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o o Estudos da Língua Brasileira de Sinais Estudos da Língua Brasileira de Sinais A Série Estudos de Língua de Sinais (SELS) compreende publicações de pesquisas em duas áreas de investigação, a Linguística e os Estudos da Tradução, apresen- tando-se como um desdobramento das pesquisas e demais atividades desenvolvi- das nos Programas de Pós-Graduação em Linguística e em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. A proposta de reunir e compar- tilhar pesquisas relacionadas aos estudos linguísticos e aos estudos da tradução, por meio desta Série, surgiu concomitantemente ao significativo aumento das pesquisas envolvendo a língua brasileira de sinais (Libras), tanto no escopo dos próprios programas como em outros programas nacionais. É importante mencionar que a criação da linha de pesquisa em Libras, no Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGL), e da em Interpretação, no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) com o ingresso de professores-pesquisadores, surdos e ouvintes, fluentes em Libras, ampliou o espaço para produções de pesquisas sobre a Libras, atendendo assim às demandas já, anteriormente, institucionaliza- das. Além disso, a criação dos cursos de licenciatura e de bacharelado em Letras Libras, respectivamente, em 2006 e em 2008, na UFSC e, posteriormente, em outras universidades federais brasileiras, fomentou e alavancou a formação de profissionais da área de ensino de Libras e da dos serviços de tradução e de interpretação de Libras-português, contribuindo com o avanço profissional e com a pesquisa. As graduações em Letras Libras vêm contribuindo para que o quantitativo de mestrandos e doutorandos com investigações envolvendo as línguas de sinais cresça significativamente no país. Atualmente, o PPGL possui 78 pesquisas, defen- didas entre 2005 e 2022, sobre línguas de sinais e temas correlatos. E a PGET, por sua vez, possui 87 pesquisas, defendidas entre 2010 e 2022, que abordam a tradu- ção/interpretação de línguas de sinais e temas afins. ISBN 978-85-524-0369-2 9 403692788552 Es tu do s da L ín gu a B ra si le ira d e Si na is – Vo lu m e VI Organizadores e autores Beth Brait Bianca Silveira Bruno Gonçalves Carneiro Carlos Henrique Rodrigues Ewerton Douglas Canuto de Albuquerque Francis Lobo Botelho Vilas Monzo Gilmara Jales da Costa Jair Barbosa da Silva Jonatas Rodrigues Medeiros José Luiz Vila Real Gonçalves Kátia Lucy Pinheiro Leidiani da Silva Reis Lia Cláudia Coelho Neiva de Aquino Albres Ricardo Ferreira Santos Ronice Müller de Quadros Sabine Gorovitz Sergio José da Silva Silvana Aguiar dos Santos Tamires BessaLíngua n Estudos p n v p a d r n t a n S Língua Estudos c e p ç ã o d a S n is s t u d o s T r e a õ e s PPPee rr c r c j e p q b u ã c o o d d a a r Interpretação t e e o o f i a x w b af n o d c e M n o q w g z r t a P I r rstdM N l t d oS Couatnb d r b Rn tea u a d c o nd m Pr t S dr ea S t ru d u n t a a r aa dd uduuç ç õ õç e e s s an v e w o d b p xc rep u w e p v n ue c v e w EEE s s t u u s s o d r p n x a v w b c t r ad u Cao e inaisC C Volume VI Carlos Henrique Rodrigues Ronice Müller de Quadros Organizadores o o Estudos da Língua Brasileira de Sinais Estudos da Língua Brasileira de Sinais A Série Estudos de Língua de Sinais (SELS) compreende publicações de pesquisas em duas áreas de investigação, a Linguística e os Estudos da Tradução, apresen- tando-se como um desdobramento das pesquisas e demais atividades desenvolvi- das nos Programas de Pós-Graduação em Linguística e em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. A proposta de reunir e compar- tilhar pesquisas relacionadas aos estudos linguísticos e aos estudos da tradução, por meio desta Série, surgiu concomitantemente ao significativo aumento das pesquisas envolvendo a língua brasileira de sinais (Libras), tanto no escopo dos próprios programas como em outros programas nacionais. É importante mencionar que a criação da linha de pesquisa em Libras, no Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGL), e da em Interpretação, no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) com o ingresso de professores-pesquisadores, surdos e ouvintes, fluentes em Libras, ampliou o espaço para produções de pesquisas sobre a Libras, atendendo assim às demandas já, anteriormente, institucionaliza- das. Além disso, a criação dos cursos de licenciatura e de bacharelado em Letras Libras, respectivamente, em 2006 e em 2008, na UFSC e, posteriormente, em outras universidades federais brasileiras, fomentou e alavancou a formação de profissionais da área de ensino de Libras e da dos serviços de tradução e de interpretação de Libras-português, contribuindo com o avanço profissional e com a pesquisa. As graduações em Letras Libras vêm contribuindo para que o quantitativo de mestrandos e doutorandos com investigações envolvendo as línguas de sinais cresça significativamente no país. Atualmente, o PPGL possui 78 pesquisas, defen- didas entre 2005 e 2022, sobre línguas de sinais e temas correlatos. E a PGET, por sua vez, possui 87 pesquisas, defendidas entre 2010 e 2022, que abordam a tradu- ção/interpretação de línguas de sinais e temas afins. ISBN 978-85-524-0369-2 9 403692788552 Es tu do s da L ín gu a B ra si le ira d e Si na is – Vo lu m e VI Organizadores e autores Beth Brait Bianca Silveira Bruno Gonçalves Carneiro Carlos Henrique Rodrigues Ewerton Douglas Canuto de Albuquerque Francis Lobo Botelho Vilas Monzo Gilmara Jales da Costa Jair Barbosa da Silva Jonatas Rodrigues Medeiros José Luiz Vila Real Gonçalves Kátia Lucy Pinheiro Leidiani da Silva Reis Lia Cláudia Coelho Neiva de Aquino Albres Ricardo Ferreira Santos Ronice Müller de Quadros Sabine Gorovitz Sergio José da Silva Silvana Aguiar dos Santos Tamires BessaLíngua n Estudos p n v p a d r n t a n S Língua Estudos c e p ç ã o d a S n is s t u d o s T r e a õ e s PPPee rr c r c j e p q b u ã c o o d d a a r Interpretação t e e o o f i a x w b af n o d c e M n o q w g z r t a P I r rstdM N l t d oS Couatnb d r b Rn tea u a d c o nd m Pr t S dr ea S t ru d u n t a a r aa dd uduuç ç õ õç e e s s an v e w o d b p xc rep u w e p v n ue c v e w EEE s s t u u s s o d r p n x a v w b c t r ad u Cao e inaisC C Volume VI Carlos Henrique Rodrigues Ronice Müller de Quadros Organizadores Volume VI Estudos da Língua Brasileira de Sinais SELS o o Estudos da Língua Brasileira de Sinais Estudos da Língua Brasileira de Sinais A Série Estudos de Língua de Sinais (SELS) compreende publicações de pesquisas em duas áreas de investigação, a Linguística e os Estudos da Tradução, apresen- tando-se como um desdobramento das pesquisas e demais atividades desenvolvi- das nos Programas de Pós-Graduação em Linguística e em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. A proposta de reunir e compar- tilhar pesquisas relacionadas aos estudos linguísticos e aos estudos da tradução, por meio desta Série, surgiu concomitantemente ao significativo aumento das pesquisas envolvendo a língua brasileira de sinais (Libras), tanto no escopo dos próprios programas como em outros programas nacionais. É importante mencionar que a criação da linha de pesquisa em Libras, no Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGL), e da em Interpretação, no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) com o ingresso de professores-pesquisadores, surdos e ouvintes, fluentes em Libras, ampliou o espaço para produções de pesquisas sobre a Libras, atendendo assim às demandas já, anteriormente, institucionaliza- das. Além disso, a criação dos cursos de licenciatura e de bacharelado em Letras Libras, respectivamente, em 2006 e em 2008, na UFSC e, posteriormente, em outras universidades federais brasileiras, fomentoue alavancou a formação de profissionais da área de ensino de Libras e da dos serviços de tradução e de interpretação de Libras-português, contribuindo com o avanço profissional e com a pesquisa. As graduações em Letras Libras vêm contribuindo para que o quantitativo de mestrandos e doutorandos com investigações envolvendo as línguas de sinais cresça significativamente no país. Atualmente, o PPGL possui 78 pesquisas, defen- didas entre 2005 e 2022, sobre línguas de sinais e temas correlatos. E a PGET, por sua vez, possui 87 pesquisas, defendidas entre 2010 e 2022, que abordam a tradu- ção/interpretação de línguas de sinais e temas afins. ISBN 978-85-524-0369-2 9 403692788552 Es tu do s da L ín gu a B ra si le ira d e Si na is – Vo lu m e VI Organizadores e autores Beth Brait Bianca Silveira Bruno Gonçalves Carneiro Carlos Henrique Rodrigues Ewerton Douglas Canuto de Albuquerque Francis Lobo Botelho Vilas Monzo Gilmara Jales da Costa Jair Barbosa da Silva Jonatas Rodrigues Medeiros José Luiz Vila Real Gonçalves Kátia Lucy Pinheiro Leidiani da Silva Reis Lia Cláudia Coelho Neiva de Aquino Albres Ricardo Ferreira Santos Ronice Müller de Quadros Sabine Gorovitz Sergio José da Silva Silvana Aguiar dos Santos Tamires BessaLíngua n Estudos p n v p a d r n t a n S Língua Estudos c e p ç ã o d a S n is s t u d o s T r e a õ e s PPPee rr c r c j e p q b u ã c o o d d a a r Interpretação t e e o o f i a x w b af n o d c e M n o q w g z r t a P I r rstdM N l t d oS Couatnb d r b Rn tea u a d c o nd m Pr t S dr ea S t ru d u n t a a r aa dd uduuç ç õ õç e e s s an v e w o d b p xc rep u w e p v n ue c v e w EEE s s t u u s s o d r p n x a v w b c t r ad u Cao e inaisC C Volume VI Carlos Henrique Rodrigues Ronice Müller de Quadros Organizadores Comitê Científico Anabel Galán-Mañas (UAB, Espanha) Anabel Borja Albir (UJI, Espanha) Ana Regina Souza Campello (INES) Débora Campos Wanderley (UFSC) Izabela Guerra Leal (UFPA) Lionel Antonio Tovar (UniValle, Colômbia) Luana Ferreira de Freitas (UFC) Lucyenne Matos da Costa Vieira Machado (UFES) María Teresa Veiga-Díaz (UVigo, Espanha) Norma Barbosa de Lima Fonseca (CMBH-MG/ UFMG) Rachel Louise Sutton-Spence (UFSC) Sinara de Oliveira Branco (UFCG) Vinícius Nascimento (UFSCar) Wolney Gomes Almeida (UESC) Volume VI Estudos da Língua Brasileira de Sinais SELS Carlos Henrique Rodrigues Ronice Müller de Quadros (Organizadores) Apoio Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução – PGET/UFSC Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes Florianópolis 2023 Organizadoras Carlos Henrique Rodrigues Ronice Müller de Quadros SELS – Série Estudos de Língua de Sinais Volume VI – 2023 Projeto gráfico Rita Motta Diagramação Eduardo Cazon Projeto de capa Lucas Müller de Jesus Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. É proibida a reprodução parcial ou integral desta obra, por quaisquer meios de difusão, inclusive pela internet, sem prévia autorização do autor. EDITORA INSULAR (48) 3334-2729 editora@insular.com.br facebook.com/EditoraInsular instagram.com/editorainsular www.insular.com.br INSULAR LIVROS (48) 3334-2729 Florianópolis/SC – CEP 88025-210 Rua Antonio Carlos Ferreira, 537 Bairro Agronômica insularlivros@gmail.com Apoio Parecer e revisão por pares: Os capítulos que compõem este livro foram submetidos à avaliação e à revisão por pares e pelo Comitê Científico. