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Assunto Curso GDE Curso GDE Apresentação Módulo V - Tutores Apresentação Módulo V - Alunos Profa. Cynthia Cassoni Apresentação Módulo VI - Tutores Profa. Cynthia Cassoni Apresentação Módulo VI - Alunos http://webconferencia.sead.ufscar.br/p4eg4z9i0f4/ http://webconferencia.sead.ufscar.br/p5p8ky9y4ar/ http://webconferencia.sead.ufscar.br/p5acmf2gac1/ Prof. Paulo Alberto dos Santos Vieira http://webconferencia.sead.ufscar.br/p9sp4po4ptc/ WebConferências Gênero e Diversidade na Escola - GDE Nome Professor Link Etapa 3 http://webconferencia.sead.ufscar.br/p4b9ag1vlln/Prof. Paulo Alberto dos Santos Vieira Prof. Jorge Leite Júnior Prof. Jorge Leite Júnior http://webconferencia.sead.ufscar.br/p92tkyszjei/ DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO: OUTROS APRENDIZADOS UFSCar – Universidade Federal de São Carlos Reitor Targino de Araújo Filho Vice-Reitor Adilson J. A. de Oliveira Pró-Reitora de Graduação Claudia Raimundo Reyes SEaD – Secretaria de Educação a Distância Secretária de Educação a Distância – SEaD Aline Maria de Medeiros Rodrigues Reali Coordenação UAB-UFSCar Daniel Mill Coordenação SEaD-UFSCar Daniel Mill Glauber Lúcio Alves Santiago Joice Otsuka Marcia Rozenfeld G. de Oliveira Sandra Abib EdUFSCar – Editora da Universidade Federal de São Carlos Conselho Editorial Ana Claudia Lessinger José Eduardo dos Santos Marco Giulietti Nivaldo Nale Roseli Rodrigues de Mello Rubismar Stolf Sergio Pripas Vanice Maria Oliveira Sargentini Oswaldo Mário Serra Truzzi (Presidente) Richard Miskolci Jorge Leite Júnior (organizadores) São Carlos, 2014 DIFERENÇAS NA EDUCAÇÃO: OUTROS APRENDIZADOS © 2014, Secadi/MEC, dos autores Supervisão Douglas Henrique Perez Pino Revisão Linguística Clarissa Galvão Bengtson Daniel William Ferreira de Camargo Paloma Argemira da Silva Paula Sayuri Yanagiwara Rebeca Aparecida Mega Editoração Eletrônica Izis Cavalcanti Ilustração Vagner Serikawa Capa e Projeto Gráfico Izis Cavalcanti Apoio Secadi/MEC O objetivo desta obra é o de servir como apoio didático aos cursos oferecidos pela UFSCar. Seu conteúdo está reproduzido conforme solicitado pelo(s) autor(es), sem nenhuma interfe- rência do Conselho Editorial da EdUFSCar. Universidade Federal de São Carlos Editora da Universidade Federal de São Carlos Telefax: (16) 3351-8137 Via Washington Luís, km 235 . CEP: 13565-905 . São Carlos, SP . Brasil http://www.editora.ufscar.br . E-mail: edufscar@ufscar.br . Twitter: @EdUFSCar SUMÁRIO CAPÍTULO 1: Diferenças na Escola . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anna Paula Vencato Unidade 1 – Diferenças na sociedade e na escola . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Unidade 2 – O respeito às diferenças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Unidade 3 – Bullying ou assédio escolar: um problema que afeta todo mundo . . . Unidade 4 – Como lidar com as diferenças no cotidiano escolar? . . . . . . . . . . . . . Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAPÍTULO 2: Religiosidades e Educação Pública . . . . . . . . . . . . . . Tiago Duque Unidade 1 – Estabelecendo o diálogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Unidade 2 – Viva a nossa diferença cultural religiosa! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Unidade 3 – Se somos diversos, por que não aceitar as nossas diferenças? . . . . . . . Unidade 4 – E agora? Por onde começar? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAPÍTULO 3: Desfazendo o gênero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Larissa Pelúcio Unidade 1 – Gênero ou gêneros? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Unidade 2 – Gênero na escola . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Unidade 3 – Gênero na mídia – e a escola com isso? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Unidade 4 – Atividades propostas – dicas, sugestões e mais questões . . . . . . . . . . Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAPÍTULO 4: Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Fernando de Figueiredo Balieiro Eduardo Name Risk Unidade 1 – O regime de (in)visibilidade da sexualidade na educação escolar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Unidade 2 – Casa-grande & senzala: o modelo heterorreprodutivo nacional e suas dimensões históricas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Unidade 3 – Aspectos da heteronormatividade contemporânea . . . . . . . . . . . . . . Unidade 4 – Por uma pedagogia questionadora e democrática . . . . . . . . . . . . . . . Rerefências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAPÍTULO 5: Pela desracialização da experiência: discurso nacional e educação para as relações étnico-raciais . . . . . . . . . . Paulo Alberto dos Santos Vieira Priscila Martins Medeiros Unidade 1 – Primeiras aproximações ao tema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Unidade 2 – Raça e a questão nacional no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Unidade 3 – Educação para as relações étnico-raciais: os marcos legais e os resultados de uma década . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Agradecimentos Diferenças na Educação: outros aprendizados surgiu graças à experiên- cia acumulada no oferecimento de três edições do curso Gênero e Diversi- dade na Escola, na modalidade a distância, pela SEaD-UFSCar em parceria com o MEC, a SECADI e o grupo de pesquisa Corpo, Identidades e Subjeti- vações do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Agradecemos às(aos) companheiras(os) que coordenaram os módulos durante as últimas edições: Anna Paula Vencato, Karla Bessa, Larissa Pelúcio, Paulo Alberto Santos Vieira, Priscila Martins Medeiros e Cynthia Cassoni. Além deles, um conjunto grande de pessoas contribuiu para o sucesso do curso em suas sucessivas edições, e, ainda que não tenhamos como men- cioná-las uma a uma, sublinhamos nossa gratidão ao trabalho de todos(as) os(as) tutores(as) e técnicos(as) administrativos(as). Agradecemos em especial ao trabalho de Thamara Jurado na coordena- ção executiva das duas últimas edições, uma profissional séria, sagaz e cujo talento como educadora ainda lhe trará grandes conquistas. Nossa gratidão se estende a Josiane Peruci, cuja competência exemplar frente à secretaria – desde a primeira vez que ofertamos o curso – foi fundamental também para a existência deste livro, um material de referência que pretende ser um legado para intentoseducacionais futuros. Agradecemos à Secretaria Geral de Educação a Distância da UFSCar (SEaD – UFSCar), ao Ministério da Educação (MEC) e à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) por toda estrutura e apoio ao curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE). Por fim, dedicamos este livro às(aos) educadoras(es) brasileiras(os) que têm se dedicado ao aprimoramento em questões que envolvem as diferenças e os direitos humanos. O comprometimento político dessas mulheres e homens na construção de uma sociedade mais democrática e justa nos inspirou. Richard Miskolci e Jorge Leite Júnior Departamento de Sociologia da UFSCar Introdução: outros aprendizados Richard Miskolci Jorge Leite Júnior Thamara Jurado Diferenças na Educação: outros aprendizados originou-se da experiência acumulada no oferecimento de três edições do curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE) da UFSCar. Trata-se, portanto, de um livro originado da prá- tica e da experiência e que pretende ser um guia claro para compreender o que são diferenças religiosas, de gênero, sexuais e étnico-raciais. Compre- ender para atuar profissionalmente, daí prover, além de teoria, exemplos e reflexões, também propostas de atividades em sala de aula. O objetivo da obra é ser referência para a formação de educadores(as) do ensino básico e médio – ou mesmo para seu aperfeiçoamento – em temas fundamentais para o ensino e a escola contemporâneos. Historicamente, o que hoje chamamos de diferenças e reconhecemos como parte importante da vida social já foi encarado como algo a suprimir, corrigir ou normalizar. A prática do assédio moral escolar, também conhecido como bullying, era a marca da experiência educacional para a maioria das pessoas até recente- mente. Faz poucos anos que passamos a reconhecer que o assédio escolar é uma violência, porque também faz poucos anos que nossa sociedade se tornou democrática. Em termos internacionais, a preocupação em como lidar com diferenças sociais gerou uma corrente teórica e política conhecida como multiculturalis- mo. Ele surgiu a partir de fins da década de 1980 e encontrou suas principais formulações na seguinte, dentre as quais estão o conceito de diversidade cultural e a problemática do reconhecimento. Nessa perspectiva, as socie- dades poderiam reconhecer sua heterogeneidade desde que mantivessem 10 | Diferenças na Educação: outros aprendizados as diferenças em harmonia. O multiculturalismo e o conceito de diversidade sofreram fortes críticas por se basearem em uma concepção de cultura frágil e sem dinamismo. Tais críticas também denunciaram como a diversidade busca mascarar os conflitos por meio de uma compreensão horizontal das relações de poder. Sim, cara leitora e caro leitor, nessa perspectiva todos podem ser aceitos desde que “cada um em seu quadrado”. Como pessoas diferentes poderiam ser reconhecidas em suas singula- ridades culturais e viver sem modificar umas as vidas das outras? Isso não é possível, daí as abordagens críticas do multiculturalismo e da diversidade proporem o conceito de diferenças, uma compreensão de que elas modi- ficam (positivamente) a vida social assim como sua existência pode gerar conflitos (já que as relações de poder se dão entre pessoas com acesso dife- rencial ao poder), mas também diálogos enriquecedores e a democratização da vida social. Conscientes sobre esse debate, desde a primeira edição do GDE-UFS- Car em 2009, nossa abordagem buscou superar a perspectiva da diversida- de pela da diferença. Ou seja, buscamos ir além da visão multiculturalista centrada na tolerância da diversidade e aprimorar a perspectiva crítica das diferenças e seu poder de transformação social. Acreditamos que mais do que tolerar a diversidade podemos reconhecer e aceitar a diferença em um diálogo aberto e criativo. Na perspectiva das diferenças, compreendem-se as relações de poder de forma mais dinâmica e a sociedade como inerentemente um espaço de divergência entre diferentes perspectivas e valores. Surge assim o principal desafio de lidar com as diferenças: compreender que isso é uma das carac- terísticas das sociedades democráticas e que as divergências podem tanto apontar para o conflito como para um diálogo criativo e transformador. No contato com as diferenças podemos – inicialmente – estranhar alguém, mas também reconhecer nesse encontro algo positivo: a chance de aprender. Apostamos na possibilidade de fazer do encontro com a alteridade uma ex- periência positiva e transformadora para todos(as). Um pouco sobre o GDE/UFSCar e sua importância para a criação deste livro O curso Gênero e Diversidade na Escola na UFSCar começou com uma edição em 2009 que formou mais de 900 professores(as), coordenadores(as) pedagógicos(as) e gestores(as). Nessa edição, o objetivo foi desenvolver um projeto de sensibilização desses(as) profissionais da educação para o tema Introdução: outros aprendizados | 11 das diferenças no espaço escolar, e as atividades priorizaram debates reali- zados em fóruns de interação e a confecção de produções individuais. Na edição seguinte, em 2012, foram feitas algumas alterações, e, além de sensibilizar o público-alvo para a importância da temática, o curso tornou-se avaliativo. Como na oferta anterior as atividades planejadas ficaram centra- das em ferramentas de fórum e tarefa individual, em 2012 a proposta inicial para todos os módulos era diversificar as ferramentas, utilizando todas as possibilidades do ambiente virtual de aprendizagem. Os problemas enfrentados no curso foram identificados durante as reu- niões periódicas que eram realizadas com os(as) professores(as) do módulo em curso, tutores(as) virtuais, coordenação de tutoria e supervisão acadê- mica, com objetivo de dialogar a respeito das dificuldades encontradas na aplicação do curso. Questões como o excesso de ferramentas, leituras e ati- vidades foram observadas e discutidas nesses encontros, de tal modo que as observações a respeito de cada módulo serviram para propor alterações no módulo seguinte, quando necessário. Essa experiência demonstrou a importância do diálogo frequente en- tre todos(as) os(as) envolvidos(as) no processo de ensino e aprendizagem. Como os(as) tutores(as) permanecem em contato direto com os(as) cursistas, acompanhando o desenvolvimento de cada atividade, identificam as suas dificuldades rapidamente e podem trazer contribuições contundentes para que professores(as) coordenadores(as) dos módulos revejam o conteúdo proposto e promovam alterações, quando necessário. Esse diálogo foi fun- damental para a execução de um curso mais dinâmico e atento às necessi- dades e expectativas dos(as) estudantes, considerando suas dificuldades na realização do planejamento elaborado. Esses encontros periódicos auxiliaram a construção de uma proposta pedagógica participativa, capaz de reconsiderar o objetivo de cada módu- lo, rever o planejamento de atividades a partir de discussões coletivas. Ao compartilhar os resultados de cada etapa, foi possível abordar e identificar os problemas que estavam sendo enfrentados e as possibilidades de solu- ção, dividindo as experiências de todos(as) os(as) envolvidos(as) e, ao mes- mo tempo, definindo as responsabilidades individuais e coletivas a serem assumidas para que fosse possível chegar ao objetivo comum. Na edição de 2013, a mesma estrutura dialógica foi mantida com as reuniões periódicas realizadas no início e no fechamento de cada módulo. As situações enfrenta- das na edição anterior contribuíram para a elaboração de um planejamento 12 | Diferenças na Educação: outros aprendizados mais condensado e objetivo, priorizando ferramentas que os(as) cursistas demonstraram mais domínio. Nas três edições do GDE, os(as) professores(as), coordenadores(as) pedagógicos(as) e gestores(as) que participaram do curso como cursistas apresentaram várias questões que evidenciaram, primeiro, uma dificuldade em relacionar os textosdiscutidos nos módulos com o cotidiano em sala de aula, não sabiam como aplicar aquele conteúdo e, segundo, uma re- sistência para discutir alguns temas. Por isso, as estratégias pedagógicas utilizadas no curso foram tão importantes para lidar com as dificuldades apresentadas. O curso abre espaço para o questionamento e a problematização de comportamentos, falas e gestos naturalizados e que perpetuam as desigual- dades instituídas na escola. Longe de ser um espaço neutro, é também na instituição escolar que o apagamento das diferenças se concretiza nessas falas e gestos discriminatórios e excludentes. Uma concretização presente não apenas nas conversas informais entre estudantes, mas também na for- malidade das regras e normas escolares, do currículo utilizado, da proposta pedagógica, dos planejamentos das aulas etc. Ao problematizar todo esse cenário, reações diversas vieram à tona, e, nesse processo, muitas vezes o tom do(a) estudante demonstrava a dificul- dade em falar de algo que exigia uma transformação interna. Docentes e tutores(as) trabalharam incansavelmente propondo novas questões e pro- blematizando a partir de situações vivenciadas no cotidiano escolar trazidas pelos(as) cursistas. As indicações audiovisuais, artísticas e literárias representaram uma possibilidade de sensibilização dos(as) estudantes muito importante, des- pertando para questões imperceptíveis até então. Os filmes, especialmente, foram recursos riquíssimos, que não apenas proporcionaram inquietações, mas foram capazes de estabelecer uma relação entre a prática docente e as discussões teóricas realizadas. A sensibilização como estratégia de formação para professores(as), coordenadores(as) e gestores(as) proporcionou questionamentos e reflexão a respeito de como as diferenças estavam sendo vivenciadas em sala de aula; professores(as) chegaram a relatar como essas discussões tinham modifica- do desde pequenos gestos com seus(suas) alunos(as) até o planejamento de atividades e suas propostas em reuniões da escola. Introdução: outros aprendizados | 13 Os aportes teóricos de cada módulo representaram uma das dificulda- des enfrentadas pelos(as) cursistas que não estavam familiarizados(as) com esse arcabouço teórico. Além do livro Marcas da Diferença no Ensino Esco- lar, edição de 2010, resultado do GDE-2009, outras bibliografias foram utili- zadas nas atividades propostas, propiciando uma discussão teórica capaz de problematizar como as diferenças foram constituídas, institucionalizadas, negadas ou reconhecidas. Sem dúvida, a primeira edição do Marcas da Diferença no Ensino Esco- lar condensou uma discussão muito próxima da realidade escolar e, desse modo, contribuiu para estabelecer a relação entre o cotidiano e a discussão teórica. As propostas de atividades apresentadas no livro, assim como as in- dicações audiovisuais, artísticas e literárias de cada capítulo, demonstraram a concretização de algumas das questões discutidas ao longo dos módulos. Ainda assim, durante o curso, no momento de problematizar essa dimen- são histórica, cultural e social discutida teoricamente nas referências utiliza- das, muitos(as) cursistas apresentavam uma certa resistência e dificuldade. Nesse percurso, surgiram trechos retirados das mais diferentes referências bibliográficas encontradas em rápidas pesquisas na internet, frases cons- truídas com palavras-chave que eram recortadas dos textos de referência e repetidas em todas as postagens etc. Por isso, estabelecer a relação entre a prática docente e os recursos teórico-metodológicos apresentados aos(às) professores(as) nesses textos era uma das tarefas mais importantes da equipe de tutoria virtual tanto na mediação das atividades de discussão quanto na elaboração do feedback das atividades individuais. A grande questão na mediação dos fóruns era como propiciar uma am- pla discussão capaz de levar a uma modificação significativa da prática do- cente, considerando os desafios da escola nesse processo. E, nesse ponto, as estratégias pedagógicas debatidas nas reuniões periódicas auxiliaram a condução de modo que fosse possível contribuir para o aprofundamento das leituras teóricas e, ainda, propor questões capazes de fomentar a rela- ção com a prática docente, tão solicitada pelos(as) professores(as). Com um acompanhamento diário, os fóruns foram mediados com postagens diárias dos(as) tutores(as), procurando problematizar os textos e trazendo novas questões que auxiliassem a reflexão de cada tema. Outro aspecto fundamental foi o surgimento de argumentos religiosos para justificar muitas postagens. A discussão da religião permeou o curso 14 | Diferenças na Educação: outros aprendizados todo, especialmente nas edições de 2012 e 2013. Em todos os módulos, apareceram posicionamentos religiosos fundamentando as argumentações dos(as) cursistas. Diante do volume das questões que surgiram, este novo livro traz um capítulo para discutir a questão da religião. Sem dúvida, não foi uma tarefa fácil para professores(as), gestores(as) e coordenadores(as) pedagógicos(as) repensarem suas falas, gestos e ativida- des pedagógicas já tão sedimentadas no universo escolar. Mas todo esse trabalho demonstrou que esse caminho foi possível, e é possível. Os(as) cur- sistas concluem o curso com outro olhar, mais crítico, mais atento e disposto a repensar. Tornam-se multiplicadores por apresentarem aos(às) seus(suas) alunos(as) gestos e falas que contribuem para a desconstrução de hierar- quias e desigualdades no que se refere a gênero e sexualidade, raça e etnia. E munidos desse novo olhar voltam para as salas de aula e para as escolas em que atuam levando novas propostas, mesmo sabendo que nem sempre serão acolhidas. São tímidas as propostas de intervenção, seja na sala de aula ou na escola como um todo, mas, ao colocarem um por que?, mas e se fosse assim?, ao questionarem precisa mesmo fazer fila de meninas e meninos? em reuniões pedagógicas, nos corredores da escola, nas conversas com outros(as) professores(as) e em sua prática diária, já estão, de alguma maneira, proble- matizando esse universo e multiplicando o que o GDE semeou. É dessa experiência que surgiu a necessidade de um novo livro-base para o GDE, mais atualizado conceitualmente e, principalmente, mais em- basado nas vivências tanto da equipe do GDE quanto na dos(as) cursistas. Um livro que, esperamos, também sirva para outras iniciativas didáticas por todo o Brasil. Estrutura do livro Diferenças na Educação: outros aprendizados se inicia com um capítu- lo sobre Diferenças que esmiuçará esse conceito, apresentará exemplos, discutirá com muito cuidado e em detalhe as dificuldades, mas também os ganhos indiscutíveis que uma educação mais democrática e transformado- ra traz para educadores(as) e educandos(as). Anna Paula Vencato mostra como a própria ideia do que pode ou não ser considerado “diferença” é uma criação cultural que não apenas pode variar de época para época e de grupo para grupo como, principalmente, está envolta em relações de poder. Que forças e valores sociais definem o que é ou não “diferente”? Introdução: outros aprendizados | 15 Como isso ocorre? Por que muitas vezes a escola transforma diferenças em desigualdades? Aqui também é tratada a questão do bullying, mostrando como ele não é apenas um caso isolado de algum “aluno problema”, mas que o bullying pertence antes de tudo a uma dinâmica escolar específica que propicia seu surgimento e garante sua continuidade, tanto através da violência de “brincadeiras” ofensivas por parte dos(as) alunos(as) quanto da vista grossa ou mesmo descaso por parte dos(as) professores(as) e funcionários(as) da escola. Como já afirmado anteriormente, durante esses anos de GDE, todas as pessoas envolvidas no curso (tutores(as), professores(as), supervisores(as) e coordenadores(as)) perceberam que o tema da religião estava não apenas presente, mas, a cada edição, aumentava a demanda por suadiscussão. Dessa forma, resolvemos incluir neste livro o cada vez mais importante de- bate sobre religião e suas interfaces com as diferenças, especialmente em relação a gênero, sexualidade e relações étnico-raciais. Tiago Duque, autor desse segundo capítulo, discute questões como a pluralidade religiosa, a religião na sala de aula em um Estado laico e o contínuo cuidado que deve- mos ter para que a religiosidade de cada um não se transforme em opressão e discriminação do outro. Afinal, dentro de nossa perspectiva de direitos humanos e respeito às diferenças, devemos lembrar que não existem religiões “superiores” ou “verdadeiras” e que o Estado laico é aquele que não deve se associar a ou privilegiar alguma religião específica, para poder garantir, assim, a livre expressão de qualquer credo religioso. Como o tema deste capítulo (a reli- giosidade) perpassa todos os outros eixos do livro (diferenças, gênero, se- xualidade e relações étnico-raciais), as atividades nele sugeridas podem ser usadas também com as atividades dos demais capítulos. No terceiro capítulo, Larissa Pelúcio nos leva a problematizar o conceito de gênero. Além de historicizá-lo, a autora nos mostra que, se o gênero é uma construção cultural variável, que diz o que significa ser “homem” ou “mulher” e como devemos nos portar e literalmente “encarnar” o tal “masculino” e o “feminino” através de jeitos e trejeitos – ou seja, se esta- mos constantemente “fazendo gênero” –, também podemos “desfazer” o gênero, pois as construções sociais não são eternas nem têm a obrigação ou necessidade de ser. Se determinados aspectos do que chamamos de gênero são (ainda) hoje causas de desigualdade e preconceito, podemos – e 16 | Diferenças na Educação: outros aprendizados devemos – desconstruir isso que causa opressão e discriminação. É nesse sentido que não podemos nos esquecer de que, se determinadas visões de gênero consideram o feminino e o masculino como “opostos complemen- tares”, muitas vezes essas visões suprimem o quanto essa relação é hierar- quizada e desigual, com o polo feminino ainda hoje sendo tratado como subalterno, inferior e mais vulnerável à violência do masculino. Pelúcio também nos mostra como essas visões estereotipadas sobre o ho- mem e a mulher, o masculino e o feminino estão presentes na mídia, gerando uma pedagogia de gênero que se estende muito além dos muros e discursos escolares (essa temática da mídia também será trabalhada no capítulo se- guinte). Afinal, a escola que queremos é aquela que reproduz irrefletidamente valores opressores ou aquela que questiona e ajuda a mudar esses valores? As sugestões de atividades deste capítulo são amplas e instigantes, podendo ser usadas em sala para discutir não apenas gênero, mas também sexualida- de (tema aprofundado no capítulo seguinte), graças ao íntimo diálogo entre esses dois temas. Fernando de Figueiredo Balieiro e Eduardo Name Risk apresentam o quarto capítulo, sobre sexualidade. Ressaltando a importância de não se so- brepor gênero e sexualidade, é apresentado o caráter histórico da noção de heterossexualidade como algo “normal”, “natural” e “neutro”, em cima da qual as outras orientações, práticas ou desejos sexuais seriam vistos como “desvios”. Outro ponto importante trabalhado é o descaso com que a nossa sociedade em geral – e a escola brasileira em particular – lida com a vio- lência direta e indireta sofrida por pessoas que não se encaixam no padrão heteronormativo, muitas vezes culpabilizando a vítima pelos ataques so- fridos. Aqui, tocamos em um dos objetivos centrais deste livro: ajudar a sensibilizar e mudar as atitudes (quase de descaso) frente a essas situações cotidianas de violência, através da reflexão escolar. Paulo Alberto dos Santos Vieira e Priscila Martins Medeiros, ao discutirem relações étnico-raciais no quinto capítulo, nos apresentam um importante foco sobre esse tema: como o processo de racialização criou a “questão do negro” ou a “questão do índio” enquanto a branquitude foi tomada como um elemento “neutro” e não problematizado. Nesse sentido, não apenas o ne- gro, o branco ou o índio devem ser discutidos mas, principalmente, o proces- so ideológico de branqueamento, que mesmo indiretamente ainda persiste em nossa sociedade. Paulo e Priscila também nos mostram os avanços des- sas discussões na educação brasileira, através da Lei 10.639/03. Introdução: outros aprendizados | 17 Todos os capítulos trazem as discussões para a realidade da sala de aula brasileira. Eles se iniciam com uma "visão geral" do que será apresentado e estão divididos em unidades que, gradualmente, vão se aprofundando em cada tema trabalhado. Todos também possuem boxes explicativos dos conceitos mais importantes e dão indicações fílmicas e bibliográficas, tan- to para se aprofundar no assunto quanto para serem trabalhadas em sala. Da mesma forma, os capítulos podem ser lidos em sequência ou separada- mente, pois a estrutura do livro permite que os temas sejam trabalhados em conjunto ou de maneira independente. Desejamos a todos(as) uma ótima leitura e boa aula! 1 Diferenças na Escola Anna Paula Vencato A proposta deste capítulo é operacionalizar a problemática das diferen- ças no contexto escolar. Ou seja, na construção de uma escola que esteja aberta a todas as pessoas e que garanta não apenas o acesso, mas a per- manência e a garantia de aprendizagem a todas as pessoas. Uma educação para a igualdade deve se pautar pela construção de relações de respeito entre aqueles(as) que estão nesse espaço, as quais devem primar pelo re- conhecimento do outro como agente e sujeito de uma prática pedagógica transformadora. Nesse sentido, propomos aqui deixar de lado nossas verdades e pre- conceitos e ver o outro com um olhar que o perceba, assim como às suas histórias de vida e lógicas culturais como fundamentais para o processo de construção coletiva do conhecimento a que a escola se propõe a fazer. Para atingir o objetivo deste texto, optamos por encadear a discussão a partir dos seguintes temas: (1) Diferenças na sociedade e na escola; (2) O respeito às diferenças; (3) Bullying ou assédio escolar: um problema que afeta todo mundo; e (4) Como lidar com as diferenças no cotidiano escolar? Nessas unidades contaremos com uma discussão acerca do conceito de diferenças e como ele impacta a vida social e a escola, discutimos a ques- tão das desigualdades e violências, pensando em especial na questão do bullying, algo que hoje permeia muitos dos discursos sociais preocupados com o cotidiano escolar, e, por fim, nos dedicamos a pensar em estratégias de como abordar as diferenças no cotidiano escolar. 20 | Diferenças na Educação: outros aprendizados UNIDADE 1 Diferenças na sociedade e na escola Se alguém nos perguntar, podemos nos deter por muitas horas contando várias coisas sobre a escola ou nossas vidas escolares. Algumas memórias de nossas escolarizações são alegres, outras não. Todos(as) nós temos histórias para contar acerca dos anos em que passamos em sala de aula, sobre cole- gas, professores(as), o recreio, a educação física. De fato, passamos muito tempo na escola. Ela faz parte do cotidiano de nossa infância e adolescência, e, quando professores(as) ou pais e mães, da vida adulta. Assim, é possível afirmar que a escola suscita muitas memórias à maioria de nós. Em geral, as memórias que temos da escola contemplam tanto aspec- tos positivos quanto negativos desta experiência: ao mesmo tempo, essa instituição nos traz memórias da construção de amizades, de descobertas e aprendizagens, assim como de alegrias e, por outro lado, de violências, exclusões, autoritarismo e desapontamento. Sabemos que a escola é uma instituição e que está inserida em um dado contexto social. Isso implica dizer que muitas das regras não explícitas e explícitas dos comportamentos, dos conteúdos, das avaliações etc. que en- contramos dentro de uma escola refletem questões sociais mais amplas queencontramos no mundo, no país, estado, cidade, bairro e no entorno do prédio/terreno em que ela funciona. Contraditoriamente, essa mesma instituição que se molda a partir das regras sociais, ou seja, de regras que emanam da sociedade e nela circulam, é pouco ou nada permeável às diferenças sociais e culturais que são trazidas para dentro de seus recintos por alunos e alunas, professoras e professores, funcionários e funcionárias, gestoras e gestores, pais e mães. Reconhece-se que há uma série de singularidades trazidas de fora para dentro junto com diferentes pessoas que por ali circulam, mas estas, em geral, são tidas como exóticas e/ou inapropriadas ao contexto escolar e, por- tanto, como algo que não pode pertencer àquele espaço. É possível afirmar que a escola, o sistema de ensino e todas as pesso- as que fazem parte dele têm historicamente dificuldades em lidar com a questão das diferenças. Essa dificuldade é reflexo da sociedade a que per- tencemos e de sua lógica cultural excludente. Ao mesmo tempo, também é possível afirmar que a exclusão da pauta das diferenças ou da vivência Diferenças na Escola | 21 dentro das escolas se constitui igualmente a partir da falta de formação de professores(as) e funcionários(as) da instituição para lidar com essas questões. As diferenças são parte da cultura, ou ao menos do convívio entre di- versos grupos sociais. É a cultura que as informa, e elas também constituem a cultura. Mas o que é cultura? Para começar, partamos do pressuposto, seguindo a pista de Clifford Geertz (1989) de que a cultura diz respeito a todo comportamento aprendido, que independe de transmissão genética. Outro autor, Roberto DaMatta (1986), destrincha esta noção ao afirmar que a cultura é um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e capacidades distintas, e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos, sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Po- dem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos, mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de certas situações (DAMATTA, 1986, p. 123). Assim, pessoas que têm origens culturais diversas percebem e experi- mentam o mundo de modos diferentes, pautadas nesses aprendizados das regras sociais. É justamente o fato de pertencermos a uma dada cultura – e, portanto, não pertencermos às demais – que produz as diferenças entre nós. Como a cultura nos é ensinada a partir de um processo sutil e contínuo de aprendizagem cultural chamado de socialização, com muita frequência atribuímos a ela o caráter de natureza (como quando se afirma “é natural”, “está no sangue”) ou de imutabilidade (“isto nunca vai mudar, pois sempre foi assim”). É comum ouvirmos na escola frases como “filho de peixe, peixinho é”, “o papel do professor não é resolver conflitos” ou “ele não aprende porque a família é desestruturada”. Muitas vezes, nós mesmos reproduzimos estes discursos, para o qual precisamos estar atentos, contudo são os perigos deles, sua falácia e como autorizam o preconceito e a exclusão de certas pessoas ou grupos sociais na escola. Não pensamos, em geral, que também somos produzidos pela cultura e por um dado tempo histórico e que isso que interpretamos como “nossa natureza” é algo produzido socialmente. 22 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Tendemos a interpretar aquilo que não (re)conhecemos como que perten- cente à ordem do estranho, do esquisito, do inadequado, do errado, e que pode e deve ser excluído, afastado ou, mesmo, eliminado. Mas o que a escola tem com isso tudo? Como sabemos, a escola abri- ga dentro de seus recintos pessoas muito diferentes entre si, e que essas diferenças podem ser da ordem do individual ou do social. Mas é sobre as diferenças de ordem social que vamos conversar aqui, até porque, sem des- considerar outras instâncias da vida de uma pessoa, é na vida social que a hierarquização entre diferenças é produzida. Figura 1 Esta imagem, publicada no livro “Cuidado, escola!”, ilustra como o processo de ensino e aprendizagem tenta colocar dentro de um mesmo molde pessoas que são muito diferentes entre si. A escola, historicamente, tem se pautado pela ideia de que se tratar a todas as pessoas que por ali passam a partir dos mesmos critérios formais (avaliações, currículos, práticas pedagógicas etc.) é o melhor método para ensinar e incluir. A escola se pretende democrática pela lógica da padroniza- ção e não pela inclusão das diferenças culturais em suas práticas, conteúdos e cotidianos. Nesse sentido, busca-se internamente dar unidade de trata- mento a pessoas muito diferentes entre si, com histórias de vida e inserções sociais que não poderiam ser contempladas dentro desta visão mais tradi- cional de ensino-aprendizagem. Diferenças na Escola | 23 Figura 2 Por esta ilustração do livro “Cuidado, escola!” podemos refletir sobre qual o lugar das diferenças nas vivências escolares, ou seja, como a escola busca deixá-las de fora de seus debates e espaços porque não as considera como fator importante dentro dos processos de ensino-aprendizagem. Quando as diferenças surgem no contexto da escola, elas em geral são percebidas como “fora de lugar”. Isso acontece na escola e na vida social o tempo todo – e é sempre bom lembrarmos que a escola é uma instituição social, ou seja, está sempre inserida em um contexto sócio-histórico e dialo- ga com ele em suas práticas cotidianas. A escola não diz respeito apenas à sua estrutura formal/institucional, mas depende também das interações sociais entre as pessoas que ali estão. Na escola, os conflitos resultantes dos diferentes comportamentos, valores e modos de vida tornam-se muito evidentes, até mesmo em razão desta tradição secular de que é uma instituição que deveria ensinar valores univer- sais – ou a cultura, num sentido nada antropológico do termo. A instituição escola, ao cabo, tem dificuldade de lidar com as diferenças porque há uma contradição interna que se explicita na forma como ela foi criada e permane- ce até os dias atuais: não é fácil que uma instituição criada para padronizar e dar unidade a indivíduos por vezes muito diferentes se torne democrática e aberta às diferenças. 24 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Embora a existência de diferenças possa ocasionar conflitos na escola, é preciso que tenhamos claro que o problema a ser enfrentado não são as diferenças, mas as desigualdades. Diferenças devem ser entendidas como um sinônimo de riqueza, e devem ser valorizadas dentro da escola e das práticas pedagógicas. É importante que estejam incluídas nos conteúdos, currículos, debates e nas relações entre os diferentes sujeitos que circulam nesse ambiente. É preciso compreendê-las, conhecê-las e respeitá-las. Mas vale a pena pensar aqui em uma ideia de diferença que vai além de seus significados de hierarquia e opressão – e aqui retomamos a ideia de riqueza de que já havíamos falado. A diferença, a depender do contexto em que opera, pode levar sim a estados de opressão, mas em outros contextos leva também a estados de igualitarismo, diversidade e a modos democráti- cos que informam a ação política de um grupo ou indivíduo. Por isso, deve ser valorizada, e é importante que falemos um pouco também sobre a ideia de marcadores sociais da diferença e de interseccionalidades. Os marcadores sociais das diferenças estão presentes na escola e atuam no cotidiano escolar No final dos anos 1960 e durante os anos 1970, conforme Maria Alice Nogueira (1990), a sociologia francesa encontrou-se fortemente preocupada com a forma como se reproduziam as desigualdades sociais naquela socie- dade e denunciavam que a escola – enquanto instituição social –reproduzia as desigualdades existentes nela. Este debate era particularmente impor- tante na época, uma vez que naquele período se acreditava que o acesso à educação, per se, impactava positivamente a vida das pessoas de classes baixas, fazendo com que, a partir da escolarização, a mobilidade social se tornasse realidade. Conforme a autora, Pierre Bourdieu (1992), Jean-Claude Passeron, entre outros pesquisadores(as), dedicaram-se a investigar cientificamente as traje- tórias de escolarização de indivíduos que tinham origens familiares tantos nas classes abastadas quanto nas classes trabalhadoras. Embora sejam iden- tificadas como pessimistas, as teorias reprodutivistas em educação contribu- íram neste debate para desvelar que a escola, enquanto instituição social, também funcionava a partir da lógica da sociedade em que estava inserida. Nesse contexto, estes autores – criticados hoje por seu pessimismo peda- gógico – denunciaram que a lógica escolar dividia, ao longo dos processos Diferenças na Escola | 25 de escolarização, os(as) alunos(as) entre as carreiras técnicas e científicas, às quais as classes populares e médias/altas, respectivamente, estavam destinadas. De lá para cá, este debate, que primeiro se debruçou sobre a proble- mática das classes sociais, se ampliou, se modificou e se aprofundou. Hoje, vários autores e autoras argumentam que a escola não apenas reproduz, mas também produz as desigualdades existentes na sociedade (LOURO, 1999; SILVA, 2000). Essa ampliação do debate passou, nas últimas décadas, a englobar a ideia de que era preciso que se trouxessem para as análises outras diferenças para além das de classe social. Atualmente também se discute que as teorias de Bourdieu e outros autores contemporâneos a ele são marcadas por certo eurocentrismo. No Brasil, há pesquisas que indicam que o maior acesso à educação muda positivamente as condições de vida, acesso a emprego e renda. Nesse contexto, pode-se dizer que, por ser um cenário muito diferente do francês, ao se falar sobre o contexto brasileiro é preciso que sejam observadas as especificidades locais. Celi Scalon (2011) argumenta que se por um lado é preciso compreender a incompletude das teorias, que por décadas defenderam que haveria uma associação direta entre o aumento dos níveis educacionais da população e a eliminação da pobreza – para a autora, não se pode negar que a educação se constitui em importante fator na socialização dos indivíduos e na trans- missão do sentimento de pertencimento a uma dada cultura –, por outro lado, afirma também não ser possível negar que a elevação da escolaridade incide diretamente sobre “a capacidade de participação, de organização social e de disposição para a reivindicação de direitos – componentes in- dispensáveis para a geração de solidariedade, no sentido de ‘reciprocidade generalizada’” (SCALON, 2011, p. 62). Gênero, geração, raça/etnia, sexualidade e religião entram em cena nes- te debate, e são o que hoje chamamos de “marcadores sociais da diferença” (BRAH, 2006). A noção de marcadores sociais da diferença diz respeito à ar- ticulação dos diferentes pertencimentos sociais de um indivíduo e de como eles produzem lugares diferenciados socialmente a eles, dependendo de diversos níveis de participação na vida social. Os “marcadores sociais da di- ferença”, em suas combinações variadas, estabelecem lugares diferenciados para indivíduos diversos. Assim, inserem as diferenças num jogo complexo de hierarquias que, em alguns momentos, podem contribuir para a constru- ção de enormes desigualdades. 26 | Diferenças na Educação: outros aprendizados A abordagem das interseccionalidades – que implica em reconhecer as intersecções variadas que os marcadores sociais da diferença possam ter em dado contexto ou momento na sociedade – vai além da ideia de que as diferenças se adicionam de modo a somar ou subtrair vantagens e desvanta- gens a uma ou outra pessoa. Esta noção questiona, por conseguinte, a ideia de que quanto mais atributos positivados socialmente um indivíduo, mais sucesso este terá, ou, ao contrário, quanto menos deles um indivíduo tiver, mais fadado ao fracasso social (e escolar) será. Segundo Adriana Piscitelli (2008), trabalhar a noção de interseccionali- dades e/ou categorias de articulação é oferecer um instrumental que ajude a pensar como múltiplas diferenças e desigualdades se articulam na vida social. Para a autora, “é importante destacar que já não se trata da diferença sexual, nem da relação entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas da diferença, em sentido amplo, para dar cabida às interações entre possíveis diferenças presentes em contextos específicos” (PISCITELLI, 2008, p. 266). Por exemplo, Laura Moutinho (2006), ao pesquisar a relação entre raça/cor, homossexualidade e desigualdade em uma comunidade do Rio de Janeiro marcada pela violência e pelo tráfico de drogas, percebeu que os homens homossexuais “‘mais escuros’ que moram nos subúrbios e nas fave- las do Rio de Janeiro possuem um campo de manobra mais amplo do que aqueles nos quais se inserem rapazes e moças heterossexuais da região, e, mesmo, as lésbicas e travestis de diferentes cores que habitam essas áreas” (MOUTINHO, 2006, p. 103). Justamente em razão da homossexualidade, es- tão “fora” dos padrões de masculinidade locais requeridos para a atividade do tráfico, podendo, eles, circularem mais livremente dentro da própria co- munidade, nas comunidades onde há traficantes rivais e também nos bairros turísticos de classe média cariocas, uma vez que a cor/raça, nesses contex- tos, atua como um fator que os torna “mais desejáveis” para homens homos- sexuais brancos e/ou estrangeiros do que os rapazes gays “mais brancos”. Assim, para esses rapazes, a articulação entre os marcadores sexualidade e raça/cor não produz subordinações em todos os contextos pelos quais circu- lam. Isso implica em reconhecer que, para além das categorias que marcam as diferenças, é preciso fazer uma leitura do contexto em que as diferenças acontecem e qual seu impacto na produção ou não das desigualdades em dado espaço ou contexto. Assim, adotar uma perspectiva interseccional é, ao invés de tentar com- preender a realidade a partir de um ou outro conceito isoladamente, tentar Diferenças na Escola | 27 pensar como gênero, raça/etnia, sexualidade, geração, classes que se articu- lam em diferentes contextos produzindo igualdade ou desigualdade. Assim, trata-se menos de se pensar em uma soma ou subtração, mas de entender que uma boa compreensão da problemática das diferenças deve levar em conta como estes marcadores se articulam na produção de diferenciações e impactam os cotidianos das pessoas conforme vivem suas vidas. Ou seja, para além dos marcadores e pertencimentos, é preciso observá-los no modo como aparecem em diferentes contextos. Evidentemente, para que este debate faça sentido, o ponto de partida da análise deve ser o respeito às diferenças e sua valorização. Conforme Guacira Lopes Louro (1999), a escola produz diferenças, de- sigualdades e distinções o tempo todo. Aliás, opera basicamente neste registro, pois desde sempre separa em seus espaços: protestantes de católi- cos; meninos de meninas; ricos de pobres; mais novos de mais velhos etc. A questão é, apesar de pensada inicialmente para contemplar apenas alguns poucos “escolhidos”, a escola foi sendo solicitada cada vez com mais frequ- ência por aqueles a quem havia sido inicialmente negada. E assim, com a abertura de seus portões para indivíduos de origens e inserções sociais cada vez mais díspares, foi obrigada a lidar com – ou mais comumente, passou a renegar e expulsar – as diferenças que emergiam dentro de seus espaços. Cabe aqui fazer a pergunta: se as diferenças desestabilizam tanto, por que devem ser respeitadas e valorizadas na educação escolar? Não seria mais fácil reprimi-las? Deixá-las de fora dos currículos, debates e práticas? A resposta é não, e é justamentepara refletir sobre o modo como a escola lida (ou não lida) com as diferenças – em especial o gênero, as sexualidades e a raça/etnia – que aqui estamos. A pauta do direito à diferença e do combate à desigualdade vem ten- sionando a cena pública. Os Direitos Humanos1 e o direito à diferença, ao 1 A noção de Direitos Humanos refere-se, conforme explicitado pelos documentos da ONU, ao conjunto de leis que contemplam o direito à vida e à proteção a uma pessoa ou a um conjunto de pessoas em relação às diversas formas de abusos, tanto físicos quanto psicológicos. Norberto Bobbio define direitos humanos como direitos que cabem a homens e mulheres pela razão de serem homens e mulheres. Pertencem ou deveriam pertencer, deste modo, a todas as pessoas; assim, ninguém pode ou deve ser privado deles. Ainda, o autor afirma que direitos humanos “são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desen- volvimento da civilização etc.” (BOBBIO, 1992, p. 17). Para Samuel Antonio Merbach de Oliveira (2007), “devemos analisar que a dignidade do ser humano enquanto membro vivente de uma sociedade está situada num contexto político atualmente marcado por 28 | Diferenças na Educação: outros aprendizados contrário do que se poderia pressupor, causam polêmica e estranhamento sobretudo em contextos conservadores. Esta tensão aumenta significati- vamente se o direito humano em questão estiver relacionado à seara dos direitos sexuais e reprodutivos.2 Mesmo em âmbitos regulatórios internacio- nais que definem como os direitos humanos devem ser compreendidos na esfera global (CORREA, 2009), não é raro perceber que quando o direito das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos emergem no debate há setores conservadores que se contrapõem, mesmo, à inserção da pauta e do debate nesses organismos. Assim, conforme Claudia Fonseca (1999), pode-se falar que mesmo no âmbito do que se convencionou chamar de direitos humanos hoje há ca- tegorias que são priorizadas em detrimento de outras, o que desvela lutas simbólicas e critérios particulares de legitimação de diferenças e indivíduos que, quando se reivindicam direitos, determinam quem é mais e quem é menos humano, e, nesse sentido, humanos com mais chance de estarem contemplados nas políticas públicas e de acessarem os bens de cidadania3 e terem sua humanidade reconhecida do que outros. grandes injustiças sociais, profundas diferenças socioeconômicas e pelas não menos trágicas disparidades de distribuição de renda. Para que um ser humano tenha direitos e possa exercê-los, é indispensável que seja reconhecido e tratado como pessoa, o que vale para todos os seres humanos. Reconhecer e tratar alguém como pessoa é res- peitar sua vida, mas exige que também seja respeitada a dignidade, própria de todos os seres humanos. Nenhum homem [ou mulher] deve ser humilhado ou agredido por outro, ninguém deve ser obrigado a viver em situação de que se envergonhe perante os demais, ou que os outros considerem indigna ou imoral” (OLIVEIRA, 2007, p. 363). A Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser encontrada no endereço <http:// portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. 