensas e cismas não ferem pontos doutrinais – por fundamentais que sejam – exclusivamente, mas dilaceram o corpo do Cristo total.²²⁴ Agostinho insiste que o amor é essencialmente benevolência, oblação, dom. Quem ama, quer que os outros lhe sejam iguais, tenham o que tem, estejam onde está, não que sejam excluídos ou subjugados, nem mesmo dogmaticamente. Se caridade é palavra doce, sua realidade o é mais ainda.²²⁵ A caridade para com aqueles que laceram a unidade do Corpo de Cristo não se mostra na polêmica – que, enraizada no amor pelo próximo, não se exclui como desnecessária –, mas em atitudes que expressam a dor de ver a laceração do corpo do qual se é membro.²² No fiel que assim age, age a Trindade, que age também naqueles que se separaram da unidade.²²⁷ O fiel, então, não converte os separados, quem o faz é o mestre interior. A ação do amor na unidade do corpo é ação divina. Por isso, quando o fiel ama – e ama-se somente quando se ama com a caridade divina – a Igreja, ama sua unidade e torna-se sinal efetivo da presença do Espírito Santo de modo a estender esse amor a todos os povos,²²⁸ para proveito do próximo, não do próprio fiel.²² A caridade, portanto, agostinianamente falando, não é algo que se faz, nem é mera matéria de discurso teológico tendente a individuais espiritualidades sentimentais genéricas, mas sinal real da presença de Cristo na história, com exigências morais – ou éticas – profundas.²³ A teologia cristológica destas obras e toda sua teologia da caridade, apenas indicadas acima, afloram, evidente e inegavelmente, na eclesiologia: não há Igreja que não seja comunhão no único Corpo de Cristo, que estende universalmente o mistério salvífico da encarnação do Verbo a todos os homens que se tornam filhos no único Filho, e podem, por isso, amar-se e amar o Pai com o amor imaculado do Filho. Santo Agostinho não pretendia, com as homilias destes comentários, levar os fiéis a refletirem sobre a essência divina ou sobre o dogma da Trindade, nem sobre regra da fé ou o reto conteúdo dogmático da fé professada pela Igreja. O ensinamento destes comentários é idêntico ao do Evangelho e ao da Epístola que comentam: o amor fraterno que aparentemente liga uma pessoa a outra, na realidade, une a pessoa humana a Deus, porque Deus é substancialmente o amor do qual o homem participa ao amar seu irmão, e isso só é real na realidade do Verbo encarnado que se estende em seu corpo que é a Igreja. Só sob esse prisma entende-se o cuidado agostiniano de preservar a fé dos católicos e de esclarecer os hereges²³¹ – cuidado que explica as exposições anticismáticas e anti-heréticas ao pôr em relevo o caráter universal da Igreja e as exigências da verdadeira caridade, que – por sua natureza – não suporta que a unidade do Corpo seja dilacerada. Ainda hoje, ao ler estas homilias, sentimos vibrar muito da alma, cheia de ardor e zelo apostólico, de seu autor. Por certo, para sentir plenamente o poder de sedução das palavras de Santo Agostinho, seria preciso escutá-lo, pessoalmente, partilhando de sua vida, pois estes comentários são obra de sua maturidade, são duas de suas obras mais profundas e belas. Neles, o Hiponense revela-se teólogo, filósofo, exegeta, pastor, mas particularmente asceta e místico enamorado da fé no mistério que professa e prega e que ardentemente deseja viver. A presente edição Em 1989, foi publicado, por Edições Paulinas, o Comentário da Primeira Epístola de São João, em tradução da Ir. Nair de Assis Oliveira, CSA, que, então, dedicou-se a traduzir o comentário agostiniano ao quarto evangelho. Ela faleceu antes de concluir os trabalhos, tendo traduzido as homilias 1-43, que entregara à Paulus com o esboço de um esquema de introdução para a obra toda. A introdução que se acaba de ler resulta desse esboço. Este último, porém, repetia textos e citações quanto a insistência agostiniana no tema da caridade – alguns dos quais constavam na introdução do comentário já publicado. Tais repetições explicam-se, provavelmente, pela intenção da tradutora de publicar este último comentário em vários volumes, talvez correspondentes aos blocos em que se divide a obra. Para evitar essas repetições, mas também para atualizar a bibliografia e a discussão acerca da cronologia do comentário que já havia sido publicado, decidimos integrar as introduções, publicando juntas as duas obras. Ainda com relação à publicação de 1989, o leitor notará que as citações latinas nas notas de rodapé foram enxugadas, mantendo-se somente aquelas consideradas necessárias, para indicar, por exemplo, uma tradução mais livre, ou mais complexa, como costuma ser nesta coleção; as poucas notas inseridas são remissões a obras agostinianas, salvo uma ou outra explicativa, como a nota sobre a lua nova visível em seu terceiro dia, em 1,13. Com a tradução de Luciano Rouanet Bastos das homilias 44-124, temos o comentário agostiniano ao quarto evangelho completo. Este volume de Comentários a São João, no qual constam as últimas traduções realizadas por Ir. Nair, quer ser uma homenagem póstuma a ela, que muito se empenhou pela divulgação da obra de Santo Agostinho. HOMILIA 1 O Verbo que as trevas não receberam (Jo 1,1-5) Estado de espírito do pregador 1 Examinando bem o que acabamos de ouvir da leitura apostólica: “O homem psíquico não percebe as coisas que são do Espírito de Deus”,²³² e pensando que, na presente multidão da vossa caridade, deve haver muitos que, psíquicos, ainda percebam as coisas segundoa carne e não sejam capazes de elevar-se a uma compreensão espiritual, hesito veementemente com relação a como poderia expor, conforme o Senhor o conceder, ou explicar, com os meus fracos recursos, esse texto do Evangelho que acaba de ser lido. “No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus”.²³³ Com efeito, o homem psíquico ou animal, não percebe tais coisas. O que dizer, irmãos? Silenciaremos a respeito? E por que razão, então, foi lido o texto, se havemos de calar-nos? E por que se escuta, se não se explica? Mas, por outro lado, por que se explica, se não se compreende? Não duvido, todavia, que haja, em vosso número, pessoas que possam não só compreender a explicação, como até mesmo entender o texto antes que seja explicado. Espero não defraudar os que o compreendem, mesmo com risco de tornar-me desmedido aos ouvidos dos que não o podem entender. Enfim, conto em tudo com a assistência da misericórdia de Deus para ficarmos, quiçá, todos satisfeitos e entender, cada um, o que puder, pois também aquele que fala diz o que pode. E quem seria capaz de explicar as coisas como elas são, na verdade? Atrevo-me a afirmar, meus irmãos, que talvez nem o próprio João as tenha dito tal como são, mas certamente disse quanto pôde, porque era ele um homem que falou sobre Deus, e embora fosse, sem dúvida, inspirado por Deus, não deixava de ser um homem. Por ter sido inspirado, disse algo; se não tivesse sido inspirado, nada teria dito. Por ser, no entanto, um homem inspirado, não disse toda a realidade, mas certamente disse quanto pode um homem. João, o evangelista 2 Efetivamente, caríssimos irmãos, João era daqueles montes dos quais está escrito: “Recebam os montes a paz para o teu povo, e as colinas a justiça”.²³⁴ Os montes são as almas excelsas, e as colinas, as almas pequeninas. Os montes, precisamente, recebem a paz para que as colinas possam receber a justiça. Que justiça é essa que recebem as colinas? Recebem a fé, porque “o justo vive de fé”.²³⁵ As almas mais pequeninas não receberiam a fé, se as maiores, que se chamam montes, não fossem iluminadas pela própria Sabedoria, para poderem transmitir aos pequeninos o que estes são capazes de compreender, e as colinas possam viver da fé. É por isso que os montes recebem a paz. Foi dito pelos montes à Igreja: “A paz esteja convosco”. Os próprios montes, ao anunciarem a paz à Igreja, não se separaram d’Aquele de quem recebiam a paz, para que anunciassem a paz com veracidade, e não de um modo fingido. Promotores de cismas e heresias são montes que causam naufrágios 3 Na verdade, há outros montes que causam naufrágios a todos os que dirigem sua embarcação para junto deles. Acontece que, quando a terra é avistada pelos que se encontram em perigo numa embarcação, facilmente se envidam esforços em direção a ela. Por vezes, a terra é vista como se fosse um monte. Por debaixo deste escondem-se, todavia, escolhos. Quando a embarcação tenta aproximar-se do monte, vai de encontro a esses escolhos e ali não encontra um porto, mas lamento. De modo idêntico, apareceram entre os homens certos montes de grande vulto, que levantaram heresias e cismas, estabelecendo a divisão na Igreja de Deus. Esses que dividiram a Igreja de Deus não eram, porém, os montes sobre os quais foi dito: “Recebem os montes a paz para o povo”.²³ Como podem ter recebido a paz, os que dividiram a unidade? João contemplou a Sabedoria 4 Os que receberam a paz que devia ser anunciada ao povo contemplaram a própria Sabedoria, na medida em que é possível aos corações humanos alcançarem “o que nem os olhos viram nem os ouvidos ouviram, nem jamais passou pelo pensamento do homem”.²³⁷ Se a Sabedoria, todavia, não sobe ao coração humano, como subiu ao coração de João? Ou será que João não era um homem? Ou, talvez, a Sabedoria não tenha subido ao coração de João, mas o coração de João subido até ela? Porque o que sobe ao coração do homem é inferior ao mesmo homem, mas aquilo para o qual se eleva o coração do homem é superior ao homem. E também isso se pode dizer, irmãos; com efeito, se de algum modo se pode dizer que a Sabedoria subiu ao coração de João, ela o fez na medida em que João não era homem. O que quer dizer: “João não era homem”? Que, de alguma forma, começara a ser anjo, pois todos os santos tornam-se anjos, ao serem anunciadores de Deus. O que diz, então, o Apóstolo aos homens carnais e naturais, “que não podem compreender as coisas que são de Deus”? Vós que dizeis: “Eu sou de Paulo e eu de Apolo”²³⁸, não sois por acaso apenas homens? O que desejava, então, o Apóstolo fazer desses homens, a quem censurava por serem apenas homens? Quereis saber o que queria fazer deles? Escutai o que está escrito nos Salmos: “Eu disse: sois deuses e todos sois filhos do Altíssimo”.²³ Deus chama-nos a isto: a que não sejamos apenas homens. E nós seremos mais do que homens, na medida em que primeiro reconhecermos que somos homens, isto é, na medida em que nos elevarmos da humildade àquela grandeza. Ao contrário, se julgarmos ser alguma coisa, quando afinal nada somos, não só não havemos de receber o que não somos, como viremos também a perder o que somos. João ultrapassa toda a criação 5 Irmãos, João, que disse: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus”,²⁴ era um desses montes. Recebera esse monte a paz, e contemplava a divindade do Verbo. De que modo se erguia esse monte? Que altura ele tinha? Transcendera todos os cumes da terra, transcendera todas as regiões do ar, transcendera todas as alturas dos astros, transcendera todos os coros e legiões de anjos. Caso não se tivesse elevado acima de tudo o que foi criado, não teria chegado Àquele por quem “tudo foi criado”.²⁴¹ Não podeis imaginar o quanto transcendeu, se não observardes até onde chegou. Perguntas pela terra e pelo céu? Foram criados! Perguntas pelos seres que existem no céu e na terra? Ora, com muito maior razão são, eles também, criaturas. Perguntas pelas criaturas espirituais: anjos, arcanjos, tronos, dominações, virtudes e principados? Também elas foram criadas! Quando o Salmo enumerava todas essas coisas, concluiu assim: “Ele falou e tudo foi feito; mandou e tudo foi criado”.²⁴² Se Deus falou e logo tudo foi criado, a obra da criação foi realizada por intermédio do Verbo. Se tudo foi feito pelo Verbo, o coração de João não poderia ter chegado àquilo que diz: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus”, a não ser que tivesse transcendido todas as criaturas que foram feitas pelo Verbo. Que tipo de monte é esse, quão santo é e quão elevado, entre aqueles montes que receberam a paz para o povo de Deus, a fim de que as colinas pudessem receber a justiça?²⁴³ João é monte que traz o auxílio do alto 6 Vede, pois, irmãos, se não é João um daqueles montes acerca dos quais cantamos há pouco: “Levantei os meus olhos para os montes, de onde me virá o auxílio?”²⁴⁴ Se, portanto, quiserdes compreender, levantai os olhos para esse monte, isto é, erguei-vos até o evangelista, erguei-vos ao seu pensamento. Visto que, no entanto, tais montes recebem a paz, e não pode estar em paz quem põe no homem a sua esperança, não ergais os olhos ao monte, pensando que vossa esperança se há de depositar num homem. Assim, dizei: “Levantei os meus olhos para os montes: de onde me virá o auxílio?”, mas acrescentando em seguida: “O meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra”.²⁴⁵ Levantemos, pois, os olhos para os montes de onde nos virá o auxílio. A nossa esperança, contudo, não deve ser depositada nos próprios montes, porque os montes recebem também o que nos hão de oferecer. É, portanto, lá, de onde também os montes recebem, que se há de depositar a nossa esperança. Quando erguemos os olhos para as Escrituras, – uma vez que as Escrituras foram-nos dadas por meio de homens – erguemo-los para os montes, de onde nos virá o auxílio. No entanto, como eram homens os que escreveram as Escrituras, não reluziam eles por si mesmos. Mas Aquele “era a luz verdadeira que ilumina todoo homem que vem a este mundo”.²⁴ Monte era também o mesmo João Batista, que disse: “Eu não sou o Cristo”.²⁴⁷ E para que ninguém se afastasse d’Aquele que ilumina os montes, por colocar num monte toda a sua esperança, acrescentou: “Todos nós recebemos de Sua plenitude”.²⁴⁸ Por isso, deves dizer: “Levantei os olhos para os montes de onde me virá o auxílio”; mas, para não atribuíres aos montes o auxílio que te vem, hás de prosseguir, dizendo: “O meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra”. Só Deus ilumina a inteligência 7 Irmãos, recordei-vos isso para que, ao terdes levantado o coração para as Escrituras, quando ressoava o Evangelho: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus”, e as restantes palavras que foram lidas, entendais que levantastes os olhos para os montes. Se os montes não dissessem essas coisas, não encontraríeis, absolutamente, matéria de reflexão. Veio até vós, portanto, o auxílio dos montes, para que ouvísseis isso, mas ainda não podeis compreender o que ouvistes. Invocai o auxílio do Senhor, que fez o céu e a terra, porque os montes puderam falar, sem que possam, no entanto, eles próprios iluminar, por terem sido iluminados também eles, ao ouvirem a mensagem. Daí que nos tenha dito essas coisas, irmãos, aquele João que as recebeu, que se recostava sobre o peito do Senhor, e do peito do Senhor bebia o que nos daria a beber. Deu- nos a beber, porém, palavras; o sentido dessas palavras, todavia, deves ir buscar ali de onde bebera aquele que tas deu a beber. E assim, pois, hás de levantar os olhos para os montes de onde te virá o auxílio, para deles receberes como que um cálice, isto é, a palavra que se te dá a beber, e, contudo, porque o teu auxílio vem do Senhor que fez o céu e a terra, hás de encher o peito lá onde ele também o encheu, razão pela qual disseste: “O meu auxílio vem do Senhor que fez o céu e a terra”. Que o encha, portanto, quem pode fazê-lo. Digo-vos isto, irmãos: que levante cada um o seu coração, na medida em que o notar idôneo, e compreenda o que se está a dizer. Talvez digais que estou mais presente a vós do que o próprio Deus. Longe de nós pensá-lo! Ele está muito mais presente. Eu apareço ante os vossos olhos, mas Ele preside às vossas consciências. Enquanto dirigis a mim vossos ouvidos, levantai para Ele o coração: para que possais, assim, encher tanto um como os outros. Eis que levantais para nós os vossos olhos e esses sentidos do corpo, ou melhor, não para nós, pois não somos daqueles montes, mas para o Evangelho, para o próprio evangelista é que os deveis levantar, e o coração deve encher-se diante do Senhor. E cada um eleve o coração de modo tal que saiba o que eleva e para onde o eleva. E o que quis dizer: “o que eleva e para onde o eleva”? O seguinte: veja cada um que coração é esse que eleva, já que o eleva ao Senhor; não suceda que, antes de ter sido elevado, ele caia oprimido pelo fardo da voluptuosidade carnal. E nota alguém que é esmagado pelo peso da carne? Esforce-se, por meio da continência, para purificar o que eleva a Deus. “Bem-aventurados, pois, os puros de coração, porque verão a Deus”.²⁴ A Palavra de Deus e as nossas palavras 8 Ora, qual é o proveito de terem ressoado estas palavras: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus”²⁵ ? Ao falarmos, também nós pronunciamos palavras. Será que uma palavra tal existia junto de Deus? Por acaso, as palavras que dissemos não ressoaram e passaram? Dir-se-á, então, que também o Verbo divino ressoou e desapareceu? Como, então, “tudo se fez por Ele e nada se fez sem Ele”?²⁵¹ Como pode por Ele reger-se o que por Ele foi criado, se ressoou e passou? Que Verbo será esse que se diz, e não passa? Esteja atenta a vossa caridade: trata-se aqui de algo grande. Por falarmos diariamente, as palavras perderam para nós seu valor, porque se vilificaram, ao ressoarem e desaparecerem, e não se nos apresentam já senão como meras palavras. Existe também no homem, contudo, uma palavra que permanece dentro, pois o som sai pela boca. Há uma palavra que se pronuncia verdadeiramente com o espírito. E ela é o que entendes a partir do som, não o próprio som. Eis que ao dizer: “Deus”, pronuncio uma palavra. Quão breve é o que disse: são quatro letras e uma só sílaba!²⁵² Será que esse conjunto de sinais é Deus: quatro letras e uma sílaba? Ou acaso, dir-se-á, quanto menos digno de apreço é o som exterior, tanto mais apreciável é seu significado? Que se passou em teu coração, quando ouviste dizer: Deus? E que se passou em meu coração, quando eu dizia: Deus? Vem-nos, instantaneamente, ao pensamento certa natureza grande e suma, que transcende toda criatura mutável, carnal e animal. E, caso eu te diga: É Deus mutável ou imutável? Responderias logo: Longe de mim, crer ou pensar que Deus seja mutável. Deus é imutável! Tua alma, embora diminuta, e talvez ainda carnal, não me pôde responder senão que Deus é imutável e que mutável é toda criatura. Como, então, pudeste vislumbrar o que transcende toda criatura, a ponto de me responderes, com certeza, que Deus é imutável? O que há, pois, em teu coração, quando te representas uma natureza viva, eterna, onipotente, infinita, presente em toda parte e encontrando-se toda ela em toda parte, sem que nada a possa limitar? Quando assim pensas, é o Verbo de Deus que está em teu coração! Trata-se daquele som composto de quatro letras e uma sílaba? O que se pronuncia e desaparece são sons, letras e sílabas. O que passa é a palavra que ressoa. Mas a que é significada pelo som e que se encontra em quem pensa e a pronunciou, bem como em quem entende o que escutou, esta permanece, mesmo depois de os sons desaparecerem. O mundo visível reflete a grandeza do Verbo 9 Fixa a atenção de teu espírito naquele verbo mental. Se podes conservar tal verbo no coração, como pensamento nascido em tua mente, é como se tua mente desse à luz o pensamento e este estivesse ali dentro, como prole de tua mente, como filho de teu coração. O coração gera, primeiramente, um pensamento quando queres levantar qualquer construção ou algo grande na terra. O pensamento já nasceu, e a obra ainda não foi realizada. Tu vês o que intentas realizar. Ninguém, porém, se admira, senão depois de teres levantado e construído aquela massa, aquela obra em sua forma e perfeição definitiva. Os homens olham, então, com atenção a bela obra e admiram-se do plano do artífice. Maravilham-se do que veem, e amam o que não veem. Com efeito, quem pode contemplar um pensamento? Se, portanto, a partir de alguma construção imponente, pode-se louvar um pensamento humano, queres ver agora a sublimidade do pensamento de Deus que é o Senhor Jesus Cristo, isto é, o Verbo de Deus? Contempla a construção do mundo. Vê o que foi feito pelo Verbo e, então, terás uma ideia de como seja o Verbo. Considera as duas partes do universo, o céu e a terra. Quem poderá explicar com palavras toda a beleza do céu? Quem poderá explicar com palavras toda a fecundidade da terra? Quem poderá louvar dignamente o ciclo das estações e a força das sementes? Vedes as outras realidades que calo; não aconteça que, por uma enumeração mais longa, eu acabe dizendo menos, talvez, do que podeis pensar. A partir dessa construção, pois, conjeturai como é o Verbo por meio de quem foi feita. E não foi ela a única realidade feita. Tudo isso que se vê, é visto porque diz respeito ao sentido do corpo. Por aquele Verbo, porém, foram criados também os anjos. Pelo Verbo, foram criados também os arcanjos, as potestades, os tronos, as dominações, os principados. Tudo foi criado por aquele Verbo: por aí, podeis pensar de que natureza seja o Verbo. O Verbo é a Palavra de Deus 10 Dir-me-á agora, talvez, não sei quem: E quem pensa nesse Verbo? Não penses nada de banal, quando ouvires o termo “Verbo”. Não reduzas o Verbo às palavras humanas que se ouvem cada dia: Este pronunciou tais palavras, aquele exprimiu tais outras, narras-me tu ainda outras. Com seu uso assíduo, as palavras como que perderam o seu valor. Assim, aoouvires dizer: “No princípio era o Verbo”, para não imaginares algo de pouco valor, semelhante ao que costumas pensar quando ouves falar palavras humanas, ouve o que deves pensar: “E o Verbo era Deus”.²⁵³ “O Verbo era Deus” 11 Apresente-se agora não sei que infiel ariano, e venha dizer que o Verbo de Deus foi feito. Como pode ser que o Verbo de Deus tenha sido feito, quando Deus, pelo Verbo, fez tudo? Se o Verbo de Deus foi feito, por meio de que outro verbo foi Ele feito, então? Se disseres que existe um Verbo do Verbo, por quem aquele foi feito, é este último que eu denomino Filho único de Deus. Mas se não dizes que há um Verbo do Verbo, deves admitir que não foi criado Aquele por quem tudo foi criado. Não Se pode fazer por Si mesmo Aquele que criou todas as coisas: crê, portanto, no evangelista! Ele poderia ter dito: “No princípio, Deus fez o Verbo”, como Moisés disse: “No princípio, Deus fez o céu e a terra”.²⁵⁴ E logo enumera tudo, servindo-se da fórmula: “Deus disse: ‘Faça-se’; e foi feito”. Se disse, quem disse? Sem dúvida, Deus. E o que foi feito? Alguma criatura. Entre Deus que diz e a criatura feita, o que existe senão o Verbo, por meio de quem ela se fez? De fato, Deus disse: “Faça-se”, e foi feito; é esse o Verbo imutável. Conquanto as realidades mutáveis sejam feitas pelo Verbo, Ele próprio é imutável. O Verbo é quem nos cria e recria 12 Não creias, pois, que foi feito o Verbo, por quem todas as coisas foram feitas, para que não sejas privado da restauração que nos vem pelo Verbo, por quem todas as coisas são restauradas. Pelo Verbo, tu já foste feito; mas é igualmente necessário que sejas restaurado pelo Verbo. Se defeituosa for, contudo, a tua fé no Verbo, não poderás ser restaurado pelo Verbo. Pelo Verbo, foste feito, mas é preciso ainda que sejas refeito pelo Verbo. Se te tocou em sorte seres feito pelo Verbo, de modo tal que por Ele foste feito, por ti te desfazes. Se te desfazes, é preciso que te refaça Aquele que te fez. Se por ti mesmo te tornaste pior, é preciso que te recrie Aquele que te criou. Como, porém, Ele te há de recriar pelo Verbo, se, em algum aspecto, pensas mal acerca do Verbo? Diz o evangelista: “No princípio era o Verbo”, e tu dizes: No princípio foi feito o Verbo. Ele diz: “Tudo foi feito por meio d’Ele”,²⁵⁵ e tu dizes: O próprio Verbo foi feito. O evangelista poderia ter dito: No princípio, o Verbo foi feito, mas o que disse? “No princípio, era o Verbo”. Se era, não foi feito. E assim, todas as coisas seriam feitas por Ele, e sem Ele, nada. Se não podes entender que: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus”, espera que cresças. Ele é um alimento; nutre-te, pois, com leite até te tornares mais robusto, para poderes assimilar então o alimento.²⁵ Tudo foi feito pelo Verbo 13 Atenção, irmãos, ao que se segue: “Tudo foi feito por meio d’Ele, e sem Ele nada foi feito.²⁵⁷ Não penseis que o nada seja alguma coisa. São muitos os que, por má compreensão do texto: “e sem Ele nada foi feito”, imaginam que o nada seja alguma coisa. Certamente, o pecado não foi feito por ele, pois é evidente que o pecado é o nada. E os homens, ao pecarem, tornam-se nada. E o ídolo não foi feito pelo Verbo, embora tenha certa forma humana. O homem é que foi feito pelo Verbo, e não a forma do homem no ídolo, pois está escrito: “Nós sabemos que o ídolo nada é no mundo”.²⁵⁸ Tais coisas não foram feitas pelo Verbo, mas sim as que são naturalmente feitas, que existem entre as criaturas – tanto as que estão fixas no céu, e que resplandecem sobre as nossas cabeças, como as que voam sob o céu, e as que se movem em toda a natureza das coisas: tudo é absolutamente criatura Sua. Di-lo-ei mais claramente; di-lo-ei, irmãos, para entenderdes: desde o anjo até o menor verme. Haverá entre as criaturas alguma superior ao anjo? E acaso, algo mais vil do que um pequeno verme? Pois Aquele por quem se fez o anjo é o mesmo por quem se fez o vermezinho; mas o anjo é digno do céu, e o verme, digno da terra. O próprio Criador o dispôs. Se pusesse o verme no céu, tu O censurarias. Do mesmo modo, haverias de censurá-l’O se tivesse querido que os anjos nascessem de carnes em putrefação. Deus realizou, no entanto, algo semelhante, e não deve ser censurado. Todos os homens que nascem, pois, da carne, o que são senão vermes? E, de vermes, Deus faz anjos. Se, pois, o próprio Senhor diz: “Eu sou um verme e não um homem”,²⁵ hesitará alguém em afirmar o que está escrito em Jó: “Quanto mais o homem, essa podridão e o filho do homem, esse verme”?² O texto começa dizendo: “O homem é podridão”, e depois: “O filho do homem, verme”, pois o verme nasce da podridão e, portanto, o homem é podridão, e o filho do homem, um verme. Eis o que Se quis fazer por ti Aquele que “no princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus”. Por que Se fez isso por ti? Para dar-te um alimento suave, pois não podias ainda mastigar.² ¹ Compreendei assim, pois, irmãos, e não de outro modo, as palavras: “Tudo foi feito por Ele e sem Ele nada se fez”. A universalidade das criaturas foi feita por Ele, tanto as maiores como as menores, tanto as superiores como as inferiores, tanto as espirituais como as corporais: tudo foi feito por Ele. Forma alguma, com efeito, estrutura alguma, harmonia de partes ou substância alguma, qualquer que seja, que possa ter peso, número e medida, nada existe senão por meio daquele Verbo, senão provindo daquele Verbo criador, a quem foi dito: “Tudo dispuseste com medida, número e peso”.² ² Artimanhas dos maniqueus 14 Que ninguém vos engane, pois, quando vos sentirdes, talvez, incomodados com as moscas. Algumas pessoas foram, de fato, ludibriadas pelo diabo e deixaram-se prender ante as moscas. Com efeito, os caçadores de aves costumam usar moscas em suas armadilhas, no intuito de aprisionar as aves famintas. Assim também, tais pessoas foram enganadas pelo diabo com as moscas. Ora, estava não sei quem muito incomodado com as moscas, e Manes encontrou-o em meio a seu aborrecimento. Quando o homem disse que não podia aguentar mais as moscas e que as detestava profundamente, Manes perguntou-lhe, então, logo em seguida: – Quem as fez? – Importunado como estava o outro, em seu ódio por aquelas moscas, não ousou afirmar: “Deus as fez.” Esse homem era, no entanto, um católico. Manes retrucou de imediato: – Se não foi Deus, então quem as fez? – E o católico respondeu: – A falar francamente, creio que foi o diabo. Torna-lhe mais que depressa o maniqueu: – Se o diabo fez a mosca, como vejo que confessas – pois vais entendendo prudentemente –, quem fez a abelha, que é pouco maior do que a mosca? – Aquele não ousou dizer que Deus teria feito a abelha, e não a mosca, já que se tratava de uma realidade próxima. Da abelha, o maniqueu fê-lo passar ao gafanhoto; do gafanhoto ao lagarto; do lagarto à ave; da ave à ovelha, em seguida ao boi, depois ao elefante e, finalmente, ao homem. E persuadiu aquele homem de que o homem não foi feito por Deus. Dessa maneira, aquele infeliz importunado pelas moscas tornou-se, ele mesmo, uma mosca, de quem tomou posse o diabo. Efetivamente, diz-se que Beelzebul significa “príncipe das moscas”, e delas está escrito: “As moscas mortas estragam o óleo perfumado”.² ³ Razão para suportar males das criaturas 15 O que dizer, irmãos? Por que disse eu essas coisas? Fechai os ouvidos do vosso coração às astúcias do inimigo. Compreendei que Deus fez todas as coisas, e colocou cada uma em seu lugar. Por que, então, suportamos muitos males de uma criatura feita por Deus? Porque ofendemos a Deus. Por acaso sofrem os anjos esses males? Também nós poderíamos, talvez, não temer tais incômodos nesta vida! Culpa o teu pecado, e não o Juiz, pelo teu castigo! Devido à soberba, na verdade, Deus estabeleceu uma criatura muito pequena e abjeta, a fim de que nos atormentasse. Assim, quando o homem se mostrar soberbo, exaltando-se diante de Deus; quando, mortal como é, atemorizar a outro mortal e, homem como é, não reconhecer como próximo a outro homem;quando, enfim, se erguer, há de ficar submetido às pulgas. Por que te inchas com a humana soberba? Se um homem te insultou, ficaste entumescido e irado; não obstante, terás de resistir às pulgas para dormires. Reconhece quem és! Como sabeis, irmãos, para domar-nos a soberba foram criados esses seres pequeninos a fim de que nos molestassem. Deus poderia ter subjugado aquele povo orgulhoso do Faraó, com ursos, leões e serpentes; enviou-lhes, porém, moscas e rãs,² ⁴ para lhes domar a soberba com as realidades mais desprezíveis. Tudo o que n’Ele foi feito é vida 16 “Todas as coisas”, irmãos, absolutamente “todas as coisas foram feitas por meio d’Ele, e sem Ele nada foi feito”.² ⁵ Mas de que modo tudo foi feito por Ele? “O que foi feito, n’Ele é vida”.² Isso também pode ser dito assim: “O que foi feito n’Ele, é vida”. Logo, tudo é vida, se assim o lermos. Haverá, com efeito, alguma coisa que não tenha sido feita por Ele? Pois Ele é a Sabedoria de Deus e diz-se no Salmo: “Tudo fizeste na Sabedoria”.² ⁷ Ora, se Cristo é a Sabedoria de Deus e o Salmo diz: “Tudo fizeste na Sabedoria”, então, assim como tudo foi feito por Ele, também foi feito n’Ele. E se tudo foi feito n’Ele, irmãos caríssimos, e o que n’Ele foi feito é vida, então a terra é vida, e o lenho é vida também. Na verdade, dizemos que o lenho é vida, mas entendendo que nos referimos ao lenho da cruz, do qual recebemos vida. Portanto, a pedra é igualmente vida. Esse modo de interpretação não seria, no entanto, acertado. Não aconteça vir-nos novamente a insidiar a mesma seita mui abominável dos maniqueus, pondo-se a dizer que a pedra possui vida, que o muro possui uma alma, bem como que uma cordinha possui alma, e de igual modo a possuem a lã e a veste. Costumam, pois, dizê- lo em seus delírios e, quando são reprimidos e rebatidos, como que citam das Escrituras e exclamam: Por que, então, foi dito: “Tudo o que foi feito n’Ele, é vida”? Com efeito, se tudo foi feito n’Ele, tudo é vida. Não te enganem, porém! Lê tu, assim: “O que foi feito”, coloca aqui uma vírgula, e continua em seguida: “n’Ele é vida”. O que quer dizer isso? A terra foi feita, mas a própria terra, que foi feita, não é vida; mas, na própria Sabedoria, existe espiritualmente como que certa ideia, pela qual a terra foi feita, tal ideia é a vida. Como no Verbo as criaturas são vida 17 Como posso, explicá-lo-ei à vossa caridade. O carpinteiro constrói uma arca. Ele tem a arca, primeiramente, na sua imaginação; pois, se na imaginação não a tivesse, como haveria de expressá-la mediante a construção? A arca está, porém, em sua imaginação, não como a própria arca é, quando contemplada pelos olhos. Na imaginação, ela existe invisivelmente; na obra, existirá visivelmente. Eis a arca executada! Por acaso deixou de existir na imaginação? Ela se encontra já fabricada na obra, e permanece aquela que está na imaginação. A arca material pode vir a apodrecer, e pode fabricar-se de novo outra, a partir da que está na imaginação. Prestai atenção, pois, à arca que está na imaginação e à arca na obra. A arca na obra não é vida, mas a arca na imaginação é vida; pois vive a alma do artífice, onde se encontram todas as realidades antes de ganharem expressão exterior. Assim, pois, irmãos caríssimos, porque a Sabedoria de Deus, por quem tudo foi feito, contém em Si, ao modo de imaginação artística, todos os seres, antes de criá-los a todos, segue-se que tudo o que é realizado por meio dessa imaginação não é, por isso mesmo, vida, mas tudo o que foi feito é vida n’Ele. Vês a terra, existe a terra na imaginação do Artífice. Vês o céu, existe o céu na imaginação do Artífice. Assim também, vês o sol e a lua, os quais estão igualmente na imaginação do Artífice. Exteriormente são corpos, mas, na medida em que estão na imaginação do Artífice, são vida. Compreendei isso, se de algum modo o puderdes, pois o que se acaba de dizer é algo grande. Ainda que não o seja por causa de mim, nem por meio de mim, que não sou grande; mas sim por causa de Alguém que é grande. Não disse essas coisas por mim mesmo, que sou pequeno. Não é pequeno, contudo, Aquele a quem dirijo meu olhar, para vo-las dizer. Compreenda-as cada um como puder, e na medida em que o puder. Quem não pode, nutra seu coração, para que o possa. E como há de nutri-lo? Nutra-o com leite, até que possa chegar ao alimento. Não se afaste do Cristo nascido na carne, até que chegue ao Cristo nascido do único Pai, ao Verbo de Deus que está junto de Deus, por quem todas as coisas foram feitas, pois é Ele aquela vida que, n’Ele, é a luz dos homens. “A vida era a luz dos homens” 18 Seguem-se estas palavras: “E a vida era a luz dos homens”.² ⁸ É por essa mesma vida que os homens são iluminados. Os animais não são iluminados porque eles não possuem mentes racionais, capazes de contemplar a Sabedoria. Mas o homem, feito à imagem de Deus, possui mente racional por meio da qual pode perceber a Sabedoria. Portanto, a vida, pela qual tudo foi feito, essa mesma vida é luz. Não é luz de quaisquer animais, mas luz dos homens. Daí que o evangelista diga, um pouco depois: “Era a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo”.² Por essa luz, João Batista foi iluminado e, por ela mesma, também o próprio evangelista João. Dessa luz estava repleto quem disse: “Eu não sou o Cristo. É Ele o que vem depois de mim, do qual não sou digno de desatar a correia das sandálias”.²⁷ E por essa luz estava iluminado quem disse: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus”.²⁷¹ Aquela vida é, pois, a luz dos homens. Só os corações puros percebem essa luz 19 Mas, talvez, os corações insensatos ainda não possam captar essa luz, porque se acham oprimidos pelos seus pecados, de modo que não a possam ver. Não pensem, por isso, que a luz esteja como que ausente deles, uma vez que não a podem ver. É por causa de seus próprios pecados que eles são, com efeito, trevas. “E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam”.²⁷² Por conseguinte, irmãos, tal como acontece ao homem cego exposto ao sol: o sol lhe está presente, mas é como se ele próprio estivesse ausente, isso mesmo sucede a todo aquele que é insensato, iníquo, ímpio, cego de coração. A Sabedoria lhe está presente, mas, como para alguém que é cego, está ausente dos seus olhos: não que lhe esteja ausente; ao contrário, é ele próprio que dela se ausenta. O que, pois, há de fazer este homem? Purifique aquela faculdade pela qual Deus pode ser visto. A uma pessoa que não pode enxergar por ter os olhos sujos ou doentes, tendo caído neles poeira, secreção ou fumaça, diz o médico: limpa do teu olho tudo aquilo que nele há de mal, para que possas ver a luz dos teus olhos. A poeira, a secreção e a fumaça são os pecados e as iniquidades. Retira tudo isso daí e então verás a Sabedoria que está presente, pois Deus é a própria Sabedoria e está escrito: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”.²⁷³ HOMILIA 2 Jesus, o Verbo que revela Deus (Jo 1,6-14) Introdução 1 É bom, irmãos, que estudemos a fundo, na medida de nossa possibilidade, o texto das divinas Escrituras, e especialmente o do Santo Evangelho, sem deixar passar trecho algum. Sejamos assim apascentados, segundo a nossa capacidade, e vos sirvamos do mesmo alimento do qual também nos nutrimos. Recordamos que, no domingo passado, tratado foi o primeiro capítulo, isto é, “No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por meio d’Ele e sem Ele, nada foi feito. O que foi feito n’Ele é vida. E a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam”.²⁷⁴ Creio que se tratou até este ponto. Recordai, todos os que estivestes presentes, e vós, que não estivestes, crede em nós e naqueles que quiseram estar. Agora, pois, já que não podemos repetir sempre tudo por causa daqueles que querem ouvir o que se segue e, se se repetissem as considerações anteriores, com prejuízo do que vem a seguir, isto lhes seria um peso, consintam os quenão estiveram presentes em não exigir o que passou, mas sim, na companhia dos que estavam, em ouvir agora o que corresponde ao dia de hoje. O Verbo imutável, meta de nossas aspirações 2 Segue: “Surgiu um homem enviado por Deus, cujo nome era João”.²⁷⁵ Com efeito, o que se disse anteriormente, irmãos caríssimos, foi dito da inefável divindade de Cristo, e quase que inefavelmente. Quem poderá compreender que: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus?”.²⁷ E não te pareça banal o termo Verbo [isto é, Palavra], por causa do costume das palavras de uso cotidiano: “E o Verbo era Deus”. Este é o mesmo Verbo do qual falamos muito no último dia. Queira Deus que, ao ter falado tanto, pelo menos algo tenhamos levado a vossos corações. “No princípio era o Verbo”. É o mesmo, é no mesmo modo, assim como existe sempre, não pode mudar, isto é, “é”. Disse Ele este Seu nome ao Seu servo Moisés: “Eu sou Aquele que sou”; e: “Eu-sou enviou-me”.²⁷⁷ Quem, pois, poderá compreender isto, uma vez que tudo o que vedes é mortal? Pois vedes não apenas variarem os corpos pelas qualidades, nascendo, crescendo, definhando, morrendo, mas também as próprias almas incharem-se e rasgarem-se pelo afeto de diversas vontades, vedes que os homens tanto podem receber a sabedoria, se forem movidos pela sua luz e calor, quanto a podem perder, se dela se afastarem por causa de um mau afeto. Porquanto vedes que todas essas coisas são mutáveis, o que é aquilo que é, senão o que transcende a todas elas, as quais são de tal modo qual se não fossem? Quem compreende isto, pois? Ou quem, de qualquer maneira que estenda as forças de sua mente para atingir de alguma forma aquilo que é, pode chegar ao que, seja como for, tiver alcançado com a mente? É assim como alguém vislumbrar a pátria de longe, estando o mar de permeio: vê aonde vai, mas não tem como ir. Também nós queremos chegar àquela estabilidade nossa, onde o que é, é, porque é o único que sempre é do mesmo modo: está de permeio o mar deste século pelo qual vamos, embora já vejamos aonde vamos, pois muitos há que nem sequer veem aonde vão. Para que existisse um meio pelo qual fôssemos, veio de lá Aquele a quem queríamos ir. E o que Ele fez? Instituiu o lenho para atravessarmos com ele o mar. Ninguém pode atravessar o mar deste século se não for transportado pela cruz de Cristo. Esta cruz é abraçada, algumas vezes, também pelo enfermo dos olhos: quem não vê de longe aonde vai, dela não se afaste, e ela mesma o conduzirá até lá. Vai-se a Deus somente pela humanidade de Cristo 3 Oxalá, meus irmãos, tenha eu feito entrar isto em vossos corações: se quiserdes viver de maneira piedosa e cristã, permanecei unidos a Cristo de acordo com o que por nós Ele Se fez, a fim de que chegueis a Ele conforme o que é e o que era. Veio para que por nós Se fizesse isso, e, de fato, foi feito por nós isso em que são transportados os enfermos, atravessam o mar e chegam à pátria, onde já não haverá necessidade de navio, visto que mar algum se atravessa já. Mais vale, pois, não ver com a mente aquilo que é e, contudo, não se afastar da cruz de Cristo, que vê-lo com a mente e desprezar a cruz de Cristo. Muito melhor é, se possível, que tanto se veja aonde se vai quanto se tenha o meio com que é transportado quem avança. Puderam-no as grandes mentes dos montes, os quais assim se chamam porque são mais iluminados pela luz da justiça: puderam e viram Aquele que é. Vendo-O, pois, João dizia: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus”.²⁷⁸ Viram-n’O e, para chegarem ao que viam de longe, não se afastaram da cruz de Cristo, não desprezaram a humildade de Cristo. Os pequenos que o não podem entender, ao não se afastarem da cruz, da paixão nem da ressurreição de Cristo, são conduzidos até o que não veem na mesma nave em que viajam também aqueles que veem. Fracasso dos filósofos que desprezaram a mediação de Cristo 4 Existiram, porém, certos filósofos deste mundo que procuraram com cuidado o Criador por meio da criatura, já que Ele pode ser encontrado através da criatura, como diz o Apóstolo de um modo evidente: “Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o Seu sempiterno poder e divindade, tornam-se inteligíveis por meio das realidades criadas, de sorte que não se podem escusar”. E prossegue: “Pois, tendo conhecido a Deus…” Ele não diz: Porque não conheceram a Deus, mas: “Tendo conhecido a Deus, não O honraram como Deus, nem Lhe renderam graças; pelo contrário, extraviaram-se em vãos arrazoados e se lhes obscureceu o coração insensato”. Por que se lhes obscureceu? O Apóstolo continua e declara-o mais abertamente: “Pretendendo-se sábios, tornaram-se estultos”.²⁷ Viram aonde se tinha de ir, contudo, ingratos para com Aquele que lhes possibilitou o que viram, a si mesmos quiseram atribuir o que viram. Caídos na soberba, perderam o que viam, tendo-se convertido então aos ídolos e simulacros, bem como à adoração dos demônios, a adorar a criatura e a desprezar o Criador. Já abatidos fizeram tais coisas: mas, para que fossem abatidos, ensoberbeceram-se, e ao ensoberbecer-se, disseram-se sábios. São, pois, aqueles a cujo respeito disse o Apóstolo: “Tendo conhecido a Deus”. Eles viram o que diz João, a saber, que “pelo Verbo de Deus tudo foi feito”, pois também isso se encontra nos livros dos filósofos, ou seja, que Deus tem um Filho único, por quem todas as coisas existem. Puderam vê-lo, mas o viram de longe: não quiseram guardar a humildade de Cristo, nave na qual chegariam seguros ao que puderam ver de longe. E desprezível foi para eles a cruz de Cristo! Há de se atravessar o mar e desprezas o lenho? Ó sabedoria soberba, zombas de Cristo crucificado, o mesmo a quem viste de longe: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus”.²⁸ Mas por que foi Ele crucificado? Porque te era necessário o lenho da Sua humildade. Pela soberba, incharas-te e tinhas sido lançado longe daquela pátria. O caminho foi interrompido pelas ondas deste século, e não há como passar à pátria se não fores levado pelo lenho. Ingrato, zombas d’Aquele que veio a ti para que retornes. Ele mesmo Se fez o caminho – e pelo meio do mar –, por isso andou por sobre o mar,²⁸¹ para mostrar que há no mar um caminho. Mas tu que não podes como Ele caminhar sobre o mar, sê transportado pela nave, sê transportado pelo lenho. Crê no crucificado, e poderás chegar. Foi crucificado por tua causa, para ensinar a humildade; pois, se viesse como Deus, não seria reconhecido. Se viesse como Deus, não viria para os que não podiam ver a Deus. Pois, não é conforme a Sua divindade que Ele veio e partiu, haja vista que está presente em toda parte e lugar algum O contém. Mas, como veio Ele? Veio como homem! João Batista, o enviado por Deus 5 Porque era Ele um homem no qual Se ocultava o próprio Deus, foi enviado antes d’Ele um homem grande, por meio de cujo testemunho fosse Ele reconhecido como mais que um homem. E quem é este? “Houve um homem”. E como poderia esse homem dizer a verdade sobre Deus? “[E]nviado por Deus”. Como se chamava? “[E] seu nome era João”. A que veio ele? “Veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por meio dele”.²⁸² Quem era esse que devia dar testemunho da luz? Uma pessoa notável era esse João, de ingente mérito, de grande graça, de elevada altura! Admira-te; admira-te sim, mas como se admira alguém de um monte. O monte estará em trevas se não for revestido pela luz. Portanto, admira-te de João; mas, desde que ouças o que se segue: “Ele não era a luz”:²⁸³ não te ocorra que, pensando ser o próprio monte luz, encontres nele naufrágio, e não consolação. De que te deves admirar? Deves admirar-te do monte, como monte que é. Eleva-te, portanto, Àquele que ilumina o monte, que a Ele está elevado para receber primeiro os seus raios e anunciá-lo a teus olhos; portanto: “Ele não era a luz”. “Veio para testemunhar a luz verdadeira” 6 Por que veio, pois? “Veio para dar testemunho da luz”. E isso, para quê? “Para que todos cressem por meio dele”.E de que luz devia ele dar testemunho? D’Aquele que “era a luz verdadeira”.²⁸⁴ Por que foi acrescentado: “verdadeira”? Porque o homem, uma vez iluminado, é também chamado luz, mas luz verdadeira é aquela que ilumina. Desse modo, os nossos olhos também se dizem luzes e, entretanto, se de noite não for acesa a lâmpada, ou se de dia não sair o sol, estas nossas luzes se abrem sem razão. Assim, pois, também João era luz, mas não luz verdadeira, uma vez que, não fosse ele iluminado, estaria em trevas e, pela iluminação, fez-se luz. Se não fosse iluminado, estaria em trevas, assim como todos os ímpios, aos quais, quando já criam, disse o Apóstolo: “Outrora éreis trevas…” O que se tornaram agora, depois que já creram? Diz ele: “Agora, porém, sois luz no Senhor”.