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo, SP) Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8 8846 A341e Rodrigues, Carlos Henrique; Quadros, Ronice Müller de (org.). Estudos da Língua Brasileira de Sinais / Organizadores: Carlos Henrique Rodrigues e Ronice Müller de Quadros. – 1. ed. – Florianópolis, SC : Editora Insular, 2023. 226 p.; il.; tabs.; gráfs.; quadros; fotografias. (SELS – Série Estudos de Língua de Sinais, v. 6). E-book: 10,74 Mb; PDF. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-524-0380-7 1. Libras. 2. Língua Brasileira de Sinais. 3. Língua de Sinais. 4. Surdos. 5. Tradução e Interpretação. I. Título. II. Assunto. III. Organizadores. CDD 419 CDU 81’-056.26323-30281310 ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO 1. Outras linguagens que não as escritas e faladas – Língua de sinais. 2. Línguas de sinais. RODRIGUES, Carlos Henrique; QUADROS, Ronice Müller de (org.). Estudos da Língua Brasileira de Sinais. 1. ed. Florianópolis, SC: Editora Insular, 2023. (SELS – Série Estudos de Língua de Sinais, v. 6). E-book (PDF; 10,74 Mb). ISBN 978-85-524-0380-7. Sumário Apresentação ..................................................................................................................9 Carlos Henrique Rodrigues e Ronice Müller de Quadros Parte I Estudos Linguísticos de Línguas de Sinais (ELLS) 1 Linguística de corpus: o processo de transcrição da variedade da Libras da Grande Maceió sob a perspectiva dos transcritores-pesquisadores ..........................................................................15 Sergio José da Silva, Jair Barbosa da Silva e Ewerton Douglas Canuto de Albuquerque 2 Marcação de masculino e feminino na Libras ...................................................33 Lia Cláudia Coelho e Bruno Gonçalves Carneiro 3 Perfis linguísticos de Codas brasileiros ..............................................................51 Gilmara Jales da Costa e Ronice Müller de Quadros 4 Tessitura referencial em Libras: uma atividade semântico-lexical e discursiva .............................................................................................................69 Leidiani da Silva Reis e Ronice Müller de Quadros Parte II Estudos da Tradução e da Interpretação de Línguas de Sinais (ETILS) 5 A verbo-visualidade na tradução de poemas da Língua Portuguesa para a Libras: o tradutor-performático e o corpo-texto ...................................85 Ricardo Ferreira Santos e Beth Brait 6 Análise processual em tarefas de tradução do português para a Libras e da Libras para o português sob a perspectiva da direcionalidade .............103 Tamires Bessa e José Luiz Vila Real Gonçalves 7 Agência e ativismo tradutório na promoção da Justiça Social e dos Direitos Humanos na Literatura Surda e Sinalizada ............................121 Jonatas Rodrigues Medeiros e Silvana Aguiar dos Santos 8 Discursos sobre os intérpretes educacionais na Educação Infantil: vozes na pesquisa científica ...............................................................................139 Elaine Aparecida de Oliveira da Silva e Neiva de Aquino Albres 9 Políticas Linguísticas e Políticas de Interpretação no par Libras-português no Congresso Nacional ......................................................................................157 Francis Lobo Botelho Vilas Monzo e Sabine Gorovitz 10 Políticas Linguísticas de Tradução e Interpretação da Língua de Sinais Internacional no Brasil .......................................................................................177 Kátia Lucy Pinheiro e Ronice Müller de Quadros 11 O perfil de tradutores(as), intérpretes e guias-intérpretes surdos(as) de línguas de sinais: olhares sobre a realidade brasileira ...............................199 Bianca Silveira e Carlos Henrique Rodrigues Organização e autoria .............................................................................................221 9 Apresentação O sexto volume da Série Estudos da Língua Brasileira de Sinais (SELS VI) marca a primeira década da Série (2013-2023) e atesta os avanços do campo dos Estudos Linguísticos das Línguas de Sinais (ELLS) e do dos Estudos da Tradução e da Interpretação de Línguas de Sinais (ETILS). Este volume também destaca a relevância de obras que são publicadas regularmente, contribuindo com o registro e a manutenção da circulaçãode novos saberes. É necessário lembrar que cada um dos volumes anteriores teve e continua a ter sua importância tanto para o agrupamento e para a difusão de pesquisas envolvendo línguas de sinais quanto para o embasamento, para o direcionamento e para o incentivo a novos estudos e reflexões. Os volumes anteriores contaram com a participação de diferentes organi- zadores(as): os volumes I (2013) e II (2014) foram organizados por Ronice Müller de Quadros, Marianne Rossi Stumpf e Tarcísio de Arantes Leite; o III (2014), por Ronice Müller de Quadros e Markus Johannes Weininger; o IV (2018), por Ronice Müller de Quadros e Marianne Rossi Stumpf; e o V (2020), por Carlos Henrique Rodrigues e Ronice Müller de Quadros. Nesses cinco volumes, foi publicado o to- tal de cinquenta e nove (59) capítulos, sendo trinta e três (33) capítulos no âmbito dos ELLS e vinte e seis (26) capítulos no dos ETILS, os quais foram produzidos por trinta e sete (37) autoras e vinte e oito (28) autores das mais diferentes instituições e regiões brasileiras. Uma das marcas da Série é a presença e a articulação entre pessoas surdas e ouvintes – tanto na organização quanto na autoria dos capítulos – engajadas com as comunidades surdas e com a produção de saberes sobre as línguas de sinais e sobre a tradução e a interpretação envolvendo tais línguas. Além disso, a SELS constitui um acervo de estudos linguísticos, da tradução e da interpretação de línguas de sinais que nos permite conhecer temáticas, abordagens, teorias e méto- dos caros aos ELLS e aos ETILS, contribuindo com a atualização das Ciências da Linguagem. Neste sexto volume, estão reunidos onze (11) capítulos, sendo quatro (04) na parte dedicada aos ELLS e sete (07) na destinada aos ETILS, os quais apresen- tam resultados de pesquisas conduzidas recentemente, principalmente em pro- gramas de Pós-graduação. Os autores e as autoras integram diferentes instituições 10 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 brasileiras, a saber: Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Universidade Fede- ral do Tocantins (UFT), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal da Fron- teira Sul (UFFS), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ins- tituto Federal de São Paulo (IFSP), Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Universidade Fe- deral do Ceará (UFC) e Universidade de Brasília (UnB). Vale mencionar que, assim como os volumes anteriores, este sexto volume registra a evolução e o fortalecimento das pesquisas brasileiras sobre a Libras e seus temas afins. Esse conjunto de estudos, sem dúvidas, beneficiam a transforma- ção das comunidades surdas, tornando-as mais presentes e mais ativas na socieda- de contemporânea, já que fomentam estes novos conhecimentos e nos convidam a outros olhares sobre as línguas de sinais em suas mais diversas manifestações, usos e interfaces. Reiteramos que a Série é – e continuará sendo pelas próximas décadas – um espaço de reunião, registro e circulação de saberes produzidos so- bre, principalmente, a Libras, seja por meio de perspectivas da Linguística ou da Tradução. O primeiro capítulo, Linguística de corpus: o processo de transcrição da variedade da Libras da Grande Maceió sob a perspectiva dos transcritores- -pesquisadores, escrito por Sergio José da Silva, Jair Barbosa da Silva e Ewerton Douglas Canuto de Albuquerque, apresenta uma reflexão sobre o processo de do- cumentação linguística da Libras, com enfoque nos seus desafios técnicos e tec- nológicos. Ao considerar problemas relativos à transcrição de dados linguísticos, com base na documentação da Libras na Grande Maceió, os autores partem da noção de que a obtenção de dados consistentes e representativos de uma língua demanda decisões teoricamente fundamentadas e capazes de sustentar escolhas quanto a determinados fatos a respeito da estrutura da língua. Nesse sentido, explanam algumas estratégias e soluções empregadas, argumentando que o tra- balho de transcrição de dados requer formação, estrutura técnica e tecnológica, além de conhecimento da língua em questão, por parte dos transcritores-pesqui- sadores. No capítulo dois, Marcação de masculino e feminino na Libras, Lia Cláu- dia Coelho e Bruno Gonçalves Carneiro trazem um estudo descritivo sobre a mar- cação de