2 Podemos definir Direitos Sexuais como “direitos a uma vida sexual com prazer e livre de discriminação” e Direitos Reprodutivos como aqueles que dizem respeito ao “direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos(as) e de ter a informação e os meios de assim o fazer, gozando do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodu- tiva”. Fonte: Reprolatina. Para a definição ampliada dos conceitos, veja o site: <http:// www.reprolatina.org.br/site/html/areas/sexualidade.asp>. Acesso em: 18 maio 2014. 3 Conforme José Murilo de Carvalho (2001), a noção de cidadania contempla os direitos civis (direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei, que garantem a vida em sociedade), os direitos políticos (participação do cidadão no governo da sociedade) e os direitos sociais (direitos coletivos como à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria, à moradia, ao transporte público de qualidade etc.). Diferenças na Escola | 29 O mesmo pode ser percebido nas escolas e universidades, pois não é novidade nos cursos de licenciatura a ausência, para a formação de docen- tes, de subsídios que lhes proporcionem a construção de um arcabouço teó- rico-metodológico que lhes ajude a lidar com as diferenças. Essa ausência se amplia ainda mais quando a diferença refere-se a questões de gênero, das sexualidades – ou orientações sexuais, termo mais comumente (re)conhecido na arena das políticas públicas – e da raça/etnia. No caso específico dos de- bates sobre raça/etnia, nem mesmo a regulamentação no âmbito Federal,4 que institui, nos diversos níveis de ensino, a obrigatoriedade da inclusão da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, tornou concreta a inclusão e o debate das diferenças étnicas para além dos estereótipos acerca delas, assim como do combate ao racismo no cotidiano das escolas. Deste modo, embora haja iniciativas e até mesmo políticas de governo e de Estado5 que indiquem que esta abordagem deve estar presente nas práticas cotidianas escolares, a inserção efetiva nas escolas é incipiente. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, para dar um exemplo, publicados no final da década de 1990, propõem este debate, mesmo que de forma transver- sal, na prática docente e escolar, o que deveria ter tido também reflexo nos cursos de formação de professores e professoras. Independentemente des- sas iniciativas, não é incomum nos depararmos com a ausência do debate na maior parte das licenciaturas e das escolas. Em alguns lugares, escolas e também universidades, há experiências de abordagem da temática, em geral vinculadas a professores e professoras que tenham afinidade com o tema, mas ainda são raros espaços (especialmente oficial ou, se oficiais, re- conhecidos e levados a sério) para que o debate seja realizado efetivamente. Nesse contexto, nosso desafio passa não apenas por reconhecer, mas também por falar sobre a diferença, entendê-la como um princípio estru- turante da boa prática pedagógica e deixar de lado a visão de que ela só traz problemas para o interior da escola. Ainda, é preciso que deixemos de 4 Notadamente, a Lei no 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para se incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obri- gatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 17 fev. 2014. 5 Em linhas gerais, uma política de Estado é aquela que extrapola os limites de uma gestão e deve ser acatada independentemente de quem está no governo no momento atual. Uma política de governo é aquela que só tem garantias de ser efetivada e execu- tada durante a gestão de quem a implantou. Assim, pode-se dizer que as políticas de Estado têm caráter (mais) permanente que as de governo, que seriam (mais) transitórias. 30 | Diferenças na Educação: outros aprendizados lado ideias de que a escola não tem de lidar com a sexualidade e com ou- tros marcadores sociais da diferença. A escola é um espaço importante da sociabilidade de crianças e adolescentes, e limar a instância dos desejos e afetividades desse espaço é uma forma de exclusão. Além disso, o mesmo silêncio que exclui também deixa a porta aberta para as discriminações e violências diversas. Faz parte de nossa função como educadores e educado- ras garantir uma escola de qualidade para todas as pessoas, na qual todas elas estejam representadas. Como nos lembra Rogerio Diniz Junqueira (2007), ao invés de nos contra- pormos à existência das diferenças no ambiente escolar, deveríamos valori- zá-las, porque elas constituem fator dequalidade na educação. Conforme o autor, não é a qualidade do ensino que acarreta uma coexistência pacífica e um convívio democrático com as diferenças. O que se passa é justamente o contrário: o respeito às diferenças é que viabiliza uma educação de qualida- de e, adicionaria aqui, a produção de uma escola e sociedade pautadas nos princípios de igualdade e justiça social. BOX 1 “O conceito de diferença [...] se refere à variedade de maneiras como dis- cursos específicos da diferença são constituídos, contestados, reproduzidos e ressignificados. Algumas construções da diferença, como o racismo, pos- tulam fronteiras fixas e imutáveis entre grupos tidos como inerentemente diferentes. Outras construções podem apresentar a diferença como rela- cional, contingente e variável. Em outras palavras, a diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Portanto, é uma questão contextu- almente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade, explora- ção e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política” (AVTAR BRAH, 2006, p. 374). Diferenças na Escola | 31 UNIDADE 2 O respeito às diferenças A escola é um espaço importante da sociabilidade de crianças e ado- lescentes, e tornar invisíveis as diferenças desse espaço é uma forma de exclusão. Além disso, o mesmo silêncio que exclui também deixa a porta aberta para as discriminações e violências diversas, e é nossa função como educadores e educadoras garantir uma escola de qualidade para todas as pessoas, na qual todas as pessoas estejam representadas. Mas, antes de qualquer coisa, é preciso que entendamos o que são as diferenças e suas implicações nas escolas e na vida social. Diferença e diversidade, respeito e tolerância: discutindo conceitos Faço, neste texto, a opção teórica de utilizar o termo diferença ao in- vés de diversidade. Opto também por lançar mão da ideia de respeito às diferenças ao invés da tolerância às diferenças. Atualmente, é comum que tenhamos contato com estes termos e, por vezes, os utilizemos sem saber muito a que se referem. Muitas vezes, pela forma como aparecem nos dis- cursos sociais e, mesmo, acadêmicos, parece que diferença e diversidade falam da mesma coisa, assim como tolerância e respeito são usados como se dissessem respeito à mesma coisa. É comum, inclusive, que as pessoas tenham dificuldades em lançar mão do conceito de diferença e respeito, já que diversidade e tolerância circulam também como alternativas que, por vezes, parecem se vender como mais inclusivas. Dito isto, é valido explicitar porque faço a opção por usar os termos diferença e respeito ao invés dos dois outros, que parecem ter o mesmo sentido, mas não têm. Tendo a seguir, neste debate, às pistas fornecidas por alguns autores. Para Richard Miskolci (2012), o termo “diversidade” é ligado à ideia de tolerância ou de convivência, e o termo “diferença” é mais ligado à ideia de reconhecimento como transformação social, transformação nas relações de poder, do lugar que o Outro ocupa nelas. Quando você lida com o diferente, você também se transforma, se coloca em questão. Diversidade é “cada um no seu quadrado”, uma perspectiva que compreende o Outro como 32 | Diferenças na Educação: outros aprendizados incomensuravelmente distinto de nós e com o qual podemos conviver, mas sem nos misturarmos a ele. Na perspectiva da diferença, estamos todos implicados(as) na criação desse Outro, e quanto mais nos rela- cionamos com ele, mais o reconhecemos como parte de nós mesmos, não apenas o toleramos, mas dialogamos com ele sabendo que essa relação nos transformará (MISKOLCI, 2012, p. 15-16). Tomaz Tadeu da Silva (2007) também questiona o uso do termo diversi- dade, e argumenta que as palavras “diferença” e “multiculturalismo” apa- recem na teoria educacional com alguma ênfase nos últimos tempos, sem muita reflexão acerca de suas implicações. Para o autor, é preciso pensar acerca delas de forma crítica, já que hoje são, inclusive, utilizadas pelos dis- cursos oficiais (inclua-se neles os governamentais) como “legítimas questões de conhecimento”. Para Silva, deve-se estar atento ao fato de que essas te- orias sobre a diversidade e o multiculturalismo, assim como as discussões que dela emanam, sofrem da ausência de uma teoria da identidade e da diferença. Em suas palavras, em geral, o chamado “multiculturalismo” apoia-se em um vago e be- nevolente apelo à tolerância e ao respeito para com a diversidade e a diferença. É particularmente problemática, nessas perspectivas, a ideia de diversidade. Parece difícil que uma perspectiva que se limita a proclamar a existência da diversidade possa servir de base para uma pedagogia que coloque no seu centro a crítica política da identidade e da diferença. Na perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas, cristalizadas, essencializadas. São tomadas como dados ou fatos da vida social diante dos quais se deve tomar posição. Em geral, a posição socialmente aceita e pedagogicamente recomendada é de respeito e tolerância para com a diversidade e a diferença. Mas será que as questões da identidade e da diferença se esgotam nessa posição liberal? E, sobretudo: essa perspectiva é sufi- ciente para servir de base para uma pedagogia crítica e questionadora? Não deveríamos, antes de mais nada, ter uma teoria sobre a produção da identidade e da diferença? Quais as implicações políticas de concei- tos como diferença, identidade, diversidade, alteridade? O que está em jogo na identidade? Como se configuraria uma pedagogia e um currí- culo que estivessem centrados não na diversidade, mas na diferença, concebida como processo, uma pedagogia e um currículo que não se limitassem a celebrar a identidade e a diferença, mas que buscassem problematizá-las? (SILVA, 2007, p. 73-74). Diferenças na Escola | 33 A opção pelo termo diferença busca, nesse contexto, positivar a dife- rença como parte importante da experiência social. Ao contrário do termo diversidade, que indica apenas que a diferença está posta na vida social, a ideia de diferença contempla a ideia de que a produção das diferenças é um processo contínuo no interior da vida social e se estabelece na relação com o outro. Figura 3 Tela “Operários”, de Tarsila do Amaral (1933), que contempla a diferença étnico-racial da sociedade brasileira. As expressões austeras, de olhar fixo, nos lem- bram das dificuldades inerentes ao trabalho fabril. Com outro cenário ao fundo, a imagem poderia fazer também se referir à pluralidade de sujeitos presentes nas esco- las brasileiras, pluralidade esta raramente representada nos materiais didáticos e nas práticas escolares cotidianas. Precisamos também, conforme apontado pelos autores, pensar acerca das implicações políticas dos usos dos termos respeito e tolerância. Enquan- to tolerar pressupõe uma relação de superioridade e inferioridade, em que quem tolera pode ser juiz do outro e usar de benevolência para conviver com ele, apesar das diferenças, a noção de respeito pressupõe igualdade na forma de se entender a diferença dentro da hierarquia social. Isso por- que, quando respeitamos alguém, reconhecemos que a diferença está dada, apesar do que pensamos dela, e que ela é tão significativa dentro de um contexto sociológico como qualquer um de seus elementos. 34 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Dito isto, podemos debater outra ideia importante aqui: a de que a di- ferença – e consequentemente o respeito – se estabelece na relação social. Disso, depreende-se que o reconhecimento das diferenças na sociedade e na escola não implica em tratá-las de modo desigual e/ou com inferiori- dade. Conforme venho argumentando, é justamente o reconhecimento das diferenças que pode propiciar que a educação escolar seja efetivamente igualitária e democrática. Diferença não é um atributo inerente dos outros, mas da relação social estabelecida Tomaz Tadeu da Silva (2007) nosalerta que é fácil reconhecer a identida- de quando a pensamos como aquilo que se é ou, de forma autorreferencial, como aquilo que somos. Nesta linha de raciocínio, questiona Silva, a identidade é simplesmente aquilo que se é: “sou brasileiro”, “sou ne- gro”, “sou heterossexual”, “sou jovem”, “sou homem”. A identidade assim concebida parece ser uma positividade (“aquilo que sou”) [...] Nessa pers- pectiva, a identidade só tem como referência a si própria: ela é autocontida e autossuficiente. Na mesma linha de raciocínio, também a diferença é concebida como uma entidade independente. Apenas, neste caso, em oposição à identidade, a diferença é aquilo que o outro é: “ela é italiana”, “ela é branca”, “ela é homossexual”, “ela é velha”, “ela é mulher”. Da mes- ma forma que a identidade, a diferença é, nesta perspectiva, concebida como autorreferenciada, como algo que remete a si própria. A diferença, tal como a identidade, simplesmente existe (SILVA, 2007, p. 74). Contudo, a proposição da diferença não se esgota na categorização de si ou do outro. Quando dizemos que somos brasileiras, estamos dizendo que não somos de uma ampla lista de outros pertencimentos nacionais, ou seja, ao afirmarmos o que somos, também renegamos a aquilo que não so- mos. O que é proposto pelo autor, então, é uma (re)significação do conceito de diferença, provocando a ruptura com a visão cristalizada da identidade como norma. Deste modo, a inclusão das diferenças seria um pressuposto para uma boa prática pedagógica, e não seu resultado deste. Podemos afir- mar, então, em consonância com a proposta por ele apresentada, que assim como a definição da identidade depende da diferença, a defini- ção do normal depende da definição do anormal. Aquilo que é deixado Diferenças na Escola | 35 de fora é sempre parte da definição e da constituição do “dentro”. A definição daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural, é in- teiramente dependente da definição daquilo que é considerado abjeto, rejeitável, antinatural. A identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu Outro, sem cuja existência ela não faria sentido (SILVA, 2007, p. 84). Esse tipo de atitude é visível, por exemplo, quando um homem conta uma piada ridicularizando um homossexual como forma de afirmar sua mas- culinidade ou, ainda, quando se faz brincadeiras como “mulher feia tem que agradecer o estupro”, ou em comentários sobre uma suposta incapacidade “natural” das mulheres de dirigir bem, para as ciências exatas ou para exer- cer cargos de chefia. Para um debate sobre as diferenças, é preciso que reconheçamos que tanto a identidade quanto a diferença são produzidas nas interações entre indivíduos no interior da vida social. Nós nos identificamos com diversos mo- delos e práticas que existem, estão disponíveis no mundo, e os rejeitamos (ou na sociedade em que fomos socializados). Ambas se desvelam a partir do (re)conhecimento de si perante o outro. A identidade e a diferença são produzidas durante o processo de so- cialização, um processo permanente de aprendizado cultural, que se es- tende desde o nascimento até à morte de um indivíduo. Assim, é a partir do processo de socialização que aprendemos e assimilamos os valores e experiências de uma cultura (no caso, a nossa). À medida que nascemos, crescemos e nos desenvolvemos, vamos incorporando as normas sociais e agimos cada vez mais de acordo com a forma como fomos ensinados. Este processo não se dá de forma consciente, e, em geral, essas regras nos são ensinadas a partir das experiências sociais ao longo de nossas vidas. Em resumo, a socialização consiste em um processo de aprendizado cultural que (in)forma os comportamentos de todos indivíduos e permite que per- tençam a uma dada sociedade. Um desses aprendizados diz respeito ao gênero e às sexualidades. Nesse contexto, podemos afirmar que meninos e meninas possuem com- portamentos diferentes, não em função de transmissão genética ou do ambiente em que vivem, mas pela educação diferenciada que cada um recebeu. Voltando à ideia de que mulheres “naturalmente” dirigem pior que os ho- mens, é preciso considerar que, desde muito cedo, separam-se brincadeiras 36 | Diferenças na Educação: outros aprendizados para meninos e meninas, e com isso estimula-se o desenvolvimento de aptidões específicas para cada um dos sexos. Enquanto meninos são esti- mulados a atividades que permitem o desenvolvimento da lateralidade e da noção de espaço, como a prática de esportes, às mulheres são reserva- das brincadeiras e brinquedos que estimulam mais outras aptidões, como a coordenação motora fina (requerida para, por exemplo, desenvolver uma escrita “mais bonita”) ou relativa aos futuros cuidados maternais (como as brincadeiras com bonecas(os)). Assim, vai-se produzindo a “falta de jeito” dos homens de lidarem com seus filhos quando bebês, a caligrafia “feia” dos meninos, a falta de aptidão para dirigir e para a localização espacial das meninas, entre outras coisas, que nada têm de “naturais”. Em geral, quando nos colocamos em comparação com o outro e o julga- mos diferentes de nós, tendemos a tomar nossos próprios hábitos, costumes e modos de vida como verdadeiros, e os demais como inadequados, falsos. Assim, categorizamos a humanidade a partir da nossa experiência e descar- tamos outras formas de ser e estar no mundo como menos humanas. É preci- so que reconheçamos, contudo, que a diferença não é um atributo exclusivo do outro, que tendemos a perceber como atrasados, errados, estranhos etc. Um primeiro passo aqui é justamente reconhecer que, do ponto de vista dos outros, também somos diferentes; assim, só é possível estabelecer diferença a partir do contato com o outro, diferente de nós, e, ao mesmo tempo, é só a partir desse contato que nos é possível perceber que nos identificamos ou não com ele. Concluímos que a cultura – entendida como todo o complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer hábito ad- quirido pelo homem enquanto membro de uma sociedade – é que determi- na a diferença de comportamento entre indivíduos ou grupos sociais. Diferença não é uma questão de opinião Sabemos que as diferenças, assim como é a identidade, são produzidas nas interações entre indivíduos no interior da vida social. Como já discuti- mos, quando falamos em cultura, estamos nos referindo a tudo aquilo que caracteriza a existência social de um povo ou de grupos no interior de uma sociedade. Estamos falando também dos códigos e comportamentos com- partilhados por indivíduos que constituem um grupo, ou seja, as regras so- ciais que se seguem. As culturas não são genéticas: elas são aprendidas ao Diferenças na Escola | 37 longo do processo de socialização do indivíduo. Também não são estáticas, e se modificam no curso da história. Para Roberto DaMatta (1986), “a cultura não é um código que se escolhe simplesmente” (DAMATTA, 1986, p. 123). Quando apreciamos negativamente, distinguimos a cultura do “eu” daquelas diferentes da nossa, podemos dizer que estamos tendo um com- portamento etnocêntrico. Etnocentrismo é um termo amplamente utiliza- do nas ciências sociais para definir julgamentos de valor acerca da cultura do outro quando a observamos vestindo as lentes da cultura do eu. É fato que todos(as) vemos o mundo através das lentes da cultura em que fomos socializados(as). Mas no comportamento etnocêntrico isso resulta sempre num julgamento valorativo em que a cultura do “eu” é vista como a “verda- deira”, “correta”, “adequada”, “certa” etc., e a do outro, em oposição, não. Um exemplo de etnocentrismo relacionado aos conteúdos escolares é quando se toma apenas a história do continente europeu como referência histórica para toda a humanidade. Assim, deixa-se de lado toda a história de povos com culturas tão ricas e complexas quanto as da Europa e exclui-se esta discussão dos currículos escolares e discussões em sala de aula. Nessa situação, a referênciade humanidade centra-se na história dos povos que colonizaram a América e não se dá a devida importância para a influência dos povos africanos e indígenas na história deste continente. O mesmo acontece quando, nas aulas de ensino religioso, se privilegia a tradição reli- giosa judaico-cristã como se fosse a única existente e não se fala sobre ou- tras formas de experiência religiosa, consideradas então menos importantes ou legítimas. Roque de Barros Laraia (2009) nos alerta sobre os riscos do etnocentris- mo, ao afirmar que o fato de vermos o mundo através de nossa cultura tem como consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais. O etnocentrismo, de fato, é um fenôme- no universal. É comum a crença de que a própria sociedade é o centro da humanidade, ou mesmo a sua única expressão. [...] A dicotomia “nós e os outros” expressa em níveis diferentes essa tendência. Dentro de uma mesma sociedade, a divisão ocorre sob a forma de parentes e não parentes. Os primeiros são melhores por definição e recebem um tratamento diferenciado. A projeção desta dicotomia para o plano extragrupal resulta nas manifestações nacionalistas ou formas mais 38 | Diferenças na Educação: outros aprendizados extremadas de xenofobia. O ponto fundamental de referência não é a humanidade, mas o grupo. Daí a reação, ou pelo menos a estranheza, em relação aos estrangeiros (LARAIA, 2009, p. 72-73). Se comportamentos etnocêntricos resultam em apreciações negativas aos padrões culturais diferentes dos do grupo de origem de dado indivíduo, podemos dizer que implicam sempre numa construção de legitimidades di- ferenciadas para o grupo do “eu” e do “outro”, em que o grupo do “eu” – de quem julga ou observa – estará sempre colocado de modo hierarquicamen- te superior ao do “outro” (ROCHA, 1991). É comum encontrarmos na vida cotidiana pessoas com falas como “de- vemos respeitar as diferenças porque cada um tem a sua opinião”. O que gostaria de pontuar aqui é que, nesse momento, já sabemos que a produção social das diferenças extrapola a ideia de que elas são uma questão indivi- dual. As diferenças são parte da cultura, ou ao menos do convívio entre di- versos grupos sociais. É a cultura que as informa, e elas também constituem a cultura. Dessa forma, podemos percebê-las mais a partir de uma noção de que elas constituem outra possibilidade de existência, de viver a vida, e me- nos como uma forma inferior, atrasada ou equivocada de estar no mundo. Diferença não é o mesmo que desigualdade Conforme bell hooks (2013, p. 235), “desde o ensino fundamental, somos todos encorajados a cruzar o limiar da sala de aula acreditando que estamos entrando em um espaço democrático – uma zona livre onde o desejo de estudar e aprender nos torna todos iguais”. Assim, as diferenças (de clas- se, conforme discute a autora, mas também todas as outras) tendem a ser apagadas, silenciadas, dando amplo espaço a todas as formas de exclusão. Para a autora, mesmo que entremos em classe aceitando que há diferenças postas entre os sujeitos que ali estão, ainda acreditamos que o conhecimen- to ali será distribuído em partes iguais e justas. Mas, ao cabo, não é isso que ocorre. De acordo com Ione Ribeiro Valle (2013), em termos legais é dado que a igualdade em relação ao direito à educação é fundamental para a consolida- ção dos projetos políticos de democratização em nível mundial e, podemos dizer, também no Brasil. Apesar disso, e de esse discurso ter ampla aceita- ção social, também é preciso dizer que a escola “nunca garantiu que, em nível igual de talento, motivação e competência, todos tenham as mesmas Diferenças na Escola | 39 perspectivas de sucesso, independentemente do meio social, da educação familiar e dos processos de socialização que marcam, de forma distinta, a trajetória de cada um” (VALLE, 2013, p. 295). Isso acontece de forma mais aprofundada nas sociedades com maior índice de desigualdade social, como a brasileira. Assim, quanto mais desigual uma sociedade, maior a dificuldade de acesso e garantia dos direitos fundamentais6 a todas as pessoas. Apesar da diversificação das ações voltadas à democratização do acesso e à inclusão escolar na sociedade contemporânea a partir de políticas de ação afirmativa ou do desenho de políticas públicas que visem modificar o quadro vigen- te de exclusões sociais, “as desigualdades fracionam-se, multiplicam-se e diversificam-se no âmbito da escola, do mundo do trabalho, das hierarquias sociais, sem que se consiga desmontar o mecanismo e a lógica que elas ocultam” (VALLE, 2013, p. 296). A persistência das desigualdades, conforme a autora, tem incentivado a abordagem de novas perspectivas analíticas “que procuram analisar as múltiplas dimensões das desigualdades sociais, caracterizando-as como um sistema que se articula na ordem do ter, do po- der e do saber” (VALLE, 2013, p. 296). De acordo com a autora, é preciso, para a manutenção da ordem social vigente, que os sistemas de escolarização se pautem pela lógica do mérito. Dentro dessa lógica, cada um, individualmente, ao adentrar nos quadros da escola, poderá ascender socialmente e acessar os bens de cidadania, e seu sucesso dependerá apenas de esforçar-se o suficiente para tal. O que se passa é que, dentro dessa lógica, as diferenças aparecem como empecilho para a produção de uma escola, pois impediria que a todas as pessoas ali fosse dada igualdade de tratamento. Este discurso, falacioso, porém entra- nhado na lógica escolar, justifica cotidianamente a exclusão das diferenças como fator importante para o ensino e a aprendizagem. O sistema de ensino que leva em conta essa lógica tenta pasteurizar as diferenças e padronizar os conteúdos e formas de ensinar. Ele aspira dar uma escolarização única a todas as pessoas, ignorando suas especi- ficidades. O que ocorre, ao cabo, é que justamente ao desconsiderar as diferenças e padronizar pessoas, conteúdos, metodologias de ensino etc., 6 Grosso modo, aqueles previstos como direitos individuais na Carta Magna de um país. De acordo com Michelli Pfaffenseller (2007, s/p.), “os Direitos Fundamentais, sob uma perspectiva clássica, consistem em instrumentos de proteção do indivíduo frente à atuação do Estado”. 40 | Diferenças na Educação: outros aprendizados a escola perpetua as desigualdades existentes na sociedade por descon- siderar que aquilo que não faz parte do status quo da sociedade não per- tence ao universo escolar. Figura 4 Ilustração do cartunista Ziraldo para a cartilha do Ministério da Justiça “Os direitos humanos”. Nesse contexto, nosso desafio é passar por reconhecer e falar sobre as diferenças e entendê-las como um princípio estruturante da boa prática pe- dagógica, assim como deixar de lado a visão de que ela só traz problemas para o interior da escola. Ainda, é preciso que deixemos de lado ideias de que a escola não tem de lidar com gênero, sexualidade, raça ou com outros marcadores sociais da diferença. O relatório da “Pesquisa sobre preconceito e discriminação no ambiente escolar”, publicado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) em 2009, observou que, nas escolas em que há um maior índice de precon- ceito e discriminações, há um aprendizado pior. Essa pesquisa cruzou dados sobre preconceito e discriminação no ambiente escolar com o desempenho de alunos(as) na Prova Brasil 2007.7 O relatório também demonstrou que nas 7 A “Prova Brasil” ou Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC)" é uma ava- liação censitária envolvendo os alunos da 4a série/5o ano e 8a série/9o ano do Ensino Diferenças na Escola | 41 escolas em que há maior preponderância de atitudes que enfatizem o res- peito às diferenças, o resultado das provas dos(as) alunos(as) apresentou uma melhora significativa. As variações nas médias de alunos(as)na Prova Brasil mostraram-se diretamente relacionadas a maior ou menor discriminação e preconceito, que vitimam tanto discentes quanto docentes e funcionários(as).8 Não é a existência das diferenças que institui as desigualdades entre indivíduos, mas a hierarquização delas (legitimação de algumas e exclusão de outras). O desrespeito às diferenças produz as intolerâncias, discrimi- nações e violências (simbólicas e físicas) que encontramos nas escolas e, também, amplamente na vida social. O preconceito e a discriminação não se constituem em um problema que afeta apenas aqueles indivíduos que são discriminados. São fatores que impactam a vida de todas as pessoas que se encontram nos espaços onde há processos discriminatórios. Não se trata aqui de responsabilizar exclusivamente docentes, estu- dantes ou quaisquer outras pessoas pelos males do mundo. O que preci- samos compreender é que a desigualdade é estrutura na vida social e afeta a todos(as) nós, indiscriminadamente. Assim, cabe a nós, profissionais da educação, tomarmos como nosso o projeto de produção de uma escola democrática e pautada na noção de respeito a todas as pessoas. Cabe aqui a proposta de que devemos pautar no cotidiano escolar (mas não apenas nele) o debate em que o combate aos preconceitos e discriminações passa inicialmente pelo reconhecimento de nossos próprios preconceitos e limites de lidar de forma democrática e inclusiva com a diferença. Antes de seguirmos para uma proposta de como fazer isto, gostaria de propor um debate sobre as formas de violência e discriminação que mais têm afetado o debate sobre a escola hoje: as histórias sobre o bullying e como impactam as vivências de todos(as) no ambiente escolar. Fundamental das escolas públicas das redes municipais, estaduais e federal, com o objetivo de avaliar a qualidade do ensino ministrado nas escolas públicas. Participam desta avaliação as escolas que possuem, no mínimo, 20 alunos matriculados nas séries/ anos avaliados, sendo os resultados disponibilizados por escola e por ente federativo”. Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Disponível em: <http://provabrasil.inep.gov.br/>. Acesso em: 16 jan. 2014. 8 Para mais informações, veja FIPE ([2009] 2013, p. 11). 42 | Diferenças na Educação: outros aprendizados UNIDADE 3 Bullying ou assédio escolar: um problema que afeta todo mundo O termo bullying é uma expressão em língua inglesa que se origina do termo bully, que quer dizer “valentão/valentona”. Não há uma tradução exa- ta para o termo em português, que hoje é amplamente difundido e reconhe- cido como algo presente nas escolas em seus vários níveis de ensino. Alguns textos trazem como alternativa à expressão em inglês o termo “assédio es- colar”, muito embora se reconheça que esta prática extrapola os limites da (con)vivência nas escolas. Um exemplo de bullying fora das escolas é o cyberbullying, que se reali- za na rede mundial de computadores (internet). No contexto escolar, muito embora o tipo mais comum da prática seja aquele feito por alunos(as) con- tra outros(as) alunos(as), esta também pode ser executada ou sofrida por professores(as) e/ou funcionários(as) da escola e impacta de forma violenta a experiência de quem é vítima deste tipo de atitude, assim como afeta a quem a executa e todo o entorno. O termo bullying tem sido amplamente designado para se referir a comportamentos agressivos, atos de violência física e/ou psicológica per- petuados por crianças e adolescentes em idade escolar contra colegas de mesma idade ou idade inferior. Conforme a Cartilha Bullying,9 publicada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2010, o termo “é utilizado para qua- lificar comportamentos agressivos no âmbito escolar, praticados tanto por meninos quanto por meninas” (p. 7). Ainda, estes “atos de violência (física ou não) ocorrem de forma intencional e repetitiva contra um ou mais alunos que se encontram impossibilitados de fazer frente às agressões sofridas” (p. 7). Assim, sem alguma razão específica, alunos(as) considerados(as) mais frágeis são tomados como objetos de diversão, prazer e poder, com o pro- pósito maltratar, intimidar, humilhar e amedrontar as vítimas. Também, de acordo com a Cartilha, bullyings praticados por meninos tendem a ser mais visíveis pelo uso frequente da força física. Já aquele praticado pelas meninas 9 Cartilha Bullying, Conselho Nacional de Justiça, 2010. Disponível em: <http://www.cnj. jus.br/images/programas/justica-escolas/cartilha_bullying.pdf. Acesso em: 25 jan. 2014. Diferenças na Escola | 43 tende a ser menos visível, uma vez que envolve mais fatores como intrigas, fofocas e isolamento da vítima. Uma pesquisa publicada em 2010 pelo Instituto Plan Brasil sobre bullying no contexto escolar nos traz dados acerca dos números de incidência de maus-tratos em escolas de todas as regiões do Brasil. O relatório afirma que a violência se constitui em fenômeno relevante nas escolas brasileiras, uma vez que 70% dos(as) alunos(as) pesquisados informaram terem visto colegas serem maltratados(as) ao menos uma vez. Cerca de 9% também afirmaram que assistiram a colegas sofrerem maus-tratos várias vezes por semana, e 10% dizem ter presenciado este tipo de cena todos os dias. Tabela 1 Número de alunos que relataram ter visto colegas serem maltratados no ano de 2009 e frequência dos maus-tratos observados. Quantas vezes viu o colega ser maltratado Quantidade Percentual Não vi 1468 28,4% Vi 1 ou 2 vezes 1834 35,5% Vi de 3 a 6 vezes 531 10,3% 1 vez por semana 262 5,1% Vários por semana 461 8,9% Todos os dias 522 10,1% Em branco 90 1,7% Total geral 5168 100% Os dados dessa pesquisa também demonstram que 28% da amostra total de alunos(as) afirmam ter sido vítimas de maus-tratos por parte de co- legas pelo menos uma vez durante 2009, cerca de 10% afirmam ter sofrido maus-tratos três ou mais vezes durante o mesmo período. O número parece baixo, embora relevante se comparado ao percentual de 71% de alunos(as) que relataram não terem sofrido maus-tratos. Contudo, conforme análise contida no próprio relatório, o número obtido durante a pesquisa pode estar subestimado, uma vez que o fenômeno investigado é passível de provocar constrangimento na vítima quando do relato. Ainda, respostas posteriores dadas à etapa quantitativa da pesquisa revelaram frequências maiores tanto de bullying quanto de maus-tratos, o que reforça a hipótese de que o per- centual de vítimas é superior aos 10% identificados inicialmente. 44 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Tabela 2 Número de alunos que relataram ter sofrido maus-tratos e frequência com que isso teria ocorrido. Frequência dos maus-tratos Quantidade de alunos Percentual Não fui maltratado 3666 70,9% Fui 1 ou 2 vezes 940 18,2% Fui 3 a 6 vezes 198 3,8% 1 vez por semana 71 1,4% Várias vezes por semana 140 2,7% Todos os dias 90 1,7% Em branco 63 1,2% Total geral 5168 100% Isso se explica, em parte, pela dificuldade de se reconhecer no frágil lugar de vítima. Quanto à subnotificação dos dados de violência sofrida, é possível também tecer paralelos com a dificuldade com que vítimas de gol- pes ou crimes têm em denunciar a violência sofrida às autoridades policiais, por exemplo. Conforme Silvia Ramos, há pessoas que acumulam atributos sociais que são desvalorizados dentro da lógica cultural vigente, e, por esta razão, com muita frequência, são tidas como “menos vítimas” quando sujei- tas a violências diversas. Para exemplificar, ela menciona o caso da juventude negra nos atendimentos policiais. Em suas palavras, frequentemente, a população negra, especialmente os jovens, é vítima de tratamento desrespeitoso e inadequado pela própria polícia, seja numa revista policial, seja numa delegacia. O que é acionado nas cenas comuns de seletividade da suspeita é uma combinação explosiva de es- tereótipos, violência simbólica, às vezes violência física, e racismo, que sófaz aumentar o abismo entre polícia e juventude e que derrota todas as tentativas de produção da paz e da segurança com a cooperação e o engajamento criativo da juventude (RAMOS, 2002, p. 2). Podemos fazer o mesmo tipo de analogia quando pensamos no bullying escolar e na manipulação das identidades nesse contexto. É possível que bullys se valham de todo um conhecimento social das desvantagens que um(a) colega possa ter, não apenas para escolhê-lo(a) como vítima, mas também para se manter insuspeito(a) se for acusado de abuso. Assim, são as desigualdades manifestas na vida social que interferem nas interações escolares, legitimam ou deslegitimam crianças e adolescentes no contexto Diferenças na Escola | 45 escolar e fazem com que alguns indivíduos vitimizem outros com certa pos- sibilidade de não serem pegos(as) desde que não extrapolem limites tolerá- veis (como aqueles enquadrados nos discursos do “foi sem querer” ou “foi apenas uma brincadeira”). BOX 2 Saiba mais: Para saber mais dados sobre o bullying no contexto brasileiro, busque o rela- tório final da pesquisa Bullying escolar no Brasil, publicado em 2010 pela Or- ganização Não Governamental Plan Brasil. A pesquisa foi realizada com 5.168 estudantes de todas as regiões do país, e o relatório encontra-se disponível em: <http://escoladafamilia.fde.sp.gov.br/v2/Arquivos/pesquisa-bullying_es- colar_no_brasil.pdf>. Vale lembrar aqui que se enquadram como formas de bullying os aspec- tos físicos e materiais (bater, empurrar, beliscar, roubar, furtar ou destruir pertences da vítima), verbais (insultar, ofender, falar mal, colocar apelidos pejorativos, “zoar” etc.), psicológicos e morais (humilhar, excluir, discrimi- nar, chantagear, intimidar, difamar etc.), sexuais (abusar, violentar, assediar, insinuar etc.) e virtuais/cyberbullying (bullying realizado por meio de ferra- mentas tecnológicas: celulares, filmadoras, internet etc.). 46 | Diferenças na Educação: outros aprendizados BOX 3 Tipos comuns de Bullying: • Insultar a vítima. • Acusar sistematicamente a vítima de não servir para nada. • Cometer ataques físicos repetidos contra uma pessoa, tanto contra o cor- po dela quanto algo de sua propriedade. • Interferir com a propriedade pessoal de uma pessoa, livros ou material escolar, roupas etc., danificando-os. • Espalhar rumores negativos sobre a vítima. • Depreciar a vítima sem nenhum motivo aparente. • Fazer com que a vítima faça o que ela não quer, ameaçando-a para seguir as ordens. • Colocar a vítima em situação problemática com alguém (geralmente uma autoridade) ou conseguir uma ação disciplinar contra a vítima, alegando algo que ela não cometeu ou que foi exagerado pelo bully. • Fazer comentários depreciativos sobre a família de uma pessoa (particu- larmente a mãe), sobre o local de moradia de alguém, aparência pessoal, orientação sexual, religião, etnia, nível de renda, nacionalidade ou qual- quer outro aspecto entendido como inferioridade pelo(a) bully. • Causar isolamento social da vítima. • Usar as tecnologias de informação para praticar o cyberbullying (criar páginas falsas, comunidades ou perfis sobre a vítima em sites de relacio- namento com publicação de fotos etc.). • Fazer chantagem. • Usar expressões ameaçadoras. • Fazer grafitagem depreciativa. • Usar de sarcasmo evidente para se passar por amigo (para alguém de fora) enquanto assegura o controle e a posição em relação à vítima (isso ocorre com frequência logo após o bully avaliar que a pessoa é uma “ví- tima perfeita”). • Fazer a vítima passar vergonha na frente de várias pessoas. Fonte: Eco4U (2011, com adaptações): <https://eco4u.wordpress.com/2011/04/06/ bullying-casos-famosos-entenda-o-que-e-e-combata-esta-pratica/>. Diferenças na Escola | 47 É comum nos depararmos com relatos de casos e notícias de casos de bullying nas conversas do cotidiano ou na mídia hoje. Alguns exemplos são mais ou menos intensos quanto ao grau de violência – que pode ser simbólica ou física. É comum, em uma busca rápida na internet, nos depararmos com informações sobre bullying. Muitas vezes estes são praticados com base na discriminação de alguns atributos físicos da vítima, os quais são acionados de modo a fazê-la indesejável na escola e na sociedade.10 Acusações acerca da beleza ou feiura, da gordura ou magreza, entre outras coisas, impactam signi- ficativamente a experiência de diversas crianças e adolescentes nas escolas. Outros atributos que aparecem no rol de rejeições são gênero, sexualidade, classe, raça/etnia e religião. A omissão por parte da escola e comunidade es- colar aparece frequentemente nos relatos e pode contribuir como um fator que permite a existência e reprodução dos abusos em seu cotidiano.11 Assim, não é raro nos depararmos com relatos trágicos sobre as con- sequências do bullying e da omissão quanto a ele. Em um caso recente, ocorrido no Brasil, uma adolescente de dezesseis anos matou com facadas uma colega de quinze anos na saída da escola. De acordo com relatos de colegas, ambas se desentenderam por causa do perfume usado pela vítima. O desentendimento deveria ser “resolvido” na saída da aula.12 Em outro caso famoso, que ocorreu no Canadá, uma jovem de quinze anos suicidou-se em razão de um cyberbullying que se tornou, também, inspiração para a prática de bullying contra ela por parte de colegas de es- cola. Quando tinha doze anos, Amanda foi convencida a mostrar partes de seu corpo em uma conversa na internet. Depois disso, passou a ser chan- tageada e exposta em páginas da internet e redes sociais, as quais foram acessadas por inúmeras pessoas, incluindo-se colegas de escola. As reações na escola foram do isolamento à violência física. Pouco antes de cometer suicídio, Amanda publicou um vídeo relatando o que se passara com ela 10 Menina sofre bullying e apanha na saída da escola em Piracicaba, SP. EPTV. Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2013/09/menina-sofre-bullying- -e-apanha-na-saida-da-escola-em-piracicaba-sp.html>. Acesso em: 03 mar. 2014. 11 JACINTO, Daniela. Caso de bullying faz mãe transferir criança de 11 anos de escola. Jornal Cruzeiro do Sul. Disponível em: <http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia/457156/caso- -de-bullying-faz-mae-transferir-crianca-11-anos-de-escola>. Acesso em: 03 mar 2014. 12 Estudante de 15 anos é morta com facada dada por colega na saída da escola. Hoje em Dia. Disponível em: <http://www.hojeemdia.com.br/noticias/brasil/estudante-de-15- -anos-e-morta-com-facada-dada-por-colega-na-saida-da-escola-1.168909>. Acesso em: 03 mar. 2014. 48 | Diferenças na Educação: outros aprendizados no Youtube,13 no qual afirmava: “Eu não tenho ninguém... Eu preciso de alguém”.14 Figura 5 Amanda Todd, em cena do vídeo que publicou pouco antes de cometer suicídio. No caso do bullying executado pelo(a) docente contra o(a) discente, as formas mais comuns são ações como a intimidação em voz alta que rebai- xe sua autoestima e/ou o(a) intimide. Outras formas de se praticar bullying contra estudantes é usar critérios mais severos de avaliação, com aqueles(as) que são seus desafetos, do que os utilizados com o resto da classe, chegan- do a atribuir propositalmente notas baixas a eles (prática conhecida como “perseguição”) ou os ameaçando de reprovação. Outra forma de assédio escolar executado por docentes é a negação do direito de ir ao banheiro ou beber água (tortura psicológica). Ainda faz parte deste tipo de atitude a difamação do(a) aluno(a) em reuniões pedagógicas ou junto à coordenação/ direção da escola; acusações (falsas) sobre coisas que este(a) não fez; puxões de orelha, tapas e outras torturas físicas (que afetam com mais frequência crianças pequenas). 13 O vídeo publicado por Amanda Todd, com legendas em português, pode ser acessado no endereço: <https://www.youtube.com/watch?v=gikbgGOE5II&feature=youtu.be>. 14 MARQUES, Melissa. Entenda o caso de Amanda Todd, a adolescente que cometeusui- cídio por sofrer bullying. Revista TodaTeen. Disponível em: <http://todateen.uol.com.br/ souassimtt/entenda-o-caso-de-amanda-todd-a-adolescente-que-cometeu-suicidio- -por-sofrer-bullying/>. Acesso em: 15 mar 2014. Diferenças na Escola | 49 Há um caso ocorrido em 2012 nos EUA, em que um professor foi filmado incentivando a classe a agir contra um menino de treze anos, que durante quinze minutos foi arrastado e humilhado. O professor recebeu uma suspen- são de dez dias e foi transferido para outro colégio. Ele se desculpou pelo acontecimento, apesar de ter declarado que “o caso não foi diferente ou mais nocivo do que qualquer outra brincadeira feita por crianças”.15 Em outro caso, ocorrido no Brasil, um estudante de uma escola pública estadual, de dezessete anos, manteve-se em silêncio quando sua professora de geografia iniciou a aula com a oração “Pai-Nosso”. A professora reagiu dizendo que “jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”, uma vez que é de amplo conhecimento que ele é ateu. Em outra aula, o aluno argumentou com a professora que ela estaria desrespeitando o prin- cípio de laicidade do Estado, defendida na Constituição Federal.16 A profes- sora reagiu afirmando que não há lei que a impeça de rezar, algo que faz há 25 anos, e não deixaria de realiza-lo mesmo que o aluno levasse um juiz à sala de aula. Na aula seguinte, o aluno chegou quando a oração estava co- meçando e percebeu que ele tinha sido incluído na oração. Alguns/algumas estudantes, aparentemente com a concordância da professora, substituíram a frase “livrai-nos do mal” por “livrar-nos do Ciel” (seu prenome).17 Todos os casos relatados impactaram negativamente as vidas das vítimas e da comunidade escolar a que pertenciam. A escola, muitas vezes, entra como o locus privilegiado das agressões e violências, mas tende a ausentar- -se de qualquer envolvimento ou responsabilidade com relação ao bullying. Nos casos em que isto acontece na relação entre discentes ou em outras relações, a regra que parece permear a atitude quanto a piadas, agressões, xingamentos ou violências físicas é manter-se distante ou em silêncio. O silêncio e a distância, nesses casos, são preocupantes em vários senti- dos, pois ajudam as violências do cotidiano a se perpetuarem e autorizam os 15 NISZ, Charles. Nos EUA, aluno sofre bullying de colegas e do professor na sala de aula. Blog Vi na internet. Disponível em: <http://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/nos-eua- -aluno-sofre-bullying-colegas-e-professor-201450161.html>. Acesso em: 20 jan. 2014. 