²⁸⁵ Se ele não acrescentasse “no Senhor”, não compreenderíamos. “Luz”, diz ele, mas “no Senhor”: éreis trevas, mas não no Senhor. “Outrora éreis trevas”, aí não acrescenta “no Senhor”. Trevas éreis, por conseguinte, em vós mesmos; sois luz no Senhor. Assim, também se diz daquele que “não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz”.²⁸ “Luz que ilumina todo homem vindo ao mundo” 7 Onde está essa luz? “Ele era a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem ao mundo”.²⁸⁷ Se ilumina todo homem que vem a este mundo, Ele também ilumina o próprio João. O próprio Verbo iluminava aquele por meio do qual queria ser manifestado. Que a vossa caridade o entenda: Ele vinha às mentes fracas, aos corações feridos, aos olhos de uma alma remelosa. Viera para isso. E como poderia a alma ver o que perfeitamente é? Do mesmo modo, como amiúde ocorre, em que através de algum corpo iluminado se conhece ter despontado o sol, que não podemos enxergar com nossos próprios olhos. Também os que têm os olhos feridos são capazes de ver a parede iluminada, ou um monte, ou uma árvore abrilhantada pelo sol, ou qualquer coisa do gênero. No outro ser iluminado, revela-se aquele nascimento aos que ainda possuem um olhar pouco capaz de vê-lo. Do mesmo modo, todos aqueles para os quais Cristo viera, pouco idôneos eram para vê-l’O. Brilhou João e, por meio daquele que confessava ter sido alumbrado, ter sido iluminado e não ser quem alumbrava e iluminava, conheceu-se o que ilumina, conheceu-se o que alumbra, conheceu-se o que dá plenitude. E quem é este? Diz: “Aquele que ilumina todo homem que vem a este mundo”. Pois, se o homem não se tivesse afastado d’Ele, não teria necessidade de ser iluminado, mas, por isso, deve ser iluminado, pois se afastou dali, onde o homem podia ser sempre iluminado. A luz estava no mundo,mas não podia ser vista pelos pecadores 8 Que diremos? Se veio até aqui, onde estava? “Ele estava no mundo”.²⁸⁸ Ele estava aqui e veio para cá. Estava aqui pela divindade; veio para cá pela carne. Ainda que estivesse aqui pela divindade, não podia ser visto pelos estultos, cegos e iníquos. Esses mesmos iníquos são as trevas, das quais foi dito: “A luz brilha nas trevas, mas as trevas não a compreenderam”.²⁸ Eis que está aqui agora, e aqui estava e está sempre aqui. Nunca Se afasta, não Se afasta para parte alguma. É mister que tenhas como ver Aquele que de ti nunca Se afasta. É mister que não te afastes d’Aquele que para parte alguma Se afasta, é mister que não abandones e não serás abandonado. Não caias, e Ele não morrerá para ti. Se caíres, Ele declinará para ti; mas, se ficares de pé, Ele estará presente a teu lado. Mas, na verdade, não permaneceste de pé, lembra-te donde caíste, donde te lançou aquele que caiu antes de ti. Lançou-te, pois, não por força nem por impulso, mas pela tua vontade. Se não tivesses consentido no mal, estarias de pé, permanecerias iluminado. Agora, uma vez que já caíste e te converteste num ferido de coração, faculdade com a qual pode ser vista aquela luz, ela veio a ti de modo que a pudesses ver. De tal modo Se mostrava como homem, que procurava o testemunho de um homem. Deus busca o testemunho de um homem e tem ao homem por testemunha. Deus tem ao homem por testemunha, mas em favor do próprio homem, tão enfermos somos. Buscamos o dia com uma lâmpada, pois o próprio João foi chamado “lâmpada”, ao declarar o Senhor: “João foi o facho que arde e ilumina, e vós ficastes alegres por um momento, com essa luz. Eu, porém, tenho um testemunho maior do que o de João”.² João, a luz preparada para mostrar Cristo 9 Mostrou, pois, que quis revelar-Se pela lâmpada, em favor dos homens, para a fé dos que creem, a fim de que, pela mesma lâmpada, Seus inimigos se confundissem; aqueles inimigos que O tentavam, e diziam: “Dize-nos, com que autoridade fazes estas coisas? Eu também, respondeu Ele, vou propor-vos uma questão... Dizei-me: o batismo de João de onde vem, do céu ou dos homens? Eles ficaram perturbados e se diziam a si mesmos: Se respondermos: Do céu, Ele nos dirá: Por que então, não crestes nele? – porque João tinha dado testemunho de Cristo e dissera: Eu não sou o Cristo, mas Ele –² ¹; se, pelo contrário, respondermos: O batismo de João vem dos homens, tememos que o povo nos lapide, porque tinham a João como um profeta”.² ² Temendo a lapidação, e temendo mais a confissão da verdade, responderam à verdade uma mentira e a iniquidade mentiu-se a si mesma.² ³ Disseram, então: Não sabemos, e o Senhor, já que eles tinham fechado [a porta] contra si mesmos, negando que sabiam o que já conheciam, tampouco lhes abriu, pois não bateram. Na verdade está escrito: “Batei, e ser-vos-á aberto”.² ⁴ Não só não bateram para que se lhes abrisse, mas, negando, obstruíram a própria porta contra si. “E o Senhor lhes disse: Eu tampouco vos direi com que autoridade faço estas coisas”.² ⁵ Eles foram confundidos por João, e a palavra da Escritura encontrou neles cumprimento: “Preparei uma lâmpada ao meu Cristo, cobrirei Seus inimigos de confusão”.² O Verbo “estava no mundo” como o Criador que tudo governa 10 “Ele estava no mundo e o mundo foi feito por meio d’Ele”.² ⁷ Não penses que estava no mundo como estão no mundo a terra, o céu, o sol, a lua e as estrelas, como estão no mundo as árvores, os animais e os homens. Não era assim que Ele estava no mundo. Como estava, então? Como um artífice, que dirige o que faz. Mas Ele não fez o mundo ao modo de um artesão. Fora está a arca de quem a fabrica e ela, quando é fabricada, põe-se noutro lugar. Ainda que o tenha perto de si, o artesão senta-se num lugar separado daquilo que fabrica. Deus, porém, de dentro do mundo o fabrica, fabrica estando presente em todas as partes e não Se afasta para qualquer outro lugar, como quem está fora da obra que fabrica. Com uma presença de majestade, faz o que faz: com Sua presença, governa o que fez. Assim estava no mundo, como Aquele por quem o mundo foi feito, porque “o mundo foi feito por meio d’Ele, mas o mundo não O conheceu”.² ⁸ “E o mundo não O conheceu” 11 O que significa: “O mundo foi feito por meio d’Ele”? O céu, a terra, o mar e tudo o que eles encerram: eis o que se diz “mundo”. Noutro sentido, dizem-se também “mundo” os que amam o mundo. “O mundo foi feito por meio d’Ele, mas o mundo não O conheceu”. Acaso não conheceram os céus a seu Criador, ou os anjos não terão conhecido o seu Criador, ou ainda os astros não conheceram Aquele a quem confessam os demônios? Tudo, sob todos os aspectos, dá testemunho. Mas quem são os que não conheceram? Aqueles que, amando o mundo, são chamados “mundo”. Amando, pois, habitamos com o coração: amando, eles mereceram chamar-se assim, como o lugar onde habitavam. Da mesma forma que, quando dizemos: “Aquela casa é má” ou “Aquela casa é boa”, não estamos a acusar suas paredes ao qualificá-la de má nem a louvá-las quando a declaramos boa, mas sim aos seus maus habitantes ou aos seus habitantes bons. Isso seja dito também do mundo, ou seja, dos que, amando, habitam o mundo. Quem são? Os que amam o mundo habitam o mundo com o coração. Pois os que não amam o mundo, passam por ele com a carne, mas com o coração habitam o céu, como diz o Apóstolo: “Nossa cidade está nos céus”.² Por isso, o mundo foi feito por meio d’Ele, mas o mundo não Oconheceu. “Veio para o que era Seu e os Seus não O receberam” 12 “Veio para o que era Seu”, visto que todo o universo foi feito por Ele, “e os Seus não O receberam”.³ Quem são os Seus? Os homens que fez; os judeus, que Ele constituiu originariamente sobre todas as nações, porque as outras nações adoravam os ídolos e serviam aos demônios. Aquele povo, porém, tinha nascido da estirpe de Abraão e eram eles, especialmente, os Seus, uma vez que, até pela carne que Se dignou tomar, eram parentes. “Veio para o que era Seu, e os Seus não O receberam”. Não O acolheram de forma alguma, ninguém O acolheu? Ninguém, então, se salvou? Ninguém se salvará a não ser quem receber o Cristo que vem. “Mas a todos os que O receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus” 13 O evangelista, porém, acrescenta: “Mas a todos os que O receberam”. O que lhes deu Ele? Usou para com eles de grande benevolência, de grande misericórdia! Ele nasceu único, e não quis permanecer único. Muitos homens, quando não têm filhos, depois de passada a idade, adotam-nos para si; e fazem com a vontade o que não puderam por natureza, eis o que fazem os homens. Se, pelo contrário, alguém tem um filho único, nele mais se alegra, já que há de possuir tudo sozinho e não terá quem com ele venha a dividir a herança, para que fique mais pobre. Mas Deus não é assim: enviou a este mundo aquele mesmo Único que Ele tinha gerado e por meio do qual criara todas as coisas, para que não fosse um, mas que tivesse irmãos adotados; pois não nascemos de Deus da mesma maneira que o Unigênito, mas fomos adotados pela Sua graça. Esse Unigênito veio para destruir os pecados, nos quais estávamos atados, a fim de não nos adotar com aquele impedimento: aos que queria fazer irmãos para Si, Ele mesmo os libertou e fez deles co-herdeiros. Assim diz o Apóstolo: “Se és filho, és também herdeiro, graças a Deus”,³ ¹ e ainda: “Herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo”.³ ² Não teve medo de ter co-herdeiros: pois aquela herança não se diminui ao serem muitos os seus possuidores. Eles mesmos, certamente, sendo possuídos por Ele, constituem-se em Sua herança e Ele, reciprocamente, faz-Se herança deles. Ouve de que maneira se tornam eles a Sua herança: “O Senhor me disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei. Pede, e eu te darei as nações como herança”.³ ³ E Ele, o Filho de Deus, como Se torna a herança deles? O salmo responde: “O Senhor, minha parte na herança e minha taça”.³ ⁴ Possuamo-l’O nós e Ele nos possua: possua-nos Ele como Senhor, possuamo-l’O nós como salvação, possuamo-l’O como luz. O que foi que deu aos que O receberam? “A todos os que O receberam, deu o poder de se tornarem filhos de Deus, isto é, aos que creem no Seu nome”;³ ⁵ deu-lhes segurar o lenho e atravessar o mar. Esse novo nascimento não procede do sangue 14 E de que modo nascem eles? Certamente nasceram, porquanto se fizeram filhos de Deus e irmãos de Cristo: e, se não nasceram, como podem ser filhos? Os filhos dos homens nascem, porém, da carne e do sangue, da vontade do homem e da união dos cônjuges. Mas aqueles, como é que nasceram para Ele? Não nasceram dos sangues,³ vale dizer, do sangue do homem e da mulher.³ ⁷ O plural “sangues”³ ⁸ não é latino, mas porque o termo, em grego, está no plural, quem traduzia preferiu deixá-lo assim, falando de um modo, por assim dizer, menos latino segundo os gramáticos, e, não obstante, explicar a verdade conforme o ouvido dos débeis. Se dissesse, com efeito, “sangue” no singular, não explicaria o que queria, uma vez que os homens nascem, pois, dos “sangues” do homem e da mulher. Digamo-lo, pois, e não tenhamos medo das chibatas dos gramáticos, desde que cheguemos à verdade sólida e mais certa. Repreende-o quem o entende, ingrato por ter entendido. “Não nasceram dos sangues, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem”.³ Pôs a palavra “carne” no lugar de “mulher”, pois tendo sido feita da costela, Adão disse: “Esta é osso de meus ossos e carne de minha carne”.³¹ E diz o Apóstolo: “Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo, pois ninguém jamais quis mal à sua própria carne”.³¹¹ Por isso, o termo “carne” está posto em lugar de esposa, como por vezes “espírito” é empregado em lugar de “marido”. Por quê? Porque este rege, aquela é regida: ele deve imperar, ela servir. Onde impera a carne e o espírito serve, tem-se uma casa pervertida. O que há de pior que uma casa em que a mulher tem o domínio sobre o varão? Casa bem ordenada é aquela em que o varão manda e a mulher obedece. Bem ordenado é o próprio homem em quem o espírito manda e a carne serve.³¹² “E o Verbo Se fez carne e habitou entre nós” 15 “Não nasceram [...], nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”.³¹³ Para que os homens nascessem de Deus, Deus antes nasceu deles. Cristo, pois, é Deus e Cristo nasceu dos homens. Não procurou senão mãe na terra, porquanto pai tinha já no céu. Nasceu de Deus Aquele por quem seríamos feitos, nasceu de mulher Aquele por quem seríamos refeitos. Não te admires, ó homem, porque és feito filho por graça, porque nasces de Deus segundo o Seu Verbo. Antes, o próprio Verbo quis nascer do homem para que tu, seguro, nascesses de Deus e te dissesses: “Não sem motivo quis nascer Deus do homem, senão porque me considerou de certa importância e, para que me fizesse imortal, Ele nasceu mortal por mim”. Assim, depois de ter dito: “Eles nasceram de Deus”, para que não ficássemos por demais impressionados nem nos atemorizássemos, diante de graça tão grande, e talvez nos parecesse incrível que homens nascessem de Deus, como que para assegurar-te, diz: “E o Verbo Se fez carne e habitou entre nós”.³¹⁴ Por que te admiras, então, de que homens nasçam de Deus? Contempla o próprio Deus nascido dos homens: “E o Verbo Se fez carne e habitou entre nós”. Curando-nos, o Verbo encarnado tornou-nos capazes de ver Sua glória 16 De fato, porque “o Verbo Se fez carne e habitou entre nós”, pelo Seu próprio nascimento fez um colírio com o qual fossem purificados os olhos do nosso coração e assim pudéssemos ver, por meio de Sua humildade, a Sua majestade. “O Verbo Se fez carne e habitou entre nós”. Curou os nossos olhos. E o que se segue? “E nós vimos a Sua glória”. Sua glória, ninguém poderia ver, se não fosse curado pela humildade de Sua carne. E por que não podíamos ver? Que a vossa caridade preste, pois, toda a atenção! Vede o que digo: tinha entrado como que poeira nos olhos do homem, tinha entrado terra, tinha ferido o olho, e não podia ver a luz: este olho ferido é ungido. Tinha-se ferido pela terra e terra ali se introduz para que se curasse. Todos os colírios e remédios nada são senão algo da terra. Tu te cegaste pelo pó, pelo pó és curado; cegara-te, pois, a carne; a carne te cura. Tua alma tinha-se tornado carnal, consentindo nos afetos da carne, e os olhos de teu coração ficaram cegos. “O Verbo Se fez carne”, esse Médico preparou-te um colírio. E porque Ele veio de tal modo para extinguir, a partir da carne, os vícios da carne e matar a morte com a morte, aconteceu- te que, porque “o Verbo Se fez carne”, possas dizer: “E nós vimos a Sua glória”. Que glória é essa? A de ter Se tornado Ele filho do homem? Aí está Sua humildade, não Sua glória! Mas aonde é conduzido o olhar do homem, curado pela carne? “Nós vimos a Sua glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”.³¹⁵ A respeito da graça e da verdade, trataremos mais abundantemente em outro lugar neste mesmo Evangelho, se o Senhor se dignar conceder-nos. Sejam-nos suficientes, por agora, as coisas que dissemos. Edificai-vos em Cristo, confortai-vos na fé e vigiai nas boas obras: e não vos afasteis do lenho por meio do qual podeis atravessar o mar. HOMILIA 3 O testemunho de João (Jo 1,15-18) Objetivo do sermão 1 Assumimos, em nome do Senhor, e à vossa caridade prometemos que havíamos de distinguir do Antigo Testamento a graça e a verdade de Deus, cheio das quais o Filho Unigênito, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, apareceu aos olhos dos santos, porque são realidades próprias do NovoTestamento. Assisti, pois, atentos, para que, na medida de quanto compreendo, Deus o conceda e, na medida de quanto compreendeis, o ouçais. Resultará, então, que, se a semente que se esparze em vosso coração não for arrebatada pelas aves, nem sufocada pelos espinhos, nem tampouco ressecada pelo ardor do verão, e houver o concurso da chuva das exortações cotidianas com os vossos bons pensamentos, com os quais se trabalha no coração tal como os ancinhos fazem no campo, para que a terra seja sulcada, a semente seja recoberta e possa germinar,³¹ produzireis o fruto de que há de gozar e se alegrar o agricultor. Se, no entanto, em troca dessa boa semente e da chuva benfazeja, nós produzimos não um fruto, e sim espinhos, não se acusará a semente, nem se recriminará a chuva, mas para os espinhos se prepara o devido fogo. Não estamos mais sob a Lei, mas sob a graça 2 Nós somos homens cristãos – e, acerca disso, não creio que devo persuadir demoradamente a vossa caridade –, e, se cristãos, até por nosso nome, sem dúvida, pertencemos a Cristo. Trazemos na fronte o sinal d’Ele, pelo qual nunca haveremos de sentir rubor, se o trouxermos também no coração. O sinal d’Ele é Sua humildade. Foi por uma estrela que os Magos O reconheceram,³¹⁷ e tal sinal celeste e refulgente proveio do Senhor. Ele não quis que uma estrela estivesse, como sinal Seu, na fronte dos fiéis, mas a Sua cruz. A partir dali, donde fora humilhado, foi glorificado; a partir dali, donde, humilhado, Ele próprio desceu, ergueu os humildes. Nós pertencemos, pois, ao Evangelho, pertencemos ao Novo Testamento. “A lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo”.³¹⁸ Interrogamos o Apóstolo, e ele nos diz que não estamos “sob a Lei, mas sob a graça”.³¹ “Deus, portanto, enviou o seu Filho nascido de uma mulher, nascido sob a Lei para remir os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial”.³² Eis que Cristo veio para isto: para remir os que estavam sob a Lei e para que já não estejamos sob a Lei, mas sob a graça. Quem deu, pois, a Lei? Aquele mesmo que deu a Lei é quem deu também a graça; mas enviou a Lei por intermédio de um servo, ao passo que desceu Ele próprio com a graça. E por que os homens foram colocados sob a Lei? Por não cumprirem a Lei. Com efeito, quem cumpre a Lei não está sob a Lei, mas com a Lei. Mas aquele que está sob a Lei não é erguido, mas oprimido pela Lei. Assim, a todos os homens constituídos sob a Lei, a Lei os torna réus. E ela lhes fica sobre a cabeça, para fazer ver os seus pecados, não para tirá-los. A Lei dá, então, ordens, e o Doador da Lei Se compadece naquilo que ordena a Lei. Esforçando-se para cumprir com suas próprias forças o preceituado pela Lei, os homens caíram, vítimas, precisamente, da sua temerária e irrefletida presunção, e não estão com a Lei, mas tornaram-se réus sob a Lei. E porque lhes era impossível cumprir a Lei com as próprias forças, tornaram-se réus sob a Lei, imploraram o auxílio do Libertador e a condição de réus sob a Lei produziu a doença dos soberbos. A doença desses soberbos tornou-se confissão dos humildes. Os doentes confessam já que estão doentes. Que venha, então, o Médico e cure os doentes! O nosso médico é Cristo, encarnado e crucificado 3 Quem é esse médico? Nosso Senhor Jesus Cristo. E quem é nosso Senhor Jesus Cristo? Aquele que foi visto mesmo pelos que O crucificaram. Aquele que foi preso, esbofeteado, flagelado, coberto de escarros, coroado de espinhos, suspenso à cruz, que morreu, foi transpassado por uma lança, descido da cruz e deposto no sepulcro. Esse mesmo é nosso Senhor Jesus Cristo! Sim, é bem Ele, e Ele é o completo Médico de nossas feridas, aquele Crucificado, a quem se insultou e diante de quem, pendente da cruz, os perseguidores sacudiam a cabeça, dizendo: “Se é o Filho de Deus, que desça da cruz”.³²¹ Ele mesmo é o nosso Médico completo; Ele o é nitidamente! Por que não mostrou aos que O insultavam, que Ele era, de fato, o Filho de Deus? Ora, se permitiu que O erguessem na cruz, pelo menos quando Lhe diziam: “Se é o Filho de Deus, que desça da cruz”, Ele então poderia descer e mostrar-lhes que Aquele de quem ousavam escarnecer era verdadeiramente o Filho de Deus. Não o quis. E por que não o quis? Acaso porque não o podia? Certamente o pôde. Com efeito, o que é mais: descer da cruz ou ressuscitar do sepulcro? Suportou, porém, os que O insultavam, porque a cruz foi aceita para dar não uma prova de força, mas um exemplo de paciência. Ele curou tuas feridas ali onde, por um demorado tempo, suportou as próprias. Ele te livrou da morte eterna ali mesmo, onde Se dignou morrer temporalmente. E teria Ele morrido ou, antes, a morte é que n’Ele morreu? E que morte é essa que mata a morte? Cristo: o Verbo, a Sabedoria criadora, a luz dos espíritos 4 E, contudo, Aquele que era visto, detido e crucificado, era nosso Senhor Jesus Cristo todo inteiro? Ele próprio, em Sua completude, era isso? Na verdade, era Ele mesmo; mas o que os judeus viram não era Ele todo, não era isso o Cristo em Sua completude. E o que é? “No princípio era o Verbo”. Em que princípio? “E o Verbo estava junto de Deus”. E que tipo de Verbo? “E o Verbo era Deus”. Por acaso, esse Verbo teria sido feito por Deus? Não, porque, “no princípio, estava junto de Deus”. O que dizer, então? As outras criaturas que Deus fez não são semelhantes ao Verbo? Não, porque “tudo foi feito por Ele e nada foi feito sem Ele”. Como tudo foi feito por Ele? “O que foi feito, era vida n’Ele”, e, antes de ser feito, “era vida”.³²² O que foi feito não é vida; mas, na imaginação do artífice, isto é, na Sabedoria de Deus, antes de ser feito, era vida. O que foi feito passou; o que existe na Sabedoria não pode passar. O que foi feito era, portanto, vida n’Ele. E que vida? Ora, também a alma é a vida do corpo. Nosso corpo possui sua própria vida e, quando a tiver perdido, dar-se-á a morte do corpo. Era, pois, de tal espécie aquela vida? Não! “Mas a vida era a luz dos homens”. Era ela também a luz dos animais? Haja vista que esta luz é tanto dos homens como dos animais. Existe, contudo, certa luz exclusiva dos homens. Vejamos em que os homens se diferem dos animais, e compreenderemos, então, o que é a luz dos homens. Tu não diferes dos animais, senão pela inteligência: não te glories de nada mais. Presumes de tuas forças? És vencido pelas feras. Presumes de tua agilidade? És vencido pelas moscas. Presumes de tua beleza? Quanta beleza há nas penas do pavão? De onde vem, então, que sejas melhor? Da imagem de Deus. Onde se encontra essa imagem de Deus? Na mente, na inteligência. Se és, então, melhor que o animal precisamente por teres um espírito com que compreendes o que o animal não pode compreender, e por isso és um homem, melhor que o animal, a luz dos homens não é senão a luz dos espíritos. A luz dos espíritos está acima dos espíritos, e ultrapassa-os a todos. Eis aquela vida pela qual tudo foi feito. Ele estava no mundo, mas sem ser visto pelo mundo 5 Onde estava a luz? Estava aqui? Ou estava junto do Pai, e aqui não estava? Ou, o que é mais verdadeiro, estava ela, ao mesmo tempo, junto do Pai e aqui? Se ela estava aqui, por que não era vista? Porque “a luz brilha nas trevas e as trevas não a compreenderam”. Ó homens, não sejais trevas, não sejais infiéis, injustos, iníquos, cobiçosos, avarentos, afeiçoados ao século: estas são as trevas. A luz não está ausente, mas vós estais ausentes à luz. O cego, ao sol, tem o sol presente a si, mas ele mesmo está ausente do sol. Não sejais trevas, pois. Esta é, talvez, a graça sobre a qual vos hei de falar: a de que não sejamos mais trevas, e que o Apóstolo nos diga: “Outrora, éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor”.³²³ E como não se via, de fato, a luz dos homens, isto é, a luz dos espíritos, era preciso que um homem desse testemunho da luz. Não, por certo, um homem tenebroso, mas já iluminado. Não por estar iluminado, era ele a própria luz, mas viera “para dar testemunho da luz”, pois “não era ele a luz”. E que luz era essa? “A Luzverdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo”. E onde estava ela? “Estava neste mundo”. Como estava ela neste mundo? Porventura à semelhança desta luz do sol, da luz da lua e das lâmpadas é que a referida luz está também neste mundo? Não, porque “o mundo foi feito por Ele, e o mundo não O reconheceu”, isto é, “a luz brilha nas trevas e as trevas não a compreenderam”. O mundo é todo ele trevas, na verdade, porque o mundo são aqueles que amam o mundo. Então, a criatura não reconheceu o seu Criador? O céu deu testemunho por meio da estrela;³²⁴ o mar deu testemunho e sustentou o Senhor que caminhava;³²⁵ os ventos deram testemunho e apaziguaram-se à Sua ordem;³² a terra deu testemunho e tremeu por ocasião de Sua crucificação.³²⁷ Se todas essas criaturas deram testemunho, como é que o mundo não O conheceu, a não ser porque o mundo significa os amigos do mundo, esses que habitam o mundo com o coração? O mundo é mau, porque seus habitantes são maus, assim como uma casa é má, não por suas paredes, mas por seus moradores. “Ele veio para o que era Seu” 6 “Ele veio ao que era Seu”: isto é, àquilo que Lhe pertencia, “e os Seus não O receberam”. E que esperança há, senão a de que “a todos os que O receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus”?³²⁸ Se filhos se tornam, é porque nasceram. E, se nasceram, como nasceram? Não da carne, “nem dos sangues, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”. Regozijem-se, pois, os que nasceram de Deus, que se ufanem por pertencer a Deus, que recebam a prova de que nasceram de Deus: “E o Verbo Se fez carne e habitou entre nós”.³² Se o Verbo não Se envergonhou de nascer do homem, envergonhar-Se-ão os homens de nascer de Deus? Porque Ele o fez, trouxe-nos a cura; e porque nos curou, vemos. Pelo fato de que “o Verbo Se fez carne e habitou entre nós”, tornou-Se nosso remédio, a fim de que, nós que ficáramos cegos por causa da terra, com a terra fôssemos curados; e para que víssemos o quê, uma vez curados? “Nós vimos, diz, a Sua glória, a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”.³³ O testemunho de João: “Ele existia antes de mim” 7 “João dá testemunho d’Ele e clama: ‘Este é Aquele de quem eu disse: o que vem depois de mim, passou adiante de mim, porque existia antes de mim’”.³³¹ Veio depois de mim e precedeu-me. O que significa: “Existia antes de mim?” Ele precedeu-me, não que tenha sido feito antes que fosse feito eu, mas: foi anteposto a mim. Tal é o sentido de: “Porque existia antes de mim”. Por que foi anteposto a ti, se veio depois de ti? “Porque existia antes de mim”. Antes de ti, ó João? O que há de extraordinário que Ele exista antes de ti? Bom, já que dás testemunho d’Ele, ouçamo-l’O a Ele mesmo dizer: “Antes que Abraão fosse, eu sou”.³³² Mas o próprio Abraão nasceu em meio ao gênero humano. Houve muitos homens antes dele, e muitos depois. Escuta, então, a voz do Pai dirigida ao Filho: “Antes da aurora, eu te gerei”.³³³ Aquele que foi gerado antes da aurora, a todos ilumina. Diz-se que Lúcifer, com efeito, era o nome de alguém que caiu: era um anjo, tornou-se diabo, e dele diz a Escritura: “Caiu do céu o astro brilhante, que nascia de manhã”.³³⁴ Por que era chamado Lúcifer? Porque, tendo sido iluminado, reluzia. E por que se tornou tenebroso? “Porque não permaneceu na verdade”.³³⁵ O Verbo existia, pois, antes da aurora, antes de tudo o que foi iluminado, uma vez que é necessário que exista, antes de tudo o que foi iluminado, Aquele por quem são iluminados todos os seres que o podem ser³³ . “Pois de Sua plenitude todos nós recebemos” 8 Assim, eis o que segue: “E de Sua plenitude nós todos recebemos”. O que recebestes? “E graça por graça”.³³⁷ Tais são, com efeito, as palavras evangélicas, confrontadas com os manuscritos gregos. Não diz: E de Sua plenitude nós todos recebemos graça por graça; mas diz assim: “E de Sua plenitude nós todos recebemos, e – isto é, recebemos– graça por graça”, de modo que o texto nos quis dar a entender que, de Sua plenitude, nós recebemos não sei o quê e, além disso, graça por graça. Com efeito, de Sua plenitude, nós recebemos primeiramente uma graça e, de novo, outra graça – “graça por graça”. Que graça recebemos primeiro? A fé. Os que caminhamos à luz da fé, caminhamos à luz da graça. E donde é que o merecemos? Em virtude de que méritos anteriores de nossa parte? Que ninguém se envaideça, volte cada um à sua consciência, perscrute o esconderijo dos seus pensamentos, examine o conjunto dos seus atos. Que ninguém preste atenção no que é, se é já alguma coisa, mas no que foi, para chegar a ser alguma coisa: encontrará não ter sido merecedor senão de castigo. Se, pois, tu eras digno de castigo e veio Aquele que não punia pecados, mas os perdoava, foi-te dada uma graça, não te foi pago um salário. Por que é ela denominada graça? Porque gratuitamente se dá. Não foi por méritos anteriores que compraste, então, o que recebeste. O pecador recebeu, pois, esta primeira graça: que lhe fossem perdoados os pecados. O que mereceu? Que ele interrogue a justiça e terá como resposta um castigo. Que interrogue a misericórdia e encontrará a graça. Mas isso, Deus o prometera pelos profetas, e assim, quando Ele veio dar o que havia prometido, não foi somente a graça que Ele deu, mas também a verdade. Como se manifestou a verdade? Por se ter feito o que fora prometido. “[…] e graça por graça” 9 O que significa, então: “graça por graça”? Pela fé, nós conquistamos o favor de Deus. E isso é chamado graça porque os que não éramos dignos de que se nos perdoassem os pecados recebemos, apesar de nossa indignidade, um tão grande dom. O que é graça? Um dom gratuito. O que é um dom gratuito? O que foi concedido como favor, e não pago como uma retribuição. Se fosse uma dívida, seria mercê paga pelo trabalho, e não uma graça dada. E se houvesse, realmente, uma dívida, é porque foste bom. Se, no entanto, como é verdade, foste mau, mas creste “n’Aquele que justifica o ímpio” – o que significa “que justifica o ímpio”? Que faz de um ímpio um piedoso –, pensa no que devia cair sobre ti por força da Lei e no que alcançaste mediante a graça. Tendo obtido essa graça da fé, serás justo em virtude da fé, porque “o justo vive da f锳³⁸ e, vivendo da fé, conquistarás o favor de Deus; e tendo conquistado o favor de Deus, vivendo da fé, receberás como recompensa a imortalidade e a vida eterna. E essa é também uma graça. Pois, em virtude de que mérito recebes a vida eterna? Por força de uma graça. Com efeito, se a fé é uma graça e se a vida eterna é como que a recompensa da fé, Deus parece, por assim dizer, pagar a vida eterna como se fosse devida. Devida a quem? Ao fiel, porque a mereceu pela fé. Como, porém, a fé é ela mesma uma graça, a vida eterna é, também, graça por graça. O exemplo de Paulo comprova essa interpretação 10 Ouve o apóstolo Paulo a confessar a graça e, depois, a reclamar o que lhe era devido. Qual é essa confissão da graça em Paulo? “Comecei por ser blasfemador, perseguidor e insultador, mas – ele diz – obtive misericórdia”.³³ Declara ter sido indigno de obtê-la, e que a alcançou, todavia, não em virtude de seus méritos, mas pela misericórdia de Deus. Ouve-o, agora, a reclamar o devido; ele que, primeiramente, recebera a graça imerecida: “Já estou para ser imolado – diz – e o tempo de minha morte está próximo. Combati o bom combate, terminei minha carreira, guardei a fé. Quanto ao resto, a coroa da justiça me está reservada...”. E já reclama algo como devido, já exige a dívida; vê, também, as palavras que seguem: “Está-me reservada a coroa de justiça que me dará, naquele dia, o Senhor, Juiz justo”.³⁴ Para receber a graça anteriormente, ele precisou de um Pai misericordioso. Para receber a recompensa da graça, ele precisa de um Juiz justo. Pois, Aquele que não condenou o ímpio haverá de condenar o fiel? E, refletindo bem, no entanto, o próprio Senhor começou por dar-te a fé pela qual conquistaste o Seu favor, porque não o conquistaste com o que é teu, a ponto de que se te devesse alguma coisa. Ao conceder-tea seguir, portanto, a recompensa da imortalidade, Deus coroa os Seus dons, não os teus méritos. Por conseguinte, irmãos, “de Sua plenitude todos nós recebemos”, da plenitude de Sua misericórdia, da abundância de Sua bondade, nós recebemos. O quê? A remissão de nossos pecados, para que fôssemos justificados pela fé. E o que mais? “Graça por graça”, isto é, por essa graça na qual vivemos da fé, havemos de receber ainda outra. E que outra, senão uma nova graça? Com efeito, se eu também digo que isso me é devido, atribuo-me algo como se a mim se me devesse; pois Deus coroa em nós os dons de Sua misericórdia, contanto, porém, que caminhemos até o fim, perseverantemente, naquela graça que recebemos como primeira. Deus havia dado a Lei para dobrar o orgulho dos homens 11 “A Lei foi dada por Moisés”,³⁴¹ a qual retinha os culpados. O que diz, pois, o Apóstolo? “A Lei sobreveio para que o delito abundasse”.³⁴² Para os orgulhosos foi de utilidade que o delito abundasse; eles estavam, de fato, cheios de si mesmos, atribuíam muito às próprias forças e eram incapazes de cumprir a justiça, a menos que os ajudasse Aquele que lhes impunha os preceitos. Querendo dobrar o orgulho deles, Deus lhes deu a Lei, como que dizendo: Ei-la, cumpri-a, e não julgueis que falta quem a imponha. Não falta quem a imponha, mas sim quem a cumpra. Cristo nasceu sem pecado para arrancar o homem do pecado 12 Ora, se falta quem a cumpra, por que o homem não a cumpre? Por ter nascido com o aguilhão do pecado e da morte. Nascido de Adão, ele trouxe consigo o que ali se concebeu. O primeiro homem caiu e todos aqueles que dele nasceram, dele arrastaram a concupiscência da carne. Era preciso que nascesse outro homem, que não arrastou concupiscência alguma. Um homem e outro homem: um para a morte e outro para a vida. Assim diz o Apóstolo: “Porque a morte veio por um homem, é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos”.³⁴³ Por meio de que homem veio a morte, e por meio de que homem vem a ressurreição dos mortos? Não te apresses. O Apóstolo continua, dizendo: “Com efeito, assim como todos morrem em Adão, também do mesmo modo todos serão vivificados em Cristo”.³⁴⁴ Quais são os que pertencem a Adão? Todos os nascidos de Adão. E quais os que pertencem a Cristo? Todos os nascidos por meio de Cristo. Por que estão todos em pecado? Porque não há quem tenha nascido à margem de Adão. Que nascessem de Adão foi uma necessidade imposta pela condenação, mas nascer por meio de Cristo vem da vontade e da graça. Os homens não são forçados a nascer por meio de Cristo; mas não porque quiseram nasceram eles de Adão. Todos os nascidos de Adão são, entretanto, pecadores e trazem consigo o pecado; todos os que nasceram por meio de Cristo são justificados e justos, não em si mesmos, mas n’Ele. Se interrogares, pois, pelo que são em si, eles são de Adão; mas, se os considerares n’Ele, são de Cristo. Por quê? Porque Ele, que é a Cabeça, nosso Senhor Jesus Cristo, não veio com o aguilhão do pecado, embora tenha vindo com uma carne mortal. Cristo morreu para libertar o homem da morte eterna 13 A morte era o castigo dos pecados. No Senhor, era um dom da misericórdia, não o castigo do pecado. Nada havia no Senhor por que justamente devesse morrer. Ele mesmo o diz: “Eis que o príncipe deste mundo vem, e ele nada encontra em mim”. Por que, pois, morres? “Mas para que todos saibam que eu faço a vontade de meu Pai; levantai-vos, vamo-nos daqui”.³⁴⁵ Ele nada tinha em Si por que devesse morrer e, todavia, morreu. Tu tens um motivo por que deves morrer, e te recusas? Digna-te sofrer com alma serena, para mérito teu, o que Ele mesmo Se dignou sofrer para livrar-te da morte eterna. Um homem e outro homem. Mas o primeiro não é senão um homem, o outro é Deus e homem. O primeiro é o homem do pecado; o outro, o homem da justiça. Tu morreste em Adão; ressuscita, agora, em Cristo, porque as duas coisas te são devidas. Já deste tua fé a Cristo; deverás, porém, pagar a dívida que tens por causa de Adão. O vínculo do pecado não te dominará para sempre, visto que a morte temporal de teu Senhor matou a tua morte eterna. Tal é a graça, meus irmãos, tal é também a verdade, pois foi prometida e mostrada. A Lei, uma preparação; o Senhor, médico que cura 14 Essa graça de que falamos não se encontrava no Antigo Testamento, pois a Lei proferia ameaças, não trazia socorro. Ditava ordens, não curava. Manifestava a doença, não a suprimia. Fazia, entretanto, uma preparação para aquele Médico que havia de vir, com a graça e a verdade. Do mesmo modo, um médico que deseja curar um doente começa por enviar-lhe um servo seu, a fim de encontrá-lo vendado. O homem não gozava de boa saúde, não queria ser curado e, por receio de ser curado, vangloriava-se de estar são. A Lei foi enviada e vendou-o. Reconheceu-se culpada a criatura humana, e já clama do meio de suas bandagens. O Senhor vem. Trata-a com remédios um tanto amargos e ácidos. Diz ao enfermo: Suporta! Diz ainda: Tolera! Não ames o mundo. Tem paciência, que o fogo da continência te seja um remédio, que tuas chagas aguentem o ferro das perseguições. Apesar das ataduras, tremias de espanto. O Médico, porém, estava livre e, sem atadura alguma, bebeu o que te dava a beber. Ele sofreu primeiro para consolar-te, como que dizendo: Sofro primeiro por ti aquilo que temes sofrer por ti mesmo. Tal é a graça, e que grande graça! Quem poderá louvá-la dignamente? Se a humildade de Cristo realizou tal obra, o que dizer de Sua majestade de Verbo? 15 Falo sobre a humildade de Cristo, meus irmãos. E o que se há de falar sobre a majestade de Cristo, a divindade de Cristo? Ao explicar e discorrer, sentimos que não somos capazes de falar de algum modo da humildade de Cristo, ou melhor, que somos totalmente incapazes de fazê-lo. Deixamo-lo tudo a vós que meditais, não conseguimos esgotá-lo perante a vossa audiência. Meditai a humildade de Cristo! Mas – replicas-me – quem no-la há de explicar, se não nos falares sobre isso? Que fale Ele mesmo, dentro de vós. Aquele que habita em vosso interior fala muito melhor sobre isso do que quem grita no exterior. Descubra-vos a graça de Sua humildade Aquele mesmo que começou a habitar em vossos corações. Se, porém, nós somos incapazes de discorrer como é devido acerca de Sua humildade, quem poderá falar de Sua majestade? Se nos conturba o Verbo feito carne, quem explicará: “No princípio era o Verbo”? Retende, pois, irmãos, essa solidez. A Lei os fez culpáveis, o Cristo os libertou 16 “A Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade nos vieram por Jesus Cristo”.³⁴ A Lei foi dada por intermédio de um servidor, e ela estabeleceu os culpados; a indulgência foi dada pelo Imperador, libertou esses culpados. “A Lei foi dada por meio de Moisés”: que o servo não se arrogue mais do que foi feito por ele: foi escolhido para um cargo importante, tal como um servo fiel na casa,³⁴⁷ e todavia um servo: pode agir segundo a Lei, mas não pode absolver da culpa contra a Lei. Então, “a Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo”. A graça e a verdade não vieram por meio de Moisés 17 E para que ninguém proteste: – mas a graça e a verdade não nos vieram por meio de Moisés, que viu a Deus? –, o evangelista acrescenta em seguida: “Ninguém jamais viu a Deus”.³⁴⁸ – Como então Deus Se deu a conhecer a Moisés? O Senhor revelou-Se a Seu servo. Que Senhor? O próprio Cristo, que enviou primeiramente a Lei por meio de Seu servo, a fim de vir depois, Ele próprio, com a graça e a verdade, porque “ninguém jamais viu a Deus”. E como Ele apareceu àquele servo, na medida em que este O pudesse perceber? Responde o Evangelho: “O Filho Unigênito que está no seio do Pai, este O deu a conhecer”.³⁴ O que significa: “Que está no seio³⁵ do Pai”? No segredo do Pai! Com efeito, Deus não tem um seio³⁵¹ como nós o temos nas vestes, nem se há de pensar que Se sente como nós o fazemos, nem, talvez, que se cinja, para que tenha um seio, mas porque o nosso seio é algo íntimo, o segredo do Pai é chamado de “seiodo Pai”. Aquele que, no segredo do Pai, conhece o Pai, deu-O Ele mesmo a conhecer, pois “ninguém jamais viu a Deus”. Ele veio, pois, e narrou tudo quanto viu. O que viu Moisés? Moisés viu uma nuvem, viu o anjo, viu o fogo: tudo isso são apenas criaturas, que traziam a imagem de seu Senhor, sem revelar a presença do próprio Senhor. Tens bem claro na Lei: “E Moisés falava com o Senhor face a face, como um amigo com seu amigo”. Continuas a ler nessa mesma passagem da Escritura e te deparas com estas palavras de Moisés: “Se encontrei graça diante de teus olhos, mostra-te a descoberto, a fim de que te veja”. E é pouco que o tenha dito; ele recebeu ainda esta resposta: “Tu não podes ver minha face”.³⁵² Com Moisés, pois, falava um anjo meus irmãos, que trazia a imagem do Senhor; e tudo o que então foi feito pelo anjo, prometia essa graça e essa verdade vindouras. Sabem-no os que perscrutam bem a Lei. E quando se apresenta a ocasião de que nós também vos digamos alguma coisa sobre isso, na medida em que o Senhor no-lo revela, não nos calamos ante a vossa caridade. A natureza divina é invisível no Filho como no Pai 18 É preciso que o saibais: tudo o que foi visto corporalmente não era a substância de Deus. Vemos aquelas realidades, com efeito, com nossos olhos de carne, mas a substância de Deus, como é vista? Interroga o Evangelho: “Bem-aventurados os de coração puro, porque verão a Deus”.³⁵³ Houve homens,³⁵⁴ iludidos pela vaidade de seu coração, que chegaram a dizer que o Pai é invisível, mas que o Filho é visível. Visível, como? Se por causa da carne, por Ele ter assumido a carne, é claro que sim. Com efeito, dentre os que viram a carne de Cristo, uns creram n’Ele, outros O crucificaram. E aqueles mesmos que creram, vacilaram ao vê-l’O crucificado e, se não houvessem tocado a própria carne d’Ele após a ressurreição, a fé não teria sido chamada de volta a seu coração. Então, se é pela carne que o Filho é visível, nós o concedemos, e essa é a fé católica; mas, se para aqueles tais, como dizem eles mesmos, Ele era visível antes mesmo dessa carne, isto é, antes de encarnar-Se, deliram muito e grande é o seu erro. Aquelas aparições visíveis produziram-se, com efeito, por meio de uma criatura, para que nelas se fizesse ver uma figura tipológica, e não se mostrava nem se manifestava ali, por certo, a substância mesma. Esteja atenta a vossa caridade também a esta prova sucinta: não pode ser vista a Sabedoria de Deus com os olhos. Irmãos, se Cristo é “a Sabedoria de Deus e o Poder de Deus”³⁵⁵ – e se Cristo é o Verbo de Deus –, uma vez que não se vê a palavra de um homem com os olhos, pode ser visto desse modo o Verbo de Deus? O Antigo Testamento impunha aos judeus os mesmos mandamentos que nos são impostos 19 Expulsai, pois, de vossos corações os pensamentos carnais, a fim de estardes verdadeiramente sob a graça e de pertencerdes ao Novo Testamento. É por esse motivo que se promete no Novo Testamento a vida eterna. Lede o Antigo Testamento, e vede que àquele povo ainda carnal se impunham, por certo, os mesmos preceitos que a nós. Ora, adorar a um só Deus é algo que também a nós se nos ordena.³⁵ “Não tomarás em vão o nome do Senhor teu Deus”:³⁵⁷ está ordenado igualmente a nós, e esse é o segundo preceito. “Observa o dia do sábado”³⁵⁸ é um mandamento que nos obriga ainda mais, visto ser-nos prescrito que se observe de modo espiritual. Os judeus observavam o sábado de modo servil, entregando-se à devassidão e à embriaguez. Quão preferível seria que suas mulheres fiassem lã naquele dia, em vez de dançarem pelos terraços das casas! Longe de nós, irmãos, afirmar que aquela gente observava o sábado! O cristão, sim, observa o sábado espiritualmente, abstendo-se da obra servil. E o que é abster-se da obra servil? É abster-se do pecado. E como o provamos? Interroga o Senhor: “Quem comete o pecado é escravo do pecado”.³⁵ A observância do sábado é-nos prescrita espiritualmente, portanto, também a nós. E todos aqueles preceitos se nos impõem, ainda mais a nós, e se hão de observar: “Não matarás. Não cometerás adultério. Não roubarás. Não prestarás falso testemunho. Honrarás pai e mãe. Não cobiçarás o bem do próximo. Não cobiçarás a mulher de teu próximo”. Não nos é ordenado tudo isso a nós também? Mas indaga a respeito da recompensa, e encontrarás o que ali se diz: “A fim de que vossos inimigos sejam expulsos de vossa face, e recebais a terra que Deus prometeu a vossos pais”.³ Como não podiam compreender realidades invisíveis, sujeitavam-se pelas visíveis. Por que se sujeitavam? Para que não perecessem de todo, e não resvalassem para os ídolos. Pois fizeram precisamente isso, meus irmãos, como se lê, esquecidos de tão grandes milagres que Deus realizou diante de seus olhos: o mar foi separado em dois, um caminho foi aberto em meio às vagas; seus inimigos, que os perseguiam, foram engolidos por essas mesmas águas pelo meio das quais acabavam de atravessar.³ ¹ E quando Moisés, o homem de Deus, desapareceu de diante de seus olhos, pediram um ídolo, dizendo: “Faze-nos deuses que caminhem à nossa frente, porque aquele homem nos abandonou”.³ ² Toda a sua esperança estava colocada num homem, e não em Deus. Eis que o homem morreu. Por acaso morreu Deus, que os tirara da terra do Egito? E, após terem fabricado para si a imagem de um novilho, adoraram-no, dizendo: “Aí estão os teus deuses, ó Israel, que te livraram da terra do Egito”.³ ³ Quão rapidamente se esqueceram de graça tão manifesta! Com que meios se sujeitaria um povo tal, a não ser com promessas carnais? Aos cristãos é prometida a vida eterna 20 Ordena-se ali, no decálogo da Lei, o mesmo que a nós, mas não se prometem as mesmas coisas que a nós. O que nos é prometido? A vida eterna! “Ora, a vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo”.