masculino e de feminino, refletindo sobre um possível sistema de gênero na Libras. Para tanto, descrevem estratégias de marcação de masculino e de femi- nino em sinais de parentesco, de animais e de profissões e, também, em sinais de apontamento. As análises evidenciam que, em todas as categorias lexicais estuda- das na pesquisa, existem formas neutras em relação às noções de masculino e de feminino e que, em sinais de parentesco e de animais, foram identificadas formas específicas de marcação de masculino e de feminino. Em seguida, no terceiro capítulo, Perfis linguísticos de Codas brasileiros, Gilmara Jales da Costa e Ronice Müller de Quadros buscam delinear o modo como 11 Apresentação se dão as relações de Codas bilíngues bimodais com a Libras e com o português, no intuito de se verificar práticas linguísticas e atitudes que se estabelecem em meio às comunidades em que eles se inserem. As autoras encontram evidências de que os Codas participantes da pesquisa, com diferentes perfis linguísticos, apre- sentam níveis variados de domínio da Libras, associados ao domínio de Libras pelos pais surdos e pela aquisição precoce da língua. O quarto capítulo, intitulado Tessitura referencial em Libras: uma ativi- dade semântico-lexical e discursiva, de Leidiani da Silva Reis e Ronice Müller de Quadros, fornece uma análise da construção da tessitura referencial no espaço de sinalização e as suas relações semântico-lexicais e discursivas, a partir de um cor- pus constituído de gravações de narrativas sinalizadas de surdos que têm a Libras como primeira língua. As autoras verificaram que as tessituras referenciais semân- tico-lexicais e discursivas realizam-se por meio do dêitico-anafórico de classe de complexas unidades manuais e não manuais (com ações construídas/alternâncias de perspectivas) e por meio do dêitico-anafórico de classe padrão (por repetição/ por hiperônimo). No capítulo seguinte, denominado A verbo-visualidade na tradução de poemas da Língua Portuguesa para a Libras: o tradutor-performático e o corpo-texto, Ricardo Ferreira Santos e Beth Brait analisam a presença do tradu- tor-performático e a maneira como ocorrem as relações dialógicas e as posições axiológicas na tradução de poemas do português para a Libras, materializadas em seu corpo-texto. Em suas reflexões, concluem que a tradução de poemas para a Libras constitui-se por meio de uma releitura enunciativo-discursiva e cultural, cujo enfoque são as comunidades surdas, proporcionando a construção de outro olhar poético, o qual está marcado por forte expressividade verbo-vi- sual que, por sua vez, possibilita outras formas de leitura dos poemas escritos e sinalizados. O sexto capítulo, Análise processual em tarefas de tradução do português para a Libras e da Libras para o português sob a perspectiva da direcionalida- de, de autoria de Tamires Bessa e José Luiz Vila Real Gonçalves, contém uma aná- lise do processo tradutório intermodal, a partir da realização de um experimento – conduzido com dois grupos de tradutores e intérpretes de Libras-português –, no qual eles realizam tarefas de tradução da Libras em vídeo para o português escrito e do português escrito para a Libras em vídeo. Com base na análise quali- tativa e quantitativa do esforço temporal e do esforço técnico despendidos na tra- dução intermodal, observam-se, dentre outros, indícios de que a direcionalidade, impactada pela intermodalidade, seria uma variável que interferiria nesses tiposde esforços. No sétimo capítulo, Agência e ativismo tradutório na promoção da Justiça Social e dos Direitos Humanos na Literatura Surda e Sinalizada, Jonatas Rodrigues Medeiros e Silvana Aguiar dos Santos nos convidam a refletir sobre os conceitos de agência e de ativismo relacionando-os a produções artísticas e literárias que envolvem a temática de direitos humanos e injustiças sociais. Desse modo, destaca-se o lugar 12 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 de agência e os ativismos de poetas e artistas surdos(as) que transformam suas pro- duções literárias e artísticas em modos de denunciar injustiças e reivindicar a justiça social. Tais ações implicam, muitas vezes, diferentes modalidades de tradução, tanto por parte dos poetas (autotradução) quanto de intérpretes e tradutores(as) aliados(as) às comunidades surdas e a suas pautas de luta. O oitavo capítulo, intitulado Discursos sobre os intérpretes educacionais na Educação Infantil: vozes na pesquisa científica, escrito por Elaine Aparecida de Oliveira da Silva e Neiva de Aquino Albres, fornece, a partir da revisão sistemá- tica e meta-análise de teses e dissertações, uma visão geral da interpretação de Li- bras-português na Educação Infantil brasileira. As autoras destacam que, embora se verifique a presença do intérprete educacional na Educação Infantil, a quanti- dade de trabalhos de conclusão de curso sobre a temática é reduzida e não há uma descrição detalhada seguida da discussão sobre quais seriam de fato os limites e as possibilidades da atuação de tal profissional nesse nível de escolarização. O capítulo nove, Políticas Linguísticas e Políticas de Interpretação no par Libras-português no Congresso Nacional, de autoria de Francis Lobo Bote- lho Vilas Monzo e Sabine Gorovitz, traz uma análise de documentos regimentais, comprometidos com o acesso à informação, e de contratos de tradutores e intér- pretes, no âmbito do Congresso Nacional, com a finalidade de se identificarem as políticas linguísticas contidas neles e de assim contribuir com as futuras contrata- ções de profissionais da tradução e interpretação de Libras-português, buscando- -se suprir as demandas que se apresentam nesse contexto. Segundo as autoras, não se identificaram políticas linguísticas ou de tradução e de interpretação explícitas nos documentos analisados. Em contrapartida, foi possível observar certos avan- ços em alguns conjuntos de documentos. O décimo capítulo, Políticas Linguísticas de Tradução e Interpretação da Língua de Sinais Internacional no Brasil, de Kátia Lucy Pinheiro e Ronice Müller de Quadros, apresenta uma contextualização das políticas linguísticas de tradução e interpretação da Língua de Sinais Internacional no Brasil, especialmente envol- vendo a interpretação entre essa língua e a Libras, a qual tem sido, sobretudo, rea- lizada por pessoas surdas. As autoras destacam que os profissionais que atuam na interpretação entre duas línguas de sinais se qualificam, principalmente, de modo empírico e que tal realidade demanda a necessidade de políticas e planejamentos linguísticos capazes de viabilizar a formação acadêmica de tais profissionais. O último capítulo que compõe esse volume, O perfil de tradutores(as), intérpretes e guias-intérpretes surdos(as) de línguas de sinais: olhares sobre a realidade brasileira, escrito por Bianca Silveira e Carlos Henrique Rodrigues, a partir de dados decorrentes da aplicação de questionário, traz uma descrição de alguns dos aspectos que caracterizam os(as) tradutores(as), intérpretes e guias-in- térpretes surdos(as) brasileiros(as) em relação ao seu perfil, incluindo a sua for- mação e a sua atuação. Após a descrição do perfil, defende-se a necessidade de reconhecimento de tais profissionais surdos(as) que atuam de/entre/para línguas de sinais e, por sua vez, do fomento de ações visando à formação em nível de 13 Apresentação graduação, a qual precisa ser especialmente desenhada para esse público e para as atuais demandas do mercado. Esperamos que essa leitura contribua com novos olhares e com a constru- ção de saberes! Prof. Dr. Carlos Henrique Rodrigues Universidade Federal de Santa Catarina Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução Área de Concentração: Processos de Retextualização Linha de Pesquisa: Estudos Linguísticos da Tradução e da Interpretação com enfoque linguístico e/ou multidisciplinar Profa. Dra. Ronice Müller de Quadros Universidade Federal de Santa Catarina Programa de Pós-Graduação em Linguística Área de Concentração: Linguística Aplicada Linha de Pesquisa: Língua Brasileira de Sinais (Libras) 15 1 Linguística de corpus: o processo de transcrição da varie- dade da Libras da Grande Maceió sob a perspectiva dos transcritores-pesquisadores Sergio José da Silva Jair Barbosa da Silva Ewerton Douglas Canuto de Albuquerque Universidade Federal de Alagoas (UFAL) 1 Introdução A Língua Brasileira de Sinais – Libras – há muito é usada pelas comuni- dades surdas, no Brasil, mesmo antes de ser assim denominada. No entanto, o registro em vídeo dessa língua só passa a ser amplamente disponibilizado a partir do uso das redes sociais, como Facebook, IMO, Skype, WhatsApp, Twitter, Tele- gram, YouTube, Instagram etc., as quais são usadas para interações diversas entre usuários da Libras, sobretudo surdos, e, com isso, ficam os registros em vídeo. A partir do surgimento dos cursos de Letras-Libras, em todo o país, as pesquisas lin- guísticas, envolvendo a Libras, começam a ganhar mais espaço e, então, percebe-se a necessidade de dados linguísticos com qualidade e sistematicidade para fins de pesquisa. Surgem, assim, as propostas de elaboração de corpora de Libras, a exem- plo do Corpus de Libras da Grande Florianópolis, em Santa Catarina. No âmbito da Universidade Federal de Alagoas, em 2014, o projeto Corpus da Libras da Grande Maceió (projeto replicado da Universidade Federal de Santa Catarina) consistiu em documentar a Libras usada pelos surdos adultos da Grande Maceió. O projeto contou com a participação de bolsistas do Curso de Letras-Li- bras, dentre os quais estão dois dos autores dessa pesquisa. O trabalho ora apresen- tado, portanto, surge como repercussão de nossa experiência em documentação da Libras, desde 2014, quando participantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), até 2018, em que, por quatro anos, fomos confrontados com o desafio de coletar dados da Libras, editá-los