16 De acordo com Joana Zylbersztajn (2012), a Constituição Federal não declara que o Brasil é laico, mas suas leis trazem elementos que formam este entendimento. Alguns desses elementos estão expressos pela garantia da democracia, igualdade, liberdade e a separação institucional entre Estado e religião. No entanto, a existência desses prin- cípios na Constituição não garante per se a laicidade na prática. 17 Reação de aluno ateu a bullying acaba com pai-nosso na escola. Revista Fórum. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/04/reacao-de-aluno-ateu- -a-bullying-acaba-com-pai-nosso-na-escola/>. Acesso em: 14 fev. 2014. 50 | Diferenças na Educação: outros aprendizados perpetradores do assédio a seguirem com a prática, já que ninguém interfere. É como se fosse aplicada à escola a lógica que permeia os casos de violência contra a mulher, em que se diz com frequência “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Esta lógica, como sabemos, serve apenas para legitimar o(a) agressor(a) e deslegitimar a vítima, e tende a submetê-la a mais violências, uma vez que a ela não é dado o direito de ser ouvida e nem protegida. Violências e agressões, preconceitos e discriminações, conforme discu- timos, são fruto da desigualdade social, do desrespeito às diferenças e da deslegitimação do outro enquanto sujeito de direitos humanos e sociais. Ao cabo, com a violência, se deslegitima seu modo de vida, seu jeito de ser e sua existência. Os resultados desse tipo de discriminação são danosos: baixa autoes- tima, exclusão, medo, depressão clínica, isolamento social, adoecimentos, suicídios ou, mesmo, mais violência. Os resultados do silêncio sobre as vio- lências, as discriminações e o bullying são suas perpetuações. Para evitar o assédio escolar é preciso que se faça um trabalho preventivo e continuado, assim como demanda abertura para o diálogo e uma escuta aberta para problemas e questões trazidas pelos(as) alunos(as). O mesmo vale para filhos(as) ou quaisquer outras pessoas que possam estar submeti- das a agressões verbais e não verbais. Não se trata de investir em medidas punitivas ou criminalizadoras, mas de reconhecer que a lógica por detrás do bullying é a mesma que se estabelece a partir de todas as outras violências da vida social. A desigualdade, o desrespeito e/ou exclusão das diferenças está intimamente conectada no bullying, como na vida social, com a produ- ção da violência. Ainda, é preciso que todas as pessoas que fazem parte da comunidade escolar estejam envolvidas no processo de discussão das estratégias de com- bate aos preconceitos e discriminações. Não é incomum, na vida social, que uma criança ou adolescente seja incentivada(o) a ser violenta(o). Em certos contextos, a violência é até motivo de orgulho, pois denota que, por exem- plo, um menino se adequa ao perfil de masculinidade e, consequentemente, se afasta do fantasma da homossexualidade. Também não é incomum que crianças e adolescentes sejam incentivadas(os) a revidar agressões ou se si- lenciar, de modo a evitar sua perpetuação. Assim, alunos(as), professores(as), familiares e funcionários(as) da escola devem ser chamados para participar deste diálogo. O bullying atinge todas as pessoas que fazem parte do con- texto em que acontece. Por isso, todos(as) devem estar envolvidos(as) nos Diferenças na Escola | 51 debates sobre sua prevenção e empenhados(as) em evitar a reprodução desta prática. O silêncio acerca da importância da valorização das diferenças e o silen- ciamento acerca dos problemas trazidos até nós pelos(as) outros(as) mem- bros da comunidade escolar constituem-se, por fim, em mais uma violência contra quem já está vitimizado, e a falta de espaço de diálogo e debates, de fala e de escuta impulsiona a reprodução das desigualdades e exclusões, que fundamentam as práticas de bullying. UNIDADE 4 Como lidar com as diferenças no cotidiano escolar? Figura 6 Os conteúdos escolares são, há muito, criticados pela falta de relação com a realidade social e dos(as) alunos(as). Apesar das críticas, eles ainda são reproduzidos sem se dar atenção à questão das diferenças, e as aulas continuam a ser ministradas sem trazer o cotidiano dos sujeitos da escola para a sala de aula. Como uma escola que não valoriza a experiência de seus sujeitos, não as relaciona com os conteúdos escolares, pode ensinar e ser democrática? “Se fosse possível embarcar em uma máquina do tempo, viajar mil anos até o futuro e pousar em uma sala de aula, teríamos dificuldades em reco- nhecer que não estaríamos no presente”. Quando fazia minha graduação em Pedagogia, não era incomum ouvir, de um(a) ou outro(a) professor(a), esta anedota que falava acerca da dificuldade histórica da escola de se reinventar frente aos novos desafios presentes na dinâmica da sociedade atual. Não me lembro mais das exatas palavras usadas para a conta, mas me lembro do que queria dizer, até porque, de forma ilustrativa, ela era sempre comple- mentada com um comentário: “A escola é a instituição que é menos afeita a 52 | Diferenças na Educação: outros aprendizados mudanças em seu modo de funcionamento e visões de mundo. A educação escolar é conservadora e retrógrada”. Hoje, passados quase vinte anos da conclusão de minha graduação, tornei-me professora e me vejo refletindo acerca dessas mesmas questões. E os sentidos da anedota parecem atuais, quase fadadosà permanência, nas escolas e nos processos de escolarização. Por esta razão, o debate pro- posto neste texto (e nos que virão a seguir) torna-se importante e também fundamental, problematizando este sistema de verdades preestabelecidas e seguidas, quase que às cegas, nas rotinas de escolas de muitos lugares do país e do mundo. Ao final deste texto, espero que tenhamos chegado à compreensão de que diferença e desigualdade não são sinônimos. Somos apresentados na escola à noção de que as diferenças são um problema, um empecilho ao ensino, e que, por este motivo, devem ficar de fora da sala de aula, do re- creio, da vida social como um todo (a escola, afinal, faz parte da sociedade). Tendemos a pensar de modo binário em nossa sociedade. Isso quer dizer que dividimos o mundo em bom e mau, masculino e feminino, homem e mulher, certo e errado. Todos(as) aprendemos isto, mas podemos também aprender a questionar estas verdades. Podemos, inclusive, usar o pensamento binário para questionar falsas dicotomias. Dentro da lógica binária, o conceito de Diferença se opõe ao de Identidade. Já o conceito de Desigualdade se contrapõe ao de Igual- dade. Assim, mesmo dentro da lógica binária (que tende a ser excludente), diferença e desigualdades não constituem um par; assim, o problema não é que as diferenças existam e sejam reconhecidas, o problema não é sermos diferentes, não é a diferença: é sermos tratados com desigualdade, termos acessos desiguais a bens sociais como a cidadania. É este quadro, composto no espaço da escola pelas tintas da desigualda- de de acesso, da não garantia de permanência e da não aprendizagem, que precisa ser modificado. Para tanto, nossa prática dentro das escolas deve se pautar pela desconstrução de pré-conceitos e estereótipos. Também se faz necessário formar professores que entendam melhor as diferenças e lidem melhor com ela no cotidiano da escola, e é fundamental discutir por que a escola hoje não é um lugar para as diferenças e de que modo isso fomenta as desigualdades e exclusões. Ainda, é preciso fomentar o diálogo sobre aquilo que não é oficialmente conteúdo da escola, mas que está nela, como Diferenças na Escola | 53 o gênero, a sexualidade, a raça/etnia, as diversas religiosidades etc., de modo a compreender as diferenças e incluí-las ao nosso fazer pedagógico. Precisamos continuamente nos fazer algumas questões, como: Realmen- te, não devemos educar para além de “repassar conteúdos”? Não é mesmo nosso papel, enquanto educadores(as), resolver conflitos e disputas entre alunos(as)? Se somos mediadores(as) de conhecimentos e os conflitos por vezes são decorrentes de conhecimentos diferentes trazidos à escola, por que não seria nosso papel, enquanto docentes, mediá-los? Hoje em dia, quase todas as famílias, pais e mães, trabalham fora e as famílias depen- dem da renda dos dois cônjuges. Em outros modelos de família, há apenas um(a) adulto(a) responsável pelas crianças, que pode ou não trabalhar fora em período integral. Se não há alguém “em casa” (homem ou mulher) que as “eduque”, as crianças não devem ser educadas por mais ninguém porque educá-las “não é papel da escola”? Ao cabo, estas questões nos remetem a outras, sobre as quais convido vocês a refletir ao longo de todo este livro: Qual o papel da escola? Qual o papel do(a) docente? Não seria hora de a es- cola parar de resistir às mudanças dos tempos e adequar-se aos seus novos papéis em nossa sociedade? Precisamos repensar conteúdos, práticas, ações, se quisermos produ- zir uma escola realmente justa, e trocar o silêncio e a ausência confortável dos diálogos pelo desconforto de falar sobre as coisas do cotidiano escolar. É preciso transformar cada comentário jocoso, cada julgamento de valor, cada intervenção agressiva ou preconceituosa em uma oportunidade de desconstruir velhos preconceitos, estereótipos e exclusões e construir uma nova forma de lidar com o conhecimento, com as histórias de vida de todas as pessoas que transitam pela escola, com seu entorno e a vida social. Matérias jornalísticas, livros de literatura, filmes, seriados e desenhos po- dem ser boas fontes de inspiração para um início de conversa, até como for- ma de “quebrar o gelo”. Em algumas situações, será preciso lançar mão de materiais que não falem diretamente de fatos que aconteceram na escola, ou com pessoas que circulam por ela, como estratégia de abordar assuntos delicados sem causar constrangimento. Assim, é importante também que se tomem os cuidados necessários para não expor as partes envolvidas nos casos de discriminação ou bullying publicamente. A ideia é desconstruir vio- lências e preconceitos de forma ética, não criar ou reforçar estigmas dentro das redes de relação social existentes na escola. 54 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Contudo, não expor as partes envolvidas não implica em manter o silên- cio. Para mudar a realidade, precisamos deixar de lado a omissão e enfrentar o diálogo. É só a partir do (re)conhecimento das diferenças como ponto fun- damental de mediação e diálogo que podemos, efetivamente, construir uma prática pedagógica que se paute pela autonomia, pelo respeito, e que seja efetivamente para todos(as). BOX 4 Sugestão de materiais para o trabalho em sala de aula • Mauricio de Souza – Turma da Mônica “Viva as diferenças”. Disponível em: <http://www.cmdca-sl.org.br/wp-content/uploads/2012/10/REVISTA_VIVA_ AS_DIFERENCAS.pdf>. • Ziraldo – Cartilha sobre o trabalho infantil. Disponível em: <http://portal.mte. gov.br/data/files/8A7C812D307400CA013075FBD51D3F2A/trabalhoinfantil- -mte-web.pdf>. • Ziraldo – Cartilha Os Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal. mj.gov.br/sedh/documentos/CartilhaZiraldo.pdf>. • HELPLINE.BR – Página gratuita para crianças e adolescentes que oferece orientação sobre como proceder em casos de cyberbullying. Disponível em: <http://www.safernet.org.br/site/webline>. • Cartilha Helpline.br, para crianças e adolescentes. Disponível em: <http:// www.safernet.org.br/divulgue/banners/cartilha2012-web-150.pdf>. • Documentário “O riso dos outros”, de Pedro Arantes (2012, 52 min) – O documentário trata da questão do Stand Up Comedy, um tipo específico de humor, para discutir a linha tênue entre o que é comédia e ofensa, discutindo a questão da liberdade de expressão e do (des)respeito às diferenças. Disponível em: <http://youtu.be/rRMsLIY2Qhw>. REFERÊNCIAS BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BOURDIEU, P. 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FIGURAS Figura 1 Esta imagem, publicada no livro “Cuidado, escola!”, ilustra como o processo de ensino e aprendizagem tenta colocar dentro de um mesmo molde pessoas que são muito diferentes en- tre si. Fonte: <http://www.uniriotec.br/~pimentel/disciplinas/ie2/infoeduc/escdiferencas.html>. Acesso em: 14 jul. 2013. Figura 2 Por esta ilustração do livro “Cuidado, escola!” podemos refletir sobre qual o lugar das diferenças nas vivências escolares, ou seja, como a escola busca deixá-las de fora de seus deba- tes e espaços porque não as considera como fator importante dentro dos processos de ensino- -aprendizagem. Fonte: <http://gepepi.net/2011/10/24/o-mundo-nao-e-esta-sendo/>. Acesso em: 14 jul. 2013. Figura 3 Tela “Operários”, de Tarsila do Amaral (1933), que contempla a diferença étnico-racial da sociedade brasileira. As expressões austeras, de olhar fixo, nos lembram das dificuldades inerentes ao trabalho fabril. Com outro cenário ao fundo, a imagem poderia fazer também se referir à pluralidade de sujeitos presentes nas escolas brasileiras, pluralidade esta raramente representada nos materiais didáticos e nas práticas escolares cotidianas. Fonte: <http://2. bp.blogspot.com/-J4Ar1955lUo/TbYvvOsWauI/AAAAAAAABXI/fxdTkyCB7ig/s1600/opera- rios.jpg>. Acesso em: 17 mar. 2014. Figura 4 Ilustração do cartunista Ziraldo para a cartilha do Ministério da Justiça “Os direitos humanos”. Fonte: <http://portal.mj.gov.br/sedh/documento>. Acesso em: 17 mar. 2014. Figura 5 Amanda Todd, em cena do vídeo que publicou pouco antes de cometer suicídio. Fonte: <http://todateen.uol.com.br/tt/wp-content/uploads/2012/10/Video-Amanda-Todd.jpg>. Acesso em: 15 mar. 2014. Figura 6 Os conteúdos escolares são, há muito, criticados pela falta de relação com a realidade social e dos(as) alunos(as). Apesar das críticas, eles ainda são reproduzidos sem se dar atenção à questão das diferenças, e as aulas continuam a ser ministradas sem trazer o cotidiano dos sujeitos da escola para a sala de aula. Como uma escola que não valoriza a experiência de seus sujeitos, não as relaciona com os conteúdos escolares, pode ensinar e ser democrática? Fonte: <https://arquivopublicors.files.wordpress.com/2013/08/2013-08-14-xaxado-a-cedraz.jpg>. Acesso em: 14 jul. 2013. TABELAS Tabela 1 Número de alunos que relataram ter visto colegas serem maltratados no ano de 2009 e frequência dos maus-tratos observados. Fonte: tabela sobre “Alunos que viram colegas serem maltratados no ano de 2009” do relatório final da pesquisa Bullying escolar no Brasil” (2010, p. 24). Tabela 2 Número de alunos que relataram ter sofrido maus-tratos e frequência com que isso teria ocorrido. Fonte: tabela sobre a “Frequência dos maus-tratos no ano de 2009 (vítimas)” do relatório final da pesquisa Bullying escolar no Brasil” (2010, p. 27). 2 Religiosidades e Educação Pública Tiago Duque Figura 1 A diversidade humana e as múltiplas expressões do sagrado. “Religiosidades e educação” é uma temática instigante e envolve opi- niões muito diversas. Aqui nos propomos discuti-la no viés da valorização da diferença cultural religiosa e na busca do fortalecimento da laicidade do Estado. Nossa reflexão está dividida da seguinte maneira: Unidade 1: Estabelecendo o diálogo Introduzimos o tema partindo do reconhecimento da importância da religião para a maior parte da população brasileira. Em seguida, apresenta- mos dois conceitos importantes para que possamos atingir o nosso objetivo: etnocentrismo e relativismo. Dessa maneira, estabelecemos o diálogo com você no sentido de problematizar a temática em um viés socioantropológico. 60 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Unidade 2: Viva a nossa diferença cultural religiosa! Partirmos, nessa segunda parte, de um documento histórico importante para pensar, desde o século XVI, as tentativas de reconhecimento da dife- rença cultural religiosa no Brasil. Deixando clara a nossa intencionalidade em facilitar a promoção da “justiça religiosa”, destacamos as origens da liberdade religiosa e a laicidade no país. Discutimos o sincretismo religioso e a realidade de desigualdade em que se deu o fenômeno religioso no Brasil. Unidade 3: Se somos diversos, por que não aceitar as nossas diferenças? A partir de dados estatísticos, demonstramos a diferença religiosa na contemporaneidade e damos destaque aos discursos contrários ao embate e à disputa religiosa. Citamos o movimento ecumênico e macroecumênico no sentido de apresentar direcionamentos para uma perspectiva de abor- dagem do tema religiosidades na escola. Finalizamos essa parte do capítulo com o contexto do Ensino Religioso no Brasil atual. Unidade 4: E agora? Por onde começar? Apresentamos sugestões de como atuar em sala de aula com a temáti- ca da religiosidade em uma perspectivalaica, no sentido de desconstruir a ideia “religião não se discute”. São apresentados possíveis recursos didáti- cos e algumas orientações práticas (metodológicas) para facilitar o trabalho. Finalizamos o capítulo com várias dicas de fontes e materiais que podem ser usados para aprofundar o tema. Nossa torcida é para que a leitura do capítulo motive a continuidade das buscas por mais informações. Boa leitura! Religiosidades e Educação Pública | 61 UNIDADE 1 Estabelecendo o diálogo No Brasil, metade da população frequenta cultos religiosos de algum credo e 89% dela considera a religião como algo importante, colocando o país em 60o lugar em uma lista de 156 nações. Esses dados estão na pesqui- sa “Novo mapa da religião”,18 organizada pela Fundação Getulio Vargas. A mesma pesquisa aponta as mulheres como as maiores frequentadoras dos cultos religiosos no Brasil (57%). No que se refere à classe social, os extremos são os que aparecem com maior porcentagem em relação a não ter religião, sendo 7,72% da classe E e 6,91% das classes A e B. Em termos de idade, são as pessoas com mais de 50 anos (58%) que mais vão aos espaços e atividades religiosas no país. No entanto, é alto o número de jovens entre 15 e 24 anos que frequentam essas atividades (41%) e/ou que avaliam a religião como algo importante (83%). Em um país com essas características, não podemos concordar com pensamentos generalizantes do tipo: “A religião deixou de ser importante para as pessoas” ou “A juventude não se importa com a religião”. É preciso, cada vez mais, compreender o fenômeno religioso e o quanto ele está impli- cado em questões que envolvem tantas outras dimensões da nossa cultura na contemporaneidade. Evidentemente que essa dimensão religiosa da cultura não se afasta das instituições, sejam elas de deliberações políticas (municipais, estaduais e federais), de práticas educacionais (formais e não formais), ou até mesmo do cuidado com a saúde (dos costumes populares aos grandes hospitais especializados). No que se refere ao espaço escolar, que é o nosso foco neste livro, a reli- gião está além das aulas de Ensino Religioso. Por exemplo, o espaço escolar não é neutro em termos religiosos. As práticas envolvendo religiosidade estão naturalizadas de diferentes formas em muitas escolas, e isso, como sabemos, faz parte da “nossa cultura”. Contudo, as expressões de fé são inumeráveis em um contexto tão diversificado religiosamente como o nosso e, certamente, jamais caberão 18 Essa pesquisa foi divulgada em 2011, utilizando-se de dados do Censo Demográfico de 2000, realizado pelo IBGE, Pesquisa de Orçamento Familiares de 2003 – também de responsabilidade do IBGE e do Gallup World Poll. 62 | Diferenças na Educação: outros aprendizados todas representadas no espaço escolar. Então, a quais experiências culturais estamos nos referindo quando identificamos e reconhecemos a presença de elementos e práticas religiosas nas escolas públicas brasileiras? E quais são as expressões culturais religiosas que ficam invisibilizadas ou marginalizadas quando apenas algumas são valorizadas e defendidas? Normalmente o que se identifica com facilidade nas escolas são as ori- gens culturais religiosas que estão diretamente ligadas à história de colo- nização cristão-europeia que demarcou a formação da nossa experiência enquanto nação. Pela própria forma de evangelização que se constituiu ao longo dos séculos em terras brasileiras, as expressões de fé na escola estão comumente ligadas às práticas valorizadas ao longo do tempo como as mais adequadas, legítimas, apropriadas ou mesmo difundidas enquanto univer- sais, como é o caso da oração do Pai-Nosso, frequentemente associada a “uma oração que todo o mundo reza”, “neutra” ou “que está em todas as religiões”. Além das práticas propriamente ditas, há também toda uma simbologia religiosa que comumente se encontra nas escolas. Façamos um exercício imaginativo para que possamos ver o que alguns símbolos representam quando estão presentes no espaço escolar. Vamos nos colocar no lugar de uma pessoa que irá visitar uma escola, mas que, de modo algum, está fami- liarizada com o ambiente escolar. Ao chegar, pode avistar a coleção de troféus, que durante décadas foi sendo formada pela conquista de várias gerações de alunos e professores empenhados e vitoriosos na prática e competição esportiva. Essa pessoa pode pensar: “Nossa, aqui tem muitos campeões” ou “Que legal, o pessoal é muito dedicado à prática esportiva”. Ela também pode se deparar com uma série de quadros com fotogra- fias antigas, dos primeiros diretores, deixando exposto um período histo- ricamente importante para aquela instituição, e pensaria: “O pessoal aqui valoriza bastante a sua história” ou “As pessoas respeitam aqueles que co- meçaram a administrar esta escola”. Podemos imaginar ainda, no lugar dessa pessoa, que vamos encontrar assim que chegarmos à escola um enorme quadro com a patrona, aquela autoridade que deu nome ao local, demarcando quanto a identidade da es- cola tem a ver com as ações e história de vida daquela personagem histórica. Essa pessoa poderia então chegar à seguinte conclusão: “Eles se identificam Religiosidades e Educação Pública | 63 com ela, ensinam sobre quem ela foi” ou “Ela deve ser uma mulher exemplar para os alunos”. Há também a possibilidade de se avistar uma série de cartazes ou ma- quetes feitas pelos alunos de determinado período, cuidadosamente expos- tos para que qualquer visitante possa ver o que se produziu naquela semana ou naquele mês. Esse visitante imaginário pensaria: “As professoras traba- lham bastante com os alunos” ou “Os alunos daqui são criativos, dedicados e caprichosos”. Se tudo isso informa e dá significado ao espaço, mostrando caracterís- ticas importantes daquele lugar, bem como de parte das pessoas que ali estão trabalhando ou estudando, ocorre o mesmo com os elementos re- ligiosos, como imagens sacras, crucifixos, frases bíblicas ou com a própria Bíblia. Agora, e se essa pessoa que estamos nos imaginando no lugar dela não se identificar com nenhum dos símbolos religiosos que estão na escola? Se esses símbolos não lhe significasse o mesmo que significa para os fun- cionários que os colocaram ali ou os mantiveram carinhosamente expostos? Qual o sentimento e a quais conclusões você, no lugar dessa pessoa, pode- ria chegar? Um exercício importante para todo educador é este da situação imagi- nária acima, o de se colocar no lugar do outro. Mas aqui não é um apelo para que se procure sentir a dor do outro, se compadecer dele, tentar passar pelo que ele passa. Não se trata de um exercício espiritual, defendido em várias religiões como uma prática que nos levaria a sentir mais compaixão. Não, não se trata disso. O colocar-se no lugar do outro aqui é algo que nos leva a importantes estranhamentos em termos culturais, mas ao revés, partindo do que supostamente o outro viveria sendo diferente de você. É o se perceber outro, deslocado, meio sem jeito, diferente de uma suposta maioria. Nas ciências sociais, há uma crítica importante para nos alertar do quanto é fundamental para compreendermos e reconhecermos a diferença cultural, mudarmos de posição: a crítica ao etnocentrismo.19 Essa palavra significa o que não se deve ser, isto é, julgar sempre a partir da sua experiência, do seu próprio conjunto de valores e supostas verdades, aquele que não é do seu grupo ou como você. Everardo P. Guimarães Rocha afirma que o etnocentrismo pode ser visto tanto no plano intelectual como no afetivo. No primeiro, pode ser entendido 19 Anna Paula Vencato apresenta essa crítica no primeiro capítulo deste livro. 64 | Diferenças na Educação: outros aprendizados como a dificuldade de pensarmos a diferença; já no segundo, é o sentimento de medo, hostilidade etc. Muitas vezes, essa postura leva à violência, e, pa- ralelamente a isso, há o “pressuposto de que o ‘outro’ deva ser alguma coisa que não disfruteda palavra para dizer algo de si mesmo”.20 Durante muitos anos, de forma diferente das de hoje, alguns grupos religiosos não tiveram o direito à palavra para se referirem a si mesmos. No período da escravidão no Brasil, por exemplo, os negros não estavam autori- zados a professarem suas práticas e ritos sagrados de raízes africanas. Hoje, apesar de todas as transformações sociais e culturais, sabemos que muitas pessoas também têm dificuldades em se assumirem publicamente de uma religião que tem o histórico de não ser reconhecida com respeito, ou mesmo de se assumirem enquanto ateias por temerem rechaços e discri- minações. Logo, ainda existe, do ponto de vista de quem tem uma prática religiosa tida como menos valiosa ou por quem não tem religião, uma não autonomia – se não do ponto de vista legal, agora por constrangimento – para se referir a si mesmo em espaços públicos. Não ser etnocêntricos nos ajuda muito a lidar com o tema da religião nos espaços escolares. As posturas não etnocêntricas devem ser ensinadas, aprendidas e exercitadas na escola, porque, como sabemos, ela é um lugar de convívio com as diferenças, inclusive religiosas. A prática não etnocêntrica nos aproxima de outra contrária a ela e bas- tante importante, que nem sempre é bem compreendida: o relativismo. Quando vemos que as verdades são menos uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição: estamos relativizando. Quando o significado de um ato é visto não na sua dimensão absoluta, mas no contexto em que acontece: estamos relativizando. Quando compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos: estamos relativizando. [...] Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferente.21 Alguns criticam o relativismo pensado que “com ele nada é proibido”, “ninguém pode criticar ninguém”, “temos que aceitar tudo para não sermos etnocêntricos”. Isso não é verdade. O relativismo não é a ausência de críti- cas, ou a negação dos valores do grupo de quem está relativizando, nem 20 Rocha (2006, p. 10). 21 Rocha (2006, p. 20). Religiosidades e Educação Pública | 65 mesmo é um deixar de pensar como se pensa para pensar do jeito que o outro pensa. Mas, sem dúvida, se soubermos nos colocar no lugar do outro para procurar compreendê-lo sob suas próprias lógicas, além de compre- ender as diferenças humanas, saberemos ponderar as críticas aos costumes do “outro”, assim como seremos capazes de olhar de forma mais crítica aos nossos próprios hábitos. Passaremos a nos compreender melhor pelo enten- dimento da diferença, estaremos mais próximos do desafio de conviver com o diferente compreendendo-o criticamente, de forma contextualizada e sem nos tomarmos como detentores da única verdade. Assim, etnocentrismo e relativismo são conceitos importantes para um tema como “Religiosidades e Educação Pública”. Mas, é claro, aqui são usa- dos na perspectiva de crítica à prática etnocêntrica em buscar de um relati- vismo que nos faça pensar a realidade cultural religiosa e o espaço escolar de maneira a valorizar e reconhecer as diferenças. Isso não deve ser visto como uma ameaça ao grupo do “eu”, isto é, de quem está se propondo a não ser etnocêntrico, a relativizar. Nem mesmo pode ser tomado como um perigo aos valores já estabelecidos, desde que esses valores não estejam acomodados a ideias excludentes ou ameaçadoras à valorização da dife- rença cultura religiosa. Relativizar não significa abandonar aqueles valores religiosos que em muito têm contribuído para a vivência dos direitos hu- manos e também para a convivência com o diferente. Em última instância, não podemos entender relativismo como algo necessariamente oposto ao fenômeno religioso, mas como uma oportunidade de melhor compreensão e valorização do direito de todos terem (ou negarem ter) uma religião. Neste capítulo, a crítica ao etnocentrismo e o apelo relativista são enten- didos como ferramentas para a abordagem da questão religiosa na escola, são entendidos como uma possibilidade de visibilizar e enfrentar as desi- gualdades culturais construídas historicamente, que são ameaçadoras à va- lorização das religiões, especialmente as não hegemônicas. Além disso, con- tribuem para a compreensão da dimensão cultural a partir da constituição das diferenças religiosas como uma característica da própria humanidade. Essa perspectiva se faz necessária porque sabemos que crispações fundamentalistas, comunitarismos identitários exacerbados, intolerâncias advindas da autoatribuição de um “povo eleito” a um segmento humano ou até mesmo a autoafirmação de uma versão “verda- deira”, concepções de liames intrínsecos entre religião e nação e/ou etnias, 66 | Diferenças na Educação: outros aprendizados já conduziram a inúmeras formas de violência e de guerras religiosas.22 Essas violências e guerras religiosas, e o que historicamente herdamos desses processos que hoje nos fazem menos acolhedores da diferença cultural religiosa na Escola (e também fora dela), são o oposto da própria noção da origem etimológica da palavra “religião”, que vem do verbo latino religare (re-ligare). Para uns, a religação é um retorno ampliado a uma comunhão cósmica e telúrica. Para outros, o surgimento da vida, o encantamento com o céu estrelado e com a consciência interior de cada qual inspiraram postular a passagem do universo terreno ao universo da transcendência ou, em outros termos, no encontro do outro com o Outro. Esta passagem – para uns, uma questão de argumento lógico, para outros um salto na fé – significou o aparecimento de múltiplas modalidades de expressar a religação do homem com o Transcendente. Ao mesmo tempo, tal religação foi a oportunidade para que muitos também expressassem um humanismo radical no âmbito exclusivo da terrenalidade e da temporalidade.23 Assim, pretendemos aqui refletir criticamente não no sentido de negar a importância da religião, mas, antes, de problematizar o quanto podemos, a partir dela, garantir espaços mais democráticos e valorativos da diferença cultural religiosa no contexto escolar. Para isso, precisamos compreender a realidade cultural religiosa como passível de ser intencionalmente transformada, afinal, caberia, em muitos contextos, intervenções para mudar o rumo excludente ou marginalizador das histórias das religiões não hegemônicas. Essa transformação intencional nos parece importante ser abordada porque, de qualquer modo, mudanças continuarão ocorrendo, como tem sido desde sempre, inclusive para além da própria questão religiosa. Dito de outro modo, não podemos, de forma alguma, evitar mudanças e transformações, porque, afinal, é próprio das ex- periências culturais a não fixidez e a dinamicidade dos acontecimentos, dos significados e das definições sobre todas as dimensões da experiência huma- na. Sendo assim, que as mudanças possam ser minimamente direcionadas 22 Cury (2004, p. 188). 23 Cury (2004, p. 188). Religiosidades e Educação Pública | 67 a uma realidade menos excludente e opressora em termos religiosos, espe- cialmente no espaço escolar. Ficamos totalmente à vontade para nos posicionar nessa direção por- que, como veremos, está dado que é esse o respaldo legal que um Estado laico, como o nosso, nos coloca. Aí também se encontra a motivação para a valorização do nosso tema, afinal, é preciso reconhecer que o Estado é laico, mas as pessoas são religiosas. E, sendo a religião uma dimensão da vida das pessoas, algo que não se tira e guarda em casa e sai para ir à escola (seja por parte de quem ensina ou por parte de quem aprende), portanto, um elemento cultural, é possível de ser refletido e estudado no sentido de pensarmos intervenções críticas e ao mesmo tempo valorativas das suas di- ferentes expressões. UNIDADE 2 Viva a nossa diferença cultural religiosa! Muitos podem pensar que a questão religiosa no Brasil se deu sempre einegavelmente de maneira etnocêntrica e nada relativista. Mas, em termos de religião, sempre precisamos ficar atentos aos sinais de rupturas e contes- tação, ou, em contexto de pouca radicalidade, às posturas menos alinhadas às práticas e valores tidos como mais hegemônicos ou centrais. A reflexão sobre os registros históricos sempre nos ajudam a olhar para a religião, como para outras dimensões da nossa experiência cultural, de maneira menos ingênua e ao mesmo tempo mais crítica. Se voltarmos ao tempo dos encontros dos europeus com os indígenas brasileiros, temos um importante documento que nos faz entender que, desde o século XVI, é possível praticar ou, pelo menos, nos aproximar de uma postura menos etnocêntrica e mais relativista em termos de religião e cultura, neste caso levando em consideração uma pessoa assumidamente religiosa. O francês Jean de Léry (1534-1613), pastor calvinista, chegou ao Brasil bastante jovem. Saiu de Paris em novembro de 1556 e aportou na Baía de Guanabara, Rio de Janeiro, com 21 anos. Devido a conflitos político-religiosos com um grupo que aqui estava, foi obrigado a se refugiar junto aos índios Tupinambá. Da experiência com os índios frutificou um diário, onde anotou 68 | Diferenças na Educação: outros aprendizados detalhadamente parte dos comportamentos dos Tupinambá, especialmente o que se referiria a um tema que até os nossos dias se torna um desafio ao exercício relativista: o canibalismo – que trataremos mais adiante. Ele voltou à França menos de um ano depois de ter chegado ao Brasil, iniciando sua viagem de volta à Europa em janeiro de 1558. Lá, os conflitos entre católicos e protestantes haviam aumentado ao ponto de viverem em uma guerra. Parte dos conhecimentos sobre sobrevivência que Léry apren- deu com os Tupinambá na floresta foram ensinados por ele a outros france- ses, considerando o contexto de conflito religioso da época, como a sobre- vivência com alimento em escassez. Mas o que parece historicamente de maior valor é a maneira como ele apresenta a cultura indígena aos europeus. Em um período em que os europeus tinham dificuldades em reconhecer a humanidade (logo, a cultura) dos povos indígenas (como de outros povos diferentes deles), a forma diferenciada como Léry observou e registrou o comportamento dos indígenas brasileiros, ainda que em alguns momentos tenha reproduzido o vocabulário etnocêntrico, facilitou a compreensão na- quela época do quanto diversa é a experiência cultural humana. Os relatos sobre o que havia vivido e observado junto aos Tupinambá foram publicados pela primeira vez, depois de certa insistência dos amigos e alguns percalços, em 1578. O momento da publicação desse documento foi importante porque nesse período também circulavam pela Europa relatos de religiosos católicos bem diferentes desses de Léry, ou seja, levantando informações nada favoráveis ao reconhecimento da experiência cultural indí- gena brasileira, isto é, bem longe de qualquer interpretação supostamente relativista. O jovem pastor relatou, entre outras façanhas, a forma como os indí- genas capturavam vivo o inimigo mais forte, o levavam para a aldeia deles e o tratavam muito bem (com comidas, bebidas e também mulheres), mas tanto o capturado como os que o capturavam sabiam o que estava por vir. Léry relata o ritual, cheio de detalhes, que se passava dias após a prisão do inimigo: a forma de matá-lo, de cortar os pedaços, de preparar a carne e de se alimentar dela são descritos em meio a provocações do tipo: “Não se esqueçam os leitores do que se pratica entre nós”, ou “O que se passou na França não foi horrendo, pior do que trato aqui?”. Léry fez referência à forma como se assassinava nos conflitos na Europa do seu tempo, contrapondo os valores dos violentos assassinos europeus com informações sobre o significado cultural da antropofagia indígena. Eles Religiosidades e Educação Pública | 69 se alimentavam da carne do inimigo capturado e a devoravam porque este também tinha feito o mesmo com os mais fortes dos seus. Sendo assim, não era só um gesto de ódio e vingança, mas também de realimentação da força dos seus antepassados contida naquela carne que agora lhes servia de alimento. O que Léry percebeu e relatou é que essa prática também de- monstrava parte das crenças dos indígenas, a ligação que buscavam ter com os seus antepassados mais guerreiros. Ele termina o capítulo referente a esses rituais da seguinte maneira: Não abominemos portanto demasiado a crueldade dos selvagens an- tropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não mais, e mais detestáveis do que aquelas que só investem contra nações ini- migas de que têm vingança a tomar. Não é preciso ir à América, nem mesmo sair de nosso país, para ver coisas tão monstruosas.24 Figura 2 Publicação de 1586 dos registros de Jean de Léry em Genebra. 24 Léry (1961, p. 184). 70 | Diferenças na Educação: outros aprendizados A intencionalidade de Léry em publicar seu diário depois dos vários anos que viveu suas experiências junto aos indígenas, e o estilo de escrita utiliza- do, estava demarcada pelo contexto político-religioso da sua época. Esse religioso era, como nós, uma pessoa historicamente situada, ainda que com posturas que muitos apontam como diferente das do seu tempo exatamente por ter podido se aproximar do que chamamos hoje de relativismo cultural. Por isso, não se trata de apostar em um jovem calvinista desprendido de interesses políticos ou fora das relações de poder e tensão que sua época o permitia viver. Isso é importante de ser destacado porque reconhecemos que hoje também temos os nossos interesses, tanto nós que escrevemos este livro como vocês leitores, especialmente diante de temas tão envolventes e mobilizadores de polêmicas como estes vinculados à diferença e ao seu reconhecimento. Aqui, portanto, nossa intencionalidade é promover uma reflexão crítica que em última análise garanta a igualdade entre as religiões, especialmente no que se refere ao campo da educação. A busca pela igualdade religiosa parte do princípio de que a liberdade de crença é um direito fundamental. No entanto, o direito de não ado- tar religião alguma ou de seguir religiões minoritárias é desigualmente distribuído. A liberdade de crença deve vir acompanhada de um sério compromisso político com a igualdade religiosa entre os grupos, em uma determinada sociedade, a fim de que não haja privilégios injustos por razões históricas, demográficas ou culturais. Não se trata apenas de uma questão de quais direitos são justos (e o direito à liberdade de consciência é um deles), mas também de igualdade de direitos entre os grupos religiosos.25 A liberdade de crença se constituiu no Brasil à luz dos valores republi- canos no final do século XIX. Nessa mesma época ocorreu legalmente a laicidade do Estado, isto é, a separação entre Igreja e Estado, neste caso, a Igreja Católica – que era a religião oficial da Constituição Imperial. Desde então, o Estado brasileiro se caracteriza oficialmente pela pluriconfessiona- lidade e, até os dias atuais, busca-se vencer o desafio de garantir a justiça entre as religiões para o igual direito à representação cultural. 25 Diniz & Lionço (2010, p. 25). Religiosidades e Educação Pública | 71 Para conquistar essa representação igualitária, precisamos problemati- zar a forma como comumente alguns pensam o tratamento igualitário. Er- roneamente pode-se pensar que tratar igual é não dar mais atenção a um em detrimento do outro, ou, no caso da escola, muitos acreditam que o contexto cultural religioso não deve sequer ser abordado em sala de aula. Mas se estamos vivendo em uma realidade desigual para religiões não reco- nhecidas ao longo da nossa história como legítimas, e sequer “verdadeiras”, como podemos não discutir esse assunto se pretendemos construir uma educação e um país mais igualitário? Em um contexto de desigualdade cultural religiosa como o nosso, nãonos cabe nos silenciar diante dos processos de marginalização da fé de gru- pos minoritários ou tidos como “muito diferentes”. Não se trata de buscar culpados e tecer julgamentos históricos que impeçam o diálogo e a valoriza- ção também dos grupos majoritários, ou mais bem avaliados em termos de cultura religiosa, mas é preciso estudar a história e os processos de exclusão e inclusão dos segmentos religiosos e avaliar criticamente a realidade para que possamos educar em prol da diferença cultural religiosa. Uma educa- ção crítica e comprometida com as diferenças pode gerar atitudes menos discriminatórias, logo mais justas e democráticas. Então, frequentemente, precisaremos visibilizar determinados grupos subalternos em detrimentos de outros, porque a forma como as relações religiosas se deram no país invisibilizou e desclassificou alguns em detrimento de outros. Antes da criação da laicidade enquanto um dispositivo jurídico no país, usou-se do “artifício do domínio”, aquilo que aparece concretamente sob disfarce no encontro de povos diferentes, isto é, o trabalho de tornar o outro mais igual a mim para colocá-lo melhor a meu serviço. Segundo Antônio Carlos Rodrigues Brandão, ao escravo trazido nas caravelas se batizava no porto de chegada. A consciência ingênua acreditava com isso salvá-lo. Mas o senhor que atribuía ao negro servo um nome de branco, cristão, em troca do nome tribal do lugar de origem, sabia que a água do batismo era apenas uma porta líquida de entrada na redução necessária das diferenças que tor- nam eficazes os usos da desigualdade. É importante que o escravo fale a língua do senhor para compreendê-lo e saber obedecer. É preciso que possua a mesma fé, para que no mesmo templo faça e refaça as mesmas promessas de obediência e submissão aos poderes ocultos da ordem social consagrada. Promessas que o senhor paga com a festa e 72 | Diferenças na Educação: outros aprendizados o servo com o trabalho.26 Esse histórico nos faz valorizar o quão importante foi a transformação do país em um Estado laico; afinal, trouxe ganhos significativos para a diferen- ça cultural religiosa. Ter a legislação como grande alicerce pró-diferenças é algo precioso para a multiplicidade das práticas religiosas, assim como para a proteção dos direitos daqueles sem religião. Afinal, a laicidade nos permite organizar as instituições públicas (da saúde, da educação, cultural etc.) separadas dos valores religiosos dessa ou daquela crença. No entanto, os conflitos e as tensões, assim como as desigualdades, não se resolvem exclusivamente via legislações, e, além disso, as transformações radicais que mudam as posições dos grupos que têm ou não o poder hege- mônico não acontecem da noite para o dia. Aí está mais uma vez a neces- sidade de construirmos espaços de ensino e aprendizagem para que essa legislação de fato se cumpra. Visibilizar essa história, pensando em como valorizar as experiências re- ligiosas tidas como não hegemônicas, e ao mesmo tempo mostrar como as religiões que estão em situação de maior poder ou legitimidade se consti- tuíram em contextos nacionais, é uma forma de fazer com quem crianças e jovens compreendam a importância da necessidade de valorizar a diferença religiosa nos dias atuais. A história de escravidão do povo africano em terras brasileiras e o con- tato com os povos indígenas que sobreviveram à dizimação nos contextos coloniais demarcaram a nossa experiência cultural, inclusive na dimensão religiosa. Para entendermos o quanto somos diversos e o quanto é preciso visibilizar e reconhecer essa diferença, tomemos o caso do cristianismo, es- pecialmente o católico. A prática de muitos fiéis católicos traz como legado a influência das religiões dos indígenas e também dos negros, além de religiosidades que surgiram da mistura ao longo do tempo entre colonizadores, indígenas e escravos, e não para de ser influenciada por outras religiões cristãs e pela própria cultura secular, isto é, pelos valores e interesses não religiosos tão frequentes na modernidade. O que se percebe no presente, e desde muito tempo, é que o cristia- nismo à brasileira é sincrético. Ele não somente disseminou, mas também incorporou elementos culturais das outras religiões presentes aqui ao longo 26 Rodrigues (1985, s/p). Religiosidades e Educação Pública | 73 do tempo. Até hoje pode-se pertencer a alguma religião de matriz africana e ir à missa ou se assumir católico, mas participar de rituais reconhecidos como não cristãos. Esse processo de trocas marca a nossa experiência religiosa, e isso porque os elementos culturais não são simplesmente disseminados, mas ressignificados no contexto em que está sendo divulgado. Vejamos também o caso da Pajelança Cabocla, muito popular na Ama- zônia rural, constituída por um conjunto de práticas de cura xamanística que tem origem em crenças e costumes dos antigos índios Tupinambá, sincreti- zados pelo contato com o branco e o negro desde pelo menos a segunda metade do século XVIII. Segundo o pesquisador Raymundo Heraldo Mauiés, “seus praticantes, entretanto, não se veem como adeptos de uma religião diferente, considerando-se ‘bons católicos’, inclusive os pajés ou curadores que presidem as sessões xamanísticas”.27 A pajelança, na região onde é praticada, tem importantes contribuições para o campo da saúde, nos ensinando o quanto a questão da fé não é isolada de outras dimensões cotidianas da nossa experiência cultural. Ao contrário do que ocorre no caso da medicina ocidental, forjada dentro da tradição individualizante, a pajelança, como outras medicinas popu- lares da Amazônia e de outras partes do mundo, assume, através dos métodos de tratamento do pajé, um caráter “holístico”, totalizante, que também é condizente com a ideologia dos sujeitos populares que a pro- curam para tratar-se de seus males físicos e tentar resolver seus conflitos psíquicos, assim como seus problemas nas relações interpessoais.28 Portanto, os elementos culturais não chegam a um lugar vazio de sig- nificação; logo, são interpretados conforme as tensões, os interesses, as necessidades e as relações estabelecidas no novo ambiente. Essa lógica cultural serve para entender as nossas diferenças, em sua riqueza simbólica e ritualística, mas também nos ajuda a compreender sob quais convenções de poder e hierarquização as religiões aqui se estabeleceram e aqui mantêm suas práticas: afinal, o sincretismo se deu a partir de contextos de violência religiosa, de não reconhecimento das diferenças e da necessidade de manu- tenção criativa da fé das pessoas. O espiritismo kardecista é outro exemplo disso, e, mais, nos indica o quanto determinadas religiões não foram simplesmente modificadas em 27 Maués (1994, p. 75). 28 Id. ibid., p. 80. 