³ ⁴ É-nos prometido o conhecimento de Deus: este é “a graça por graça”. Irmãos, nós por ora cremos, não vemos. Por essa fé, haverá uma recompensa: ver o que cremos. Sabiam-no os profetas, mas isso estava oculto antes que Cristo viesse. Com efeito, certo amante que suspira nos salmos diz: “Uma só coisa pedi ao Senhor e a procurarei”. Queres saber o que pede? Talvez peça a terra em que materialmente correm leite e mel, conquanto se deva procurá-la e pedi- la em sentido espiritual; ou, então, pede a sujeição de seus inimigos, ou a morte dos adversários, ou, ainda, reinos e bens deste século. De fato, arde de amor e muito suspira, está abrasado, anelante. Vejamos o que pede: “Uma só coisa pedi ao Senhor e a procurarei”. O que procura? “Habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida”. Supondo que habites na casa do Senhor: donde te virá, ali, a tua alegria? De “contemplar as delícias do Senhor”,³ ⁵ responde ele. Amemos e desejemos os bens espirituais 21 Meus irmãos, por que clamais? Por que exultais e amais, a não ser porque há aí uma centelha dessa caridade? O que desejais? – pergunto-vos eu. Pode-se com os olhos ver? Pode-se tocar? É alguma beleza que deleita os olhos? Acaso, não são os mártires amados, por nós, com veemência e, quando celebramos a sua memória, não nos inflamamos de amor? O que amamos neles, meus irmãos? Membros dilacerados pelas feras? O que há de mais hediondo, se interrogares os olhos da carne? O que há de mais belo, se interrogares os olhos do coração? O que achas de um adolescente belíssimo que é ladrão? Não se horrorizam os teus olhos? Porventura teus olhos carnais ficam horrorizados? Se os interrogares, nada há tão bem constituído quanto aquele corpo, nada tão bem ordenado: a harmonia dos membros, o encanto da tez seduzem os olhos. Ao ficares sabendo, não obstante, que é um ladrão, tu te afastas do homem em espírito. Se, pelo contrário, vires um ancião encurvado, apoiado num bastão, movendo-se com dificuldade e todo enrugado, o que vês que te deleita os olhos? Ao ouvires que é um justo, tu o amas e o abraças. Tais são as recompensas que nos foram prometidas, meus irmãos: amai um bem assim, suspirai por esse Reino, desejai essa pátria,se quiserdes chegar àquelas realidades com que veio nosso Senhor, isto é, à graça e à verdade. Se, pelo contrário, desejares de Deus as recompensas corporais, ainda estás sob a Lei e, portanto, não cumpres a própria Lei. Quando vês, com efeito, a abundância desses bens temporais naqueles que ofendem a Deus, vacilam os teus passos e te dizes: “Eis que honro a Deus, corro à igreja a cada dia, meus joelhos estão macerados por conta das orações e sinto-me mal; no entanto, homicidas e ladrões exultam e vivem em abundância, tudo lhes vai bem”. Eram tais coisas, então, que reclamavas de Deus? Ora, visavas à graça. Se, pois, Deus te fez dom da graça, precisamente porque gratuitamente ta deu, ama-O gratuitamente! Não ames a Deus em vista de uma recompensa, que seja Ele mesmo a tua recompensa. Que tua alma diga: “Pedi uma só coisa ao Senhor e a procurarei: habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida a fim de contemplar as delícias do Senhor”.³ Não receies desfalecer sob o peso do fastio. Aquele deleite da beleza será tal, que sempre te estará presente e jamais ficarás saciado; ou melhor, estarás sempre saciado, e nunca te saciarás. Se eu disser, com efeito, que não ficarás saciado, haverá fome; se disser que estarás saciado, temo o fastio. Onde não haverá fastio nem fome, não sei o que dizer. Deus tem, no entanto, o que oferecer àqueles que não encontram modo de exprimir-se, mas creem que haverão de recebê-lo. HOMILIA 4 João, a testemunha, não é o Salvador (Jo 1,19-33) João recebeu a missão de mostrar Cristo 1 A vossa santidade ouviu muito amiúde, e sabe muito bem, que quanto mais ilustre era João Batista entre os nascidos de mulher, e quanto mais humilde no reconhecimento do Senhor, tanto mais mereceu ser amigo do Esposo, ao zelar pelo Esposo, não por si mesmo, ao não procurar sua própria honra, mas a do seu Juiz, a quem precedia como arauto. Aos profetas precedentes, fora concedido predizer os acontecimentos futuros a respeito de Cristo; a este, porém, mostrá-l’O com o dedo. Assim, pois, como Cristo era ignorado, antes de Sua vinda, por aqueles que não acreditaram nos profetas, era, do mesmo modo, ignorado por eles, ainda que estivesse presente. Cristo viera, primeiramente, oculto e humilde; tanto mais oculto, quanto mais humilde. Os povos, porém, menosprezando por sua soberba a humildade de Deus, crucificaram o seu Salvador e O transformaram em seu Condenador. A primeira e a segunda vinda de Cristo 2 Aquele que veio primeiramente oculto, por ter vindo humilde, não há de vir depois manifestamente, por vir em Sua grandeza? Há pouco, ouvistes o salmo: “Deus virá manifestamente, e nosso Deus não calará”.³ ⁷ Calou-Se, para ser julgado, mas não ficará calado quando começar a julgar. O salmo não diria que virá manifestamente, se primeiro não houvesse dito que veio de modo oculto. Nem diria que não calará, a não ser porque primeiro calou. Como calou? Pergunta a Isaías: “Tal como cordeiro, foi levado para o matadouro; como ovelha muda diante do tosquiador, não abriu a boca”.³ ⁸ Mas há de vir manifestamente, e não calará. Como virá de maneira manifesta? “À Sua frente, irá um fogo devorador e, ao Seu redor, tempestade violenta”.³ A tempestade tem de remover da eira toda a palha que agora é triturada; e o fogo há de queimar o que a tempestade tiver removido. Ele guarda silêncio, agora; cala no juízo, mas não cala no preceito. Se Cristo cala, o que significam estes Evangelhos? O que querem dizer as palavras apostólicas, os cânticos dos salmos, os vaticínios dos profetas? Em todas essas coisas, pois, Cristo não cala. Cala-Se agora, porém, porque não castiga, mas não como se não advertisse. Virá cheio de glória para castigar, e manifestar-Se-á a todos, também aos que n’Ele não creem. Por ora, mesmo presente, estava oculto, convinha que fosse desprezado. Se não fosse desprezado, não seria crucificado; se não fosse crucificado, não derramaria o Sangue, o preço com que nos remiu. Para pagar por nós o preço, foi crucificado; para ser crucificado, foi desprezado; para ser desprezado, apareceu humilde. João confessa não ser o Cristo 3 Haja vista ter aparecido, porém, como que à noite, em um corpo mortal; acendeu-Se uma lâmpada para que fosse visto. Essa lâmpada era João, a cujo respeito já ouvistes muitas coisas. A presente leitura do Evangelho contém palavras de João que, em primeiro lugar, – e isso é o mais importante – confessa que não era o Cristo. Tão grande excelência havia, por outro lado, em João, que bem se podia acreditar fosse o Cristo. A humildade dele foi comprovada precisamente por ter dito que não o era, embora se pudesse acreditar que fosse. E, portanto, “Este foi o testemunho de João, quando os judeus enviaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para o interrogarem: Quem és tu?” Eles não teriam enviado essa delegação, a menos que se sentissem impressionados pela excelência da autoridade de João, por ter ele ousado batizar. E “ele confessou, e não negou”. O que confessou ele? “Confessou: Eu não sou o Cristo”.³⁷ Cristo, a pedra deslocada do monte 4 “Perguntaram-lhe: Quem és, então? És tu Elias?” Sabiam eles que Elias havia de preceder a Cristo. O nome de Cristo não era, pois, desconhecido para quem quer que fosse entre os judeus. Não acreditaram, porém, que aquele Jesus fosse o Cristo; nem por isso deixaram absolutamente de crer que viria. Esperando que houvesse de vir, toparam com Ele, já presente; toparam como que numa pequena pedra. Aquela pedra era ainda pequena, mas já fora deslocada do monte, por certo, sem auxílio de mãos humanas, conforme diz o profeta Daniel: “Vira o rei uma pedra cortada do monte, sem ser tocada por mão alguma.” E o que segue? “A pedra cresceu – diz – e transformou-se numa enorme montanha que cobriu a inteira face da terra”.³⁷¹ Veja a vossa caridade, por conseguinte, o que digo: Cristo presente entre os judeus já fora destacado do monte. Esse monte quer significar o reino dos judeus. O reino dos judeus, porém, não enchera a inteira face da terra. Dali fora separada aquela pedra, pois o Senhor nasceu ali em nossos dias. E por que, diz o profeta, a pedra foi cortada sem auxílio de mãos? Porque uma Virgem deu à luz Cristo, sem concurso de varão.³⁷² Essa pedra já fora cortada, sem o concurso de mãos humanas, à vista dos judeus; mas era humilde, e não sem razão. Ainda não havia crescido, pois, nem enchia toda a face da terra; isso mostra no Seu reino, que é a Igreja, a qual encheu toda a face da terra. Porque ainda não havia crescido, todavia, os judeus foram de encontro a ela, como se vai ao encontro de uma pedra. Verificou-se neles o que está escrito: “Aquele que cair sobre essa pedra vai quebrar-se todo, e aqueles sobre quem ela cair, ela os esmagará”.³⁷³ Caíram, primeiramente, sobre a pedra humilde; elevada, há de vir sobre eles. Antes de esmagá-los, porém, quando vier cheia de majestade, quebrou-os, sendo ainda humilde. Foram de encontro a ela, e quebraram-se. Não ficaram esmagados, mas quebrados. Virá excelsa, e então haverá de esmagá-los. Os judeus tropeçaram contra a pedra que ainda não crescera e, por isso, são passíveis de desculpa. O que dizer, porém, daqueles que tropeçaram contra o próprio monte? Já percebeis a respeito de quem falo.³⁷⁴ Aqueles que negam a Igreja, já difundida por toda a terra, não tropeçam diante de uma humilde pedra, mas no próprio monte em que aquela pedra se transformou, crescendo progressivamente. Os cegos judeus não viram a humilde pedra; que grande cegueira é, porém, não ver o monte! João Batista e Elias 5 Viram, portanto, os judeus ao Senhor em Seu estado de humildade, e não O reconheceram. Ele Se lhes manifestava por uma lâmpada. Pois esse homem – maior do que o qual “entre os nascidos de mulher não surgira nenhum”³⁷⁵ – disse em primeiro lugar: “Eu não sou o Cristo”. Perguntaram-lhe: “És Elias? E ele respondeu: Eu não o sou”.³⁷ Na verdade, Cristo envia Elias diante de Si. Mas João disse: “Eu não o sou” e, com isso, suscitou uma dificuldade para nós. Com efeito, há de temer-se que, ao não compreenderem bem, pensem algunsque João teria dito o contrário do que disse Cristo. Lemos, com efeito, noutra passagem, que falando o Senhor Jesus certas coisas de Si mesmo no Evangelho, “os Seus discípulos perguntaram-Lhe: Por que razão os escribas, isto é, os peritos da Lei, dizem que é preciso que Elias venha primeiro? E o Senhor lhes disse: Elias já veio… e fizeram com ele tudo quanto quiseram”.³⁷⁷ “Se quereis saber quem é ele, ficai sabendo que Elias é João Batista”.³⁷⁸ O Senhor Jesus Cristo disse que Elias já veio, e que ele é João Batista. João, por sua vez, tendo sido interrogado, confessou não ser Elias, do mesmo modo como já confessara não ser, tampouco, o Cristo. Tal como declarou a verdade, por certo, ao dizer não ser o Cristo, declarou-a também, dizendo não ser Elias. Como, pois, concordar entre si as palavras do arauto com as do Juiz? Não vamos pensar que o arauto minta, pois fala o que ouve do Juiz. Por que, então, declara: “Eu não sou Elias”, enquanto o Senhor afirma: “Ele é Elias”? É que o Senhor Jesus Cristo quis prefigurar nele o Seu futuro advento, e dizer que João viera com o espírito de Elias. O que era João com respeito à Sua primeira vinda, Elias o será com respeito à segunda. Assim como há duas vindas do Juiz, também há dois pregoeiros. O Juiz é, sem dúvida, Ele mesmo, mas dois são os Seus pregoeiros, e não dois juízes. Com efeito, era preciso que viesse o Juiz, primeiramente, para ser julgado. Jesus enviou diante de Si o primeiro precursor e chamou-o de Elias, porque Elias será, na segunda vinda, o que foi João na primeira. Ainda o confronto entre João Batista e Elias 6 Atente, agora, a vossa caridade para a tão grande verdade que eu digo. Quando João foi concebido, ou melhor, quando nasceu, o Espírito Santo profetizou a respeito daquele homem o que havia de realizar: “Ele caminhará à frente do Altíssimo, com o espírito e o poder de Elias”.³⁷ Logo, não era Elias, ele mesmo, mas caminharia “com o espírito e o poder de Elias”. O que é: “com o espírito e o poder de Elias”? No mesmo Espírito Santo, fazendo as vezes de Elias. E por que fazendo as vezes de Elias? Porque o que Elias deverá ser na segunda vinda, João o foi na primeira. Portanto, João respondeu corretamente, no sentido próprio da palavra. O Senhor fala, pois, em sentido figurado: “Elias é João”; mas João, como eu disse, em sentido próprio: “Eu não sou Elias”. Se considerares a figura da precedência, João é Elias, visto que aquilo que o primeiro foi, na primeira vinda de Cristo, o segundo, isto é, Elias, será na segunda vinda. Se perguntares, contudo, em sentido pessoal e próprio, João é João, e Elias é Elias. O Senhor afirma, pois, corretamente, pensando na prefiguração: “Ele é Elias”, enquanto João diz, com igual retidão, falando em sentido próprio: “Eu não sou Elias”. Não foi falso João, nem o foi o Senhor; não foi falso o arauto, nem o Juiz: mas hás de entendê-lo bem. Quem o entenderá, porém? Aquele que tiver imitado a humildade do arauto e reconhecido a grandeza do Juiz. Na verdade, ninguém foi mais humilde do que o arauto. Meus irmãos, João jamais teve tão grande mérito como o que lhe veio desse ato de humildade, porque, tendo podido enganar os homens e passar por Cristo, e ser considerado Cristo – tão grande era a sua graça, tão magnífica sua excelência! –, ele confessou claramente, todavia, e disse: “Eu não sou o Cristo!” “Acaso és Elias?” Se ele dissesse: Eu sou Elias, daria a entender que Cristo estaria vindo já, em Sua segunda vinda, para julgar; e não ainda na primeira, para ser julgado. Assim, como que dizendo que Elias também estava para vir, respondeu: “Eu não sou Elias”. Mas considerai o Cristo humilde, ante O qual veio João, para não sentirdes o peso do Cristo elevado, ante O qual deverá vir Elias; pois o Senhor também acrescentou: “Ele é João Batista que deve vir”. Veio João Batista em prefiguração do que, propriamente, será Elias em sua vinda. Então, Elias será Elias, no sentido próprio, o que agora é João Batista por semelhança. Mas agora, João é João, no sentido próprio, e Elias, por semelhança. Por ora, João é, em sentido próprio, João; mas, por semelhança, Elias. Ambos os arautos partilham mutuamente suas semelhanças, a guardaram suas propriedades. Há, porém, um só Senhor e Juiz, quer Lhe vá adiante um arauto, quer outro. “Eu sou a voz que clama no deserto” 7 “Perguntaram-lhe: Quem és, então? – És tu Elias? Disse ele: – Não o sou. – És o profeta? – Não! Disseram então: – Quem és, para darmos uma resposta aos que nos enviaram? Que dizes de ti mesmo? Disse ele: – Sou a voz do que clama no deserto”.³⁸ Isaías disse aquilo. Essa profecia cumpriu- se em João. “Sou a voz do que clama no deserto”. Do que clama o quê? – “Aplanai o caminho do Senhor, fazei retas as sendas do nosso Deus”.³⁸¹ Não vos parece ser próprio do arauto dizer: – Afastai-vos e dai passagem? Enquanto um arauto diz: Afastai-vos!, João diz: “Vinde!” O arauto afasta do juiz, João chama para junto do Juiz; ou antes: João chama para junto do Cristo humilde, para que não se tenha de sentir a severidade do Juiz excelso. “Sou a voz do que clama no deserto: Aplanai o caminho do Senhor, como disse o profeta Isaías”. Ele não disse: Sou João, sou Elias, sou um profeta. Mas o que disse ele? Chamo-me assim: “A voz do que clama no deserto: Aplanai o caminho do Senhor”. Eu sou a própria profecia. “Ele é mais do que um profeta” 8 “Os que tinham sido enviados, eram dos fariseus”, isto é, aqueles principais dentre os judeus. “Interrogaram-no ainda, e disseram: Por que, então, batizas, se não és o Cristo, nem Elias, nem o profeta?”.³⁸² Como o ato de batizar lhes parecesse uma ousadia, era como se lhe perguntassem: Em nome de quem o fazes? Perguntamos se tu és o Cristo, e dizes que não és. Perguntamos se acaso és o precursor d’Ele, porque sabemos que Elias há de vir antes da vinda de Cristo, e igualmente o negas. Perguntamos se és, quem sabe, algum arauto que há de vir à Sua frente com muita antecedência, isto é, um profeta, e se terias recebido este poder, e respondes que tampouco és um profeta. João não era, pois, um profeta: era mais do que um profeta! O Senhor deu a respeito dele este testemunho: “Que foste ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento?”.³⁸³ Está subentendido, sem dúvida, que não era agitado pelo vento; pois João não era isso, como um que fosse movido pelo vento. Sopra por todas as partes, pois, ao redor de quem é movido pelo vento, um espírito de sedução. “Mas que fostes ver no deserto? Um homem vestido de roupas finas?”.³⁸⁴ João vestia-se de roupas de tecidos ásperos, isto é, de uma túnica feita de pelos de camelo. “Mas os que se vestem de roupas finas vivem nos palácios dos reis”. Logo, não saístes a ver um homem vestido de roupas finas. “Então, o que fostes ver? Um profeta? Eu vos afirmo que sim, e mais do que um profeta”,³⁸⁵ porque os profetas prenunciaram com muita antecedência Aquele a quem João anunciava presente. “Não sou digno de desatar a correia de Suas sandálias” 9 “Perguntaram-lhe ainda: E por que batizas então, se não és o Cristo, nem Elias, nem o profeta? João lhes respondeu, dizendo: Eu batizo com água, mas, no meio de vós está quem vós não conheceis”.³⁸ O Humilde não era visto e, por isso, foi acesa uma lâmpada. Vede como cede o lugar quem se podia fazer passar pelo que não era. “Aquele que vem depois de mim, que foi feito antes de mim”, – isto é, como já dissemos – que foi anteposto a mim “e do qual não sou digno de desatar a correia das sandálias…”.³⁸⁷ Quanto se rebaixa! Por isso, foi muito exaltado, já que “quem se humilha, será exaltado”.³⁸⁸ A vossa santidade, por conseguinte, deve ver, por ter-se João humilhado a ponto de dizer: “não sou digno de desatar a correia”, como têm de humilhar-se aqueles que dizem: Nós é que batizamos, nós damos do que é nosso, e o que é nosso é santo.³⁸ João diz: Não eu, mas Ele! Esses outros, ao contrário, dizem: Nós! João não é digno de desatar a correia das sandálias de Jesus. E se dissesse ser digno disso, quão humilde não seria, ainda assim? Por mais que se declarasse digno e houvessedito estas palavras: “Após mim, há de vir Alguém que foi feito antes de mim, de quem sou digno apenas de desatar a correia das sandálias”, muito se teria humilhado. Quando, porém, nem mesmo disso se julgou digno, verdadeiramente cheio do Espírito Santo estava ele que, como servo, assim reconheceu o seu Senhor e mereceu passar da condição de servo à de amigo. “Eis o Cordeiro de Deus!” 10 “Isso se passou em Betânia, do outro lado do Jordão, onde João batizava. No dia seguinte, ele vê Jesus aproximar-Se, e diz: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”.³ Que ninguém se arrogue tal poder, que ninguém diga que pode tirar, por si mesmo, o pecado do mundo. Atentai já para os orgulhosos contra os quais apontava João o seu dedo. Os hereges ainda não haviam nascido e eram já apontados. Clamava contra eles João, lá das margens do rio, e contra eles mesmos clama agora do Evangelho. Jesus vem, e o que diz João? “Eis o Cordeiro de Deus!” Se o cordeiro é inocente, João é também cordeiro. Ou não era também ele inocente? Mas quem é inocente? E até que ponto? Todos provêm daquela mergulhia e daquela propagem, acerca da qual canta Davi, gemendo: “Fui concebido na iniquidade e, em pecados, já me concebeu minha mãe”.³ ¹ Logo, só pode ser Cordeiro Aquele que não veio ao mundo dessa forma. Jesus não foi concebido na iniquidade, porque não foi concebido da mortalidade. E Sua mãe não concebeu em pecados Aquele a quem concebeu sendo virgem e, permanecendo virgem, deu à luz, visto que ela O concebeu pela fé e, pela fé, O recebeu. “Eis o Cordeiro de Deus!” Ele não possui o mergulhão de Adão. De Adão, só tomou a carne, não o pecado. O que não assumiu o pecado da nossa massa é, precisamente, quem destrói o nosso pecado. “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”! “Eis o que tira o pecado do mundo” 11 Sabeis que certos homens³ ² dizem, por vezes: “Nós, que somos santos, tiramos os pecados dos homens. Pois, se quem batiza não for santo, como tira o pecado do outro, já que ele próprio é um homem cheio de pecado?” Contra tais disputas, não digamos palavras nossas. Leiamos o que diz este: “Eis o Cordeiro de Deus, eis o que tira o pecado do mundo”. Que os homens não presumam de outros homens. Que o pássaro não fuja para os montes, mas confie no Senhor.³ ³ E ao levantar os olhos para os montes, de onde o auxílio lhe deve vir, saiba que esse auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra.³ ⁴ João era dotado de suma excelência. Quando, entretanto, se lhe diz: “És o Cristo? Ele responde: Não! És Elias? Responde: Não! És um profeta? Responde: Não! – Por que batizas então? Diz ele: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. D’Ele é que eu disse: Depois de mim, vem um homem que passou adiante de mim, porque existia antes de mim”.³ ⁵ Vem depois de mim, porque nasceu depois de mim. Passou adiante de mim, porque Se me antepôs. Existia antes de mim, porque “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus”.³ O porquê do batismo dado por João 12 João disse: “Eu não O conhecia, mas, para que Ele fosse manifestado a Israel, vim batizar com água. E João deu testemunho, dizendo: Vi o Espírito descer do céu como uma pomba e permanecer sobre Ele. Eu não O conhecia, mas Aquele que me enviou para batizar com água, disse-me: Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer é que batiza no Espírito Santo. E eu vi e atesto que ele é o Filho de Deus”.³ ⁷ Preste a vossa caridade um pouco de atenção. Quando João conheceu a Cristo? Ele fora enviado para batizar com água. Foi-lhe perguntado o motivo, e respondeu: “Para que Ele fosse manifestado a Israel”.³ ⁸ Para que serviu o batismo de João? Meus irmãos, se o batismo de João teve alguma utilidade, até hoje subsistiria, os homens se continuariam a batizar com o batismo de João e, só depois, viriam ao batismo de Cristo. Mas o que diz João? “Para que Ele fosse manifestado a Israel”. Em suma, João veio batizar com água, para que Cristo fosse manifestado ao próprio Israel, ou seja, ao povo de Israel. João recebeu o ministério de batizar com água de penitência para preparar o caminho ao Senhor, que ainda não Se manifestara. Desde o momento, porém, em que o Senhor foi conhecido, já se tornara supérfluo preparar- Lhe o caminho, porque Ele mesmo Se tornou Caminho para os que O conheciam. Por isso, o batismo de João não perdurou por muito tempo. Como Se manifestou o Senhor? Humilde, a fim de que, por isso, João recebesse o batismo no qual o próprio Senhor seria batizado. Razão pela qual Cristo quis ser batizado por João 13 Era necessário que Cristo fosse batizado? Perguntando-me a mim mesmo, logo respondo: E havia necessidade de que o Senhor nascesse? De que fosse crucificado? De que morresse? De que fosse sepultado? Se Ele assumiu por nós tão grande humilhação, por que não haveria de receber o batismo? E de que serviu ter recebido Ele o batismo do servo? Recebeu-o para que tu não desdenhasses receber o batismo do Senhor. Preste atenção a vossa caridade! Deveria haver, na Igreja, alguns catecúmenos dotados de graça mais elevada. Com efeito, acontece, por vezes, que se encontre um catecúmeno que se abstenha de todo comércio carnal, renuncie ao mundo e a todos os bens que possuía, distribuindo-os aos pobres. É apenas um catecúmeno, mas, talvez, mais instruído do que muitos fiéis na doutrina salutar. É de se recear que este diga consigo mesmo, a respeito do santo batismo por meio do qual se perdoam os pecados: – Que mais tenho eu a receber? Eis que sou melhor do que este ou aquele fiel! Ele pensa nos fiéis casados, ou nos de pouca instrução, ou naqueles que guardam as suas fortunas, coisas que ele próprio já distribuiu aos pobres, e, julgando-se melhor do que quem já foi batizado, desdenha apresentar-se ao batismo, dizendo: – O que estou para receber é o que já tem este ou aquele. Só pensa naqueles que despreza, desgosta-lhe, por assim dizer, receber o que receberam os que ele, por já se considerar superior, tem na conta de inferiores a si; não obstante, todos os pecados estão sobre ele e, a menos que venha ao batismo salutar, em que se perdoam os pecados, apesar de toda a sua excelência, não pode entrar no Reino dos céus. Foi justamente para convidar essa excelência a Seu batismo, a fim de que se lhe perdoassem os pecados, que o próprio Senhor veio ao batismo de Seu servo. Conquanto o Senhor mesmo não tivesse algo que se Lhe devesse perdoar, nem algo que n’Ele se devesse lavar, recebeu o batismo das mãos do servo. É como se falasse a um filho orgulhoso, que a si mesmo se incha e, talvez, faça pouco de receber com os simples aquilo de que lhe pode vir a salvação; e lhe dissesse: Até onde se ergue teu orgulho? Quanto te exaltas? Quão grande é a tua excelência? Será maior do que a minha? Se eu vim ao servo, tu desdenhas vir ao Senhor? Se eu recebi o batismo de um servo, tu desdenhas ser batizado pelo Senhor? Por que foram muitos os que receberam o batismo de João 14 Para que vos deis conta, meus irmãos, de que o Senhor não vinha a João por estar atado a qualquer vínculo de pecado, ao acercar-Se Jesus de João, para ser batizado, – conforme dizem outros evangelistas – este último exclamou: “Tu vens a mim? Eu é que devo ser batizado por ti”. E o que lhe respondeu o Senhor? “Deixa estar por enquanto, pois assim nos convém cumprir toda a justiça”.³ O que significa: “Cumprir toda a justiça”? – Vim para morrer pelos homens e recusar-me-ei a ser batizado por eles? O que significa, pois: “Cumprir toda justiça”? – Cumprir toda a humildade. O quê? Não haveria de receber o batismo de um servo bom Aquele que sofreu a paixão das mãos de servos maus? Atentai, pois! Se João batizou unicamente para que, no batismo dele, o Senhor mostrasse a humildade; depois de batizado o Senhor, ninguém mais seria batizado com o batismo de João? Ora, muitos foram batizados com o batismo de João. O Senhor foi batizado com o batismo de João, e o batismo de João cessou. João foi, em seguida, encerrado no cárcere e, daí em diante, não se acha mais quem tenha sido batizadocom o seu batismo. Se, portanto, João veio batizar para que a humildade do Senhor nos fosse manifestada, a fim de que nós não desdenhássemos receber o batismo do Senhor, visto que Ele recebeu o de um servo, João não deveria ter batizado somente o Senhor? Ora, se João não tivesse batizado senão o Senhor, não faltaria quem pensasse que o batismo de João teria sido mais santo do que o de Cristo, visto que só Cristo teria merecido ser batizado com o batismo de João, enquanto todo o gênero humano o seria com o batismo de Cristo. Que a vossa caridade preste atenção! Nós fomos batizados com o batismo de Cristo, e não somente nós, mas o mundo todo, e até o fim dos tempos se continuará a batizar. Quem dentre nós pode, de algum modo, ser comparado a Cristo, de cujas sandálias João declarava não ser digno de desatar a correia? Se, pois, aquele Cristo de tão grande excelência, o homem Deus, tivesse sido o único a ser batizado com o batismo de João, o que haveriam de dizer os homens? Que tipo de batismo é esse que teve João? Um grande batismo ele teve, um sacramento inefável! Vê que só o Cristo mereceu ser batizado com o batismo de João! Assim, o batismo do servo pareceria ser maior que o do Senhor. Outros, todavia, foram batizados também com o batismo de João, para que o batismo de João não parecesse melhor do que o de Cristo. O Senhor foi, por Sua vez, batizado também, a fim de que, tendo recebido Ele o batismo de um servo, os outros servos não desdenhassem receber o batismo do Senhor. Eis por que João fora enviado. Uma dificuldade: em que momento conheceu João ao Senhor? 15 Será que João conhecia o Senhor, ou não O conhecia? Se não O conhecia, por que dizia, quando Cristo veio até o rio, “Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti”?⁴ Em outros termos: Eu sei quem és. Se, pois, ele já O conhecia, é certo que O reconheceu no momento em que viu descer a pomba sobre Ele. E é evidente que a pomba não desceu sobre o Senhor, senão depois que Ele saiu da água do batismo. O Senhor, tendo sido batizado, saiu da água, os céus abriram-se e João viu a pomba sobre Ele. Se a pomba desceu depois do batismo, e se foi antes de batizar-Se o Senhor que João Lhe disse: “Tu vens a mim? Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti”, é porque já conhecia aquele a quem disse: “Tu vens a mim? Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti”. Ora, nesse caso, como disse ele então: “Eu não O conhecia, mas Aquele que me enviou para batizar com água disse-me: Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer é que batiza no Espírito Santo”?⁴ ¹ Não se trata de pequena questão, meus irmãos! Se o vistes, não vistes pouco. Resta que dela o Senhor nos dê a solução. Repito-o, no entanto, se vistes a questão, não é pouca coisa. Eis que João está posto aí, diante de vossos olhos; João Batista está de pé, à margem do rio. Eis que vem o Senhor para receber o batismo, ainda não fora batizado. Ouve a voz de João: “Tu vens a mim, e sou eu que tenho necessidade de ser batizado por ti”. Logo, ele já conhecia o Senhor, por quem deseja ser batizado. Uma vez batizado o Senhor, Ele sai da água, os céus abriram-se e o Espírito desce; nesse momento, João O conhece. Mas, se agora O conhece, por que disse antes: “Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti”? E se não é só então que O conhece, visto que já O conhecia, o que significa que tenha dito: “Eu não O conhecia, mas Aquele que me enviou para batizar com água, disse: Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, é que batiza no Espírito Santo”? Advertência final 16 Não duvido de que vos há de resultar pesado, irmãos, se essa questão for resolvida hoje, porque muitas coisas já foram ditas. Que saibais, entretanto, ser ela de tal monta, que, sozinha, bastaria para destruir a seita de Donato. Eis por que o disse à vossa caridade: para tornar-vos atentos, tal como é meu costume. Ao mesmo tempo, para que oreis por nós e por vós; para que o Senhor nos conceda dizer coisas dignas, e vós as mereçais compreender. Dignai-vos, entretanto, diferi-lo por hoje. Enquanto não se solucionar a questão, digo-vos brevemente o seguinte: interrogai de modo pacífico, sem rixa nem contenda, sem discussões nem inimizades. Consultai-vos entre vós e perguntai aos outros, dizendo: Nosso bispo propôs-nos hoje esta questão, havendo de resolvê-la algum dia, se o Senhor o conceder. Quer se resolva, quer não, sabei que propus uma questão que me preocupa; estou, com efeito, deveras preocupado. Disse João: “Sou eu que tenho necessidade de ser batizado por ti”, como se conhecesse a Cristo; de fato, se não conhecesse aquele por quem queria ser batizado, seria temerário dizer: “Sou eu que tenho necessidade de ser batizado por ti”. Ele O conhecia, portanto. Mas, se O conhecia, o que significa o que segue: “Eu não O conhecia, mas Aquele que me enviou para batizar com água, disse-me: Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer é que batiza no Espírito Santo”?⁴ ² Que diremos? Que não sabemos quando terá vindo a pomba? Para que não se refugiem nesse texto, leiam-se os outros evangelistas, que o narraram com mais precisão. Encontraremos, afirmado muito claramente, que a pomba desceu no momento em que o Senhor saiu da água. Abriram-se os céus, efetivamente, acima d’Ele que acabava de ser batizado, e João viu o Espírito descer.⁴ ³ Se ele não O conheceu senão depois de batizado, como é que diz a quem chegava para receber o batismo: “Sou eu que tenho necessidade de ser batizado por ti”? Ruminai convosco, por ora, essa questão; conferenciai entre vós mesmos, tratai-a juntos. Que o Senhor nosso Deus Se digne revelar a solução primeiro a alguém dentre vós, antes que a ouçais de mim. Sabei, não obstante, irmãos, que, por meio da solução desta questão, a seita de Donato, mesmo se ainda demonstrar audácia, já não terá absolutamente uma palavra a dizer acerca da graça do batismo, no tocante à qual lançam névoas sobre os ignorantes e armam redes às aves em voo: suas bocas fechar-se-ão de todo. HOMILIA 5 A testemunha reconhece o Salvador (Jo 1,33) Vem de Deus o que o homem possui de verdade 1 Como quis o Senhor, chegamos ao dia de minha promessa. O Senhor também dará que ao cumprimento dessa mesma promessa possamos chegar. Ora, aquilo que dizemos, pois, caso seja útil tanto para nós como para vós, d’Ele provém; o que procede do homem, pelo contrário, são mentiras. Foi o que disse nosso próprio Senhor Jesus Cristo: “Quem fala mentira, fala do que lhe é próprio”.⁴ ⁴ Ninguém possui de si mesmo, a não ser mentira e pecado. Se, no entanto, o homem tiver alguma parcela de verdade e de justiça, isso brota daquela fonte da qual, neste deserto, devemos ter sede, a fim de que, aspergidos como que por certas gotas suas e reconfortados, por ora, durante o tempo desta peregrinação, não desfaleçamos pelo caminho e possamos chegar ao Seu descanso e à Sua saciedade. Se “quem profere a mentira fala do que lhe é próprio”, quem profere a verdade fala do que é de Deus. João é veraz. A verdade é Cristo. João é veraz, mas todo aquele que é veraz só o é em virtude da verdade. Se, portanto, João é veraz, e não pode ser veraz o homem a não ser em virtude da verdade, de quem veio a João que fosse veraz, a não ser d’Aquele que disse: “Eu sou a Verdade”?⁴ ⁵ Em consequência, a verdade não poderia falar contra o veraz; nem o veraz contra a verdade. A verdade é quem enviou o veraz. E o veraz o era precisamente por isso, a saber, por ter sido enviado pela verdade. Se a verdade enviara João, Cristo o enviara. Mas o Pai faz o que faz Cristo com o Pai; assim como Cristo faz o que faz o Pai com Cristo. O Pai nada realiza separado, sem o Filho; nem o Filho realiza algo sozinho, sem o Pai. Inseparável é a caridade, inseparável a unidade, inseparável a majestade, inseparável a potestade, segundo aquelas palavras que Ele próprio afirmou: “Eu e o Pai somos um”.⁴ Quem, pois, enviou João? Se dissermos que foi o Pai, diremos a verdade. Se dissermos que foi o Filho, diremos a verdade. Mais claro será, porém, que digamos: o Pai e o Filho.Um único Deus enviou aquele que foi enviado pelo Pai e o Filho, porque o Filho disse: “Eu e o Pai somos um”. Como não havia João de conhecer Aquele por quem foi enviado? Pois, efetivamente disse: “Eu não O conhecia, mas Aquele que me enviou para batizar com água, disse-me…”.⁴ ⁷ Pergunto a João: O que te disse Aquele que te enviou a batizar com água? – “Aquele sobre quem vires o Espírito Santo descer e permanecer é que batiza no Espírito Santo”. Isso te disse, ó João, quem te enviou? – Claro que sim! – E quem te enviou então? – Talvez o Pai. O Pai é verdadeiro Deus, e Deus Filho é a Verdade. Se o Pai te enviou sem o Filho, Deus te enviou sem a verdade. Mas se és veraz precisamente porque falas a verdade e em virtude da verdade, o Pai não te enviou sem o Filho, enviaram-te juntamente o Pai e o Filho! Se, com o Pai, o Filho te enviou, como é que não conhecias Aquele por quem foste enviado? Aquele que tu viras na Verdade é o mesmo que te enviou para que Ele fosse reconhecido na carne, e disse: “Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer é que batiza no Espírito Santo”.⁴ ⁸ João, sob um aspecto, conhecia o Senhor; sob outro aspecto, não 2 Ouviu João essas palavras para conhecer a quem não conhecia, ou para que com mais plenitude conhecesse a quem já conhecia? Se João não tivesse conhecimento algum de Cristo, não poderia ter dito a quem Se acercava do rio para ser batizado: “Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti, e tu vens a mim?”.⁴ Ele O conhecia, portanto. Quando, porém, desceu a pomba? Foi depois que o Senhor tinha sido já batizado, ao sair Ele da água. E se Aquele que o enviou é o mesmo que disse: “Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer é que batiza, no Espírito Santo”,⁴¹ e João não O conhecia, mas O conheceu ao descer a pomba – o que se deu quando o Senhor saiu da água – e, por outro lado, João reconhecera o Senhor quando vinha até ele, junto à água, demonstra-se claramente para nós que João já conhecia o Senhor sob algum aspecto e, sob outro, não O conhecia ainda. Se não entendermos as coisas desse modo, João era mentiroso. Como pode ter sido veraz ao reconhecê-l’O, quando disse: “Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a mim?”.⁴¹¹ Ele é veraz quando diz isso? E como ele é veraz, também, quando diz: “Eu não O conhecia, mas Aquele que me enviou para batizar com água, disse-me: Aquele sobre quem vires o Espírito Santo descer e permanecer é que batiza no Espírito Santo”?⁴¹² O Senhor deu-Se a conhecer por meio da pomba, não a quem O desconhecia totalmente, mas a quem conhecia n’Ele algo, e desconhecia algo. Cabe-nos, portanto, indagar o que João ainda desconhecia n’Ele, tendo-o conhecido por meio da pomba. Razão pela qual João foi enviado a batizar 3 Por que foi João enviado a batizar? Lembro-me de já tê-lo dito à vossa caridade, conforme me foi possível. Caso o batismo de João fosse necessário à nossa salvação, deveria ser ministrado ainda hoje, pois não se pode conceber que os homens não sejam salvos atualmente, nem que não o sejam agora em maior número, nem que a salvação fosse outrora uma, e agora outra. Se Cristo mudou, a salvação também teria mudado. Ora, se a salvação está em Cristo, e Cristo é sempre o mesmo,⁴¹³ nossa salvação é sempre a mesma. Mas por que foi João enviado a batizar? Porque era preciso que Cristo fosse batizado! E por que era necessário que Cristo fosse batizado? Por que era preciso que Cristo nascesse? E fosse crucificado? Visto que veio para mostrar-nos o caminho da humildade e para tornar-Se, Ele mesmo, esse caminho de humildade, haveria de cumprir-se em tudo, por Ele, a humildade. Dignou-Se, por esse gesto, dar autoridade ao Seu batismo, de modo que os servos reconhecessem com que alegria deveriam acorrer ao batismo do Senhor, quando Ele próprio não desdenhou receber o batismo do servo. Tal batismo foi, de fato, concedido a João, para que fosse designado como batismo dele. O batismo de João, privilégio único 4 Que a vossa caridade preste atenção nisto, que o distinga e conheça. O batismo que João recebeu foi chamado “batismo de João”. Somente ele recebeu tal dom. A nenhum dos justos antes dele, a nenhum dos que vieram depois dele foi dado que recebesse um batismo que se designasse como batismo dele próprio. Por certo, recebeu João esse privilégio, pois, de si mesmo, nada podia fazer. E, se alguém fala por si mesmo, mente a seu respeito.⁴¹⁴ E de quem recebeu ele esse privilégio, a não ser do Senhor Jesus Cristo? Recebeu o poder de batizar d’Aquele mesmo a quem, logo mais, batizou. Não vos admireis disso. Cristo fez tal coisa em João, do mesmo modo como algo fez em Sua mãe. Com efeito, a respeito de Cristo foi dito: “Tudo foi feito por meio d’Ele”.⁴¹⁵ Se tudo foi feito por Ele, também foi feita por Ele Maria, da qual, mais tarde, Cristo nasceu. Preste atenção a vossa caridade! Assim como Cristo criou Maria e foi criado por meio de Maria, deu igualmente a João o poder de batizar e foi batizado por João. Por qual motivo Cristo não foi o único a receber o batismo de João? 5 Para isto, Cristo recebeu o batismo das mãos de João: para que, recebendo de um inferior o que era inferior, exortasse os inferiores a receberem o que era superior. Por que, então, não foi Ele o único a ser batizado por João, uma vez que este, por quem seria batizado Cristo, fora enviado para preparar o caminho do Senhor,⁴¹ isto é, do mesmo Cristo? A respeito disso, nós já dissemos algo, mas vamos recordá-lo porque a presente questão o exige. Se nosso Senhor Jesus Cristo fosse o único a ser batizado com o batismo de João... – guardai bem o que dizemos, de modo que o mundo não consiga arrancar de vossos corações o que o Espírito de Deus aí escreveu, que os espinhos das preocupações não possam sufocar a semente que foi semeada em vós.⁴¹⁷ Pois, por que somos obrigados a repetir as mesmas coisas, senão por não nos sentirmos seguros quanto à memória do vosso coração? – Se, portanto, o Senhor fosse o único a ser batizado com o batismo de João, não faltariam homens que o considerassem de tal modo, a ponto mesmo de pensarem que o batismo de João fosse superior ao batismo de Cristo. Diriam, com efeito: Esse batismo é a tal ponto superior, que unicamente Cristo mereceu ser com ele batizado. A fim de que se nos desse, por parte do Senhor, um exemplo de humildade, para que recebêssemos a salvação do batismo, Cristo recebeu o que não Lhe era necessário, mas necessário se fazia por nossa causa. Por outro lado, para que a esse batismo, que Cristo recebeu de João, não se desse a preferência em relação a Seu próprio batismo, a outras pessoas se permitiu que fossem igualmente batizadas por João. Aos que foram batizados por João, no entanto, isso não lhes bastou: foram batizados, pois, com o batismo de Cristo, uma vez que o batismo de Cristo não era o de João. Aqueles que recebem o batismo de Cristo não procuram o de João, mas aqueles que receberam o batismo de João procuraram o de Cristo. Bastou a Cristo, então, o batismo de João. E como não Lhe bastaria, se nem mesmo esse batismo Lhe era necessário? Nenhum batismo era necessário para Ele, mas para exortar-nos a receber Seu próprio batismo, Ele recebeu o batismo do servo. E para que o batismo do servo não fosse preferido ao do Senhor, outras pessoas foram batizadas com o batismo do seu companheiro de serviço. Os que foram batizados com o batismo do seu companheiro de serviço deviam fazer-se batizar com o batismo do Senhor; pelo contrário, os que são batizados com o batismo do Senhor não têm necessidade do batismo do companheiro. O Batismo do Senhor é unicamente do Senhor Deus 6 Ora, porquanto João recebera o poder de administrar um batismo, que se designaria propriamente como batismo de João, e o Senhor Jesus Cristo, por Sua vez, não quis dar Seu batismo a ninguém – não para que ninguém fosse batizado com o batismo do Senhor, mas para que o próprio Senhor fosse quem sempre batizasse –, segue-se daí que, também mediante os ministros, é o Senhor quem batiza; em outras palavras, o próprio Senhorhavia de batizar aqueles a quem os ministros do Senhor batizariam, e não eles. Com efeito, uma coisa é batizar em virtude de um ministério, outra é batizar em virtude de uma potestade. O batismo é tal qual é aquele em virtude de cuja potestade se administra, e não qual é aquele por cujo ministério se administra. O batismo de João era tal como era João: um batismo justo, procedente de um justo, batismo de um homem, não obstante; mas de um homem que havia recebido do Senhor essa graça – e graça tão grande! – de que fosse digno de caminhar à frente do Juiz, de mostrá-l’O com o dedo e de cumprir a palavra daquela profecia: “Voz do que clama no deserto, preparai o caminho do Senhor”.⁴¹⁸ Por outro lado, o batismo do Senhor é tal como é o Senhor; portanto, é divino o batismo do Senhor, porque o Senhor é Deus. Características do ministro do batismo 7 Nosso Senhor Jesus Cristo teria podido, se o quisesse, confiar a algum de Seus servos a potestade de batizar, como que, fazendo Suas vezes, teria podido transmitir o poder de batizar, constituí-l’O nalgum servo Seu e comunicar, ao batismo transferido ao servo, tanta eficácia como teria o batismo dado pelo Senhor. Mas não o quis, precisamente para que a esperança dos batizados estivesse n’Aquele por quem eles se reconheceriam batizados. Não quis, pois, que um servo pusesse sua esperança noutro servo. E, por isso, clamava o Apóstolo ao ver homens que pretendiam colocar sua esperança nele próprio: “Paulo terá sido crucificado em vosso favor? Ou fostes batizados em nome de Paulo?”.⁴¹ Paulo batizou, portanto, como ministro, não como a potestade mesma. O Senhor, porém, batizou como potestade. Atentai! Ele pôde dar essa potestade aos servos, mas não quis. Com efeito, se tivesse dado essa potestade aos servos, de maneira que fosse destes o que era do Senhor, tantos batismos haveria quantos servos. E assim como se diz: batismo de João, dir-se-ia igualmente: batismo de Pedro, batismo de Paulo, batismo de Tiago, batismo de Tomé, de Mateus, de Bartolomeu; pois aquele foi denominado batismo de João. Mas, talvez alguém ainda resista, dizendo: Prova-nos que aquele batismo era chamado “de João”. Prová-lo-ei, conforme o dizer da própria Verdade, quando perguntou aos judeus: “O batismo de João de onde era? Do céu ou dos homens?”.⁴² Assim, pois, para que não se dissesse que há tantos batismos quantos fossem os servos que batizassem, em virtude da potestade recebida do Senhor, o próprio Senhor reservou para Si a potestade de batizar; aos servos deu o ministério. O servo diz que batiza, e fala com correção, tal como fala o Apóstolo: “Batizei a casa de Estéfanas”,⁴²¹ mas como ministro. Eis por que, mesmo se o ministro for mau e lhe couber ter o ministério, – pode ser que os homens não o saibam, Deus, porém, o sabe – Deus, que Se reservou dita potestade, permite que se confira o batismo por meio dele. O que João não conhecia sobre o Senhor 8 Eis, pois, o que João não conhecia no Senhor. Sabia que Ele era o Senhor, sabia que deveria ser batizado por Ele. Confessou que o Senhor era a Verdade, e que ele próprio era veraz, enviado pela Verdade. Tudo isso ele sabia. O que, porém, não conhecia no Senhor? Que o Senhor havia de reservar-Se a potestade sobre Seu batismo, sem o transmitir nem o confiar a servo algum; e, quer batizasse ministerialmente um servo bom, quer batizasse ministerialmente um servo mau, quem fosse batizado havia de saber que não o batizava senão Aquele que Se reservou a potestade de batizar. E para que saibais, irmãos, ser bem isso o que João não conhecia no Senhor, e que ele o aprendeu pela pomba – pois conhecia o Senhor, mas ainda não sabia que Ele Se havia de reservar a potestade de batizar e não a havia de dar a servo algum – e, nesse sentido, disse: “Eu não O conhecia”. E para que saibais ter sido então que João adquiriu esse conhecimento, notai bem o que segue: “Mas Aquele que me enviou para batizar com água, disse- me: Aquele sobre quem vires o Espírito descer como pomba e permanecer, é Ele ...”