e, principalmente, transcrevê-los. A documentação linguística é, a um só tempo, o desafio técnico e tecnológico para que se tenham dados consistentes e representativos de uma língua e a análise Parte I Estudos Linguísticos de Línguas de Sinais (ELLS) 16 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 linguística, uma vez que temos que tomar decisões baseadas em teorias que susten- tem nossas escolhas quanto a determinados fatos a respeito da estrutura da língua. Neste sentido, o objetivo deste capítulo é, justamente, discutir problemas relativos à transcrição dos dados linguísticos pelos transcritores, ao longo da documentação da Libras na Grande Maceió. Empreendimento de suma relevância, uma vez que, nesse Estado, não se dispunham de registros sistematizados, desta língua, para pesquisas. Diferentemente da história das línguas orais, que mesmo antes dos gra- vadores, poderiam (e foram) registradas/documentadas por meio da escrita, as chamadas Línguas de Sinais, até recentemente, não podiam ser documentadas por falta de recursos tecnológicos adequados para este fim, inclusive pela inconsis- tência de um sistema de escrita de sinais, que segundo Barros (2008), a ausência de usos sociais de um sistema de escrita de sinais, talvez, seja por uma imposição das línguas orais sobre as de sinais, hipótese não confirmada. Neste sentido, se quisermos saber como era a Libras usada, no Brasil, há 10 anos, certamente tere- mos bastante dificuldade pela ausência de corpora que tenhamdocumentado esta língua. Isso traz consequências bastante relevantes para a Linguística Brasileira em termos de desconhecimento de uma língua brasileira ainda pouco conhecida pela Ciência e, em termos sócio-histórico-culturais, podemos mesmo dizer que há um apagamento do que foi a língua em tempos passados, mesmo que não haja um espaço de tempo tão significativo (20, 30 anos passados). De acordo com Himmelmann (2006), a documentação linguística constitui a área que se volta para métodos, ferramentas e bases teóricas para a elaboração de um registro de uma língua natural, ou de uma variedade dela, sendo-lhe repre- sentativo, duradouro e que permita múltiplos usos. É justamente dessa dimensão científica (métodos, ferramentas e bases teóricas), de que fala Himmelmann, que padece a Libras. Com o advento das novas tecnologias de comunicação, sobretudo das redes sociais, a Libras, no século XXI, circula, de Norte a Sul, fortemente no país, o que a torna mais viva, mas, ainda assim, em conformidade com os parâme- tros estabelecidos pela UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educa- ção, a Ciência e a Cultura –, trata-se de uma língua de sinais em risco de extinção, o que justifica, também, a sua documentação. Assim, se por um lado existe a ne- cessidade de a Libras ser devidamente descrita pela Linguística, a partir de dados que lhes sejam representativos e, portanto, metodologicamente bem recolhidos; por outro, é igualmente necessária à sua documentação, já que se trata de uma lín- gua em risco nos termos tratados pela UNESCO. É importante notar, no entanto, que quando se fala em risco de extinção de uma língua, há uma gama de aspectos a serem observados. Conforme Leite e Quadros (2014), existe uma diferença entre o risco que as línguas de sinais nativas brasileiras correm e o risco da língua de sinais nacional, a Libras. No primeiro caso, de fato, há risco de extinção; já no segundo, parece mais adequado falar em línguas em risco esquecidas (Nonaka, 2004 apud Leite; Quadros, 2014). Diante desse contexto, o problema principal, para o qual se volta este ca- pítulo, estão as inúmeras dificuldades com as quais os transcritores se deparam 17 Parte I – Estudos Linguísticos no momento da transcrição dos dados. Algumas destas dificuldades são comuns a trabalhos de transcrição de qualquer língua, como a segmentação e a busca por equivalentes linguísticos, quando a transcrição é feita em outra língua, no entanto, em se tratando de corpus de línguas de sinais, as dificuldades são ainda maiores, pois a glosagem dos sinais é feita numa língua de modalidade diferente, o que gera muitos percalços neste processo. 1 Contextualização teórica 1.1 A Linguística de Corpus Segundo Hereweghe e Vermeerberge (2012), a Linguística de Corpus é um ramo relativamente novo da pesquisa linguística, o qual anda de mãos dadas com as possibilidades oferecidas pelos recursos tecnológicos, cada vez mais avançados, no século XXI. No passado, qualquer conjunto de dados, por meio do qual uma análise linguística era realizada, denominava-se de corpus. No entanto, com o ad- vento da informática e da linguística baseada em corpus, o uso do termo corpus tornou-se restrito a qualquer tipo de coleção de textos em formato legível/proces- sado por máquina (os computadores). Para Johnston (2009, p. 18), citado por Hereweghe e Vermeerberge (2012, p. 1033), a linguística do corpus baseia-se no pressuposto de que o processamento de grandes quantidades de textos anotados pode revelar padrões de uso e estrutu- ra da linguagem não disponíveis por dados de intuição ou mesmo por uma análise linguística de um texto particular, o que implica, necessariamente, uma organiza- ção teórico-metodológica em termos de coleta, tratamento e armazenamento dos dados. Já para Sardinha (2000), a Linguística de Corpus ocupa-se da coleta e exploração de corpora, ou con- juntos de dados linguísticos textuais que foram coletados criteriosamente com o propósito de servirem para a pesquisa de uma língua ou variedade linguística. Como tal, dedica-se à exploração da linguagem através de evi- dências empíricas, extraídas por meio de computador. (p. 325). Este autor argumenta que, embora, hoje, a Linguística de Corpus esteja diretamente vinculada ao computador, à possibilidade de armazenamento e ma- nipulação de grande quantidade de dados via máquina, “havia corpora antes do computador, já que o sentido original da palavra ‘corpus’ é ‘corpo’, ‘conjunto de documentos’”. Ainda segundo Sardinha (2000), na área da Linguística, um dos corpora lin- guísticos eletrônicos mais antigos, de que se tem conhecimento, é o corpus Brown, o qual foi lançado em 1964. E, para os padrões da época, continha uma quantidade invejável de dados: um milhão de palavras. O corpus Brown constitui um marco importante para o que, hoje, se chama de Linguística de Corpus. Sua importância 18 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 se dá não só por questões metodológicas, mas também por uma razão histórica: o corpus Brown surge sete anos após o lançamento de Syntactic Structures, obra pu- blicada por Chomsky, que coloca em discussão a própria ideia de corpus, uma vez que nesse novo paradigma da Linguística os dados de que o linguista precisaria para suas análises estão todos em sua mente, acessíveis por meio da introspecção, portanto, a ideia de se fazer pesquisa com uso de dados provenientes de corpora estava desacreditada e havia mesmo hostilidade para essa “velha” perspectiva. Para Fenlon et al. (2015, p. 157), um Corpus linguístico é uma base de refe- rência por meio de uma catalogação e registro de idiomas falados (línguas orais), escritos e sinalizados (línguas de Sinais), que tem metadados agregados, sendo legíveis por computador, e que na medida do possível representam a língua em uso dos seus falantes nativos, permitindo um estudo sobre a frequência de alguma palavra ou sinal ou tipo de construções nessa língua. Para McCarthy e O’Keeffe (2010, p. 7), a Linguística de Corpus, para mui- tos, é “um fim em si mesma”, ou seja, ela permite que de forma empírica a língua, em foco, seja analisada, definida e descrita. A autonomia, contribuição e autenti- cidade de um Corpus pode impactar em várias áreas como, por exemplo: na área da linguística forense, análise de discurso, pragmática, dentre outras. Para além de uma perspectiva da ciência linguística, pesquisadores de outras vertentes e abor- dagens podem utilizar dados obtidos pela Linguística de Corpus, especialmente na área dos estudos das línguas de sinais cujos estudos, em comparação com outras línguas de modalidade oral-auditiva, ainda são bastante insólitos. Fenlon et al. (2015, p. 158) destacam que até pouco tempo atrás não era possível registrar, por meio de Corpora, as línguas de sinais, uma vez que apenas com o avanço tecnológico recente é que se tornou possível o registro dessas lín- guas por meio de vídeos. O desenvolvimento de recursos tecnológicos permite rá- pido processamento e armazenamento das línguas de sinais, com o acarretamento de mais precisão nas análises dos dados. Parece imperativa a ideia de que para a investigação em linguística de línguas de sinais, a tecnologia é aliada fundamental, mas muitos desafios de ordem linguística também se impõem a este processo. 2 Aspectos metodológicos 2.1 Coleta de dados A coleta de dados foi dividida em duas etapas. Inicialmente, foram feitas entrevistas semiestruturadas com os transcritores para saber como foi este proces- so de transcrição, quais os procedimentos adotados e quais desafios e estratégias foram criados durante o processo de transcrição. Após a entrevista, analisamos as transcrições realizadas até o momento (julho de 2018), juntamente com os trans- critores, com o intuito de encontrar problemas de transcrição e possíveis estraté- gias para cada problema encontrado. 19 Parte I – Estudos Linguísticos 2.2 Participantes da pesquisa Como a pesquisaestá restrita à construção do Corpus da Libras de Maceió, foram selecionados três transcritores surdos que trabalharam como bolsistas no Corpus para a realização da entrevista. Além dos transcritores selecionados, parti- cipou dessa etapa um dos autores desta pesquisa, o qual também é surdo e partici- pou ativamente do processo de transcrição dos dados, motivo por que contribuirá com a discussão e apresentando suas experiências, desafios e estratégias enquanto transcritor. Sendo assim, totalizou-se quatro entrevistados, conforme se pode ve- rificar na descrição do perfil de cada um deles no quadro a seguir. Quadro 1 – Participantes PARTICIPANTE Idade Graduação no Curso Letras-Libras Período ativo no projeto Atalaia 27 concluída 2015 - 2019 Arapiraca 26 em andamento 2018 - 2019 Maceió1 29 concluída 2014 - 2019 Maceió2 32 concluída 2014 - 2018 Fonte: Elaborado pelos autores. 