74 | Diferenças na Educação: outros aprendizados nossos contextos nacionais, mas, no processo de internacionalização dos elementos culturais, se tornaram referência importante a partir do nosso jeito de praticá-las. O espiritismo de Allan Kardec foi introduzido no Brasil por modismo importado da França, na segunda metade do século XIX, ainda durante o Império, mas logo se tornou uma alternativa religiosa de vanguarda cujo charme estava em sua singular conjugação entre ciência experi- mental e fé revelada, associada a um anticlericalismo que agradava a um público de opositores ilustrados do Império, notadamente os aboli- cionistas e republicanos.29 Seus praticantes se reuniram de forma associativa, dando origem à Federação Espírita Brasileira, que é a responsável hoje pela transnacionali- zação das práticas espíritas brasileiras em comunidades latino-americanas, hispânicas, portuguesas e na diáspora brasileira no exterior. O que podemos compreender do que pesquisou Lewgoy é que o suces- so dessa prática não é só o teor nacionalista – de oposição à Igreja Católica, logo, contra o Império e pró-valores republicanos –, considerando a origem da sua vivência em terras brasileiras,como já citado no parágrafo anterior, mas, sobretudo, o resultado do sincretismo com a Igreja Católica, especial- mente no que se refere: 1 – à valorização da caridade; 2 – ao atendimento assistencialista aos pobres; 3 – à ênfase numa “religiosidade interior” acima de “rituais vazios”; e 4 – à implantação de alguns cultos familiares. Assim, se quisermos entender o fenômeno religioso para pensar uma educação democrática e verdadeiramente laica em contextos nacionais, precisaremos partir de uma noção de cultura religiosa construída em con- textos de hierarquias e desigualdades que se fundamente na ideia de não fixidez, que valorize as mudanças e não avalie os elementos culturais como simples reproduções. 29 Lewgoy (2008, p. 86-87). Religiosidades e Educação Pública | 75 BOX 1 O que é e o que não é Estado laico Durante o X Seminário LGBT do Congresso Nacional, realizado em Brasília em maio de 2013, Débora Diniz apresentou dez afirmações sobre o que é e o que não é Estado laico. O objetivo foi abordar tensões teóricas e práticas sobre a questão da laicidade. A seguir, as afirmações da autora: O que não é o Estado laico: • O Estado laico não é um Estado ateu. • O Estado laico não persegue as religiões. • O Estado laico não delega o cumprimento de seus deveres para as comunidades religiosas. • O Estado laico não é um Estado pluralmente teocrático. • O Estado laico não financia comunidades religiosas para atos de proselitismo religioso. O que é Estado Laico: • O Estado laico é que nos garante a liberdade de pensamento. • O Estado laico é que nos protege da perseguição religiosa. • O Estado laico é que nos protege do discurso do ódio. • O Estado laico é que nos protege da hegemonia moral da maioria. • O Estado laico é que demarca a fronteira entre religiões e funcionamento do Estado. O texto completo da autora pode ser conferido em: <http://www.sertao.ufg.br/ uploads/16/original_Dez_palavras_sobre_laicidade_Diniz.pdf?1371953970>. 76 | Diferenças na Educação: outros aprendizados BOX 2 Constituição Federal de 1988 Art. 5o VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a prote- ção aos locais de culto e a suas liturgias; VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obri- gação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. Art. 19 É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de in- teresse público; UNIDADE 3 Se somos diversos, por que não aceitar as nossas diferenças? Júlia tem 11 anos e surpreendeu a todos quando chegou à escola em uma segunda-feira de manhã com a cabeça raspada. Contou, sem muitos detalhes aos amigos que estava doente e que o tratamento a fazia perder os cabelos. Todos se comoveram. A professora ficou preocupada e procurou os pais de Júlia para conversar. Descobriu que a garota estava sem os cabelos devido à sua religião, raspou a cabeça por estar em uma fase importante no processo de crescimento na fé no Candomblé. Júlia, apesar de muito feliz com a nova fase religiosa, preferiu não contar a verdade por temer precon- ceitos dos colegas. Religiosidades e Educação Pública | 77 Algo diferente ocorreu com Vanessa, também de 11 anos, que devido ao comprimento de seus cabelos e de suas saias – muito longos comparados aos das outras meninas da sua nova escola –, não teve como não ser notada como sendo adepta de uma igreja pentecostal bastante tradicional, que va- loriza esse estilo de penteado e de roupa. Logo, o professor percebeu que ela era motivo de piadas e risos de várias crianças da sala. As experiências de Júlia e Vanessa não são situações isoladas. Elas se repetem, considerando a variação de detalhes, em diferentes contextos es- colares no Brasil. Isso significa que, se por um lado, atualmente, o país vem se caracterizando por uma gama de diferentes religiões, por outro, ainda há distintos tipos de preconceitos contra adeptos de tradições religiosas tidas como “minoritárias” ou “muito diferentes”. Apesar do número de católicos prevalecer no Brasil, sabe-se pelas últi- mas pesquisas da queda na quantidade desses fiéis (dados do Censo mos- tram que passaram de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010) e do crescimento do grupo de evangélicos (em 30 anos, o percentual de evangélicos passou de 6,6% para 22,2%) e de novas denominações, assim como os que declaram como não tendo religião alguma (8,0% dos brasileiros se declararam sem religião no Censo de 2010). Os dados de cor, sexo, faixa etária e grau de instrução revelam que os católicos romanos e o grupo dos sem-religião são os que apresen- taram percentagens mais elevadas de pessoas do sexo masculino. Os espíritas apresentaram os mais elevados indicadores de educação e de rendimentos.30 Sabemos também o quanto é grande o número de religiões no país. Os dados apontam para essa multiplicidade. No Censo de 2000, foi perguntado de forma aberta “Qual é a sua religião?”. Os recenseadores se surpreende- ram com 35 mil respostas diferentes. Alguns dados já citados aqui podem ser conferidos na tabela abaixo, referente ao Censo de 2010. Também podem ser observadas outras informa- ções, como números referentes à população religiosa residente no espaço urbano e no rural. Retomaremos as informações desta tabela no próximo item deste capítulo, apresentando possibilidades de usá-la em sala de aula. 30 Dados do Censo de 2010. 78 | Diferenças na Educação: outros aprendizados G ru p o s d e re lig iã o Po p ul aç ão re si d en te To ta l H o m en s M ul he re s Si tu aç ão d o d o m ic íli o U rb an a R ur al To ta l Se xo To ta l Se xo H o m en s M ul he re s H o m en s M ul he re s To ta l(1 ) 19 0 75 5 79 9 93 4 06 9 90 97 3 48 8 09 1 60 9 34 6 49 7 7 71 5 67 6 8 3 21 8 97 2 2 9 82 1 15 0 1 5 69 1 31 4 1 4 12 9 83 7 C at ó lic a A p o st ó lic a R o m an a 12 3 28 0 17 2 61 1 80 3 16 62 0 99 8 56 1 00 0 55 8 96 4 8 87 2 81 7 5 1 18 3 07 8 2 3 22 4 27 7 1 2 30 7 49 9 1 0 91 6 77 8 C at ó lic a A p o st ó lic a B ra si le ira 56 0 78 1 28 2 01 1 2 78 7 70 4 42 2 44 2 18 1 07 2 24 1 37 1 18 5 37 6 3 90 4 5 4 63 3 C at ó lic a O rt o d o xa 13 1 57 1 65 7 27 6 5 84 4 1 13 3 01 5 5 94 2 5 7 35 9 1 8 27 0 9 7 85 8 4 85 E va ng él ic as 42 2 75 4 40 18 7 82 8 31 2 3 49 2 60 9 3 7 82 4 08 9 1 6 66 3 27 1 2 1 16 0 81 8 4 4 51 3 50 2 1 19 5 60 2 3 31 7 91 E va ng él ic as d e M is sã o 7 68 6 82 7 3 40 9 08 2 4 2 77 7 45 6 7 95 1 67 2 9 78 4 85 3 8 16 6 82 8 91 6 59 4 30 5 97 4 61 0 63 Ig re ja E va ng él ic a Lu te ra na 99 9 49 8 48 2 38 2 5 17 1 16 6 86 3 49 3 21 3 95 3 64 9 54 3 13 1 49 1 60 9 87 1 52 1 62 Ig re ja E va ng él ic a Pr es b ite ria na 92 1 20 9 40 5 42 4 5 15 7 85 8 53 8 64 3 73 7 52 4 80 1 12 6 7 34 5 3 1 67 3 3 5 67 2 Ig re ja E va ng él ic a M et o d is ta 34 0 93 8 14 9 04 7 1 91 8 91 3 25 6 52 1 42 1 48 1 83 5 04 1 5 28 66 8 99 8 3 87 Ig re ja E va ng él ic a B at is ta 3 72 3 85 3 1 60 5 82 3 2 1 18 0 29 3 4 66 8 62 1 4 88 3 90 1 9 78 4 72 2 56 9 91 1 17 4 34 1 39 5 57 Ig re ja E va ng él ic a C o ng re g ac io na l 10 9 59 1 48 2 43 6 1 34 8 9 4 27 0 4 0 87 8 5 3 39 2 1 5 32 1 7 3 65 7 9 57 Ig re ja E va ng él ic a A d ve nt is ta 1 56 1 07 1 70 4 37 6 8 56 6 95 1 3 41 0 18 5 99 8 37 7 41 1 82 2 20 0 53 1 04 5 39 1 15 5 13 Ta b el a 1 Po p ul aç ão re si d en te , p o r si tu aç ão d o d o m ic íli o e s ex o , s eg un d o o s g ru p o s d e re lig iã o – B ra si l, 20 10 . Religiosidades e Educação Pública | 79 G ru p o s d e re lig iã o Po p ul aç ão re si d en te To ta l H o m en s M ul he re s Si tu aç ão d o d o m ic íli o U rb an a R ur al To ta l Se xo To ta l Se xo H o m en s M ul he re s H o m en s M ul he re s O ut ra s E va ng él ic as d e M is sã o 30 6 66 13 7 86 1 6 88 0 2 7 15 1 1 2 08 5 1 5 06 6 3 5 14 1 7 01 1 8 14 E va ng él ic as d e o rig em p en te co st al 25 3 70 4 84 11 2 73 1 95 1 4 09 7 28 9 2 2 37 1 35 2 9 8 55 0 98 1 2 51 6 25 3 2 9 99 1 32 1 4 18 0 97 1 5 81 0 35 Ig re ja A ss em b le ia d e D eu s 12 3 14 4 10 5 58 6 52 0 6 7 27 8 91 1 0 36 6 49 7 4 6 62 7 26 5 7 03 7 72 1 9 47 9 13 9 23 7 94 1 0 24 1 19 Ig re ja C o ng re g aç ão C ris tã d o B ra si l 2 28 9 63 4 1 06 0 21 8 1 2 29 4 16 2 0 06 5 50 9 24 3 54 1 0 82 1 96 2 83 0 83 1 35 8 63 1 47 2 20 Ig re ja O B ra si l p ar a C ris to 19 6 66 5 85 7 68 1 10 8 97 1 77 6 34 7 7 17 3 1 00 4 61 1 9 03 1 8 5 95 1 0 43 6 Ig re ja E va ng el ho Q ua d ra ng ul ar 1 80 8 38 9 77 4 69 6 1 0 33 6 93 1 7 06 6 28 7 27 6 34 9 78 9 94 1 01 7 61 4 7 06 2 5 4 69 9 Ig re ja U ni ve rs al d o R ei no d e D eu s 1 87 3 24 3 75 6 20 3 1 1 17 0 40 1 7 66 2 46 7 08 5 33 1 0 57 7 13 1 06 9 98 4 7 67 0 5 9 32 8 Ig re ja C as a d a B en çã o 12 5 55 0 52 2 74 7 3 27 6 1 18 6 59 4 9 17 7 6 9 48 3 6 8 90 3 0 97 3 7 93 Ig re ja D eu s é A m o r 84 5 38 3 36 5 25 0 4 80 1 33 7 23 1 55 3 08 0 92 4 15 0 63 1 22 2 28 5 7 15 9 6 5 06 9 Ig re ja M ar an at a 35 6 02 1 15 6 18 5 1 99 8 35 3 39 5 26 1 48 6 57 1 90 8 69 1 6 49 5 7 5 29 8 9 66 Ig re ja N o va V id a 90 5 68 37 0 26 5 3 54 2 8 8 89 8 3 6 34 2 5 2 55 6 1 6 70 6 84 9 86 E va ng él ic a re no va d a nã o d et er m in ad a 23 4 61 10 4 12 1 3 04 9 2 1 60 5 9 5 49 1 2 05 6 1 8 56 8 63 9 93 C o m un id ad e E va ng él ic a 1 80 1 30 7 7 99 0 1 02 1 41 1 74 5 84 7 5 45 6 9 9 12 8 5 5 46 2 5 33 3 0 13 Continuação Tabela 1... 80 | Diferenças na Educação: outros aprendizados G ru p o s d e re lig iã o Po p ul aç ão re si d en te To ta l H o m en s M ul he re s Si tu aç ão d o d o m ic íli o U rb an a R ur al To ta l Se xo To ta l Se xo H o m en s M ul he re s H o m en s M ul he re s O ut ra s ig re ja s E va ng él ic as d e o rig em p en te co st al 5 2 67 0 29 2 3 10 6 53 2 9 56 3 77 4 8 81 3 68 2 1 27 4 05 2 7 53 9 63 3 85 6 61 1 83 2 47 2 02 4 14 E va ng él ic a nã o d et er m in ad a 9 2 18 1 29 4 1 00 5 54 5 1 17 5 75 8 6 57 5 70 3 8 29 6 88 4 8 27 8 83 5 60 5 59 2 70 8 66 2 89 6 93 O ut ra s re lig io si d ad es cr is tã s 1 4 61 4 95 6 66 7 72 7 94 7 23 1 3 50 7 19 6 13 1 18 7 37 6 01 1 10 7 76 5 3 65 4 5 7 12 2 Ig re ja d e Je su s C ris to d o s Sa nt o s d o s Ú lti m o s D ia s 2 26 5 09 1 07 1 44 1 19 3 66 2 22 2 24 1 04 9 57 1 17 2 66 4 2 86 2 1 86 2 0 99 Te st em un ha s d e Je o vá 1 3 93 2 08 5 79 4 66 8 13 7 42 1 3 28 4 06 5 50 2 62 7 78 1 44 6 4 80 1 2 9 20 4 3 5 59 8 E sp iri tu al is ta 6 1 73 9 2 4 85 7 3 6 88 2 5 9 13 1 2 3 70 2 3 5 42 9 2 6 08 1 1 55 1 4 53 E sp íri ta 3 8 48 8 76 1 5 81 7 01 2 2 67 1 76 3 7 76 8 57 1 5 46 0 13 2 2 30 8 43 7 2 02 0 3 5 68 7 3 6 33 2 U m b an d a 4 07 3 31 1 82 1 19 2 25 2 13 3 98 5 06 1 77 5 46 2 20 9 60 8 8 25 4 5 72 4 2 53 C an d o m b lé 1 67 3 63 8 0 73 3 8 6 63 0 1 63 1 15 7 8 58 4 8 4 53 1 4 2 48 2 1 49 2 0 99 O ut ra s d ec la ra çõ es d e re lig io si d ad es af ro -b ra si le ira s 1 4 10 3 6 6 36 7 4 67 1 3 81 6 6 4 84 7 3 32 2 87 1 52 1 35 Ju d aí sm o 1 07 3 29 5 3 88 5 5 3 44 4 1 05 3 42 5 2 82 1 5 2 52 0 1 9 87 1 0 63 9 24 H in d uí sm o 5 6 75 2 9 42 2 7 33 5 5 98 2 8 99 2 6 99 7 7 4 3 3 3 B ud is m o 2 43 9 66 1 10 4 03 1 33 5 63 2 35 6 49 1 06 1 16 1 29 5 33 8 3 16 4 2 87 4 0 30 N o va s re lig iõ es o rie nt ai s 1 55 9 51 6 3 81 3 9 2 13 9 1 50 5 97 6 1 26 1 8 9 33 6 5 3 55 2 5 52 2 8 03 Continuação Tabela 1... Religiosidades e Educação Pública | 81 G ru p o s d e re lig iã o Po p ul aç ão re si d en te To ta l H o m en s M ul he re s Si tu aç ão d o d o m ic íli o U rb an a R ur al To ta l Se xo To ta l Se xo H o m en s M ul he re s H o m en s M ul he re s Ig re ja m es si ân ic a m un d ia l 1 03 7 16 4 1 98 0 6 1 73 6 1 00 2 21 4 0 32 6 5 9 89 5 3 4 96 1 6 54 1 8 42 O ut ra s no va s re lig iõ es o rie nt ai s 5 2 23 5 2 1 83 3 3 0 40 2 5 0 37 6 2 0 93 5 2 9 44 1 1 8 59 8 98 9 61 O ut ra s re lig iõ es o rie nt ai s 9 6 75 4 5 02 5 1 73 9 4 91 4 4 01 5 0 90 1 85 1 01 8 3 Is la m is m o 3 5 16 7 2 1 04 2 1 4 12 4 3 4 89 4 2 0 84 9 1 4 04 4 2 73 1 93 8 0 Tr ad iç õ es e so té ric as 7 4 01 3 4 2 09 5 3 1 91 8 7 0 87 8 4 0 21 9 3 0 65 9 3 1 36 1 8 76 1 2 59 Tr ad iç õ es in d íg en as 6 3 08 2 3 2 09 5 3 0 98 7 1 9 36 6 9 8 32 9 5 34 4 3 71 6 2 2 26 3 2 1 45 3 O ut ra s re lig io si d ad es 1 1 30 6 5 1 35 6 1 71 9 9 25 4 4 26 5 5 00 1 3 80 7 09 6 71 Se m re lig iã o 1 5 33 5 51 0 9 0 82 5 07 6 2 53 0 04 1 3 74 2 55 1 8 1 03 2 11 5 6 39 3 40 1 5 92 9 60 9 79 2 96 6 13 6 64 Se mre lig iã o 1 4 59 5 97 9 8 5 92 4 92 6 0 03 4 86 1 3 04 3 34 0 7 6 40 0 22 5 4 03 3 18 1 5 52 6 38 9 52 4 70 6 00 1 68 A te u 6 15 0 96 4 11 3 97 2 03 6 99 5 77 9 94 3 86 6 43 1 91 3 51 3 7 10 2 2 4 75 3 1 2 34 8 A g nó st ic o 1 24 4 36 7 8 61 8 4 5 81 8 1 21 2 16 7 6 54 5 4 4 67 1 3 2 20 2 0 72 1 1 47 N ão d et er m in ad a e m úl tip lo p er te nc im en to 6 43 5 98 3 02 8 07 3 40 7 91 5 91 7 92 2 76 4 76 3 15 3 15 5 1 80 7 2 6 33 1 2 5 47 5 R el ig io si d ad e nã o d e- te rm in ad a/ m al d efi ni d a 6 28 2 19 2 95 7 13 3 32 5 06 5 78 3 47 2 70 4 69 3 07 8 78 4 9 87 2 2 5 24 4 2 4 62 8 D ec la ra çã o d e m úl tip la re lig io si d ad e 1 5 37 9 7 0 94 8 2 84 1 3 44 5 6 0 07 7 4 38 1 9 34 1 0 87 8 47 (1 ) I nc lu si ve a s p es so as s em d ec la ra çã o d e re lig iã o e n ão s ab e. Continuação Tabela 1... 82 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Inegavelmente, o país segue diverso em termos de fé e religiosidade. Isso não é necessariamente uma informação nova, afinal, antes mesmo da chegada dos europeus cristãos nessas terras, a população indígena já man- tinha uma multiplicidade étnico-religiosa incrível. No entanto, segundo o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, atualmente a diversidade religiosa está sendo valorizada não só como consequên- cia, mas também e ao mesmo tempo como uma causa, mola propulsora de uma liberdade religiosa cada vez mais sustentada, afirmativamente reclamada e defendida.31 Figura 3 Imagem divulgada em campanhas e protestos nas redes sociais, vinculada aos atos de diferentes movimentos sociais pró-laicidade do Estado, em busca da liberdade religiosa. A constatação de Pierucci é correta, e a cada dia aparece com mais clareza. Estamos em tempos de discursos inflamados em prol da liberdade religiosa. Contudo, é possível analisar que em boa parte desses discursos, por exemplo, aqueles transmitidos por canais ou programas religiosos na TV, a liberdade religiosa tem sido entendida de forma equivocada. A liberdade religiosa é constitucional no sentido de garantir o direto de livre demons- tração de fé e de adesão, ou não, a instituições ou grupos religiosos. Foi pensada, como vimos anteriormente, em contextos republicanos de busca de valorização das diferenças, não de enfrentamento a elas! 31 Pierucci (2011, p. 473-474). Religiosidades e Educação Pública | 83 Mas não existem discursos que se contrapõem aos discursos religiosos que são contrários ao convívio com os diferentes? Há caminhos que poderiam ser abordados na escola que contrapõem os discursos contrários à valoriza- ção da diferença religiosa? Evidentemente que ao longo da história ocorreram parcerias das mais variadas no sentido de diferentes grupos e denominações religiosas se reunirem ou serem solidários uns com os outros, ou trabalharem em causas comuns. Dentro do grande grupo de cristãos, o movimento ecu- mênico é um bom exemplo de como se pode conviver na diferença. No Brasil, por exemplo, a partir de reuniões iniciadas em 1975, no ano de 1982 foi fundado o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), envolvendo nos dias atuais as seguintes denominações religiosas: Igreja Ca- tólica Apostólica Romana, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Igreja Evan- gélica de Confissão Luterana no Brasil, Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia e a Igreja Presbiteriana Unida. A contemporânea celebração do ecumenismo, dentro e fora das religiões, repudia o dogmatismo e a intolerância, além de se bater pelo respeito recíproco, pela liberdade de consciência, de crença, de expressão e de culto, tende à busca de uma efetivação histórica do re- conhecimento da igualdade essencial entre todos os seres humanos.32 Figura 4 Cartaz da primeira Campanha da Fraternidade realizada de forma ecumênica, pelo CONIC. Esse tipo de atividade ecumênica ocorre a cada cinco anos. 32 Cury (2004, p. 188). 84 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Mas também existem movimentos de diálogo e ações formados por grupos que não são exclusivamente cristãos, como é o caso do macroecu- menismo. Um grande nome é o de Mãe Menininha do Gantois, que atuou de forma exemplar no que se refere ao diálogo inter-religioso. Esse diálogo, na perspectiva tanto da aproximação ecumênica entre algumas igrejas cristãs como em uma perspectiva mais macro de relações entre distintas expres- sões de fé, garante ainda hoje atividades que estão na contramão da disputa religiosa ou dos discursos contrários à diferença de crenças. A aproximação e a união entre religiões não pode ser entendida como um prejuízo das especificidades de cada uma delas. O diálogo em nada pretende fazer com que as diferenças não sejam reconhecidas ou sejam negadas. Ao invés disso, o que se busca são os pontos em comum, ou que não são conflitantes, para que os projetos e ações possam ser traçados e executados. É uma atuação pela e na diferença, em busca de uma unidade sempre combinada e constantemente negociada. No que se refere ao campo da educação pública, há uma luta constan- te para que o Ensino Religioso nas escolas siga a perspectiva ecumênica e macroecumênica. Muitos apontam essa perspectiva para a garantia da con- cretização de uma educação que seja democrática, que respeite a liberdade religiosa e não faça proselitismo. No entanto, ainda há grandes desafios para que, de fato, haja um controle e uma diretriz que, também de fato, estabele- çam verdadeiramente essa perspectiva nas escolas públicas do país. BOX 3 Ensino Religioso e escola pública no Brasil “O ensino religioso é problemático, visto que envolve o necessário distancia- mento do Estado Laico ante o particularismo próprio dos credos religiosos. Cada vez que este problema compareceu à cena dos projetos educacionais, sempre veio carregado de uma discussão intensa em torno de sua presença e factibilidade em um país laico e multicultural”. Quem faz essa afirmação é o professor Carlos Roberto Jamil Cury, da Universidade Católica de Minas Gerais. Na história recente do nosso país, a Constituição de 1988, dando sequência ao que já havia sido aprovado em todas as outras constituições federais desde 1934, sob a articulação e pressão dos grupos religiosos, garante o oferecimento do Ensino Religioso – de oferecimento obrigatório desde as Religiosidades e Educação Pública | 85 BOX 3 leis orgânicas do Estado Novo de 1946. No entanto, a matrícula dos alunos é facultativa (inclusive nas redes privadas), no sentido de salvaguardar a laicidade do Estado. Buscando também a garantia do ensino laico, não é permitida nenhuma prática de proselitismo religioso na aplicabilidade dessa disciplina, assim como está garantido legalmente o respeito à diferença cultural religiosa. Mas como não há definição do que é proselitismo em nenhum documento federal nesse campo, conforme apontam Debora Diniz e Tatiana Lionço, entendemos por proselitismo qualquer expressão de dogmatismo que re- sulte em discriminação social, cultural ou religiosa. “O proselitismo parte da certeza de uma verdade única no campo religioso e ignora a diversidade. É, portanto, uma ameaça à igualdade religiosa”.* Essa compreensão sobre qual papel não é o do Ensino Religioso é funda- mental, considerando que é de responsabilidade dos sistemas de ensino definir conteúdos e formas de habilitação de professores para essa discipli- na, e, pelo fato de a legislação atual ser omissa quanto ao ônus do ofereci- mento do Ensino Religioso no ensino fundamental, abre a possibilidade de se ter recursos públicos voltados para essa oferta. Em outras palavras, se, por um lado,é proibida qualquer forma de prose- litismo e é garantido o respeito à diferença cultural religiosa, por outro, o Ministério da Educação não possui editais próprios para a avaliação e sele- ção dos materiais didáticos que serão utilizados nas escolas públicas nessa disciplina, isto é, não há parâmetro curricular específico para a disciplina de Ensino Religioso. Segundo as duas autoras citadas anteriormente, “esse vácuo normativo e de definição de conteúdos dificulta ações de avaliação das práticas edu- cacionais e de cumprimento da norma constitucional que determina ser o objetivo da educação fundamental a formação básica comum e o respeito à diversidade”.** * Diniz & Lionço (2010, p. 29). ** Id. ibid., p. 18. 86 | Diferenças na Educação: outros aprendizados UNIDADE 4 E agora? Por onde começar? “Religião não se discute”. Essa máxima, amplamente divulgada como uma orientação para um suposto bem viver, é o primeiro pensamento sobre o nosso tema a ser desconstruído em sala de aula. Para isso, precisamos entender seu significado em nossa experiência cultural. Uma ideia que compõe o “modelo cultural” brasileiro é que nós, dife- rentes de outros, não vivemos conflitos religiosos e somos “por natureza” acolhedores das nossas próprias diferenças. Pelo que já refletimos nas pá- ginas anteriores, está claro que isso não é bem assim. A realidade nos ajuda a questionar a construção de qualquer “modelo cultural” para um país tão grande e múltiplo, como a nos perguntar: qual o interesse de deixarmos as coisas como estão, sem serem discutidas? Aqui não se trata de propor que se anuncie na lousa uma lista de religiões a serem discutidas e problematizadas, mas apontamos para a necessidade, caso queiramos um ensino mais democrático e justo com a nossa diferença cultural religiosa, de discutirmos religião no contexto sócio-histórico-antro- pológico da formação do povo brasileiro, inclusive sem deixar de lado os acontecimentos atuais. Não existe outro caminho possível para pensarmos nas transformações que nos levarão a contextos de igualdade e valorização das diferenças que não passe pela reflexão bem-orientada. Se não discutirmos religião na esco- la, nesta perspectiva não etnocêntrica e aberta ao relativismo, as coisas se manterão de forma desigual porque não conseguiremos pensar em ideias e ações para tornar a escola e a sociedade menos desiguais e excludentes com quem tem uma fé diferente da maioria ou com quem não tem fé nenhuma. Entendida essa necessidade de desconstruirmos a ideia de que o tema da religião é um tema proibido nas rodas de conversa ou na sala de aula, apontamos a seguir algumas possibilidades para começar a discutir o tema. Crie a oportunidade caso você não tenha percebido nenhuma chance Religião pode ser discutida em qualquer disciplina, por qualquer profes- sor. Não é necessário nem mudar o programa temático das aulas para incluir essa temática. Muitas vezes, o assunto surge em conversas paralelas à lição Religiosidades e Educação Pública | 87 sugerida ou em comentários entre estudantes fora da sala de aula, aos quais o professor acaba tendo acesso. Ou tem relação com o feriado da semana. Há também casos em que não se fala, mas o professor percebe que há situ- ações discriminatórias com esse ou aquele estudante sabidamente religioso e adepto de alguma religião diferente da esperada. Na web, encontramos um site com muitos quadrinhos sobre a temática religiosa. Alguns podem ser entendidos como polêmicos, mas outros são, sem dúvida, bem ingênuos. Refiro-me ao blog <www.umsabadoqualquer. com>, criado por Carlos Ruas, em que seus quadrinhos são vistos por alguns como algo equivocado, por estarem brincando com Deus. Mas o sucesso pedagógico pode ser grande se encararmos a arte dos quadrinhos como algo usado de forma crítica, irônica e humorística. A discussão pode ser levada para as aulas de língua portuguesa, mas também para a aula de Filosofia, Física, Matemática, Educação Física, Ci- ências Naturais e Química, porque há uma série de imagens de Sócrates, Darwin, Einstein, Niemeyer e Freud em diálogos com Deus. Há também uma série de personagens símbolos de religiões não cristãs e não ocidentais, o que também pode levar às reflexões no campo da História e da Geografia. Parte desses personagens aparece na imagem escolhida para ilustrar o início deste capítulo. Escolham bem o quadrinho que melhor contribuirá para o momento da discussão. Figura 5 Quadrinho de Carlos Ruas ilustrando o encontro de Einstein, Deus e Adão. Evidentemente que a nossa aposta é que esse material disponível online seja usado na perspectiva que discutimos neste livro, no sentido de fazer com que os alunos, em diferentes disciplinas, possam refletir sobre o tema da religião para valorizar as diferenças, e isso deve garantir, inclusive, que os quadrinhos sejam usados no sentido de serem eles próprios também criticados. 88 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Outros materiais, especialmente notícias de jornais e revistas, também podem servir como objeto de análise e reflexão. Se for utilizar textos reti- rados da Internet, normalmente nos sites de notícias existe a possibilidade de as pessoas opinarem logo abaixo da notícia. Os comentários e opiniões dos leitores da notícia sempre trazem depoimentos que podem ajudar na discussão sobre o tema. Vale a pena selecionar aqueles mais produtivos para a reflexão a que se objetiva com a notícia. Caso você tenha facilidade em poder levar música para a sala de aula, por ter acesso a equipamento para tal, não deixe de pensar na hipótese de apresentar algumas letras para os estudantes. Além de lhes facilitar o acesso à letra, é fundamental que se ouça a música ou se assista ao clipe na sala de aula para tornar a atividade mais convidativa. Nossa dica é a música Invocação, de Chico César (há versões no site Youtube cantada por ele e, entre outras, por Maria Bethânia). BOX 4 Invocação (Chico César) Deus dos sem deuses deus do céu sem Deus Deus dos ateus Rogo a ti cem vezes Responde quem és? Serás Deus ou Deusa? Que sexo terás? Mostra teu dedo, tua língua, tua face Deus dos sem deuses O importante é você, professor, especialmente se não é o responsável pela disciplina Ensino Religioso, perceber que é possível criar boas oportu- nidades para discutir o tema. Veja outro exemplo considerando a tabela que usamos neste capítulo, referente à população residente, por situação do domicílio e sexo, segundo os grupos de religião formada a partir dos dados do Censo de 2010. A ideia é trabalhá-la em aulas de geografia, sociologia, história ou matemática. É pos- sível elaborar perguntas que motivem os alunos a encontrarem as respostas na tabela, ensinando-os a ler esses tipos de dados, além de entenderem e valorizarem a diversidade cultural-religiosa. Religiosidades e Educação Pública | 89 Algumas dessas perguntas, partindo da realidade do budismo no país, poderiam ser: “Considerando o contexto brasileiro atual, existem mais re- ligiosos adeptos do budismo ou do candomblé?”, “E se compararmos o budismo com outras religiões como hinduísmo e judaísmo, ele tem maior ou menor número de adeptos do que essas outras duas religiões?”, “Esses fiéis são do sexo masculino ou feminino?”, “É correto afirmar, observando a tabela, que o budismo é uma religião predominantemente rural?”. No final da atividade, chegar à conclusão que o budismo tem maior nú- mero de adeptos do que o candomblé, o hinduísmo e o judaísmo pode pa- recer muito interessante para a interpretação da realidade brasileira, ainda mais considerando que essa é uma religião predominantemente urbana e composta de pessoas, em sua maioria, do sexo feminino. Se associarmos esses dados com textos sobre o assunto, chegaremos a conclusões ainda mais úteis para uma discussão sobre nossa forma histórica de ter o território ocupado: afinal, o budismo é relativamente “forte” somente nos Estados an- tigamente preferidos pelosimigrantes asiáticos; fora desses “núcleos”, sua situação numérica é tão limitada que é possível dizer que, na maior parte do vasto território brasileiro, o budismo é praticamente inexistente.33 Em sala, com esses dados, pode-se refletir ainda sobre como os pesqui- sadores chegaram a tal resultado e o que isso significa para a nossa leitura a respeito da realidade das religiões no país, e, claro, as possíveis ideias do senso comum que podem ser reforçadas ou desmentidas com esse tipo de informação. Frank Usarski é uma boa referência para compreendermos esses dados e os seus significados para o budismo: Embora a metodologia usada pelo IBGE não seja isenta de problemas epistemológicos, ela é um avanço do ponto de vista empírico por con- siderar somente como seguidores do budismo aqueles brasileiros que se manifestaram explicitamente como budistas de acordo com uma identidade religiosa correspondente. Por outro lado, foram automati- camente excluídas das estatísticas aquelas pessoas cuja religiosidade substancialmente mais ampla apropria-se de maneira seletiva e às vezes de maneira passageira de alguns elementos doutrinários ou práticas budistas, sem que isso resulte em um autorreconhecimento do indiví- duo como seguidor do budismo.34 33 Usarski (2004, p. 310). 34 Id. ibid., p. 308. 90 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Esse exercício envolvendo os dados da referida tabela e o budismo pode e deve ser tomado como uma dica de atividade, sendo possível envolver outras denominações ou tomar como foco dados de outras religiões. Além disso, um jogo interessante a ser desenvolvido é oferecer a possi- bilidade de a turma se dividir em grupos e eles mesmos criarem perguntas e as trocarem entre si. O ideal é que o grupo, ao criar a pergunta, tenha a resposta certa corrigida pelo professor antes de passar a questão adiante, para que quando os amigos responderem, eles possam corrigir possíveis erros de interpretação dos colegas quando as respostas dadas pelos outros grupos retornarem ao grupo de criação/partida da pergunta. O tom de de- safio pode ser um atrativo para os alunos conhecerem melhor essas informa- ções e responder às perguntas uns dos outros. Nesse processo, não devem circular apenas as informações restritas à tabela, mas o professor deve ficar atento aos comentários e dúvidas que possam surgir em relação às religi- ões. Durante o exercício, não faltará oportunidade de o professor valorizar a diferença religiosa brasileira, os valores laicos e a postura macroecumênica como diretriz de convívio em sala de aula e fora da escola. Gaste bem o tempo com o assunto Caso haja tempo para se dedicar ao tema, ou você tenha conseguido re- adequar as atividades já definidas para incorporá-las à temática da religião, planeje bem as ações e defina aonde quer chegar. Essa dica serve para tantas outras temáticas, mas, considerando que a discussão sobre religiosidades na Escola pode envolver os estudantes em debates polêmicos (o que em si não é ruim) e acabar levando a reflexão para objetivos que não são os que você imaginou, principalmente para um contexto oposto ao que nós desejamos, que é a valorização da diferença cultural religiosa, é imprescindível planejar. Inspirados em uma metodologia bastante usada pelas pastorais sociais da Igreja Católica, o “ver-julgar-agir”, apostamos no emprego do método “ver-analisar-agir-avaliar”, mas, aqui, claro, em uma perspectiva absoluta- mente laica. VER: olhar a realidade a ser estudada, neste caso, a diferença religiosa. É o momento para ouvir os estudantes (suas opiniões e conhecimento prévio sobre o tema) e o de motivá-los a irem atrás de mais informações, especialmente em fontes laicas. Fatos, causas e consequências do tema es- colhido precisam ficar claros no final dessa primeira parte do método. Religiosidades e Educação Pública | 91 Sobre o tema, vale a pena propor recortes, considerando a realidade do contexto escolar onde você se encontra. Os subtemas podem ser: Religião e poder; Violência e religião; Democracia e religiosidade; Direitos e religio- sidades; Preconceitos e religiosidades; Religiosidades e educação; Cultura e religião; Fé e política; Diferenças e religião; Ciência e religião; Corpo e religiosidades etc. ANALISAR: é hora de refletir e analisar as informações reunidas. A base para a análise é o material previamente organizado ou sugerido por você, professor. O momento da busca dos estudantes, caso encontrem algum material para complementar a análise, será o momento de valorizar o que foi encontrado por eles e incorporá-lo nesse conjunto que você pre- parou. Não se deve tomar aqui nenhum material confessional (de nenhuma religião), mas textos explicitamente ecumênicos podem ajudar. Nossa aposta é que, por exemplo, este livro e sua perspectiva de valo- rização das diferenças seja empregado (pelo menos no momento em que você professor vai se preparar para a atividade). Além disso, documentos no campo dos Direitos Humanos e a própria Constituição Federal podem ser muito utilizados. O importante é definir quais são as perspectivas para direcionar a refle- xão e a análise dos estudantes. O “analisar”, aqui na nossa proposta laica, não é estabelecer uma hierarquia e nem definir o que é necessariamente certo e errado de cada religião, isto é, não se trata de um “julgar” propria- mente dito, mas de pensar, decidir, concluir (ainda que temporariamente) sobre o que foi discutido. AGIR: realizar alguma ação a partir do que foi estudado. Considerando que a história de desigualdade e preconceito em rela- ção aos grupos religiosos, ou até mesmo aos sem-religião, virá à tona nos momentos anteriores, o importante é propor tomadas de posições aos es- tudantes quanto à temática, no sentido de garantir uma vivência na escola que preze pela visibilidade e reconhecimento da diferença cultural religiosa. Ações do tipo “contratos e combinados” são bem-vindas, isto é, pode- -se combinar, por exemplo, que sempre se cuidará para que não existam julgamentos preconceituosos entre os colegas quando o assunto for religiosidades. Outra atitude a ser tomada pode ser a escrita coletiva de uma carta a uma possível editora que não contemplou a diferença cultural religiosa em 92 | Diferenças na Educação: outros aprendizados algum livro didático, ou, ainda, promover uma exposição na escola com tra- balhos de diferentes ordens (poemas, maquetes, desenhos etc.) retratando a diferença cultural religiosa do Brasil ou da própria comunidade. Seja qual for a ação, é bom lembrar os estudantes que uma longa his- tória de discriminação e hierarquização das religiões não se resolve do dia para a noite; ao mesmo tempo, é fundamental valorizar as ações que serão resultadas desse processo; afinal, a transformação de algo que não é bom em alguma coisa melhor depende de atitudes pequenas e grandes, mas tudo começa com a organização do coletivo para se conquistar algo comum. AVALIAR: no final de tudo, depois de algum tempo, conforme a ação realizada, é fundamental rever o que foi feito. Avaliar o processo, especial- mente o resultado da ação escolhida pelo grupo, valoriza o envolvimento dos estudantes em todas as etapas do método e ajuda a dar possível conti- nuidade ao processo. Ouça pacientemente todas as opiniões Não acredite que o grupo religioso é homogêneo e que todos os fiéis de determinada crença pensam da mesma forma, nem mesmo que pensam de acordo com os seus líderes ou adotam todos os dogmas da religião que pro- fessam. Para o trabalho com o tema da religião na perspectiva que estamos propondo, essa percepção é fundamental. Então, ouvir todas as opiniões em sala é um bom exercício para entender de fato o que os estudantes estão pensando não somente sobre a religião do outro, mas sobre a sua própria. Um exemplo é o resultado da pesquisa encomendada pela organização não governamental e feminista Católicas pelos Direito de Decidir ao Insti- tuto Brasileiro de OpiniãoPública e Estatística (IBOPE), realizada no Brasil entre novembro de 2006 e janeiro de 2007. A pesquisa mostrou que a maior parte da juventude que se declara católica não acha que o fato de não seguir algumas orientações da Igreja quanto a sua saúde sexual e reprodutiva a faz um mau fiel.35 Nas atividades em sala de aula, as respostas à pergunta sobre o que poderia mudar ou manter na sua própria religião pode nos ajudar a com- preender se os estudantes têm ou não uma visão crítica da própria fé. Isso contribui para você conhecer melhor a forma como sua turma pensa e até 35 IBOPE (2007). Religiosidades e Educação Pública | 93 vive as experiências religiosas e, com isso, traçar estratégias para abordar e discutir o tema. Outra dica importante é saber ouvir, em um primeiro momento, sem ex- pressar reprovação ou estranhamento, valorizando todas as opiniões, para que todos, dos mais tímidos aos mais polêmicos, possam sentir confiança em contar sobre o que pensam. Esse cuidado envolve silenciamentos de sua parte até o momento em que poderá conduzir uma reflexão mais crítica e ser ouvido e compreendido, mas, também, envolve certa atenção com as expressões faciais, que muitas vezes denunciam o que o professor está pensando. O embasamento histórico e socioantropológico sempre ajuda a, depois de se ter acesso às opiniões, dialogar com os estudantes, mostrando a eles que é possível, via os dados científicos, reforçar/fundamentar o que estão pensando ou criticar/reformular suas opiniões. O ambiente tem de ser de respeito e diálogo entre professor e estudantes para que eles não se sin- tam mal com as novas informações sobre aquilo que ele “sempre achou” ou “sempre aprendeu”. O exercício da escuta é fundamental também para ser destacado entre os próprios estudantes. O tema será mais bem desenvolvido se a turma con- seguir criar um ambiente de escuta atenta às opiniões diferentes, se estiver disposta a aprender coisas novas sobre o assunto e, acima de tudo, conse- guir chegar a conclusões comuns, se não em uma totalidade, pelo menos em alguns aspectos, que garantam o reconhecimento das diferenças religiosas presentes na sala e na sociedade onde vivem. Estude a perspectiva laica para ensiná-la Não há como o professor estar seguro diante de qualquer tema que possa gerar polêmicas se ele não conhecer bem o assunto. É fundamental estudar a questão para se colocar de maneira adequada diante dos posicionamentos a serem valorizados, desconstruídos ou criticados. Quanto melhor a formação do professor, menores serão as dificuldades em abordar a temática. Evidentemente que a formação religiosa, comumente desenvolvida sob várias experiências de reflexões nas igrejas ou grupos religiosos, pode fazer a diferença, mas, realmente, o fato de ser um religioso assíduo às atividades da sua denominação religiosa não o fará ter a abordagem adequada para a sala de aula. 94 | Diferenças na Educação: outros aprendizados As práticas religiosas em muitos contextos também são importantes para a formação das pessoas e a atuação delas em diferentes áreas, mas o que propomos aqui é que é preciso aprender a abordar a religião na sala de aula em uma perspectiva laica, fundamentada em ciências como a história, filosofia e as ciências sociais. São raros os espaços de formação confessionais que se propõem a isso: eles têm outros objetivos e atingem outros resulta- dos. Por isso, informe-se, estude e busque informações para fundamentar a sua abordagem no sentido de possuir elementos teóricos, pedagógicos e metodológicos para a discussão dessa temática na escola. O próximo capítulo tem esse objetivo, de oferecer indicações que podem facilitar o aprofundamento no tema. Por fim, o que precisa ficar claro é que não existem receitas prontas para a discussão que nos propomos fazer. As dicas, sugestões e indicações, se- jam as referentes a leituras ou às práticas pedagógicas, não são para serem tomadas como um fim em si mesmas. Elas precisam ser lidas ou executadas a partir da realidade de cada turma, assim como devem ser pensadas de acor- do com a necessidade e a habilidade que você tem ou está conquistando diante do tema. Atividades sugeridas – mergulhando em águas mais profundas... O convite para mergulhar em águas mais profundas é aqui um chamado para o aprofundamento do tema, mas, claro, não se deseja esgotar a discus- são ou limitá-la até onde pode ir com as indicações que se seguirão: elas devem ser tomadas como um início de caminho para se avançar na reflexão. Nossa torcida é para que elas se tornem motivadoras de novas buscas e des- cobertas no sentido de qualificá-lo cada vez mais para a abordagem dessa temática na sala de aula. Começamos por "sites" que lhe permitirão se manter atualizado em re- lação aos acontecimentos, nacionais e internacionais, que envolvem o tema. Você também encontrará artigos, entrevistas, agenda de eventos (de todo o tipo – acadêmicos, religiosos, de formação de lideranças, eventos do movi- mento social e do terceiro setor), e, além disso, poderá encontrar materiais para serem adaptados e usados em sala de aula em diferentes disciplinas, considerando a diversidade temática de cada um dos endereços eletrônicos a seguir. Religiosidades e Educação Pública | 95 • Koinonia36 é uma entidade ecumênica de serviço formada por pesso- as de diferentes tradições religiosas, reunidas em associação civil sem fins lucrativos. Neste site você encontrará informações referentes a do- cumentos, eventos, publicações, projetos e outras coisas vinculadas ao ou produzidas pelo movimento ecumênico no Brasil e no mundo. Vale a pena conferir! • Católicas pelo Direito de Decidir (CDD)37 é uma organização não gover- namental feminista empenhada no diálogo inter-religioso e na busca da justiça social. Comumente, tem produzido materiais educativos e reali- zado encontros com o intuito de capacitar lideranças de comunidades religiosas e movimentos sociais, no que se refere à temática da religião e dos direitos humanos, especialmente dos direitos sexuais e reprodutivos. Existem também boas pesquisas que nos ajudam a melhor compreender a realidade da diferença cultural religiosa a partir de diferentes focos e obje- tivos. Uma delas é a tese intitulada O movimento ecumênico no Brasil (1954- 1994): a serviço da Igreja e dos movimentos populares, defendida, em 2007, por Agemir de Carvalho Dias, resultado de doutoramento em História pela Universidade Federal do Paraná. No texto, o autor trata dos acontecimentos históricos que constituíram o ecumenismo, mas também cita o legado des- se movimento para os movimentos populares. Está disponível em: <http:// www.poshistoria.ufpr.br/documentos/2007/Agemirdecarvalhodias.pdf>. A tese Educação nos terreiros e como a escola se relaciona com crianças que praticam o candomblé é outra dica. Escrita por Stela Guedes, entre ou- tras questões, a pesquisa discute discriminações, a relação da escola com crianças do candomblé e também o Ensino Religioso. Ela é fruto de estudos que duraram 13 anos, o que permitiu à autora acompanhar o crescimento das crianças com quem conviveu nos terreiros. A tese foi defendida na Fa- culdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 2005. Disponível em: <http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesa- bertas/0114346_05_pretextual.pdf>. Também vale a pena conferir a bibliografia deste capítulo, com dife- rentes pesquisadores citados. Destaque especial para o livro organizado por Debora Diniz, Tatiana Lionço e Vanessa Carrião, intitulado Laicidade e Ensino Religioso no Brasil, lançado em 2010. O conteúdo aborda temáticas 36 Disponível em: <http://www.koinonia.org.br/> 37 Disponível em: <http://www.catolicasonline.org.br/> 96 | Diferenças na Educação: outros aprendizados referentes à “Justiça Religiosa” e à diversidade cultural nos livros de Ensino Religioso. A revista Religião e Sociedade, em cada uma de suas edições, traz artigos científicossobre a temática. Chamamos a atenção para a edição 32, volume 1, que contém um dossiê temático intitulado “Religião e espaço público”, de 2012. Todos os artigos, dessa e de outras edições, estão disponíveis no site Scielo. A revista é editada pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER). Para quem gosta de vídeos, sugerimos alguns. O primeiro é uma produ- ção da Fundação Oswaldo Cruz, cujo título é Estado laico [sala de convida- dos] (59 min), que aborda o Estado laico conforme o próprio título informa, e em formato de debate discute se esta legislação é obedecida na prática. A discussão abarca outros temas, como a interferência das religiões nas políti- cas públicas. Você o encontra para baixar em: <http://objetoseducacionais2. mec.gov.br/handle/mec/13980>. Todos os demais são produções da TV Câmara. Dentro da categoria “Educação – documentários”, selecionamos o Carta Mãe (50 min), que tra- ta do papel da Constituição para a organização do País, as principais con- quistas trazidas por esta legislação, a história das constituições anteriores e os exemplos de outros países. Já na categoria “Humanidade interprogra- mas” você encontra dois vídeos bastante curtos intitulados Estado laico e religiões nas escolas (5 min) e Religião aproxima ou afasta? (5 min). O en- foque do primeiro é o que discutimos neste capítulo; o segundo aborda os conflitos religiosos do passado e do presente. Todos estes vídeos são encontrados no site da TV Câmara: <http://www.camara.leg.br/internet/ tvcamara/?lnk=BAIXE-E-USE&selecao=BAIXEUSE>. Por último, indicamos uma entrevista com Marcelo Neri, realizada na oca- sião do lançamento da pesquisa feita pela Fundação Getulio Vargas, citada no início deste capítulo. O vídeo (de aproximadamente 7 minutos) apresenta comentários sobre os principais dados levantados em relação às religiões no Brasil contemporâneo, disponível em: <http://cps.fgv.br/video_ren>. No mesmo site você encontra a pesquisa na íntegra e sua repercussão na mídia nacional e internacional, com arquivos de vídeos de programas de TV, rádio e textos divulgados em jornais e revistas: <http://www.cps.fgv.br/cps/religiao/>. Religiosidades e Educação Pública | 97 REFERÊNCIAS CURY, C. R. J. Ensino religioso na escola pública: o retorno de uma polêmica recorrente. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 27, p. 183-191. set./out./nov./dez. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n27/n27a12.pdf>. Acesso em: 02 jan. 2014. DINIZ, D.; LIONÇO, T. Educação e laicidade. In: DINIZ, D.; LIONÇO, T.; CARRIÃO, V. Laicidade e Ensino Religioso no Brasil. Brasília: UNESCO; Letras Livres; UnB, 2010. p. 11-36. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo de 2000. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/>. Acesso em: 05 nov. 2013. ______. Censo de 2010. 