.⁴²² Ele, quem? O Senhor. Mas ele já conhecia o Senhor! Suponde, pois, que João tenha dito apenas: “Eu não O conhecia, mas Aquele que me enviou batizar na água disse-me…” Procuremos o que disse Ele. Eis o que segue: “Aquele sobre quem vires o Espírito descer como pomba e permanecer...”. Não digo o que segue, prestai atenção por um momento: “sobre quem vires o Espírito descer como pomba e permanecer, é Ele...” Mas quem é Ele? O que me quis ensinar pela pomba Aquele que me enviou? Que Ele era o Senhor? Mas eu já conhecia Aquele por quem fora enviado, já conhecia Aquele a quem disse: “Tu vens a mim para seres batizado? Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti!”.⁴²³ Eu conhecia tão bem o Senhor, a ponto de querer ser batizado por Ele e não que fosse Ele por mim batizado. Ele disse-me então: “Deixa estar, por enquanto, pois assim nos convém cumprir toda a justiça”.⁴²⁴ Eu vim para sofrer, não viria para ser batizado? Que se cumpra toda a justiça – disse-me o meu Deus; que se cumpra toda a justiça, pois eu ensinarei a humildade, em toda sua plenitude. Sei que haverá orgulhosos, no meio do meu futuro povo; sei que haverá homens dotados de tão excelente graça que, quando virem que pessoas simples recebem o batismo, sentindo-se eles próprios superiores por sua continência, por suas esmolas ou por sua doutrina, talvez desdenhem receber o que receberam tais pessoas, consideradas por eles inferiores a si. É preciso que eu os cure, para que não desdenhem vir ao batismo do Senhor, porquanto vim, eu mesmo, ao batismo do servo. O que o Espírito Santo deu a conhecer a João 9 João já sabia tudo isso, e também conhecia o Senhor. O que lhe ensinou, pois, a pomba? O que lhe quis ensinar por meio da pomba, isto é, por meio do Espírito Santo que assim vinha, Aquele que o enviara e lhe diz: “Aquele sobre quem vires o Espírito descer como pomba e permanecer é Ele”?⁴²⁵ – Quem é Ele? – É o Senhor! Eu sei. – E, por acaso, já sabias que esse Senhor, tendo a potestade de batizar, não a havia de dar a servo algum, mas havia de reservá-la para Si, a fim de que todo o que se batiza pelo ministério de um servo, não o atribua ao servo, mas ao Senhor? Já o sabias, por acaso? – Não, não o sabia. E tanto é assim, que Ele me disse: “Aquele sobre quem vires o Espírito descer como pomba e permanecer é que batiza no Espírito Santo”. Ele não disse: “Esse é o Senhor”. Não disse: “É o Cristo”. Não disse: “É Deus”. Não disse: “É Jesus”. Não disse: “É o que nasceu da Virgem Maria, o que veio depois de ti e é anterior a ti”. Nada disso ensinou, porque João já o sabia. – Mas o que não sabia João? – Que o próprio Senhor havia de ter a tão grande potestade do batismo e que a havia de reservar para Si, quer enquanto estivesse presente na terra, quer quando Se ausentasse e estivesse no céu, quanto ao corpo, mas presente pela majestade; Ele havia, pois, de reservar-Se a potestade do batismo, para que Paulo não dissesse: “O meu batismo”, nem Pedro dissesse: “O meu batismo”. Vede, pois, e notai as palavras dos apóstolos. Nenhum dos apóstolos disse: “O meu batismo”. Ainda que fosse um só o Evangelho de todos, encontras, no entanto, que tenham dito: “O meu Evangelho”, mas não encontras que tenham dito: “O meu batismo”. Razão pela qual João aprendia da pomba 10 Foi isso, portanto, meus irmãos, que João aprendeu. E o que aprendeu pela pomba, aprendamo-lo nós também. Pois, não se concebe que a pomba tenha ensinado a João e que não ensine à Igreja, à qual foi dito: “Única é a minha pomba”.⁴² Que a pomba ensine à pomba… Que a pomba saiba o que João aprendeu por meio da pomba. O Espírito Santo desceu em forma de pomba. Mas isso que aprendia João na pomba, por que o aprendeu na pomba? Era preciso, certamente, que ele o aprendesse, e talvez fosse preciso que o aprendesse não de outro modo, senão através da pomba. O que direi sobre a pomba, meus irmãos? Ou quando me há de bastar a faculdade do coração ou da língua para dizê-lo tal como eu quero? E talvez não queira eu dizê-lo de modo tão digno como se háde dizer; e, se não posso dizê-lo como quero, quanto menos o poderei dizer como se deve? Quisera eu ouvi-lo de alguém melhor, não dizê-lo a vós. Não é para temer o ministério dos maus 11 João ficou conhecendo Aquele a quem já conhecia. Mas n’Ele aprendeu algo segundo o qual ainda não O conhecia. Não aprendeu aquilo segundo o qual já O conhecia. O que conhecia ele? O Senhor! O que não conhecia? Que a potestade do batismo do Senhor nunca seria transferida pelo Senhor a homem algum, mas o ministério, sim, seria transferido. Que a potestade não passaria do Senhor a mais ninguém; mas o ministério passaria tanto a bons, como a maus. Não fique a pomba horrorizada ante o ministério dos maus: considere a potestade do Senhor. Que mal te pode fazer um mau ministro, quando o Senhor é bom? Em que te pode prejudicar um malicioso arauto, se o juiz é benévolo? Eis aí o que João aprendeu por intermédio da pomba. O que aprendeu ele? Que ele mesmo no-lo repita: “Ele me disse, afirma, Aquele sobre quem vires o Espírito descer como pomba e permanecer é que batiza no Espírito Santo”. Não te enganem, ó pomba, os sedutores que dizem: “Nós é que batizamos”. Reconhece, pomba, o que a pomba te ensinou: “É Ele que batiza no Espírito Santo”. Pela pomba se aprende que é Ele, e tu pensas ser batizado pelo poder daquele por cujo ministério és batizado? Se assim pensas, ainda não estás no Corpo da pomba, e se não estás no Corpo da pomba, não admira que não tenhas simplicidade; pois a simplicidade é principalmente representada pela pomba. Malevolência dos donatistas 12 Meus irmãos, por que teria aprendido João, da simplicidade da pomba, que é Ele, Jesus, quem batiza no Espírito Santo, senão porque pombas não eram os que dilaceraram a Igreja? Eram, antes, falcões, eram milhafres. A pomba não dilacera. E vês que eles nos desejam o mal, por causa das perseguições que, por assim dizer, sofreram. Sofreram, por certo, perseguições corporais, embora se tratasse de castigos do Senhor, que manifestamente lhes dava um ensinamento temporal, a fim de não ter de condená-los eternamente, caso não o reconhecessem, nem se corrigissem. Por sua vez, perseguem verdadeiramente a Igreja os que o fazem tramando fraudes contra ela. Ferem mais profundamente o coração os que ferem com o gládio da língua. Mais cruelmente derramam sangue os que, na medida em que deles mesmos depende, matam a Cristo no homem. Parecem como que aterrados com o juízo das autoridades. Mas o que te faz a autoridade, se és bom? Se, porém, és mau, teme a autoridade: porque ela não à toa traz a espada, diz o Apóstolo.⁴²⁷ Não desembainhes a tua espada com que golpeias a Cristo! Cristão, o que persegues num cristão? O que perseguiu em ti o imperador? Perseguiu a carne, enquanto tu, no cristão, persegues o espírito. Tu não matas a carne. Não obstante, nem a carne poupam estes. Mataram a golpes a todos quantos puderam e não pouparam nem mesmo os seus, nem os estranhos. Este é um fato notório a todos. A autoridade é malvista precisamente por ser legítima. Quem age conforme o direito procede maldosamente; mas sem maldade age quem atua à margem da lei. Considere cada um de vós, meus irmãos, o que o cristão possui. O fato de ser homem lhe é comum com muitos outros; mas que seja cristão é coisa que o distingue de muitos. E mais lhe pertence o ser cristão do que o ser homem. Com efeito, pelo fato de ser cristão, é renovado à imagem de Deus, por quem o homem foi feito à imagem de Deus,⁴²⁸ mas pelo fato de ser homem poderia também ser mau, poderia ser pagão, poderia ser idólatra. O que tu persegues no cristão é o que ele tem de melhor, porque queres tirar-lhe aquilo que o faz viver. Ele vive, pois, no tempo segundo o espírito de vida com que é animado o seu corpo, mas vive para a eternidade segundo o batismo que recebeu do Senhor. Queres roubar-lhe o que ele recebeu do Senhor. Queres arrancar-lhe aquilo de que ele vive. Ladrões querem agir em relação aos que pretendem espoliar, de modo que eles próprios possuam mais, enquanto aqueles fiquem sem coisa alguma. E tu a um cristão arrebatas também algo, porém, junto de ti, nada mais haverá, pois não se acrescenta o que tens por lho arrebatares. Na verdade, tais pessoas fazem o que fazem aqueles que tiram uma vida: roubam-na a outrem e, entretanto, eles próprios não têm duas vidas. Diálogo insidioso dos donatistas com fiéis já batizados 13 Que queres, pois, arrebatar? Em que te desagrada aquele a quem queres rebatizar? Tu não lhe podes dar o que já tem, mas tratas de fazer com que renegue o que tem. Que crueldade maior fazia o pagão, perseguidor da Igreja? Desembainhavam-se as espadas contra os mártires, soltavam-se as feras, acendiam-se as fogueiras. Para que tudo isso? Para que quem sofria tais coisas dissesse: “Não sou cristão”. O que ensinas tu àquele a quem queres rebatizar, senão que confesse primeiro: “Não sou cristão”? Para conseguir esse fim, o perseguidor aplicava por vezes o fogo, mas tu estiras a língua. E consegues, seduzindo, o que o primeiro, matando, não fez. O que hás de dar tu, e a quem o darás? Se o fiel te disser a verdade, caso não minta, levado por tua sedução, responderá ele: “Tenho!” Perguntas: “Tens o batismo?” “Tenho”, responde. Enquanto diz: “Eu o tenho”, pensas tu: “Não lho hei de dar”. “Não mo dês, o que me queres dar não se pode aderir a mim; pois o que já recebi, não me pode ser tirado. Mas, espera. Quero saber o que me queres ensinar”. “Dize primeiro:” – assim fala – “Não tenho o batismo!” “Mas eu o tenho! E se disser que não o tenho, estou mentindo. O que tenho, tenho.” “Não o tens”, diz ele. “Ensina-me por que não o tenho.” “Um homem mau é quem o deu a ti.” “Se Cristo é mau, foi um homem mau que mo deu.” “Não”, – responde ele – “Cristo não é mau; mas não foi Ele quem te deu o batismo.” “Então, dize-me: Quem mo deu? Quanto a mim, sei que o recebi de Cristo.” “Quem te deu não foi Cristo, mas não sei que traidor.” “Verei quem foi o ministro, verei quem foi o arauto; mas não quero discutir acerca do ministro, considero somente o Juiz. E o que objetas ao ministro talvez seja mentira. Mas não o quero discutir. O Senhor de ambos instrua a causa do Seu ministro. Se exijo provas, é possível que não proves. Mentes, aliás, pois está comprovado que não pudeste prová-lo. Mas não pretendo tratar aqui de defender minha causa, para não pensares que, ao pôr-me a defender com empenho a homens inocentes, teria colocado eu minha esperança ao menos em homens inocentes. Sejam quais forem os homens, eu recebi o batismo de Cristo, fui batizado por Cristo.” “Não!” – responde – “Quem te batizou foi aquele bispo; e aquele bispo está em comunhão com eles.” “É por Cristo que fui batizado. Eu o sei”. “Como o sabes?” “Ensinou-me a pomba que João viu. E tu, ó milhafre mau, não me arranques das entranhas da pomba. Conto-me entre os membros da pomba, porque sei o que a pomba ensinou. Tu dizes-me: ‘batizou-te este ou batizou-te aquele’. Ao passo que, mediante a pomba, tanto a mim como a ti se diz: ‘É Ele que batiza’. A quem devo dar crédito, ao milhafre ou à pomba?”. O Senhor Jesus dá testemunho de João 14 “Responde-me claramente, para que sejas, assim, confundido por aquela mesma lâmpada por que ficaram confundidos também os primeiros inimigos, os fariseus, que são teus pares”. Quando eles perguntavam ao Senhor com que poder Ele agia, “Jesus respondeu: Vou propor-vos também eu uma questão, dizei-me: o batismo de João, de onde era? Do céu ou dos homens?”.⁴² E eles, que procuravam armar ciladas, ficaram enredados com a pergunta e puseram-se a pensar, dizendo lá consigo: “Se respondermos: Do céu, Ele nos dirá: Por que então não crestes nele?”. Porque João havia dito do Senhor: “Eis o Cordeiro de Deus. Eis Aquele que tira o pecado do mundo”.⁴³ Por que perguntais, então, com que poder eu faço essas coisas? Ó lobos, o que eu faço, faço-o pelo poder do Cordeiro. Mas para que pudésseis conhecer o Cordeiro, por que não acreditastes em João que disse: “Eis o Cordeiro de Deus, eis Aquele que tira o pecado do mundo”? Sabendo eles o que Joãoafirmara do Senhor, disseram lá consigo: “Se respondermos que o batismo de João vem do céu, Ele nos dirá: Por que, então, não crestes nele? Se respondermos: Dos homens, seremos lapidados pela multidão, pois todos consideram João como profeta”. Por um lado, temiam os homens; por outro, envergonhavam-se de confessar a verdade. As trevas responderam trevas, mas foram vencidas pela luz. O que responderam, pois? “Não o sabemos”. Quanto ao que sabiam, disseram: “Não sabemos”. E o Senhor: “Nem eu vos digo” – respondeu-lhes – “com que autoridade faço essas coisas”.⁴³¹ E, assim, ficaram confundidos os primeiros inimigos. Como? Pela lâmpada. E quem era a lâmpada? João! Provamos que ele era uma lâmpada? Provamo-lo. Com efeito, o Senhor disse: “João foi um facho que arde e ilumina”.⁴³² E provamos que também por ele os inimigos de Cristo foram confundidos. Escuta o salmo: “Acenderei uma lâmpada para o meu Cristo. Revestirei seus inimigos de confusão”.⁴³³ Devem os ministros ser santos? 15 Caminhamos ainda nas trevas desta vida, à luz da lâmpada da fé. Tenhamos em mãos, nós também, a João, como lâmpada, e confundamos com isso os inimigos de Cristo, ou melhor, que Ele mesmo confunda Seus inimigos por meio de Sua lâmpada. Levantemos, por nossa vez, a questão colocada pelo Senhor aos judeus, e perguntemos: “O batismo de João de onde era? Do céu ou dos homens?”.⁴³⁴ O que haverão de dizer? Vede se não saem confundidos também eles, apontados pela lâmpada como inimigos. Mas, o que dirão eles? Se disserem que o batismo é dos homens, seus próprios correligionários os apedrejarão. Se, porém, disserem que é do céu, nós replicaremos: Por que, então, não crestes nele? Talvez digam: Cremos nele. Mas por que, então, dizeis que vós batizais, quando João disse: “É Ele que batiza”? Respondem-nos eles: “É, porém, conveniente que sejam justos os ministros de um tão grande Juiz, por meio dos quais se batiza”. “Eu também o digo, e afirmamos todos, que é conveniente serem justos os ministros de tão grande Juiz. Sejam justos os ministros, se quiserem. Se não quiserem ser justos, porém, os que se sentam na cátedra de Moisés, o meu Mestre, a respeito de quem Seu Espírito diria: ‘É Ele que batiza’, deu-me toda segurança. E como me deu tal segurança? ‘Os escribas e fariseus – diz Ele – estão sentados na cátedra de Moisés. Portanto, fazei e observai tudo quanto vos disserem, mas não imiteis as suas ações, pois dizem, e não fazem’”.⁴³⁵ Se o ministro for justo, ponho-o ao lado de Paulo, ponho-o ao lado de Pedro. É no número deles que coloco os ministros justos. Os ministros verdadeiramente justos não buscam, pois, sua própria glória. São ministros, e não querem ser tidos na conta de juízes. Ficam indignados que se deposite esperança neles. Por isso, ponho o ministro justo ao lado de Paulo. E o que diz Paulo, então? “Eu plantei, Apolo regou. Mas era Deus quem fazia crescer. Assim, pois, aquele que planta nada é. Aquele que rega nada é. Mas importa tão somente Deus, que dá o crescimento”.⁴³ O ministro que for soberbo deve ser posto ao lado do diabo, mas o dom de Cristo não fica contaminado, corre puro através dele e, passando límpido por ele, vem a cair sobre a terra fértil. Pensa que ele é de pedra, porque da água não pode tirar fruto algum. A água passa através do canal da pedra, e vai até os canteiros. Ela nada produz no canal, entretanto, muito fruto produz nos jardins. A virtude espiritual do sacramento, na verdade, é tal como luz. Aqueles corpos que devem ser iluminados por ela recebem-na em sua pureza; e, ainda que passe por meios contaminados, não se mancha. Sim, que os ministros sejam justos, que não procurem sua própria glória, mas a glória d’Aquele de quem são ministros. Que não digam: “O batismo é meu”, porque não é deles. Que considerem o próprio João. Eis que João estava cheio do Espírito Santo. Possuía um batismo do céu, e não dos homens. Mas em que medida o possuía? Ele mesmo o disse: “Preparai o caminho do Senhor”.⁴³⁷ Quando o Senhor foi conhecido, tornou-Se Ele mesmo o Caminho. Já não era necessário, pois, o batismo de João para que se preparasse o caminho do Senhor. Objeção dos donatistas: batizaram depois de João! 16 O que costumam dizer-nos, no entanto? “Eis que batizaram depois de João!”. Com efeito, antes que essa questão fosse tratada como convinha na Igreja Católica, muitos dentro dela erraram, mesmo sendo pessoas importantes e boas;⁴³⁸ contudo, porque faziam parte dos membros da pomba, não se separaram, e realizou-se neles o que disse o Apóstolo: “Se tendes de alguma coisa outro sentir, também sobre isso Deus vos esclarecerá”.⁴³ Os que se separaram, porém, tornaram-se rebeldes. Que costumam eles dizer? “Batizou-se depois de João, por que não se deve batizar depois dos hereges?”. De fato, Paulo ordenou batizar certos homens que haviam recebido o batismo de João:⁴⁴ esses não tinham ainda o batismo de Cristo. – Por que exageras o mérito de João, e menosprezas o infortúnio dos hereges? – Concedo-te que os hereges sejam criminosos, mas os hereges deram o batismo de Cristo, um batismo que João não deu. Considerações sobre o batismo dado depois de João 17 Recorro novamente a João e digo com ele: “Este é que batiza”. Na verdade, João é mais digno do que um herege, assim como é mais digno que um ébrio, e do que um homicida. Se devemos batizar de novo alguém que foi batizado por uma pessoa pior, já que os apóstolos batizaram depois de pessoa melhor, o que dizer dos que foram batizados entre os hereges por um ébrio... – não digo por um homicida, não digo pelo sequaz de algum criminoso, por um raptor de coisas alheias, por um opressor de órfãos, por um separador de cônjuges, nada disso digo: digo o que é comum, o que é cotidiano, falo disso a que todos são chamados, mesmo nesta cidade, quando se lhes diz: “Vamos divertir-nos! Passemos um bom momento! Não deves jejuar em tal festa de janeiro!”.⁴⁴¹ Coisas corriqueiras digo eu, cotidianas – o que dizer de quem foi batizado por um homem embriagado? Quem é melhor, João ou o embriagado? – Responde, se puderes, que teu ébrio é melhor que João… Ousarás dizê-lo? Então, tu que és sóbrio, batiza depois do teu ébrio! Pois, se os apóstolos batizaram depois de João, com mais razão deve o sóbrio batizar depois do ébrio! Ou dirás, talvez: “O ébrio está em comunhão comigo?”. Ora, João, o amigo do Esposo, não estava em comunhão com o Esposo? Batizavam depois de João porque ele não dava o batismo de Cristo 18 Mas, pergunto-te ainda, quem quer que sejas: – Quem é melhor: tu ou João? Não ousarás responder: – Sou melhor que João. Que os teus comparsas batizem, então, depois de ti, se forem melhores do que tu. Pois, visto que se batizou depois de João, envergonha-te de que não se batize depois de ti. Dirás: “Mas eu tenho o batismo de Cristo, e o ensino”. Reconhece, ao menos uma vez, o Juiz e não te faças de arauto orgulhoso. Dás o batismo de Cristo e é por isso que não se batiza depois de ti. Batizaram depois de João, porque ele não dava o batismo de Cristo, mas o seu próprio, visto que recebera o privilégio de ter um batismo próprio. Tu não és, portanto, melhor que João, mas o batismo que dás é melhor que o de João; porque este é o batismo de Cristo, e aquele é só o batismo de João. O batismo que era dado por Paulo e o que era dado por Pedro eram o de Cristo. E se foi dado por Judas, era de Cristo. Judas o deu, e não se batizou depois de Judas. Deu-o João, e se batizou depois de João. Isso se deve a que, se foi dado por Judas um batismo, era este o batismo de Cristo, ao passo que o batismo dado por João não era senão o de João. Não colocamos Judas acima de João, mas antepomos corretamente o batismo de Cristo, mesmo dado pelas mãos de Judas, ao batismo de João, mesmo dado pelas mãos de João. Está escrito, com efeito, a respeito do Senhor que, antes de padecer, “Ele batizava mais do que João”. E, então, se acrescenta: “Ainda que, de fato, Jesus mesmo não batizasse, mas os Seus discípulos”.⁴⁴² Era ele, e não era Ele: Ele, por Sua potestade; mas os discípulos, pelo ministério. Exerciamaqueles um serviço ao batizar, mas em Cristo permanecia a potestade de batizar. Seus discípulos, pois, batizavam, e ali ainda estava Judas, em meio aos Seus discípulos. E os que Judas batizou não foram batizados de novo, enquanto os que João batizou deviam ser batizados novamente? Estes últimos foram batizados, sim, uma segunda vez, mas não com um reiterado batismo. Porque, aqueles que João batizou, batizou-os João; mas os que Judas batizou, batizou-os Cristo. Assim também acontece com os que um ébrio batizou, com os que um homicida batizou, com os que um adúltero batizou: se era o batismo de Cristo, foi Cristo quem os batizou. Eu não temo o adúltero, nem o ébrio, nem o homicida, porque presto atenção na pomba, por meio da qual se me diz: “É Ele que batiza”. O batismo de Cristo vale por si, não pelo ministro 19 Quanto ao mais, meus irmãos, seria loucura pretender – já não falo de Judas, mas de qualquer homem – que alguém tenha ultrapassado em mérito aquele de quem foi dito: “Entre os nascidos de mulher, não surgiu nenhum maior do que João, o Batista”.⁴⁴³ Não se lhe antepõe, portanto, qualquer servo; mas o batismo do Senhor, mesmo que administrado por um servo mau, antepõe-se inclusive ao do servo amigo. Ouve de que tipo de falsos irmãos se recorda Paulo, os quais pregavam a Palavra de Deus por inveja: “Com isso eu me regozijo, mas também me regozijarei”.⁴⁴⁴ Com efeito, eles anunciavam Cristo, sem dúvida, por inveja, mas Cristo era anunciado. Não repares no meio, mas no objeto da pregação. Cristo te é pregado por inveja? Vê a Cristo, evita a inveja. Não imites o mau pregador, mas imita o Bom que te é pregado. Cristo era, portanto, pregado por alguns que se deixaram levar pela inveja. E o que é invejar? Um mal horrível. É por esse mal que o diabo foi precipitado, uma peste muito maligna o precipitou. Alguns pregadores de Cristo estavam contaminados por ela, mas o Apóstolo permitiu-lhes pregar. Por quê? Porque pregavam a Cristo. Quem tem inveja tem ódio. E quem odeia, o que se diz dele? Ouve o apóstolo João: “Todo aquele que odeia o seu irmão é homicida”.⁴⁴⁵ Eis que se batizou depois de João, mas, depois de um homicida, não se batizou. João deu, pois, o seu próprio batismo, enquanto o homicida deu o batismo de Cristo. Que sacramento tão santo é esse, que não fica profanado, ainda que seja administrado por um homicida! Conclusão 20 Eu não desprezo João; pelo contrário, acredito em João. E acredito em João a respeito de quê? A respeito daquilo que ele aprendeu por intermédio da pomba. E o que aprendeu ele por meio da pomba? “Esse é que batiza com o Espírito Santo”. Retende-o, pois, já, irmãos, e gravai-o em vosso coração. Se eu quiser explicar hoje, mais abundantemente, por que João aprendeu tal verdade por meio da pomba, o tempo não será suficiente. Até onde o vejo, expus à santidade vossa que a João se insinuou algo que ele havia de aprender por meio da pomba, algo que ainda não conhecia em Cristo, por mais que já conhecesse a Cristo. Mas a razão por que tal coisa devia ser-lhe mostrada pela pomba, caso pudesse dizer-se em poucas palavras, eu a diria. Como, porém, é assunto que demora a ser dito e eu não quero sobrecarregar-vos; assim como fui ajudado por vossas orações a cumprir o que vos prometi, do mesmo modo, com a instante ajuda da vossa piedosa atenção e dos vossos bons desejos, aparecer-vos-á também por que João não deveu aprender senão pela pomba o que aprendeu no Senhor, a saber, que “Esse é que batiza com o Espírito Santo” e, ainda, que a nenhum servo legou Ele a potestade de batizar. HOMILIA 6 “Eu vi o Espírito descer como uma pomba” (Jo 1,32-33) Motivação 1 Confesso à santidade vossa ter eu temido que o frio vos tornasse frios para acudir à Igreja. Como, porém, com essa grande afluência, demonstrastes que sois fervorosos em espírito, não duvido de que tenhais, igualmente, orado por mim, a fim de que vos pudesse pagar a minha dívida. Prometera- vos, em nome de Cristo, discorrer hoje, dado que a falta de tempo impediu então que o pudéssemos explicar, acerca da razão pela qual Deus quis mostrar o Espírito Santo sob a forma de uma pomba. Brilhou-nos, pois, o dia de hoje para que isso fosse explicado; e noto-vos reunidos em maior número, com desejo de ouvir e uma piedosa devoção. Que Deus satisfaça plenamente à vossa expectativa, por meio de minha boca. Amastes, com efeito, para virdes até nós. Mas, o que amastes? Se nos amastes, está bem. Desejamos ser amados por vós, mas não queremos ser amados em nós mesmos. Já que em Cristo nós vos amamos, amai-nos, de volta, em Cristo. E esse nosso amor recíproco solte gemidos em direção a Deus, pois tal é o gemido da pomba. Os inefáveis gemidos no Espírito 2 Se tal é o gemido da pomba e, como sabemos, as pombas gemem de amor, ouvi o que diz o Apóstolo e não vos admireis de que o Espírito Santo tenha querido mostrar-Se sob a imagem de uma pomba: “Não sabemos o que pedir como convém, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis”.⁴⁴ Como diremos isso, meus irmãos, ou seja, que o Espírito Santo geme, se tem felicidade plena e eterna juntamente com o Pai e com o Filho? Na verdade, o Espírito Santo é Deus, assim como é Deus o Filho de Deus, e como é Deus o Pai. Eu disse três vezes: “Deus”, e não disse: três deuses. Ele é, antes, três vezes Deus, e não três deuses, porque o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só Deus. Vós o sabeis perfeitamente. Ora, o Espírito Santo não geme em Si mesmo e consigo mesmo, naquela Trindade, naquela felicidade, naquela eternidade de substância. Geme, porém, em nós, porque nos faz gemer. Nem é de pouca importância que o Espírito Santo nos ensine a gemer. E não é pouco que o Espírito Santo nos ensine a gemer: sugere-nos que peregrinamos e ensina-nos a suspirar pela pátria, e nós gememos com esse desejo. Aquele a quem tudo vai bem neste mundo, ou melhor, que pensa que tudo lhe vai bem; que exulta pela alegria das realidades carnais, pela abundância de bens temporais, com uma vã felicidade, tem a voz do corvo. A voz do corvo é gritante, não é feita de gemidos. Geme aquele que sabe que está sob a opressão desta mortalidade, que peregrina longe do Senhor⁴⁴⁷ e que ainda não possui aquela bem-aventurança perpétua, a nós prometida, mas a tem em esperança, havendo de possuí-la na plena realidade, quando vier glorioso em Sua manifestação o Senhor que primeiro veio oculto na humildade. Quem o sabe, geme. E enquanto geme por isso, geme bem. O Espírito Santo ensina-o a gemer, da pomba aprendeu a gemer. Muitos gemem na infelicidade terrena, abatidos por dissabores, ou acabrunhados pela doença do corpo, ou encerrados em cárceres, ou presos por algemas, ou sacudidos pelas ondas do mar, ou cercados por algumas ciladas dos inimigos. Não gemem, entretanto, com o gemido da pomba, não gemem com o amor de Deus, não gemem no Espírito. Por isso, ao se verem libertados dessas tribulações, exultam com grandes vozerios, e por aí se vê que são corvos, não pombas. Com razão foi o corvo lançado da arca, e não voltou; foi lançada a pomba, mas ela voltou.⁴⁴⁸ Noé soltara aquelas duas aves. Ele tinha ali um corvo, tinha também uma pomba. Aquela arca continha animais de uma e de outra espécie. E se a arca era a figura da Igreja, vedes como é necessário que, neste dilúvio do mundo, a Igreja contenha ambas as espécies de animais: tanto o corvo, como a pomba. Quem são os corvos? Os que procuram seus próprios interesses. E as pombas? Os que procuram os interesses de Jesus Cristo.⁴⁴ As aparições do Espírito Santo 3 Quando o Senhor enviou o Espírito Santo, mostrou-O visivelmente de dois modos: pela pomba e pelo fogo; pela pomba, que pousou sobre o Senhor batizado; pelo fogo, que veio sobre os discípulos congregados. Quando o Senhor tinha já subido ao céu, depois da ressurreição, após haver passado quarenta dias com Seus discípulos, tendo chegado o dia de Pentecostes, enviou-lhes o Espírito Santo conforme prometera. Vindo, então, o Espírito Santo, encheu aquele recinto. Ouviu-se primeiro um ruído do céu, como se soprasse umvento impetuoso, conforme lemos nos Atos dos Apóstolos, “E apareceram umas como línguas de fogo, que se distribuíram e foram pousar sobre cada um deles”. Então, o Espírito Santo “veio sobre cada um deles e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito os impelia a falar”.⁴⁵ No primeiro fato, vimos a pomba sobre o Senhor; no segundo, línguas repartidas sobre os discípulos congregados. Ali transparece a simplicidade, aqui o fervor. Há homens que se dizem simples, mas são preguiçosos; denominam-se simples, mas são indolentes. Não era desses Estêvão, cheio do Espírito Santo: era simples, pois a ninguém ofendia; era fervoroso, pois repreendia os ímpios. Não se calou perante os judeus, e dele são aquelas palavras inflamadas: “Homens de dura cerviz, incircuncisos de ouvido e coração, vós sempre resististes ao Espírito Santo!”.⁴⁵¹ Grande ímpeto, mas a pomba se enfurece sem fel. E para que saibais que sem fel se enfurecia, uma vez que ouviram tais palavras, aqueles homens, que eram corvos, recorreram imediatamente às pedras contra a pomba. E Estêvão começou a ser apedrejado. Aquele que, pouco antes, com um espírito fremente e inflamado, arremetera de certo modo contra os inimigos e, violento, os invectivara com palavras ígneas e tão cheias de ardor, como ouvistes: “Homens de dura cerviz, incircuncisos de ouvido e coração” – de modo que quem ouvisse tais palavras, julgaria que Estêvão quisesse aniquilá-los de um só golpe, se isso lhe fosse permitido –, quando eram contra si arremessadas das mãos deles aquelas pedras, caído de joelhos, exclamava: “Senhor, não lhes imputes este pecado”.⁴⁵² Tinha-se aderido à unidade da pomba. Primeiro o fizera aquele Mestre sobre quem desceu a pomba e que, ao pender da cruz, disse: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”.⁴⁵³ Foi mostrado, pois, na pomba, que os santificados pelo Espírito não devem ter dolo; e, no fogo, que a simplicidade não deve permanecer fria. Não cause impressão o fato de se terem dividido as línguas. As línguas diferem, de fato, entre si, por isso o Espírito apareceu em línguas divididas. “Apareceram línguas – diz – repartidas como de fogo, que pousou sobre cada um deles”. As línguas diferem entre si, mas a diferença delas não são cismas. Não receies a dispersão nas línguas divididas; reconhece, antes, na pomba a unidade. A pomba, símbolo da paz 4 Assim, pois, convinha que o Espírito Santo Se manifestasse ao vir sobre o Senhor, a fim de que cada um entenda que, se possui o Espírito Santo, deve ser simples como a pomba e conservar com os irmãos uma verdadeira paz, que é simbolizada pelos beijos das pombas. Também os corvos têm beijos, mas há, nos corvos, uma paz falsa; na pomba, está a verdadeira paz. Por conseguinte, nem todo o que diz “A paz esteja convosco” há de ser ouvido como se fosse pomba. Como se distinguir, então, os ósculos dos corvos dos ósculos das pombas? Osculam-se os corvos, mas dilaceram-se. A natureza das pombas é inocente de laceração. Onde há, portanto, laceração, não há nos beijos uma verdadeira paz. Possuem verdadeira paz aqueles que não dilaceraram a Igreja. Os corvos alimentam-se, pois, de morte, uma característica que a pomba não tem. Esta vive dos frutos da terra, seu alimento é inocente, e isso, irmãos, é realmente de admirar na pomba. Há pássaros bem pequeninos que matam pelo menos moscas. A pomba nada faz de semelhante. Ela não se alimenta, pois, da morte. Os que despedaçaram a Igreja alimentam-se de mortos. Mas Deus é poderoso, roguemos que revivam aqueles que são devorados por eles, sem o perceber. Muitos vêm a reconhecer tal fato, porque revivem. E, à sua vinda, nós nos congratulamos, todos os dias, em nome de Cristo. Quanto a vós, sede simples, mas de forma que sejais, ao mesmo tempo, fervorosos. E que o vosso fervor manifeste-se nas línguas. Não vos caleis, mas, falando com línguas ardentes, abrasai os que se acham frios. Manifestação da Trindade 5 O que dizer, pois, meus irmãos? Quem não vê o que eles não veem? E não admira, pois os que não querem regressar dali são como o corvo que da arca foi solto. Quem não vê o que eles não veem? Mostraram-se ingratos ao próprio Espírito Santo. Eis que a pomba desceu sobre o Senhor, e sobre o Senhor que acabava de ser batizado. Apareceu então, ali, aquela santa e verdadeira Trindade, que é para nós o único Deus. “Saiu, pois, o Senhor da água – como lemos no Evangelho – e logo os céus se abriram, e viu o Espírito que descia como uma pomba e pousou sobre Ele. Ao instante, seguiu-se uma voz: Tu és o meu Filho amado, em quem me comprazo”.⁴⁵⁴ Aparece, com toda a evidência, a Trindade: o Pai na voz, o Filho no homem e o Espírito na pomba. Para onde foram enviados os apóstolos em nome dessa Trindade? Vejamos o que nós vemos, e admira que eles não vejam, conquanto não seja certo dizer que não vejam, mas sim que fecham os olhos à luz que lhes golpeia as faces. Para onde foram enviados os discípulos, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, por aquele de quem foi dito: “Este é que batiza”? Disse-o, com efeito, aos ministros, Aquele que Se reservou essa potestade. No poder de batizar, exclusivo de Cristo, a unidade da Igreja 6 Com efeito, é isso o que João viu em Jesus, e conheceu o que ainda não conhecia. Não porque ignorasse que Ele era o Filho de Deus, ou não soubesse que fosse o Senhor, que fosse o Cristo, nem, por outro lado, porque ignorasse que Ele devia batizar na água e no Espírito Santo. Também isso sabia. Mas que o Senhor guardaria para si de tal modo essa potestade e a nenhum de seus ministros a transferiria, eis o que João aprendeu na pomba. De fato, por essa potestade que Cristo Se reservou apenas para Si e que a nenhum dos ministros comunicou, ainda que Se tenha dignado batizar por meio de Seus ministros, por essa potestade, digo, firma-se a unidade da Igreja, simbolizada pela pomba, da qual foi dito: “Uma só é a minha pomba, uma só para sua mãe”.⁴⁵⁵ Ora, meus irmãos, se essa potestade passasse do Senhor ao ministro, haveria, como já disse, tantos batismos quantos ministros houvesse e já não subsistiria a unidade do batismo. Ainda: a revelação da pomba a João 7 Observai, irmãos. Antes que viesse nosso Senhor Jesus Cristo ao batismo, João sabia que Ele batizava no Espírito Santo. De fato, é depois do Seu batismo que a pomba desceu e, por ela, João conheceu uma propriedade exclusiva do Senhor, ao ser-lhe dito: “Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer é que batiza no Espírito Santo”.⁴⁵ O que João aprendeu ali foi que o Senhor batiza com tal prerrogativa que Seu poder não passaria d’Ele a nenhum outro, ainda que este administrasse. E como provamos que João já sabia que o Senhor havia de batizar no Espírito Santo, de forma que se entenda ter aprendido ele na pomba que o Senhor de tal modo batizaria no Espírito Santo, que aquele poder não se transferiria para homem algum? Como o provamos? A pomba desceu quando o Senhor já estava batizado. Mas, antes que Ele viesse para ser batizado por João no Jordão, dissemos que João O conhecia, como testemunham as palavras: “Tu vens a mim para ser batizado? Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti”.⁴⁵⁷ Eis que ele O conhecia como o Senhor, como o Filho de Deus. Mas como provamos que ele já sabia que o Senhor devia batizar no Espírito Santo? Antes que o Senhor viesse ao rio, quando muitos corriam a João para receberem o batismo, este lhes dissera: “Eu vos batizo com água, para a conversão, mas Aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu. De fato, eu não sou digno nem ao menos de Lhe desatar a correia das sandálias. Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”.⁴⁵⁸ Ele já sabia isso também. O que aprendeu, pois, por meio da pomba, para não ser tido, depois, por mentiroso? – Que Deus afaste de nós tal pensamento! – O que aprendeu ele, a não ser que Cristo possuiria essa prerrogativa pessoal, pela qual, apesar dos muitos ministros, justos ou injustos, que haveriam de batizar, não se atribuísse a santidade do batismo senão Àquele sobre quem desceu a pomba, e de quem foi dito:“Esse é que batiza com o Espírito Santo”? Batize Pedro, é Ele quem batiza. Batize Paulo, é Ele quem batiza. Batize Judas, é Ele quem batiza. A unidade do batismo 8 Pois, se a santidade do batismo depender da diversidade dos méritos, haja vista serem os méritos diferentes, haveria batismos diferentes; e cada um tanto mais pensaria ter recebido algo melhor, quanto mais parecesse que o teria recebido de alguém melhor. Entendei, meus irmãos: os próprios santos, os bons que pertencem à pomba, que pertencem ao lote daquela cidade de Jerusalém, os justos da Igreja, de quem o Apóstolo diz: “O Senhor conhece os que Lhe pertencem”,⁴⁵ possuem graças diferentes, e não possuem todos os mesmos méritos. Uns são mais santos do que outros, uns são melhores do que outros. Por que, então, se um for batizado, por exemplo, por um ministro justo e santo, e outro por aquele de mérito inferior diante de Deus, de grau inferior, de continência inferior, de vida inferior, o que ambos receberam será, apesar disso, uma única realidade, uma realidade igual, idêntica, a não ser porque “Esse é que batiza”? Assim, pois, quando um homem bom e outro melhor ainda conferem o batismo, não receberam num caso algo bom, e noutro algo melhor, mas apesar da excelência diferente dos ministros, os dois receberam algo idêntico, igual, que não será superior em um, e inferior no outro. Igualmente, quando um ministro mau batiza, quer porque a Igreja o ignore ou o tolere – pois os maus são ignorados ou tolerados, como é tolerada a palha até que, por fim, seja limpa na eira –, o que for dado será único, e não diferente em decorrência dos diferentes ministros; será idêntico, igual, porque “Esse é quem batiza”. O envio dos ministros 9 Portanto, diletíssimos, vejamos o que eles não querem ver. Não é que não o vejam, mas, porque se afligem ao vê-lo, isso permanece como que vedado a seus olhos. Para onde foram enviados os discípulos a fim de batizarem como ministros, em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo? Para onde? “Ide”, disse o Senhor, “e batizai as nações”. Ouvistes, irmãos, como se adquiriu aquela herança: “Pede-me, e eu te darei as nações em herança, e estenderei o teu domínio até as extremidades da terra”.⁴ Ouvistes como “de Sião saiu a lei, e a Palavra de Deus, de Jerusalém”.⁴ ¹ Com efeito, foi lá que os discípulos ouviram: “Ide e batizai as nações, em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”.⁴ ² Redobramos nossa atenção quando ouvíamos: “Ide, batizai as nações”. E em nome de quem? “Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”. Esse é o único Deus, porque não se disse: Nos nomes do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, mas: “Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”. Ouves um só nome, porque há um só Deus. Assim se diz, igualmente, da descendência de Abraão, como explica o apóstolo Paulo: “Em tua descendência, serão abençoadas todas as nações”. Não disse: Em tuas descendências, como se se referisse a muitos, mas referindo-se a um só: “Em tua descendência”, que é Cristo.⁴ ³ Assim como ali não se diz: Em tuas descendências, o Apóstolo pretendeu ensinar-te que Cristo é um só. Da mesma forma, quando se disse: “Em nome” e não: nos nomes – tal como ali: “em tua descendência” –, prova-se que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um único Deus. Diversidade e reunião das línguas na unidade 10 Mas, eis que os discípulos dizem ao Senhor: Ouvimos em que nome nós devemos batizar. Tornaste-nos ministros, e disseste-nos: “Ide, batizai em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”. Para onde devemos ir? – Para onde? Não ouvistes? Para a minha herança. Perguntais: Para onde devemos ir? Para tudo quanto comprei ao preço de meu Sangue. – Para onde, então? – Para as nações, diz Ele. Pensei que Ele tivesse dito: Ide, batizai os africanos, em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo… Graças a Deus, o Senhor resolveu a questão! A pomba ensinou! Graças a Deus! Os Apóstolos foram enviados às nações. E, se foram enviados às nações, foram enviados a todas as línguas. Eis o que significa o Espírito Santo dividido nas línguas e reunido na pomba. De um lado, as línguas se dividem; de outro, a pomba reúne. As línguas dos povos concordaram entre si, e a única língua da África discordou? O que há de mais evidente, meus irmãos? Na pomba, está a unidade; nas línguas das nações, a sociedade. Outrora, também as línguas discordaram por efeito do orgulho e, então, de uma única língua foram feitas muitas. Depois do dilúvio, com efeito, certos homens soberbos, como que tentando munir-se contra Deus, – como se para Deus houvesse algum lugar elevado, ou algum refúgio seguro para a soberba – levantaram uma torre, para que não a pudesse destruir, por assim dizer, um dilúvio, caso ocorresse depois.⁴ ⁴ Tinham ouvido dizer, pois, e lembravam bem, que toda a iniquidade fora destruída pelo dilúvio. Eles não queriam abster-se da iniquidade e recorreram à altura de uma torre contra o possível dilúvio. Edificaram, pois, uma torre alta. Deus viu a soberba deles e fez com que neles penetrasse esta confusão: que, ao falarem, não se entendessem. Por soberba, fizeram-se diferentes as línguas.⁴ ⁵ Se a soberba ocasionou a diversidade das línguas, a humildade de Cristo congregou-a. O que aquela torre dividiu, a Igreja reúne. De uma só língua, fizeram-se muitas. Não te admires: a soberba é que o fez. De muitas línguas, fez-se uma só. Não te admires: a caridade é que o fez! Ainda que os sons das línguas sejam diversos, o único Deus é invocado no coração, e uma única paz é custodiada. Como então, caríssimos irmãos, o Espírito Santo deveu manifestar-Se, qual sinal de certa unidade, senão por meio de uma pomba, a fim de que se pudesse dizer à Igreja pacificada: “Uma só é a minha pomba”?⁴ Como a humildade deveu manifestar-se, senão por meio de uma ave simples e gemente, e não por meio de uma ave soberba, que se exalta como o corvo? A pomba do batismo de Jesus e a pomba da arca são a caridade: objeção donatista 11 Mas talvez digam: – Já que há uma pomba, e ela é única, não pode haver batismo à margem dessa pomba única. Por conseguinte, se a pomba está contigo, ou se tu és a pomba, deves dar-me o que eu não tenho quando vou a ti. Conheceis que é a linguagem deles. Aparecer-vos-á em seguida que ela não vem da voz da pomba, mas do clamor do corvo. Preste um pouco de atenção a vossa caridade, e temei as ciladas. Sim, acautelai-vos, e não recebais as palavras desses contraditores a não ser para repeli-las, não para degluti-las, ou assimilá-las nas entranhas. Fazei, assim, o que fez o Senhor, quando Lhe apresentaram a bebida amarga. Ele experimentou-a e recusou- a.⁴ ⁷ Também vós, ouvi e rejeitai. O que dizem eles, com efeito? Vejamos: – Tu és a pomba, ó Igreja Católica! É a ti que foi dito: “Uma só é a minha pomba, é uma só para a sua mãe”.⁴ ⁸ Por certo, tais palavras foram ditas a ti. Digo a meu interlocutor: – Espera, não me interrogues. Prova primeiro que isso me tenha sido dito. Se me foi dito, quero ouvi-lo logo de ti. – Sim, na verdade, foram ditas a teu respeito. – Respondo em nome da Igreja Católica: – A mim! O que acaba de ressoar tão somente de minha boca, meus irmãos, julgo eu, procede também dos vossos corações, e todos nós afirmamos igualmente que foi dito à Igreja Católica: “Uma só é a minha pomba. Ela é a única para a sua mãe!”. Replicam eles, porém: – Mas, fora da pomba, não há batismo. Ora, eu fui batizado fora dessa pomba. Não tenho, pois, o batismo. E, se não tenho o batismo, por que não mo dás, quando venho a ti? Acaso não pertencem os maus à pomba? 12 Interrogo eu, por minha vez. Deixemos de lado, por um momento, a questão de saber a quem foi dito: “Uma só é a minha pomba. Ela é a única para a sua mãe”.