2.3 Procedimentos e instrumentos da coleta de dados Como já mencionado, a coleta foi realizada a partir de uma entrevista se- miestruturada. As perguntas foram feitas pelo Zoom, em Libras, com o intuito de verificar como os transcritores lidaram com as dificuldades no ato de sua trans- crição. Foi feito um questionário individual com cada participante e uma versão reduzida em grupo, pois é possível que a interação, no momento da resposta, pos- sa fazê-los lembrar de problemas ou estratégias que eles não lembraram durante a entrevista individual. A versão em português das perguntas se encontra a seguir: 1 Quais os vídeos que você transcreveu? 2 Quantos minutos de transcrição? 3 Quantas horas mais ou menos você demorou para fazer a transcrição? 4 Você fez cursos para aprender a transcrever no ELAN? 5 Você usou o manual (qual versão) para transcrever no ELAN? 6 Como foi a experiência de seguir o manual quando foi fazer a glosa? 7 Qual foi sua experiência ao utilizar o SignBank - Libras? 8 Quais foram os desafios que você encontrou quando estava fazendo as transcrições? 9 Quais estratégias você desenvolveu para lidar com estes desafios? 10 Você contribuiu para a criação de novos tokens para o banco da Libras? Os participantes foram expostos às perguntas, em Libras, e ficaram livres para fornecer quaisquer informações, além das propostas nas perguntas acima, 20 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 de tal forma que uma resposta pudesse servir para mais de uma pergunta, ou que uma resposta pudesse ajudar a entender mais facilmente a pergunta seguinte. Após este momento das perguntas, foi aberto o ELAN – programa por meio do qual os dados do Corpus foram transcritos –, no Zoom, e os participantes mostraram exemplos de problemas encontrados em suas transcrições e quais as estratégias de anotação para cada problema, ou que caminhos metodológicos eles desenvolve- ram para anotar dados mais complexos. 2.4 Tratamento dos dados Tanto a entrevista quanto o momento de ver as transcrições, foram gra- vados para ajudarem no momento da análise. Os vídeos, gravados no Zoom, fo- ram traduzidos para o português, para facilitar a escrita da análise. Na versão em português, fez-se a categorização das respostas para cada pergunta a fim de se proceder a análise. Quanto aos exemplos apresentados no ELAN, foi anotado o ar- quivo apresentado pelo participante e o tempo de cada exemplo para conferência posterior. Como esta etapa também foi gravada, a versão em português deste mo- mento conta com estas informações sobre os arquivos apresentados. A depender da quantidade de exemplos apresentados, foram quantificadas as ocorrências para mostrar resultados quantitativos sobre os tipos de problemas apresentados, pois é possível que muitos problemas de natureza distintas apareçam e não consigamos dar conta de todos eles. Neste caso, focaremos nos mais recorrentes. 3 Análise dos dados e resultados: entrevista com os transcritores A seguir, apresentaremos as respostas dos participantes à entrevista – como as primeiras perguntas são mais objetivas, apresentaremos as respostas das cinco primeiras perguntas – e, em seguida, relacionaremos estas respostas com as de- mais, pois entendemos que as primeiras respostas estão diretamente vinculadas às últimas. 3.1 Respostas ao questionário Vejamos o que responderam os participantes (transcritores) no quadro a seguir. 21 Parte I – Estudos Linguísticos Quadro 2 – Participantes Transcritor Pergunta 1 Quais os vídeos que você transcreveu? Pergunta 2 Quantos minutos de transcrição? Pergunta 3 Quantas horas mais ou menos você demorou para fazer a transcrição? Pergunta 4 Você fez cursos para aprender a transcre- ver no ELAN? Pergunta 5 Você usou o manual (qual versão) para transcrever o ELAN? Atalaia MCZ G1 D6 VÍDEOS1 1ª Pessoanarrativa 1:43 min. 3h até 4 horas Sergio, Miriam, Ewerton e Evely orientaram. Formação na UFSC e na UFAL. SIM Arapiraca MCZ G2 D4 VÍDEOS1 1ª Pessoanarrativa 1:34 min. 2 horas Miriam e Benício orientaram. Forma- ção na UFAL. SIM Maceió1 MCZ G2 D4 Entre- vista1 15:50 min. 3 dias Sergio tutorial, Youtube. Formação na UFSC e na UFAL. SIM Maceió2 MCZ G1 D4 VÍDEOS1 1ª Pessoanarrativa 4:07 min. 4 horas Miriam, Ronice, Ewerton e Evely orientaram. Formação na UFSC e na UFAL. SIM Fonte: Elaborado pelos autores. Pergunta 1 vídeo disponível em: < https://bit. ly/3KJ0oRn> . Acesso em: 22 de junho de 2022. A partir destas respostas, percebemos o quão lento é o processo de trans- crição, pois os transcritores levaram em média uma hora para transcrever um mi- nuto. Este tempo não é fora do padrão de tempo de transcrição do projeto de nível nacional, ou seja, os outros transcritores dos corpora dos outros estados também levaram essa média de tempo para transcrever os vídeos, pois possivelmente se depararam com as mesmas dificuldades. Para Quadros (2016), a transcrição é um processo que demanda um grande investimento de tem- po e dedicação, particularmente nas pesquisas com línguas de sinais, que não possuem um sistema de escrita convencional e plenamente adaptado ao computador. Uma estimativa geral relatada em projetos de pesquisa com línguas de sinais é a de uma hora de trabalho de transcrição para cada mi- nuto de gravação. (p. 21-22). Algo ainda a ser considerado inicialmente são as respostas da pergunta 4. Todos os transcritores receberam suporte do projeto para realizar as transcrições, dos próprios colegas, dos professores e de formações de iniciativa do projeto na- cional. Isto implica dizer que os problemas a serem discutidos, neste capítulo, não dizem respeito a um despreparo ou desatenção por parte dos organizadores do 22 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 projeto, mas ao próprio processo de construção de um corpus que deve passar por adequações a partir de investigações como esta para que o processo de transcrição se torne mais produtivo e prático. A quinta pergunta nos leva para uma discussão um pouco mais abrangente que envolve as demais perguntas e respostas, pois todos os transcritores utilizaram o manual no processo de transcrição, mas, ainda assim, questões técnicas de como transcrever particularidades da Libras perduraram. Desta forma, cabe a nós agora entendermos quais são essas dificuldades e porque o manual não foi o suficiente para sanar todas as dificuldades dos transcritores. Apresentaremos, agora, as respostas para as cinco últimas perguntas, que dadas as suas especificidades, serão apresentadas em separado. Todas as respostas foram transcritas para o português por um colaborador surdo, portanto, iremos citá-las em português e, se preciso, detalharemos como um ou outro transcritor utilizou sinais específicos que podem nos ajudar a compreender melhor os senti- dos de suas falas e a encontrar as explicações que procuramos. Para apresentar as respostas, destacaremos, a cada uma delas, partes chave da resposta de cada trans- critor e faremos um pequeno resumo do que cada transcritor respondeu. 6 Como foi a experiência deseguir o manual quando foi fazer a glosa? A transcritora Atalaia falou da sua experiência, já apresentando problemas de transcrição. Ela apresentou dois principais problemas, o primeiro relacionado às diferenças de modalidade quando disse: A estrutura da Libras para traduzir para a língua portuguesa, para ficar à mesma maneira, foi um pouco difícil, […] é dificultoso porque podem variar glosas, não só um […] a mesma Libras, porque tem sua língua natural, por isso, temos sorte por ter o manual que pode utilizar DV [descrição visual] para justificar sobre isso, se não tivesse o uso de manual como iria usar pelo glossário? É difícil. (Atalaia, questão 6) Ela exemplificou alguns sinais que podem ser glosados como CORTAR e PEGAR no português, mas que na verdade não apresentam um único sinal na Libras. O segundo problema apresentado pela transcritora foi em relação às dife- renças fonológicas entre os sinais, trazendo como exemplo o sinal DIFÍCIL. Para isso, a transcritora propõe: Eu coloco em “XXX”, depois reúno com os pesquisadores para saber a deci- são sobre a validação das glosas e então pode-se modificar pelo Manual para qualquer sinal; se for complicado é necessário anotar até a variação linguís- tica, quer dizer que o sinal ficou um pouco diferente do que nós usamos […] DIFÍCIL (intensidade): os quatros dedos abertos com movimento de zig-zag na testa (ver figura abaixo), pesquisei no SignBank, mas não existe esse sinal, existe o sinal comum para a palavra DIFÍCIL, que tem distinção na configu- ração de mão. (Atalaia, questão 6) 23 Parte I – Estudos Linguísticos Figura 1 – Sinal de DIFÍCIL (intensidade) Fonte: Elaborado pelos autores. Imagem disponível em: <https://youtu.be/zmqR8-IS fOE>. Acesso em: 31 de julho de 2022. A transcritora já havia apresentado esta dificuldade com a variação fono- lógica na primeira pergunta, no começo da entrevista. Ela também pontuou que teve dificuldades para utilizar o Manual por conta destes casos mais complexos. A transcritora Arapiraca, por sua vez, apenas explicou que não contou mui- to com o Manual para transcrever os sinais, mas com o SignBank. Ela disse: “eu ficava confusa para usar esse Manual ou o SignBank, porque nós ainda usamos esse Manual até hoje”. Quando perguntamos se ela também marcava os sinais sem glo- sa com “XXX”, ela disse que lembrava que fazia desta maneira, mas não lembrava mais os sinais cuja glosa lhe era desconhecida. Por fim, o transcritor Maceió1 também afirmou utilizar mais o SignBank, e explicou que utilizava o código “XXX” como alternativa quando ele não via uma glosa no SignBank para os sinais a serem transcritos. Quando perguntamos quais seriam os próximos passos após marcar os sinais desta forma, ele respondeu: “... então, parei. Os sinais marcados com ‘XXX’ serão gravados pelos bolsistas e enviados para o grupo que vai colocar no sistema SignBank”. Como ele já havia concluído a graduação1, os novos transcritores teriam o papel de rever estes sinais e gravar os sinais com as glosas no SignBank. Sobre o Manual especificamente, o transcritor Maceió1 respondeu à per- gunta 5 e diz que desde 2015, o Manual tinha muita lista, quer dizer, sinais de pontuação ou outros recursos gráficos, com muitas regras para seguir […] daí, os pesquisa- dores em reunião para validação dos dados transcritos, em 2019, tomaram uma decisão de reduzir esses detalhes do Manual, tornando o processo de transcrição mais simples nos casos de apontamentos, por exemplo, em que é usado o IX sem a necessidade de especificar o referente entre parênteses, como era feito anteriormente. Isso não é mais necessário. (Maceió1, questão 5). 