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Fonte: <http://www.conic.org.br/ cms/cf-ecumenica>. Acesso em: 10 ago. 2014. Figura 5 Quadrinho de Carlos Ruas ilustrando o encontro de Einstein, Deus e Adão. Fonte: <http://www.umsabadoqualquer.com/category/eisntein/>. Acesso em: 10 ago. 2014. TABELA Tabela 1 População residente, por situação do domicílio e sexo, segundo os grupos de religião – Brasil, 2010. Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2010. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/ Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Deficiencia/tab1_4.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2014. 3 Desfazendo o gênero Larissa Pelúcio Gênero é um conceito que permeia e organiza a vida de todo mundo; é tão presente que já naturalizamos seus efeitos. Nosso esforço, neste ca- pítulo, é justamente o de desnaturalizar nosso olhar e problematizar estas relações. Para isso, organizamos este capítulo em quatro unidades: 1. Iniciaremos com discussões conceituais sobre o conceito de gênero, situando o debate que nasceu em estreito diálogo com os estudos femi- nistas, isto é, com as primeiras sistematizações teóricas e políticas que questionavam a opressão feminina como sendo algo natural, quer dizer, instituído por supostos determinantes biológicos; 2. Vamos trazer esta discussão para dentro da escola. Sabemos que o que acontece na escola reflete o que se passa em muitas outras esferas da sociedade; então, quando falamos de sala de aula, do pátio do recreio, dos banheiros, também estamos falando de pedagogias de gênero que circulam informando nosso olhar, moldam nosso comportamento, edu- cam nossos corpos. 3. Momento de aprofundar nossas reflexões sobre gênero na arena pú- blica. Talvez uma das formas mais eficientes e sedutoras de transmitir mensagens e pedagogizar nossos sentidos sejam as mídias, que não só reproduzem convenções e normas sociais sobre masculino, feminino, classe, raça, orientação sexual, geração, mas também criam “verdades” sobre esses temas. 4. Finalmente, apresentaremos um conjunto de proposta de atividades diversas para serem trabalhadas em sala de aula ou em momentos de 102 | Diferenças na Educação: outros aprendizados formação continuada. São dicas de filmes e documentários; propostas de trabalho com imagens; dinâmicas paraa sensibilização e problemati- zação dos temas tratados aqui, além de um box com questões pontuais que podem ajudá-l@s a sistematizar ideias e estimular debates. Boa leitura e boas ideias a todas e todos! UNIDADE 1 Gênero ou gêneros? Desnaturalizar é preciso Como escreveu a historiadora feminista Joan Scott: Gênero é um saber que estabelece significados para as diferenças cor- porais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo, já que nada no corpo, incluídos aí os órgãos repro- dutivos femininos, determina univocamente como a divisão social será definida (SCOTT, 2009, p. 12-13). Neste capítulo, vamos pensar gênero nesta chave: ele é construído social e culturalmente, tem marcas históricas e, portanto, varia. Está relacionado com os corpos, mas nem por isso é natural, pois os corpos, para adquirirem seu significado pleno, precisam das lentes da cultura. Ainda que existam necessidades fisiológicas universais (excreção, fome, sede, cansaço, dor), elas não são resolvidas da mesma forma, nem mesmo dentro de uma mes- ma sociedade. Sendo assim, gênero, como os corpos, é plural! Quer dizer, temos de pensar em masculinidades e feminilidades e em diversidades de gêneros. Tirar do singular nossa percepção sobre este tema é alargar nosso olhar sobre nossas relações cotidianas. Perceber que não existe A MULHER e O HOMEM de forma absoluta. Pois se é mulher, mas ao mesmo tempo se é professora, mãe, de classe média, na casa dos trinta anos, católica, mas adepta também ao kardecismo, morena, mas entendida socialmente como branca... ou seja, todos estes outros elementos se enfeixam de forma singu- lar e contextual dando espessura humana e complexa a quem somos. Desfazendo o gênero | 103 Ser uma mulher com as características descritas acima é muito distinto de ser uma mulher indígena, que vive no Mato Grosso do Sul, professora em uma escola indígena, na faixa dos 20 e tantos anos, bilíngue, evangelizada. Em alguns contextos, para esta professora o mais importante seja reafirmar e dar relevo à sua etnia. Assim como para a professora do exemplo anterior, em alguns momentos será mais relevante sublinhar justamente sua marca profissional. Ambas só são fruto de um determinado momento histórico, pois até me- ados do século XX seria pouco provável que ambas tivessem uma profissão em comum, aliás, que tivessem uma profissão! Esta perspectiva histórica é fundamental para trabalharmos no sentido de desnaturalizar conceitos e ideias. Esta perspectiva ficou conhecida dentro do campo dos estudos de gênero como Construcionismo, opondo-se ao que foi denominado Essencialismo. Um quadro sintético nos ajuda a aclarar a forma como cada uma destas vertentes enfoca as relações de gênero, e, assim, fica mais evidente quais são suas diferenças: Quadro 1 Matrizes teóricas dos estudos de gênero. Essencialista Construcionista - Naturaliza os gêneros vinculando-os a um determinante biológico; - É, portanto, determinista e biologizante; - O que faz que tenha um enfoque a- -histórico e transcultural. - Propõe que os gêneros são produto de relações históricas e sociais; - Sendo assim, são simbolicamente constituídos; - O que faz com que tenham dimensões culturais. A vertente essencialista é aquela com a qual estamos mais acostumados(as) a lidar porque somos ensinados desde pequeninos que temos uma essência imutável; repetimos ditos como “pau que nasce torto não tem jeito, morre torto”, ou seja, essa suposta essência que já vem pronta não sofreria influências do meio no qual cada pessoa vive, nem seria marca- da pelo momento histórico no qual desenvolve suas experiências. Quando falamos de gênero, pela matriz essencialista, o associamos diretamente ao sexo genital, e o tomamos também como um definidor absoluto da nossa forma de viver, perceber, sentir, desejar. Acabamos por desconsiderar que há uma boa dose de aprendizado nisso tudo, que ser homem ou mulher é algo que varia de sociedade para sociedade, e, mesmo em uma dada socie- dade, temos variações. 104 | Diferenças na Educação: outros aprendizados A segunda matriz é a construtivista, que vai ficar mais clara a partir de exemplos. Então vamos a eles. Vamos dar uma olhada na bela pintura que retrata o filósofo iluminista Voltaire. Figura 1 Retrato do filósofo François-Marie Arouet de Voltaire. Vamos em frente, partindo daí, da figura do filósofo iluminista, a qual, para nós, não parece lá muito masculina. Julgamos isso pelo corpo, pelo gestual e fazemos isso sempre, porque nosso corpo é simbólico, é todo ins- crito culturalmente e aprendemos a ler estes signos. Para ler os signos, temos de nos valer das referências de nossa cultura, de nosso tempo. Quando agimos assim, estamos desnaturalizando, deses- sencializando, pois estamos inserindo o debate no campo móvel e dinâmico das relações sociais. Desnaturalizar é pensar que gênero, esta marca fundamental da nossa existência, não é um dado biológico e pronto, mas varia de sociedade, ao longo da história, e só pode ser entendido na sua dimensão política, sim, política, porque tem a ver com relações de poder: quem manda, quem obe- dece, o que é verdade, o que não é. Enfim, para a gente poder entender o gênero em toda a sua dimensão social, é preciso relacionar gênero com Desfazendo o gênero | 105 raça/etnia, classe social, pertencimento de geração, entre outras marcas de diferenciação social. Buscar os referentes históricos dessas formações discursivas nos ajuda a entender como chegamos a estabelecer certas definições sobre determina- dos temas, no caso sobre as marcas de diferença entre feminino e masculino, assim como instiga nossa imaginação e provoca perguntas novas: Quais sa- beres contribuem para instituir verdades sobre diversos assuntos? Em que contexto nasceram certas ideias? Por que algumas destas se estabeleceram como referentes seguros e outras sequer foram consideradas? Procurando responder questões como estas foi que, nos anos 1960, os movimentos fe- ministas e os estudos acadêmicos sobre mulheres criaram um sujeito políti- co e coletivo, sintetizado na categoria “mulher”. Esta não tardou a mostrar seus limites, como vim discutindo até aqui. Porém, o debate não minguou; ao contrário, se tornou mais denso teoricamente, alimentado sempre pela realidade vibrante das ruas. Neste cenário de reivindicação por direitos iden- titários, civis, culturais e de estimulantes debates teóricos nasce o conceito de gênero. Gênero tem história Até a década de 1980, o conceito de gênero não era muito usado, mes- mo dentro do campo dos estudos feministas. Trabalhava-se muito mais com a categoria “mulher”. Isto porque as feministas, desde Simone de Beauvoir, perceberam que havia um grande silêncio político, social e científico em tor- no dos temas e questões que envolviam as experiências das mulheres. Era preciso, então, falar sobre mulheres, sobre sua participação na história, na literatura, na filosofia e nas ciências em geral. Mais do que isso, era preciso dar voz às mulheres para que elas falassem de si e por si. Podemos dizer que desde 1949, quando foram publicados na França os dois volumes de O segundo sexo, de Beauvoir, as discussões políticas e te- óricas em torno da opressão feminina e da exclusão das mulheres da cena pública se avolumaram e mexeram profundamente com as dinâmicas das relações sociais, sobretudo nas sociedades ocidentais e naquelas influencia- das por este modelo. Todo este debate em torno do tema “mulher” acabou, algumas dé- cadas mais tarde, criando um extenso cabedal teórico, gerando inúmeras pesquisas, muitas delas inspiradas nas demandas políticas dos movimentos 106 | Diferenças na Educação: outros aprendizados feministas (sim, no plural, pois como todo movimento político e social este também se dividiu em diferentes tendências). Toda esta discussão provocou novas questões e aprofundou o debate teórico e conceitual, de maneira que a categoria centraldo feminismo como movimento social, bem como campo de estudos, “mulher”, passou a ser desafiada na sua potencialidade expli- cativa. Em outras palavras, a questão que começou a ser colocada cada vez mais fortemente interrogava sobre quem era esta “mulher” da qual falavam as feministas? Era negra, branca, indígena, jovem, velha, mãe, filha, avó, hete- rossexual, homossexual, bissexual, operária, burguesa, patroa, empregada, desempregada, ateia, católica, protestante? Se, como escreveu Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna- -se”, como chegamos a sê-la? Seria possível pensar nessa construção do feminino sem pensar em sua relação com o masculino? Ao responder estas poucas, mas profundas, questões, ficava claro que ao discutirmos a relação entre feminino e masculino teríamos de pensar em relações de poder que hierarquizavam pessoas a partir de seu gênero, com clara predominância do masculino sobre o feminino. Quer dizer, gênero era uma questão política, pois implicava em acessos desiguais a bens públicos, na participação em arenas decisórias ou em silêncio; em privilégios para os homens também no plano doméstico como o direto quase soberano sobre os filhos e a esposa garantido por lei (no Brasil, até a mudança do Código Civil, em 2003, não havia igualdade garantida para homens e mulheres relativas ao casamento e constituição de família. Por exemplo, o Código Civil Brasileiro, antes da reforma de 2003, ainda permitia a anulação do casamento pelo fato de a noiva não ser virgem). Se a desigualdade entre os gêneros era flagrante, em meados dos anos de 1980, essas diferenças já não pareciam suficientemente mobilizadoras; afinal, estava cada vez mais claro que a experiência de ser mulher não era a mesma para todas. Desde o final do século XIX, com o movimento sufragista, a questão mobilizadora central dos feminismos era a busca por diretos iguais aos dos homens. Assim, ser mulher era mais que uma questão de gênero, e sim o ponto de convergência de luta, pois era a marca da desigualdade. Na meta- de do século XX, este ainda era um mote forte e mobilizador. Mas, como já comentei, o crescimento dos movimentos e dos estudos feministas provo- cou também uma sofisticação nas demandas e nas reflexões, o que levou a profundas discussões em torno de outras marcas de desigualdades sociais, Desfazendo o gênero | 107 pois era evidente que as opressões atravessam também as relações entre as mulheres. Ficava patente, no aguçamento das lutas sociais e das demandas políti- cas das mulheres, que ser mulher não se resumia a ter um corpo com útero e ovários, que o biológico não era assim tão determinante dessa experiência. Havia muito mais a ser considerado nesse campo de disputas e de recons- trução de modelos sociais que a categoria “mulher” parecia não dar conta. É assim que o conceito de “gênero” vai se firmando como um instrumento importante de reflexão e luta, não sem provocar reações de alguns setores do feminismo que seguiram apostando no termo “mulher” como termo polí- tico. Aqui, trabalharemos com o conceito de gênero dada a sua abrangência e contribuições para as discussões sobre diretos, igualdade e desigualdade, entre outras. Como escreve a antropóloga Adriana Piscitelli, “é importante perceber que o conceito de gênero, desenvolvido no seio do pensamento feminista, foi inovador em diversos sentidos. Perceber o alcance dessa inovação exige prestar atenção às formulações desse pensamento” (2002, p. 2). Entre estas formulações e inovações pontuo as que se seguem: • Ir além da categoria “mulher” é considerar que homens, tanto quanto mulheres, têm gênero, que não nascem prontos; • Pensar em gênero como elemento organizador das relações sociais, ao invés de operar com os termos “homem” e “mulher”, é ampliar para além do corpo, da anatomia e do biológico, as experiências femininas e masculinas; • Construímos nosso gênero e o fazemos de forma relacional, ou seja, nas relações sociais, o que implica em fazê-lo em relação aos homens, às ins- tituições pedagogizantes (família, escola, igrejas), enfim, orientados(as) pelos valores hegemônicos de cada tempo e lugar, seja para reiterar estes valores ou para enfrentá-los; • Em outras palavras, gênero tem pouco a ver com natureza, sendo sim um conceito atravessado por ideias políticas (pois envolvem relações de poder), sociais (pois são determinadas nas relações entre os indivíduos vivendo em sociedade), culturais (estão marcadas por valores, moralida- des e crenças relativas a um conjunto amplo de significações); • Este conceito de gênero significa que aquilo que acontece em nossas vidas privadas, nas nossas casas, no interior de nossos quartos, está 108 | Diferenças na Educação: outros aprendizados superinformado e moldado por essas formas públicas de se entender o que é próprio do feminino e do masculino, da mulher e do homem, adequado para meninas ou para meninos; • Dentro dessa concepção fica evidente que “o pessoal é político”. Esta curta frase se tornou mais que um slogan do feminismo no final da déca- da de 1960, provocando também uma profunda mudança na forma de se fazer ciência e de se construir conhecimentos; • A ideia de que "o pessoal é político" conferiu dimensão política à constituição das nossas subjetividades, mostrando que o aprendizado de gênero passa por uma série persistente de normatizações que são constantemente reiteradas no sentido de adequar nosso corpo às ex- pectativas sociais sobre como devemos usá-lo, adorná-lo, apresentá-lo, enfim, o corpo como aquilo que nos é mais próprio e particular também se mostra um território de inscrições simbólicas em disputa; • Os corpos voltam a ter centralidade, mas não apenas como corpos re- produtores, mas corpos desejantes. Assim como há muitas formas de ser mulher ou homem, há muitas formas de se viver as feminilidades e masculinidades; • Estas formas não estão aprisionadas em corpos marcados por genitálias (vagina/pênis). Considera-se que corpos nascidos com vagina podem bus- car/desejar viver experiências relativas às masculinidades e vice-versa; • Tal conceito de gênero nos aproxima das discussões sobre sexualidade, pois a experiência de ultrapassar os limites sociais binários do masculino e feminino pode estar relacionada com o desejo de amar, sentir e se expressar fora das normas impostas pela heterossexualidade; • Gênero não é igual a orientação sexual, mas são termos relacionados, o que leva muitas pessoas a associarem, com frequência, comportamentos de gênero (um menino mais delicado, uma menina que gosta de futebol, por exemplo) com homossexualidade. Afinal, o que é gênero? Já vimos que gênero não é sexo; não é dado pela natureza; não é imu- tável, mas precisamos defini-lo pelo que é. A educadora e pesquisadora Guacira Lopes Louro nos oferece uma excelente síntese do conceito a partir do diálogo com diferentes autoras e autores. Vamos a esta definição que, mesmo sendo longa, vale ser reproduzida pela sua densidade: Desfazendo o gênero | 109 [...] o conceito afirma o caráter social do feminino e do masculino, obri- ga aquelas(es) que o empregam a levar em consideração as distintas sociedades e os distintos momentos históricos de que estão tratando. Afasta-se (ou se tem a intenção de afastar) proposições essencialistas sobre os gêneros; a ótica está dirigida para um processo, para uma construção, e não para algo que exista a priori. O conceito passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as representações sobre mulheres e homens são diversos. Observa-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem (LOURO, 1997, p. 23). Sendo assim, gênero deve ser entendido fundamentalmente como uma construção social, daí seu caráter histórico e plural. A ideia de pluralidadeimplicaria admitir não apenas que sociedades diferentes teriam diferentes concepções de homem e de mulher, como também que no interior de uma sociedade tais concepções seriam diversificadas, conforme a classe, a religião, a raça, a idade etc.; além disso, implicaria admitir que os conceitos de masculino e feminino se transformam ao longo do tempo (LOURO, 1996, p. 10). Em outras palavras: Por gênero entende-se a condição social por meio da qual nos identifi- camos como masculinos e femininos. É diferente de sexo, termo usado para identificar as características anatômicas que diferenciam os homens das mulheres e vice-versa. O gênero, portanto, não é algo que está dado, mas é construído social e culturalmente e envolve um conjunto de pro- cessos que vão marcando os corpos, a partir daquilo que se identifica ser masculino e/ou feminino. Em outras palavras, o corpo é generificado, o que implica dizer que as marcas de gênero se inscrevem nele. Se estamos cientes de que o gênero é a construção social do sexo, precisamos considerar que aquilo que no corpo indica ser masculino ou feminino não existe naturalmente. Foi construído assim e por esse motivo não é, desde sempre, a mesma coisa (GOELLNER, 2010, p. 75). A escola tem tido um importante lugar nessa construção dos gêne- ros. Ainda que não percebamos, aqueles são espaços profundamente 110 | Diferenças na Educação: outros aprendizados generificados e orientados por uma silenciosa, mas persistente pedagogia de gênero. É sobre esta questão que versa a próxima unidade. UNIDADE 2 Gênero na escola Lembranças de um aprendizado tenaz Ainda recordo como, ao acordar, colocava meu uniforme e seguia para a escola. Era o final da década de 1970, e vivíamos sob a presidência do general Figueiredo, a última do regime militar. No pátio, tínhamos que formar filas: duas para cada sala de aula, uma de meninos e outra de meninas. Começavam aí as “brincadeiras”, nas quais os meninos mais robustos empurravam os mais frágeis para a fila feminina, espaço desqualificado em si mesmo (MISKOLCI, 2012, p. 9). As memórias escolares acima são do sociólogo Richard Miskolci, relata- das nas primeiras páginas de seu livro Teoria Queer: um aprendizado pela Diferença, no qual ele discute, entre outras temas, como temos reproduzido de forma naturalizada as relações de gênero pautadas pelo reforço das de- sigualdades entre meninos e meninas no espaço escolar. Miskolci relembra seu receio em relação à forma como meninos de sua sala eram estimulados a serem violentos, exercendo a força sobre outros, humilhando os considera- dos mais fracos, ao mesmo tempo em que desqualificavam as meninas, pois aqueles que não se ajustavam ao modelo hegemônico de masculinidade, isto é, viris, agressivos e competitivos, eram logo alocados no lugar “des- prestigiado” do feminino. “Mulherzinha”, “florzinha”, entre outros adjetivos, eram de fato xingamentos que pretendiam, ainda que sem a intenção clara dos ofensores, dizer aos ofendidos que deveriam reproduzir um único estilo de masculinidade, posto que ser mulher ou agir como uma não era algo bom. O mundo feminino era (e é) assim constituído como avesso ao dos homens, além de inferior. Desfazendo o gênero | 111 Lembro-me de uma piadinha muito comum entre professores de cur- sinho. Sempre que havia um conjunto de meninos conversando e “zoando a aula no fundão”, vinha a intervenção jocosa: “O que as mocinhas estão fofocando aí? É hora do tricô, é?”. Sempre funcionava e provocava risos debochados da sala toda. Por quê? Porque desde pequeninos aqueles me- ninos aprenderam que não é bom ser comparado com mulheres, com moci- nhas. E por quê? Porque elas fofocam, são, portanto, levianas, fúteis, não se preocupam com assuntos grandiosos e se ocupam de atividades manuais e mecânicas, como o tricô. Não aprenderam a valorizar o feminino como uma condição comparável à do masculino, como forças complementares, e não hierárquicas. Foram reprimidos, quando não ridicularizados, todas as vezes que fizeram coisas associadas socialmente às mulheres, ao feminino. Não raro, segue narrando Miskolci, reavivando suas lembranças, esses comportamentos eram aceitos e até mesmo estimulados por professores(as) e funcionários(as) da escola, por acharem “natural” que as crianças agissem daquela forma. Da mesma maneira que, hoje em dia, achamos natural, leia- -se “correto”, que meninas sejam menos ágeis nos esportes, assim como em raciocínio matemático. Ainda fazemos filhas exclusivas para meninos, separados das filas das meninas. Reproduzimos este procedimento, muitas vezes sem grande crítica, exatamente porque os naturalizamos, não vemos problemas nele. E haverá problemas nessa divisão? A pergunta é simples, mas sua reposta não, pois nos obriga a imergir em um rol de outros questionamentos sobre nossas práticas diárias, seja na sala de aula, no pátio do recreio, na sala de professores ou durante reuniões com pais. Convido vocês a enfrentar estes questionamentos, pois, como escreve Guacira Lopes Louro e, creio, vocês têm percebido, [a]s possibilidades de viver os gêneros e as sexualidades ampliaram-se. As certezas acabaram. Tudo isso pode ser fascinante, rico e também de- sestabilizador. Mas não há como escapar a esse desafio. O único modo de lidar com a contemporaneidade é, precisamente, não se recusar a vivê-la (LOURO, 2008, p. 23). Então, vamos viver nossos desafios. Comecemos pelas filas, assumindo que elas expressam, na verdade, uma separação profunda e durável pela qual aprendemos que meninos e meninas, homens e mulheres são absoluta- mente diferentes. Mencionei que responder àquela pergunta lá de cima nos levaria a uma série de outras interrogações; então, pergunto, reproduzindo 112 | Diferenças na Educação: outros aprendizados a interrogação de uma importante pensadora: o que pode ser mais parecido com uma mulher do que um homem? Como trabalhamos a fim de acentuar ou de atenuar essas diferenças? A anatomia é destino? A biologia explica essas diferenças? Explica também as semelhanças? Estas são perguntas provocativas. Mais do que respostas, gostaria que parássemos um pouco para pensar em nossas próprias atitudes no espaço escolar. O desafio vai se tornando mais profundo, pois isso nos obriga a rever valores que nos alicerçam e orientam, mexe com nossas convicções e adentra o terreno das moralidades e dos segredos, mas educar é também estar abertos(as) para esses constantes processos de aprendizado. Sem pretensão de dar respostas conclusivas ou oferecer receitas, ensaio a seguir algumas respostas às questões que lancei há pouco, e trago novas interrogações, a maior parte delas suscitadas em discussões ocorridas nos fóruns de debates do Módulo Gênero do curso de formação continuada para professores(as) do Ensino Básico, o GDE – Gênero e Diversidade na Escola.38 • Homens e mulheres são absolutamente diferentes? A construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de inúme- ras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto ines- gotável de instâncias sociais e culturais. É um processo minucioso, sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja, instituições legais e médicas mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo constitutivo (LOURO, 2008, p. 8). Assim, não há sociedade que deixe de considerar as singularidades corporais dos corpos femininos e masculinos, constituindo a partir destas percepções diferenças, sem que isso implique necessariamente em desi- gualdades ou em incomensurabilidade entre os gêneros. As diferenças são construídas como tal, assim como as semelhanças. Acentuamos aquilo que parece fazer sentido para ordenamento dos lugares sociais, dos valores mo- rais vigentes, segundo normas estabelecidas. “A norma não emana de um 38 O GDE compõe um conjunto extenso de programas coordenados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), a partir dediversas secretarias especiais incumbidas de im- plementar políticas públicas voltadas para a diversidade cultural e sexual. Integro, até o momento desta escrita, o quadro de coordenadoras(es) de módulos do GDE ofertado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Desfazendo o gênero | 113 único lugar, não é enunciada por um soberano, mas, em vez disso, está em toda parte. Expressa-se por meio de recomendações repetidas e observa- das cotidianamente, que servem de referência a todos. Daí por que a norma se faz penetrante, daí por que ela é capaz de se ‘naturalizar’” (LOURO, 2008, p. 22). Atualmente, não por acaso, temos vivido um processo intenso e sis- temático de acentuação das diferenças entre homens e mulheres. Nunca o mundo de nossas meninas foi tão rosa e de nossos meninos, absolutamente azul a tal ponto de termos situações como a citada por uma professora que cursou uma das ofertas do GDE: “As próprias crianças estão tão obcecadas por determinados estereó- tipos (ano passado, tomada pela raiva, cheguei a retirar as canetinhas cor-de-rosa da caixa, só pra ver a reação das meninas, elas usaram as outras cores, mas desenharam bem menos, duas delas, ao perceber, escolheram fazer outra atividade).” Quer dizer, ao mesmo tempo em que participamos de mudanças cul- turais significativas nas quais as convenções e normas de gênero binárias e hierárquicas vêm sendo questionadas e desafiadas, temos, em contraparti- da, discursos sutis mas muito eficientes que reforçam a diferença como inco- mensurabilidade, como quase impossibilidade de se viver juntos, um gênero “poluindo” o outro. Trago mais um depoimento gerado no mesmo contexto de discussão, para em seguida partir para outras questões: “Nas minhas turmas sempre surgem conversas, onde as crianças in- terrogam, isso é de menino? Ou, isso é de menina? Essa semana, uma menina, mostrando um lápis de time, me perguntou: Pro [professora], é de menino? Enquanto algumas crianças riam, e então eu respondi com perguntas, ou seja, problematizando: O que vocês acham? Só os meninos podem ser torcedores de time? As meninas não podem ser torcedoras, por quê?” O reforço dessas divisões polares (meninas de um lado, meninos de outro) é uma maneira sutil, mas eficiente, de enfrentar as transformações sociais e culturais pelas quais nossa sociedade está passando, uma forma de “naturalizar” esses lugares, reiterando incessantemente o binarismo quase de forma inconciliável, do tipo “mulheres são de Vênus e homens são de Marte”. O que ganhamos com isso em termos concretos para a qualidade das relações sociais? Creio que nada! 114 | Diferenças na Educação: outros aprendizados • Como podemos enfrentar essas reiterações excludentes dos lugares de gênero? Mais uma vez: não existem fórmulas prontas para isso, pois estas ques- tões surgem e se resolvem contextual e coletivamente. Ainda que como professoras e professores possamos tomar iniciativas individuais, elas só se efetivarão pedagogicamente quando incluídas em um projeto abrangente no qual a escola, como um todo (incluindo pais, mães, funcionárias e fun- cionários, assim como o pessoal técnico-burocrático), estiver envolvida. Isso não implica em imobilismos, claro, mas em busca por parcerias que possam tornar nossas intervenções mais amparadas e fundamentadas. Uma das experiências possíveis para quem trabalha com educação in- fantil é mudar o critério de organização das filas. A cada semana poderíamos adotar um sistema: quem faz aniversário nos seis primeiros meses do ano fica de um lado, e quem faz nos outros seis, de outro; quem prefere gato fica em uma fila e os que preferem cachorro, em outra, por exemplo. Sim, corremos o risco de ficarmos com filas desiguais, mas também criamos a possibilidade de as crianças se socializarem mais com outras a partir de diferenças que as singularizam, mas não as desvalorizam. Provocamos novos encontros dentro da mesma turma, abrimos espaço para que as próprias crianças sugiram cri- térios de organização, além de criar um espaço para se pensar na separação entre meninos e meninas como um critério único e válido. Como estamos ainda falando de memórias e experiências, cito o que ocorreu com uma professora de História em uma turma de primeiro ano do Ensino Médio, pois creio que o exemplo traz estratégias interessantes para tratarmos das questões de gênero que, como logo ficará mais evidente, não se desvinculam facilmente das de sexualidade. Narra a professora que um grupo que se sentava mais à frente na sala de aula começou a rir baixo e olhar para ela. Então, essa minha aluna, professora da turma, perguntou o que estava acontecendo. Uma aluna teve a coragem de dizer: • Estamos rindo porque a gente estava curiosa para saber se você namora. E aí uma pessoa aqui, que eu não vou dizer quem é, disse que você joga em outro time. • Bem, vocês não estão falando de esportes, né? Acho que estão interessa- das em minha vida pessoal e em meus interesses sexuais. E o que seria in- teressante para vocês na minha vida? Talvez vocês se sentissem desconfor- táveis se eu quisesse saber da de vocês, não é? Mas não tenho problemas para falar disso, aliás, a gente deveria falar sobre o que é jogar no outro Desfazendo o gênero | 115 time, né? Mas hoje, como não havia planejado e temos um conteúdo a cumprir, não vamos discutir isso, mas na próxima aula vamos tirar um tem- po para essa conversa, mas com a sala inteira. Eu quero que até lá vocês me digam o que é jogar no outro time, e por que isso pode ser engraçado. Ela saiu de lá tremendo que nem vara verde. Foi falar com a diretora sobre o ocorrido e disse que seria muito importante que o debate fosse feito de forma aberta, honesta e horizontalizada, e que ela se sentia preparada para tal. Anunciou ainda que iria mostrar o material para a direção antes de trabalhar com ele em sala e que se sentiria melhor com a turma se levasse essa discussão não para o lado pessoal, mas para uma reflexão sobre normas e convenções sociais que instituem que há, por exemplo, “um time” no qual a maioria joga, e quem está “jogando” em outro é uma pessoa “suspeita”, o que autoriza que seja inquerida por outras. Ao invés de “abafar o caso”, de silenciar os sussurros, a professora deu a devida importância à questão, buscando respaldo da coordenação para tal e procurando enfrentar temas fundamentais para a formação de suas alunas e alunos, que, ao invés de ficarem com conjecturas muitas vezes atravessa- das por estereótipos sobre gêneros e sexualidade, tiveram a oportunidade de fazer, por meio de dinâmicas (vejam na unidade 4, no item Dinâmicas – brincando com os gêneros, levando a sério nossas questões) uma discussão orientada e qualificada destas questões. Silêncios e sussurros: arquitetando os gêneros Michel Foucault, filósofo francês com uma vasta obra sobre construção de conhecimento, sexualidade, formas de se educar corpos e subjetividade, es- creve que os silêncios são discursos poderosos. Sobre o que calamos? O que não é digno de se estudar? Por que não discutimos, por exemplo, a Guerra do Chaco, que se estendeu entre os anos de 1932 a 1935, aqui na América do Sul, envolvendo Paraguai e Bolívia e grandes trustes de petróleo? Este conflito deixou quase 1 milhão de mortos! Passou-se em países fronteiriços e, ainda assim, nada consta em nosso material didático sobre o tema. Por quê? Quem eram aqueles mortos? Corpos que “não importavam”, de indígenas, de pes- soas simples, aquelas que não têm o privilégio de escreverem suas próprias histórias. Daí o silêncio. Este artifício do “calar sobre algo” nos ensina sobre poder, política, prestígio pela invisibilização de determinadas versões dos fa- tos e, mais grave, de determinados grupos sociais, criando um círculo vicioso: quanto menos sabemos sobre eles, mas o desprezamos. 116 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Este exemplo pouco tem a ver com gênero, mas está estreitamente re- lacionado às nossasvivências escolares e nos provoca ainda mais interroga- ções. Sobre o que falamos e sobre o que calamos? Quando fazemos estas perguntas, acabamos por perceber que invisibilizamos o que não nos parece importante. Talvez, por isso, algumas experiências de nosso cotidiano es- colar sejam silenciadas ou apenas sussurradas. Entre elas estão aquelas em que os gêneros nos desafiam. Creio que a maioria de nós tem um exemplo neste sentido: o aluninho que queria brincar de bonecas; a menina que não abria mão do boné como parte de sua indumentária diária; o adolescente que começou a mudar sua maneira de andar e se adornar, até o dia em que apareceu na escola com unhas pintadas e sobrancelhas feitas... Em todos os casos temos bastantes dificuldades em saber como agir, e não poderia ser diferente, pois em nossa própria formação não tivemos discussões qualifica- das sobre relações de gênero e sexualidade, como se esses fossem temas menores, secundários ou pouco relacionados à vida escolar. Vamos buscan- do nos qualificar em cursos de formação continuada, em leituras autodidatas ou participando de oficinas e palestras que versam sobre essa temática. Foi ao ministrar cursos assim que a psicóloga e doutora em Educação Elizabete Cruz se deparou com eloquentes “silêncios”. Entre 2005 e 2006, Cruz foi professora do módulo “O cotidiano da Esco- la” em um curso de especialização em gestão educacional para diretores de escolas da rede estadual de São Paulo, realizado pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Foi nesta função que começou a se dar conta que uma das questões que mais desafiava suas turmas era relativa aos gêneros não binários, quer dizer, sobre alunos e alunas que vivem nas fronteiras do masculino e do feminino, aqueles e aquelas que por motivos diversos não estão conformes aos rígidos padrões que ditam como deve ser e agir um homem e como deve se comportar e ser uma mulher, a partir de modelos que pregam que há um homem e uma mulher absolutos. De alguma forma, pensem bem, todas nós, todos nós violamos a rigidez binária. Vou adiar um pouco mais esta discussão para poder entrar logo na problemática que nos apresenta Elizabete Cruz. Em seu livro Banheiros, travestis, relações de gênero e diferenças no co- tidiano da escola (2011), Cruz procura discutir sua experiência [a] partir de situações concretas e cotidianas para criar problematizações sobre a construção de identidades de gênero e suas possíveis implica- ções para a educação. O que interessa aqui, portanto, é pensar, refletir Desfazendo o gênero | 117 que nestas experiências identitárias há algo em comum: o rompimento de uma visão binária dos gêneros estabelecida a partir do biológico e a reinvenção das possibilidades masculino-feminino [...]. Nesta experiên- cia docente observei que a presença de travestis na escola provoca uma grande inquietação. Em uma das primeiras turmas, uma aluna/diretora trouxe uma questão: Tem um aluno, o João, que se veste como uma menina e disse que agora é Joana. Desde então, surgiu uma questão. Qual banheiro ele deve usar? O dos meninos ou das meninas? Deu a maior confusão! As meninas não querem que ele use o banheiro delas, os meninos também não. Como resolvemos? Ele usa o banheiro da diretora. Mas agora, a partir de sua aula, estou pensando: Será que resolvemos a questão? Será que demos o melhor encaminhamento? (CRUZ, 2011, p. 75-76, grifos do original). Eu mesma adotei este texto em um curso de formação continuada a distância, o GDE, por duas ofertas consecutivas. Em ambas, a leitura fazia parte de uma atividade on-line chamada “Fórum de debates”, na qual seria necessário, ainda, assistir ao vídeo Encontrando Bianca,39 que compunha o chamado Kit anti-homofobia produzido pelo Ministério da Educação e Cultura, mas que foi vetado pela Presidência da República e, portanto, não distribuído (ver box de dicas de material audiovisual ao final deste capítu- lo). O enunciado do Fórum orientava a atividade que tinha como objetivo “promover interação e troca de ideias” entre a turma, além de “estimular o debate articulado e refletido” acerca de dois materiais que deveriam ser colocados em diálogo. O tom geral do debate, em todas as salas virtuais, era de empatia em re- lação a Bianca, a jovem travesti que protagoniza o vídeo. Muitos comentários traduziam a admiração pela persistência suave daquela aluna fictícia, mas possível, em ser aceita no ambiente escolar. Havia muitas Biancas, reconhe- ciam as(os) cursistas, como também identificavam no cotidiano exigente de suas escolas dificuldades para lidar com temas como aquele. Afinal, discutir relações de gênero, sexualidade e convívio com as diferenças é entrar no 39 Encontrando Bianca é o terceiro vídeo do conjunto de produções audiovisuais que es- tava sendo formulado pelo MEC como material para subsidiar o combate à homofobia nas escolas. Em maio de 2011, o chamado “Kit anti-homofobia”, que ainda estava em elaboração pelo MEC, teve sua elaboração e distribuição suspensas por veto da presi- denta Dilma Rousseff. 118 | Diferenças na Educação: outros aprendizados delicado terreno das intimidades, é mexer com moralidades, desestabilizar certezas, provocar incômodos que podem gerar insatisfação por parte de pais e dos próprios pares, ao mesmo tempo que demandavam da tutoria do curso, bem como da coordenação, respostas mais efetivas que pudessem ser aplicadas na prática docente. Mostravam-se, por vezes, incomodadas e incomodados por não saberem como deveriam nomear estas outras ex- pressões de gênero e de sexualidade fora da heteronormatividade, pois não haviam sido formad@s para tal. [E]sse “incômodo” com as ferramentas educacionais incapazes de fazer frente à realidade de pessoas fora da norma, essa vontade de acolhê-las ao invés de julgá-las, frequentemente se expressa em questões como: Como chamo tal pessoa? O que é tal aluno? Ele é travesti? Ele é transe- xual? E foi um desafio lidar com estas questões, foi muito difícil explicar que era justamente isso que a gente não queria, não queríamos embar- car no processo de criar um escaninho das espécies sexuais alocando cada uma em uma caixa ou identidade. Evitar esse tipo de abordagem classificatória é uma forma de realmente transformar a experiência edu- cacional (MISKOLCI, 2012, p. 17-18). O desafio de se trabalhar fora dos marcos identitários e das referências binárias relativas aos gêneros e à orientação sexual é exigente, pois demanda torções na nossa forma de perceber as dinâmicas sociais que oferecem esses termos classificatórios capazes de definir e fixar identidade, de maneira que a pergunta crucial deixa de ser “o que é Bianca?” e se desdobra em muitas outras questões importantes: “Por que não sabemos dizer quem ela é, sem acionar termos desprestigiosos ou patologizadores?”; “Como esses termos foram entrando em nosso vocabulário?”; “Quem tem autoridade para dizer quem ela é, e por que conferimos a determinados saberes esses poderes?”. Quando deslocamos nosso olhar do indivíduo para as normas e convenções sociais que o conformam, criamos um campo complexo de tensões, eviden- ciando que sexo e gênero são, antes, questões de Estado, e, portanto, públi- cas, não de foro privado. São antes políticas do que biológicas. Então, vou mais uma vez lançar algumas perguntas, que são de fato pro- vocações, quer dizer, convites para pensarmos sobre estes desafios. Começo pela tensão entre privado e público (mais um dos binarismos que nos [des] orientam, posto que estes limites são muitos mais borrados do que querem nos fazer acreditar). Desfazendo o gênero | 119 • O uso dos banheiros é um problema de foro íntimo ou um problema político? Muitas vezes, em nosso dia a dia, ouvimos expressões do tipo “cada cabeça uma sentença”, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, “gosto não se discute”, sugerindo que se trata de assuntos pessoais, indivi- duais e que, portanto, não devem ser discutidos, tampouco sofrer interfe-rências externas. Bem, muitas questões tidas pelo senso comum como de foro íntimo e privado são na verdade públicas, por isso, políticas (a origem da palavra política, não custa lembrar, é polis = cidade-estado). Vou me demorar pensando nos ditados citados acima. Não tenho dúvidas que somos seres autônomos, e somos capazes de formular nossas opiniões de maneira resoluta. Mas “cada cabeça uma sentença” não considera que não “fazemos nossa cabeça” sozinhos, sem influências de inúmeras ideias e valores que são coletivos, que trazem marcas de classe, religiosas geracio- nais. Assim, ocorre também com o gosto. Claro que se discute, caso contrá- rio nem teríamos necessidade de um ditado que afirma o contrário. Gosto tem a ver com o momento histórico (basta olharmos nossas fotos antigas para rirmos de nossos penteados de anos atrás), com pertencimento de clas- se (daí expressões como “brega”), com valores culturais (não aprendemos a achar pessoas negras bonitas); relaciona-se ainda com as mídias capazes de estabelecer padrões rígidos de beleza moldando corpos e subjetividades. Aliás, o corpo, este espaço que percebemos como exclusivamente indi- vidual, é também um espaço político. Vejam que hoje temos leis que coíbem e punem ações “privadas” sobre os corpos de mulheres e crianças, procu- rando protegê-las da agressão doméstica (quer dizer, daquele que ocorre no âmbito privado). Temos na Constituição brasileira leis que procuram pro- teger pessoas a partir das suas marcas corporais, sejam étnicas, raciais ou por alguma deficiência física. Essa maneira de olhar para o corpo implica entendê-lo não apenas como um dado natural e biológico, mas, sobretudo, como produto de um intrínseco inter-relacionamento entre natureza e cultura. Em outras palavras: o corpo não é algo que está dado a priori. Ele resulta de uma construção cultural sobre a qual são conferidas diferentes marcas em diferentes tempos, espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais, étnicos etc. (GOELLNER, 2010, p. 72). 