⁴ Ainda havemos de procurar essa resposta. Quer tenha sido dita para mim, quer para ti, deixemos de lado a questão de saber para quem se disse. O que proponho agora é isto: – Se a pomba é simples, inocente, sem fel, pacífica em seus beijos e não cruel em suas garras, pergunto se pertencem aos membros dessa pomba os avarentos, os ladrões, os traidores,os ébrios, os impuros. São eles membros dessa pomba? – Não, de modo algum, ele diz. – De fato, meus irmãos, quem diria uma coisa dessas? Sem falar dos restantes, se tão somente me limito aos ladrões, podem estes ser, sem dúvida, membros do falcão, e não da pomba. Os milhafres arrebatam a presa, e também o fazem os falcões e os corvos. Mas as pombas não arrebatam, nem dilaceram. Logo, os ladrões não são membros da pomba. Ora, será que nunca houve entre vós um ladrão sequer? E por que permanece o batismo dado pelo falcão, não pela pomba? Por que não batizais entre vós mesmos, depois dos ladrões, dos adúlteros, dos ébrios, ou dos avarentos que há entre vós mesmos? Ou serão eles membros da pomba? Ou desonrais de tal maneira a vossa pomba, a ponto de atribuir-lhe membros de abutre? O que mais, meus irmãos? O que dizemos? Há na Igreja Católica pessoas boas e más. Entre aqueles, porém, só há gente má. Digo isso, talvez, com ânimo hostil e também devemos examiná-lo depois. Aliás, eles mesmos dizem, igualmente, que há ali bons e maus. Se disserem que só há bons, que neles acreditem os seus, não os contradigo. Que digam: Entre nós só há santos, justos, castos e sóbrios; não há adúlteros, nem usurários, nem fraudadores, nem perjuros, nem ébrios. Que o digam, eu não atenderei às suas línguas, mas toco os seus corações. Ora, como eles são conhecidos tanto para nós, como para vós e para os seus, assim como, na Igreja Católica, vós sois conhecidos para vós e para eles, que não nos ponhamos a repreendê-los, e que eles deixem de vangloriar-se. Confessamos, por nossa parte, que há bons e maus na Igreja, os quais são como o grão e a palha. Às vezes, quem é batizado por um grão é palha, e quem é batizado pela palha é grão. Ora, se o batismo administrado pelo grão é válido, mas o administrado pela palha é inválido, é falsa aquela expressão: “Esse é quem batiza”. Se, por outro lado, for verdadeira a expressão: “Esse é quem batiza”, é válido o que pela palha se dá, e batiza tal como a pomba. Não que aquele mau seja a pomba, nem que faça parte dos membros da pomba. Não se pode dizer que este esteja na Igreja Católica, nem entre eles, no caso de dizerem que a sua igreja é a pomba. O que entendemos, então, irmãos? É coisa manifesta e conhecida por todos – e dela são bem convencidos, ainda que a isso resistam – que nem ali, quando os maus administram o batismo, depois deles se batiza, nem aqui, quando os maus batizam, se batiza depois deles. Se a pomba não batiza depois do corvo, por que quer o corvo batizar depois da pomba? Fora da pomba, o batismo é inútil 13 Preste atenção a vossa caridade! Por qual razão foi sinalizado não sei que mais, por meio da pomba, a ponto de que, uma vez batizado o Senhor, viesse a Ele uma pomba, isto é, o Espírito Santo, sob a forma de pomba, e permanecesse sobre Ele, e, graças à vinda da pomba, João já conhecesse haver no Senhor certa potestade própria para batizar? Por essa potestade própria, como eu disse, foi consolidada a paz da Igreja. Pode acontecer que alguém tenha recebido o batismo fora da pomba, mas, que esse batismo lhe seja útil fora da pomba, não é possível. Preste atenção a vossa caridade, e procure compreender o que digo. Pois, por meio desse ardil, eles seduzem amiúde os nossos irmãos que são preguiçosos e frios. Sejamos, pois, mais simples e mais fervorosos. Escutai o que eles dizem: – Recebi o batismo, ou não? Respondo: – Sim, tu o recebeste. Ora, se o recebi, nada mais tens a dar-me. Seguro estou de que o recebi, e ainda pelo teu testemunho: tanto digo eu que o recebi, como também tu o confessas. A língua de ambos deixa-me seguro. O que, então, me prometes? Por que queres que me faça católico, quando não hás de dar-me algo a mais e confessas que já recebi o que tu dizes ter? Ao contrário, quando te digo: – Vem a mim, sustento que tu não o tens, tu que confessas que eu o possuo. Por que me dizes: – Vem a mim? A pomba ensina: o batismo de nada vale sem a caridade 14 A pomba nos ensina. Por cima da cabeça do Senhor, ela te responde, e diz: – Tens o batismo, mas a caridade em que gemo, tu não a tens. – Que significa isso? – replica ele. – Tenho o batismo, mas não a caridade? Possuo os sacramentos, e a caridade não? – Não grites. Mostra-me apenas como poderia ter a caridade quem divide a unidade. – Mas eu tenho o batismo! – diz. – Sim, tu o tens. Mas esse batismo sem a caridade de nada te aproveita; porque sem a caridade, tu nada és.⁴⁷ Esse batismo, na verdade, mesmo em quem nada é, não se pode dizer que seja nada; esse batismo é alguma coisa, representa algo de grande, por causa d’Aquele de quem se diz: “Este é quem batiza!”. Mas não imagines que esse batismo, que é grande, possa servir-te para alguma coisa se não estiveres na unidade. A pomba desceu sobre o Senhor que acabava de ser batizado, como que para dizer: “Se possuis o batismo, permanece na pomba, para que te seja útil o que recebeste”. Vem, pois, à pomba, dizemos nós; não para que comeces a ter o que não tinhas, mas para que te comece a aproveitar o que tinhas. Fora da pomba tinhas, pois, o batismo, mas para a ruína; se o tiveres dentro, ele começará a servir-te para a salvação. Veemente apelo 15 É pouco dizer que o batismo não te seja de proveito: ele pode trazer-te até mesmo um dano. As coisas santas podem ser também prejudiciais. Elas encontram-se nos bons para a sua salvação; porém, nos maus, para a sua condenação.⁴⁷¹ Certamente, irmãos, nós sabemos o que recebemos e é santo, sem dúvida, o que recebemos; ninguém diz que não o seja. Mas, o que afirma o Apóstolo? “Aquele que come e bebe sem discernir o Corpo, come e bebe a própria condenação”.⁴⁷² Ele não diz que se trata de uma coisa má, mas que o mau, ao recebê-la mal, recebe para a sua condenação a boa coisa que recebe. Teria sido mau, com efeito, aquele bocado de pão dado a Judas pelo Senhor?⁴⁷³ De forma alguma! O Médico não daria veneno. O Médico deu a saúde. Mas, ao recebê-la de modo indigno, para sua própria ruína recebeu-a aquele, que não a recebeu em paz. O mesmo sucede, portanto, com quem é batizado. Diz ele: – Tenho eu o batismo. – Confesso-o, tu o tens. Mas vê bem o que tens. Precisamente porque o tens, serás condenado. – Por quê? – Porque possuis um bem da pomba, fora da pomba. Caso tenhas, na pomba, o que é da pomba, estarás seguro. Supõe que sejas um militar. Se, dentro de teu exército, trouxeres o distintivo⁴⁷⁴ do imperador, estás em segurança; se, porém, o trouxeres fora, não somente de nada te servirá esse distintivo para a milícia, como serás até mesmo punido como desertor. Vem, pois, vem! E não digas: Já tenho o batismo, e isso me basta. Vem, a pomba chama por ti, e chama-te gemendo. Meus irmãos, eu vos digo: chamai-os gemendo, não disputando; chamai-os orando, chamai-os convidando, chamai-os jejuando. Que, pela vossa caridade, eles entendam que vos compadeceis deles. Não duvido, meus irmãos, de que, se virem a vossa dor, ficarão cobertos de confusão, e voltarão à vida.⁴⁷⁵ Vem, pois, vem! Não temas. Teme, sim, se não vieres; ou antes, não temas, mas chora. Vem, alegrar-te-ás, se vieres. Gemerás, por certo, nas tribulações da peregrinação, mas alegrar-te-ás na esperança.⁴⁷ Vem para onde está a pomba, da qual foi dito: “Uma só é a minha pomba, ela é a única para sua mãe”.⁴⁷⁷ Vês uma única pomba sobre a cabeça de Cristo, e não vês as línguas espalhadas em toda a superfície do mundo? É o mesmo Espírito que se manifesta sob a forma de pomba e sob a forma de línguas. E, se é o mesmo Espírito que se mostra em forma de pomba e de línguas, é porque o Espírito Santo foi dado ao mundo todo, um mundo de que te separaste e, por isso, gritas com o corvo, em vez de gemeres com a pomba. Vem, pois! O batismo fora da Igreja 16 Mas, talvez estejas apreensivo, e digas: Como fui batizado fora da Igreja, receio ter-me tornado réu por isso, por tê-lo recebido fora. Já começaste a perceber por que se deve gemer. Dizes a verdade: és culpado, não por ter recebido o batismo, mas por tê-lo recebido fora. Guarda, pois, o que recebeste, e emenda o fato deo teres recebido fora. Recebeste um bem da pomba, mas fora da pomba. Duas são as coisas que escutas: recebeste, e o recebeste fora da pomba. Aprovo que o tenhas recebido, mas censuro que o tenhas recebido fora. Guarda, pois, o que recebeste: não é para ser alterado, mas reconhecido. É o caráter do meu Rei, não serei sacrílego. Corrijo o desertor, não altero o caráter. Entra na alma da Igreja 17 Não te glories do teu batismo por eu afirmar que se trata do mesmo batismo; eis que eu o digo: é o mesmo batismo, e toda a Igreja Católica afirma a mesma coisa. A pomba o vê e o reconhece, e geme porque o tens fora dela. Ela vê ali o que reconhece e vê, também, o que deve corrigir. Vem, é o mesmo batismo. Glorias-te de o teres recebido, e não queres vir? O que dizer então sobre os maus, que não pertencem à pomba? A pomba te responde: Os maus, entre os quais gemo, que não pertencem a meus membros – e é necessário que eu gema entre eles –, não têm aquilo de que tu te glorias? Não é verdade que muitos ébrios têm o batismo, assim como avaros e idólatras? E o que é pior, furtivamente? Não é verdade que os pagãos vão aos ídolos, ou pelo menos iam, publicamente? Agora, os cristãos recorrem ocultamente a adivinhos e consultam astrólogos. Esses também possuem o batismo, mas a pomba geme entre os corvos. Por que, pois, te alegras por teres o batismo? Possuis o que o mau também possui. Procura ter a humildade, a caridade, a paz. Procura adquirir o bem que ainda não tens, para que te aproveite o bem que tens. O mau exemplo de Simão, o Mago 18 Tens o mesmo que teve Simão, o Mago.⁴⁷⁸ Os Atos dos Apóstolos o testemunham, aquele livro canônico que se há de recitar todos os anos na Igreja. Como sabeis, tal livro é recitado cada ano durante o tempo anual de festa que se segue à Paixão do Senhor. Nele está escrito como o Apóstolo, uma vez convertido, transformou-se de perseguidor em pregador;⁴⁷ e também como, no dia de Pentecostes, o Espírito Santo foi enviado sob a forma de línguas repartidas como que de fogo.⁴⁸ Lemos ainda ali, como um grande número de habitantes da Samaria abraçou a fé, graças à pregação de Filipe. Esse Filipe entende-se como um dos Apóstolos, ou como um dos diáconos; pois lemos, nos mesmos Atos, que foram ordenados sete diáconos, entre os quais havia também um de nome Filipe. Graças à pregação de Filipe, portanto, os samaritanos abraçaram a fé. A Samaria começou a encher-se de fiéis. Simão, o Mago, encontrava-se ali. Por meio de suas artes mágicas, confundia o povo, a ponto de crerem que ele era a força mesma de Deus.⁴⁸¹ Impressionado, não obstante, pelos prodígios operados por Filipe, também ele creu. Mas os fatos que se seguiram demonstram de que tipo era a fé de Simão. Eis que Simão foi, também ele, batizado. Os apóstolos que estavam em Jerusalém tiveram conhecimento de tudo isso. E foram enviados até lá Pedro e João, tendo encontrado grande número de batizados. Como nenhum deles tinha recebido ainda o Espírito Santo na forma em que então descia sobre eles – de modo que, para mostrar o significado das nações que haviam de crer, falassem em línguas aqueles sobre os quais o Espírito Santo descia –, os apóstolos impuseram as mãos sobre eles, orando por eles, e eles receberam o Espírito Santo. Simão, o Mago, que ainda não era pomba na Igreja, mas corvo, porque procurava os seus próprios interesses e não os de Jesus Cristo⁴⁸² – razão pela qual mais amara nos cristãos o poder, do que a justiça –, viu que o Espírito Santo era dado pela imposição das mãos dos apóstolos – na verdade, não porque eles mesmos O dessem, mas porque, ao rezarem eles, era dado – e disse aos apóstolos: “Que dinheiro quereis receber de mim, para que também por imposição de minhas mãos o Espírito seja dado?”. Replicou-lhe Pedro: “Pereça o teu dinheiro e tu com ele, porque acreditaste ser possível comprar com dinheiro o dom de Deus”.⁴⁸³ A quem disse Pedro: Pereça o teu dinheiro e tu com ele? Certamente, a um batizado; pois Simão já havia recebido o batismo. Não se encontrava unido, contudo, às entranhas da pomba. Escuta o motivo pelo qual não estava unido. Presta atenção às próprias palavras do apóstolo Pedro, pois segue o texto: “Nesta fé, não tens parte nem herança, porque vejo que estás no fel da amargura”. A pomba não tem fel, Simão o tinha. Eis por que estava separado das entranhas da pomba. De que lhe servia, pois, o batismo? Não te glories, portanto, do batismo, como se te fosse suficiente a salvação decorrente dele. Não te irrites, depõe o teu fel, vem à pomba. É nela que te será útil aquilo que, fora dela, não somente de nada te serve, como também te prejudica. O mesmo batismo é dado aos católicos e aos donatistas 19 E não digas: “Não vou, porque fui batizado fora”. Começa a ter caridade, começa a produzir fruto. Encontre-se fruto em ti, e a pomba te introduzirá em seu interior. Encontramos isso na Escritura: a arca de Noé fora construída com madeiras incorruptíveis.⁴⁸⁴ Madeiras essas que significam os fiéis que pertencem a Cristo. Com efeito, como, a propósito do templo, os homens fiéis são chamados de pedras vivas com as quais o templo é construído,⁴⁸⁵ assim, os homens que perseveram na fé são chamados de madeiras incorruptíveis. Nessa arca, pois, incorruptíveis eram as madeiras, visto que a arca é a Igreja. Aí é que a pomba batiza. A arca é levada sobre a água, e as madeiras incorruptíveis foram batizadas dentro. Mas encontramos certas madeiras que, fora da arca, foram batizadas: todas as árvores que havia pelo mundo afora. A água era, todavia, a mesma, não outra. Proviera ela do céu e do abismo das fontes. Era a mesma água em que foram batizadas as madeiras incorruptíveis, que estavam na arca, e em que o foram aquelas outras, de fora. Soltou-se uma pomba. Não encontrou ela, de início, um repouso para os pés e voltou à arca. Tudo estava inundado pelas águas; e ela preferiu voltar a receber novo batismo. Aquele corvo, por sua vez, foi enviado antes que abaixassem as águas; rebatizado, não quis voltar e pereceu nas mesmas águas. Livre-nos Deus da morte daquele corvo! Por que não regressou, senão porque foi interceptado pelas águas? A pomba, pelo contrário, ao não encontrar repouso para os pés, ainda que as águas clamassem por ela de todos os lados: – “Vem, vem, batiza-te aqui!” – como gritam esses hereges: “Vem, vem, aqui tens o batismo!” –, retornou para a arca. Noé enviou-a novamente, tal como a arca vos envia, para que lhes faleis. E o que fez a pomba depois? Porque havia madeira batizada fora da arca, levou à arca um ramo de oliveira. Esse ramo tinha folhas e frutos: que em ti não haja somente palavras, não haja somente folhas, que haja fruto e regresses à arca; e não por ti mesmo, a pomba te faz voltar. Gemei aí por fora, a fim de fazê-los voltar para dentro. O valor da caridade 20 Se, além disso, esse fruto da oliveira for bem examinado, encontrarás o que era. O fruto da oliveira representa a caridade. Como o provamos? Assim como o azeite não se deixa submergir por líquido algum, mas, depois de atravessados todos, emerge e fica por cima, assim também se dá com a caridade. Ela não pode ficar presa embaixo. É necessário que fique por cima. Dela diz, por conseguinte, o Apóstolo: “Vou indicar-vos um caminho superior”. Do azeite dissemos que fica por cima; para que não reste dúvida de que a respeito da caridade disse o Apóstolo: “Vou indicar-vos um caminho superior”, ouçamos o que se segue: “Ainda que eu falasse em línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa, ou como um címbalo que retine”.⁴⁸ – Vai, agora, Donato, e grita: “Eu sou eloquente!”. Vai e clama: “Eu sou douto!”. Qual a medida da tua eloquência, a medida da tua doutrina? Por acaso falaste as línguas dos anjos? Mesmo que as tivesses falado, no entanto, se não tiveres a caridade, eu não ouviria senão bronzes a soar, címbalos a retinir. Ora, busco alguma solidez; oxalá encontre fruto nas folhas: não haja só palavras! Haja azeitona e… que eles voltem à arca. Sem a caridade, a fé não tem proveito21 Dirás, contudo: “Eu tenho o sacramento”. E dizes a verdade: o sacramento é divino; tens o batismo e eu o confesso. Mas o que diz o mesmo Apóstolo? “Ainda que eu conhecesse todos os mistérios,⁴⁸⁷ e tivesse o dom da profecia, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar os montes…”;⁴⁸⁸ para que não venhas tu a dizer: “Abracei a fé, isto me basta!”. E o que diz o apóstolo Tiago? “Também os demônios creem, e estremecem”.⁴⁸ A fé é uma grande coisa, mas, sem a caridade, de nada aproveita. Os demônios também confessavam Cristo. Crendo, portanto, não amando, é que diziam: “Que queres conosco, Jesus Nazareno?”.⁴ Possuíam a fé, mas não a caridade; por isso, eram demônios. Não te glories da fé, ainda és comparável aos demônios. Não digas a Cristo: “O que há entre mim e ti?”. É a unidade de Cristo que te fala: “Vem, conhece a paz, volta às entranhas da pomba. Foste batizado fora. Produze fruto, e regressas à arca”. Para que vos torneis bons 22 Mas replicas ainda: – Se somos maus, por que nos procurais? – Para que vos torneis bons. Procuramos-vos precisamente porque sois maus. Se não o fôsseis, já vos teríamos encontrado, não estaríamos à vossa procura. Quem é bom, já foi encontrado; e quem é mau, é ainda procurado. Eis porque vos procuramos: regressai à arca. – Mas eu já tenho o batismo! – “Ainda que eu conhecesse todos os mistérios,⁴ ¹ e tivesse o dom da profecia, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar os montes, se não tivesse a caridade, eu nada seria”.⁴ ² Que eu veja aí o fruto, que eu veja aí a azeitona; e voltas à arca! A caridade é a veste nupcial 23 – Mas o que dizes ainda? – Eis que suportamos muitos males. – Prouvera a Deus que os suportásseis por Cristo, e não por vossas próprias honras! Ouvi o que se segue: vangloriam-se eles, por vezes, de fazer muitas esmolas, de dar aos pobres, de sofrer incômodos; mas suportam isso por Donato, e não por Cristo. Vê de que modo sofres, pois se sofres por Donato, é por um orgulhoso que sofres. Não estás na pomba, se sofres por Donato. Não era ele um amigo do Esposo, pois se o fosse, buscaria a glória do Esposo, e não a sua própria.⁴ ³ Vê o amigo do Esposo a dizer: “Esse é quem batiza!”.⁴ ⁴ Não era, pois, um amigo do Esposo, aquele por quem sofres. Não tens a veste nupcial. Se ao banquete vieste, tens de ser lançado fora. Ou melhor, precisamente porque foste lançado fora, és um miserável. Regressa de uma vez, e não te glories. Ouve o que diz o Apóstolo: “Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos pobres, ainda que entregasse o meu corpo a arder, se não tivesse a caridade…”.⁴ ⁵ Eis o que não tens. “Ainda que entregasse o meu corpo a arder...”, diz ele – e isso, por certo, em nome de Cristo, mas, como há muitos que o fazem por orgulho, e não por caridade: “Ainda que entregasse o meu corpo a arder, se não tivesse a caridade, isso de nada me adiantaria”. Por caridade, fizeram-no os mártires, que sofreram no tempo das perseguições. Fizeram-no por caridade, mas estes o fazem por vaidade e por soberba, pois, quando vem a faltar um perseguidor, eles se atiram a si mesmos nos precipícios. – Vem, pois, para teres a caridade! – Mas nós possuímos mártires… – Que mártires? Não são pombas; por isso tentaram voar, mas caíram do alto dos rochedos… Conselhos aos fiéis 24 Vede, meus irmãos, como tudo brada contra eles: todas as páginas divinas, toda a profecia, todo o Evangelho, todas as cartas apostólicas, todos os gemidos da pomba. E, todavia, ainda não acordam, ainda não se despertam. Se nós somos a pomba, gemamos, suportemos, esperemos: a misericórdia de Deus intervirá para que o fogo do Espírito Santo ferva na vossa simplicidade, e eles virão. É preciso não desesperar. Rezai, pregai, amai: o Senhor é, sem sombra de dúvida, poderoso! Alguns já começaram a conhecer a própria desfaçatez: muitos a reconheceram, muitos enrubesceram. Cristo intervirá para que outros também a reconheçam. E, certamente, meus irmãos, que pelo menos fique ali tão somente a palha, todos os grãos sejam recolhidos; que tudo o que entre eles tiver frutificado volte à arca, por meio da pomba. Última objeção dos donatistas 25 Por outro lado, uma vez que perdem espaço por toda parte, o que objetam contra nós, ao não encontrarem mais o que dizer? – Tomaram nossas quintas, levaram nossas propriedades – apresentam como prova testamentos de homens. – Eis aqui, dizem, um terreno que Gaio Sejo doou à igreja presidida por Faustino. De que igreja era bispo esse Faustino? Que igreja é essa? A igreja, afirmam eles, da qual Faustino era o chefe. Mas Faustino não era chefe de uma igreja, mas de um partido.⁴ A Igreja, porém, é a pomba. Por que clamas? Não devoramos essas quintas; que a pomba as tenha! Procure-se saber quem é a pomba, e essa as tenha. Pois, vós o sabeis, meus irmãos, essas quintas não pertencem a Agostinho. E se não o sabeis, e julgais que me regozijo com a posse delas, Deus o sabe. Ele conhece o que penso eu dessas quintas, o quanto elas me fazem sofrer. Conhece meus gemidos, se é que Se dignou conceder-me algo da pomba. Estão aí as quintas. Com que direito as reivindicais? Com direito divino ou humano? Respondei! Encontramos o direito divino nas Escrituras; o direito humano, nas leis dos reis. Em virtude de que direito, cada pessoa possui o que possui? Não é em virtude do direito humano? Pois, pelo direito divino, “Do Senhor é a terra, com tudo o que ela contém”.⁴ ⁷ Deus fez, de um só barro, pobres e ricos. E a mesma terra sustenta pobres e ricos. Em virtude do direito humano, contudo, é que se diz: Esta quinta é minha, esta casa é minha, este escravo é meu. Trata-se, pois, de um direito humano, de um direito dos imperadores. Por quê? Porque Deus distribui ao gênero humano os próprios direitos humanos por meio dos imperadores e dos reis da terra. Quereis que leiamos as leis dos imperadores e tratemos, de acordo com elas, a questão das quintas? Pois, se pretendeis possuí-las em virtude de um direito humano, recitemos as leis dos imperadores e vejamos se eles quiseram que alguma coisa fosse possuída pelos hereges. Que tenho eu a ver com o imperador? – dirás. É graças ao direito dele que possuis a terra. Ou, então, suprime o direito dos imperadores; e quem ousará dizer: Esta quinta é minha, ou este escravo é meu, ou esta casa é minha? Mas se, para que os homens tivessem em propriedade essas coisas, receberam tais direitos dos reis, quereis que leiamos as leis, a fim de vos alegrardes pelo fato de terdes um jardim que seja, e não imputardes senão à mansidão da pomba que aí se vos permita pelo menos permanecer? De fato, leem-se leis muito claras, nas quais preceituaram os imperadores que nada ousassem possuir em nome da Igreja os que, à margem da comunhão da Igreja Católica, usurpam para si o nome cristão e não querem cultuar em paz o Autor da paz. Conclusão 26 Insistem eles: Mas, o que temos a ver com o imperador? Eu já o disse: trata-se do direito humano. E, no entanto, um apóstolo quis que se obedecesse aos reis, que se honrassem os reis, e disse: “Honrai o rei”.⁴ ⁸ Não digas: Que me importa o rei? Pois, o que te importa a propriedade? É pelo direito dos reis que se possuem as propriedades. Disseste: Que me importa o rei? Não fales, então, que as propriedades são tuas, porque renunciaste aos mesmos direitos humanos por força dos quais se possuem as propriedades. Retomas, por fim: Trata-se de direito divino. Nesse caso, recitemos o Evangelho. Vejamos até onde se estende a Igreja Católica de Cristo, sobre quem desceu a pomba que ensinou: “Esse é que batiza”.⁴ Como, pois, poderia possuir por direito divino quem diz: Sou eu que batizo, quando a pomba diz: “Esse é que batiza” e quando a Escritura diz: “É única a minha pomba, ela é única para a sua mãe”?⁵ Por que dilacerastes a pomba? Antes, por que dilacerastes vossas próprias entranhas? – porque para vós a dilacerais, a pomba permanece intacta. Portanto, meus irmãos, já que eles nada mais têm a dizer em parte alguma, eu digo o que têm a fazer: venham à Igreja Católica e conosco possuirão, não somente a terra,mas também Aquele que fez o céu e a terra. HOMILIA 7 As testemunhas apontam o salvador (Jo 1,34-51) Motivos da falsa e da verdadeira alegria 1 Alegramo-nos com a vossa presença. Alegramo-nos com a vossa afluência, pois viestes com uma disposição tal, que ultrapassa o que pudemos esperar. É isto o que nos alegra e consola em meio a todos os trabalhos e perigos desta vida: o vosso amor a Deus, vosso piedoso esforço, vossa firme esperança e vosso fervor de espírito. Ouvistes, quando se lia o salmo, que, em meio a este mundo, o pobre e indigente clama a Deus.⁵ ¹ Essa voz, com efeito, que amiúde escutastes e de que vos deveis lembrar, não é a voz de um único homem e, contudo, é a voz de um único homem. Não é a de um só homem, porque há muitos fiéis, grãos numerosos a gemer no meio das palhas, espalhados pelo mundo todo; é de um único homem, no entanto, porque todos são membros de Cristo e, por conseguinte, formam um só Corpo. Esse povo pobre e indigente não sabe o que seja alegrar-se com o mundo: sua dor é interior; e igualmente interior, a sua alegria. Nessa interioridade, não penetra senão Aquele que ouve a quem geme e coroa a quem espera. A alegria deste mundo é vaidade. Com grande ansiedade, espera-se que venha, mas, quando chega, não se pode reter. O dia de hoje, devo dizer, é dia de alegria para os perdidos nesta cidade; amanhã, por certo, não existirá. Esses mesmos homens tampouco serão amanhã o que são hoje. Passam todas as coisas, voam todas e, como fumaça, esvaecem. Ai daqueles que amam tais realidades! Toda alma segue o que ama. “Toda a carne é feno, e toda a honra da carne é como a flor do feno. Secou-se o feno, caiu a flor, mas a Palavra do Senhor permanece para sempre”.⁵ ² Eis o que deves amar, se quiseres permanecer para sempre. Poderias dizer, porém: Como posso eu apreender o Verbo de Deus? Ora, “O Verbo Se fez carne e habitou entre nós”.⁵ ³ Constatações 2 Por isso, caríssimos, caiba à nossa pobreza e indigência condoer-nos daqueles que julgam estar na abundância, pois a alegria deles é como a dos loucos. Tal como o louco se entrega habitualmente à alegria em sua loucura, e ri, e tem dó de quem está são; assim, também nós, caríssimos, se recebemos o remédio que vem do céu – pois todos nós éramos também loucos –, uma vez que fomos curados, por não amarmos mais o que amávamos antes, é preciso que gemamos diante de Deus, por aqueles que ainda se encontram na loucura. Deus é, de fato, poderoso para salvá-los também. É necessário que olhem para si mesmos, e se desagradem de si. Querem assistir a espetáculos, mas não querem assistir a seu próprio espetáculo. Se, por um momento, olharem para si, verão a sua confusão. Enquanto esperamos que isso se dê, outras sejam as nossas ocupações, outras sejam as distrações de nossa alma. Mais vale a nossa dor, que a alegria deles. No tocante ao número dos irmãos, é difícil que haja alguém dentre os varões que se tenha deixado arrastar por aquela festa. Quanto, porém, ao número das irmãs, contrista-nos e é mais de deplorar que não corram à igreja, antes, precisamente elas, a quem se não o temor, pelo menos o pudor deveu manter afastadas de um espetáculo público. Ponha os olhos nisso Aquele que o vê, e a Sua misericórdia intervenha para curar a todos. Quanto a nós, que aqui estamos reunidos, alimentemo-nos dos manjares de Deus, e seja Sua Palavra a nossa alegria. Convidou-nos Ele, com efeito, a Seu Evangelho. Ele mesmo é nosso alimento, em relação ao qual nada há de mais doce, mas só se alguém tiver no coração um paladar sadio.⁵ ⁴ Revisão dos sermões precedentes 3 Julgo que a vossa caridade bem se lembra de que este Evangelho vem sendo exposto por meio de leituras convenientes, de forma ordenada. Penso, também, que não vos escapou o que já foi explicado, máxime os comentários mais recentes, a respeito de João e da pomba. Sobre João, a saber, dissemos o que aprendeu de novo no Senhor por meio da pomba, ele que já conhecia o Senhor. E isso foi descoberto graças à inspiração do Espírito Santo, haja vista que João já conhecia, certamente, o Senhor, mas que o mesmo Senhor é que haveria de batizar, sem transmitir a ninguém mais a potestade de fazê-lo, isso aprendeu pela pomba, porque a ele fora dito: “Aquele sobre quem vires o Espírito Santo descer e permanecer, é esse que batiza no Espírito Santo”.⁵ ⁵ O que vem a significar: “Esse é que batiza”? Quer dizer que não batiza outro, ainda que Ele venha a batizar por meio de outrem. Por que João o aprendeu por meio da pomba? Muito já foi dito a esse respeito, não posso nem é preciso repetir tudo. Lembrarei, não obstante, que é, antes de tudo, por causa da paz; pois a pomba trouxe para a arca também as madeiras que foram batizadas fora, por ter achado fruto nelas, conforme vos recordais da pomba enviada da arca por Noé, a qual nadava sobre as águas, era lavada pelo batismo, mas não se submergia. Depois que foi solta por Noé, a pomba retornou com um ramo de oliveira, que não tinha, porém, apenas folhas, também tinha fruto.⁵ O que se há de desejar com relação a nossos irmãos que se batizaram fora é que tragam fruto; a pomba não os deixará fora, sem que os conduza à arca. Todo esse fruto é, pois, a caridade, sem a qual o homem nada é, seja qual for a outra coisa que tiver. Recordamos já e muito abundantemente repassamos isso, que foi dito pelo Apóstolo. Diz ele, pois: “Ainda que eu falasse em línguas, a dos homens e a dos anjos, se eu não tivesse a caridade seria como um bronze que soa, ou como um címbalo que retine. Ainda que eu tivesse toda a ciência, o conhecimento de todos os mistérios⁵ ⁷ e de toda a profecia, ainda que tivesse toda a fé…” – o que queria sugerir com “toda a fé”? – “… a ponto de transportar os montes, se não tivesse a caridade, eu nada seria. Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos pobres, ainda que entregasse o meu corpo a arder, se não tivesse a caridade, isso de nada me serviria”.⁵ ⁸ Ora, não podem pretender de modo algum possuir a caridade os que dividem a unidade. Eis o que foi dito; vejamos o que segue. O Filho de Deus e os filhos adotivos 4 “João deu testemunho, porque viu”. E que testemunho deu ele? “De que Ele é o Filho de Deus”.⁵ Era necessário que batizasse Aquele que é o Filho único de Deus, não um filho adotivo. Os filhos adotivos são os ministros do Único. O Único possui a potestade; os filhos adotivos, o ministério. Pode acontecer, entretanto, que batize um ministro que não pertença ao número dos filhos, porque vive mal e procede mal. O que nos consola? “Esse é que batiza”.⁵¹ “Eis o Cordeiro de Deus” 5 “No dia seguinte, João se achava lá, de novo, com dois de seus discípulos. Ao ver Jesus que passava, disse: Eis o Cordeiro de Deus”.⁵¹¹ Este é o Cordeiro singularmente, por certo; pois Seus discípulos também são ditos cordeiros: “Eis que eu vos envio como cordeiros entre lobos”.⁵¹² São eles ditos também luz: “Vós sois a luz do mundo”,⁵¹³ mas diferentemente d’Aquele de quem se disse: “Ele era a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo”.⁵¹⁴ Aliás, também o Cordeiro o é de modo singular, o único sem mancha, sem pecado; não um cordeiro cujas manchas se teriam lavado, mas o Cordeiro sem mancha alguma. O que significa o que João disse do Senhor: “Eis o Cordeiro de Deus”? Pois João mesmo não era um cordeiro? Não era um santo varão? Não era o amigo do Esposo? Aquele o é, por Sua vez, de maneira singular: “Eis o Cordeiro de Deus”, porque somente pelo Sangue desse Cordeiro em singular é que puderam ser remidos os homens. O valor do Sangue do Cordeiro e suas contrafações 6 Se reconhecemos, meus irmãos, que nosso preço é o Sangue do Cordeiro, que classe de gente será essa que celebra hoje a festividade do sangue de não sei que mulher?⁵¹⁵ Oh, como são ingratos! Roubado foi o ouro, dizem, e da orelha da mulher, tendo corrido sangue. Esse ouro foi colocado no prato ou na balança e pesou muito mais em consequência do sangue. Se o sangue de uma mulher teve peso para inclinar o ouro, que peso não terá, para inclinar o mundo, o sangue do Cordeiro, porquem o mundo foi feito! E, certamente, não sei que espírito foi aquele, que foi aplacado com o sangue da mulher, para sobrecarregar o peso. Ora, os espíritos impuros sabiam que Jesus Cristo havia de vir, ouviram-no pelos anjos, ouviram-no pelos profetas, e esperavam que Ele viesse. Pois, se não esperassem, por que exclamaram: “Que tens tu que ver conosco, Jesus Nazareno? Vieste para nos arruinar antes do tempo? Sabemos quem tu és: o Santo de Deus”.⁵¹ Eles sabiam que devia vir, mas ignoravam o tempo da vinda. O que ouvistes no salmo a respeito de Jerusalém? “Porque os teus servos tiveram como beneplácito as suas pedras, compadecidos estarão da sua poeira; levantando-te tu, diz, compadecer-te-ás de Sião, pois é tempo de teres piedade dela”.⁵¹⁷ Quando chegou o tempo de que Deus Se compadecesse, veio o Cordeiro. Mas que Cordeiro é esse, a quem os lobos o temem? Que Cordeiro é esse que, morto, matou o leão? Com efeito, o diabo é chamado de “leão que vos rodeia a rugir, procurando a quem devorar”.⁵¹⁸ Pelo Sangue do Cordeiro, vencido foi o leão. Eis os espetáculos dos cristãos. E mais ainda, enquanto os pagãos com seus olhos carnais não veem senão a vaidade, nós, com os olhos de nosso coração, vemos a verdade. Não penseis, irmãos, que o Senhor nosso Deus nos tenha deixado sem espetáculos; pois, se não houvesse espetáculo algum, por que vos congregastes hoje? Eis o que dissemos, vós o vistes e exclamastes. Não teríeis lançado exclamações, se não o tivésseis visto. E grande é também isto: contemplar, por todo o mundo, o leão vencido pelo Sangue do Cordeiro, os membros de Cristo arrancados aos dentes dos leões e ajuntados ao Corpo de Cristo! Não sei, pois, que semelhança imitou certo espírito, ao querer que sua imagem se compre com sangue, porque sabia que, nalgum momento, o gênero humano havia de ser redimido por um Sangue precioso. Os maus espíritos inventam, com efeito, certas sombras de honra tributada a si mesmos, a fim de enganar assim os que seguem a Cristo: a ponto, meus irmãos, de aqueles mesmos que tentam seduzir por meio de laços, encantamentos e expedientes do inimigo, misturarem o nome de Cristo com as suas invenções, e, uma vez que já não podem seduzir os cristãos, para ministrarem veneno, juntam-lhe algo de mel, de modo que, sob o que é doce, fique escondido o que é amargo e seja bebido para a perdição. A esse respeito, eu soube, em dado momento, que o sacerdote daquele Pileato tinha o costume de proclamar: “Pileato mesmo é também cristão!”. Por que isso, meus irmãos, senão porque, de outro modo, não podem ser seduzidos os cristãos? Colocar nossa esperança só em Cristo 7 Não procureis Cristo noutro lugar, portanto, senão ali onde Cristo quis ser-vos pregado. E conforme Ele quis ser-vos pregado, conservai-O e inscrevei-O em vosso coração. É Ele como um muro contra todas as investidas e contra todas as insídias do inimigo. Não temais! Este não tenta, a menos que tenha recebido permissão. Consta que ele nada faz se não tiver recebido permissão, se não tiver sido enviado. Ele é enviado, em sua qualidade de anjo mau, por parte de uma potestade que o domina. E recebe a permissão quando algo pede. Mas isso, irmãos, não acontece senão para que os justos sejam provados e os injustos, punidos. Por que temes, então? Caminha no Senhor, teu Deus, e fica seguro. O que Ele não quiser que sofras, não sofrerás tu; mas o que Ele permite que sofras é como o açoite de quem corrige, não como o castigo de quem condena. Em vista de uma herança eterna somos educados, e desdenhamos ser flagelados? Meus irmãos, se algum menino resistisse a ser golpeado por seu pai com bofetadas ou açoites, não se diria que é um orgulhoso, rebelde e ingrato, para com a disciplina paterna? E, entre os homens, com que finalidade um pai educa a seu filho? Para impedir que perca os bens temporais que para ele adquiriu; o pai acumulou para ele tais bens e não quer que sejam perdidos, pois o próprio pai os deixa, não tendo podido aferrá-los para sempre. Ele não educa um filho com quem há de possuir ditos bens, mas um que, depois dele, os vai possuir. Meus irmãos, se um pai educa com tal cuidado o filho, que deve ser o seu sucessor, e este passará igualmente por todas aquelas vicissitudes por que teria de passar aquele que o admoestava; como não haveis de querer que nos eduque o nosso Pai, a quem não havemos de suceder, mas a quem havemos de acercar-nos, e com quem deveremos permanecer para sempre, na fruição da herança que não murcha, nem morre, nem conhece o granizo? Ele mesmo é a herança e é – Ele próprio – o Pai! Possuí-l’O-emos, e não havemos de ser educados? Suportemos, pois, a educação do Pai. Quando nos doer a cabeça, não recorramos aos encantadores, nem aos adivinhos, nem aos remédios de vaidade. Meus irmãos, como não hei de lamentar-vos? A cada dia, deparo-me com isso; e o que hei de fazer? Não tenho podido ainda convencer os cristãos de que a esperança há de ser posta em Cristo? Eis que morre alguém a quem se aplicou um remédio desses – quantos morreram com esses remédios, e quantos foram curados sem eles! –, com que fronte essa alma saiu para Deus? Ela perdeu o sinal de Cristo, recebeu sinal do diabo. Talvez diga ela: – Não perdi o sinal de Cristo! Tiveste, então, o sinal de Cristo juntamente com o sinal do diabo! Cristo não quer comunhão; quer possuir, sozinho, o que comprou. E comprou por tal preço, que deseja possuí-lo sozinho. E tu O fazes coproprietário com o diabo, a quem tu, pelo pecado, te venderas. “Ai de quem tem duplicidade de coração!”.⁵¹ Ai do que reserva em seu coração uma parte a Deus e outra ao diabo! Indignado por dares ali uma parte ao diabo, Deus Se afasta e, assim, o diabo te possuirá todo. Não é sem razão, portanto, que o Apóstolo diz: “Não deis lugar ao diabo!”.⁵² Reconheçamos, pois, o Cordeiro, irmãos, reconheçamos o nosso preço. João dá testemunho do Cordeiro de Deus a seus discípulos 8 “João achava-se lá, e dois de seus discípulos”.⁵²¹ Eis aí dois dos discípulos de João. João era tão profundamente amigo do Esposo, que não procurava sua própria glória, mas dava testemunho da verdade. Por acaso quis que os seus discípulos permanecessem com ele, de modo que não seguissem o Senhor? Pelo contrário! Ele mesmo mostra aos seus discípulos Aquele a quem deviam seguir. Os discípulos o tinham por Cordeiro, mas ele disse: Por que me olhais? Eu não sou o Cordeiro: “Eis o Cordeiro de Deus”, e mostrou-lhes Aquele de quem, também um pouco antes, dissera: “Eis o Cordeiro de Deus”. Mas, de que nos serve o Cordeiro de Deus? Acrescenta, então: “Eis Aquele que tira o pecado do mundo”.⁵²² Tendo ouvido isso, seguiram-n’O os dois discípulos que estavam com João. Os discípulos seguem a Jesus 9 Vejamos o que segue. “Eis o Cordeiro de Deus” – foram palavras de João. “Os seus dois discípulos ouviram-no falar e seguiram Jesus. Jesus, voltando- Se e vendo que O seguiam, disse-lhes: O que procurais? Disseram-lhe: Rabi – nome que, traduzido, significa Mestre –, onde moras?”.⁵²³ Não O seguem, todavia, como se já quisessem unir-se a Ele. É-nos conhecido em que momento se uniram a Ele, porque Ele os chamou da barca. “Entre os dois, estava André”, como ouvistes há pouco. Ora, André era o irmão de Pedro e sabemos, pelo Evangelho, que o Senhor chamou Pedro e André da barca, dizendo: “Vinde após mim, e eu farei de vós pescadores de homens”.⁵²⁴ E, a partir desse momento, uniram-se já a Ele para não mais O deixar. Agora, porém, esses dois discípulos O seguem, mas não como quem não houvesse de deixá-l’O. Eles quiseram ver onde habitava o Mestre, e fazer o que está escrito: “Teu pé gaste a soleira da porta dele. Levanta-te para vires até ele assiduamente e instrui-te nos preceitos dele”.⁵²⁵ Mostrou-lhes Ele onde permanecia, e eles foram e ficaram com Ele. Que dia feliz transcorreram, e que feliz noite! Quem há que nos diga o que eles teriam ouvido do Senhor? Edifiquemos, nós também, e façamos uma casa em nosso coração, à qual Ele venha a ensinar-nos e a entreter-se conosco. Era a décima hora 10 “Jesus, voltando-Se e vendo que Oseguiam, disse-lhes: Que procurais? Disseram-Lhe: Rabi – nome que, traduzido, significa Mestre –, onde moras? Disse-lhes Ele: Vinde e vede. Eles foram e viram onde morava, e permaneceram com Ele aquele dia. Era cerca da hora décima”.⁵² Pensamos, por acaso, que o evangelista nos diz, sem interesse algum, a hora em que tal fato se deu? É possível que ele aí não tenha querido fazer-nos notar coisa alguma, nem que procurássemos algo? “Era a hora décima”. Esse número significa a Lei, pois a Lei foi dada em dez mandamentos. Ora, chegara o tempo em que a Lei seria cumprida pelo amor, visto que os judeus não a puderam cumprir pelo temor. Por isso, declarou o Senhor: “Não vim para abolir a Lei, mas para cumpri-la”.⁵²⁷ Com razão, portanto, os dois discípulos, na décima hora, puseram-se a seguir o Senhor, levados pelo testemunho do amigo do Esposo. E foi na décima hora que Ele mesmo ouviu a denominação: “Rabi”, que significa Mestre. E se, à décima hora, o Senhor ouviu “Rabi” e o número dez corresponde à Lei, é porque o Mestre da Lei não é outro senão Aquele que deu a Lei. Que ninguém diga ser um o que deu a Lei, e outro o que a ensina. Aquele que a ensina é o mesmo que a deu. Ele mesmo é o Mestre da Sua Lei, e é quem a ensina. A misericórdia está em Sua língua e, por isso, Ele ensina a Lei com misericórdia, conforme se diz da Sabedoria: “Traz, porém, na língua a Lei e a misericórdia”.⁵²⁸ Não temas, se não podes cumprir a Lei. Refugia-te junto à misericórdia. Se cumprir a Lei for muito para ti, usa daquele expediente, usa daquele quirógrafo, serve-te das preces que compôs e redigiu para ti o Jurisperito celeste. Como Cristo nos ensinou a pedir perdão por nossas faltas 11 Aqueles que têm, com efeito, uma causa a defender, e desejam dirigir uma súplica ao imperador, procuram algum hábil advogado por cuja mão se lhes redija a fórmula da súplica; pois receiam, caso peçam talvez de modo inconveniente, não somente não impetrar o que pedem, mas obter até mesmo um castigo, em vez do benefício. Quando os Apóstolos procuravam dirigir suas súplicas a Deus, mas não sabiam como acudir ao Imperador, disseram a Cristo: “Senhor, ensina-nos a orar”,⁵² isto é: Ó jurisperito nosso, que nos assistes, ou melhor, que partilhas com Deus o mesmo trono, compõe-nos uma prece. E o Senhor ensinou-lhes conforme o livro do direito celeste. Ensinou como deviam rezar, mas, no que ensinou, incluiu certa condição: “Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”.⁵³ Se tu não pedires conforme a Lei, tornar-te-ás culpado. E, tornando-te culpado, tu não vens a temer diante do Imperador? Oferece o sacrifício da humildade, oferece o sacrifício da misericórdia. Dize em tua oração: “Perdoa-me, porque eu também perdoo”. Mas se o dizes, faze-o. O que farás, para onde irás, se tiveres mentido em tuas preces? Não só ficarás, como se diz no tribunal, privado do benefício do rescrito, mas nem mesmo o rescrito obterás. É, com efeito, uma regra do direito forense que a quem mentiu em suas preces não beneficie o que impetrou. E isso se dá entre homens, porque um homem pode ser enganado. O imperador pôde ser enganado quando lhe dirigiste tuas preces. Disseste tudo quanto quiseste, e aquele a quem falaste não sabe se é verdade o que disseste. Por isso, ele deixa que seja o teu adversário que manifeste a tua culpabilidade, de modo que, se fores convencido de mentira ante o juiz – haja vista que o imperador, como ignora se mentiste, não pôde senão conceder-te a graça que pedias –, fiques despojado do próprio benefício do rescrito ali mesmo aonde o levaste. Deus, porém, que conhece se mentes ou se dizes a verdade, não só não permite que o rescrito te sirva para algo no juízo, mas nem mesmo permite que o obtenhas, porque ousaste mentir à Verdade. Recorrer ao Médico divino nas doenças 12 Que hás de fazer, pois? Dize-me. Cumprir a Lei em todos os pontos, sem transgredir em parte alguma, é coisa difícil. A culpa, portanto, é certa. Não queres valer-te do remédio? Eis, meus irmãos, o remédio que Deus pôs à nossa disposição, contra as doenças da alma. Qual é? Quando sentes dor de cabeça, louvamos que tenhas posto o Evangelho junto à tua cabeça, em vez de recorreres a um amuleto. A fraqueza humana chegou a tal ponto, e tão dignos de lástima são os homens que recorrem aos amuletos, que nós nos alegramos quando vemos um homem em seu leito, agitado com febres e dores, que não tenha colocado sua confiança noutra coisa senão em que o Evangelho se lhe pusesse sobre a cabeça; não porque o Evangelho tenha sido feito para isso, mas porque ele foi preferido aos amuletos. Ora, se o Evangelho é colocado sobre a cabeça para abrandar as dores, por que não se há de colocar sobre o próprio coração, para ser este curado dos pecados? Que se faça isso, pois. Coloque-se junto ao coração, cure-se o coração! É bom, sim, é bom que não te preocupes com a saúde corporal, senão para pedi-la a Deus. Se Deus sabe que ela te é útil, há de conceder-te essa graça. Se não te der, é porque tê-la não traria proveito. Quantos se conservam inocentes por estarem no leito, doentes; mas, com saúde, talvez se entregassem à prática de crimes? Para quantos é prejudicial a saúde! Quanto melhor seria para um ladrão, que se propõe matar alguém num desfiladeiro, que estivesse doente? Quanto melhor seria que estivesse sacudido pela febre quem se levanta à noite para demolir o muro alheio? Estaria inocentemente doente, mas goza criminosamente de boa saúde. Deus sabe, portanto, o que nos convém. Procuremos tão somente que nosso coração esteja são de pecados e, se formos flagelados no corpo, peçamos- Lhe nos ajude. O apóstolo Paulo rogou-Lhe ficar livre do aguilhão da carne, e Deus não quis atendê-lo. Porventura ficou ele perturbado? Queixou-se, com tristeza, de ter sido abandonado? Pelo contrário! Disse que o Senhor não o abandonara, visto que não lhe foi tirado o que pedira para que aquela fraqueza se curasse. É o que descobriu na palavra do Médico: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”.⁵³¹ Como sabes que Deus não te quer curar? Talvez convenha que sejas ainda provado. Como sabes até que ponto está gangrenado o tecido que o médico corta, fazendo penetrar o bisturi pelas áreas corrompidas? Por acaso não sabe o modo de proceder, o que faz, e até onde deve cortar? Será que o grito de quem é operado retém a mão do médico que corta com habilidade? O doente grita, mas o médico corta. Será ele cruel por não dar ouvido a quem grita, ou não será, antes, misericordioso, por atacar a ferida para curar o doente? Disse-vos isso, meus irmãos, para que ninguém procure algo à margem do auxílio de Deus, quando, quiçá, nos encontramos nalguma correção do Senhor. Cuidado para que não venhais a perecer! Cuidado para não vos afastardes do Cordeiro, e não serdes devorados pelo leão! Jesus é o ungido de Deus 13 Já dissemos, pois, por que isso aconteceu à hora décima. Vejamos o que segue. “André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que, tendo ouvido as palavras de João, O haviam seguido. Ele encontrou primeiramente Simão, seu irmão, e lhe disse: Encontramos o Messias, – que quer dizer Cristo”.