1 A equipe de trabalho do corpus é formada por graduandos voluntários e bolsistas de iniciação científica. 24 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Ou seja, em sinais de apontação, eles não precisam mais procurar o prono- me em português correspondente, mas somente utilizar o código IX. Sobre isso, Maceió2, em outro momento da entrevista, também mencionou outra mudança acordada em uma reunião relacionada às descrições visuais (DV). No manual, quando alguma DV – também conhecida como classificador ou ação construída – aparecia no corpus, eles deveriam glosar com o código DV e entre parênteses ex- plicar o que estava sendo descrito com os classificadores. Entretanto, após reunião com o projeto nacional, foi decidido que a explicação entre parênteses não seria mais necessária. Desta forma, o transcritor só deveria glosar o código DV, nestes casos. Para o transcritor, ambas mudanças facilitaram o trabalho de transcrição. Ainda assim, Maceió2 explicou que com o SignBank, muitas orientações do Ma- nual não eram mais necessárias, pois o transcritor só precisava seguir o SignBank. 7 Qual foi sua experiência ao utilizar o SignBank – Libras? A transcritora Atalaia afirmou que o SignBank facilitou, substancialmente, o trabalho de transcrição, pois procurar o sinal no SignBank era mais seguro do que seguir o Manual e decidir sobre qual glosa colocar. Ainda assim, a transcritora afirmou que o banco poderia ser mais flexível, quando disse: Seria bom ter uma flexibilidade no SignBank, isso contribuiria para melhoria do sistema e facilitaria no momento da transcrição. Por exemplo, um sinal para ENTENDER, na primeira figura, com movimento no lado da testa; e conforme a segunda figura, com mão aberta, com repetição de movimento no lado da testa; é possível ver evolução desse sinal, que evolui com movimento no lugar da bochecha por alofone. Inclusive é possível observar no momento de produção de um participante, durante uma gravação, o que ocorre na terceira figura: a mão aberta com movimento abaixo da bochecha se tocando, natu- ralmente. Ainda tem um sinal que um informante fez sinalizando afastando da bochecha com mão aberta, tocando-a, conforme a quarta figura. Então acho que poderia colocar estes exemplos para serem usadas as variações no SignBank. (Atalaia, questão 7). Figura 2 – Sinal de ENTENDER A primeira figura A segunda figura 25 Parte I – Estudos Linguísticos A terceira figura A quarta figura Fonte: Elaborado pelos autores. Imagem disponível em: <https://youtu.be/n8ncK PhYR8o>. Acesso em: 31 de julho de 2022. Desta forma, segundo a transcritora, qualquer alteração fonológica no sinal pode gerar dúvida para o transcritor: se ele deve utilizar a mesma glosa ou não. Esta dúvida a cada sinal interfere no tempo de transcrição, tornando o processo cansativo e estressante. A transcritora Arapiraca também seguiu este mesmo pa- drão de pensamento. Ela inicialmente falou das vantagens de utilizar o SignBank quando disse: “Imagina se o SignBank não coloca nada e assim fica sem auxílio seria pior, como vamos resolver para colocar isto vai ser ruim, por isso é importante ter sinais existentes, isso nos auxilia”. No entanto, ela também falou da necessidade de alimentar o SignBank e de apresentar alternativas às mudanças fonológicas. Ela citou como exemplo o sinal JEITO, explicando que: um sinal para JEITO, em que a mão fica em forma de garra virada no meio do peito com a repetição do movimento, conforme a primeira figura abaixo, ou, de outra forma, o sinal de JEITO com as duas mãos em forma de ‘B’, com o mesmo movimento, simultaneamente, no meio do peito, conforme a segunda figura abaixo. É apenas um pouco diferente a configuração da mão, encontrei esse sinal no SignBank e dispus na transcrição, mas não ficou igual a esse sinal que transcrevi. (Arapiraca, questão 7). Figura 3 – Sinal de JEITO A primeira figura A segunda figura Fonte: Elaborado pelos autores. Imagem disponível em: <https://youtu.be/NRQlB2vp- w5o>. Acesso em: 31 de julho de 2022. Imagem disponível em: <https://youtu.be/vXE- 11WmNbaI>. Acesso em: 31 de julho de 2022. 26 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Essa mesma dificuldade foi apontada pelo transcritor Maceió1, quando dis- se que os sinais de TAMBÉM, com o dedo de indicador em horizontal viradopara baixo e o outro, da outra mão, em horizontal virado para cima, e ficam tocan- do um ao outro com a repetição do movimento, conforme a primeira figura abaixo; e os dedos indicadores juntos, um ao lado do outro, com a repetição do movimento, ver a segunda figura abaixo. Houve um informante que sina- lizou o dedo indicador de uma mão parada em boia e uma outra mão fazen- do sinais, e que têm diferentes movimentos, se tiver uma mão parada e sem outro apoio, assim o SignBank pode interligar tudo na tecnologia. (Maceió1, questão 7). Apesar disso, ele ponderou, dizendo que “Por mim, a melhor estratégia é o SignBank porque já está tudo pronto, disposto no sistema, não necessita de ler a regra no Manual, também buscar e colocar na transcrição fica mais trabalhoso, por isso eu acho que é melhor o SignBank, está completo”. Estas considerações sobre o uso do Manual e do SignBank já apresenta caminhos para entender as duas próximas perguntas, como veremos a seguir. Figura 4 – Sinal de TAMBÉM A primeira figura A segunda figura Fonte: Elaborado pelos autores. Imagem disponível em: <https://youtu.be/B-I_-45Lxlk>. Acesso em: 31 de julho de 2022. Imagem disponível em: <https://youtu.be/zF-wQaoRH- WE>. Acesso em: 31 de julho de 2022. 8 Quais foram os desafios que você encontrou quando estava fazendo as transcrições? Como dito, muitos problemas já foram mencionados pelos transcritores antes de chegar nesta pergunta. Alguns deles não foram mencionados novamente, outros foram reiterados e ainda outros acrescentados. A transcritora Atalaia apre- sentou novamente o problema da modalidade entre a Libras e o Português (aqui no formato de glosa), citando novamente o exemplo de PEGAR que sempre vai ser realizado na Libras relacionado ao objeto. Além disso, ela trouxe outras duas dificuldades que ela sentiu no momento da transcrição, como a velocidade de si- nalização e os sinais que passavam despercebidos por ela não ter visto utilizando somente uma câmera. Ela explicou que, muitas vezes, a sinalização era 27 Parte I – Estudos Linguísticos rápida e não dava para entender e às vezes dava, [...] , parecia uma mosca de tão rápida para perceber, foi difícil para compreender, é preciso ir bem de- vagar para que possa entender direitinho no momento da produção do vídeo, estava rápido mesmo. [...] toda hora no momento de sinalizar “EU” e não dava para ver os lados e o único jeito de ver é com a câmera de cima, por meio da qual se conseguiu identificar este sinal. Não foi fácil, é necessário usar 4 posições de câmeras mesmo. (Atalaia, questão 8). Neste relato, a transcritora apresentou os problemas e já trouxe as estraté- gias utilizadas por ela, que, na verdade, são ferramentas e recursos previamente estruturados para os transcritores utilizarem no momento da transcrição. O pri- meiro é o controle de velocidade do ELAN, que permite que configurações de mão, movimentos e pontos de articulação sejam claramente percebidos durante a sinalização. O segundo recurso é a disponibilização de quatro câmeras voltadas para os sinalizantes, o que permite que o transcritor tenha total acesso às configu- rações de mão e aos movimentos corporais quando da sinalização. Os transcritores Maceió1 e Arapiraca apresentaram um único problema se- melhante: o excesso de tempo despendido para a transcrição. Arapiraca afirmou que: “[...] é muito longo [o vídeo] para transcrever, eu aguentava muito, ainda tinha paciência para colocar as glosas, mas era bastante demorado [...]. Eu pensei que iria rápido, mas na verdade não foi o que eu pensava”. O trabalho de transcrição, mesmo com as melhores estratégias e recursos tecnológicos, sempre vai demandar um tempo considerável do pesquisador. Mas quando questões técnicas e metodo- lógicas embargam este trabalho, o processo se torna ainda mais lento e enfadonho, alega Maceió2. Além disso, o grupo de trabalho é fundamental para dividir as tarefas. Quando somente um ou dois transcritores estão trabalhando em um corpus, o trabalho tende a sobrecarregar os colaboradores. Maceió1 fala sobre isso quando relata eu transcrevi assim mesmo até finalizar, eu ficava tão aliviado, mas, ainda tem mais outro, com igual tempo de 20 min [...]