120 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Estas marcas, ainda que naturais, só ganham significado pela linguagem. A forma como adjetivamos, ironizamos, respeitamos, nomeamos esses sinais diacríticos que os corpos trazem carregam as marcas da cultura, do social e, assim, do político. • Gênero é político? Os diferentes movimentos feministas provaram que sim. Ao lutarem por direitos iguais aos dos homens, muitas mulheres mostraram que as diferen- ças naturais não justificavam as opressões sociais. Questionaram também determinados campos de saber, como a psiquiatria, a medicina social, que, entre outras ciências, asseveravam que as mulheres eram emocional e fisi- camente mais fracas do que os homens. Bem, podemos nos perguntar: que mulher? Será que uma mulher negra, escrava, um dia foi vista por aqueles mesmos cientistas como pertencendo ao “sexo frágil”? A terrível prática dos estupros de guerra prova de maneira cruel o quan- to o gênero pode se transformar em uma arma. Não é o fato de terem pênis, e mulheres, vaginas, que se justifica essa violência, mas a forma como de- terminados homens entendem sua relação com o seu próprio corpo e como são ensinados a perceberem as mulheres. Nosso próprio vocabulário de palavrões evidencia como aprendemos a entender a genitália masculina como legitimamente opressora e violadora. Basta fazermos uma lista de apelidos populares dados ao pênis para que o desnaturalizemos como mero órgão reprodutor para dar a ele o seu sentido cultural e social nas relações de gênero. Muitos destes termos estão associa- dos a armas, a instrumentos de combate. Enfim, a maneira como devemos performar o gênero que nos foi atribu- ído não é uma questão pessoal; basta observarmos nossas reações diante de alunos e alunas que parecem não atender às expectativas relativas ao seu gênero. Não é raro ouvirmos que aquel@ jovem ou criança é “estranha”, “esquisita”, “suspeita”. Esta última atribuição normalmente está relacionada à sexualidade. Quando ouvimos (ou pensamos) que fulaninho ou fulaninha são suspeitos, do que exatamente estamos duvidando? Suspeitar é, neste contexto, desconfiar de uma possível falha. Qual seria ela? Arrisco dizer que duvidamos da heterossexualidade daquelas pessoas. Essa suspeita, não raro, desencadeia uma série de processos de exclusão social bastantes sensíveis dentro da escola. Em alguns casos, a violência simbólica deriva em violência física, o que, no limite, pode levar à “evasão involuntária”. Este é um conceito Desfazendo o gênero | 121 cunhado por Luma Andrade, doutora em Educação e a primeira travesti bra- sileira a ingressar como docente em uma Universidade Federal (Universida- de da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB). Ou seja, não atender às expectativas de gênero pode derivar em uma série de exclusões sociais que são em si políticas, pois estamos no campo das relações de poder, considerando quem “pode” ser incluído na nossa sala de aula, quem não merece estar ali. Quem “pode” ser respeitad@ e quem não terá este direito. Onde devemos defecar ou urinar, com quem podemos nos casar, qual nome estamos autorizados a usar, quem pode ter quantos filhos desejar e quem não pode? (caso da classe média, julgando o número de filhos que as classes populares têm). Ao respondermos estas perguntas, nos damos conta que todos esses temas relativos à sexualidade e ao gênero são antes ques- tões de Estado que questões da biologia ou da conta de cada um, ou seja, o que ocorre no espaço privado e individualizado por excelência, o nosso próprio corpo, não escapa às normas coletivas e aos enunciados de poder. Sendo assim, a discussão sobre o uso dos banheiros na escola não se trata de atender a “caprichos” de algumas pessoas, mas de um profundo de- bate pedagógico suficientemente complexo para exigir que, antes de tomar posições taxativas ou propor receitas, precisamos refinar conceitualmente nossas percepções sobre gênero e sexualidade. • Genitália define o gênero? Bem, aprendemos que sim, que se alguém tem vagina é menina/mulher e se tem pênis é menino/homem. Simples, como algumas/alguns de vocês co- mentaram, só que não. O sexo genital não define gênero, até porque gênero é um construto social, ou não? Se muda de sociedade para sociedade, se se transforma ao longo da história, se tem conotações distintas dependendo da cultura, me parece, sim, que se trata de um construto. Será que somos sempre 100% mulheres ou 100% homens? Em alguns momentos, temos que agir a partir de referentes que são socialmente vistos como masculinos, por exemplo, sendo fortes e até violentas. O mesmo se passa com os homens. Bem, se gênero fosse uma derivação absolutamente natural da genitália, não precisaríamos reiterar constantemente os ensinamentos de gênero: “menino não chora”; “se senta como uma menina”; “menino não brinca de casinha”; “menina não faz estas coisas”... E como fica o caso, nada raro (mas 122 | Diferenças na Educação: outros aprendizados muito silenciado), das crianças que nascem com genitália ambígua? (aquelas que eram chamadas de hermafroditas, mas que hoje são nominadas de in- tersexuadas). Como elas podem até mesmo ter uma certidão de nascimento quando nascem com a genitália ambígua? Os médicos definem, mas nem sempre “acertam”, o que causa muitos problemas para as famílias, pois nosso corpo é bastante complexo e não ganha seu significado completo só por meio dos hormônios, genes, órgãos, mas também, e sobretudo, socialmente. • Arquitetura tem gênero? Nossa arquitetura, por si só, é generificada e marcada por relações de poder. Assim, a instituição escolar não seria diferente. As salas de aula gri- tam autoridade (basta ver como estão organizadas); anfiteatros explicitam a quem pertence a fala e quem deve apenas escutar; a ausência de rampas nas ruas dizem em silêncio a quem o espaço público deve pertencer. Os banheiros expressam materialmente nossa visão degênero. Nossa pedagogia de gênero insiste que banheiros precisam ser sepa- rados porque ensinamos às meninas que meninos são perigosos e elas são presas fáceis; e ensinamos aos meninos que eles devem ser perigosos e ousados sexualmente. Portanto, a discussão sobre banheiros não é sobre banheiros para homo e heterossexuais, mas sobre como ocupamos os espa- ços públicos a partir de um lugar de gênero. Por exemplo, uma mulher que decide à noite sentar-se à mesa de um bar para beber sozinha uma cerveja será vista como “disponível”, em busca de uma aventura, e pode ser, assim, assediada, ter seu espaço invadido por homens que supõem que é isso que ela quer e busca. O mesmo pode se passar com uma mulher que deseja sentar-se sozinha em um banco de praça em plena tarde de domingo para desfrutar do prazer de estar ao sol, lendo uma revista ou um livro. Ou seja, o espaço público não pode ser usufruído da mesma forma por homens e mulheres. Sabemos que se por um acaso alguma dessas mulheres dos exemplos que usei forem agredidas não será difícil que elas sejam vistas como culpadas pela violência sofrida e não como vítimas de um regime machista que restringe o uso do espaço público às mulheres. E pior, o faz em completo silêncio. Não há leis que proíbam mu- lheres de se ir a bares ou bancos de praça sozinhas. Os meios de comunicação de massa têm sido canais potentes de reafirmação de lugares de gênero essencializados, como também de Desfazendo o gênero | 123 transformação de nosso olhar. Uma série como “Malu Mulher”, que foi ao ar pela Rede Globo no final dos anos 1970, foi capaz de pautar na cena pública uma série de discussões que acreditávamos serem privadas e individuais relativas às relações de gênero, tais como o direto das mulheres ao prazer sexual, de terem seu trabalho doméstico reconhecido e valorizado, de po- derem trabalhar fora sem sofrer represálias em casa, de serem reconhecidas profissionalmente e, talvez o mais polêmico para a época, de poderem se separar sem ter sua moral destruída socialmente. Hoje em dia esta influência se intensificou graças ao aumento de acesso e à proliferação de canais midiáticos, de maneira que não podemos des- considerar esse influente campo de pedagogização de gênero e a maneira como ele entra nas nossas salas de aula. Podemos tê-los como aliados, ao invés de apenas demonizá-los, acionando a já gasta frase que prega ser “tudo culpa da mídia”, como se esta não fosse produto de nossas próprias relações. É sobre essa maquinaria sedutora e sua relação com nosso tema neste capítulo que versa a próxima unidade. UNIDADE 3 Gênero na mídia – e a escola com isso? Mocinhas e heróis: a vida em preto e branco No documentário intitulado Filmes ruins, árabes malvados: como Hollywood vilificou um povo (ver referência no box de dicas de material au- diovisual), o diretor Sut Jhally40 mostra como o cinema norte-americano foi capaz de, ao longo de 100 anos de produções, fixar no imaginário ocidental uma visão estereotipada dos povos árabes como sendo, sobretudo, com- posto de homens barbudos, um tanto sujos, malvados, ardilosos e violentos, inclusive com suas próprias mulheres, que são tratadas de forma submissa e aviltante. 40 O documentário é baseado em livro homônimo escrito por Jack Shaheen, professor da Universidade de Ilinois e estudioso do assunto. 124 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Os estereótipos são descritores potentes, mas perigosamente simplifi- cadores, que acabam por fomentar visões preconceituosas sobre aquele de quem se fala. Nas palavras de Janaína Damasceno, produzir estereótipos serve para a manutenção tanto da ordem social quanto da ordem simbólica de nossa sociedade. As dificuldades im- postas pelo seu uso se referem ao seu caráter de reduzir, essencializar, naturalizar e fixar a diferença do Outro. Para tanto, o estereótipo usa a “cisão” como estratégia. Ele divide o normal e o aceitável do anormal e do inaceitável. Então exclui ou expele tudo aquilo que não se adapta, que é diferente (HALL apud DAMASCENO, 2008, p. 3). Logo nos primeiros momentos do documentário de Jhally vemos as ce- nas de um dos clássicos da Disney, Aladim (1992). O desenho começa com uma canção que diz: “Venho de um país, de uma terra longínqua, onde va- gam as caravanas de camelos, de onde cortam sua orelha, se não gostam de sua cara. É bárbaro, eu sei, mas, hey, esse é meu lar”. O apresentador do documentário, o professor Jack Shaheen, então nos interroga: “como um produtor com o mínimo de inteligência, com uma sensibilidade mínima, per- mite que uma canção assim inicie um filme?”. Esses exemplos iniciais, aparentemente descolados da questão de gê- nero, nos ajudam a dar uma dimensão crítica e abrangente aos produtos cul- tuais, sejam desenhos animados, contos de fadas, filmes diversos, romances, novelas, e até propagandas de TV. Trouxe-os a fim de propor que agucemos nosso olhar, que aprendamos a ler as várias camadas de significados que compõem e conferem sentido a essas produções. Assim, podemos pensá- -las não apenas como nocivas, mas nos aproveitarmos delas para fazer pen- sar. Afinal, atualmente não temos como esquecer [...] a sedução e o impacto da mídia, das novelas e da publi- cidade, das revistas e da internet, dos sites de relacionamento e dos blogs? Como esquecer o cinema e a televisão, os shopping centers ou a música popular? Como esquecer as pesquisas de opinião e as de consumo? E, ainda, como escapar das câmeras e monitores de vídeo e das inúmeras máquinas que nos vigiam e nos “atendem” nos bancos, nos supermercados e nos postos de gasolina? Vivemos mergulhados em seus conselhos e ordens, somos controlados por seus mecanismos, sofremos suas censuras. As proposições e os contornos delineados por essas múltiplas instâncias nem sempre são coerentes ou igualmente Desfazendo o gênero | 125 autorizados, mas estão, inegavelmente, espalhados por toda a parte e acabam por constituir-se como potentes pedagogias culturais (LOURO, 2008, p. 19). Quero que vocês se concentrem bastante na ilustração que escolhi para pensarmos sobre essas formas quase “inocentes” de pedagogizar os gêne- ros. As imagens também são textos e precisamos treinar esta leitura, assim como ensinar essas leituras para nossas alunas e nossos alunos. Figura 2 Montagem de Bruno Braga. O que eu leio nesta imagem, que deve ter recebido umas 100 curtidas no Facebook, é que o homem fala; o homem é ativo; homem que é homem é dono de si e de uma mulher e usa violência legitimamente se for preciso para garantir estas posses. Mas, vejam, não é qualquer projeto de masculinidade que vemos aí (por isso eu dizia mais acima que aqueles filmes não falam só de regimes políticos ou de pertencimento racial, mas também de projetos de gênero). Trata-se de uma masculinidade branca, burguesa, classe média, engravatada, com poder de consumo... Uma masculinidade que está acostumada a oprimir outras masculinidades e muitas feminilidades. Gênero, sexualidade, classe e raça são marcadores sociais que estão sempre relacionados, ainda que muitas vezes não os percebamos assim. Essa imagem nos ajuda a entender que gênero é algo que se aprende a partir de pedagogias domésticas, escolares e midiáticas. Vocês sabem que aprendemos a sonhar, a desejar, a recusar, vendo filmes, novelas, propagan- das. Claro que nossas alunas e nossos alunos também agem desta forma. Aprendem, por exemplo, que rosa é cor de menina e azul de menino vendo as persistentes propagandas de brinquedos. Sonham em serem mais bem 126 | Diferenças na Educação: outros aprendizados aceitas ou aceitos se conseguirem se parecer com ídolos da música pop, as- sim como aprendem que ser igual ao “gay da novela” ou à “piriguete” é algo ruim. Quase sempre, personagens assim funcionam a partir de estereótipos, são tipos e não seres humanos complexos, como, aliás, somos tod@s nós. Os materiais didáticos são também importantes fontes de referências.Orientam nosso olhar e moldam nossos valores a partir de mensagens apa- rentemente simples e inocentes. Quando, por exemplo, trabalhamos com uma cartilha na qual a família é toda branca, mora em uma casa de alvenaria, é formada por pai, mãe e por um casal de filhos e a lição se chama “A família feliz”, @s alun@s vão aprendendo que esse é o modelo desejável, e que nem sempre ele se parece com a sua própria família. Ao desconsiderarmos outros arranjos domésticos, os desprestigiamos também, vamos construindo silen- ciosamente fronteiras entre o norma = desejável e o anormal = desprezível. Uma das professoras que participou do curso de formação continuada GDE, ofertado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), trouxe um exemplo que nos ajuda a seguir com essa reflexão. Escreveu ela em um dos fóruns de debates: [...] Hoje, durante uma capacitação de determinado sistema de ensino (que o município em que atuo como profª e coordenadora vai adotar), estive diante de uma situação de claro equívoco. Numa apostila (para crianças de Pré II – 5 anos) havia a imagem de um quarto, com cama, ta- pete, abajur, boneca, ursinho etc. No rodapé havia uma pergunta: “Este quarto é de menina ou menino?”. A cursista e professora, autora da postagem acima, levou em frente essa discussão com as(os) colegas, que não sabiam exatamente como conduzir a turma para a resolução “correta” do exercício. Bem, a primeira questão que aparentemente está posta nesse treina- mento é a de educar para exercer “corretamente” os lugares de gênero: coisas de menino X coisas de menina; comportamento de menino X com- portamento de menina; do que gostam (ou devem gostar) meninos X os gostos de meninas. Mas se mudarmos nosso olhar, mudamos também a pergunta, ou melhor, vamos elencar uma série de outras perguntas que estão silenciadas pelo enunciado desse exercício proposto no curso de “capacitação” (permitam- -me colocar entre aspas, pois tenho dúvidas sinceras sobre para o que e como se está capacitando com este tipo de dinâmica). Desfazendo o gênero | 127 Creio que a primeira pergunta sobre a ilustração do quarto pouco tem a ver com gênero, mas com outro importante marcador das diferenças so- cialmente impostas: a diferença de classe social. Creio que a pergunta que mais faria sentido para nossas alunas e nossos alunos seria se aquele quarto é de “rico” ou de “pobre”, para usarmos a linguagem do senso comum. Quantas crianças que estão hoje nas escolas públicas têm um quarto indi- vidual e inteiramente decorado? Quantas dormem em uma cama sozinhas, sem ter de dividi-la com a mãe, a tia, algum dos irmãos? Podemos continuar perguntando, mas não quero ser exaustiva. Voltemos ao ponto de torção que considero importante. Em um exercício como o proposto àquelas professoras e aqui narrado pela cursista, estamos aprendendo a ver, a ler imagens, mas também esta- mos aprendendo (e posteriormente ensinando) sobre silêncios. Silenciamos sobre as diferenças de classe em uma atividade como esta, mas também silenciamos sobre as inúmeras possibilidades de se viver em família, de se experienciar o gênero e mesmo a raça e a etnia. Ensinamos que existe um modelo “certo” de se viver, morar, dormir, organizar a vida doméstica e de enfeitar o ambiente. Quer dizer, quem não consegue enxergar ali um quarto de menina, errou, pois aquele quarto tem muitas outras informações. NÃO é um quarto de uma criança das classes populares, NÃO é um quarto de uma criança indígena, NÃO é um quarto onde dormem meninos e meninas, NÃO é um quarto de uma criança católica... e por aí vai. De quem será então este quarto? De uma hipotética menina perfeitamente ajustada ao modelo hegemônico de gênero, classe e raça, como costumam ser as princesas dos desenhos da Disney. Quando oferecemos às nossas crianças e adolescentes uma pluralidade de estórias, estamos também ofertando um mundo mais diverso de possibi- lidades de verem o mundo e de se verem nele. Vejam, a única princesa negra da Disney nem sequer era uma princesa, mas uma jovem empreendedora que sofreu um encanto e se transformou em sapa, voltando à forma huma- na com a ajuda de encantamentos e, claro, de um sapo/príncipe fanfarão e meio falido, proveniente de uma país “exótico”. Nada de príncipes europeus e heroicos para a humilde e batalhadora Tiana de A Princesa e o Sapo (2009). Sim, pela primeira vez meninas negras puderam se ver como heroínas de contos de fada – não podemos desprezar este fato –, mas quando essa possibilidade apareceu, lá estavam elas como mulheres submetidas ao tra- balho árduo e à condescendência dos brancos. Pelo menos saímos do clichê 128 | Diferenças na Educação: outros aprendizados mocinha cordata e meiga, à la Cinderela, e mocinhos galantes e valentes, do tipo que monta cavalos brancos e parece não ter uma mácula, nem em suas roupas, nem em sua vida, para uma trama mais nuançada. Em um vídeo imperdível gravado a partir de uma palestra que realizou, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie nos alerta para os perigos das estórias/histórias únicas (ver a referência nas dicas de materiais audiovisuais no final deste capítulo). Ela conta que foi uma leitora e uma escritora preco- ce. Filha de profissionais liberais, lia avidamente livros ingleses, herança dos anos de colonização britânica em seu país, a Nigéria, leituras que impregna- vam sua imaginação infantil e a estimulavam a contar, ela também, estórias. Mas como só lia livros que falavam da realidade britânica, suas narrativas ficcionais falavam de neve, frutas europeias e de pessoas que nada tinham que ver com a realidade dela; porém, era bom poder viajar por meio dos livros. “Eu escrevia exatamente sobre o que lia”, revela a escritora. Essa ex- periência foi tão significativa que, para ela, livros eram sempre estrangeiros. Por isso ficou gratamente surpresa quando descobriu diferentes escritoras e escritores african@s e assim encontrou a si mesma nas páginas que antes só tinham pessoas de olhos azuis e peles brancas. Isso mudou sua mentalidade, pois aqueles livros a salvaram “de uma história única”, de ser invisível para a literatura, de não poder ler ou escrever sobre pessoas e coisas nas quais se reconhecia. Adichie conta, ainda, que aos 19 anos foi estudar em uma universidade norte-americana e que lá sua colega de quarto logo a olhou com imensa compaixão, pois imaginou a fome que Chimamanda Adichie havia passado, de como deveria ter tido uma vida precária longe da “civilização” (que pelo menos desde as Grandes Navegações está associada à branquitude). Quis saber onde sua colega africana havia aprendido a falar tão bem inglês, como tinha conseguido estudar e se preocupou se ela saberia usar um fogão. Interessante é que não aprendemos a ver a moça norte-americana como ignorante (no sentido lato de ignorar fatos), pois ela nem sequer sabia que a Nigéria havia sido colônia britânica, daí o inglês de Adichie, ou que se trata de um país que tem hoje uma das economias que mais cresce no mundo, que é o mais populoso da África, onde é uma potência regional. Mais fácil para nós seria reproduzir a “arrogância bem intencionada” (palavras de Adi- chie) da estudante branca, pois, como ela, nós também só tivemos acesso à história única, aquela que trabalha com os estereótipos, que é unidimensio- nal, maniqueísta, aquela que deixa a vida monocromática. Desfazendo o gênero | 129 Como Chimamanda Adichie, não creio que ler livros estrangeiros ou ver novelas das oito ou ler estórias de princesas loiras seja um problema por si. Como ela, penso que o problema se dá justamente quando ficamos limita- das e limitados a um único tipo de mensagem, não importa o meio pelo qual esta seja veiculada. Mariana Barros, psicóloga e antropóloga, inicia sua tese de doutorado contando sobre seu trabalho em uma Escola Municipal infantil em um bair- ro da periferia da cidade de Ribeirão Preto (SP). Como estagiária cabia-lhe, entre outras atribuições, reunir-se coma criançada no pátio para contar estó- rias. Mariana ficava um tanto frustrada por não conseguir toda a atenção das crianças, mas se sentia acolhida por elas, que logo começaram chamá-la de “tia sereia”. Ela ficou intrigada com o apelido e argumentou, certa feita, que não tinha cabelos ruivos como os de Ariel, a pequena sereia dos filmes de Disney; além disso, ela tem pernas. Intrigada com o novo apelido, resolveu perguntar ao seu supervisor de estágio o que aquilo poderia significar. “Ma- riana, esta sereia está mais para Iemanjá do que para outra coisa” (BARROS, 2010, p. 22). A curiosidade de Barros só aumentou. Foi então que ela procurou saber mais do universo mitológico das religiões de matriz africana. Percebeu logo que não havia livros infantis que contassem estes contos. Teve que usar a imaginação, pois percebeu que ali havia todo um mundo rico e imaginativo que parecia falar mais de perto às crianças do que suas estorinhas, que não prendiam muito a atenção. Fez fantoches representando as figuras dos ori- xás e passou a contar seus mitos. Na primeira apresentação, estava rodeada de nada mais, nada menos, do que quarenta crianças. Para chamar-lhes a escuta em minha direção, iniciei com um sonoro “Cabrum!”, e mais outro e mais outro, simulando o barulho do trovão evocado por Xangô. Todos silenciaram e abriu-se espaço para a primeira história: “Xangô, o rei trovão”. [...] Mal comecei a história, um dos meninos perguntou: “Tia, Xangô era preto?”. Quando afirmei que sim, ele repetiu: “Preto assim, tia? Preto que nem eu?”, apontando para sua pele. Reafirmei. O menino levantou apressado, saiu correndo com os braços para o alto e o sorriso nos lá- bios, encarnando legitimamente um rei-herói: “Eu sou rei! Eu sou o rei do trovão!” (BARROS, 2010, p. 23). 130 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Talvez, aquela tenha sido a primeira vez que o aluno de Mariana Barros pode se orgulhar de ser negro e de ter referências positivas relacionadas à negritude. A psicóloga não pretendia converter-se nem converter ninguém com suas estórias de orixás, mas ampliar a imaginação da garotada. Não foi propriamente fácil fazer isso, pois logo deparou-se com a escassez de material didático e, por sorte, não se deparou com resistências religiosas dentro da escola ou vinda dos pais. Mas se tivesse se deparado, como ela poderia proceder? Não há uma única resposta para esta pergunta, mas existem condutas para as quais devemos estar atentas e atentos. Uma delas é levar nossos projetos ao conhecimento da coordenação/direção, defendê-los e pedir respaldo e apoio. Convidar pais e mães para vir eles mesmos, ler as estórias ou ouvi-las. Mesmo que não venham, serão comunicados do que estamos fazendo e do por que o fazemos, além de se sentirem mais integrados. Não estou afirmando que isso resolve o problema, apenas sugerindo que são passos que podem evitar desentendimentos. Gênero na mídia, diálogos possíveis e tensões necessárias As estórias infantis alimentam nossa imaginação tanto quanto nos forne- cem modelos morais, éticos e identitários, não só de gênero, mas também relativo a outros lugares sociais: como ser uma boa criança; o que é uma boa mãe ou um bom pai; como devemos nos comportar como alunos(as), a ser mulher e a ser homem. Vamos aprendendo a ser sujeitos generificados desde o momento em que nascemos, e essa aprendizagem ocorre não somente nas institui- ções sociais formais como a família e a escola. Ela acontece também através da mídia, dos brinquedos, das músicas e dos desenhos anima- dos que integram este universo infantil (RAEL apud BELELI, 2010, p. 65). Contemporaneamente, talvez as mensagens que mais eficazmente atu- am como referentes morais, valorativos e identitários venham do campo da publicidade. A linguagem conotativa e apelativa da propaganda é, além de sedutora, ligeira, rápida, mas impregnada de significados, cheia de signos que nos permitem, como educador@s, explorá-la grandemente. Afinal, como afirma Ruth Sabat, [a] publicidade é um dos artefatos que estão inseridos em um conjunto Desfazendo o gênero | 131 de instâncias culturais e como tal funciona como mecanismo de re- presentação, ao mesmo tempo em que opera como constituidora de identidades culturais. Muito mais do que seduzir o(a) consumidor(a), ou induzi-lo(a) a consumir determinado produto, tais pedagogias e currícu- los culturais, entre outras coisas, produzem valores e saberes; regulam condutas e modos de ser; fabricam identidades e representações; constituem certas relações de poder (SABAT, 2001, p. 10). A análise que nos oferece Iara Beleli, a partir de uma peça publicitária, nos ajuda a perceber como, mesmo sem sermos consumidor@s das merca- dorias postas à venda pelos anúncios, somos consumidores de suas mensa- gens e nos orientamos, em maior ou menor grau, por elas. Figura 3 “Um sujeito careca e desdentado me convenceu a fazer um seguro”. As fotografias apontam para diferentes enquadramentos – a primeira centrada na bunda, a segunda na face. Se ambas as imagens mostram bebês desnudos, a nudez quando vinculada à “mulher” transforma a ausência de vestimenta (uma primeira definição do substantivo nudez) em adjetivo. Na segunda imagem, essa mesma nudez não é mencio- nada, em seu lugar aparece o “sujeito” que faz a ação. As imagens, sozinhas, não permitem afirmar o sexo dos bebês, a diferença sexual é explicitada quando articulada ao texto, ecoando as afirmações de Judith Butler (2002), que o sexo adquire sua materialidade através de um discurso engendrado [de gênero] (BELELI, 2010, p. 66). Judith Butler, autora citada por Beleli, afirma que o gênero é discursivo, quer dizer, vai sendo construído por distintas linguagens que, mais do que descrevê-los, formam o que ele é. Vejamos. Quando o médico diz “é uma menina”, mais do que descrever o que viu no ultrassom, ele está oferecendo 132 | Diferenças na Educação: outros aprendizados todo um roteiro cultural aos pais daquela criança. Provavelmente, saíram do consultório em busca de ornamentos rosados para o quarto do bebê, ima- ginaram um futuro no quais profissões tidas como femininas serão elenca- das, imagina-se um rapaz em seu futuro amoroso..., de forma que o gênero da criança já aparece estreitamente vinculado à sua genitália, como se ele, o gênero, derivasse da vagina ou do pênis e não destes tantos discursos normativos que nos ensinam persistentemente o que é ser uma “mulher de verdade” ou um “homem de verdade” (BUTLER, 2003). A publicidade, mais do que nos manipular como se fosse uma força ma- ligna e externa à sociedade, dialoga com as percepções coletivas, por isso seduz, pois não questiona ou entra em conflito, ao contrário, via de regra, reitera o senso comum, tratando as posições dominantes como se elas fos- sem as únicas, as normais, as desejáveis. Isto se dá não só no campo das relações de gênero, mas são estas que nos ocupam neste capítulo, por isso nos concentraremos nelas. O cinema também é um canal potente e sedutor nesse sentido. Lembrei- -me de uma comédia de grande sucesso do cinema brasileiro contemporâ- neo, Se eu fosse você (2006), na qual os protagonistas (atores globais) trocam de corpo, revivendo uma clássica fórmula do cinema americano, na qual um ardente desejo conjugado com algum fenômeno meteorológico ou sobre- natural faz com que as personagens passem a habitar uma o corpo da outra. Assim, Cláudio (Tony Ramos) passa a ter o corpo de Helena (Glória Pi- res) e vice-versa. A partir daí, uma série de situações confrontam os dois com os “papéis de gênero” (ver no box Questões persistentes um pouco mais a fundo este conceito) estabelecidos socialmente, criando situações embaraçosas e cômicas. O filme é divertido, mas absolutamente reiterador e naturalizador das relações sociais e de gênero. O fato de ser leve e cômico ajuda imensamente essa naturalização conservadora. Em uma das cenas finais, Helena e Cláudio, ainda com as almas trocadas(ou seriam os corpos?) conversam após a apresentação bem-sucedida do coral infantil regido por Helena, quer dizer, naquele momento foi ensaiado e regido por Cláudio. O sucesso da apresentação do coral se deveu pela ino- vação e criatividade que Cláudio-Helena levou para o grupo. Helena-Cláu- dio reconhece que o marido foi criativo. Tony Ramos, encarnando Helena, argumenta que mulheres são mais sensíveis e que isso ajuda na criatividade. Glória Pires, no papel de marido, fala da força dos homens. Desfazendo o gênero | 133 • Depende o que você chama de força – retruca a esposa, ainda no corpo masculino. • Estou falando de músculos! – enfatiza o marido de forma taxativa; vira-se e começa a subir as escadas da bela casa do casal. • Só que você se esqueceu que agora os seus músculos agora estão co- migo! – retruca Tony Ramos-Helena, subindo as escadas e entrando na suíte matrimonial. • Na verdade, só músculos não quer dizer nada. O importante é saber usá-los – ensina com autoridade Glória Pires-Cláudio. Aí, faz uso de seus músculos: derruba a esposa na cama, gira sobre o seu próprio corpo quase que como um ninja e prende Tony Ramos-Helena entre suas pernas. Começa, então, a passar o cabelo de forma sensual, mas domi- nadora sobre o rosto da esposa entregue. Terminam a “guerra dos sexos” fazendo sexo. Claro que ao final, após muitas trapalhadas, o casal consegue desfazer a troca. O filme termina com tudo em seu “devido lugar”: ele dirigindo seu carro potente, utilitário e moderno; ela no banco de carona, concordando com as coisas que ele diz, como quem não quer assentir completamente. A voz em off é de Glória Pires e conclui o seguinte: “Mulher e homem são dois bichos estranhos”. Corta. Agora vemos o interior do carro, Cláudio, ao volante, completa: “Vênus e Marte, dois planetas diferentes”. E ela: • É! – concorda, dando de ombros como quem constata uma verdade definitiva. • Este é um problema que nunca vai se resolver – completa ele, divertido. • É, concorda ela novamente, emendando: não é um problema que tenha solução. • Porque, na verdade, não é nem mesmo um problema! • É!! – concordam em uníssono. • É a vida! – falam outra vez, juntos. Ou seja, o mundo das relações de gênero é assim, não muda! Não há o que fazer, aliás, para mudá-lo, pois “é a vida”! Uma vida na qual homens e mulheres são criados para se perceberem como absolutamente distintos e não parceiros. São até mesmo de planetas diferentes. O homem, sempre superior e mais centrado do que a mulher, veio do planeta Marte, deus mito- lógico da guerra. A mulher, de Vênus, deusa do amor, seria aquela mais frágil 134 | Diferenças na Educação: outros aprendizados emocionalmente, por isso mesmo preocupada com questões menores e um tanto egoístas. Quer dizer, a falta de compreensão entre homens e mulheres pouco tem a ver com a forma como somos educadas e educados, mas pelo fato de virmos de mundos diferentes e hierarquizados. Custo a entender como isso pode contribuir para que tenhamos casais heterossexuais mais felizes, famílias com menos violência doméstica, homens mais solidários e mulheres mais maduras. Ou não é isso que queremos? O irônico é que ao biologizar e naturalizar o que é social e político, como o gênero, a direção do filme (Daniel Filho) mostra também o quanto o gênero é performativo: quer dizer, um aprendizado constante que faz com que incorporemos, literalmente, discursos, normas e convenções sobre os gêneros. Isso fica claro na forma como ambos os atores (sem querer tirar- -lhes o mérito profissional) são capazes de incorporar outro gênero, mesmo mantendo-se com os seus próprios corpos. O interessante é que quando, em uma das ofertas do curso de forma- ção continuada GDE, pedi uma resenha d@s cursistas a partir do filme em questão, o que se passou, apesar das muitas leituras e discussões já feitas, foi uma comemoração à produção global. As pessoas acharam o filme di- vertidíssimo, riram o riso conservador, sem nenhum momento rir do esforço que se fez o filme inteiro para provar que homens são de Marte e mulheres de Vênus. Menciono esse fato porque acho que nos ajuda a pensar como estamos lidando com estes produtos culturais. Como estamos contribuindo (ou não) para que nossas alunas e nossos alunos sejam capazes de duvidar do riso conservador. O quanto acabamos sendo cúmplices de processos pedago- gizadores que fomentam violências simbólicas enquanto fingem só querer nos divertir. Ninguém, naquele grupo, atentou para o fato de que o filme não fala- va só de gênero, mas também de classe social. As mulheres e os homens ali eram todos brancos, com filhos e filhas estudando em escolas privadas, residindo em casas com piscina, dirigindo carros caros e vivendo em uma grande cidade. Mas isto também não foi observado: o fato de que mulhe- res das áreas rurais talvez tenham os mesmos “músculos” que Cláudio, pois precisam deles desde muito novas, não parece ser relevante. Mais fácil é pensarmos como presas, todas, a uma anatomia que traça destinos iguais, tampouco se observou que homens pobres e não brancos são muitas ve- zes feminilizados por serem vistos como inferiores e menos racionais. Ou Desfazendo o gênero | 135 seja, o filme deu visibilidade apenas a um segmento pequeno da sociedade brasileira, mas não o tratou como minoria, ao contrário, o apresentou como sendo a norma. Vocês podem achar que estou forçando a barra, mas quero convencê- -l@s de que não. O humor, elemento central do filme descrito, é um potente elemento de reiteração da ordem. Pode também funcionar como transgres- sor, mas, no nosso cotidiano, o temos acionado muito mais com o primeiro propósito. Basta que prestemos atenção em nossas piadas. Quais são os temas mais recorrentes? Pensaram? Há um vasto arsenal de chistes sobre negros, pobres, mulheres, gays. “Coincidentemente”, grupos sociais que foram historicamente subalternizados pelos saberes dominantes. O riso funciona, no filme em questão, como uma espécie de distencio- nador dos conflitos entre mulheres e homens, mas também como um rei- terador desses lugares apresentados como antagônicos e cristalizados no tempo. Mas nós, educadoras e educadores, precisamos, sim, levar o humor muito a sério. Por exemplo, como lidar com as piadinhas desqualificadoras em sala de aula? Sabemos que reprimi-las, fazer “sermões”, tendem apenas a reforçá-las. Talvez um bom caminho seja usar a própria mídia para descons- truir algumas posições naturalizadas, transgredir o riso conservador. Beijo de novela, do que temos medo quando a sexualidade entra em sala? Uma professora, cursista do GDE, conta que, juntamente com um colega de trabalho, resolveu aproveitar o furor estabelecido em sala com o último capítulo da novela Amor à vida (Rede Globo, 2013) e fazer uma discussão so- bre a cena motivadora daquela falação toda. Tratava-se do badalado “beijo gay”. Na cena, um casal de rapazes, que está vivendo maritalmente já há al- gum tempo, se beija na boca (de boca fechada, nada de beijo de língua). No momento do beijo, os relógios, acertados pela hora de Brasília, marcavam mais de 22 horas. Acho importante registrar esse dado, pois sabemos das restrições jurídicas para a transmissão de determinados programas e cenas por meio televisivo. Assim, se as crianças viram não foi porque passou em horário de programação livre, mas porque suas famílias permitiram. A turma em questão era composta de meninos e meninas na faixa dos 9 anos de idade, mas com claras posições relativas à cena do beijo. A crian- çada se mostrava avessa àquela manifestação de afeto entre dois homens. Tanto meninas quanto meninos usaram adjetivos desqualificadores para se referirem aos personagens gays e mostraram asco pelo beijo. A professora 136 | Diferenças na Educação: outros aprendizados e o colega que a acompanhava naquele dia perguntaram por que aquele beijo, que era uma demonstração de amor, parecia nojento e o beijo dado pela atriz BárbaraPaz em um rapaz, que encarnava um personagem de ín- dole duvidosa, não o era? Ela e ele queriam apenas prosseguir a discussão, interrogando a turma, tão afoita diante do desfecho da trama, sobre o por- quê de um ato de carinho ser recusado e o outro ser recebido com quase indiferença. A professora remontou a cena em que cada beijo foi dado. Na primeira, os rapazes se olham com ternura, trocam palavras doces e desejam um ao outro um dia feliz. Então, se beijam (de boca fechada) e se separam para que cada um assumisse seus afazeres. Um deles cuidava de um restaurante de sua propriedade, e o outro cuidava da sua própria pousada e do pai inválido. Um pai que o recusou a vida toda, justamente por conta da sexualidade do filho. O beijo “hétero” se deu quando a protagonista da cena abandona o noivo no altar, pois iria se casar com ele por interesse financeiro. Foge do cartório levando pela mão o rapaz que diz amar. Na cena seguinte, o ca- sal aparece em um espaço público da cidade de São Paulo, beijando-se, abraçando-se com furor sexual. Ela tem a maquiagem borrada e o vestido de noiva rasgado, ele está sem camisa. Ambos correm, param, se beijam novamente, de modo voraz. Parecem alterados. Mas talvez seja o amor, não? Ao descrever as cenas com palavras que deslocavam valorativamente cada uma das manifestações de afeto, a professora também as ressignificou, o que fez com que a turma tivesse a oportunidade de “ver” a mesma cena de novo, mas por outro prisma. Não interessava àquela professora promover o beijo gay ou o hétero, mas sim promover uma outra reflexão para as formas como nos relacionamos, como vemos a diferença e a tratamos. Por que a diferença se tornará, no burburinho da sala, um defeito? Ela deu a eles a oportunidade de não ficarem com a “estória única”. Porém, há ainda uma pergunta que não quer calar: por que foi o beijo entre rapazes aquele que causou nojo e críticas severas das crianças? A per- gunta é retórica, pois sabemos a resposta. Ela tem a ver com gênero, mas também com sexualidade. Ainda que a sexualidade seja tema para o próximo capítulo, creio que vale a pena antecipar algumas discussões aqui, mesmo porque gênero e se- xualidade, já disse diversas vezes aqui, ainda que não sejam a mesma coisa, são temas extremamente relacionados. Desfazendo o gênero | 137 Vamos começar pela cena do beijo do casal heterossexual. Creio que a (não) reação das crianças diante da cena relaciona-se com a visibilidade le- gítima e prestigiosa pela qual aprendemos a respeitar a heterossexualidade. Os produtos culturais (filmes, romances, novelas, propagandas), as reuniões familiares, os espaços de lazer, promovem e cultuam as parcerias heterossexuais e os corpos bem-conformados aos padrões binários, raciais e estéticos, de maneira que naturalizamos esses privilégios entendendo-os como normais e naturais, e não como construções políticas que relegam às margens aqueles e aquelas que não se adéquam, não se conformam, não conseguem ou mesmo recusam esses limites. Assim, os transformamos em “MINORIAS”, quer dizer, minoramos suas reivindicações, seus problemas, suas angústias (lembram-se que Helena e Cláudio, mesmo fazendo parte de uma minoria social, foram tratados como maioria cultural?). Assim, fomos aprendendo a ver homossexualidade como anormal. A primeira pergunta talvez seja: Como chegamos a considerar alguma coisa normal? Por que certos comportamentos são entendidos e classificados como anormais? Por meio de quais saberes, de quais discursos, formamos esses conceitos? Como crianças de 9 anos de idade aprenderam que um beijo entre dois homens que se amam é asqueroso e um entre uma mulher e um homem é bom, permitido e, até, bonito? No caso dos comportamentos sexuais, pelo menos desde o século XIX, as sociedades ocidentais, ou as que seguem seu modelo, alocaram a sexua- lidade no terreno da psicologia e da medicina, deslocando-a do campo mo- ral da religião. Se neste último campo as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo podiam implicar em pecado, no campo científico elas se trans- formaram em anormalidade, em patologia, podendo, assim, ser curadas. O campo jurídico também deu sua contribuição no sentido de penalizar as se- xualidades dissidentes da norma burguesa, leia-se: heterossexual, monogâ- mica (pelo menos em tese), procriativa e monitorada por saberes médicos. Assim, não só homossexuais corriam risco de serem processados, presos e submetidos a intervenções cirúrgicas como a lobotomia, mas prostitutas, crianças “masturbadoras” e pessoas da classe operária (considerada promís- cua pela burguesia) podiam ser igualmente punidas, vigiadas, esterilizadas. Desse modo, a sexualidade passou a constituir-se cada vez mais a pró- pria verdade do sujeito. Ele (sujeito) era o que ela (sexualidade) o transfor- mara. Desde então, heterossexualidade e normalidade estão profundamen- te associadas, de maneira que tendemos a não saber como lidar com os 138 | Diferenças na Educação: outros aprendizados gêneros que escapam ao binário e/ou com as sexualidades dissidentes da norma heterossexual. A tendência é recusarmos em nós e/ou nos outros es- ses “desvios”, percebendo-os como anomalias, erros, falhas que só podem acarretar em infelicidade. E acabam acarretando mesmo, como uma profecia autorrealizada, uma vez que passamos a tratar essas questões como proble- ma, e não como uma possibilidade outra de vida, de amar, de se relacionar. Não sabemos sonhar, idealizar, educar fora desse registro heterossexualida- de, a qual, por sua vez, associamos a uma perfeita conformidade entre sexo genital, gênero social e desejo sexual. Há, assim, um grande mito de que pessoas homossexuais são vorazes sexualmente (mesmo quando ainda são crianças). Há também a crença difundida de que estas pessoas não são normais ou sanas, que são con- traventoras. Assim, muit@s de noss@s alun@s não querem se associar a ninguém que tenham estas marcas com receio de serem confundidos como sendo também homossexuais. Cabe a nós ressaltar o que noss@s alun@s que escapam à norma heterossexual têm de positivo, valorizar o que fazem bem, incluí-l@s em atividades prestigiosas, mas sem vitimizar estas pessoas. Tratar os diferentes como iguais pode ser injusto (por exemplo, querer que um aluno com paralisia infantil jogue futebol com os demais), mas tratar a diferença como parte da realidade da escola e da vida, mostrando que há espaço para ela (por exemplo, o aluno com paralisia pode não ter o mesmo desempenho que os outros na hora do drible, mas pode ser um ótimo go- leiro, para tanto é preciso que a chance seja dada, ou pode se destacar em outras modalidades). Trabalhar com produtos midiáticos pode nos dar uma excelente oportu- nidade para adentrar nestes temas, o que não diminui o desafio, mas, cer- tamente, aumenta o prazer e o interesse de quem ensina e aprende. Pode nos ajudar, inclusive, a tirar a sexualidade do marco do perigo, da doença e do risco, porque é quase sempre assim que ela entra na escola, seja para falar de aids e doenças sexualmente transmissíveis, seja para falar dos peri- gos da gravidez na adolescência. Quase nunca falamos de sexo como fonte de prazer e de estabelecimentos de vínculos. Perdemos a oportunidade de falar com nossas alunas e alunos sobre algo que acontece todos os dias sob nossos narizes: os encontros, os beijos, o desejo, os namoros. Abordando-os como questões sérias, porque delicadas, pois envolvem sentimentos e afe- tos, mas também aprendizados, dos quais, por despreparo ou moralismos, deixamos de participar. Desfazendo o gênero | 139 Também deixamos de problematizar, como assunto digno de figurar no currículo, as chacotas que minoram marcas de classe, raça e gênero ou as violências ocorridas nos portões da escola, nos banheiros e pátios. Natu- ralizar ou assumir uma postura de pretensa neutralidade não faz com que os problemas desapareçam ou diminuam, mas podem nos fazer cúmplices involuntári@s de violênciasque podem terminar em evasão escolar. Por fim, aposto grandemente no trabalho com mídias diversas em sala de aula, pois nos valendo dos diversos produtos culturais temos mais chances de provocar as turmas a também contarem suas histórias com protagonismo e criatividade. Podemos, assim, lidar com linguagens distintas e estimulan- tes e nos surpreender positivamente com os produtos que noss@s alun@s podem elaborar. Trazer o cotidiano vibrante e colorido da publicidade para dentro da sala de aula pode ser um excelente mote para pensarmos criticamente sobre po- breza e riqueza, e assim sobre desigualdades sociais e direitos civis, além de oferecer material estimulante para pensarmos questões de gênero, raciais, geracionais, religiosas. A música também pode ser um eficaz disparador de discussões. Pensei no clássico Paula e Bebeto, de Milton Nascimento (dá para acessar a letra por: <http://www.vagalume.com.br/milton-nascimento/ paula-e-bebeto.html>), como trilha para as cenas dos beijos narradas acima. Podemos pedir que a própria turma traga suas músicas preferidas para que, assim, comecemos um diálogo mais horizontal, no qual também aprende- mos com nossas alunas e alunos. Tod@s nós, que já nos deixamos, algum dia, impactar por um filme, sabe- mos que a magia do cinema pode ser suficientemente sensibilizadora para motivar projetos coletivos dentro da escola, nos levando a oferecer uma edu- cação na qual a práxis seja o motor das ações. Práxis diz respeito à atividade livre, universal, criativa e autocriativa, pela qual o ser humano cria (faz, produz) e transforma (conforma) seu mundo e a si mesmo (BOTTOMORE, 1997). Com o intuito de proporcionar algumas ideias mais e deixar dicas para o trabalho de vocês, apresento a seguir quadros com sugestões de materiais audiovisuais, além de um quadro com questões persistentes, quer dizer, aquelas que apareceram sempre no meu trabalho com a temática de gêne- ro. Sugiro, ainda, dinâmicas em grupo que podem ser excelentes ferramen- tas de trabalho. 