⁵³² “Messias”, em hebraico, é “Cristo” em grego, e “Ungido” em latim;⁵³³ com efeito, da “unção” tira Cristo o Seu nome. Chrĩsma, em grego, quer dizer “unção”; daí que Cristo signifique “Ungido”. Ele é ungido de maneira singular, é o principalmente Ungido; e a partir disso, todos os cristãos são ungidos, mas Ele o é de modo principal. Ouve como diz um Salmo: “Por isso, Deus, o teu Deus te ungiu, com o óleo da alegria, de preferência aos teus companheiros”.⁵³⁴ Companheiros d’Ele são, pois, os santos todos; mas Ele é, de um modo único, o Santo dos santos, singularmente Ungido, singularmente Cristo. Jesus troca o nome de Simão para Pedro 14 “André conduziu Simão a Jesus. Fitando-o, disse-lhe Jesus: Tu és Simão, filho de João, chamar-te-ás Cefas – que quer dizer Pedro”.⁵³⁵ Não é grande coisa que o Senhor tenha dito de quem ele era filho. O que há aí de extraordináriopara o Senhor? Ele conhecia o nome de todos os Seus santos, daqueles que Ele predestinou antes da criação do mundo; e te admiras que tenha dito a um só homem: Tu és o filho de tal homem e terás tal nome? Admirável é que lhe tenha mudado o nome, e de Simão tenha feito Pedro? Pedro vem de pedra. Ora, a pedra é a Igreja. Portanto, no nome de Pedro, figurou-se a Igreja. E quem pode estar seguro, senão quem edifica sobre a pedra? E o que diz o próprio Senhor? “Todo aquele que ouve minhas palavras e as põe em prática será comparado a um homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha” – que não cede às tentações. “Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, mas ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha. Todo aquele que ouve estas minhas palavras, mas não as pratica...” – que cada um de nós tema já, e se acautele – “será comparado a um insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi grande a sua ruína”.⁵³ De que serve entrar na Igreja a quem quer construir sobre a areia? Ouvindo, e não praticando, ele constrói, sem dúvida, mas sobre a areia. Se nada ouve, por outro lado, nada constrói. Ouvindo, porém, edifica; mas perguntamos onde. São dois os gêneros de construtores: sobre a pedra e sobre a areia. Que sucede aos que não ouvem? Estão seguros? Acaso, diz o Senhor, que estão seguros porque nada constroem? Estão desprotegidos debaixo da chuva, ante os ventos, ante os rios. Quando chegam as intempéries, arrastam-nos, antes mesmo de derrubar as casas. Portanto, há somente uma segurança: construir, e construir sobre a pedra. Se quiseres escutar e não pôr em prática, constróis, mas uma ruína. Quando vem a tentação, lança por terra a casa e arrasta-te com a tua própria ruína. Se não escutares, estarás desabrigado e, por aquelas tentações, serás tu mesmo arrastado. Escuta, pois, e põe em prática: esse é o único remédio! Quantos, talvez, hoje, porque escutaram e não puseram em prática, foram arrebatados pela torrente desta festa pagã? Ouviram, pois, e não puseram em prática. Esta festa anual veio como um rio, a torrente transbordou: há de passar para, depois, secar. Ai daquele que ela tiver levado! Saiba, portanto, a vossa caridade o seguinte: a não ser que alguém escute e ponha em prática, não constrói sobre a pedra, e não pertence a esse tão grande nome – Pedro –, que o Senhor assim encomiou. Ele reclamou, ao fazê-lo, a vossa atenção. Com efeito, se Pedro tivesse tido antes esse nome, não notarias o mistério da pedra, e julgarias que ele assim se chamasse casualmente, não devido à Providência de Deus. O Senhor, por isso, quis que Pedro se chamasse primeiro de outra forma, de modo que, pela própria mudança de nome, se evidenciasse a vivacidade do mistério. O encontro de Filipe e Natanael 15 “No dia seguinte, Jesus resolveu partir para a Galileia, e encontra Filipe. Jesus lhe diz: Segue-me. Filipe era da cidade de André e de Pedro. Filipe encontra Natanael” – depois de ter o Senhor chamado já a Filipe – “e lhe diz: Encontramos Aquele de quem escreveram Moisés, na Lei, e os profetas: Jesus, o filho de José”.⁵³⁷ Era Ele considerado filho daquele com quem Sua mãe estava desposada. Que Ele tenha sido concebido e nascido dessa mãe, permanecendo ela virgem, todos os cristãos bem o sabem pelo Evangelho. Assim falou Filipe a Natanael, e acrescentou também o lugar: “de Nazaré”. “Natanael lhe diz: De Nazaré pode sair algo de bom”. Como se compreende isso, irmãos? Não como fazem alguns; costuma-se, pois, pronunciá-lo assim: De Nazaré pode sair algo de bom? “Então Filipe responde e diz: Vem e vê”.⁵³⁸ Essa expressão pode ser pronunciada de ambas as formas: quer a leias como uma confirmação: “De Nazaré pode sair alguma coisa que seja boa”, e então Filipe acrescenta: “Vem e vê”;⁵³ quer a leias como uma frase dubitativa, que interroga: “De Nazaré pode sair alguma coisa que seja boa?” – “Vem e vê”. Como as palavras que seguem não repugnam uma interpretação nem a outra, cabe a nós procurar o que havemos preferencialmente de entender a seu respeito. Testemunho dado por Jesus de Natanael 16 Quem era esse Natanael é coisa que demonstramos no que segue. Escutai que tipo de homem era: o próprio Senhor dá testemunho dele. Grande é o Senhor, conhecido pelo testemunho de João. Bem-aventurado é Natanael, conhecido pelo testemunho da Verdade. Mesmo sem que tivesse o testemunho de João para recomendá-l’O, o próprio Senhor dava testemunho de Si mesmo, porque a Verdade basta-Se a Si mesma para dar testemunho de Si. Mas porque eram os homens incapazes de perceber a Verdade, eles procuravam-na por meio de uma lâmpada e, por isso, foi enviado João, para que, por meio dele, o Senhor fosse mostrado. Ouve o Senhor que dá testemunho de Natanael: “Natanael lhe diz [a Filipe]: De Nazaré pode sair algo de bom? Vem e vê – respondeu-lhe Filipe. E viu Jesus a Natanael que Lhe vinha ao encontro, e diz a seu respeito: Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento”.⁵⁴ Grande testemunho! Não foi dito de André, nem de Pedro, nem de Filipe, o que foi dito de Natanael: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento”. Natanael não foi um dos apóstolos 17 Que conclusão tirar daí, irmãos? Deveria esse Natanael figurar como o primeiro entre os apóstolos? Todavia, não somente não se acha como primeiro entre os apóstolos, como tampouco como médio ou como último entre os Doze está Natanael, do qual o Filho de Deus deu um testemunho tal: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento”. Procura-se o motivo? Na medida em que o Senhor no-lo esclarecer, provavelmente o encontraremos. Com efeito, devemos compreender que esse Natanael era um homem erudito, um perito na Lei. Por isso, o Senhor não quis colocá-lo no número dos discípulos, uma vez que escolheu ignorantes, a fim de confundir o mundo. Ouve o Apóstolo a dizer essa verdade: “Vede, pois, a vossa vocação, irmãos; não há entre vós muitos poderosos, nem muitos nobres, mas o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir os fortes; e o que é no mundo é vil e desprezado, e o que não é, Deus o escolheu como o que é, para reduzir a nada o que é”.⁵⁴¹ Se fosse escolhido um douto, talvez ele dissesse que fora escolhido porque por sua ciência mereceu sê-lo. Nosso Senhor Jesus Cristo, querendo dobrar a cerviz dos soberbos, não Se serviu de um orador para chegar a um pescador, mas, a partir de um pescador, ganhou o imperador. Cipriano foi um grande orador, mas primeiro foi chamado Pedro, o pescador, por meio de quem haveria de crer não somente o orador, mas também o imperador. Nenhum nobre foi escolhido em primeiro lugar, nenhum douto, porque “Deus escolheu o que é fraco no mundo, a fim de confundir o que é forte”. Esse Natanael era grande, e sem fingimento. Não foi escolhido, e somente por isso não foi escolhido: para que a ninguém parecesse que o Senhor havia escolhido os sábios. Por seu conhecimento da Lei, explica-se sua reação ao ouvir falar de Nazaré, pois, por conhecer ele as Escrituras, sabia que dali havia de ser esperado o Salvador – o que não sabiam tão facilmente os outros escribas e fariseus. Mostra-se ele, portanto, muito instruído na Lei, quando ouviu de Filipe: “Encontramos Aquele de quem escreveram Moisés na Lei e os Profetas: Jesus, o filho de José de Nazaré”. Ele, que conhecia perfeitamente as Escrituras, tendo ouvido o nome “Nazaré”, reanimou-se em sua esperança, e disse: “De Nazaré pode vir alguma coisa de bom”. Em Natanael, não havia fingimento 18 Vejamos a seguir as palavras restantes acerca de Natanael: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento”.⁵⁴² O que significa “em quem não há fingimento”? Que ele, talvez, não tivesse pecado? Que, quiçá, não estivesse doente? Que, talvez, o Médico não lhe fosse necessário? De modo algum! Ninguém nasceu neste mundo sem que tivesse necessidade daquele Médico. O que significa, pois: “Em quem não há fingimento”? Procuremos com um pouco mais atenção, e ser-nos-árevelado em nome do Senhor. O Senhor disse “fingimento”.⁵⁴³ Todos os que compreendem as palavras latinas sabem que há dolo ou fingimento, quando se faz uma coisa simulando outra. Preste atenção a vossa caridade! Dolo não é dor.⁵⁴⁴ Digo isso, porque muitos irmãos nossos, pouco versados no latim, falam do seguinte modo: “O dolo atormenta-o”, tomando a palavra “dolo”, por “dor”⁵⁴⁵. O dolo é uma fraude, uma simulação. Quando alguém esconde uma coisa no coração e diz outra, isso é dolo, fingimento. Ele tem como que dois corações. Tem como que um receptáculo no coração em que vê a verdade, e outro, onde concebe a mentira. Para que saibais que isso é dolo, foi dito nos salmos: “lábios dolosos”.⁵⁴ O que quer dizer: “lábios dolosos”? O que vem a seguir: “Falaram coisas más no coração, e com o coração”.⁵⁴⁷ O que significa: “no coração, e com o coração”, senão “com duplicidade de coração”? Portanto, ao não haver fingimento em Natanael, o Médico por isso o julgou curável, porém não curado. Com efeito, uma coisa é estar curado, outra é ser curável, e outra ainda, ser incurável. Quem está doente com esperança de obter a cura, é dito curável. Quem está doente e desespera de obter a cura, é dito incurável. Quanto ao que está curado, não precisa de médico. O Médico, que veio, pois, para curar, viu que Natanael era curável, porque não havia fingimento nele. Como não havia fingimento nele? Se é pecador, confessa-se pecador; pois, se, sendo pecador, se confessasse como justo, haveria dolo em seus lábios. O Senhor louvou em Natanael a confissão do pecado, não considerou que não fosse pecador. O exemplo da pecadora em casa do fariseu 19 É por isso que, quando os fariseus, que se tinham na conta de justos, repreendiam o Senhor, porque Ele, como médico, Se misturava com os doentes, e murmuravam: “Por que come o vosso Mestre com os publicanos e os pecadores?”, o Médico respondeu àqueles loucos: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes”… “Eu não vim chamar os justos mas os pecadores”.⁵⁴⁸ Foi como se dissesse: Vós vos dizeis justos, mas sois pecadores. Julgais que estais com saúde, mas sois enfermos; repelis o remédio, mas sem gozardes de saúde. Aquele fariseu que convidara o Senhor a comer julgava-se, portanto, sadio. Uma mulher doente, não obstante, irrompeu em sua casa, aonde não fora convidada, e mostrou-se inconveniente, levada pelo desejo da saúde. Aproximou-se não da cabeça do Senhor, nem das mãos, mas de Seus pés. Lavou-os com lágrimas, enxugou- os com os cabelos, cobriu-os de beijos, ungiu-os com perfume e, pecadora que era, fez as pazes com as pegadas do Senhor. Aquele fariseu, que ali estava reclinado junto à mesa, crendo-se são, pôs-se a repreender o Médico, dizendo-se interiormente: “Se este homem fosse profeta, saberia bem quem é a mulher que o toca”.⁵⁴ Suspeitara que o Senhor ignorasse a condição da mulher pelo fato de não a repelir, e de não impedir que ela O tocasse com suas mãos impuras. O Senhor conhecia-a, porém, e deixou-Se tocar para que o próprio tato a curasse. Ao ver o Senhor o coração do fariseu, propôs- lhe uma parábola: “Um credor tinha dois devedores, um lhe devia cinquenta denários e o outro, quinhentos. Como não tivessem com que pagar, perdoou a ambos. Qual dos dois o amará mais?”. Simão respondeu: “Suponho que aquele a quem mais perdoou”. E voltando-Se Jesus para a mulher, disse a Simão: “Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me derramaste água nos pés; ela, ao contrário, regou-me os pés com lágrimas e enxugou-os com os cabelos. Não me deste um ósculo; ela, porém, desde que eu entrei não parou de beijar-me os pés. Não me ofereceste óleo; ela ungiu- me os pés com perfume. Por essa razão, eu te digo, seus numerosos pecados lhe são perdoados, porque ela demonstrou muito amor; mas aquele a quem pouco foi perdoado, mostra pouco amor”.⁵⁵ Foi como se dissesse: Estás mais doente do que ela, e tu te consideras são. Pensas que te foi perdoado pouco, quando, porém, és um devedor maior.⁵⁵¹ Porque não havia fingimento nela, esta mulher mereceu o remédio. O que significa: Não havia fingimento nela? Ela confessava seus pecados. É precisamente isso que o Senhor louva em Natanael: nele não havia fingimento. Ao passo que muitos fariseus, repletos de pecados, diziam-se justos e mostravam fingimento, em decorrência do qual não podiam ser curados. A proclamação de Natanael 20 Jesus viu, portanto, aquele homem em quem não havia fingimento e disse: “Eis um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento. – De onde me conheces? – diz-Lhe Natanael. – Antes que Filipe te chamasse, respondeu Jesus, eu te vi, quando estavas sob a figueira. Respondeu-Lhe Natanael: Rabi, tu és o Filho de Deus, és o Rei de Israel”.⁵⁵² Natanael deve ter compreendido algo de grande nessa palavra que lhe foi dita: “Antes que Filipe te chamasse, eu te vi, quando estavas sob a figueira”, pois proferiu a frase: “Tu és o Filho de Deus, és o Rei de Israel”, tal como Pedro proferiria, muito tempo depois, quando o Senhor lhe diria: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne ou o sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai que está nos céus”.⁵⁵³ E aí nomeou-o “pedra”, e louvou, nessa fé, o fundamento da Igreja. Natanael diz, então: “Tu és o Filho de Deus, és o Rei de Israel”. Por quê? Porque o Senhor lhe dissera: “Antes que Filipe te chamasse, eu te vi, quando estavas sob a figueira”. O símbolo da figueira 21 Deve-se procurar se essa figueira significa alguma coisa. Escutai-o, pois, meus irmãos. Sabemos que uma figueira foi amaldiçoada por não ter senão folhas, e não produzir fruto algum.⁵⁵⁴ Nas origens da humanidade, Adão e Eva, depois de seu pecado, fizeram tangas para si, com folhas de figueira.⁵⁵⁵ As folhas de figueira significam, então, os pecados. Estava, pois, Natanael sob a figueira, como que à sombra da morte. Viu-o o Senhor, de quem está escrito: “Aos que estavam assentados à sombra da morte, nasceu a Luz”.⁵⁵ O que foi dito, depois, a Natanael? – “Perguntas-me, ó Natanael: De onde me conheces?” Tu me falas, agora, porque Filipe te chamou. Mas o Senhor tinha visto já que pertencia à Sua Igreja, aquele a quem chamou por meio de um apóstolo. Ó tu, Igreja; ó tu, Israel, em quem não há dolo, se és realmente esse povo de Israel no qual não há dolo, já conheces, agora, o Cristo, por meio dos apóstolos, tal como Natanael conheceu o Cristo por meio de Filipe. Mas, em Sua misericórdia, Ele viu-te antes, quando jazias sob o pecado. Por acaso fomos nós que procuramos o Cristo primeiro, ou não foi, antes, Ele que nos procurou? Fomos nós, os doentes, que viemos ao Médico, ou foi o Médico que veio aos doentes? Não estava perdida aquela ovelha, quando o Pastor, deixando as noventa e nove, pôs-se à sua procura e a encontrou, trazendo-a de volta, cheio de alegria, aos ombros? Não estava perdida aquela dracma, quando a mulher acendeu a lâmpada e a procurou por toda a sua casa, até que a encontrou? E, tendo-a encontrado, disse às suas vizinhas: “Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que havia perdido”.⁵⁵⁷ Assim também nós, estávamos perdidos como a ovelha, perdidos como a dracma. Nosso Pastor, porém, encontrou a ovelha, mas procurou a ovelha. E a mulher encontrou a dracma, mas procurou a dracma. Que mulher é essa? É a carne de Cristo. Que lâmpada é essa? “Eu preparei uma lâmpada ao meu Cristo”.⁵⁵⁸ Fomos, pois, procurados a fim de sermos achados, e só depois de encontrados é que viemos a falar. Não nos enchamos de orgulho, porque, antes de sermos encontrados, estávamos perdidos se não fôssemos procurados. Não nos digam aqueles a quem nós amamos e queremos ganhar para a paz da Igreja Católica: – Que quereis de nós? Por que nos procurais, se somos pecadores? – Nós vos procuramos, precisamente, para que não venhais a perecer. Procuramos-vos, porque também nós fomos procurados. Queremos achar-vos, porque também nós fomos achados. A promessa de Jesus 22 Assim, tendo dito Natanael: “De onde me conheceis?”, o Senhor respondeu-lhe: “Antes que Filipe te chamasse, eu te vi, quando estavassob a figueira”. Ó tu, Israel, sem fingimento, povo que vive da fé – sejas lá quem fores –, antes mesmo de chamar-te por meus apóstolos, quando estavas à sombra da morte, e ainda não me vias, eu te vi. O Senhor acrescentou então: “Crês só porque te disse: Eu te vi sob a figueira? Verás coisas maiores do que estas”. O que significa: “Verás coisas maiores do que estas?”. Ele lhe diz: “Verás o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem”.⁵⁵ Irmãos, eu disse não sei que palavra maior do que essa: “Eu te vi debaixo da figueira”. É algo maior que o Senhor nos tenha justificado depois de nos ter chamado, do que o fato de ter-nos visto à sombra da morte. De que nos teria servido que Ele nos tivesse visto, se tivéssemos permanecido lá, onde nos viu? Não teríamos ficado lá como que sepultados? Mas que graça maior é essa de que nos fala o Senhor? Quando é que vimos os anjos de Deus, subindo e descendo sobre o Filho do homem? Vereis os anjos de Deus subindo e descendo 23 Já vos falara em outra ocasião desses anjos que sobem e descem; mas, por receio de o terdes esquecido, direi algumas palavras a modo de recordação. Falaria muito mais se não estivesse a recordar, mas se vo-lo desse a conhecer agora. Jacó viu em sonho algumas escadas e, sobre essas escadas, viu anjos a subir e a descer. Depois, ungiu a pedra onde pousara a cabeça.⁵ Ouvistes que Messias quer dizer Cristo, e que Cristo significa Ungido. Jacó não depositou ali a pedra ungida, para vir adorá-la mais tarde. Teria sido isso um ato de idolatria, e não significação de Cristo. Produziu-se, pois, uma significação – até o ponto em que foi oportuno produzir-se – e Cristo foi significado. A pedra foi ungida, mas não como um ídolo. Uma pedra ungida: mas, por que uma pedra? “Eis que eu ponho, em Sião, uma pedra eleita e preciosa. E quem nela crer não será confundido”.⁵ ¹ E por que ungida? Porque Cristo deriva de crisma, unção. E o que viu Jacó nas escadas? Anjos a subir e a descer. É o que acontece, igualmente, na Igreja, irmãos. Os anjos de Deus são os bons pregadores, aqueles que pregam Cristo, isto é, sobem e descem sobre o Filho do homem. Como sobem e descem? A partir de um só, temos o exemplo. Ouve o apóstolo Paulo.⁵ ² O que notarmos nele, creiamo-lo também a respeito dos outros pregadores da verdade. Vê como Paulo sobe: “Conheço um homem em Cristo, que há quatorze anos, foi arrebatado ao terceiro céu – se em seu corpo, se fora do corpo, não o sei: Deus o sabe – e ouviu palavras inefáveis que não é lícito ao homem repetir”.⁵ ³ Ouvistes Paulo a subir. Ouvi agora, quando desce: “Não vos pude falar, irmãos, como a homens espirituais, mas tão somente carnais, como a crianças, em Cristo. Dei-vos a beber leite, não alimento sólido”.⁵ ⁴ Eis que desce o que subira. Procura até onde subira. “Até o terceiro céu”. Procura até onde desceu. Até “dar leite aos pequeninos”. Ouve que desceu: “Fiz-me pequeno, diz ele, no meio de vós, como ama que acaricia os seus pequeninos”.⁵ ⁵ De fato, observamos que as amas e as mães descem ao nível dos pequeninos. Mesmo sabendo pronunciar corretamente as palavras latinas, encurtam-nas e dobram, de certo modo, sua língua, para que de uma língua erudita brotem como que carícias infantis. Pois, se o fizessem de outro modo, a criança não ouviria, nem tampouco progrediria. E por mais eloquente e grande orador que seja um pai, a ponto de que por sua palavra ressoem os fóruns e se abalem os tribunais, se ele tiver, por acaso, um filho pequeno, quando volta para casa, deixa de lado a eloquência forense com a qual se elevara e, com uma linguagem infantil, desce ao nível do pequeno. Ouve, ainda, numa só passagem, o mesmo Apóstolo a subir e a descer numa única sentença: “Se nos deixamos, diz ele, arrebatar como para fora do bom senso, foi por causa de Deus e, se somos sensatos, é por causa de vós”.⁵ Que quer dizer: “se nos deixamos arrebatar, como para fora do bom senso, por causa de Deus”? Que vemos aquilo que o homem não pode dizer. O que quer dizer: “Se somos sensatos é por causa de vós”? “Por acaso julguei saber outra coisa entre vós, a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado”?⁵ ⁷ Se o próprio Senhor subiu e desceu, é manifesto que Seus pregadores sobem pela imitação e descem pela pregação. Exortação final 24 Se vos retivemos um pouco mais longamente, foi no intuito de deixar que passassem as horas inoportunas. Pensamos que aqueles terão já terminado a sua vaidade. Quanto a nós, irmãos, tendo-nos saciado com iguarias salutares, façamos o que nos resta, de modo a completar solenemente o dia do Senhor, entre alegrias espirituais. Comparemos as alegrias da verdade com as da vaidade.⁵ ⁸ E se ficamos horrorizados, compadeçamo-nos; se nos compadecemos, oremos; se oramos, sejamos ouvidos; se somos ouvidos, também os ganhamos. HOMILIA 8 As bodas de Caná (Jo 2,1-4) O mundo criado é um grande milagre 1 O milagre de nosso Senhor Jesus Cristo,⁵ por meio do qual da água fez vinho, não é motivo de grande admiração para os que sabem que Deus o fez. Quem, naquele dia durante as bodas, fez vinho nas seis talhas que mandou se enchessem de água, é o mesmo que, a cada ano, faz isso nas videiras. Com efeito, assim como o que foi lançado nas talhas pelos serventes foi transformado em vinho por obra do Senhor, também o que cai das nuvens é transformado em vinho por obra do mesmo Senhor. Isto, porém, já não nos causa espanto, por acontecer a cada ano: por sua assiduidade, perdeu em admiração; por mais que merecesse, na realidade, uma consideração maior do que o realizado nas talhas de água. Quem pode, com efeito, considerar as obras de Deus, com que se governa e administra todo este mundo, e não ficar cheio de admiração, deslumbrado pelos milagres? Se alguém considerar o poder de um só grão, de qualquer semente que seja, verá certa realidade grande, que deixará estupefato a quem a considera. Mas porque os homens, ocupados com outras coisas, deixaram de considerar as obras de Deus, pelas quais deveriam, a cada dia, dar louvor ao Criador, Deus, por assim dizer, reservou para Si o poder de realizar certas obras inusitadas, a fim de despertar os homens que estavam como que adormecidos, e estimulá- los à adoração por meio de eventos admiráveis. Um morto ressuscitou, e os homens ficam admirados. Há tantos nascimentos todos os dias, e ninguém se admira! Se considerarmos com mais discernimento, é um milagre maior dar o ser a quem não o tinha, do que fazer reviver quem existia. Não obstante, é o mesmo Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, quem realiza tudo isso, por meio de Seu Verbo, e governa tudo o que criou. Os primeiros milagres, Ele os fez por Seu Verbo – Deus junto a Si; os milagres seguintes, Ele os fez por Seu mesmo Verbo, encarnado e feito homem por nós. Assim como admiramos o que foi feito pelo Homem Jesus, admiremos também o que foi feito pelo Deus Jesus. Pelo Deus Jesus, foram feitos o céu e a terra, o mar e todo o ornamento do céu, a opulência da terra, a fecundidade do mar; todas essas realidades que se oferecem aos olhos foram feitas pelo Deus Jesus. Nós vemos todas essas coisas e, se Seu Espírito estiver em nós, isso nos deleitará de tal modo, que será louvado o Artífice, não a ponto de que, voltados para as obras, nos desviemos do Artífice e, dirigindo, por assim dizer, o rosto às obras que Ele fez, demos as costas Àquele que as fez.⁵⁷ As grandezas da alma 2 E tudo isso, por certo, são realidades que vemos, estão ao alcance dos olhos; o que dizer, porém, das coisas que não vemos, tais como os anjos, as virtudes, as potestades, as dominações e todos os habitantes do edifício supraceleste, que não estão ao alcance dos nossos olhos? Ainda que, muitas vezes, os anjos se tenham mostrado aos homens, quando foi conveniente. E não foi por acaso Deus, e por Seu Verbo, isto é, por Seu Filho único, nosso Senhor Jesus Cristo, quem fez tudo isso? O que dizer da própria alma humana, que não se vê, mas que, pelas obras que manifesta na carne, suscita uma grande admiração nos que a consideram bem? Por quemela foi feita, senão por Deus? E por meio de quem foi feita, senão por meio do Filho de Deus? E não falo ainda sobre a alma do homem. Como a alma de qualquer animal governa todo o seu corpo? Anima todos os sentidos: os olhos para verem, os ouvidos para escutarem, as narinas para perceberem o odor, o juízo da boca para discernir os sabores e, enfim, os próprios membros para cumprirem as suas funções. Por acaso será o corpo que realiza essas coisas, e não é a alma, isto é, a habitante do corpo, que as realiza? E não é vista, entretanto, pelos olhos, mas, a partir das suas ações, causa admiração. Que a tua consideração se volte agora para a alma humana, à qual Deus concedeu inteligência para que conhecesse o seu Criador, para que discernisse e distinguisse o bem do mal, isto é, o justo do injusto: quantas coisas ela realiza por meio do corpo! Observai todo o orbe terrestre, ordenado na própria sociedade humana com quantas administrações, com quantas hierarquias de potestades, com as instituições das cidades, com leis, costumes, artes! Tudo isso é gerido pela alma humana, e a força mesma da alma não é vista. Se a alma se separa do corpo, não resta senão um cadáver. Se, porém, estiver presente ao corpo, começa por mitigar, de algum modo, os elementos de corrupção deste. Com efeito, toda carne é corruptível e desfaz-se em podridões, caso não seja mantida por certo condimento da alma. Essa condição, porém, lhe é comum com a alma do animal. Muito mais admirável é o que eu disse, concernente à mente e à inteligência, em cujo âmbito o homem é também renovado à imagem de seu Criador, a cuja imagem foi feito.⁵⁷¹ Qual não será, pois, a virtude da alma, quando também este corpo “for revestido de incorruptibilidade, quando esta natureza mortal se revestir de imortalidade”?⁵⁷² Se tantas coisas já pode a alma por meio desta carne corruptível, o que não poderá fazer mediante um corpo espiritual, após a ressurreição dos mortos? Como já o disse, no entanto, essa alma de natureza e substância admiráveis é uma realidade invisível e inteligível, mas foi feita pelo Deus Jesus, porque Ele é o Verbo de Deus. “Tudo foi feito por meio d’Ele e sem Ele nada foi feito”.⁵⁷³ O ensinamento oculto desse milagre 3 Ao vermos tantas maravilhas realizadas pelo Deus Jesus, por que nos admiramos de que a água se tenha convertido em vinho por obra do Homem Jesus? Pois Ele não Se fez homem para perder o que era como Deus; o homem se Lhe acrescentou, mas não Se perdeu Deus.⁵⁷⁴ Fez, pois, esse prodígio, Aquele mesmo que fez tudo o mais. Não nos admiremos, portanto, já que é Deus quem o fez, mas amemo-lo, porque o fez entre nós, e para a nossa reparação. Alguma coisa nos deu a entender, com efeito, nos próprios fatos. Penso que Jesus, não sem motivo, veio às núpcias. Deixando de lado milagre, no fato mesmo algo de mistério e de sagrado se esconde. Batamos à porta para que abra e nos inebrie com o vinho invisível⁵⁷⁵; pois nós também éramos água e Ele transformou-nos em vinho, tornou-nos sábios, pois saboreamos a Sua fé os que éramos, primeiro, insipientes. E, talvez, pertença a essa mesma sabedoria, acompanhada da honra de Deus, do louvor da Sua majestade e da caridade de Sua poderosíssima misericórdia, que compreendamos o que se passou nesse milagre. As núpcias do Senhor 4 Tendo sido convidado, o Senhor veio às núpcias. O que há de admirável em que Ele tenha vindo às núpcias naquela casa, se veio a este mundo para núpcias? Se não tivesse vindo às núpcias, não teria esposa aqui. O que significa, então, o que diz o Apóstolo: “Desposei-vos a um Esposo único, a Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura”?⁵⁷ Por qual motivo teme o Apóstolo que a virgindade da esposa de Cristo seja corrompida pela astúcia do diabo? “Receio – diz – que, como a serpente seduziu Eva por sua astúcia, vossas mentes se corrompam desviando-se da simplicidade e da castidade para com Cristo”.⁵⁷⁷ O Senhor possui, pois, aqui na terra uma esposa, que Ele remiu com o Seu próprio Sangue e à qual deu, como penhor, o Espírito Santo. Arrancou-a do jugo do demônio, “morreu por seus pecados e ressuscitou para a sua justificação”.⁵⁷⁸ Quem seria capaz de oferecer tanto à sua esposa? Que ofereçam os homens quaisquer preciosidades da terra: ouro, prata, pedras preciosas, cavalos, escravos, propriedades, campos; mas será que alguém oferece o próprio sangue? Pois, se oferecer o sangue à noiva, já não estará lá para desposá-la. O Senhor, porém, ao morrer seguro, deu Seu Sangue por aquela que viria a possuir, ao ressuscitar, e com a qual já Se tinha unido no seio da Virgem. Com efeito, o Esposo é o Verbo, e a esposa é a carne humana. Ambas as naturezas são o único Filho de Deus, e é Ele mesmo Filho do Homem. O seio da Virgem Maria é Seu tálamo, onde Ele Se tornou a Cabeça da Igreja, daí partiu como o esposo parte de seu tálamo, segundo predisse a Escritura: “Ele, à semelhança do esposo que sai de seu tálamo, exultou como um gigante, para percorrer o Seu caminho”.⁵⁷ Do tálamo adiantou-Se como Esposo e, convidado, veio às núpcias. “Mulher, o que há entre ti e mim?” O mistério da resposta dada à Maria 5 É em razão de certo mistério que o Senhor parece não reconhecer a mãe, da qual saiu como Esposo, e dizer-lhe: “Mulher, o que há entre mim e ti? Minha hora ainda não chegou”.⁵⁸ O que quer isso dizer? Teria Jesus vindo à festa de casamento para ensinar a desprezar as mães? Ora, aquele a cujas núpcias Ele assistia, contraía matrimônio precisamente para ter filhos e, certamente, desejava ser honrado por aqueles mesmos filhos que teria. O Senhor viera, então, às núpcias para desrespeitar Sua mãe, quando as próprias núpcias são celebradas e esposas são tomadas, justamente para a procriação de filhos, aos quais preceitua Deus que honrem a seus pais? Sem dúvida alguma, irmãos, algo se esconde aqui. E é coisa tão importante que certos homens –, em relação aos quais nos advertiu o Apóstolo, com antecedência, para que nos puséssemos em guarda, conforme acima recordamos, dizendo: “Receio que como a serpente seduziu Eva por sua astúcia, vossas mentes se corrompam desviando-se da simplicidade e da castidade para com Cristo”⁵⁸¹ –, certos homens, digo eu, que, contrariando o Evangelho e afirmando que Jesus não é filho da Virgem Maria,⁵⁸² intentam fundamentar seu erro a partir daqui, dizendo: Como pode ser mãe dele, aquela a quem dirigiu estas palavras: “Mulher ,o que há entre mim e ti”? É preciso, pois, que se lhes responda e explique por que o Senhor falou dessa maneira, para que não venham eles a pensar, em seu furor contra a verdadeira fé, que encontraram um meio de corromper a castidade da esposa-virgem, ou seja, de violar a fé da Igreja. Na verdade, irmãos, corrompe-se a fé daqueles que colocam a mentira acima da verdade. Pois, os que parecem honrar de tal modo a Cristo, a ponto de negar que Ele tenha tido uma carne, assim procedendo, nada mais fazem que proclamá-l’O um mentiroso. Aqueles que edificam a mentira entre os homens, o que arrancam deles senão a verdade? Introduzem neles o diabo, expulsam a Cristo; introduzem neles o adúltero, expulsam o Esposo! São padrinhos, ou melhor, alcoviteiros da serpente. O que dizem tem, pois, como finalidade, que a serpente os possua e Cristo venha a ser deles expulso. Como os possui a serpente? Na medida em que toma posse deles a mentira. Quando a falsidade os possui, é a serpente quem os possui; quando a verdade os possui, é Cristo quem os possui. Com efeito, Ele mesmo disse: “Eu sou a Verdade”.⁵⁸³ E referindo-Se à serpente, disse que “não permanece na verdade, porque a verdade não está nela”.⁵⁸⁴ Ora, Cristo é tão perfeitamente a Verdade, que n’Ele deves considerar tudo como verdadeiro: verdadeiro Verbo, Deus igual ao Pai; verdadeira alma; verdadeira carne; verdadeiro homem; verdadeiro Deus; verdadeiro nascimento; verdadeira paixão; verdadeira morte e verdadeira ressurreição. Caso declares que algo disso é falso, entra a podridão; do veneno da serpente, nascem os vermes das mentiras, e nada permanecerá íntegro. Estudar o texto com critério6 O que significa, portanto, – pergunta o objetor – essa palavra do Senhor: “Mulher, o que há entre mim e ti?”. Talvez o Senhor nos mostre nas palavras que seguem – “Minha hora ainda não chegou” – o motivo pelo qual Se exprimiu dessa maneira. Com efeito, essa foi a resposta: “Mulher, o que há entre ti e mim? Minha hora ainda não chegou”. O sentido dessas últimas palavras também havemos de procurar. Mas, antes disso, refutemos os hereges a partir daqui. O que diz a letárgica serpente, a velha inspiradora sibilante de venenos? O que diz ela? Que Jesus não teve por mãe uma mulher! Como provas isso? Por ter o Senhor proferido, diz ela: “Mulher, o que há entre mim e ti?”. E quem narrou isso, para que acreditemos que o Senhor tenha proferido tais palavras? Quem o narrou? Ora, o evangelista João! Mas o mesmo evangelista João disse: “… e a mãe de Jesus estava lá”. Com efeito, assim narra ele: “No dia seguinte, houve um casamento em Caná da Galileia, e a mãe de Jesus estava lá. Jesus também tinha ido, convidado para as bodas com os Seus discípulos também”.⁵⁸⁵ Temos aí duas sentenças proferidas pelo evangelista. A primeira diz: “A mãe de Jesus estava lá”. A segunda menciona o que Jesus disse à Sua mãe. Ambas as afirmações vêm do mesmo evangelista. E vede bem, irmãos, como ele observa que é à Sua mãe que Jesus respondeu, pois escreve antes: “A mãe de Jesus Lhe diz”; que conserveis a virgindade do vosso coração protegida contra a língua da serpente! Nesse texto, no mesmo Evangelho, narrado pelo mesmo evangelista, está escrito: “A mãe de Jesus estava lá” e “A mãe de Jesus Lhe diz”. Quem o narrou? João, o evangelista. E o que Jesus respondeu à mãe? “Mulher, o que há entre mim e ti?”. Quem o narra? O mesmo evangelista João. Ó evangelista fidelíssimo e veracíssimo, tu me contas que Jesus disse: “Mulher, o que há entre mim e ti?”; e por que Lhe deste por mãe uma mulher que Ele não reconhece? Pois afirmaste que “A mãe de Jesus estava lá” e que “A mãe de Jesus Lhe diz…”. Por que não disseste: Encontrava-se lá Maria, e: Maria disse-Lhe? Mas tu declaras ambas as coisas: “A mãe de Jesus Lhe diz”; e que Jesus lhe respondeu: “Mulher, que há entre mim e ti?”. Qual o motivo? Senão porque tanto uma afirmação como a outra é verdadeira? Aqueles homens estão dispostos, no entanto, a acreditar no evangelista quando conta que Jesus disse à Sua mãe: “Mulher, o que há entre mim e ti?”, mas não querem acreditar no evangelista, em relação ao que diz: “A mãe de Jesus disse-Lhe”. Quem é, porém, aquele que resiste à serpente e mantém a verdade? Quem é aquele cuja virgindade de coração não se corrompe pela astúcia do diabo? É quem acredita que ambas as afirmações são verdadeiras, tanto “Que a mãe de Jesus estava lá”, como que Jesus tenha dado à mãe aquela resposta. Não obstante, se ainda não compreende em que sentido Jesus disse: “Mulher, o que há entre mim e ti?”, creia, por ora, que Jesus o disse, e que o disse à Sua mãe. Que haja, primeiro, piedade em quem crê e haverá, em seguida, fruto em quem entende.⁵⁸ É preciso crer para compreender 7– Ó fiéis cristãos, interrogo-vos: A mãe de Jesus estava lá? Respondei: “Estava! – Como o sabeis? Respondei: “É o Evangelho que o fala”. – O que respondeu Jesus à Sua mãe? Respondei: “Mulher, o que há entre mim e ti? Minha hora ainda não chegou”. – E como sabeis isso? Respondei: “É o Evangelho que o fala”. Que ninguém vos corrompa esta fé, se quiserdes conservar uma casta virgindade para o Esposo. E se vos perguntarem por que respondeu Ele desse modo à Sua mãe, quem o souber, responda; e quem ainda não o souber, creia, porém, e mui firmemente, que Jesus deu essa resposta, e a deu à Sua mãe. Por essa piedade, merecerá também compreender a razão de tal resposta, caso bata à porta da verdade por meio da oração, e dela não se aproxime com uma atitude de contestação. Apenas tome cuidado para não lhe suceder que, enquanto supõe saber ou se envergonha de não saber por que motivo Jesus assim respondeu, se veja constrangido a admitir ou que o evangelista tenha mentido ao dizer: “A mãe de Jesus estava lá”, ou ainda, que o próprio Cristo teria padecido uma falsa morte pelos nossos delitos, que teria ostentado falsas cicatrizes pela nossa justificação e teria declarado uma falsidade: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis em verdade meus discípulos; e conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará”.⁵⁸⁷ Com efeito, se não teve verdadeira mãe, se Sua carne é falsa, se Sua morte é falsa, se as chagas de Sua paixão são falsas e falsas as cicatrizes da Sua ressurreição, então, não é a Verdade, mas, antes, a falsidade que libertará os que n’Ele creem. Mas não! Que a falsidade ceda diante da Verdade, e sejam confundidos todos quantos querem passar por verdadeiros, esforçando-se em provar que Cristo é falaz, e não querem que se lhes diga: “Não acreditamos em vós, porque mentis”, enquanto eles dizem que a própria Verdade teria mentido. Se nós lhes perguntarmos, no entanto: Como sabeis que Cristo disse: “Mulher, o que há entre mim e ti?”, eles responderão que creram no Evangelho. Por que, então, não creem no Evangelho que diz: “A mãe de Jesus estava lá”, e ainda: “A mãe de Jesus disse-Lhe”? Ou ainda, se o Evangelho mente nesse ponto, como se lhe há de dar crédito com relação a ter Jesus dito: “Mulher, que há entre ti e mim”? Por qual motivo esses miseráveis não creem antes, fielmente, que o Senhor respondeu assim, não a uma pessoa estranha, mas à própria mãe, e não procuram conhecer, piedosamente, o motivo pelo qual terá respondido dessa forma? Com efeito, há uma grande diferença entre quem diz: “Quero saber por que Cristo deu essa resposta à Sua mãe”, e quem diz: “Sei que não foi à Sua mãe que Cristo respondeu desse modo”. Uma coisa é querer compreender o que está obscuro, outra é não querer acreditar no que é evidente. Quem diz: “Quero saber por que Cristo respondeu assim à sua mãe”, deseja que se lhe abra o sentido do Evangelho, no qual crê; mas quem diz: “Sei que não foi à Sua mãe que Cristo deu essa resposta”, acusa de mentira o próprio Evangelho, conforme o qual acreditou que Cristo respondeu dessa maneira. Cristo não tem mãe como Deus, e não tem pai como homem 8 Portanto, irmãos, se vos apraz, deixados de lado esses homens que, em sua cegueira, persistem sempre no erro, a não ser que humildemente se curem, investiguemos nós por qual motivo nosso Senhor respondeu assim à Sua mãe. De modo singular, o Senhor nasce do Pai, sem o concurso de mãe; e nasce de mãe, sem pai. Como Deus, não possui mãe; como homem, não possui pai. Nasceu sem mãe, antes dos tempos; sem pai, no fim dos tempos. O que Jesus respondeu, respondeu à mãe, como se deduz das palavras: “E Sua mãe estava lá”, e: “A mãe de Jesus disse-Lhe…”. O Evangelho fala tudo isso. Sabemos, pelo texto, que “Sua mãe estava lá” e, pelo mesmo texto, se nos diz o que Ele lhe respondeu: “Mulher, o que há entre mim e ti? Minha hora ainda não chegou”. Creiamos em tudo, e aquilo que ainda não compreendemos, procuremos. Vede, primeiro, o seguinte: talvez do mesmo modo como os maniqueus acharam ocasião para sua perfídia pelo fato de o Senhor ter dito: “Mulher, o que há entre mim e ti?”, também a encontrem os astrólogos⁵⁸⁸ para suas falácias, por ter dito Ele: “Minha hora ainda não chegou”. Se o Senhor o disse no mesmo sentido dos astrólogos, cometemos um sacrilégio ao queimar os livros deles; mas, se agimos corretamente, tal como sucedeu nos tempos dos apóstolos,⁵⁸ o Senhor não disse: “Minha hora ainda não chegou” no sentido em que eles o tomam. Dizem, com efeito, esses charlatães e sedutores, vítimas eles mesmos da sedução: Como vês, Cristo estava sujeito à fatalidade, pois disse: “A minha hora ainda não chegou”. A quem se há de responder primeiro: aos hereges, ou aos astrólogos? Uns e outros vêm, pois, da parte daquela serpente, com a intenção de corromper a virgindade do coração da Igreja, que ela conserva na íntegra fé.⁵ Se vos apraz, responderemos, em primeiro lugar, àqueles que apresentamos antes, aos quais, aliás, já respondemos em grande parte,mas, para que não estimem que nada tenhamos a dizer sobre essas palavras que o Senhor respondeu à Sua mãe, nós vos instruímos um pouco mais contra eles, uma vez que, para refutá-los, penso que bastem as coisas que já foram ditas. Maria é mãe da natureza humana de Cristo 9 Por que, então, disse o Filho à Sua mãe: “Mulher, o que há entre mim e ti? Minha hora ainda não chegou”? Nosso Senhor Jesus Cristo era, ao mesmo tempo, Deus e homem. Como Deus, não tinha mãe; mas, como homem, a tinha. Ela era a mãe da carne, mãe da humanidade, mãe da fraqueza que Ele assumiu por nós. Ora, o milagre que estava para operar, Ele o realizaria segundo a divindade, e não segundo a fraqueza; como quem era Deus, e não como quem nasceu fraco. “Todavia, o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens”.⁵ ¹ Sua mãe exigia, pois, um milagre, mas Ele parece não reconhecer as entranhas humanas no momento em que está para operar feitos divinos. Ele parece dizer-lhe: O que de mim realiza o milagre, não geraste tu; não geraste a minha divindade. Como geraste, porém, a minha fraqueza, eu te reconhecerei quando essa mesma fraqueza pender da cruz. Eis, pois, o que quer dizer: “Minha hora ainda não chegou”. Reconheceu, então, a mãe que sempre tinha, por certo, conhecido. Antes mesmo que dela nascesse, Ele conhecia Sua mãe na predestinação. E, antes mesmo de Ele ter criado como Deus aquela de quem Ele próprio seria criado como homem, já conhecia a Sua mãe. Em certa hora, porém, Ele misteriosamente não a reconheceu, e noutra hora, que então ainda não havia chegado, Ele haveria de reconhecê-la, de novo misteriosamente. Reconheceu-a então, quando morria o que ela dera à luz. Não morria Aquele por meio de quem Maria fora criada, mas O que havia sido formado dela. Não morria a eternidade da divindade, mas morria a fraqueza da carne. O Senhor deu essa resposta a fim de distinguir, na fé dos crentes, quem viera e por que meio viera. Com efeito, veio por meio de uma mulher, Sua mãe, Aquele que é Deus e Senhor do céu e da terra. Como Senhor do mundo, Senhor do céu e da terra, é evidentemente também o Senhor de Maria; como Criador do céu e da terra, é igualmente Criador de Maria. Mas, à medida que d’Ele se diz: “Nascido de uma mulher, nascido sob a Lei”,⁵ ² é filho de Maria. Ele mesmo é Senhor de Maria e filho de Maria; Ele mesmo, Criador de Maria e criado a partir de Maria. Não te admires de que seja Senhor e filho, pois, como é chamado filho de Maria, é também denominado filho de Davi; e é filho de Davi precisamente por ser filho de Maria. Ouve o Apóstolo a dizer abertamente: “Nascido da estirpe de Davi segundo a carne”.⁵ ³ Ouve como Ele é também Senhor de Davi; que o diga o próprio Davi: “Disse o Senhor a meu Senhor, senta-te à minha direita”.⁵ ⁴ O próprio Jesus o propôs aos judeus e, com isso, os confundiu.⁵ ⁵ Como, pois, é filho e Senhor de Davi? É filho de Davi segundo a carne, é Senhor de Davi segundo a divindade. É, assim também, filho de Maria segundo a carne, Senhor de Maria segundo a majestade. Portanto, porque não era ela mãe de Sua divindade e porque Ele estava para operar, pela divindade, o milagre que ela pedia, respondeu-lhe: “Mulher, o que há entre mim e ti?”. Mas para que tu não penses que eu te renegue como mãe: “Minha hora ainda não chegou”. Aí, então, eu te reconhecerei, quando começar a pender da cruz a fraqueza da qual és mãe. Provemos se isso é verdade. Quando o Senhor padeceu, como narra o mesmo evangelista – que conhecia a mãe do Senhor e que nos esclareceu também, nestas núpcias, que ela era a mãe do Senhor – esse mesmo evangelista narra: “Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé Sua mãe… e Jesus disse à Sua mãe: Eis aí o teu filho. E ao discípulo: Eis a tua mãe!”.⁵ Ele confia Sua mãe ao discípulo. Confia Sua mãe quem havia de morrer antes que a mãe e havia de ressuscitar antes da morte da mãe. Um ser humano, a outro ser humano, confia um ser humano. Estava lá o que Maria dera à luz. Chegara já a hora em referência à qual dissera, naquele momento: “Minha hora ainda não chegou”. “Minha hora ainda não chegou”. A objeção dos astrólogos 10 Segundo me parece, irmãos, respondeu-se aos hereges. Respondamos, agora, aos astrólogos. Em que prova se apoiam estes para convencer-nos de que Jesus estava sujeito ao destino? – Ele mesmo o declarou, dizem eles: “Minha hora ainda não chegou”. Nós cremos n’Ele, portanto! Se houvesse dito: Eu não tenho hora, teria assim excluído os astrólogos. Mas, continuam eles, eis que diz de Si mesmo: “Minha hora ainda não chegou”. Consequentemente, se houvesse dito: Eu não tenho hora, teria excluído os astrólogos, os quais não teriam mais pretexto para caluniar. Como, porém, assim Se expressou: “Minha hora ainda não chegou”, o que podemos nós dizer contra as palavras d’Ele? Admira que os astrólogos, crendo nas palavras de Cristo, se esforcem para convencer os cristãos de que Cristo teria vivido sob o domínio de uma hora fatal. Que eles, portanto, creiam em Cristo, que declara: “Tenho poder de entregar minha vida e poder de retomá-la. Ninguém ma arrebata, mas eu a dou livremente e, de novo, a retomo”.