. Ainda tenho que fazer outras atividades no Letras-Libras, quer dizer, alguma atividade acadêmica que eu precisava fazer, por isso não consigo me concentrar nessas atividades, é impos- sível para mim. (Maceió1, questão 8). Como se tratava de um projeto de PIBIC, os alunos tinham outras ativi- dades acadêmicas e o trabalho de transcrição, por ser repetitivo e longo, se torna desinteressante. Nesse contexto, lacunas metodológicas ou problemas técnicos ga- nham uma proporção muito maior. 9 Quais estratégias você desenvolveu para lidar com estes desafios? Como já havia citadas algumas estratégias, Atalaia sintetizou os possíveis caminhos para solucionar os principais problemas apontados por ela. Em primei- ro lugar, ela disse que “precisava gravar mais porque ainda existem sinais com va- 28 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 riação, as glosas estão variando bastante, pois é necessário colocar os vídeos com os sinais, porque percebi que esses sinais são de Florianópolis e nenhum sinal de Maceió, nenhum”. Como a matriz do projeto nacional é em Florianópolis, muitos sinais que estão no SignBank são relacionados à variedade da Libras sinalizadas naquela cidade. É importante frisar que o Brasil, por ter proporções continentais, apresenta comunidades surdas com variações lexicais substantivas. Muitos sinais são conhe- cidos por todas as comunidades surdas brasileiras, mas cada comunidade utiliza sua própria variante para se comunicar entre si. Desta forma, nós conhecemos os sinais que estão no SignBank, mas alguns deles não correspondem às variantes maceioenses. A solução para isto, como dito, deve partir do projeto de Maceió, qual seja, alimentar o SignBank com os sinais do corpus de Maceió, ação que já é prevista no projeto nacional, mas que nem sempre é exequível pelo fato de que os bolsistas são, com alguma frequência, substituídos, ou por se formarem ou por outras razões alheias ao projeto. A segunda proposta diz respeito, não às variações lexicais, mas às fonoló- gicas. A transcritora sugere que “se mudou alguma coisa sobre flexibilidade seria ótimo, mas só falta explicar o motivo de flexibilidade sobre sinais e os diferentes mo- vimentos do parâmetro para que saber qual o diferente que tem”. Ela não apresenta exatamente o que deve ser feito, mas aponta que as diferenças fonológicas devem ser levadas em conta de alguma forma pelo SignBank para que os transcritores saibam como glosar cada variação. Os demais transcritores não apresentaram novos caminhos além dos já dis- cutidos nas outras questões, somente explicaram como os desafios da transcrição podem servir como possíveis temas para as suas pesquisas. 10 Você contribuiu para a criação de novos tokens para o banco da Libras? As respostas para esta pergunta foram mais objetivas. Maceió1 afirmou não ter contribuído com gravações; Arapiraca e Atalaia explicaram que juntas escre- veram num caderno todos os sinais que deveriam ser gravados. Além da sugestão de glosa, elas anotaram os sinais em SignWriting, como forma de capturar as dife- renças fonológicas entre as variantes. No entanto, elas não iniciaram o processo de gravação, por conta da pandemia. Em suma, percebemos que os problemas apresentados pelos transcritores têm naturezas diferentes, devendo ser, portanto, categorizados e até subcategori- zados. De modo mais sistemático, pode-se dizer que os problemas são diversos e de natureza distinta, sendo assim representados: 29 Parte I – Estudos Linguísticos Esquema 1 – Os problemas de transcrição Fonte: Elaborado pelos autores. Em síntese, podemos dizer que os problemas sociais estão diretamente re- lacionados aos transcritores e isso interfere nas suas atividades. Eles têm a ver com questões individuais, comocomprometimento, habilidades com tecnologias, excesso de atividades acadêmicas, a dificuldade de trabalhar em equipe; ou locais, como gerenciamento inadequado da equipe de trabalho, a falta de estrutura ade- quada para os trabalhos, a falta de equipamentos (computadores) mais potentes para a realização das transcrições; ou gerais, como o baixo valor das bolsas, o baixo número de bolsistas, a falta de bolsistas técnicos. Os problemas estruturais estão diretamente ligados ao que a Instituição deixa de oferecer para que o trabalho seja realizado de forma adequada: laboratórios, equipamentos, bolsas, técnicos, servidor para guarda dos dados, dentre outros. Por fim, quanto aos problemas metodológicos, os quais estão diretamente relacionados a questões linguísticas, destacamos: efeito de modalidade; variação fonológica e lexical; e número inci- piente de sinais no SignBank. 4 Considerações finais O trabalho de transcrição de dados não é tarefa simples e, portanto, requer dos transcritores-pesquisadores formação, estrutura técnica e tecnológica, além de conhecimento da língua em questão. O trabalho de transcrição é, em alguma medida, também um trabalho de análise linguística, uma vez que requer do trans- critor conhecimento de aspectos formais da língua, a fim de que se possa elaborar um corpus consistente e adequado para pesquisas linguísticas, mas não somente. Discutir os problemas de transcrição, à luz do que pensam e do que passa- ram os transcritores no processo de transcrição dos dados do Corpus de Libras da Grande Maceió, nos foi enriquecedor, pois nos possibilitou, junto com a equipe de trabalho, encontrar estratégias para lidar com os problemas encontrados, de- vidamente descritos pelos bolsistas. Para lidar com estes problemas, listamos as 30 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 seguintes estratégias e soluções: a criação de condições para a entrada e perma- nência de surdos na universidade; a inserção do aluno surdo em projetos de pes- quisa no início da graduação; dispor de uma quantidade de surdos significativa a partir da disponibilização de bolsas de estudo para que um grupo de trabalho seja formado; a realização de cursos e formações para aprender a utilizar o Manual, o SignBank e o ELAN; as formações para desenvolver o conhecimento metalinguís- tico do surdo a respeito da Libras; as formações internas para atualização de novos colaboradores por colaboradores mais antigos; o intercâmbio entre projetos de ou- tros estados para discutir dúvidas e estratégias metodológicas, e para validar novas glosas e sinais; o estabelecimento uma distinção clara dos conceitos de Descrição Visual (DV), Gesto (emblema “E’’) e sinais estáveis; a criação de um novo código para bóias; a inserção de letras (a, b, c…) às glosas com variação fonológica (e.g. TAMBÉM-1A, TAMBÉM-1B); a busca por configuração de mão no SignBank; a criação de filtro para região, separando as variantes lexicais de região para região do Brasil; a marcação de novos sinais com XXX, com sua transcrição para o Sign- Writing; a discussão dos novos sinais e das novas glosas em reunião; e a inserção dos novos sinais no SignBank, com a glosa e a versão em SignWriting. A pesquisa sobre transcrição de dados em Libras não se esgota aqui. Outras devem ser realizadas, incluindo testagens, validação com mais constância, aspec- tos relativos à tradução, às anotações dos transcritores, dentre outros, levando em conta diferentes realidades nos mais diversos estados brasileiros, ou novas proble- máticas não observadas, neste capítulo. Referências BARROS, M. E. Elis – escrita das línguas de sinais: proposta teórica e verifica- ção prática. 2008. 199 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Curso de Pós-Gra- duação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 7.387, de 09 de dezembro de 2010. Institui o Inventário Nacional da Diversidade Linguística e dá outras providências. Brasília, 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCI- VIL_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7387.htm>. Acesso em: 27 jul. 2021. FENLON, J., SCHEMBRI, A., JOHNSTON, T. E CORMIER, K. 10 0 Documen- tary and Corpus Approaches to Sign Language Research. Published, 2015. HEITKOETTER, R. P.; XAVIER, A. N. Descrição e análise de boias de listagem em Libras, 2021. Disponível em: https://revista.unitins.br/index.php/humanida- deseinovacao/article/view/3234. Acesso em 27 jun 2022. HIMMELMANN, N. P. “Chapter 1 Language documentation: What is it and what is it good for?”. Essentials of Language Documentation, edited by Jost Gi- ppert, Nikolaus P. Himmelmann and Ulrike Mosel, Berlin, New York: De Gruyter Mouton, 2006, pp. 1-30. https://doi.org/10.1515/9783110197730.1 IPHAN. INDL: Pesquisa coleta dados para o Inventário Nacional de Libras. Dis- ponível em: <http://portal.iphan.gov.br/indl/>: Acesso em: 27 jul. 2021. 31 Parte I – Estudos Linguísticos LEITE, T. DE A. E QUADROS, R. M. DE. Línguas de Sinais do Brasil: Reflexões sobre o seu estatuto de risco e a importância da documentação. Em Estudos da Língua de Sinais. Volume II. Editora Insular, 2014. NONAKA, A. The forgotten endangered languages: Lessons on the importance of remembering from Thailand’s Ban Khor Sign Languages. Language in So- ciety, 2004, v. 33, p. 737-767. NYST, V. 7 Sign Language Fieldwork. Published, 2015. O’ KEEFFE, A., McCARTHY, M. Historical perspective What are corpora and how have they evolved. The Routledge Handbook of Corpus Linguistics,2010. QUADROS, R. M. DE. A transcrição de textos do Corpus de Libras. Revista Leitura, Maceió V.1 no 57 – jan/jun p. 8 - 34, 2016. QUADROS, R. M. DE. Documentação da Língua Brasileira de Sinais. In: SEMINÁRIO IBERO-AMERICANO DE DIVERSIDADE LINGUÍSTICA. Anais [...]. Brasília, DF: Iphan, 2016a. QUADROS, R. M. DE. et al. Corpus de Libras. Florianópolis, UFSC, 2017c. Dis- ponível em: http://corpuslibras.ufsc.br/. Acesso em: 30 julho. 2021. QUADROS, R. M. DE.; KARNOPP, Lodenir Becker. Língua de Sinais brasileira: Estudos linguísticos. Porto Alegre: ArtMed, 2004. QUADROS, R. M. DE.; LEITE, T. DE A.; LOHN, J. T.; SCHMITT, D. PEGO, C. Documentação da Língua Brasileira de Sinais, 2020. QUADROS, Ronice Müller de et al. Língua brasileira de sinais: patrimônio linguístico brasileiros. Florianópolis: Editora Garapuvu, 2018. ROYER, M. Análise da ordem das palavras nas sentenças em Libras do Cor- pus da Grande Florianópolis. Dissertação (Mestrado em Linguística) - UFSC. SC, 2019. SARDINHA, Tony Berber. Lingüística de Corpus: histórico e problemática. DELTA, São Paulo , v. 16, n. 2, p. 323-367, 2000. UNESCO, Disponível em: <http://envolverde.cartacapital.com.br/brasil-t em- -190-idiomas-sob-risco-de-extincao-segundo-unesco/:> Acesso em 27 jul. 2021. VAN HERREWEGHE, M., E VERMEERBERGEN, M. (2012). Data collection. Sign language: an international handbook. 