140 | Diferenças na Educação: outros aprendizados UNIDADE 4 Atividades propostas – dicas, sugestões e mais questões Nas diversas ocasiões em que trabalhei com professoras e professores sobre a temática de gênero, algumas questões se fizeram sempre presen- tes. Acredito que esta persistência se deva ao fato de elas sintetizarem per- cepções bastante arraigadas sobre o tema, mas também mostram o quão desafiante tem sido trabalhar com e no ensino básico neste País. Acredito que muitas daquelas questões sejam também questões de vocês, por isso as pontuo a seguir: • Qual escola sonhamos? Qual a escola queremos para noss@s filh@s? Responder a estas perguntas exige que façamos um exercício fantástico, que é o de se co- locar no lugar do outro. Este movimento não é fácil, mas nos ajuda a conferir ao outro sua dimensão humana. A escola que queremos está em construção, e por vezes nos sentimos impotentes. Escola tem que repensar práticas – o que fazer? Essa é uma pergunta que nos angustia quando imergimos nestas reflexões. Bem, já estamos fazendo quando estamos aqui, lendo, nos qualificando, debatendo e nos deixando provocar. Creio que uma leitura provocativa, uma formação es- timulante faz de cada um(a) de nós “multiplicador@s”, pois nosso olhar muda mesmo. Senti isso intensamente em minha experiência como professora do En- sino Fundamental e Médio, como professora universitária, mas também como mãe, amiga, esposa... Esse processo, mesmo lento, pode ser significativamente transformador da nossa atuação nas diferentes esferas sociais. Sugiro a leitura de um texto delicioso de Silvana Goellner, que vocês encontram nas referências. • Como trabalhar estes temas em escolas que estão situadas em áreas onde os problemas sociais são tão profundos que parece não haver espaço para essas reflexões? Este é um desafio mesmo! Sempre trabalhei com a classe média e entendo que, de certa forma, isso foi um privilégio, pois lidei com pessoas que tinham muitas coisas materiais e emocionais resolvidas. Um caminho que tem dado certo em comunidades onde há muita violência tem sido buscar parcerias, seja com outras escolas, com o Estado ou com o chamado Terceiro Setor. Há, por exemplo, fundações e ONGs que trabalham com arte, teatro, dança, capoeira e música junto a populações imersas em conflitos múltiplos e carências variadas. Desfazendo o gênero | 141 O importante é que o projeto não seja um movimento de cima para baixo, quer dizer, que não considere as particularidades de cada localidade, que seja alheio às questões locais mais prementes. Projetos são mais eficientes quando conse- guimos partir de algo que seja de interesse da galera, da comunidade, intervindo também no entorno da escola. Se ficamos só do muro para dentro, a possibilida- de de o projeto se consolidar e gerar transformações diminui significativamente. Uma professora de Brasília, que atua em uma das áreas mais violentas da cidade (uma cidade-satélite), tem um projeto muito bacana de pintura de muros e revi- talização de espaços ao redor da escola, e o faz com intensa participação de um grupo de alunas e alunos. A atividade envolve mais do que arte, grafites e ur- banismos (o que por si só já seria muita coisa), fala também de ética, de relação com o espaço público, obriga a pensar sobre direitos, entre outras provocações transformadoras. Tem dado certo. Provavelmente não foi fácil e nem deve ser algo sem desafios de toda ordem, inclusive em termos burocráticos, logísticos e financeiros. Mas eu aposto muito nesse caminho de sensibilização, de interven- ção que cria laços de confiança entre nós e a comunidade que atendemos. Com meninas que se prostituem já vi trabalhos lindos com recuperação de bonecas para doá-las a creches e orfanatos. É incrível como as meninas, cuidando de recuperar bonecas, pensam em si mesmas, refletem sobre seus corpos, suas vidas, suas famílias. Recuperar a boneca acaba funcionando muitas vezes em um processo de reencontro com suas próprias belezas, com seu valor como mulher, como pessoa, como artesã. Claro que estas oficinas têm metodologias, têm es- tratégias de ação. Estou apenas mencionando algumas experiências que vi dar certo. Deixo aqui uma dica de livro que pode ser estimulante: Gangues, gênero e juventudes: donas de rocha e sujeitos cabulosos. Disponível em: <http://portal. mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_gangues_sem_a_marca.pdf>. • Se a sociedade é a grande vilã, o que nós, como indivíduos, podemos fazer? Bem, a gente está atribuindo à ‘sociedade’ todas as culpas. Mas o que é a sociedade se não um produto das relações sociais estabelecidas entre nós? A sociedade é resultado das relações sociais, das instituições que criamos, das normas e convenções que estabelecemos. Claro, nascemos e ela está aí, mas somos nós também que damos continuidade a ela, questionamos, desafiamos “verdades”, lutamos por outros modos de classificar e significar a vida. São pro- jetos coletivos que transformam, mas são angústias sentidas individualmente que nos motivam muitas vezes. Digo tudo isso para que saiamos desse lugar paralisante, que é o de atribuir à sociedade (como uma entidade poderosa e 142 | Diferenças na Educação: outros aprendizados que nos domina) a culpa pelos males, como o preconceito, nos sentindo assim impotentes. Pelo que experenciei nos cursos de formação continuada, não vi letargia, ao contrário, vi pessoas pensando, se desafiando, confrontando suas verdades, procurando caminhos para a transformação. A questão é que estes caminhos não são fáceis, pois as resistências estão aí aparecendo em diferentes discursos. Muitos deles têm a ver com a completa ignorância, no sentido de ignorar, de não ter conhecimento relativo a questões de gênero e sexualidade. No primeiro caso, naturalizamos tanto o gênero que já o vemos como algo que vem pronto, é imutável e determinante até mesmo da nossa capacidadede sen- tir (homens não choram) ou de aprender (mulheres não têm raciocínio lógico). Aprendemos também que gênero determina sexualidade e que esta, quando não corresponde ao modelo heterossexual, é perigosa. Tratamos sexualidade sempre no marco do risco (cuidado com a aids! Cuidado para não engravidar!) ou do perigo (você vai ficar falada! Você vai acabar pegando uma doença!). Não falamos de prazer, de escolhas, não ensinamos noss@s filh@s ou alun@s a pensa- rem sobre sexo para poderem fazer escolhas conscientes, por exemplo, na hora da primeira transa. • Podemos falar em papéis sociais de gênero? Podemos, mas eu tenho cá minhas críticas ao conceito, justamente por sua tendência a se cristalizar e se transfor- mar em estereótipo. Temos posições de gênero para as quais somos convoca- das e convocados. Performamos, à medida que colocamos em atos, normas, convenções, padrões estéticos de gênero que são largamente aceitos como sendo femininos ou masculinos. Mas temos desafiado constantemente as ideias de papéis, pois a vida não é roteirizada como uma peça de teatro, e estas analo- gias com palco, teatro, papéis e máscaras, apesar de sedutoras, são insuficientes para levarmos a fundo as discussões nesse campo, que está atravessado por relações de poder que a analogia teatral não revela. ▫ O comentado acima se relaciona com outra questão: a identidade é algo dado? Como se relaciona com gênero? A recorrência da ideia de “identida- de” como algo que o sujeito traz consigo, um tanto pronta, está presente em muitos momentos de nossas conversas. É importante a gente perceber que se gênero é tão central para a formação de nossa identidade (e acho que ninguém tem dúvidas disso) e que se gênero é construção social, por que identidade seria algo que vem pronto com o sujeito? É legal mostrar que vamos nos constituindo com nossas experiências, que têm tudo a ver como o momento histórico no qual estamos inserid@s, com a sociedade Desfazendo o gênero | 143 onde vivemos, com os ambientes de convívio cotidiano. Pensar a identidade fora dos marcos essencialistas é difícil; dissemos, muitas vezes, que somos assim e não vamos mudar, que pau que nasce torto não tem jeito, morre tor- to... Quando a questão toca na orientação sexual, nas questões de gênero, a perspectiva essencialista se acentua. A pessoa, no fundo, sempre foi assim, reprime, esconde aquela verdade dos demais, até que um dia não suporta mais e revela sua “verdadeira identidade” que estava ali, no âmago do seu ser, prontinha. Por isso, mulheres, que vieram de Vênus, nunca serão iguais em direitos a homens, porque Marte é um planeta que gera guerreiros (iro- nias, claro). ▫ Quais as implicações de pensarmos que identidade não se muda, e muito menos quando estamos falando de gênero e sexualidade? Primeiro, a ideia de que esta verdade é unicamente do indivíduo, e não parte de uma cons- trução coletiva que oferece a cada um de nós os termos para pensarmos as nossas experiências, inclusive as sexuais. Segundo, isso confere uma respon- sabilidade extra a cada um frente a suas “escolhas”, entre assumir ou não, quando esta “escolha” pode significar perdas profundas, dramas pesados para serem encarados por pessoas ainda tão jovens. ▫ Por que tantas arrobas ou tantas barras (a/o, as/os), tanto esforço para se escrever sobre gênero? É interessante perceber que nosso vocabulário de gênero é restrito e, para piorar, se confunde com o das sexualidades, igual- mente escasso. Por isso, ficamos tão confus@s quando temos de lidar com gêneros fronteiriços porque estamos presos em um binarismo que pode ser bem confortável para muitos, mas é também aprisionador, limitador para outros tantos. Então, como uma travesti arruma termos para se autodefinir? Como nós fazemos isso? Pensar fora desses limites do pensável nos atordoa, nos incomoda e nos desafia, porém estamos neste movimento, por isso as palavras importam sim! Não se trata de “politicamente correto”, ou se trata exatamente disso, de entrar na disputa linguística por termos capazes de contemplar um número maior de experiências, de vidas, e que possam fazê- -lo de forma positivada. Há mais uma infinidade de questões, certamente, mas nos limites que temos aqui, reuni apenas as mais recorrentes. Passo, então, às sugestões de dinâmicas de grupos que podem ser válidas e importantes nos trabalhos com gênero e sexualidade. 144 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Dinâmicas – brincando com os gêneros, levando a sério nossas questões As dinâmicas são formas muito eficientes de se promover discussões, mas sobretudo de nos sensibilizarmos para o debate, muitas vezes de ma- neira mais eficiente, justamente por promover o aprendizado de um jeito lúdico, porém sério e comprometido. A seguir encontram-se algumas sugestões para se tratar em espaços escolares a temática das relações de gênero. Mas, antes de prosseguir, re- produzo algumas orientações presentes do livro Gênero fora da caixa, um projeto do Instituto Sou da Paz, publicado em 2011, acessível neste link: <http://www.soudapaz.org/upload/pdf/genero_fora_da_caixa_web.pdf>. As atividades sugeridas podem ser realizadas por qualquer educador(a), seja em escola e projetos sociais, seja em organizações não governamentais. Como a questão de gênero é complexa e exige certa reflexão e sensibilida- de por parte dos educadores, é preciso que o(a) educador(a) tenha alguma afinidade pelo tema e experiência de trabalho com jovens. Além de se sentir confortável com o conteúdo abordado nas oficinas, o(a) educador(a) deve se preocupar com sua postura em sala de aula, pois isso também contribui para um ambiente mais participativo e de respeito entre as pessoas. É importante o(a) profissional estar atento para garantir espaço para que as jovens mulheres tenham voz, para estimular a diversidade, não tolerar falas preconceituosas e machistas, estabelecer regras de convivência e não reforçar estereótipos de gênero. O importante é manter uma postura condizente com os conteúdos que estão sendo trabalhados. Não adianta, por exemplo, o(a) educador(a) debater com os(as) alunos(as) sobre respeito à diversidade e fazer brincadeiras ou colocações preconceituosas. Recomendamos que as atividades sejam realizadas em grupos mistos (homens e mulheres), com a participação de 10 a 20 jovens. O facilitador pode ser homem ou mulher, o que conta é a afinidade com o tema e o comprometimento. Para receber os(as) alunos(as), reserve um espaço agradável para deixá- -los(as) confortáveis. Caso o grupo ainda não se conheça, comece os primei- ros encontros realizando algumas dinâmicas de apresentação e integração. Desfazendo o gênero | 145 Reserve tempo para uma pausa nas atividades, estabelecendo um momen- to de descontração. Nesse caso, se possível, ofereça um lanche para os(as) jovens. Finalmente, é importante preparar as oficinas com antecedência, sepa- rando os materiais necessários e lendo os textos de apoio. Se possível, vale a pena registrar os encontros, pontuando as discussões que foram proveito- sas, os temas mais candentes para o grupo, os pontos de vista dos(as) jovens e as atividades nas quais o grupo se envolveu mais. Isso ajuda a planejar as próximas atividades e a ter um registro de todo o processo educativo (Gê- nero fora da caixa, Elaboração do Manual: Gabriel Di Pierro e Marília Ortiz, 2011, p. 24) Dinâmica “Brincadeiras de gênero” Público sugerido: Crianças e adolescentes Objetivos: A ideia é mostrar como os brinquedos têm funcionado como “próteses de gênero”, ou seja, moldando de forma às vezes violenta os aprendizados que se valem da ludicidade, uma vez que brinquedos e brincadeiras, que deveriam ser antes de tudo elementos lúdicos, criativos, prazerosos, são usados (mesmo inconscientemente) como modeladores de gênero. Quer dizer, como vamos aprendendo a excluir, classificar, julgar, a partir do brinquedo. Etapas: 1.A dinâmica deve ser antecedida de um debate breve, suscitado por al- gum episódio envolvendo a turma na qual surjam questões de gênero e sexualidade. A partir dele, podemos lançar algumas perguntas, por exemplo, a divisão na hora do recreio, de se formar grupos de traba- lho ou ainda na aula de Educação Física, e lançar uma questão do tipo: Por que algumas atividades têm de ser feitas separadamente? Será que sempre foi assim? Será que é assim entre outras populações, em outras culturas? Meninos e meninas são totalmente diferentes ou meninas e meninos são muito parecidos? Como aprendemos a ser meninos e me- ninas? Esta deve ser a última questão, para suscitar a discussão sobre os brinquedos e as brincadeiras. Neste momento, é importante deixar a turma se expressar, e anotar na lousa algumas palavras-chave para incrementar a discussão. É preciso 146 | Diferenças na Educação: outros aprendizados pactuar com a turma que não pode haver ofensas, palavras de baixo calão, piadas preconceituosas nem comentários desrespeitosos durante toda a roda de conversa e ao longo da dinâmica. 2. Peça para que, na próxima aula, levem os brinquedos que marcaram sua vida. 3. Peça para que os(as) alunos(as) formem um círculo no chão. Para quebrar o gelo, a dinâmica pode ser iniciada pelo(a) professor(a) que a estiver con- duzindo. Ele(a), por exemplo, gira uma garrafa no centro do círculo, e a dinâmica se iniciará pela pessoa para a qual o gargalo da garrafa apontar. 4. É importante anotar o que cada alun@ elencou como sendo significativo no brinquedo que levou para a sala, pois é a partir dessas expressões que iremos aprofundar as relações de gênero e os brinquedos. 5. Peça que meninos troquem seus brinquedos com meninas e vice e versa. 6. Observe como essas trocas ocorrem e como cada um brinca ou não com o brinquedo recebido (de 2 a 3 minutos de brincadeira a sós com o brinquedo). 7. Em seguida, peça para que formem duplas ou trios mistos para que brinquem junt@s com os brinquedos que receberam durante a troca (5 minutos para brincar). 8. Observe e anote as reações da brincadeira a sós e em grupo, para depois problematizá-los na roda de discussão que deve ser formada em seguida. 9. Formada a roda, lance novamente as perguntas sobre o significado dos brinquedos para si e como eles foram vistos pelo(a) colega de outro gê- nero. Como cada um se sentiu brincando a sós com o brinquedo trocado. Como foi brincar em grupo? Questione a pedagogia de gênero, mostre como esses aprendizados são culturais, históricos, e não essências de- finitivas. Mostre a importância de aprender com o outro, de fruir prazer com a brincadeira e de como os brinquedos nos ensinam muitas coisas; sendo assim, é importante brincar com diferentes jogos e brinquedos para aprender a ser plural. Dica de leitura: <http://www.faeb.com.br/livro/Comunicacoes/brinca- deiras%20genero%20e%20sexualidade.pdf>. Dinâmica “Tudo tá relacionado” Criação: Prof. Dr. Felipe Bruno Martins Fernandes (PPGICH/NIGS/UFSC); Profa. Dra. Miriam Pillar Grossi (NIGS/UFSC) Desfazendo o gênero | 147 Público sugerido: Crianças e adolescentes Orientações: Esta oficina visa problematizar as inter-relações entre gê- nero, raça e sexualidade mostrando como a transversalidade entre estes marcadores sociais pode ser produtiva no combate às violências e discrimi- nações nas instituições educacionais. Ao iniciar os trabalhos com os temas divididos por “eixo de opressão” e fechá-los com uma discussão coletiva, a oficina busca ser um espaço de reflexão em que @s participantes possam se posicionar, explicitar suas questões e discutir coletivamente seus conceitos e pré-conceitos. O diálogo e a desconstrução devem ser o princípio norteador da oficina, em que as diferentes posições não devem ser carregadas dos juízos de valor do mediador, mas, sim, problematizadas por este. Problema- tizar, categoria presente no pensamento de Michel Foucault, é uma forma de reflexão que busca colocar determinados discursos no centro do pensamen- to. Não é, pois, uma forma de disseminação de enunciados “politicamente corretos”, mas, conforme sugerimos, é uma forma de refletir sobre o enun- ciado e suas condições de possibilidade. Para isso, é necessário exercitar a escuta, intervir e mediar o debate que surge d@s participantes. Objetivo: refletir sobre a importância em se discutir gênero, raça e sexu- alidade na Educação Infantil. Material necessário: livros infantis que abordem as temáticas de gênero, raça e sexualidade; cartolina e canetão. Etapas: 1. Pequena apresentação teórica do papel em se discutir gênero, raça e sexualidade na Educação Infantil. 2. Pequena apresentação de cada livro infantil a ser apresentado. Os li- vros devem ser mostrados e as ilustrações (perspectiva imagética) de cada um, discutidas. Mostre o quanto a literatura infantil contemporânea pode contribuir na discussão dos temas nas instituições escolares. 3. Desenvolvimento: A turma deve ser dividida, por sorteio, em nove grupos. O grupo deve eleger um@ “contador@ da história”. @ contador@ deve fazer uma leitura em voz alta do livro e @s outr@s integrantes devem tomar notas e levantar questões sobre o enredo. 4. Cada um desses grupos deve produzir um “cartaz” com as principais ideias e questões sobre o livro. 148 | Diferenças na Educação: outros aprendizados 5. Em equipe, cada grupo deve apresentar o cartaz com um quadro sinóti- co (que possa dar uma visão do todo) ao grande grupo. 6. Em círculo, o grande grupo deve discutir os cartazes dos colegas, cabendo “ao mediador” estabelecer links que possibilitem @s participantes trans- versalizarem as temáticas como tendo ocorrência ordinária na dinâmica escolar. 7. Tod@s @s participantes da oficina devem avaliar a atividade. 8. Tempo de duração: 240 minutos, divididos em: apresentação da atividade; apresentação dos livros infantis; reunião em pequenos grupos para leitura coletiva; construção de cartaz com quadro sinótico do enredo; e apresenta- ção dos quadros sinóticos para o grande grupo (8 min para cada). 9. Discussão e avaliação. Dinâmica “Etiquete-me” Público sugerido: crianças com mais de 10 anos e adolescentes. Material: fita-crepe e pedaços pequenos de papéis ou post-it; caneta pilot ou canetinhas esferográficas. Objetivos: perceber como lidamos, no dia a dia, com uma série de pres- crições de gênero que vão sendo literalmente “incorporadas”, de maneira que, muito mais do que fruto da biologia ou meras expressões da natureza, os gêneros são inscrições culturais que “colam” em nossos corpos. Tempo de duração: de 60 a 90 minutos. Recomendações: se houver muitas pessoas, forme grupos pequenos com cerca de 5 pessoas; em cada grupo, peça que um menino e uma menina se voluntariem. Peça respeito, consideração pelo corpo do(a) colega e que não sejam usados termos ofensivos como palavrões. Etapas: 1. Divididos os grupos, peça que @s alun@s escrevam frases que expres- sem recomendações, normas, orientações e/ou imposições sobre como meninas devem usar cada parte do corpo. O mesmo deve ser feito para Desfazendo o gênero | 149 o corpo do menino voluntário. Escreva no papel ou post-it para colar a frase na parte do corpo sobre a qual a sentença se refere. Exemplo: cabelos (para meninas): use sempre longos e bem penteados; (para meninos): nada de ser cabeludo!; ou orelha: (para meninas) use brincos; (para meninos): um alargador fica da hora. Voluntári@s devem também participar desta etapa. SOLICITE A ESCOLHA DE VOLUNTÁRIOS SÓ DEPOIS DESTE MOMENTO. 2. Voluntári@s de todos os grupos (um casal por grupo) devem se posicio- nar mais ao centro da sala. O casal do grupo 1 irá para o grupo 2, o do 2 para o grupo 3, assim sucessivamente. 3. Posicionados nos grupos novos, o casal voluntário será etiquetado. Sugere-se que se inicie da cabeça para os pés. 4. Depois de cada grupo ter feito sua “etiquetação”, peça aos casais que se posicionem novamente ao centro. Os grupos devem passarpelos de- mais casais para ver o que há escrito nas outras etiquetas, que não as do seu próprio grupo. 5. Todas as pessoas, com exceção dos casais, devem se sentar em círculo em volta d@s voluntárias, os quais serão as primeiras pessoas a falar. O(a) professor(a) mediador(a) deve solicitar que cada casal fale brevemente sobre a sensação de serem etiquetados. 6. Em seguida, o(a) professor(a) deve solicitar que as demais pessoas comen- tem sobre as frases-recomendações escritas, avaliando como chegaram a elas; o que pensam sobre estas recomendações; se as seguem e como estas prescrições incidem em suas vidas. É preciso assegurar a fala de todos(as) e, ao final, fazer uma avaliação sobre estes aprendizados e como eles nos marcam, também avaliando como estes usos corporais recomen- dados podem criar hierarquias e desigualdades de gêneros. 150 | Diferenças na Educação: outros aprendizados BOX 1 Dicas de material audiovisual • Documentário Encontrando Bianca (disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=4Eb9UCT1138>): trata-se do terceiro vídeo do conjunto de produções audiovisuais que estava sendo formulado pelo MEC como material para subsidiar o combate à homofobia nas escolas. Sua elaboração e distribuição foi suspensa por veto da presidenta Dilma Rousseff em maio de 2011. • Os perigos de uma história única: vídeo gravado a partir de uma palestra realizada pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie (disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY>). • Documentário Filmes ruins, árabes malvados: como Hollywood vilificou um povo (disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Im5qQ9s- -ohA>): produzido por Sut Jhally, mostra como o cinema norte-americano foi capaz de, ao longo de 100 anos de produções, fixar no imaginário ocidental uma visão estereotipada dos povos árabes. • Videoaula Corpo, gênero e sexualidade (disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=bI-Qr5leFPk>): apresentada pela educadora e doutora em Educação Silvana Goellner (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). • Documentário Re-ensinando gênero e sexualidade (Reteaching gender and sexuality, disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=r3QstJDidjQ>): produzido em 2008 por um grupo de jovens do subúrbio de Seattle. Em 2010, criaram um programa de formação para profissionais da área de saúde, educação e direitos humanos e lan- çaram o documentário. • Documentário Não gosto de meninos (disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=ij9baks8i64>): um projeto que reuniu 40 pessoas com histórias de vida diferentes, com o objetivo de mostrar a realidade da homossexualidade. • Minha vida em cor de rosa (disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=CnOAQDrlmxs>): é um filme de ficção europeu (produção cooperativa entre a Bélgica, França e o Reino Unido) delicioso, dirigido pelo belga Alain Berliner e lançado em 1997. Trata da história de um menino, chamado Ludovic, que imagina que deveria ter nascido meni- na. O filme mostra os preconceitos que a personagem principal e seus familiares enfrentam em relação a sua “identidade de gênero”. Desfazendo o gênero | 151 REFERÊNCIAS BARROS, M. L. Labareda, teu nome é mulher: análise etnopsicológica do feminino à luz de pom- bagiras. Tese (Doutorado em Ciências) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2010. BELELI, I. Gênero. In: MISKOLCI, R. (Org.). Marcas da diferença no ensino escolar. São Carlos: EdUFSCar, 2010. p. 45-73. BOTTOMORE, T. Práxis. In: ______. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. BUTLER, J. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CRUZ, E. F. Banheiros, travestis, relações de gênero e diferenças no cotidiano da escola. Psi- cologia Política, 11(21), p. 73-90, 2011. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/rpp/seer/ojs/ viewarticle.php?id=137>. DAMACENO, J. O corpo do outro: construções raciais e imagens de controle do corpo feminino negro: o caso de Vênus Hotentote. In: Fazendo gênero: corpo, violência e poder, 2008. Disponí- vel em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST69/Janaina_Damasceno_69.pdf>. GOELLNER, S. 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Fonte: autoria própria. 4 Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização Fernando de Figueiredo Balieiro Eduardo Name Risk Como vimos nos capítulos anteriores, a atuação da escola não se limi- ta ao aprendizado formal ou à transmissão do conhecimento. Explícita ou implicitamente, ela se baseia em certas normas e convenções sociais, ao mesmo tempo em que as perpetua ou as coloca em questão. No capítulo anterior, Larissa Pelúcio tratou das relações de gênero no espaço escolar, mas cabe a pergunta: como abordar o tópico da sexualida- de? Veremos que antes de se constituir como um espaço neutro, no qual a sexualidade pouco ou nada aparece, as práticas pedagógicas, as relações entre alunos e representações compartilhadas entre os muros da escola são permeadas, direta ou indiretamente, pela temática da sexualidade. O es- paço escolar é palco de demandas sociais que, como veremos, baseiam-se em uma pedagogia da (in)visibilidade que conforma a heterossexualidade como padrão único e esperado para orientação do desejo e das práticas afetivo-sexuais. Por outro lado, atualmente, os educadores são chamados a questionar essas convenções e a buscar formas de lidar com a sexualidade, segundo proposições mais abrangentes. Para discutirmos essas questões, este capítulo está organizado em quatro unidades: 1. Na primeira unidade, discutiremos o regime de (in)visibilidade que configura a sexualidade no espaço escolar. Abordaremos como a heterossexualidade é instituída como norma implícita às relações 154 | Diferenças na Educação: outros aprendizados escolares, embora essa instituição se apresente como “neutra” com rela- ção à temática, o que acaba perpetuando preconceitos e discriminações. 2. Na segunda unidade, exploraremos o aspecto histórico da forma como nossa sexualidade foi construída, abordando como uma ordem sexual se relaciona com as configurações mais amplas da sociedade e levando em conta seus vínculos com as relações raciais e de gênero. 3.Na terceira, discutiremos de que modo a heteronormatividade molda as relações sociais, mesmo com mudanças significativas na contemporaneida- de e diante de discursos e movimentos questionadores das normas sociais. 4. Por fim, partindo da experiência acumulada do curso de GDE da UFSCar, na quarta unidade proporemos reflexões práticas sobre o tema da sexu- alidade no contexto escolar, recuperando o debate com professores(as) que participaram das primeiras ofertas do curso. Desejamos bons estudos e bom trabalho a todos(as)! UNIDADE 1 O regime de (in)visibilidade da sexualidade na educação escolar Em abril de 2011, foi amplamente divulgado o caso de agressão física sofrida por um estudante secundário no interior de uma escola pública do município de Mata Grande (AL). O caso chegou ao Conselho Tutelar e à Justiça depois da gravação ter sido veiculada na internet. O vídeo registra a perseguição à vítima dentro da escola e, em seguida, o ato de violência físi- ca. O agressor justificou sua conduta como desagravo a um boato segundo o qual os dois supostamente teriam um caso amoroso. No vídeo, a vítima, apelidada de Lady Gaga, sofre as consequências sem responder à agressão. A despeito da movimentação de alunos da escola em busca de assistir e filmar as cenas de violência, nenhum funcionário ou professor apareceu na filmagem na tentativa de conter o agressor, que, por sua vez, não encontrou dificuldade em agir violentamente contra seu colega. Dessa forma, distan- ciou-se da pecha de ser chamado de “bicha” por seus colegas, afirmando sua virilidade e reafirmando a inferioridade moral da vítima. Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 155 Não cabe aqui averiguar se os boatos se referiam a um caso amoroso que realmente existiu, se foi criado por outros colegas de sala com o objetivo de fomentar a humilhação da vítima ou se foi inventado pelo próprio aluno em busca de se divertir à custa do sofrimento alheio. O que nos interessa é compreender a relação entre a violência dentro da escola e seu vínculo com a temática homossexualidade. Cabe perguntar: O que a escola tem a ver com a agressão motivada por orientação sexual? O caso apresentado é um ato isolado ou um ato conhecido por cada um de nós em nossas vivências no cotidiano escolar? A escola deve conceber a sexualidade como um assunto digno de ser apresentado e debatido dentro de seus muros? Como essas violências se relacionam com o currículo escolar de forma mais abrangente? Nesta unidade, veremos que a vulnerabilidade ao bullying ou ao cha- mado assédio escolar está diretamente ligada à não correspondência a padrões de gênero e sexualidade, entre outros fatores. Em outros termos, alunos(as), funcionários(as) e professores(as), com destaque para os primei- ros, que não correspondam ao padrão “ideal” de comportamento estimado pela sociedade, estão mais vulneráveis a sofrerem variadas modalidades de violência em sua passagem pelo espaço escolar. Muito embora apresente configurações diferentes de acordo com os contextos nacionais, o bullying homofóbico é reconhecido como um problema global pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2013). A respeito de depreciações sofridas no ambiente escolar em virtude da orientação sexual, o relatório Resposta do setor de educação ao bullying homofóbico (UNESCO, 2013), baseado em pesquisas efetuadas no mun- do todo, mostra que alguns alunos estão mais vulneráveis a situações de bullying por conta de sua inadequação aos valores e padrões calcados na heterossexualidade como norma. As recorrentes situações de bullying homofóbico manifestadas dentro da escola levam a refletir sobre a necessidade de responsabilização dos agentes escolares a respeito dessa temática. Mas como lidar com evidên- cias de que a escola é espaço de expressão de violências, preconceitos e discriminações se a concebemos como espaço fomentador da cidadania? Os livros escolares não tratam dos direitos e deveres imprescindíveis para uma sociedade democrática em que a discriminação é inaceitável? Diante desses questionamentos, alguém poderia ainda afirmar que a escola nada tem a ver com situações que envolvem discriminações baseadas em gênero e sexualidade, visto que ela se apresenta como instituição “neutra” no que 156 | Diferenças na Educação: outros aprendizados tange a essas diferenças. Segundo essa perspectiva, a sexualidade não é um tópico que deve ser levado em conta pela educação escolar. Portanto, não seria um equívoco responsabilizá-la pelas situações descritas? Figura 1 A maneira como os(as) alunos(as) estão dispostos(as) nesta imagem de uma escola apresenta vários aspectos das relações de gênero. O que é possível refletir a respeito das relações de gênero e sexualidade a partir desta imagem? É preciso salientar que a escola, por ser uma instituição social, não se situa em um vácuo, muito pelo contrário, ela exerce influência na, e é influen- ciada pela, sociedade em que está. As modalidades de violência e hierar- quias sociais, isto é, de diferenças, encontradas na escola podem ser pen- sadas como reflexo da forma como a sociedade se concebe e se organiza. Além disso, cabe analisar como a escola contribui para reproduzir violências e hierarquias próprias da sociedade. Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 157 BOX 1 Com o intuito de recuperar a discussão sobre o fenômeno assédio esco- lar, apresentada no capítulo Diferenças, podemos redefinir o conceito de bullying conforme a citação a seguir: O termo designa situações, primordialmente entre jovens, que levam uma pessoa ou grupo a usar atos repetidos de violência simbólica, psicológica e/ou física contra um terceiro para isolá-lo, humilhá-lo e/ou depreciá-lo. Apesar de ocorrer entre pares, a vítima é supostamente inferior em uma relação assimétrica de poder, na qual não possui meios de se defender. Ao mesmo tempo, o agressor não considera a vítima um sujeito, podendo ser utilizado contra ele(a) força física, agressão simbólica ou atos de incivilidade (ABRAMOVAY & CALAF, 2010, p. 34). A escola e a reprodução das normas sociais Normalmente, pensamos na escola como um ambiente igualitário, onde todas as crianças e jovens que lá estão têm a mesma oportunidade de apren- dizagem e gozam da mesma forma dos recursos oferecidos. Mas será que em uma sociedade marcada por desigualdades abissais, pelo preconceito e por discriminações de “raça”, gênero e sexualidade, a escola não ofereceria con- dições diferenciais a seus estudantes? Será que a instituição escolar, quando não leva em conta as desigualdades e não problematiza a subalternização das diferenças sociais, não acaba contribuindo para a exclusão social? As discussões contemporâneas da área de sociologia da educação passaram a apontar justamente para esses questionamentos, permitindo que as visões encantadas acerca do papel transformador e redentor da escola têm sido fortemente desmistificadas. Temos visto consolidar-se uma visão segundo a qual a escola não apenas transmite ou constrói conhecimento, mas o faz reproduzindo padrões sociais, perpetuando concepções, valores e clivagens sociais, fabricando sujeitos (seus cor- pos e suas identidades), legitimando relações de poder, hierarquias e processos de acumulação (JUNQUEIRA, 2009, p. 14). Em outras palavras, as desigualdades sociais não necessariamente são mitigadas ou minimizadas pela ação escolar. Ao contrário, é bastante comum que o sucesso escolar tenha relação direta com o pertencimento 158 | Diferenças na Educação: outros aprendizados aos estratos superiores da pirâmide social, na medida em que seus mem- bros herdam não apenas bens econômicos, mas também recursos culturais e dispõem de tempo livre para se dedicar a uma formação diferenciada. Quando pensamos a partir dessas evidências, matizamos os ideais contidos na concepção de que a escola efetiva um poder redentor e transformador da sociedadee passamos a pensar na escola como espaço de reprodução social, ou seja, como instituição que muitas vezes referenda desigualdades e hierarquias sociais. O impacto das desigualdades e hierarquias sociais na educação não se limita à esfera socioeconômica. O racismo, o machismo e a homofobia es- tão associados à perpetuação de desigualdades no desempenho escolar, notadamente vinculados à evasão escolar, à redução da frequência escolar e à queda no rendimento. Quando nos referimos especificamente a essas dimensões que se relacionam a normas e convenções sociais, devemos nos perguntar: Como a escola contribui e reforça tais aspectos? Como seus agentes podem atuar para minimizar tais impactos e, dessa maneira, se en- gajar na construção da escola como espaço efetivamente democrático? Em primeiro lugar, é preciso pontuar que a escola representa o primeiro contato dos indivíduos com uma série de ideais coletivos e com demandas sociais de enquadramento a esses referenciais. Anterior à ação da escola, no locus familiar, as demandas exteriores são conhecidas pelos novos membros da sociedade, em geral, no interior de um ambiente potencialmente protetor, mas cujos cuidados exclusivos logo se romperão quando a criança ingressar no ensino básico. Na escola, muitos alunos passam a perceber quando não correspondem a ideais coletivos, vendo-se como gordos, efeminados, ga- gos etc., na medida em que seus ideais correspondentes tendem a aparecer como demandas ou imposições, muitas vezes na forma de chacota e, em casos limite, sob a forma de violência (MISKOLCI, 2012, p. 37-38). Abordagens teóricas mais atentas às diferenças permitem analisar as- pectos mais nuançados e escamoteados das práticas pedagógicas, que, em geral, não se limitam apenas à transmissão do conhecimento formal e do patrimônio cultural de uma sociedade. Cabe-nos atentar para como, na vivência escolar, são repassadas convenções culturais e modelos de com- portamento que vão muito além do conteúdo formal dos livros e das aulas. Entramos no terreno das normas sociais, que muitas vezes se caracterizam por serem pouco explícitas, mas ainda assim extremamente fortes. Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 159 Discutir as normas sociais reproduzidas na escola inclui tratar da relação entre as práticas e omissões constituintes do sistema escolar. Para tanto, é necessário considerar o currículo escolar de forma mais abrangente, incluin- do os conteúdos e valores explícitos e implícitos das práticas pedagógicas. De que modo abordar a temática da sexualidade pode contribuir para a fomentação de um ambiente mais acolhedor e democrático? A suposta neutralidade das práticas pedagógicas escolares em relação à sexualidade esbarra em uma série de resultados de pesquisas orientadas pela UNESCO, nas quais se revelou que boa parte dos professores brasi- leiros não sabe como abordar temas relativos à homossexualidade na sala de aula. Aliado a isso, parte deles acredita que a homossexualidade é uma doença,41 e expressiva parcela de estudantes alega que não gostaria de ter colegas homossexuais. Como mostra Rogério Junqueira (2009, p. 17), a pes- quisa Perfil dos professores brasileiros, realizada entre abril e maio de 2002, revelou um comportamento intolerante em relação à homossexualidade entre esses profissionais, quando 59,7% afirmaram ser inadmissível que uma pessoa tenha relações homossexuais e 21,2% declararam que não gostariam de ter vizinhos homossexuais. Diante desses dados, compreendemos porque questões relaciona- das à sexualidade e à educação comumente encontram resistências a se- rem enfrentadas de forma comprometida. É patente ainda que muitos(as) professores(as), movidos(as) de boa vontade e desejo de se engajar em práticas que combatem o preconceito relacionado à orientação sexual, não se sentem à vontade ou não se consideram portadores de conhecimento suficiente para abordá-las. A despeito das limitações apresentadas, a escola não permaneceu imu- ne às discussões sobre sexualidade, em especial com a evidência da epide- mia de aids e a urgência de abordá-la com o público adolescente. Nesse sentido, assistiu-se nas últimas décadas a um crescimento de iniciativas liga- das à temática, muitas vezes incorporando até mesmo a disciplina Educação sexual ou Orientação sexual no currículo formal. Assim, a sexualidade foi incorporada nos currículos escolares sob o prisma biológico, voltado a dis- cussões sobre a prevenção às DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e 41 Desde 1973, a homossexualidade não é considerada algo patológico, portanto há mais de quarenta anos que os órgãos médicos internacionais reconhecem que o desejo por pessoas do mesmo sexo é normal e não pode ser “tratado”. Abordaremos isso em mais detalhes, adiante. 160 | Diferenças na Educação: outros aprendizados à gravidez na adolescência. Em outros termos, o foco restringiu-se a abordar a temática no âmbito de práticas relacionadas à saúde pública. Embora tais temas sejam importantes, deixam de fora aspectos socio- culturais relacionados à sexualidade. Quando mal abordadas, tais iniciativas correm o risco de reforçar uma naturalização da relação sexual com pessoas do sexo oposto, tornando invisíveis outras formas de expressão afetivas e se- xuais, ou mesmo reiterando uma vinculação supostamente necessária entre relações sexuais e reprodução. Além disso, acabam por associar, em geral, a sexualidade à doença e a ameaças coletivas, em especial no que tange às experiências sexuais que não correspondem aos padrões normativos. Torna-se, pois, importante caminhar para abordagens mais aprofundadas, com o cuidado de não reforçar pressupostos que incentivem preconceitos e discriminações na escola. Compreender a sexualidade de forma mais abrangente significa consi- derar que não apenas as práticas, mas também as omissões da escola são parte constituinte da forma como a sexualidade é aprendida entre os alunos. Não debater as convenções sociais que produzem formas de hierarquização impacta na própria relação que se constitui dentro dos muros da escola. O depoimento de um jovem francês a uma pesquisa sobre o tema ilustra a relação entre a violência na escola e seus silêncios: “Eu sofri insultos homofóbi- cos durante todo o ensino médio... Poderia ter falado a respeito com o diretor ou com os professores, mas como eles já sabiam da situação e não tinham feito nada a respeito, eu não podia esperar nada deles” (UNESCO, 2013, p. 17). A suposta neutralidade da escola com relação à sexualidade manifesta- -se de fato em um padrão heterossexual oculto nas concepções e nos va- lores presentes no currículo escolar, condição que leva à invisibilidade das sexualidades divergentes. Nas palavras de Richard Miskolci (2010, p. 80), perpetua-se o “silêncio diante da emergência de uma sexualidade diferente e, assim, [os agentes educacionais] tornam-se cúmplices da ridicularização e do insulto público de alguns estudantes”. Ao lado do silenciamento em rela- ção às diferenças, há, portanto, a cumplicidade com as violências cotidianas. Os casos de violência, como o que abriu nossas reflexões neste capítulo, devem ser vinculados à configuração mais ampla da escola, que, por sua vez, consente outros tipos de violência simbólica, anteriores à violência física. Como afirma Richard Miskolci (2012): Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 161 Atos isolados de violência emergem quando formas anteriores, invisí- veis de violência, se revelaram ineficientes na imposição de normas ou convenções culturais. Estes atos chamam mais nossa atenção, mas não podem nos iludir como sendo as únicas formas de violência que se pas- sam no convívio social. Na verdade, ironias, piadas, injúrias e ameaças costumam preceder tapas, socos ou surras (MISKOLCI, 2012, p. 34). As formas “invisíveis” de violência constituem, no fundo, intervenções contínuas que perpetuam ideais morais baseados no pressupostode que a heterossexualidade é a única forma de expressão da sexualidade natu- ral e desejável. Estes aspectos, em geral, não são notados pelos agentes educacionais, pois não só eles, como vários outros profissionais, tendem a incorporar as normas sociais como se fossem naturais e permanentes. A heteronormatividade e suas implicações na educação A percepção de que o ambiente escolar contém um currículo oculto, fundamentado na norma heterossexual, foi possível mediante a realização de pesquisas que desnaturalizam a heterossexualidade ao compreendê-la como compulsória, isto é, constituída socialmente segundo relações históri- cas de poder. 