⁵ ⁷ Acaso esse poder estaria submetido também à fatalidade? Que nos mostrem um homem com poder sobre quando há de morrer e por quanto tempo há de viver. Não hão de mostrá-lo absolutamente! Que creiam, pois, em Deus que afirma: “Tenho poder de entregar minha vida e poder de retomá-la”, e então procurem saber por que disse: “Minha hora ainda não chegou”; mas não ponham, por isso, sob o domínio da fatalidade o Criador do céu, que criou e ordenou os astros. Mesmo supondo que houvesse fatalidade oriunda dos astros, não poderia estar sob a necessidade dos astros o Criador dos astros. E acrescenta que não somente Cristo não esteve sujeito ao que chamas de fatalidade, mas tampouco tu o estás, ou eu, ou aquele outro, ou qualquer dos homens. A escravidão trazida pelos astrólogos 11 Os que já foram seduzidos, no entanto, seduzem e propõem falácias aos homens, estendendo armadilhas para capturá-los, até nas praças públicas. Quem prepara armadilhas para caçar feras fá-lo nos bosques, em lugar deserto. Quão tristemente vãos são os homens, quando em praça pública se prepara uma armadilha com o fim de capturá-los! Quando homens se vendem a outros homens, recebem dinheiro. E esses, por sua vez, dão dinheiro para vender-se às vaidades. Entram, pois, na casa do astrólogo para comprar para si senhores tais, quais ao astrólogo aprouver dar-lhes, por exemplo: Saturno, Júpiter, Mercúrio ou qualquer outra coisa de nome sacrílego. Aquele homem entrou livre para, após ter dado seu dinheiro, sair escravo! Aliás, não teria, na verdade, entrado ali, se livre fosse; mas entrou no lugar aonde o arrastaram o erro que o domina, a cobiça que o tiraniza. Daí que assim fale a Verdade: “Todo aquele que comete o pecado é escravo do pecado”.⁵ ⁸ Conclusão 12 Por qual motivo, então, disse o Senhor: “Minha hora ainda não chegou”? Na verdade, porque tinha o poder de escolher quando morreria e via que ainda não era oportuno fazer uso daquele poder. Como nós, irmãos, por exemplo, falamos assim: Já está na hora de sairmos para celebrar os mistérios divinos?⁵ Caso saiamos antes da hora oportuna, não somos inoportunos e intempestivos? Uma vez que não o fazemos, a não ser quando é o momento oportuno, por agir assim, consideramos a fatalidade ao falarmos dessa maneira? O que significa, pois: “Minha hora ainda não chegou”? Ainda não chegou essa hora em que sei que será oportuno que eu padeça, quando a minha paixão será proveitosa; será então por vontade livre que padecerei. Desse modo, manterás ambas as palavras: “Minha hora ainda não chegou”, e: “Tenho poder de entregar minha vida e poder de retomá-la”. O Senhor viera, pois, tendo em seu poder a escolha de quando morreria. Caso morresse, porém, antes de escolher os discípulos, seria, evidentemente, intempestivo. Se ele fosse apenas um homem, que não tivesse em seu poder a sua hora, poderia morrer antes de ter escolhido os discípulos. Caso, talvez, viesse a morrer depois que osdiscípulos já tivessem sido escolhidos e instruídos, isso seria algo que se lhe concederia, não que ele próprio fizesse. Na realidade, porém, quem viera tendo em mãos o poder de decidir quando iria, quando voltaria e até que ponto chegaria, e a quem os infernos se abririam, não somente ao morrer, mas também ao ressuscitar, a fim de que se mostrasse à Sua Igreja a esperança da imortalidade, faz ver, na Cabeça, o que os membros deveriam esperar. Ressuscitará, também, nos outros membros Aquele que ressuscitou como Cabeça. Mas ainda não tinha chegado a hora, ainda não era o momento oportuno. Os discípulos tinham de ser chamados, tinha de ser anunciado o Reino dos céus, prodígios tinham de ser feitos, havia de confirmar-se, nos milagres, a divindade do Senhor, e de confirmar-se a Sua humanidade no próprio sofrimento compartilhado da mortalidade. Com efeito, Aquele que sentia fome porque era homem, alimentou com cinco pães a outros tantos milhares de homens porque era Deus. ¹ Aquele que dormia por ser homem, dava ordens aos ventos e às ondas por ser Deus. ² Era preciso, primeiramente, que tudo isso se comprovasse para que houvesse o argumento sobre o qual escreveriam os evangelistas, e que se pregaria à Igreja. Mas logo que o Senhor fez tanto quanto julgou suficiente, veio a hora não da necessidade, mas da vontade; não da condição, mas da potestade. Temas da próxima homilia 13 Que mais, irmãos? Por termos respondido a uns e a outros, nada diremos a respeito do significado das talhas, da água convertida em vinho, do mestre-sala, do noivo, da mãe de Jesus, neste mistério, e das próprias núpcias? É preciso explicar tudo, mas não haveis de fatigar-vos. Em nome de Cristo, quis tratar disso convosco, sem dúvida, no dia de ontem, em que se costuma dever um sermão à vossa caridade, todavia, não me foi possível fazê-lo em decorrência de certas obrigações que mo impediram. Se, portanto, à santidade vossa aprouver, difiramos para amanhã o que diz respeito ao mistério deste fato e, assim, não sobrecarreguemos a vossa fraqueza, nem a nossa. Aqui talvez haja muitos que vieram hoje devido à solenidade do dia, não para ouvir um sermão. Aqueles que amanhã vierem, venham para escutá-lo; de modo a não defraudarmos os interessados, nem cansarmos os que experimentam fastio. HOMILIA 9 As bodas de Caná (II) (Jo 2,1-11) O significado misterioso dos fatos 1 Assista-nos o Senhor nosso Deus, a fim de conceder-nos pagar o que vos prometemos. No dia de ontem, com efeito, se disso se lembra a vossa caridade, vencidos pela exiguidade do tempo de modo a não terminarmos o sermão começado, diferimo-lo para hoje, para que se revelassem, com a ajuda divina, as realidades que misticamente se encontram, em termos misteriosos, ³ neste fato da leitura evangélica. Já não é, pois, necessário, deter-nos por mais tempo a encomiar o milagre de Deus; na verdade, esse mesmo Deus é quem opera, em toda a criação, cotidianos milagres, que pareceram, aos olhos dos homens – não por sua facilidade, mas por sua assiduidade –, diminuir de valor. Pelo contrário, os milagres excepcionais realizados pelo próprio Senhor, isto é, pelo Verbo encarnado por nós, provocaram entre os homens maior estupefação, não por serem maiores que os feitos por Ele a cada dia na criação, mas porque, ao serem cotidianos, estes parecem estar inseridos no curso natural das coisas; ao passo que os outros parecem exibir-se aos olhos dos homens pela eficácia de um poder, por assim dizer, presente. Dissemos, conforme recordais: um só morto ressuscitou, e os homens ficaram estupefatos, mas ninguém se admira de que nasçam todos os dias crianças que não existiam. De modo semelhante, quem não se espanta com a água convertida em vinho, apesar de Deus fazer isso, todos os anos, nas videiras! Mas, como todas as obras que o Senhor Jesus fez têm como finalidade não somente inflamar os nossos corações, por seu caráter miraculoso, mas também edificá-los na doutrina da fé, é preciso, então, que perscrutemos o que querem dizer todas aquelas coisas, isto é, o que significam. Como lembrais, diferimos para hoje os significados de todas essas coisas. O Senhor: autor das núpcias 2 O fato de o Senhor, convidado, ter vindo às núpcias, mesmo independentemente de qualquer significação simbólica, quis confirmar que Ele mesmo as fez. Haveria de surgir homens, a respeito dos quais disse o Apóstolo, que proibiriam o matrimônio, ⁴ afirmando que o casamento seria mau, que o diabo o teria feito, apesar de o próprio Senhor dizer, no Evangelho, quando interrogado se era lícito ao homem despedir a sua esposa por qualquer motivo, que tal coisa não é permitida, a não ser em caso de fornicação. E, nessa resposta, se bem vos lembrais, acrescentou o seguinte: “Não separe o homem o que Deus uniu”. ⁵ Aqueles que estão bem instruídos na fé católica sabem que Deus instituiu o casamento; e que, assim como a união conjugal vem de Deus, a separação vem do diabo. Por isso, em caso de fornicação, é lícito que se despeça a mulher, porque não quis, por primeiro, ser esposa, aquela mesma que não guardou fidelidade conjugal a seu marido. Nem mesmo aquelas que consagram a Deus sua virgindade, ainda que possuam, na Igreja, um grau mais elevado de honra e santidade, estão privadas de núpcias, pois participam com toda a Igreja de algumas núpcias, daquelas núpcias em que o Esposo é Cristo. Foi, pois, para isto que o Senhor, tendo sido convidado, veio àquelas bodas, a saber, para confirmar a castidade conjugal e manifestar o mistério das núpcias. Visto desse modo, o próprio esposo daquelas bodas, ao qual foi dito: “Reservaste o bom vinho até agora”, representava a pessoa do Senhor. Com efeito, Cristo guardou o bom vinho até agora, isto é, Seu Evangelho. O símbolo da água convertida em vinho. A água da profecia 3 Comecemos, pois, de uma vez, a descobrir os próprios segredos dos mistérios, pelo menos na medida em que o permitir Aquele em cujo nome nós vo-lo prometemos. A profecia existia desde tempos antigos, e tempo algum deixou de contar com a dispensação da profecia. Mas aquela profecia, quando nela não era Cristo reconhecido, era como água. O vinho oculta-se, pois, de certo modo na água. Diz o Apóstolo o que devemos entender nessa água: “Até hoje” – diz ele – “quando se lê Moisés, um véu permanece sobre o coração deles. Não é retirado, porque é em Cristo que ele desaparecerá. É somente quando te tiveres convertido ao Senhor” – afirma ainda – “que o véu será tirado”. Por esse véu, Paulo entende o ocultamento da profecia, que leva a que não seja ela compreendida. O véu é retirado quando tu te convertes ao Senhor. É retirada, então, a insipiência, ⁷ quando te convertes ao Senhor, e o que era apenas água transformar-se-á em vinho para ti. Lê todos os livros proféticos, de modo tal que neles não entendas Cristo; o que encontrarás de mais insípido e desprovido de sentido? Entende ali a Cristo, e não somente terá sabor o que leres, mas inebriará até, deslocando do corpo a tua mente, de sorte que, esquecendo-te do que fica para trás, tendas para o que está adiante. ⁸ Todo o Antigo Testamento profetiza Cristo 4 Desde os tempos antigos, portanto, desde que avança a ordem dos que nascem no gênero humano, a profecia jamais calou a respeito de Cristo; mas havia ali algo oculto, pois era ainda água. Como provamos que, em todos os tempos anteriores até a época em que o Senhor veio, nunca cessou a profecia a respeito d’Ele? Pelo próprio Senhor que o diz! Com efeito, quando ressuscitou dentre os mortos, Jesus encontrou os discípulos em dúvida com relação Àquele que haviam seguido. Tinham-n’O visto morto, mas não esperavam que houvesse de ressuscitar e toda a esperança deles caíra por terra. Por que aquele ladrão foi louvado, e mereceu estar no paraíso naquele mesmo dia? Porque, pregado na cruz, confessou então a Cristo, quando os discípulos duvidaram a respeito d’Ele. O Senhor encontrou-os, portanto, vacilantes e a censurar-se, de algum modo, por terem esperado n’Ele a redenção. Lamentavam-se por ter sido morto sem culpa alguma,pois sabiam-n’O inocente. É justamente isso que declararam, depois da ressurreição, quando o próprio Senhor encontrou alguns deles acabrunhados pelo caminho: “Tu és o único forasteiro em Jerusalém, que ignora os fatos que nela aconteceram nestes dias? – Quais? – disse-lhes Ele. Responderam: O que aconteceu a Jesus de Nazaré, que foi um profeta poderoso, em obras e em palavras, diante de Deus e de todo o povo, e como nossos sumos sacerdotes e nossos chefes O entregaram para ser condenado à morte e O crucificaram. Nós esperávamos, porém, que fosse Ele quem haveria de redimir Israel, mas, com tudo isso, hoje faz três dias que essas coisas aconteceram!”. ¹ Essas palavras e outras semelhantes foram pronunciadas por um dos dois discípulos que o Senhor encontrou no caminho, dirigindo-se para a aldeia próxima. Então, Ele mesmo respondeu, dizendo: “Ó insensatos e lentos de coração para crer em tudo o que falaram os profetas! Não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso, e entrasse em Sua glória? E começando por Moisés e por todos os profetas, esteve a interpretar para eles, em todas as Escrituras, o que a Ele próprio dizia respeito”. ¹¹ Igualmente, em outra passagem, quando quis ser apalpado pelas mãos de Seus discípulos para que cressem que Ele ressuscitara corporalmente, disse-lhes ainda: “São estas as palavras que eu vos falei, quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos profetas e nos salmos”. Então, abriu-lhes a mente para que entendessem as Escrituras e disse-lhes: “Assim está escrito, que o Cristo devia sofrer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia, e que, em Seu nome, seria proclamada a conversão e a remissão dos pecados a todas as nações, a começar de Jerusalém”. ¹² Cristo revela o sentido das profecias 5 Uma vez compreendidas essas palavras tomadas do Evangelho, que certamente são claras, todos os mistérios que nesse milagre do Senhor estão escondidos tornar-se-ão patentes. Vede o que diz: “Era preciso que se cumprisse no Cristo tudo o que está escrito a respeito d’Ele”. Onde está escrito? “Na Lei – diz Ele –, nos profetas e nos salmos”. ¹³ Parte alguma das antigas Escrituras foi deixada de lado. Era a Escritura água, e o Senhor os chamou, por isso mesmo, de insensatos, porque ela ainda lhes sabia a água, não a vinho. Mas como fez o Senhor da água vinho? Abrindo-lhes a inteligência e explicando-lhes as Escrituras, começando por Moisés e percorrendo todos os profetas. Daí que, já inebriados, dissessem entre si: “Não ardia o nosso coração quando nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?”. ¹⁴ É que tinham reconhecido a Cristo nesses livros, nos quais, antes, não O reconheceram. Nosso Senhor Jesus Cristo mudou, pois, a água em vinho, e o que não tinha sabor adquire-o; o que não inebriava, inebria. Se Ele tivesse mandado derramar dali a água e, assim, substituísse por um vinho tirado das profundidades misteriosas da criação, – assim fizera também com o pão, quando o deu de comer à saciedade a tantos milhares de pessoas; ¹⁵ com efeito, com cinco pães não se poderia saciar a fome de cinco mil homens e nem sequer encher doze cestos, mas a onipotência do Senhor era a fonte, por assim dizer, do pão e, então, bem poderia Ele deitar vinho ali, uma vez derramada a água – se o tivesse feito, digo, teria parecido que reprovava as antigas Escrituras. Não obstante, pelo contrário, ao converter a água em vinho, mostra-nos que também a antiga Escritura vem d’Ele, pois, por ordem Sua, encheram-se as talhas. ¹ Também aquela Escritura vem, por certo, do Senhor, mas a nada sabe, se nela não for entendido Cristo. As seis talhas representam as seis idades do mundo 6 Prestai atenção, por outro lado, ao que o próprio Senhor diz: “O que está escrito na Lei, nos profetas e nos salmos, a meu respeito”. Nós sabemos a partir de que época a Lei começa sua narração, a saber, a partir da origem do mundo: “No princípio, Deus criou o céu e a terra”. ¹⁷ Desde então, até este tempo em que agora estamos vivendo, há seis idades, conforme ouvistes muitas vezes e o sabeis. A primeira idade vai desde Adão até Noé; a segunda, desde Noé até Abraão; e, conforme o evangelista Mateus, por ordem, avança e distingue, a terceira vai desde Abraão até Davi; a quarta, desde Davi até a transmigração para a Babilônia; a quinta, desde a transmigração para a Babilônia até João Batista, e a sexta vai daí até o fim do mundo. ¹⁸ Por isso, também no sexto dia, Deus criou o homem à Sua imagem, ¹ pois, nessa sexta idade, manifesta-se pelo Evangelho a renovação do nosso espírito conforme a imagem d’Aquele que nos criou. ² A água converte-se em vinho para que já saboreemos a Cristo, manifestado na Lei e nos profetas. Por isso havia ali seis talhas que Ele ordenou se enchessem de água. ²¹ Aquelas seis talhas significavam, pois, as seis idades, às quais não faltou profecia. Aqueles seis tempos, repartidos e como que divididos em outros tantos momentos distintos, seriam como talhas vazias se por Cristo não fossem cheios. Que disse eu? Os tempos transcorreriam vazios, se o Senhor Jesus não fosse anunciado neles? Cumpriram-se as profecias, as talhas já estão cheias. Mas, para que a água se converta em vinho, é necessário que se entenda Cristo em toda aquela profecia. O símbolo das “duas ou três medidas” 7 O que quer dizer: “cada uma contendo de duas a três medidas”? ²² Essa expressão encarece para nós, especialmente, um mistério. “Metretas” designam, pois, certas medidas, como se fosse dito: urnas, ânforas ou coisa parecida. Mas a palavra “metreta” é o nome de uma medida, e da palavra “medida” recebe seu nome essa medida, pois os gregos dizem métron à medida, daí que estas se chamem “metretas”. As talhas continham, portanto, “duas ou três medidas” cada uma. O que dizermos sobre isso, irmãos? Se o evangelista falasse só de três medidas, nosso espírito não correria senão ao mistério da Trindade. Mas, talvez, nem sequer assim devamos afastar de uma vez esse sentido, porque diz: “duas ou três medidas”. De fato, uma vez nomeados o Pai e o Filho, é preciso compreender também, consequentemente, o Espírito Santo, uma vez que o Espírito Santo não é Espírito tão somente do Pai, ou do Filho, mas o Espírito do Pai e do Filho. Está escrito, pois: “Se alguém ama o mundo, o Espírito do Pai não está nele”. ²³ E está escrito igualmente: “Quem não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Ele”. ²⁴ Ora, o Espírito do Pai e do Filho é o mesmo. Sendo, assim, nomeados o Pai e o Filho, é também compreendido o Espírito Santo, porque é o Espírito do Pai e do Filho. Quando se faz menção do Pai e do Filho é como se nomeássemos duas medidas; e, quando aí é entendido o Espírito Santo, têm-se as três medidas. Por isso, não foi dito que algumas talhas tinham duas medidas, e outras três, mas: “Cada uma – daquelas seis talhas – continha duas ou três medidas”, como se dissesse: Quando digo “duas”, quero que o Espírito do Pai e do Filho seja entendido juntamente com Eles; e, quando digo “três”, enuncio claramente a própria Trindade. O Espírito Santo é a caridade 8 Quem quer que nomeie o Pai e o Filho deve entender aí como que a caridade mútua do Pai e do Filho, que é o Espírito Santo. Com efeito, se fossem talvez esquadrinhadas as Escrituras... – não digo isso como se vo-lo pudesse ensinar hoje, ou como se não fosse possível descobrir-se outra interpretação – não obstante, talvez as Escrituras perscrutadas mostrem que o Espírito Santo é a caridade. E não penseis que a caridade é coisa de pouco valor. Como poderia, aliás, ser de pouco valor, quando tudo o que se diz coisa de não pouco valor, é dito caro? Logo, se tudo o que não possui pouco valor é caro, haverá algo mais caro do que a própria caridade? Assim é enaltecida pelo Apóstolo a caridade, a tal ponto que ele declara: “Vou indicar-vos um caminho superior a todos. Ainda que eu falasse em línguas, nas dos homens e nas dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que retine. Ainda que euconhecesse todos os mistérios ²⁵ e toda a ciência, ainda que tivesse o dom da profecia e toda a fé, a ponto de transportar os montes, se não tivesse a caridade, eu nada seria. Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo a arder, se não tivesse a caridade, isso de nada me adiantaria”. ² Qual não é, então, o valor da caridade que, se falta, em vão se têm as outras coisas, ao passo que, se está presente, tudo se tem retamente? Todavia, louvando tão rica e abundantemente a caridade, o apóstolo Paulo diz menos a respeito dela do que disse em breves palavras o apóstolo João, de quem é este Evangelho. Este último não hesitou, pois, em dizer: “Deus é caridade”. ²⁷ E está escrito ainda: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. ²⁸ Quem pode, então, nomear o Pai e o Filho, sem entender aí a caridade do Pai e do Filho? Quando, pois, se começa a possuí-la, tem-se o Espírito Santo; e, se não for possuída, sem o Espírito Santo se estará. E assim, como se o teu corpo estiver sem espírito, que é a tua alma, estará morto; assim também, se a tua alma estiver sem o Espírito Santo, isto é, se estiver sem a caridade, será tida por morta. “As jarras continham, portanto, duas medidas”, porque, na profecia de todos os tempos, o Pai e o Filho são anunciados. Mas aí está também o Espírito Santo, e, por isso, foi acrescentado: “ou três”. Diz o Cristo: “Eu e o Pai somos um”. ² Longe de nós, porém, pensar que o Espírito Santo esteja ausente, quando ouvimos: “Eu e o Pai somos um”. Porque nomeou o Pai e o Filho, no entanto, contenham as talhas duas medidas; mas escuta o que se segue: “ou três”. “Ide, batizai todas as nações, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. ³ Assim, quando se mencionam as duas medidas, a Trindade não está expressa, mas, sim, entendida; e quando se fala, por outro lado, “ou três medidas”, também a Trindade está expressa. Segunda interpretação: a salvação de todas as nações 9 Não obstante, existe ainda outra interpretação que não deve ser deixada de lado, e eu direi qual é. Que cada um escolha a que mais lhe agrada; quanto a nós, não subtraímos o que se nos sugere. A mesa é, pois, do Senhor, e não convém que um ministro defraude os convivas, principalmente quando estão tão famintos, que se nota a vossa avidez. A profecia, que se dispensa desde os tempos remotos, diz respeito à salvação de todos os povos. Ao único povo de Israel, na verdade, foi enviado Moisés; e apenas a esse povo foi dada a Lei por seu intermédio. Os próprios profetas surgiram também desse povo, segundo o qual se fez a própria divisão dos tempos. Daí que aquelas talhas se digam também destinadas “à purificação dos judeus”. ³¹ Entretanto, é evidente que a profecia era também anunciada aos outros povos, visto que, nesse povo, estava oculto Cristo, em quem são abençoados todos os povos, tal como foi prometido a Abraão, quando o Senhor lhe diz: “Em tua descendência, serão abençoadas todas as nações”. ³² Isso não era ainda conhecido, todavia, porque a água ainda não tinha sido convertida em vinho. A profecia era dispensada, portanto, a todas as nações. E para que isso apareça de modo mais agradável, recordemos certas coisas, dentro do tempo de que dispomos, sobre cada uma daquelas idades, que é como se disséssemos: sobre cada uma das talhas. A primeira idade, Adão e Eva 10 No próprio início da humanidade, Adão e Eva foram os progenitores de todos os povos, não somente dos judeus. Tudo o que estava figurado em Adão acerca de Cristo, dizia respeito, por certo, a todos os povos, cuja salvação está em Cristo. O que de mais apropriado direi eu sobre a água da primeira talha, a não ser o que o Apóstolo diz sobre Adão e Eva? Na verdade, ninguém dirá que compreendi mal, visto que não manifesto um entendimento meu, mas o do Apóstolo. Que grande mistério em relação a Cristo está contido naquela unidade enaltecida pelo Apóstolo, que diz: “Serão dois em uma só carne. É grande este mistério”! E para que ninguém entendesse que a grandeza do mistério se encontra apenas em cada um dos homens que possuem esposa, ele acrescenta: “Refiro-me à relação entre Cristo e a Igreja”. ³³ Que mistério grande é este: “Serão dois em uma só carne”? Quando a Escritura do Gênesis falava de Adão e Eva, chegou a estas palavras: “O homem deixará o seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e serão ambos uma só carne”. ³⁴ Ora, se Cristo Se uniu à Igreja para serem dois numa só carne, como deixou o Pai? Como deixou a mãe? Deixou o Pai, “porque tendo a condição divina, não considerou o ser igual a Deus como algo a que Se apegar ciosamente. Mas esvaziou-Se a Si mesmo e assumiu a condição de escravo”. ³⁵ Eis o que quer dizer: deixou o Pai. Não que Ele tenha abandonado o Pai, nem que Se tenha afastado do Pai, mas porque não apareceu aos homens sob aquela forma pela qual é igual ao Pai. Como deixou a mãe? Deixando a sinagoga dos judeus, da qual nasceu segundo a carne, e unindo-Se à Igreja que congregou a partir de todos os povos. A primeira talha continha, portanto, uma profecia acerca de Cristo; mas, enquanto essas verdades de que falo não eram pregadas entre os povos, havia água ainda, não tinha sido transformada em vinho. Mas como o Senhor nos iluminou por meio do Apóstolo, com a intenção de mostrar-nos o que havíamos de procurar nesta única sentença: “Serão dois numa só carne”, o grande mistério de Cristo e da Igreja, é-nos já lícito buscar a Cristo em toda parte, e beber o vinho de todas as talhas. Dorme Adão para que seja formada Eva. ³ Morre Cristo para que nasça a Igreja. Eva é formada do lado de Adão, enquanto este dormia. Morto Cristo, o Seu lado é transpassado pela lança, ³⁷ para que brotem os sacramentos com que a Igreja é formada. ³⁸ Quem não vê que nesses fatos, já passados, estão figuradas as realidades futuras, visto que o Apóstolo afirma que esse Adão é figura do futuro: “Ele é a figura de quem devia vir”? ³ Tudo estava misteriosamente prefigurado. Na verdade, não é que Deus não pudesse extrair verdadeiramente uma costela de Adão, enquanto estivesse acordado, e formar uma mulher. Ou seria necessário, talvez, que ele adormecesse precisamente para que não lhe doesse o lado, quando foi extraída a costela? Quem pode dormir tão profundamente que se lhe extraiam ossos sem que venha a acordar? Ou será que, por ser Deus quem fazia a extração, o homem, por causa disso, não a sentia? Ora, quem pôde tirar sem dor uma costela ao que dormia, teria podido também retirá-la sem dor, mesmo se ele estivesse acordado. Mas não há dúvida de que a primeira talha estava já repleta. Com relação a este tempo que havia de chegar, a profecia daquele tempo se dispensava. A segunda idade, Noé 11 Cristo foi ainda prefigurado em Noé, assim como o orbe terrestre o foi naquela arca. ⁴ Por que foram todos os animais encerrados na arca, senão para que fossem simbolizados todos os povos? Pois a Deus não faltavam meios de criar outra vez todas as espécies de animais. De fato, quando ainda nenhuma delas existia, não disse Ele: “Que a terra os produza, e a terra os produziu”? ⁴¹ Como então os fez, assim tê-los-ia refeito. Com Seu Verbo os criou, com Seu Verbo os tornaria a criar. Não punha em evidência senão um mistério, e enchia a segunda talha da dispensação profética, de modo que, por um lenho, se salvasse o que era figura do orbe das terras, pois a vida do mundo havia de ser cravada num lenho. A terceira idade, Abraão 12 Já na terceira talha, ao próprio Abraão – coisa que já recordei – foi dito: “Em tua descendência, serão abençoadas todas as nações”. ⁴² E quem não vê de quem trazia a imagem o seu filho único, que carregava consigo a lenha do sacrifício ao qual era conduzido para ser, ele próprio, imolado? Com efeito, o Senhor carregou Sua cruz, como fala o Evangelho. ⁴³ Que seja suficiente ter recordado isso a respeito da terceira talha. A quarta idade, Davi 13 Em relação a Davi, porém, por que direi que sua profecia se referia a todos os povos, quando, ainda há pouco, ouvimosum salmo, e é difícil que se recite um salmo em que isso não ressoe? Mas, certamente, como disse, agora mesmo cantamos: “Levanta-te, ó Deus! Julga a terra, porque todas as nações são tua herança”. ⁴⁴ Eis por que os donatistas foram como que expulsos das núpcias, como aquele homem que não trazia a veste nupcial. Foi convidado às bodas, e veio; mas foi lançado fora do número dos chamados por não trazer a veste, para a glória do esposo. De fato, quem procura sua própria glória e não a de Cristo, não possui a veste nupcial. Não querem eles a cantar em uníssono com a voz daquele que é o amigo do Esposo, e diz: “Este é quem batiza”. ⁴⁵ Não sem razão, àquele homem que não trazia a veste nupcial foi objetado, por uma increpação, algo que ele não era: “Amigo, por que entraste aqui?”. ⁴ E assim como emudeceu, também o fazem estes. Que aproveita o ruído da boca, se o coração está mudo? Reconheceram, dentro de si mesmos, que nada tinham a dizer. Internamente emudeceram, mas, externamente, fazem muito ruído. Mas, quer queiram, quer não, ouvem cantar, também lá entre eles: “Levanta-te, ó Deus, julga a terra porque todas as nações são tua herança” ⁴⁷ e, ao não estarem em comunhão com todas as nações, o que mais reconhecem, senão que foram deserdados? O universalismo da salvação nas quatro primeiras idades 14 Como dizia, irmãos, porque a profecia se refere a todos os povos... – quero mostrar-vos, pois, outra interpretação do que se disse: “Continham duas ou três medidas” –, a todos os povos, digo, se refere a profecia, e lembramos que isso foi demonstrado em Adão, “é ele a figura de quem devia vir”. ⁴⁸ Quem ignora que dele nasceram todos os povos e que, nas quatro letras do seu nome [“Adam”], se mostram as quatro partes do orbe das terras, segundo as suas denominações gregas? Na verdade, se exprimirmos em grego os termos: oriente, ocidente, aquilão e meio-dia, tal como a santa Escritura os recorda em diversas passagens, nas primeiras letras dessas palavras, encontrarás “Adam”. As quatro mencionadas partes do mundo dizem-se, pois, em grego: anatolḗ, dúsis, árktos, mesēmbría”. Se escreveres esses quatro nomes, um abaixo dos outros, como quem escreve quatro versos, lerás a palavra “Adam”, formada com as suas iniciais. Esse universalismo também foi figurado em Noé, por causa da arca, na qual se encontravam todas as espécies de animais, imagens de todas as nações. Encontra-se, igualmente, em Abraão, ao qual foi dito bem claramente: “Todas as nações serão abençoadas em tua posteridade”. ⁴ Encontra-se ainda em Davi, um de cujos salmos – para omitir outras passagens – acabamos de cantar: “Levanta-te, ó Deus, julga a terra, porque todas as nações são tua herança”. ⁵ A que Deus está dito para se levantar, senão Àquele que dormiu? “Levanta-te, ó Deus, julga a terra”. É como se dissesse: Tu dormiste, depois de teres sido julgado pela terra; levanta-te, agora, para que julgues a terra. E até onde se estende essa profecia? “Porque todas as nações são tua herança”. ⁵¹ A quinta idade 15 Já na quinta idade, como na quinta talha, Daniel viu desprender-se da montanha uma pedra sem que ninguém a tocasse. Ela lançou por terra todos os reinos do mundo, tornando-se aquela pedra, depois, um grande monte, a tal ponto que enchia toda a face da terra. ⁵² O que há de mais claro, meus irmãos? Uma pedra desprende-se do monte. “É essa pedra que os construtores rejeitaram e que depois se tornou a pedra angular”. ⁵³ De que monte se desprendeu a pedra, senão do reino dos judeus, no qual nosso Senhor Jesus Cristo nasceu segundo a carne? E desprendeu-se sem que ninguém a tocasse, sem o concurso de homem algum, pois, sem enlace marital algum, nasceu de uma virgem. O monte de onde se desprendeu a pedra não recobrira toda a face da terra, porque o reino dos judeus não tinha se estendido sobre todos os povos. Pelo contrário, vemos que o reino de Cristo ocupa todo o orbe das terras. A sexta idade 16 É à sexta idade que pertence João Batista, em relação ao qual ninguém surgiu que fosse maior entre os filhos de mulher ⁵⁴ e do qual foi dito que “era mais do que um profeta”. ⁵⁵ Como demonstrou também ele que Cristo foi enviado a todos os povos? Quando os judeus vieram a ele para receber o batismo, para que não se ensoberbecessem com o nome de Abraão, disse- lhes: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? Produzi frutos dignos de conversão”, ⁵ isto é, sede humildes; ora, a soberbos falava. E eram soberbos com base em quê? Em decorrência da geração da carne, e não do fruto da imitação do pai Abraão. O que lhes disse? “Não penseis que basta dizer: Temos por pai a Abraão, pois eu vos digo que, mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos a Abraão”. ⁵⁷ Designava os povos com o nome de “pedras”, não em virtude da firmeza, como é o caso da Pedra “que os construtores rejeitaram”, ⁵⁸ mas em virtude da insensatez e da dureza da estultícia, porque eles se tinham tornado semelhantes às coisas que adoravam. Tornaram-se igualmente insensatos, porque adoravam ídolos insensatos. Por que insensatos? Porque se diz num salmo: “Iguais aos ídolos hão de ser os que os fazem, e todos os que neles confiam”. ⁵ Assim, quando os homens começaram a adorar a Deus, o que ouviram? “Para que vos torneis filhos de vosso Pai que está nos céus, porque Ele faz nascer o Seu sol igualmente sobre maus e bons, e cair a chuva sobre justos e injustos”. Se, pois, o homem se torna semelhante àquilo que adora, qual o sentido das palavras: “Deus pode, destas pedras, suscitar filhos a Abraão”? Interroguemo-nos a nós mesmos, e veremos que isso é o que se passou. Viemos dos gentios, mas não teríamos vindo dos gentios, se Deus não tivesse suscitado, das pedras, filhos a Abraão. Tornamo-nos filhos de Abraão ao imitar sua fé, e não ao nascer mediante a carne. Assim como os judeus, por degenerar, foram deserdados; nós, por imitar, fomos adotados. Por conseguinte, irmãos, também esta profecia da sexta talha diz respeito a todos os povos. E, por isso, de todas as talhas foi dito que “continham duas ou três medidas”. O simbolismo das duas ou três medidas 17 Mas como havemos de demonstrar que todos os povos dizem respeito àquelas duas ou três medidas? Foi, em certo modo, coisa de quem estimava se houvessem de dizer duas as mesmas medidas que dissera serem três, a fim de enaltecer um mistério. Como são duas as medidas? A circuncisão e a incircuncisão. A Escritura recorda esses dois povos, sem deixar qualquer raça de homens, quando diz: “os circuncisos e os incircuncisos”. ¹ Nessas duas designações, tens todos os povos. Eis aí as duas medidas. A fim de estabelecer a paz, em Si mesmo, entre esses dois muros vindos de lados opostos, ² Cristo tornou-Se a Pedra angular. Mostremos ainda que as três medidas estão nesses mesmos povos todos. Três eram os filhos de Noé, e foi por eles que o gênero humano se reconstituiu. ³ Daí que o Senhor igualmente diga: “O Reino de Deus é semelhante ao fermento que uma mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha, até que tudo ficasse fermentado”. ⁴ Que mulher é essa, a não ser a carne do Senhor? Que fermento é esse, a não ser o Evangelho? O que representam as três medidas, senão os povos todos, em razão dos três filhos de Noé? As seis talhas, então, “cada uma contendo duas ou três medidas”, são as seis idades dos tempos, que guardam a profecia referente a todos os povos; quer sejam representados por duas classes de homens: judeus e gregos, como muitas vezes lembra o Apóstolo; ⁵ quer o sejam por três, numa alusão aos três filhos de Noé. A profecia que atinge todos os povos foi prefigurada, pois por atingi-los é que foi chamada de “medida”, conforme diz o Apóstolo: “Recebemos a medida de chegar até vós”; enquanto evangeliza, com efeito, as nações, diz ter recebido “a medida de chegar até vós”. HOMILIA 10 O Corpo de Jesus: novo templo (Jo 2,12-21) Está dentro de ti quem te escuta nas tribulações 1 Ouvistes, no salmo, ⁷ o gemido do pobre, cujos membros padecem tribulações por toda a terra, até o fim do mundo. Fazei o bastante,meus irmãos, para estardes entre esses membros, para fazerdes parte desses membros, porque toda tribulação há de passar. Ai dos que se alegram! A Verdade diz: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados”. ⁸ Deus fez-Se homem: o que virá a ser o homem por quem Deus Se fez homem? Essa esperança nos console em toda tribulação e tentação desta vida. O inimigo, com efeito, não deixa de perseguir e, se não ataca abertamente, arma ciladas. O que faz ele, pois? Além da ira, trabalhavam dolosamente: por isso é denominado leão e dragão. E o que se diz a Cristo? “Tu pisarás sobre o leão e o dragão”. ⁷ O inimigo é um leão por sua escancarada ira; é um dragão pelas ciladas ocultas. Como dragão, expulsou Adão do paraíso e, como leão, perseguiu a Igreja, conforme diz Pedro: “Eis que o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procurando a quem devorar”. ⁷¹ Não penses que o demônio perdeu contra ti a sua ferocidade; se faz carícias, é então que mais te deves acautelar. Mas em meio a todas essas insídias e tentações dele, o que faremos, a não ser o que acabamos de ouvir no salmo? “Quando eles me eram molestos, eu vestia-me de cilício e humilhava a minha alma com jejum”. ⁷² Não hesiteis em orar, pois há quem escute. Aquele que escuta, permanece dentro. Não dirijais vosso olhar para algum monte, não levanteis o rosto para as estrelas, nem para o sol, nem para a lua. Não penseis que sois ouvidos então, quando orais junto ao mar. Tende, antes, horror a tais orações. Limpa tão somente o cubículo do teu coração: onde quer que estejas, em toda parte onde orares, está dentro de ti Aquele que te há de ouvir, está aí, no mais recôndito recanto, a que o salmista dá o nome de “seio”, quando diz: “A minha oração se desenvolverá em meu seio”. ⁷³ Aquele que te escuta não está fora de ti. Não O procures longe, nem te eleves como se quisesses tocá-l’O com as mãos. Aliás, se te elevares, cairás; mas se te humilhares, Ele mesmo Se aproximará. Este é o Senhor nosso Deus, o Verbo de Deus, Verbo feito carne, Filho do Pai, Filho de Deus, Filho do homem. Excelso para criar-nos, humilde para recriar-nos, que caminhou entre os homens a sofrer as misérias humanas e a esconder as grandezas divinas. Os irmãos do Senhor. O sentido dessa expressão 2 Como diz o evangelista: “Depois disso, Jesus desceu a Cafarnaum, Ele, Sua mãe, os Seus irmãos e os Seus discípulos, e ali ficaram não muitos dias”. ⁷⁴ Jesus tem, pois, mãe, irmãos e discípulos. Se tem irmãos, é porque tem mãe. Lembremos que a nossa Escritura não costuma designar como irmãos apenas os irmãos nascidos de um mesmo pai e de uma mesma mãe, ou de um mesmo ventre, ou de um mesmo pai, ainda que de diferentes mães; ou, por certo, os que têm o mesmo grau de parentesco, como os primos-irmãos, seja por parte de pai, seja por parte de mãe. Não somente a esses, a nossa Escritura usa denominar irmãos. Como ela fala, assim há de entender-se. Possui sua forma própria de dizer, e quem quer que a desconheça, fica perturbado e diz: Então, o Senhor tem irmãos? Porventura voltou Maria a dar à luz? De modo algum! Pois a partir daí teve início a dignidade das virgens. Essa filha de homens ⁷⁵ pôde ser mãe, mas não mulher ⁷ no sentido usual. ⁷⁷ Foi chamada de mulher, sem dúvida, por causa do sexo feminino, não pela corrupção da sua integridade. Vê-se isso pelo modo de falar da própria Escritura. Sabeis, pois, que Eva, logo que foi formada do lado do marido, e antes mesmo de qualquer relação com ele, foi chamada de mulher: “O Senhor modelou uma mulher e apresentou-a ao homem”. ⁷⁸ Donde, então, aparecem esses irmãos? Os irmãos do Senhor são parentes de Maria, em qualquer grau de parentesco. Como o provamos? Pela mesma Escritura. Assim, Ló é chamado irmão de Abraão, e era filho de seu irmão. Lê, e encontrarás que Abraão era o tio paterno de Ló; tratam- se, porém, como irmãos. E por que, senão porque eram parentes? ⁷ Do mesmo modo, Jacó tinha como tio materno Labão, o Sírio, pois este era irmão da mãe de Jacó, isto é, de Rebeca, esposa de Isaac. ⁸ Lê a Escritura, e encontrarás que tio e sobrinho tratavam-se como irmãos. ⁸¹ Uma vez conhecida essa regra, verás que todos os parentes de Maria são considerados irmãos de Cristo. A verdadeira parentela do Senhor 3 Mas, os discípulos eram, com maior razão, considerados irmãos de Jesus; pois nem mesmo Seus parentes seriam irmãos, se não fossem discípulos Seus. De nada lhes serviria que fossem irmãos, se não considerassem como irmão o seu Mestre. De fato, quando em certa ocasião, enquanto Ele falava a Seus discípulos, vieram dizer-Lhe que Sua mãe e os Seus irmãos estavam do lado de fora, respondeu: “Quem é minha mãe e quem são os meus irmãos? E estendendo a mão para os Seus discípulos, disse: “Eis a minha mãe e os meus irmãos”. E acrescentou: Aquele que fizer a vontade de meu Pai, que está nos céus, é meu irmão e irmã, e mãe”. ⁸² Logo, isso também se aplica a Maria, pois ela fez a vontade do Pai. O Senhor exaltou nela precisamente que tenha cumprido a vontade do Pai, e não que a carne tenha gerado carne. Esteja atenta a vossa caridade! Noutra ocasião, enquanto o Senhor parecia admirável entre a multidão, ao realizar milagres e prodígios, e manifestar, assim, o que se ocultava na carne, certas almas disseram admiradas: “Bem-aventurado o ventre que te trouxe”. E Ele respondeu: “Antes, bem-aventurados os que ouvem a Palavra de Deus e a guardam”. ⁸³ O que equivaleria a dizer: também minha mãe, a quem chamastes bem- aventurada, assim o é por guardar a Palavra de Deus, não porque nela “o Verbo Se fez carne e habitou entre nós”; ⁸⁴ mas sim porque ela guarda essa mesma Palavra de Deus, por quem foi criada e que nela Se fez carne. Que os homens não se alegrem com sua prole temporal, mas exultem se, no espírito, estiverem unidos a Deus. Nós dissemos essas coisas por causa do que diz o evangelista, a saber, que Jesus ficou poucos dias em Cafarnaum, com Sua mãe, Seus irmãos e Seus discípulos. A expulsão dos vendilhões do templo. O fato 4 O que vem dito a seguir? “Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém”. Narra-se um novo acontecimento, conforme a recordação de quem o anuncia: “encontrou no templo a muitos que vendiam bois e ovelhas e pombas, e os cambistas sentados. E tendo feito de cordas um chicote, expulsou-os a todos do templo, também os bois e as ovelhas, lançou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou as mesas. E aos que vendiam pombas, disse: Tirai daqui isto, e não façais da casa de meu Pai uma casa de negócios”. ⁸⁵ O que acabamos de ouvir, irmãos? Eis que aquele templo era ainda uma figura e, apesar disso, o Senhor expulsou dali todos os que procuravam os próprios interesses, e aí tinham vindo para fazer negócio. E o que vendiam eles ali? Tudo de que os homens necessitavam para os sacrifícios daquele tempo. Com efeito, a vossa caridade sabe que, em virtude de sua propensão carnal e da dureza do seu coração, foram concedidos tais sacrifícios àquele povo, com os quais era impedido de deslizar para o culto dos ídolos. E ali imolavam os sacrifícios, bois, ovelhas e pombas. Vós o sabeis, porque o lestes. Não era, portanto, um grande pecado que vendessem no templo o que era comprado para ser oferecido no templo; e, não obstante, o Senhor expulsou-os de lá. Que faria o Senhor, se ali encontrasse homens ébrios, quando expulsou os que vendiam coisas lícitas e que não lesavam a justiça – ora, o que se compra honestamente não é vendido ilicitamente –, e não suportou que a casa de oração se tornasse uma casa de negócio? Se a casa de Deus não se pode tornar uma casa de negócio, deve tornar-se casa de bebida? Quando falamos disso, no entanto, [os donatistas] rangem os dentes contra nós. Consola-nos, porém, o salmo que ouvistes: “Rangeram os seus dentes contra mim”. ⁸ Sabemos ouvir também nós que há como curar-nos, ainda que se multipliquem os açoites contra Cristo, pois é açoitada a Sua palavra: “Amontoaram sobre mim os açoites, e não se deram conta”. ⁸⁷ Cristo foi flagelado pelos açoites dos judeus, é flageladopelas blasfêmias dos falsos cristãos. Multiplicam eles os açoites contra o seu Senhor, e não sabem. Quanto a nós, façamos o seguinte, na medida em que Ele nos ajudar: “Quando eles me molestavam, vestia-me de cilício e humilhava a minha alma no jejum”. ⁸⁸ O simbolismo do chicote de cordas 5 Não obstante, irmãos, – uma vez que o Senhor não os poupou: quem viria a ser flagelado por eles, flagelou-os primeiro – dizemos que Ele nos mostrou certo sinal ao ter feito um chicote de cordas e ter, então, flagelado aquela gente indisciplinada, que fazia do templo de Deus uma casa de negócio. Cada um tece para si, na verdade, uma corda com seus próprios pecados. O profeta o diz: “Ai daqueles que arrastam pecados como uma longa corda”. ⁸ Quem faz essa longa corda? Quem junta pecado a pecado. Como se juntam pecados a pecados? Quando se cobrem os pecados feitos, com novos pecados. Alguém cometeu um furto; e, para que não se descubra que furtou, procura um adivinho. Bastaria que tivesse furtado: por que queres ajuntar um pecado a outro pecado? Eis aí dois pecados. Como se te proíbe recorrer a adivinhos, blasfemas contra o bispo: eis aí três pecados. Quando ouves dizer: Lança-o fora da Igreja, replicas: Passo, então, para o lado de Donato! Eis que acrescentas um quarto pecado. Cresce a corda. Toma cuidado com a corda! É bom para ti que, a partir do momento em que és flagelado aqui, tu te corrijas, para que não se te diga no fim: “Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o fora, nas trevas exteriores”. ¹ “Cada qual se acha ligado pelas cadeias de seus pecados”. ² A primeira sentença é o Senhor quem diz, a segunda é tirada de outra passagem da Escritura; mas o Senhor a ambas pronuncia. Os homens acham-se ligados por seus próprios pecados e são lançados nas trevas exteriores. Os que vendem no recinto da Igreja 6 Quem são os que vendem bois? – para procurarmos sob a figura o mistério do fato. Quem são os que vendem ovelhas e pombas? São aqueles que “buscam, na Igreja, os seus próprios interesses, e não os de Jesus Cristo”. ³ Tudo têm por venal aqueles que não querem ser remidos. Não querem ser comprados, e querem vender. E ser-lhes-ia tão vantajoso serem remidos pelo Sangue de Cristo, a fim de chegarem à paz de Cristo! Qual a vantagem que levam em adquirir neste mundo tudo o que há de temporal e transitório, seja dinheiro, seja o prazer do ventre e da garganta, seja a honra no louvor humano? Não é tudo isso fumo e vento? Não passam todas essas coisas, não correm? Ai dos que se tiverem unido às realidades que passam, porque também passam, em companhia delas! Não são todas essas coisas, por acaso, um rio veloz que corre para o mar? Ai de quem nele tiver caído, porque será arrastado para o mar. Devemos, portanto, manter todas as nossas afeições afastadas de tais concupiscências. Meus irmãos, os que andam atrás de tais bens, vendem. Com efeito, aquele Simão, o Mago, queria também comprar o Espírito Santo, porque pretendia vender o Espírito Santo ⁴ e julgava fossem os apóstolos negociantes, tais como os que o Senhor expulsou do templo com o chicote. Era Simão, o Mago, desses tais, queria comprar o que pudesse vender. E era daqueles que vendiam pombas. De fato, como pomba apareceu o Espírito Santo. ⁵ Quem são, portanto, os que vendem pombas, irmãos? Quem são, senão os que dizem: “Nós é que damos o Espírito Santo”? E por que o dizem? Por que preço vendem? Pelo preço da própria honra. Recebem, como preço, cátedras temporais, para que se veja que eles vendem pombas. Que tomem cuidado com o chicote feito de cordas! A pomba não está à venda, é dada de graça, pois se chama graça. Com efeito, meus irmãos, não vedes que cada qual louva o que está a vender, assim como fazem os que vendem, os negociadores? E quantas propostas de venda têm sido feitas! Primiano tem uma, em Cartago; outra tem Maximiano; Rogato tem uma na Mauritânia e há ainda outra na Numídia, de uns e de outros, que já nem conseguimos nomear. Eis que anda alguém, de um lado para outro, para comprar a pomba, e cada qual louva o que vende, em favor de sua proposta. Que o coração dele fuja de todo e qualquer vendedor, e venha até onde se recebe de graça. Eles nem se envergonham de terem feito de si tantas facções, por suas próprias dissensões, amargas e maliciosas, quando se atribuem predicados que não possuem, quando se orgulham, “julgando ser alguma coisa, quando afinal nada são”. Mas o que se realiza neles, por não quererem corrigir-se, senão o que ouvistes no salmo: “Estavam divididos entre si, mas não arrependidos”? ⁷ O simbolismo dos bois nas Escrituras 7 O que significam, então, os que vendem bois? Por bois, entendem-se aqueles que nos transmitiram as santas Escrituras. Eram bois os apóstolos, e eram bois os profetas. Daí que o Apóstolo diga: “Não amordaçarás o boi que tritura o grão. Acaso Deus Se preocupa com os bois? Não é, sem dúvida, por causa de nós que Ele assim fala? Sim, por nossa causa, é que isso foi escrito, pois aquele que trabalha deve trabalhar com esperança, e aquele que pisa o grão deve ter a esperança de receber a sua parte”. ⁸ Os bois são, pois, aqueles que nos deixaram a memória das Escrituras. Não dispensaram o que era seu, pois procuravam a glória do Senhor. O que acabais de ouvir naquele mesmo salmo? “Digam sem cessar: ‘Glorificado seja o Senhor’, os que desejam a paz do Seu servo”. O servo de Deus é o povo de Deus, a Igreja de Deus. Os que querem a paz da Igreja d’Ele, glorifiquem o Senhor, e não o servo; e digam sem cessar: “Glorificado seja o Senhor!”. Quem deve falar assim? “Aqueles que querem a paz de Seu servo”. Desse mesmo povo, desse mesmo servo é aquela voz clara que ouvistes, em lamentações, no salmo. Vós vos comovestes ao ouvi-la, porque fazeis parte disso. O que era cantado por um só, ressoava de todos os corações. Felizes os que se reconheciam naquelas vozes, como num espelho. Quais são, pois, os que querem a paz de Seu servo, a paz de Seu povo, a paz daquela que o salmista chama de Única e que deseja ver arrebatada da garra do leão? “Arrebata a minha única das garras do cão”.⁷ São os que dizem sem cessar: “Glorificado seja o Senhor”.⁷ ¹ Aqueles bois glorificaram, portanto, o Senhor, e não a si mesmos. Vede o boi a glorificar o seu Senhor: “O boi conhece o seu proprietário”.⁷ ² E vede como o boi receia que seja abandonado o Possuidor do boi e que se apoie alguém no próprio boi. Como se assusta com os que querem colocar sua esperança nele: “Paulo terá sido crucificado em vosso favor? Ou fostes batizados em nome de Paulo?”.⁷ ³ O que dei, não o dei eu. Recebestes gratuitamente. A pomba desceu do céu. “Eu – diz – plantei; Apolo regou, mas é Deus quem fez crescer. Assim, pois, aquele que planta nada é; aquele que rega, nada é; mas importa tão somente Deus, que dá o crescimento”.⁷ ⁴ Digam, pois, sem cessar, os que querem a paz do Seu servo: “Glorificado seja o Senhor”. Os vendilhões do templo 8 Quanto àqueles sobre os quais falei, é com as próprias Escrituras que enganam os povos, para receberem deles honrarias e louvores, e não para que se convertam os homens à verdade. Como, então, com as próprias Escrituras, enganam os povos, dos quais procuram receber honrarias, vendem bois, vendem também ovelhas, isto é, o mesmo povo. E a quem o vendem, senão ao diabo? Meus irmãos, se a Igreja de Cristo é única, e é uma só, tudo o que daí se desgarra quem o leva, a não ser aquele leão “que anda ao redor a rugir, buscando a quem devorar”.⁷ ⁵ Ai dos que se separam! Pois ela permanecerá íntegra. “O Senhor conhece os que são Seus”.⁷ Quanto ao que deles próprios depende, todavia, vendem bois e ovelhas, e vendem mesmo pombas. Que fixem os olhos no flagelo de seus pecados. Que reconheçam, por certo, quando padecerem algo assim por causa desses pecados seus, que o Senhor fez um chicote de cordas e os adverte a se converterem, e a não serem mais vendilhões. Pois, se não se converterem, hão de ouvir no fim: “Amarrai- lhes os pés e as mãos e lançai-os fora, nas trevas exteriores”.⁷ ⁷ O zelo da casa de Deus 9 “Então, recordaram-seos discípulos do que está escrito: O zelo de tua casa me devora”.⁷ ⁸ Pois o Senhor expulsou aqueles homens do templo, levado pelo zelo da casa de Deus. Irmãos, que cada cristão, entre os membros de Cristo, seja devorado pelo zelo da casa de Deus. Quem é devorado pelo zelo da casa de Deus? Aquele que trabalha para que tudo o que nela vê, talvez, de censurável seja corrigido, desejando que seja emendado, e nisso não descansa; caso não possa emendá-lo, suporta e geme. O grão não se atira para fora da eira, tolera a palha, para entrar no celeiro depois que a palha tiver sido posta de lado. Se tu és um grão, que, enquanto não estás no celeiro, não te atires fora da eira, para não seres primeiro colhido pelas aves, antes que reunido ao celeiro. As aves do céu são, pois, as potestades aéreas. Estão à espreita para roubar da eira alguma coisa; mas não arrebatam senão o que dali tiver sido expulso. Devore-te, portanto, o zelo da casa de Deus. Que a cada cristão devore o zelo da casa de Deus, dessa casa de Deus em que é ele um dos membros. Pois, não há casa que seja mais tua do que aquela casa onde tens a salvação eterna. Tu entras em tua casa, para um repouso temporal; entras na casa de Deus, para o repouso eterno. Se trabalhas para que, em tua casa, nada de perverso se faça; na casa de Deus, onde se oferecem a salvação e o repouso sem fim, deves tolerar, caso tenhas algum poder para impedi-lo, que se cometa o mal? Vês, por exemplo, um irmão correr ao teatro? Se o zelo da casa de Deus te devora, impede-o de ir, adverte-o, mostra-te entristecido. Vês outros a correr e a querer embriagar-se? E querer, em lugares santos, algo que não convém em parte alguma? Impede quantos puderes, retém-nos, intimida-os e usa de suavidade com quantos puderes. Não descanses, porém! É teu amigo? Seja suavemente admoestado. É tua esposa? Seja refreada mui severamente. É uma escrava? Seja reprimida inclusive com açoites. Faze tudo o que estiver a teu alcance, conforme a tua posição, e realizarás a máxima: “O zelo de tua casa me devora”.⁷ Se fores frio, desanimado, preocupado somente contigo mesmo, como se isso já te fosse o bastante, dizendo em teu coração: “Por que tenho eu de preocupar-me com os pecados alheios? Basta-me a minha alma; conserve-a eu íntegra para Deus!”. Eia, não vem à tua mente aquele servo que escondeu o talento, e não quis fazê-lo frutificar? Porventura, foi acusado de tê-lo perdido ou, antes, de tê-lo conservado sem lucro?⁷¹ Assim, pois, ouvi isso, meus irmãos, de modo que não descanseis. Vou dar-vos um conselho; dê-o Aquele que habita dentro, pois, ainda que o tenha dado por meu intermédio, é Ele quem o dá. Sabeis o que cada um de vós tem de fazer em sua casa, com um amigo, com um vizinho, com um cliente, com alguém mais velho, com alguém mais novo. Sabeis como Deus dá o meio, como abre a porta a Seu Verbo. Não descanseis de lucrar os outros para Cristo, pois fostes lucrados por Ele. O sinal do templo O sinal dado por Jesus 10 Os judeus, então, interpelaram-n’O dizendo: “Que sinal nos mostras para assim agires?”. Respondeu-lhes Jesus: “Destruí este templo e, em três dias, eu o levantarei”. Disseram-Lhe, então, os judeus: “Quarenta e seis anos foram precisos para se construir este templo, e tu o levantarás em três dias?”.⁷¹¹ Os judeus eram carne, apreciavam as coisas por seu sabor carnal. O Senhor falava-lhes, contudo, no sentido espiritual. Quem poderia entender, por outro lado, de que templo Ele falava? Nós, porém, não procuramos muito. Por meio do evangelista, Ele no-lo revelou, disse de que templo se tratava: “Destruí este templo e, em três dias, eu o levantarei”. “Este templo foi construído em quarenta e seis anos, e tu o levantarás em três dias? Ele, porém, falava do templo de Seu Corpo”.⁷¹² Ora, é um fato conhecido por todos que o Senhor, tendo morrido, ressuscitou depois de três dias. Todos o sabem, mesmo se aos judeus isso permanece fechado, porque eles se mantêm na parte de fora; para nós, no entanto, está aberto, “porque nós sabemos em quem acreditamos”.⁷¹³ Vamos celebrar, na solenidade anual, a destruição e a reedificação desse Templo; nós vos exortamos a preparar-vos para ela, se alguns de vós sois catecúmenos, para receberdes a graça. Agora já é tempo, seja agora concebido já o que, então, haverá de nascer. Nós o sabemos, pois. O alcance do sinal: o Pai e o Filho operam a ressurreição de Cristo 11 Mas, talvez se nos exija dizer se algum mistério há no fato de esse templo ter sido construído em quarenta e seis anos. Há, evidentemente, muitas coisas que, a esse respeito, podem ser ditas; mas, por ora, dizemos o que com brevidade se pode explicar, e mais facilmente se pode entender. Irmãos, dissemos já no dia de ontem, se não estiver enganado, que Adão foi um só homem e é, ele mesmo, o gênero humano todo. Assim o dissemos, se vos recordais. Ele foi como que dividido, mas, depois desse retalhamento, foi como que recolhido em um só, fundido pela sociedade e concórdia espiritual.⁷¹⁴ Agora, geme o único pobre, o próprio Adão, mas é renovado em Cristo, o Adão que veio sem pecado para destruir em Sua carne o pecado de Adão, e para restaurar em Si Adão, a imagem de Deus. É de Adão, pois, que provém a carne de Cristo. É de Adão que provém o Templo que os judeus destruíram e que Deus ressuscitou em três dias. Na verdade, Ele ressuscitou a Sua própria carne: vede que Ele era Deus, igual ao Pai. Meus irmãos, o Apóstolo diz: “Aquele que O ressuscitou dentre os mortos”.⁷¹⁵ De quem se fala? Do Pai. “Cristo foi obediente até à morte e morte de cruz! Por isso, Deus exaltou-O, ressuscitou-O dos mortos e deu- Lhe um nome que está acima de todo nome”.⁷¹ O Senhor foi ressuscitado e exaltado. “Ressuscitou-O”. Quem? O Pai, a quem Ele Se dirige nos salmos: “Ressuscita-me, e eu retribuirei”.⁷¹⁷ Foi, pois, o Pai que O ressuscitou. Então, Ele não Se ressuscitou a Si mesmo? Ora, o que faz o Pai sem o Verbo? O que faz o Pai sem o Seu Único? Ouve, como também Ele mesmo era Deus: “Destruí este templo, e eu o reedificarei em três dias”. Acaso, disse Ele: Destruí este templo, e o Pai o ressuscitará em três dias? Mas, como quando o Pai ressuscita, também o Filho ressuscita; assim, quando o Filho ressuscita, também o Pai ressuscita, pois o Filho disse: “Eu e o Pai somos um”.⁷¹⁸ O mistério dos quarenta e seis anos 12 O que significa, pois, esse número quarenta e seis? Por ora, que o próprio Adão esteja espalhado através de todo o orbe terrestre é coisa que ouvistes já, no dia de ontem, através das quatro letras gregas de quatro palavras gregas. Com efeito, se escreveres essas quatro palavras, uma abaixo da outra, isto é, os nomes das quatro partes do mundo, do oriente, do ocidente, do aquilão e do meio-dia, que correspondem ao mundo todo – daí que o Senhor diga que há de reunir a Seus eleitos dos quatro ventos, quando vier para o juízo⁷¹ – se, como dizia, escreveres estes quatro nomes gregos: anatolḗ, que é oriente; dúsis, que é ocidente; árktos, que é setentrião, e mesēmbría, que é meio-dia, as letras iniciais de anatolḗ, dúsis, árktos e mesēmbría farão o nome de Adão.⁷² Mas como encontraremos aí o número quarenta e seis? Porque a carne de Cristo vem de Adão. Ora, os gregos contam conforme as letras. O que nós escrevemos como letra a, eles designam, em sua língua, como alfa, e alfa se chama o número um. Quando, por outro lado, entre os números escrevem beta, que é o b deles, é chamado entre os números de “dois”. Quando escrevem gama, é chamado de “três” em sua numeração. Quando escrevem delta, é chamado, em sua numeração, de “quatro”. E assim por diante, por meio de todas as letras, representam os números. O que nós dizemos eme, e eles dizem mi, significa “quarenta”. Chamam, com efeito, a letra mi de tessarákonta. Observai, já, a que número correspondem essas letras, e aí encontrareis que em quarenta e seis anos foi edificado o templo. Com efeito, o nome de Adão⁷²¹ tem um alfa, que equivale a um; um delta que vale quatro, e aí contas cinco; tem ainda outro alfa, que vale um, e chegas a seis; e tem também um mi,que vale quarenta: contas os quarenta e seis. Essa interpretação, meus irmãos, foi dada já por nossos antepassados. Descobriu-se nas letras esse número quarenta e seis. E, porque nosso Senhor Jesus Cristo recebeu um corpo de Adão, mas de Adão não contraiu o pecado, tomou dele o templo de Seu Corpo, não a iniquidade que se há de expulsar do templo. Os judeus crucificaram essa mesma carne que o Senhor tomou de Adão – porque Maria proveio de Adão, e a carne do Senhor, de Maria –, mas Ele havia de ressuscitar ao terceiro dia a mesma carne que eles estavam para matar na cruz. Os judeus destruíram o templo edificado em quarenta e seis anos, e Ele o reedificou em três dias. Exortação final 13 Bendizemos o Senhor nosso Deus por ter-nos reunido aqui para uma alegria toda espiritual. Permaneçamos sempre na humildade do coração, e que nossa alegria esteja junto a Ele. Não nos envaideçamos com qualquer prosperidade deste mundo, mas saibamos que nossa felicidade não existirá senão quando essas coisas tiverem passado. Meus irmãos, nossa alegria esteja, por ora, na esperança. Ninguém se alegre, por assim dizer, na realidade presente, para não se apegar ao caminho. Toda a nossa alegria venha da futura esperança, e todo o nosso desejo seja o da vida eterna. Todos os suspiros anelem por Cristo. Seja Ele desejado, o único belíssimo, que amou até os feios, para torná-los belos. Corra-se apenas em direção a Ele, gema-se por Ele. E digam sem cessar: “Glorificado seja o Senhor!”, os que desejam a paz do Seu servo.⁷²² HOMILIA 11 A fé é o nascimento para a vida nova (Jo 2,23-3,5) Introdução: a feliz coincidência desta leitura 1 Oportunamente, procurou-nos o Senhor, no dia de hoje, a sequência desta leitura. Creio que a vossa caridade terá advertido que nós nos propusemos considerar e tratar por ordem o Evangelho segundo João. Oportunamente, portanto, ocorreu que hoje ouvísseis do Evangelho que “Quem não renascer da água e do Espírito, não verá o Reino de Deus”.⁷²³ Com efeito, é tempo de exortar-vos a vós, que ainda sois catecúmenos e que, apesar de terdes crido em Cristo, carregais ainda os vossos pecados. Ora, ninguém verá o Reino dos céus se carregado estiver de pecados; pois não reinará com Cristo senão aquele a quem tiverem sido perdoados os pecados, os quais não podem, contudo, ser perdoados, senão a quem tiver renascido da água e do Espírito Santo. Advirtamos com atenção, porém, o sentido de todas essas palavras, a fim de que aí encontrem os preguiçosos com quanta solicitude se devem apressar em depor o fardo. Se acaso trouxerem às costas algum fardo pesado, de pedra ou de madeira, ou mesmo de algum valor, se trouxerem trigo, vinho ou dinheiro, teriam pressa em depositar os fardos. Acontece que carregam um fardo de pecados, e mostram-se indolentes em correr. É preciso correr para depor essa carga; ela oprime e prostra. Cristo e os batizados. “Muitos creram em Seu nome, mas Jesus não Se fiava neles” 2 Ouvistes, pois, que “Enquanto o Senhor Jesus estava em Jerusalém para a festa de Páscoa, muitos creram em Seu nome, ao verem os sinais que fazia”. Muitos creram em Seu nome, e o que segue? “Mas Jesus não Se fiava neles”.⁷²⁴ Que quer isso dizer? “Eles creram em Seu nome”, e “Jesus não Se fiava neles”? Será porque não acreditavam n’Ele de verdade, mas apenas simulavam crer e, por esse motivo, Jesus não Se fiava neles? Nesse caso, o evangelista não diria: “Muitos creram em Seu nome”, se não houvesse dado deles um testemunho verdadeiro. Eis, pois, algo de grande e admirável! Os homens creem em Cristo, e Cristo não Se fia nos homens! Antes de tudo, por ser Ele o Filho de Deus, sofreu, sem dúvida, voluntariamente. Se não o quisesse, jamais teria sofrido; caso não o quisesse, tampouco teria nascido. E caso quisesse apenas isto: ter nascido e não morrer, e tudo o mais que quisesse, fá-lo-ia, porque é o Filho onipotente do Pai onipotente. Demonstremo-lo com os próprios fatos. Quando quiseram lançar-Lhe as mãos, afastou-Se deles. Diz o Evangelho: “Como tivessem querido precipitá- l’O do cimo do monte, afastou-Se deles ileso”.⁷²⁵ E quando vieram para prendê-l’O, depois que fora já vendido pelo traidor Judas, por mais que este pensasse ter em seu poder entregar o seu Mestre e Senhor, também então mostrou o Senhor que padece por vontade própria, não por necessidade. Com efeito, quando os judeus quiseram prendê-l’O, Ele lhes disse: “A quem procurais? Responderam: A Jesus de Nazaré. E Jesus disse-lhes: Sou eu. Ouvindo essas palavras, retrocederam e caíram”.⁷² Ao fazê-los cair por terra com Sua resposta, mostrou o Seu poder, a fim de mostrar a Sua vontade no fato de ter sido preso por eles. Que tenha Ele padecido, portanto, foi um ato de misericórdia. “Foi entregue pelas nossas faltas e ressuscitou para a nossa justificação”.⁷²⁷ Ouve as palavras d’Ele: “Tenho poder de entregar a minha vida e poder de retomá-la. Ninguém a arrebata de mim, mas eu a dou livremente, a fim de a reassumir de novo”.⁷²⁸ Visto que tinha tão grande poder, que o afirmava com Suas palavras e o mostrava com Suas obras, como explicar que Jesus não Se fiasse nos homens, como se estes houvessem de prejudicar em algo a quem não o quisesse, ou houvessem de fazer algo a quem não o quisesse, principalmente quando eles tinham acreditado já em Seu nome? Diz o evangelista: “Creram em Seu nome”, precisamente a respeito daqueles de quem também diz: “Mas Jesus não Se fiava neles”. Por quê? Porque Jesus os conhecia a todos, e não necessitava de que alguém Lhe desse testemunho sobre homem algum, porque Ele mesmo conhecia o que havia no homem.⁷² Mais sabia o Artífice o que havia em Sua obra, do que a própria obra o que havia em si mesma. O Criador do homem sabia o que havia no homem, algo que o próprio homem, que fora criado, não sabia. Porventura não provamos isso em Pedro, ou seja, que ignorava o que havia em si mesmo, quando disse: “Irei contigo até à morte”? Ouve como o Senhor sabia o que havia no homem: “Vais comigo para a morte? Em verdade, em verdade te digo, antes que o galo cante, tu me negarás por três vezes”.⁷³ O homem, portanto, não sabia o que havia em si, mas o Criador do homem sabia o que havia no homem. “Muitos creram – contudo – em Seu nome, mas Jesus não Se fiava neles”. O que dizer sobre isso, irmãos? O que segue talvez nos indique o que significa o mistério dessas palavras. Que os homens tenham acreditado n’Ele, é claro, é verdade; ninguém o põe em dúvida: o Evangelho o diz, o veraz evangelista o atesta. Do mesmo modo, “Jesus não Se fiava neles” é algo igualmente claro e nenhum cristão duvida, visto que o Evangelho diz isso também, e o mesmo evangelista veraz o atesta. Por que, então, creram eles em Seu nome, mas Jesus não tinha confiança neles? Vejamos quanto segue. O caso de Nicodemos e os catecúmenos 3 “Havia, entre os fariseus, um homem de nome Nicodemos, chefe dos judeus. Veio ele ter com Jesus à noite, e Lhe disse: “Rabi – já sabeis que Rabi significa Mestre –, nós sabemos que vieste da parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deus não estiver com ele”.⁷³¹ Esse Nicodemos era, pois, daqueles que tinham crido em Seu nome, vendo os milagres e os prodígios que Ele fazia. Com efeito, o evangelista disse isso acima: “Enquanto estava em Jerusalém para a festa da Páscoa, muitos creram em Seu nome”.⁷³² E por qual motivo acreditaram? “Vendo os sinais que Ele fazia”. E o que diz de Nicodemos? “Havia um chefe dos judeus, de nome Nicodemos. Veio ter com Jesus à noite e Lhe disse: Rabi, sabemos que vieste da parte de Deus como Mestre”. Logo, também ele havia crido em Seu nome. E por que acreditou? Segue o texto: “Pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deus não estiver com ele”. Se Nicodemos era do número daqueles que creram em Seu nome, já advertimos, pois, nesse Nicodemos, por que Jesus não Se fiava neles. Respondeu Jesus e disse- lhe: “Em verdade, em verdade te digo, a menos que tenha nascido de novo, ninguém poderá ver o Reino de Deus”.⁷³³ Portanto, Jesus Se fia nestes, que tiverem nascido de novo.Quanto aos outros, acreditavam n’Ele, mas Jesus não Se fiava neles. Tais são todos os catecúmenos. Eles já creem no nome de Cristo, mas Jesus não Se fia neles. Preste atenção e entenda a vossa caridade! Se perguntarmos a um catecúmeno: Acreditas em Cristo? Ele responde: Acredito!, e persigna-se. Já traz a cruz de Cristo na fronte, e não se envergonha da cruz de seu Senhor. Eis que já acreditou em Seu nome. Mas perguntemos ainda: Comes a Carne e bebes o Sangue do Filho do homem? E o catecúmeno não sabe o que dizemos, porque Jesus ainda não Se confiou a ele. Cristo confia-Se aos batizados 4 Como Nicodemos pertencia a esse contingente, foi ter com o Senhor, mas de noite. Essa circunstância, talvez, tenha relação com a presente questão. Ele foi até o Senhor, mas de noite. Veio até a Luz, mas em meio às trevas. Ora, o que ouvem do Apóstolo os que renasceram da água e do Espírito? “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: andai como filhos da luz”;⁷³⁴ e ainda: “Nós que somos do dia, sejamos sóbrios”.⁷³⁵ Os que renasceram, portanto, pertenciam à noite, mas agora pertencem ao dia: foram trevas, são luz. Jesus já Se fia neles, e não mais vão ter com o Senhor de noite, como Nicodemos. Não buscam o dia em meio às trevas. Com efeito, eles mesmos já confessam que Jesus veio até eles, e operou neles a salvação, pois Ele mesmo disse: “Aquele que não comer a minha Carne e não beber o meu Sangue, não terá a vida em si”.⁷³ Como os catecúmenos trazem na fronte o sinal da cruz, já fazem parte de grande casa. Mas que se tornem filhos, de servos que são. De fato, não se pode dizer que nada sejam os que já pertencem à grande casa. Quando foi que o povo de Israel comeu o maná? Depois de ter atravessado o mar Vermelho! Para saber o que significa o mar Vermelho, ouve o Apóstolo: “Não quero que ignoreis, irmãos, que os nossos pais estiveram todos sob a nuvem, e que todos atravessaram o mar”.⁷³⁷ E como se lhe perguntasses: Para que atravessaram o mar?, ele continua, e diz: “E todos foram batizados por Moisés, na nuvem e no mar”. Se o mar, que é apenas uma figura, teve tão grande valor, o que não valerá o batismo, que é a realidade? Se o que se realizou em figura conduziu ao maná o povo que atravessou o mar, o que não mostrará Cristo, na verdade de Seu batismo, a Seu povo que por ele atravessou? Através de Seu batismo, Ele faz atravessar os que creem, depois de destruídos todos os seus pecados ao modo de inimigos perseguidores, tal como, naquele mar, todos os egípcios pereceram. Para onde o Senhor os faz atravessar, meus irmãos? Para onde os conduz por meio de Seu batismo, esse Jesus cuja figura era representada então por Moisés, que fazia a travessia do mar? Para onde os faz passar? Para o maná. O que é o maná? “Eu sou – afirma – o Pão vivo que desci do céu”.⁷³⁸ Os fiéis recebem o maná depois de terem atravessado já o mar Vermelho. Por que é chamado mar Vermelho? Já sabemos qual o significado de mar, mas por que era também vermelho? Esse mar Vermelho era o símbolo do batismo de Cristo. Por que vermelho é o batismo de Cristo, senão porque foi consagrado pelo Sangue de Cristo? Para onde, pois, leva Ele os que creem e foram já batizados? Para o maná. Eis que digo: para o maná! É sabido o que receberam os judeus, aquele povo de Israel. É sabido o que fez Deus chover sobre eles do céu, mas os catecúmenos não sabem o que recebem os cristãos! Que se envergonhem por não o saber ainda. Que atravessem o mar Vermelho e comam o maná, a fim de que, assim como creram no nome de Jesus, também o Senhor Se fie neles. Nicodemos e a Eucaristia 5 Considerai, por isso, meus irmãos, o que responde aquele homem que foi ter com Jesus de noite. Ainda que tivesse ido ter com Jesus, porque foi, não obstante, de noite, é ainda de em meio às trevas de sua carne que ele fala. Não compreende o que lhe diz o Senhor. Não compreende o que lhe diz “a luz que ilumina todo homem vindo a este mundo”.⁷³ O Senhor já lhe disse: “A não ser quem tiver nascido de novo, ninguém verá o Reino de Deus”.⁷⁴ Responde-Lhe Nicodemos: “Como pode um homem nascer, sendo velho?”. O Espírito fala-lhe, mas ele o aprecia de modo carnal. É com a sua própria maneira carnal de entender que saboreia, porque ainda não chegou a saborear a Carne de Cristo. Com efeito, quando o Senhor declarou: “Aquele que não come a minha Carne e não bebe o meu Sangue, não terá em si a vida”,⁷⁴¹ alguns daqueles que O seguiam escandalizaram-se, e disseram a si mesmos: “Esta palavra é dura! Quem pode escutá-la?”.⁷⁴² Julgavam que Jesus dissesse que podiam retalhá-l’O em pedaços como a um cordeiro, fazê-l’O cozer, e comê-l’O. Horrorizando-se com as palavras d’Ele, retiraram-se para não mais O seguir. Assim fala o evangelista: “E o Senhor ficou com os Doze. Estes Lhe disseram: Senhor, eis que te abandonaram. E Ele: E vós, por acaso também quereis ir?”,⁷⁴³ querendo, com isso, mostrar que Ele próprio lhes era necessário, mas eles não eram necessários a Cristo. Ninguém tenha a pretensão de aterrorizar a Cristo, enquanto se lhe diz que seja cristão, como se Cristo fosse mais feliz por chegares tu a ser um cristão. É bom para ti que sejas cristão, mas, se não o fores, não advirá mal algum a Cristo. Ouve a voz do salmo: “Eu disse ao Senhor: Tu és o meu Deus, porque não tens necessidade de meus bens”.⁷⁴⁴ És meu Deus precisamente por isso: porque não tens necessidade de meus bens. Se estiveres afastado de Deus, serás menor; se estiveres com Deus, Deus não será maior por isso. Ele não é maior por tua causa, mas tu és menor sem Ele. Cresce, pois, n’Ele, e não te afastes como se, por isso, Ele pudesse diminuir. Recuperar-te-ás se te acercares; se te afastares, enfraquecer-te-ás. Ele permanece íntegro ao te aproximares, e continua íntegro, também quando te afastas. Quando, pois, o Senhor perguntou aos discípulos: “E vós quereis também partir?”, Pedro, aquela pedra, respondeu em nome de todos: “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna”.⁷⁴⁵ Em sua boca, a Carne do Senhor saboreou- se bem! O Senhor, porém, explicou-lhes: “O Espírito é que vivifica”. Com efeito, tendo dito: “Quem não comer minha Carne e beber meu Sangue não terá em si a vida”, quis acrescentar, para prevenir que fossem carnalmente entendidas essas palavras: “O Espírito – diz – é que vivifica, a carne para nada serve. As palavras que vos disse são espírito e vida”. Maneiras de receber o novo nascimento. Os dois nascimentos 6 Nicodemos, que fora de noite ao encontro de Jesus, não saboreava esse espírito, essa vida. Jesus lhe dissera: “A não ser que tenha nascido de novo, ninguém verá o Reino de Deus”.⁷⁴ Mas ele, que saboreava sua própria concepção carnal e não tinha ainda saboreado em sua boca o gosto da Carne de Cristo, diz: “Como pode um homem nascer de novo, sendo velho? Poderá entrar de novo no seio de sua mãe e renascer?”.⁷⁴⁷ Ele não conhecia senão o nascimento que vem de Adão e Eva; ainda não conhecia aquele que vem de Deus e da Igreja. Não conhecia senão os pais que geram para a morte; ainda não conhecia os pais que geram para a vida. Não conhecia senão os pais que geram filhos que lhes hão de suceder; ainda não conhecia aqueles pais que, vivendo para sempre, geram filhos destinados a permanecer. Só conhecia um nascimento, quando, na verdade, há dois: um vindo da terra, outro do céu; um da carne, outro do Espírito; um da mortalidade, outro da eternidade; um do homem e da mulher, outro de Deus e da Igreja. Mas esses dois nascimentos só se dão uma única vez; nem aquele pode ser repetido, nem este. Nicodemos compreendeu corretamente o nascimento da carne; procura também tu compreender o nascimento do Espírito tal como compreendeu Nicodemos o nascimento da carne. O que entendeu Nicodemos? “Pode o homem entrar de novo no seio de sua mãe, e nascer?”. Assim, a todo aquele que te disser que nasças espiritualmente uma segunda vez, responde o que disse Nicodemos: Pode o homem entrar de novo no seio de sua mãe, e nascer? Eu já nasci de Adão. Adão não me pode gerar de novo. Já nasci de Cristo. Cristo não me pode gerar denovo. Assim como o parto não se pode repetir, tampouco pode repetir-se o batismo. O Deus de Abraão, de Isaac e Jacó 7 Quem nasce da Igreja Católica nasce como que de Sara, nasce da mulher livre. Quem nasce da heresia, é como se nascesse da escrava, ainda que provenha da descendência de Abraão.⁷⁴⁸ Considere a vossa caridade quão grande é este mistério. Atesta-o Deus: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”.⁷⁴ Mas não havia outros patriarcas? Não existiu, antes desses, o santo Noé, o único que, entre todo o gênero humano, mereceu ser salvo do dilúvio com toda a sua família, e no qual e em cujos filhos se prefigurou a Igreja? Levados pelo lenho, eles evadem o dilúvio. E, depois deles, houve aqueles outros grandes patriarcas que conhecemos e dos quais a Escritura faz o elogio: Moisés, por exemplo, “que foi fiel com toda a sua casa”.⁷⁵ Todavia, apenas aqueles três são mencionados, como se só eles merecessem ouvir a seu respeito as palavras: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Este é o meu nome para sempre”.⁷⁵¹ Que profundo mistério! O Senhor é bastante poderoso para abrir os nossos lábios e os vossos corações, para que vos possamos ensinar tal como Se dignou Ele revelar-nos, e vós possais aprender, conforme vos for mais útil. Quatro categorias de batizados 8 Três são, portanto, os patriarcas mencionados: Abraão, Isaac e Jacó. Já sabeis que os filhos de Jacó foram doze, e que o povo de Israel originou-se deles, visto que Jacó, ele mesmo, é denominado Israel e o povo de Israel compõe-se de doze tribos, correspondentes aos doze filhos de Israel. Abraão, Isaac e Jacó: três pais e um só povo. Três pais que se colocaram, digamos, no princípio do povo; três pais em quem estava figurado o povo, tanto aquele antigo povo como o atual. Naquele povo dos judeus figurou-se, pois, o povo dos cristãos. Ali havia a figura; aqui, a realidade. Ali havia a sombra, aqui, o corpo, conforme o dizer do Apóstolo: “Todas essas coisas sucediam-se em figura para eles – é a voz do Apóstolo! – e foram escritas para nós, a cujo encontro veio o fim dos tempos”.⁷⁵² Volte-se agora o vosso espírito para Abraão, Isaac e Jacó. Cada um deles teve descendência proveniente de mulheres livres e descendência proveniente de escravas. Encontramos ali partos das mulheres livres, encontramos ali também partos das escravas. Uma escrava nada significa de bom. Está dito: “Expulsa a escrava e o filho dela, pois o filho da escrava não herdará com o filho da livre”.⁷⁵³ O Apóstolo recorda esse fato e diz que, nos dois filhos de Abraão, houve uma figura dos dois testamentos: do Antigo e do Novo.⁷⁵⁴ Ao Antigo Testamento, pertencem os que amam as coisas temporais, os que amam o mundo; ao Novo, pertencem os que amam a vida eterna. Por isso, aquela Jerusalém terrestre era sombra da Jerusalém celeste, “a mãe de todos nós, a qual está nos céus”.⁷⁵⁵ E estas são palavras do Apóstolo. Dessa cidade, da qual estamos exilados, muito conheceis, muitas coisas já tendes ouvido. Ora, encontramos uma coisa digna de admiração naquelas descendências, isto é, nessa posteridade de mulheres livres e de escravas, a saber, quatro gêneros de homens. Nesses quatro gêneros, cumpre-se a imagem do futuro povo cristão e, assim, já não admira tanto que se tenha dito em relação aos três patriarcas: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Com efeito, observai bem, irmãos, o que acontece entre todos os cristãos: há bons que nascem através de maus e há maus que nascem através de bons; há bons que nascem através de bons e há maus que nascem através de maus. Não podeis encontrar nada além desses quatro gêneros. Vou repeti-lo, prestai atenção, retende-o, sacudi o vosso coração, não sejais preguiçosos. Captai, para não serdes vós capturados: todos os cristãos podem classificar- se em quatro categorias: ou bons nascem por meio de bons, ou maus nascem por meio de maus, ou maus nascem por meio de bons, ou bons nascem por meio de maus. Penso que isso esteja claro! Por meio de bons nascem bons, quando são bons aqueles que batizam, e os que são batizados possuem uma fé reta e, com razão, pertencem aos membros de Cristo. Por meio de maus nascem maus, se são maus os que batizam, e maus os que são batizados, por se aproximarem de Deus com coração dissimulado e não conservarem os costumes que ouvem na Igreja, para não permanecer ali como palha, mas como trigo. E a vossa caridade bem sabe quão numerosos eles são! Por meio de maus nascem bons, quando, por vezes, o que batiza é um adúltero e o que é batizado sai justificado. Por meio de bons nascem maus, quando, por vezes, são santos os que batizam, mas os que são batizados não querem seguir o caminho de Deus. Exemplos da Igreja primitiva 9 Penso, irmãos, ser conhecido na Igreja e manifestado com cotidianos exemplos o que acabamos de dizer. Consideremo-lo, porém, em nossos antepassados, como houve também entre eles, essas quatro categorias. Por meio de bons nascem bons: Ananias batizou Paulo.⁷⁵ O que encontramos a respeito de maus que nascem por meio de maus? Falando de certos pregadores do Evangelho, o Apóstolo diz que eles têm o hábito de anunciar o Evangelho com intenções que não são puras, os quais Ele tolera, entretanto, na sociedade cristã, e diz: “Mas que importa? De toda maneira – ou com segundas intenções ou sinceramente – Cristo é anunciado, e com isso eu me regozijo”.⁷⁵⁷ Será que era o Apóstolo malévolo, ou se regozijava com o mal alheio? Antes, falava assim, porque, mesmo por meio de maus, a Verdade era pregada, e, pela boca desses maus, Cristo era anunciado. Se eles batizavam pessoas assemelhadas a eles próprios, eram maus que batizavam a maus. Caso batizassem homens tais quais aqueles a quem o Senhor adverte, quando diz: “Fazei tudo quanto vos disserem, mas não imiteis o que fazem”,⁷⁵⁸ aí havia maus que batizavam bons. Também havia bons que batizavam maus: como Simão, o Mago, foi batizado pelo santo Filipe.⁷⁵ Conhecidas são, portanto, essas quatro categorias, meus irmãos. Eis que, de novo, as repito, retende-as, contai-as, observai-as, acautelai-vos quanto às que são más, segui as boas. Por meio de bons nascem bons, quando os santos são batizados por santos. Por meio de maus nascem maus, quando tanto os que batizam, como os que são batizados por eles, vivem iniquamente e na impiedade. Por meio de maus nascem bons, quando são maus os que batizam, e bons os que são batizados. Por meio de bons nascem maus, quando são bons os que batizam e maus os que são batizados. Bons e maus na descendência dos três grandes patriarcas 10 De que modo encontramos essas quatro categorias naqueles três nomes: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”? Consideremos as escravas entre os maus, e as mulheres livres entre os bons. As livres dão à luz filhos bons: Sara deu à luz Isaac.⁷ As escravas dão à luz filhos maus: Agar deu à luz Ismael.⁷ ¹ Temos assim, na única família de Abraão, aquela categoria dos bons que nascem por meio de bons, e aquela dos maus que nascem por meio de maus. E onde se figuraram os maus que nascem por meio de bons? Rebeca, esposa de Isaac, era livre. Lede que ela deu à luz dois gêmeos: um era bom e outro mau. Tens a Escritura a dizê-lo claramente, pela voz de Deus: “Amei a Jacó, e detestei a Esaú”.⁷ ² Rebeca teve, pois, dois filhos: Jacó e Esaú. Um é escolhido e outro rejeitado. Um vem a ser o sucessor na herança, o outro é deserdado. Deus não constitui de Esaú o Seu povo, mas de Jacó. Houve uma só descendência, mas os filhos concebidos foram diferentes; o mesmo ventre, mas os que nasceram foram diferentes. Porventura não deu à luz Jacó aquela mulher livre que, sendo igualmente livre, deu à luz Esaú? Os dois lutavam no ventre materno e, no momento em que ali lutavam, foi dito a Rebeca: “No teu ventre, estão dois povos”.⁷ ³ São dois homens, dois povos: um povo bom e um povo mau, que lutam, não obstante, no mesmo ventre. Quantos maus há na Igreja! E um único ventre os encerra, até que sejam, no fim, separados. Os bons clamam contra os maus,e os maus protestam contra os bons. Ambos lutam nas entranhas de uma única mãe. Mas, estarão eles sempre unidos? No fim, vir- se-á à luz, manifestar-se-á o nascimento que aqui, no mistério, se prefigura; aparecerá, então, aquilo: “Amei a Jacó e detestei a Esaú”. Os descendentes de Jacó 11 Já encontramos, irmãos, bons que nasceram por meio de bons, como Isaac que nasceu de uma mulher livre, bem como os maus que nasceram por meio de maus, como Ismael, nascido de uma escrava, e também os maus que nasceram de bons, como Esaú, nascido de Rebeca. Onde encontraremos algo acerca dos bons que nasceram por meio de maus? Resta-nos Jacó, para que nos três patriarcas se complete a perfeição desses quatro gêneros. Jacó teve mulheres livres como esposas, e também teve escravas. Tanto as livres como as escravas dão à luz, do que resultam os doze filhos de Israel. Se contares de quem todos eles nasceram, verás que nem todos nasceram das livres, nem todos das escravas; contudo, todos provêm da mesma linhagem. O que dizer, pois, irmãos? Os nascidos das escravas não vieram, por acaso, a possuir a terra da promissão, juntamente com os seus irmãos? Encontramos, entre eles, bons filhos de Jacó nascidos de escravas, e bons filhos de Jacó nascidos de mulheres livres. O fato de terem nascido de ventres de escravas em nada os prejudicou, uma vez que era reconhecida no pai a sua linhagem e, por essa razão, possuíram o reino com os irmãos. Como o fato de terem nascido das escravas não foi obstáculo para possuírem o reino e receberem com seus irmãos, em igualdade de direitos, a terra da promissão – ao não se ter levado em conta o seu nascimento de escravas, mas tendo prevalecido a linhagem paterna –, assim também, todos quantos são batizados por maus assemelham-se aos nascidos de escravas; no entanto, como procedem da linhagem do Verbo de Deus, que está figurada em Jacó, não se entristeçam, pois possuirão a herança juntamente com seus irmãos. Esteja tranquilo, portanto, aquele que nasce de boa linhagem, contanto que evite imitar a escrava, caso tenha nascido da escrava. Que não imites a má escrava, que se incha de orgulho. Ora, como entender, pois, que os filhos de Jacó, nascidos de escravas, possuíram a terra da promissão com seus irmãos, ao passo que Ismael, nascido igualmente de uma escrava, foi expulso da herança? Como, senão porque aquele era orgulhoso, e os outros eram humildes? Ismael ergueu a cerviz e quis enganar o seu irmão, brincando com ele. O caso da repressão ao donatismo. Ismael e Isaac 12 Existe aí um grande mistério. Ismael e Isaac brincavam juntos. Sara viu- os a brincar, e disse a Abraão: “Expulsa a escrava e o filho dela, pois o filho da escrava não será herdeiro com meu filho Isaac”.⁷ ⁴ E como Abraão ficasse triste, o Senhor ratificou para ele o que a esposa lhe dissera. Aqui, já é manifesto que haja um mistério, porque não sei de que acontecimento futuro esse fato estava prenhe. Sara viu-os a brincar, e disse: “Expulsa a escrava e o filho dela”. O que significa isso, meus irmãos? Que mal fez Ismael ao pequeno Isaac, por estar brincando com ele? É que, naquele brinquedo, havia um engodo.⁷ ⁵ Aquele brinquedo significava um engano. Atente, pois, a vossa caridade, ao grande mistério. O Apóstolo o chama de perseguição; chama de perseguição o próprio brinquedo, o próprio jogo. Diz, com efeito: “Assim como então, o nascido segundo a carne perseguia o nascido segundo o Espírito, assim também agora”.⁷ Isso significa: os que nasceram segundo a carne perseguem os que nasceram segundo o Espírito. Quem são os que nasceram segundo a carne? Os que estimam o mundo, os que amam o século. E quais são os que nasceram segundo o Espírito? Os que amam o Reino dos céus, os que amam a Cristo, os que desejam a vida eterna, os que a Deus prestam culto de modo desinteressado. Eles brincam juntos, e o Apóstolo fala de perseguição. Após estas palavras, pois: “Mas como então, o nascido segundo a carne perseguia o nascido segundo o Espírito, assim também agora”, o Apóstolo continuou, mostrando de que perseguição estava a falar: “Mas o que diz a Escritura? Expulsa a escrava e o filho dela, pois o filho da escrava não será herdeiro com o meu filho Isaac”.⁷ ⁷ Procuramos a passagem onde se encontram essas palavras da Escritura, a fim de ver se Ismael não havia de fato começado a perseguir Isaac. Encontramos que tais palavras foram pronunciadas por Sara, no momento em que viu os meninos brincarem juntos. Esse jogo que a Escritura diz que Sara teria visto, o Apóstolo denomina “perseguição”. Mais vos perseguem, portanto, aqueles que, iludindo-vos, vos seduzem: Vem, vem, batiza-te aqui: aqui tens o verdadeiro batismo! Não brinques! Não há senão um só batismo verdadeiro. O outro é um engodo; acabarás seduzido, e essa perseguição te fará mal. Seria melhor para ti, que ganhasses Ismael para o Reino, mas Ismael não o quer, porque quer brincar. Conserva tu a herança de teu pai, e fica atento a estas palavras: “Expulsa a escrava e o filho dela, pois o filho da escrava não será herdeiro com meu filho Isaac”. Os donatistas e o exemplo de Agar 13 Estes ousam até dizer que costumam suportar perseguição da parte de reis ou de príncipes católicos. Que perseguição eles suportam? Aflição corporal! – dizem. Se a têm sofrido, por vezes, e de que maneira a padeceram, eles o saberão e examinarão a própria consciência. Admito, contudo, que tenham sofrido corporalmente, mas a perseguição que eles mesmos movem é bem mais grave. Cuidado, quando Ismael quer brincar com Isaac; quando ele te acaricia; quando te propõe outro batismo, responde: Eu já tenho o batismo! Com efeito, se esse batismo é verdadeiro, quem te quer conferir outro, quer iludir-te. Cuidado com o perseguidor da alma! Pois, se algo padeceu o partido de Donato, uma vez ou outra, de parte dos príncipes católicos, padeceu-o segundo o corpo, não segundo a ilusão do espírito. Ouvi e vede nos próprios fatos antigos, tudo é ali um sinal, um indício de acontecimentos futuros. Encontra-se que Sara maltratou Agar, a escrava. Sara é a mulher livre. Quando a escrava começou a ensoberbecer- se, Sara queixou-se a Abraão, e disse-lhe: “Expulsa a escrava”, porque levantou a cerviz contra mim. E como se Abraão tivesse feito isso, a mulher queixou-se dele. Abraão, porém, que se ligava à escrava não por uma paixão desordenada, mas pelo encargo de gerar descendência, disse a Sara: “Eis que é tua a escrava, trata-a como quiseres”.⁷ ⁸ Sara maltratou de tal modo a Agar, que ela fugiu de sua presença. Eis que a mulher livre maltratou a escrava, e o Apóstolo não chama isso de perseguição. Ao passo que o servo brinca com o seu senhor, mas ele o denomina perseguição. Não chama aqueles maus-tratos de perseguição, mas chama esse jogo de perseguição. Que vos parece, irmãos? Não compreendeis o que foi significado? Quando Deus, portanto, quer concitar as potestades contra os hereges, contra os cismáticos, contra os dissipadores da Igreja, contra os que expulsam a Cristo, contra os blasfemadores do batismo, não é de admirar, porque Deus instiga que seja Agar golpeada por Sara. Reconheça Agar a sua própria condição, dobre a cerviz, porque quando, após ter sido humilhada, se afastou de sua senhora, apresentou-se a ela um anjo e disse-lhe: “O que se passa, Agar, escrava de Sara?”. E após queixar-se da senhora, o que ela ouviu do anjo? “Volta para junto de tua senhora”.⁷ Ela é maltratada precisamente para isto: para voltar. E oxalá volte, porque, então, como sucedeu com os filhos de Jacó, a sua prole possuirá a herança com os irmãos. O dever dos reis cristãos 14 Admiram-se, entretanto, de que as potestades cristãs se levantem contra os detestáveis dissipadores da Igreja. Não se levantariam, por acaso? Como, então, prestariam contas a Deus de seu império? Que a vossa caridade preste atenção no que direi: cabe aos reis cristãos deste mundo querer ver pacificada, nos seus tempos de reinado, sua mãe, a Igreja, da qual nasceram espiritualmente. Nós lemos as visões e os atos proféticos de Daniel. Os três jovens louvaram o