162 | Diferenças na Educação: outros aprendizados BOX 2 Heterossexualidade compulsória Os primeiros estudos acadêmicos sobre homossexualidade baseavam- -se na observação e análise de subculturas homossexuais, examinando cenários marcados por determinado tipo de sociabilidade e perpassados socialmente pelo estigma. Ainda que importantes, estas pesquisas não co- locavam em questão o pressuposto socialmente aceito de que a heteros- sexualidade é natural, pois não problematizavam a concepção socialmente constituída da homossexualidade como desvio. Os estudos avançaram e passaram a compreender a heterossexualidade como compulsória, ou seja, como uma imposição socialmente instituída, algo que foi abordado em alguns textos seminais, como no clássico artigo “A troca de mulheres” (1975) da antropóloga Gayle Rubin e explicitado no texto da feminista Adrienne Rich (1983) “Powers of desire: the politics of sexuality”. Heteronormatividade Anos depois, teóricos ligados à vertente denominada Teoria Queer passa- ram a conceber que as sociedades contemporâneas são heteronormativas. Michael Warner criou o conceito de heteronormatividade em 1991 para se referir à forma como apreendemos as relações sociais, inserindo-as sempre no binário interdependente da hetero-homossexualidade. Nesse padrão hierárquico, atribui-se à heterossexualidade a qualidade de saudável, nor- mal e adequada e, ao mesmo tempo, associa-se a homossexualidade à pa- tologia ou ao desvio, subalternizando-a. Segundo Larissa Pelúcio e Richard Miskolci (2009), a heteronormatividade configura até mesmo a gramática das relações entre pessoas do mesmo sexo, compondo uma série de ideais que têm como modelo o casal heterossexual. Atualmente, nas sociedades contemporâneas, nota-se que a sexualida- de configura-se com base na heteronormatividade, ou seja, segundo um conjunto de valores e normas culturais que representam ideais sociais. Esta nova forma de conceber a sexualidade é fruto de transformações políticas e culturais que passaram a colocar em xeque certas convenções produto- ras de desigualdades e subalternizações de sujeitos e grupos sociais. Em suma, a produção acadêmica passou a ser decisivamente influenciada pelas mobilizações das décadas de 1960 e 1970, entre as quais podemos citar o Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 163 feminismo e o nascente movimento homossexual, marcados não apenas pela busca de direitos e reconhecimento, mas também pelo questionamento de padrões morais opressivos, tendo amplo impacto na produção científica das décadas seguintes. Tais mobilizações produziram demandas em um cenário político em que as instituições tradicionais como o Estado e os partidos passavam a ver questionada sua repre- sentatividade e/ou autoridade. De forma geral, esses movimentos afirmavam que o privado era político e que a desigualdade ia além do econômico. Alguns, mais ousados e de forma vanguardista, também começaram a apontar que o corpo, o desejo e a sexualidade, tópicos antes ignorados, eram alvo e veículo pelo qual se expressavam relações de poder (MISKOLCI, 2012, p. 22). A segunda onda do movimento feminista, ao longo do referido período, centrava-se no questionamento do privilégio masculino sistematicamen- te reiterado por meio da subordinação de mulheres e gays, entre outros grupos. Com as conhecidas palavras de ordem “o privado é político”, as feministas questionavam a suposta não existência de relações de poder no âmbito privado, abrindo a possibilidade para diversas contestações políticas no âmbito da família, da sexualidade e do trabalho doméstico. Os feminismos insurgentes passaram a desnaturalizar privilégios que os homens obtinham dentro de casa, além de denunciar o controle moral que a sociedade sustentava em relação ao prazer sexual feminino, limitando a pos- sibilidade de escolhas de parceiros e as formas de relacionamento sempre vinculadas às expectativas de matrimônio. Ao lado dos feminismos, surgiram também movimentos homossexuais que buscavam lutar contra a rotulação da homossexualidade como “desvio psiquiátrico”, além de exigir o reconhecimento de suas especificidades, a ampliação de seus direitos de cidadania e o acesso igualitário ao espaço público e ao mercado de trabalho. As manifestações tiveram forte impacto no âmbito acadêmico, sendo as décadas de 1970 e 1980 marcadas pela introdução da temática de gênero e sexualidade nas universidades. No campo teórico, ressalta-se a obra im- portante de Mary McIntosh, publicada em 1968, chamada The homossexual role (O papel homossexual), na qual a autora abre caminho para superar explicações biologizantes relativas à temática da sexualidade. Entre tantas obras do período, a mais impactante e ainda hoje referência é a obra de 164 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Michel Foucault, em especial seu livro História da sexualidade: a vontade de saber (volume I). Neste, Foucault estuda o que denominou de dispositivo de sexualidade. Em sua rica pesquisa histórica, o filósofo francês chegou à conclusão de que a formação das sociedades modernas, industriais e baseadas na conso- lidação dos Estados Nacionais operou um exaustivo e inédito controle das formas pelas quais a população se relacionava sexualmente. Conhecimentos científicos e discursos médicos “alertavam” para os supostos perigos que práticas sexuais consideradas não convencionais, como o sexo inter-racial, o prazer sexual feminino, além das relações entre pessoas do mesmo sexo, poderiam oferecer à coletividade. Diante do exposto, formou-se uma rede de discursos científicos e peda- gógicos, além de práticas, que visavam a “pedagogização do sexo da crian- ça”. Isto é, uma série de valores, recursos e teorias passaram a defender o disciplinamento do corpo infantil no interior de instituições escolares, tendo em vista uma suposta ameaça de perigos físicos e morais, com consequ- ências individuais e coletivas caso a sexualidade infantil se desenvolvesse de forma não normativa. Ao lado do foco nas crianças, consolidava-se na literatura psiquiátrica a imagem do homossexual: A invenção do termo homossexual deu-se em uma carta-protesto do jornalista e escritor austro-húngaro Karl Maria Kertbeny (1824-1882) contra a provável criminalização das relações entre pessoas do mesmo sexo nos estados alemães do Norte, em 1869. No ano seguinte, o então chamado “homossexualismo” foi “medicalizado” no texto As sensações sexuais contrárias do psiquiatra alemão Karl Friedrich Otto Westphal (1833-1890). No eixo crime-patologia, formas muito diversas de relações entre pessoas do mesmo sexo e maneiras heterodoxas de manipular os gêneros foram sintetizadas sob uma mesma identidade socialmente perseguida (MISKOLCI, 2010, p. 94). As relações afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo existem em qualquer sociedade humana, no entanto são compreendidas de forma distinta de acordo com cada contexto sociocultural. As sociedades moder- nas criaram originalmente uma forma de compreensão da homossexualida- de como doença, e, por muito tempo, perseguida como crime. A obra de Michel Foucault, entre outras, forneceu subsídios para se pensar a origem Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 165 histórica desta compreensão e abriu caminho para muitas pesquisasvolta- das à temática nas décadas de 1970 e 1980, das quais se destacam a obra do francês Guy Hocquenghem intitulada Le désir homossexuel, Thinking sex da norte-americana Gayle Rubin e O negócio do michê, do argentino radicado no Brasil Néstor Perlongher. As referidas obras, dentre outras, criaram as bases para a constituição de uma nova abordagem da sexualidade que ficou conhecida como Teoria Que- er, baseada na perspectiva sócio-histórica e na análise das relações de poder. No contexto norte-americano, são consideradas obras fundadoras dos estudos queer o livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da iden- tidade, de Judith Butler, e Epistemology of the closet, de Eve K. Sedgwi- ck, ambos publicados em 1990. Essas obras foram produzidas no ápice da epidemia da aids, em um contexto que se caracterizava pela culpabilização de homens gays pela epidemia, tendo a mídia desenvolvido papel crucial nesse processo devido a reportagens sensacionalistas que enfatizavam a relação entre homossexuais e práticas sexuais não convencionais, colocan- do a opinião pública contra este segmento. Trata-se de uma visão moralista que associava a ideia de que práticas sexuais não voltadas ao casamento e entre pessoas do mesmo sexo não eram apenas imorais, mas resultavam em ameaças à coletividade. Um dos primeiros nomes pelos quais a aids foi conhecida para o público leigo em geral se deu pela rotulação equivocada e preconceituosa de “câncer gay”. Há nesse contexto, portanto, uma inflexão de um movimento histórico que, como vimos, passava a questionar os padrões morais aceitos, algo que havia repercutido amplamente na produção acadêmica. Na década de 1970, importantes eventos marcaram o processo de despatologização e de descriminalização da homossexualidade – tendo a Associação Americana de Psiquiatria retirado, em 1973, a homossexualidade do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Com a epidemia de aids na década de 1980, configurou-se uma nova associação entre aids e homossexualidade, rotulando novamente certas práticas sexuais e afetivas à doença. Em outros termos, a despatologização da homossexualidade deu lugar à repatologiza- ção em termos epidemiológicos (PELÚCIO & MISKOLCI, 2009). Todo esse contexto fomentou estudos críticos e mais aprofundados sobre a sexualidade que passaram a conceber a perpetuação, a despeito de toda a mudança trazida pelos movimentos sociais, do que se chamou de heteronormatividade. Nesta perspectiva, assume-se que a sexualidade é 166 | Diferenças na Educação: outros aprendizados vivida enquanto uma construção social e histórica. Somos, portanto, frutos do nosso próprio tempo na forma pela qual concebemos e vivenciamos a sexualidade, que, por sua vez, é constituída em meio a relações de poder. A heteronormatividade é um sistema complexo que diferencia aquilo que é “bom”, apropriado e saudável do que é moralmente condenável, inapropria- do, e deve ser evitado socialmente. Trata-se de um sistema de normas que não faz mais do que descrever como as pessoas vivem ou devem vi- ver, como definem um horizonte de expectativas para a vida humana, um conjunto de ideais para os quais as pessoas aspiram e contra os quais elas medem o valor delas próprias e da vida de outras pessoas (HALPERIN, 2012, p. 450, tradução nossa). Em termos gerais, tais ideais se centram no modelo do casal heteros- sexual reprodutivo. Estabelecido como a forma mais elevada moralmente, o modelo heterorreprodutivo influenciou e influencia até hoje as expectati- vas de vida afetiva e sexual, até mesmo de pessoas que se relacionam com pessoas do mesmo sexo, servindo para desqualificar qualquer outra escolha individual no que tange às possibilidades de vida privada e afetiva. Eve K. Sedgwick (2007) compreende a heteronormatividade a partir de um regime de visibilidade que se constitui com base no binário hétero/homo, dois ter- mos contemporâneos que não apenas dizem respeito a formas de expres- são afetiva e sexual, mas são categorias estruturantes da sociedade como um todo. Trata-se do que ela concebeu como um regime de visibilidade heterossexual (regime do armário) que se configura alocando a homossexu- alidade ao privado, ao segredo, enquanto resguarda o espaço público à he- terossexualidade. Não se trata apenas de proibir certas expressões públicas de amor entre iguais, frequentemente alvo de violência, mas também de um complexo controle de expressões de gênero. Judith Butler (2003) considera que as sociedades contemporâneas são caracterizadas pela construção de gênero baseada em uma matriz heteros- sexual na qual se exige uma coerência entre sexo anatômico, gênero, dese- jos e práticas sexuais. Em outros termos, exige-se que meninos se portem de forma masculina e desejem se relacionar com meninas ou que meninas se portem de forma feminina e desejem se relacionar com meninos. Gêneros socialmente aceitos são aqueles que se baseiam nesta coerên- cia, enquanto aqueles que rompem o continuum socialmente imposto, como travestis, transexuais e transgêneros, são alocados à esfera da abjeção, ou seja, daquilo que está socialmente associado à repugnância, ao desprezo e à Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 167 vulnerabilidade. Nesse sentido, é possível compreender o regime de visibili- dade heterossexual como aquele que inviabiliza pessoas que rompem com a norma não apenas de se expressarem afetivamente, mas de se portarem de forma espontânea, sendo frequentemente alvo de violência verbal ou física. De um lado, por exemplo, tal regime constrange casais de mulheres que se relacionam amorosamente a não expressarem sua afetividade em públi- co. De outro lado, transforma, muitas vezes, espaços públicos em lugares hostis a expressões de gênero dissidentes, como para travestis, transexuais e transgêneros, que frequentemente se transformam em alvo de insultos ou mesmo de violência física. Figura 2 Muriel/Hugo é uma personagem d@ Laerte, cartunista reconhecid@ que passou a se identificar publicamente enquanto transgênero. Os quadrinhos desta personagem lidam de forma descontraída e questionadora com a ordem sexual que subalterniza transgêneros, transexuais e travestis. A escola contemporânea, em geral, atua como instituição normalizado- ra, atualizando pedagogias de gênero e sexualidade que contribuem para deixar intocada a ordem heterossexual, alocando ao segredo e à vergonha outras formas de viver a sexualidade e o gênero. Neste sentido, um dos aspectos centrais de sua caracterização é a perpetuação do regime de vi- sibilidade heterossexual que aloca à vulnerabilidade aqueles(as) que não se adéquam à norma heterossexual. Em outros termos, não se reconhece a existência da homossexualidade, transexualidade e transgeneridade, ao mesmo tempo que se reproduz a heterossexualidade como padrão. Ignorar a existência do interesse por pessoas do mesmo sexo é uma das formas que a escola utiliza para construir identidades de gênero tradi- cionais, mas vale sublinhar que essa ignorância é intencional e ativa. 168 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Os educadores e educadoras partem de uma desvalorização de formas alternativas de compreensão dos gêneros e de vivência da afetividade para que as identidades esperadas sejam construídas em cada menino ou menina (MISKOLCI, 2010, p. 100-101). O que está em jogo não é apenas a vivência de sujeitos homossexuais dentro dos muros da escola. No decorrer da infância, há mecanismos hete- ronormativos muito antes de qualquer autorreconhecimento identitário. No contato com as violências visíveis e invisíveis, com os silêncios e modelos, com as ações e omissões da escola, os alunos aprendem o que é social- mente prescrito e como devem se portar diante das diferenças da norma heterossexual. A partir do exposto, podemos repensar e propor uma “outra escola”, que dialogue com experiências abertas às diferenças e que debata de que forma a violência está presentena sociedade e na escola, propician- do reflexões transformadoras aos alunos e às alunas. Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 169 BOX 3 Já afirmamos que a forma de se compreender a sexualidade varia social e historicamente, bem como os termos que a designam. Em outras épo- cas e sociedades, as relações sexuais com pessoas do mesmo sexo eram compreendidas de forma amplamente distinta da nossa sociedade. Como exemplo, na Grécia e Roma antigas, homens relacionavam-se com outros homens sexualmente, e, desde que cumprissem certos códigos morais, sua masculinidade não era posta em questão. Na sociedade contemporâ- nea, algo distinto ocorre à medida que, para um homem ser reconhecido enquanto tal, se exige uma orientação sexual específica: a heterossexuali- dade. Em outros termos, os homens que mantêm relação afetiva e sexual entre si convivem com a consideração preconceituosa de que apresentam uma “falha” em sua masculinidade. Alguns termos são importantes para compreendermos essas questões. Segue um pequeno glossário simplificado. Orientação sexual: escolha sexual e afetiva segundo o gênero. Deste modo, algumas pessoas se definem como heterossexuais, elegendo pes- soas do gênero oposto, outras se definem como homossexuais, elegendo pessoas do mesmo sexo, e, ainda, outras se definem como bissexuais, ele- gendo tanto pessoas do sexo oposto quanto do mesmo sexo. O termo homossexualidade é preferível em relação a homossexualismo, cujo prefixo ismo carrega uma conotação de doença. É importante pensar que essas categorias não são tão fechadas e podem não dar conta da totalidade das experiências afetivas e sexuais de uma mesma pessoa. Identidade de gênero: identificação da pessoa segundo o gênero base- ada no argumento de que o sexo anatômico não determina diretamente a masculinidade ou a feminilidade. A identidade de gênero é nomeada a partir da congruência ou divergência em relação às expectativas que de- terminam causalidade direta entre a anatomia biológica e as dimensões culturais da masculinidade ou da feminilidade. Transgeneridade refere-se à identificação de uma pessoa com o gênero oposto ao do seu “sexo bioló- gico”. Transexualidade é comumente definida da mesma forma, havendo a possibilidade de que as pessoas realizem cirurgias corporais de modo a se adequarem à anatomia sexual correspondente à sua identidade de gênero. 170 | Diferenças na Educação: outros aprendizados BOX 3 Travestilidade refere-se à outra forma de expressão de gênero discordante da anatomia sexual original. É importante ressaltar que a não conformidade em relação ao gênero não necessariamente se relaciona com a orientação sexual, ou seja, há pessoas trans que se relacionam com pessoas do mesmo gênero, por exemplo. BOX 4 Assista ao curta-metragem Eu não quero voltar sozinho (Brasil, 2010), diri- gido por Daniel Ribeiro. A produção fílmica é uma boa oportunidade para debater a presença de outras sexualidades no contexto escolar, além de abordar o exercício da sexualidade entre pessoas com deficiências. O filme narra o convívio entre dois adolescentes, sendo um deles deficiente visual, e suas primeiras vivências afetivo-sexuais. Acesse o link: <https://www.you- tube.com/watch?v=1Wav5KjBHbI>. UNIDADE 2 Casa-grande & senzala: o modelo heterorreprodutivo nacional e suas dimensões históricas Após termos apresentado o conceito de heteronormatividade e sua in- fluência no modo como as relações sociais se organizam, em especial no interior da escola, nesta unidade discutiremos os aspectos singularmente brasileiros da construção histórica e social da sexualidade. Ou seja, aborda- remos de que modo fatores políticos, econômicos e históricos configuraram as manifestações da sexualidade no Brasil. Para tanto, apresentaremos as ideias de Gilberto Freyre, influente teórico das Ciências Sociais brasileiras. Freyre é frequentemente associado à ideia de que haveria uma “demo- cracia racial” no país. Segundo esse mito, o Brasil seria um país mestiço e, diferentemente de outros contextos nacionais, marcado por relações mais harmônicas entre as “raças”. Embora as críticas baseadas em pesquisas Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 171 sociológicas e históricas tenham apontado que a configuração social brasi- leira, ao contrário do que Freyre apontava, é marcada pelo racismo, vários autores realizaram uma leitura original de sua obra, aproveitando-se da com- plexidade com a qual lidava com aspetos macrossociais relacionados à vida privada e íntima do Brasil colonial. Freyre analisou as bases históricas da sociedade brasileira de forma so- fisticada, ao integrar em sua análise aspectos socioeconômicos abrangen- tes, como as históricas plantations baseadas no trabalho escravo, os sistemas políticos patriarcalistas, além das características prosaicas dos costumes privados dessa época. Em uma leitura crítica de seu livro mais famoso, Casa- -grande & senzala, publicado em 1933, é possível notar as íntimas e não me- nos violentas relações entre a casa-grande e a senzala, que deixaram marcas profundas em nossa configuração social presente. Um dos aspectos analisa- dos pelo autor, bem lembrados por Laura Moutinho (2004), diz respeito ao patriarcalismo poligâmico, no qual o pai de família e proprietário de terras tinha assegurado para si uma dupla moral sexual que lhe permitia ter rela- ções sexuais dentro e fora do casamento, aproveitando-se de suas escravas. Desta origem histórica herdamos um modelo de sexualidade que articu- la dominação masculina e racismo. No período colonial e escravista de nossa história, às mulheres brancas e da elite cabia o recato sexual, a reprodução e o cuidado do lar e dos filhos. As mulheres negras e escravizadas, por sua vez, frequentemente serviam, mediante coação, aos prazeres dos proprietários de terras e homens livres. No Brasil, a relação sexual inter-racial constituiu-se saturada de poder com base na história de hierarquias raciais próprias de uma sociedade de origem colonial e escravocrata. Deste cenário surgiu a representação da mulher negra ou mulata como supostamente mais sensual e acessível sexualmente, bem como marcada pela falta de moralidade. Em outros termos, além de coagidas ao ato sexual, eram tratadas como se esti- vessem sempre predispostas ao sexo. Sueann Caulfield (2000) aborda a continuidade desse padrão moral ba- seado na hegemonia masculina durante as décadas de 1930 e 1940. A mora- lidade da época compreendia a honra sexual da mulher, também concebida como “honestidade sexual”, como base da família, por sua vez, sustentáculo da nação. O controle moral da sexualidade tinha óbvios contornos de gê- nero. Aos homens, permitia-se o uso do espaço público e não se cobrava recato sexual, às mulheres exigia-se domesticidade e “proteção” de sua “honra”. Honestidade, neste caso, significava submissão à vigilância dos pais 172 | Diferenças na Educação: outros aprendizados e do marido, ao passo que seu oposto poderia ser constatado na presença da mulher na esfera pública andando em bondes, em atividades de entre- tenimento, como a dança desacompanhada, entre outras que denotavam autonomia. As leis e os direitos sexuais da época eram concebidos a partir de uma suposta missão reprodutiva e moralizadora da mulher, em vez da defesa de sua liberdade e da garantia de seus direitos individuais. Estamos diante da caracterização de uma ordem sexual que, se na pri- meira unidade assinalamos sua relação com a heteronormatividade, aqui enfatizamos sua vinculação com aspectos raciais e de gênero. É possível conceber, para fins didáticos, um sistema de classificações so- ciais que hierarquiza certas práticas sexuais como moralmente mais dignas do que outras. As análises de Gayle Rubin (1984) permitem formular uma representação gráfica de uma pirâmide sexual em que no topo constam heterossexuais casados do mesmo grupo racial, logo abaixo homens hete- rossexuais solteiros,seguidos por casais heterossexuais de grupos raciais distintos e mulheres heterossexuais solteiras. Pouco acima dos grupos da base da pirâmide estão os casais estáveis de lésbicas e gays, mais abaixo os mesmos grupos solteiros, e na base constam os transgêneros e transexuais, os(as) profissionais do sexo e, por fim, travestis que vivem da prostituição. Temos, portanto, um modelo de estratificação social segundo a respeitabili- dade social, ancorado em pressupostos morais e relações de poder. Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 173 Figura 3 Gráfico ilustrativo da pirâmide sexual brasileira. Adaptado com base na dis- cussão da antropóloga norte-americana Gayle Rubin. A pirâmide sexual descrita auxilia na compreensão de como a sociedade vincula respeitabilidade com a maneira pela qual os indivíduos lidam com a esfera dos afetos, da sexualidade, das formas de identificação de gênero e das relações raciais, considerando que todas essas dimensões atuam de forma simultânea. Nessa perspectiva, o argumento segundo o qual a sexua- lidade se restringe às questões pessoais e à esfera do privado cai por terra. Uma ordem sexual se configura socialmente e a sociedade conta com instru- mentos sofisticados para controlá-la, perpetuando assimetrias, hierarquias e desigualdades tal como apresentado na referida pirâmide. Os grupos sociais presentes no topo da pirâmide, representativos da respeitabilidade social, têm garantida sua circulação na esfera pública, além da livre expressão de seus afetos, pois não se deparam com restrições à ma- nifestação afetiva (beijos, abraços, carícias) nas ruas, restaurantes, shoppin- gs centers etc. Além disso, esses grupos têm maior possibilidade de serem respeitados e recrutados pelo mercado de trabalho. No entanto, os grupos 174 | Diferenças na Educação: outros aprendizados sociais localizados na base da pirâmide, representativos da abjeção social,42 encontram inúmeros obstáculos em sua circulação pública, sendo alvo de manifestações violentas e discriminatórias, além de terem dificuldade de acesso ao mercado de trabalho. As desigualdades não se restringem aos empecilhos para circular nos espaços abertos, mas também têm efeito nos rendimentos financeiros, pois o mercado de trabalho atua a partir de prin- cípios normativos, discriminando, portanto, os grupos sociais estabelecidos na base da pirâmide. Mais profundo do que isso, a base da pirâmide atesta a consideração de um grau menor de humanidade aos seus ocupantes. Como exemplo, são corriqueiras as notícias de pessoas transexuais e travestis assassi- nadas no Brasil sem que haja apuração e punição dos(as) culpados(as). Acaba-se produzindo uma hierarquia das mortes: algumas merecem mais atenção do que outras. De modo geral, na lógica jurídica, um dos critérios para se definir a posição que cada assassinato deve ocupar na hierarquia dos operadores do Direito parece ser a conduta da vítima em vida. Nessa cruel taxonomia, casos de pessoas transexuais assassina- das ocupam a posição mais inferior. É como se houvesse um subtexto: “quem mandou se comportar assim”. Essa taxonomia acaba (re)produ- zindo uma pedagogia da intolerância. A vítima é metamorfoseada em ré em um processo perverso de esvaziá-la de qualquer humanidade (BENTO, 2011, p. 554). O entremeio é caracterizado por julgamentos coletivos que, embora não aloquem os sujeitos à abjeção, recusam o reconhecimento integral de suas experiências, da mesma forma que cobram sua adequação às normas. Às mulheres heterossexuais, solteiras, na faixa dos 30 anos, por exemplo, recai a “cobrança” de se casarem ou de pelo menos manterem um namoro estável de forma mais acentuada do que aos homens. O sentimento de adequação e reconhecimento social alcançado por aqueles que estão no topo da pi- râmide se revela na mesma medida em que a inadequação dos que estão abaixo se apresenta em situações cotidianas, mesmo que de forma sutil. 42 Abjeção social refere-se às manifestações de repugnância e temor da qual são objeto aqueles(as) que não se enquadram nos rígidos padrões heteronormativos. Nessas oca- siões, por expressarem sexualidades e performances de gênero não enquadradas no padrão “esperado”, gays, lésbicas, travestis, entre outros, são alvo de desprezo e temor por grupos sociais refratários a qualquer padrão que não manifeste explicitamente as demandas heterossexuais. Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 175 Os casais gays e lésbicos, especialmente aqueles cujos pares não apre- sentam performance de gênero discordante das normas sociais, ou seja, no qual os homens são masculinos e as mulheres femininas – preferencialmente brancos e das classes altas –, estão em um patamar acima na pirâmide de respeitabilidade social quando comparados a gays e lésbicas solteiras, dado que reproduzem, ainda que de forma avessa, o modelo heterossexual funda- do no vínculo conjugal estável. Mídia e sexualidade: o que é incentivado a ser veiculado e o que causa polêmica? Além do prestígio social e da respeitabilidade de que gozam os grupos sociais localizados nos estratos superiores da pirâmide e das experiências de abjeção social a que são submetidos(as) aqueles(as) cuja sexualidade não corresponde ao padrão heteronormativo, é importante discutir o papel da mídia na veiculação de representações sobre gênero e sexualidade. É possí- vel dizer que, atualmente, a televisão, o cinema e a internet são importantes fontes de significados da cultura que acabam repercutindo na forma como nos vemos e vemos os outros. Atualmente, as mídias televisivas, ao atuarem em convergência com as mídias digitais, produzem e transmitem diversos tipos de valores à socieda- de. O que vemos nos canais televisivos nunca é o reflexo imediato da reali- dade, independentemente se estamos nos referindo às ficções das teleno- velas ou aos programas jornalísticos. Uma representação é sempre seletiva em termos do que abordar e de como atribuir significado. O que pode ser visto na televisão? Como os diversos grupos sociais são abordados? Esses questionamentos são importantes caso concebamos que a relação entre es- pectadores e o conteúdo midiático ocorre por meio da produção de identifi- cações e referências. Em outros termos, o modo pelo qual compreendemos a nós mesmos e aos outros depende de modelos que são, cada vez mais, fornecidos pelas mídias. Por exemplo, no início de 2014, pela primeira vez um beijo entre homens foi veiculado na telenovela Amor à vida, produzida pela maior emissora de televisão brasileira, conforme abordado no capítulo anterior deste livro. O que explica tamanho intervalo de tempo na representação da afetividade entre homens na televisão? Por que uma forma de afeto e de expressão da sexualidade representativa na sociedade não pode ser abordada em 176 | Diferenças na Educação: outros aprendizados programas televisivos? O receio é resultado do controle das emissoras que buscam se adequar aos valores sociais normativos definidores de sua audiência, mas também é revelador da norma heterossexual, presente nas decisões corporativas da mídia e no mercado de anúncios publicitários que mantêm a programação. Setores mais conservadores da sociedade assumem que a televisão é influente no que se refere à transmissão de padrões de comportamentos e consideram que práticas sexuais divergentes às normas não devem ser veiculadas em público. A despeito dessas manifestações, de modo geral, a cena do beijo teve uma repercussão positiva na imprensa escrita e nas redes sociais, embora seja patente que ela se pautou pela discrição afeti- va e foi circunscrita a homens brancos e de classe alta, com privilégios e reconhecimento que minimizam o preconceito em relação à homossexua- lidade, conforme aludido na pirâmide de respeitabilidade social segundo a sexualidade. Enquanto as relações afetivas entre homens não encontram espaço na mídia, no carnaval, mulheres seminuas ocupam astelas durante todo o ho- rário da programação. Em especial, as mulatas, atualizando a representação que associa negritude e sensualidade natural, cuja história remonta a nosso passado colonial e escravista, conforme já discutido. As representações midiáticas, portanto, não são neutras, pois carre- gam valores culturais e difundem normas sociais que reatualizam o modelo heterorreprodutivo da sociedade brasileira, calcado na hegemonia mascu- lina e influenciado por fatores raciais, entre outros. Vemos, portanto, que as dimensões de raça, gênero e sexualidade se encontram entrelaçadas na configuração de uma ordem sexual brasileira, conforme discutido no primeiro capítulo do presente livro, quando foi apresentado o conceito de interseccionalidade. Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 177 Figura 4 Aline Prado, “Globeleza” entre 2006 e 2013, representa a figura da mulata sensual, bastante abordada pela mídia brasileira. A matriz heterossexual de gênero e a homofobia na escola Quando falamos de uma ordem sexual devemos compreender como os elementos que se referem à sexualidade se unem a outras dimensões, por exemplo, às relações de gênero. Sexualidade e gênero se entrecruzam quando consideramos que a construção social da masculinidade se baseia na negação do feminino, incluindo a dominação simbólica das mulheres e a homofobia. Para Rogério Junqueira (2009), o processo de se constituir en- quanto homem passa por se diferenciar do feminino encarnado nas mulhe- res e nos homossexuais, muitas vezes a partir da violência: o “‘outro’ passa a ser principalmente as mulheres e os gays e, para merecerem suas identida- des masculinas e heterossexuais, [os homens] deverão dar mostras contínuas de terem exorcizado de si mesmos a feminilidade e a homossexualidade” (JUNQUEIRA, 2009, p. 19). Considerando que a masculinidade se constitui na homossociabilidade, ou seja, ela é aprendida e reforçada nas relações de sociabilidade entre ho- mens nas práticas esportivas, nos grupos de amizade, no contato com cole- gas de trabalho, um aspecto fundamental destas relações é a necessidade 178 | Diferenças na Educação: outros aprendizados de se espantar a “ameaça” da homossexualidade. Em outros termos, na ho- mossociabilidade, a homossexualidade atua como um elemento simbólico especial: Tanto o medo como a forma de agressão mais comum se fazem na linguagem da homossexualidade, enquanto categoria passiva, simboli- zada na imagem da penetração anal, feminizando assim o homem. Este recurso retórico é usado em todas as relações competitivas e conflitu- osas entre homens, seja no trabalho, nos negócios ou no jogo. Por sua vez, a homofobia situa e exorciza o perigo homossexual da homossocia- lidade (ALMEIDA, 2000, p. 68). A homofobia se refere, em termos simples, à internalização da negação da homossexualidade como aspecto constitutivo da identidade heterosse- xual. Os termos heterossexual e homossexual são categorias contemporâ- neas, criadas na passagem do século XIX para o XX, e se caracterizam por sua interdependência. Apenas se concebe o que é heterossexual referindo- -se ao seu contraste, o homossexual. Em outras palavras, a homossexuali- dade é a alteridade definidora da heterossexualidade. Essa constatação é facilmente notada nas piadas contadas por homens e nas relações jocosas (“zombarias”) típicas desse grupo, cujo conteúdo, em geral, alude de forma pejorativa à homossexualidade e sistematicamente coloca em xeque a “he- terossexualidade” de algum membro do grupo. Basta nos lembramos das piadas contadas sobre gays, taxados nessas ocasiões como “viados/bichas”, e nas gargalhadas que extraem dos comparsas. Por meio do escárnio, os ho- mens procuram se diferenciar dos gays e rejeitar qualquer forma de desejo ou prática homossexual e, ao mesmo tempo, reafirmam publicamente sua virilidade. A homofobia não se limita às piadas ou às relações jocosas estabelecidas entre homens, pois sua expressão talvez assuma contornos de repulsa que podem culminar em atos de agressão física, por exemplo. A violência homo- fóbica não se limita a um ato isolado que diz respeito apenas à personalida- de do agressor, pois ela coincide com um sistema de valores que caracteriza a heterossexualidade como manifestação da normalidade, do saudável e do Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 179 adequado, ao mesmo tempo que classifica a homossexualidade como anor- mal, desviante, inadequada e doentia. Aqueles que não se identificam com as normas habitam a esfera da abjeção e, portanto, encarnam justamente a alteridade a ser socialmente repugnada. Segundo Richard Miskolci (2012), “a abjeção, em termos sociais, constitui a experiência de ser temido e recusado com repugnância, pois sua própria existência ameaça uma visão homogênea e estável do que é a comunidade” (MISKOLCI, 2012, p. 24). BOX 5 A matriz heterossexual de gênero Segundo Judith Butler (2003), a construção das relações de gênero em con- textos heteronormativos fundamenta-se na coerência socialmente imposta entre anatomia sexual, gênero, desejo e práticas sexuais. Assim, pessoas dotadas de um pênis devem se portar de forma masculina, se interessar por mulheres e se relacionar com elas. De forma inversa, o mesmo vale para pessoas que nasceram com a anatomia feminina. Baseando-se nessas argumentações, cria-se a ideia de complementaridade de gênero, isto é, a pressuposição de que homens e mulheres são naturalmente condicionados para formar casais heterossexuais. O heterossexismo organiza-se conforme o pressuposto de que todos são naturalmente heterossexuais até que se prove o contrário, em vez de conceber as relações de gênero e afetivo- -sexuais como constituições sociais e históricas. Aqueles que não se adéquam às normas de gênero e sexualidade são vistos como desviantes ou como portadores de alguma patologia. Os valo- res e as ideias difundidas por família, religiões, mídias, escola, entre outras instituições, tendem a naturalizar as normas sociais não levando em conta que, no cotidiano, as crianças, por exemplo, ultrapassam ou misturam os universos masculinos e femininos. Segundo Berenice Bento (2011), “o pro- cesso de naturalização das identidades e a patologização fazem parte desse processo de produção das margens, local habitado pelos seres abjetos” (BENTO, 2011, p. 553). A expressão “isso não é coisa de menino!” revela muito como as fronteiras entre os gêneros são constantemente vigiadas. Em síntese, questiona a autora, depois de uma minuciosa e contínua engenharia social para produzir 180 | Diferenças na Educação: outros aprendizados corpos sexuados que tenham na heterossexualidade a única possibilida- de humana de viver a sexualidade, como se pode continuar atribuindo à natureza a responsabilidade daquilo que é o resultado de tecnologias gerenciadas e produzidas pelas instituições sociais? (BENTO, 2011, p. 552). A título de exemplo, Berenice Bento (2011) analisa narrativas de transe- xuais que na infância deixaram a escola depois de serem alvo de sucessivas agressões por conta de sua inadequação às normas de gênero, sem que a escola atuasse para inibir tais atitudes. Esses casos acabam compondo as estatísticas de evasão escolar; no entanto, como o tema não é levado a sério pela maior parte das escolas, não se sabe nem mesmo qual percentual dessas evasões decorre do bullying homofóbico. Segundo a autora, em vez de serem tipificados como “evasão”, esses casos deveriam ser classificados como “expulsão”, pois são fruto, entre outros aspectos, das práticas e omis- sões da pedagogia escolar alinhada às normas de gênero hegemônicas. Diante do panorama apresentado nesta unidade, deve-se questionar a neutralidade das práticas pedagógicas e do currículo escolar convencional. Nesse sentido, é importante propor uma nova abordagem pedagógica que leve em conta os aspectos discutidos e que busque problematizá-los em prol da transformação do espaçoescolar. Uma pedagogia que leva em conta o reconhecimento das diferenças deve tornar explícito o conteúdo muitas vezes imperceptível, mas violento, de alguns tipos de interação, valores e práticas presentes na instituição escolar, com o propósito de intervir para que esse ambiente se torne mais receptivo e democrático. Neste sentido, torna-se importante dar visibilidade às injustiças e à vio- lência decorrentes do cumprimento de regras e convenções culturais que subdividem grupos sociais segundo critérios de “normalidade” e “anor- malidade”. É necessário reconhecer que tanto aqueles que são “adapta- dos” e “respeitados socialmente” quanto os estigmatizados e humilhados sofrem ação dessas mesmas normas e convenções e detêm recursos para reconhecê-las. O senso comum muitas vezes compreende as diferenças como “des- vio” e, desta forma, naturaliza as identidades socialmente reconhecidas e as identidades abjetas. Em uma perspectiva mais crítica e atenta, devem-se refutar as concepções essencialistas da diferença, ou seja, que a concebem como natural e imutável, visto que ela só pode ser compreendida com base no contexto social que a circunscreve. Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 181 Além disso, as diferenças embasam elementos dos hábitos e costumes de uma sociedade e, assim, moldam o “jeito de ser”, os gostos, as carac- terísticas de cada um. Neste sentido, uma abordagem questionadora das normas não se limita à aceitação da “diferença”, pois busca transformar as relações cotidianas da escola de modo a eliminar hierarquias de gênero e sexualidade. Nessa perspectiva, recusa-se um modelo de pensamento que se baseie em valores binários e redutores, tais como “normalidade” ou “anormalidade”, “castidade” ou “promiscuidade”, “garanhão” ou “viado”, “moça de família” ou “piriguete”, pois o modo de se relacionar com o outro, de se portar, o desejo, são expressões possíveis da sexualidade no contexto ocidental e devem ser vistos como elementos possíveis do “jeito de ser” de cada um. A abordagem queer atenta para como as normas da sociedade moldam tanto aqueles que se adaptam a elas quanto os que delas divergem. A escola fornece exemplos por meio das imagens dos livros didáticos e das falas dos professores e colegas sobre o que é esperado socialmente em relação aos padrões de gênero e sexualidade, como também perpetua a invisibilidade das diferenças em relação aos padrões. Há uma pedagogia de gênero e se- xualidade no espaço escolar que opera por meio da violência e da omissão, conformando um horizonte de expectativas aos alunos sobre o que é ou não é aceitável/esperado nos comportamentos sociais. Essas constatações são evidentes em casos de bullying homofóbico, em que o agressor justifica suas motivações em razão da “defesa” das normas sociais “esperadas”, ao passo que aqueles que discordam da atitude tomada muitas vezes silenciam suas argumentações e tornam-se “cúmplices” da covardia por se sentirem ameaçados ou por receio de sofrerem tal como a vítima. Tanto os casos de bullying quanto a sutileza das práticas escolares que dividem rigidamente comportamentos típicos de “meninos” e típicos de “meninas” perpetuam a “pedagogia da (in)visibilidade” da sexualidade, com consequências pessoais para diversos sujeitos no espaço escolar. No início da adolescência, quando alguns estudantes passam a se reconhecer como não heterossexuais, em geral, não encontram acolhimento para expressar seus sentimentos e identificações. Muitas vezes, reconhecem a própria ho- mossexualidade a partir da experiência do xingamento e da abjeção. Veem a escola como um ambiente no qual a homossexualidade não encontra outra posição que não a da abjeção, do silêncio e do medo, que tendem a ser a dimensão subjetiva predominante. 182 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Desse modo, a instituição escolar paulatinamente incute nos chama- dos “estranhos” a ideia de que devem manter em silêncio seus desejos e sentimentos, pois, aos olhos da sociedade, são “errados”, “sujos” e “abje- tos”. A escola, que em tese deveria socializar as novas gerações de forma democrática e reconhecer suas peculiaridades, acaba por obrigá-los não apenas a esconder, mas também a rejeitar qualquer aspecto, seja nos tra- jes, no modo de pentear os cabelos, no modo de andar, na expressão dos sentimentos, que sutil ou abertamente “denunciem” oposição ao padrão heteronormativo. Ou seja, a instituição escolar ensina meninos e meninas a rejeitarem seus desejos e gostos, alocando-os à esfera da abjeção e do segredo “vergonhoso”. O silêncio é, portanto, o espaço no qual se escapa da violência física ou do assédio moral, muito embora com custos pessoais e psicológicos. Desta forma, a homossexualidade é preservada em seus vínculos com o segredo e com a vergonha, enquanto a esfera pública persevera sua associação com a heterossexualidade. Neste sentido, o “armário”, isto é, manter em segredo os sentimentos e desejos homossexuais, não pode ser concebido como es- colha individual. Trata-se, antes, de um dispositivo de controle que naturaliza a heterossexualidade e não permite a expressão pública de comportamen- tos que dela divirjam. Embora seja comum a culpabilização daqueles que não “assumem” sua sexualidade, em muitos casos, “esconder” a própria orientação sexual é uma forma de evitar maior vulnerabilidade às situações de violência. Em contraste ao racismo, que, em geral, é marcado pela visibi- lidade do estigma, o armário se caracteriza pela instabilidade e pela vulne- rabilidade na manipulação do conhecimento sobre a sexualidade de alguém cuja “verdade” passa pelo controle do julgamento coletivo. Nos casos em que a discordância dos padrões de gênero e sexualidade são mais acentuados, como entre meninos que se identificam com meninas desde cedo, transgêneros e transexuais, o silenciamento não se apresenta como “op- ção”, pois o assédio moral e a violência física atuam de forma evidente, espe- cialmente em espaços liminares, nos quais inspetores, professores e diretores não supervisionam o comportamento dos alunos, tais como os corredores, os pátios, as quadras, os banheiros e, principalmente, a saída da escola. Como profissionais da educação costumam testemunhar, são meninos femininos e meninas masculinas, pessoas andróginas ou que adotam um gênero distinto do esperado socialmente, que costumam sofrer injúrias e outras formas de violência no ambiente escolar. Será mero acaso que Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 183 homens e mulheres que constroem um perfil de gênero esperado e escon- dem seu desejo por pessoas do mesmo sexo sofram menos perseguição? A sociedade incentiva essa forma “comportada”, no fundo, reprimida e conformista, de lidar com o desejo, inclusive por meio da forma como persegue e maltrata aqueles que são cotidianamente humilhados sendo xingados de afeminados, bichas, viados, termos que lembram o sentido original de queer na língua inglesa (MISKOLCI, 2012, p. 32). Para os homens, qualquer ocasião que os associem à feminilidade é con- siderada aviltante, pois a virilidade depende da rejeição de características femininas ou que coloquem em xeque sua heterossexualidade. Por outro lado, na infância, quando um menino eventualmente se comporta, ou tem gostos, de modo considerado não normativo, em geral, é chamado de “bi- cha” ou “marica”, fato que o leva cada vez mais a se sentir rejeitado e pe- jorativamente diferente. Para os meninos, tornar-se homem é diferenciar-se do feminino, o que muitas vezes significa virilizar-se a partir da dominação masculina e da homofobia. Essa situação é agravada durante a adolescência quando o maior número de parceiras sexuais atesta a virilidade do jovem e exclui a suspeita de que ele seja homossexual. No caso das mulheres, o senso comum considera que elas devem zelar por sua honra, o que significa não apenas comportar-se de modo delicado, mas também engajar-se em escolherexclusivamente os relacionamentos estáveis e, dessa forma, evitar contato com vários parceiros sexuais ou com qualquer situação que deponha contra a sua moralidade, condutas não esperadas para “mulheres respeitáveis”. Desse modo, concluímos que a ordem sexual e de gênero é constituída por valores morais que asseguram privilégios para os homens e desigualdades para as mulheres, padrão reper- cutido não apenas nas relações afetivo-sexuais e familiares, como também nas relações de trabalho, no interior das escolas, dos serviços de saúde, en- tre outros espaços públicos. 184 | Diferenças na Educação: outros aprendizados UNIDADE 3 Aspectos da heteronormatividade contemporânea Nas novelas, nos telejornais, nas revistas e nas redes sociais, cotidiana- mente nos deparamos com discursos e opiniões divergentes relacionados à sexualidade. O roteiro das telenovelas, vez ou outra, contempla o romance entre homens e entre mulheres; questiona se é legítimo ou não o uso de tec- nologias reprodutivas para que casais gays possam ser pais ou mães; além de levar o público ao frisson diante do beijo entre dois homens, constatação que selaria a suposta “liberdade” de costumes e de normas nunca antes vista no Brasil. As forças sociais estariam avançando de modo a fazer da diferença motivo genuíno de transformação das relações familiares, conju- gais e sexuais ou apenas estariam aprendendo a tolerar o “diferente” e a “aceitá-lo” como tal? A esse respeito, José Alves e Sônia Corrêa (2009) afirmam que cada vez mais as sociedades têm se individualizado e expandido a autonomia pes- soal, sobretudo das mulheres. Além disso, os autores mencionam modifica- ções no modo de organização da família e da conjugalidade em virtude da separação entre reprodução e exercício da sexualidade. Durante boa parte do século XX, considerava-se que as práticas sexuais deveriam estar vincu- ladas ao matrimônio, pelo menos para as mulheres, ao passo que, hoje em dia, é amplamente aceito que o início da vida sexual ocorra na adolescência, com maior possibilidade de os jovens experimentarem relações sexuais com mais parceiros durante a vida. A invenção da pílula anticoncepcional e o uso disseminado de preservativos foram elementos que contribuíram para uma nova forma de se exercer a sexualidade, não tendo em vista necessariamen- te a formação de uma família. Esses fatores redundam em transformações importantes na fecundidade e na contestação de padrões “tradicionais” das relações de gênero e das re- lações familiares, além da reconfiguração da heteronormatividade. A despeito das mudanças, “mecanismos legais e culturais de subordinação das mulheres [...] continuam vigentes em muitos países” (ALVES & CORRÊA, 2009, p. 125). Mesmo nas sociedades marcadas por mudanças contundentes no plano das sexualidades e das relações de gênero, o privilégio disponível aos homens segue orientando a sociabilidade cotidiana, entre outros domínios. Escola e sexualidades: uma visão crítica à normalização | 185 De um lado, de acordo com Jeffrey Weeks (2009), atualmente, as forças sociais perfazem uma longa e profunda revolução nos parâmetros da vida sexual e íntima. Desde a década de 1990, verificam-se mudanças dramáticas na família e na vida conjugal, no erotismo, nas identidades sexuais, nas rela- ções entre homens e mulheres, homens/homens e mulheres/mulheres. Estas transformações ocorrem de forma desigual nos países, pois dependem de configurações sociais específicas e da condição histórica e cultural de cada um. Mas é preciso ressaltar que as referidas modificações se deram sem o questionamento das normas que reconhecem certas experiências, identida- des e formas de organizar a vida afetiva como superiores a outras. Em outras palavras, a heteronormatividade segue vigente, ainda que reconfigurada. A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade. Muito mais do que o aperçu de que as relações com pessoas do sexo oposto são compul- sórias, a heteronormatividade sublinha um conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle até mesmo da- queles que se relacionam com pessoas do mesmo sexo. Assim, ela não se refere apenas aos sujeitos legítimos e normalizados, mas é uma de- nominação contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar a todos para a heterossexualidade ou para organizarem suas vidas a partir de seu modelo supostamente coerente, superior e “natural” (MISKOLCI, 2009, p. 8). O questionamento das normas heteronormativas não se faz com a “aceita- ção” ou “tolerância” às diferentes formas de orientação sexual e identidades de gênero. Para isso, seguindo as considerações de Miskolci (2012), é preciso “tornar visíveis as injustiças e violências implicadas na disseminação e na de- manda do cumprimento das normas e das convenções culturais, violências e injustiças envolvidas tanto na criação dos ‘normais’ quanto dos ‘anormais’” (MISKOLCI, 2012, p. 26). Para o autor, as normas e convenções expressam-se tanto no reconhecimento social dos indivíduos considerados ajustados(as) como nas ofensas dirigidas aos que não as seguem plenamente. Portanto, é importante refletirmos sobre como, ainda na contemporaneidade, as rela- ções de poder tendem a normalizar e a disciplinar as relações de gênero e as próprias sexualidades segundo mecanismos que distinguem aqueles(as) que expressam suas convenções daqueles(as) que não as expressam. 186 | Diferenças na Educação: outros aprendizados Com base no que foi discutido nas unidades 1 e 2 deste capítulo, são apre- sentadas a seguir temáticas atuais no cenário brasileiro que desvelam trans- formações e resistências com relação à heteronormatividade e suas injunções. Discutiremos o projeto que visava legitimar práticas psicológicas destinadas a curar e a tratar a homossexualidade; aspectos do movimento social intitulado “marcha das vadias”, além de temas intrincados a estes, como sexualidade, ciência e religião; a medicalização do aborto e o movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Os temas apresen- tados podem ser utilizados de forma ampla e livre pelo(a) professor(a) em atividades didáticas e oficinas com alunos(as) na faixa etária da adolescência. A contenda entre a “cura” da homossexualidade e os direitos sexuais Conforme citado na primeira unidade, em 1973, a homossexualidade deixou de ser elencada como transtorno mental pela Associação Americana de Psiquiatria, fato que reformula a definição da própria associação, datada de 1952. Em 1975, a Associação Americana de Psicologia adota a mesma resolução, e, em 1990, com a atualização da Classificação Internacional de Doenças (CID), a Organização Mundial de Saúde (OMS) retira a classificação da homossexualidade como doença mental. No Brasil, em 1999, por meio da Resolução 1/99, o Conselho Federal de Psicologia deliberou que psicólogos não colaborarão com serviços de “cura” ou “tratamento” da homossexualidade. Mudanças culturais e políticas, decor- rentes dos movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970, pareciam ter ques- tionado de forma definitiva a vinculação de longa data entre homossexualidade e doença. No entanto, alguns acontecimentos recentes mostram a persistência de definições culturais preconceituosas, mesmo quando repudiadas no âmbito científico, podendo ser reavivadas por grupos políticos conservadores. Nos anos iniciais da década de 2010, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, entre outras, foi alvo de debate sobre a le- gitimidade da Resolução 1/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP). O projeto, inicialmente apresentado no plenário, contra-argumentava que o referido Conselho havia extrapolado seus dispositivos regulamentares, in- correndo em abuso de poder, e, portanto, propunha que dois parágrafos