33 Parte I – Estudos Linguísticos 2 Marcação de masculino e feminino na Libras Lia Cláudia Coelho Bruno Gonçalves Carneiro Universidade Federal do Tocantins (UFT) 1 Introdução Este capítulo é oriundo de um estudo descritivo sobre a marcação de mas- culino e feminino na Libras. Em algumas línguas do mundo, essa marcação pode formar um sistema de gênero, em que essa marca extrapola o nome envolvido e se manifesta em outros elementos do sintagma. De acordo com Corbett (1991), o termo gênero significa tipo ou ordenação e diz respeito à forma como uma língua categoriza os nomes, que podem ser classi- ficados de várias maneiras. Mas, nem toda classificação gera um sistema. Um siste- ma de gênero acontece quando a classificação nominal promove uma característica (marcação) que vai além dos nomes em si, ou seja, essa marcação também acontece em outros elementos associados ao nome. Por exemplo, em uma língua em que o núcleo do sintagma nominal apresenta uma marca de feminino e o termo que modi- fica esse nome também a apresenta, então, temos um sistema de gênero. Issosignifi- ca que o critério que determina a existência do gênero gramatical é a concordância. O objetivo do capítulo é descrever como se manifesta a marcação de mas- culino e feminino em Libras. Mais especificamente, descrevemos as estratégias de marcação de masculino e feminino em nomes (sinais relacionados a parentes- co, a animais e a profissões) e em pronomes pessoais (sinais de apontamento). Na oportunidade, refletimos se esse fenômeno gera um sistema de gênero na Libras. 2 Gênero em línguas (orais) do mundo De acordo com Aikhenvald (2000), as línguas podem categorizar os nomes que as constituem de maneira das mais diversas e, para isso, apresentam estra- tégias gramaticais. Os membros de uma determinada classe nominal podem ser reunidos em categorias a partir de características semânticas, que geralmente en- volvem sexo (masculino versus feminino e, em algumas línguas, versus neutro), 34 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 animacidade (animado versus inanimado) e humanidade (humano versus não hu- mano), dentre outras. Nesse sentido, é importante distinguir gênero biológico de gênero gramatical. Este nem sempre está baseado na noção daquele. A categorização também pode acontecer a partir de princípios formais. Ainda segundo a autora, a presença de um sufixo derivacional, por exemplo, pode caracterizar uma classe de nomes. No alemão, os nomes que apresentam o sufixo -ung são considerados nomes de ação e são classificados como femininos, enquan- to os nomes que apresentam o sufixo -chen são considerados diminutivos e são classificados como neutros. No português, nomes com o sufixo -ção são caracteri- zados como nomes de ação e são classificados como femininos. Ulrike Zeshan (2008) propõe uma classificação dos itens lexicais da língua de sinais indo-paquistanesa (IPSL) a partir de características articulatórias. Para a autora, os sinais da IPSL podem ser classificados em: (i) sinais cujo ponto de arti- culação não pode ser modificado; (ii) sinais cujo ponto de articulação pode mudar no espaço de sinalização; e (iii) sinais direcionais. A primeira classe refere-se a sinais ancorados ao corpo (tocam ou são arti- culados próximos a ele). Refere-se, por exemplo, a sinais relacionados a sentimen- tos, partes do corpo e ações cognitivas, mas a maioria não pode ser categorizada semanticamente, porque são sinais multifuncionais e podem aparecer em várias posições sintáticas sem qualquer modificação formal. A segunda classe trata-se de sinais realizados no espaço de sinalização, mas não exibem deslocamento (trajetória) entre dois pontos. O local de articulação no espaço de sinalização é flexível e pode mudar. Esse comportamento espacial permite que se estabeleça um vínculo visual com outros sinais e também são con- siderados multifuncionais. A terceira classe corresponde a sinais que se movem entre dois pontos e se comportam como verbos. A trajetória pode expressar uma relação de fonte/ alvo, sujeito/ objeto ou movimento/ localização associado aos locais inicial e final do deslocamento. Nas línguas, a classificação nominal, a partir de critérios semânticos e/ou formais, pode (ou não) gerar um sistema de gênero. O gênero gramatical acontece quando uma classe nominal promove algum tipo de morfologia de concordância. Nesse sentido, o termo gênero significa tipo, ordenação, ou ainda, classificação gramatical que reflete em outros elementos (Corbett, 1991; Kroeger, 2005; Velu- pillai, 2012). O português é uma língua que apresenta gênero masculino e feminino. Os dados em (1) ilustram esse sistema. As palavras menino e vestido são gramati- calmente masculinas, enquanto menina e galinha são palavras gramaticalmente femininas. A partir da classe desses núcleos, os pronomes demonstrativos e os adjetivos que as modificam terão formas específicas. (1) Gênero masculino e feminino no português a. Este menino gord-o b. Esta menina bonit-a 35 Parte I – Estudos Linguísticos c. Este vestido bonit-o d. Esta galinha gord-a Fonte: Kroeger (2005, p. 117). Conforme pode ser observado, os nomes menino e vestido determinam a forma do demonstrativo este (masculino), enquanto menina e galinha determi- nam a forma esta (feminino). Os adjetivos gordo e bonito apresentam o sufixo -o porque modificam um nome masculino, enquanto que os adjetivos gorda e bonita apresentam o sufixo -a por modificarem um nome feminino. O alemão é uma língua que apresenta gênero masculino, feminino e neutro. A forma dos dependentes vai depender da classe do núcleo, conforme pode ser observado em (2) e (3), em relação a determinantes e adjetivos, respectivamente. (2) Gênero masculino, feminino e neutro no alemão (determinantes) a. der stuhl Det.M CADEIRA “a cadeira” b. die blume Det.F FLOR “a flor” c. das buch Det.N LIVRO “o livro” Fonte: Velupillai (2012, p. 165). Em (2), o nome stuhl (cadeira) é classificado como masculino, blume (flor) é feminino e buch (livro) é neutro. Os determinantes no alemão formam um pa- radigma cujas formas correspondem à classificação nominal apresentada: der é masculino, die é feminino e das é neutro. Em 2.a, a presença do determinante der acontece por ocasião do núcleo stuhl (cadeira), um nome masculino. O mesmo acontece em relação aos demais determinantes, cuja forma concorda com a classi- ficação do núcleo do sintagma nominal respectivo. (3) Gênero masculino, feminino e neutro no alemão (adjetivos) a. rot-er stuhl VERMELHO.M CADEIRA “cadeira vermelha” b. rot-e blume VERMELHO.F FLOR “flor vermelha” c. rot-es buch VERMELHO.N LIVRO “livro vermelho” Fonte: Velupillai (2012, p. 165). Em (3), o lexema rot- (vermelho) é um modificador e apresenta um sufixo que está de acordo com a classificação do nome que ele modifica. A forma rot-er se refere ao gênero masculino, rot-e ao gênero feminino e rot-es ao neutro. 36 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 O Mayali é uma língua australiana com gênero cujo sistema envolve uma classe não relacionada a sexo biológico. Os nomes são classificados em quatro clas- ses: masculino, que envolve humanos e animais superiores1 masculinos, referentes animados de forma genérica, entidades espirituais (a menos que seja especificado como feminino), alguns animais inferiores, animais invertebrados, chuva, pon- tos cardeais, alguns itens usados na pintura, alguns tipos de mel, dentre outros; feminino, que envolve humanos e animais superiores femininos, alguns animais inferiores, e sol; vegetais, que abrange plantas e seus produtos (itens oriundos de plantas), alimentos, vegetais, alguns tipos de mel, partes sexuais do corpo, barcos e veículos, e outros; e neutro, que abrange partes de animais e plantas, fenôme- nos climáticos e marítimos, medidas de tempo, países, categorias sociais e outros (Evans; Brown; Corbett, 2002). O dado em (4) ilustra o sistema de gênero na lín- gua Mayali (dialeto Kunwinjku). (4) Gênero masculino, feminino, vegetais e neutro em Mayali (dialeto Kunwinjku) a. bininj na-mak HOMEM M-BOM “homem bom” b. daluk ngal-mak MULHER F-BOM “mulher boa” c. kamarn man-mak INHAME VE-BOM “Inhame bom” d. kukku kun-mak ÁGUA N-BOM “água boa” Fonte: Evans, Brown e Corbett (2002, p. 117). Em (4), vemos que cada gênero recruta um morfema prefixal para compor o termo que modifica o nome. O masculino exige o prefixo na-; o feminino exige ngal-; o vegetais, man-; e o neutro, kun-. Tipologicamente, as línguas do mundo podem ser: (i) línguas sem sistema de gênero gramatical; (ii) línguas com gênero gramatical cuja manifestação está baseada em sexo biológico; e (iii) línguas com gênero gramatical cuja manifesta- ção se apoia em outras características semânticas (não relacionadas a sexo) (Cor-bett, 1991). Outra estratégia para marcar a classe dos nomes é o uso de classificadores. Em línguas orais, o termo classificadores nominais se refere a formas presas ou livres que ocorrem dentro do sintagma nominal e que indicam a classe do nú- cleo. De acordo com Ainkhenvald (2000), classificadores nominais caracterizam o nome, co-ocorrem com ele e não geram concordância. Ainda segundo a autora, a escolha de um classificador é semântica, a partir de características inerentes ao nome, tais como animal, humano, planta, forma, 1 Os animais superiores se referem aos animais domésticos e os inferiores aos não domésticos. 37 Parte I – Estudos Linguísticos dimensão e estrutura do referente. Em algumas línguas, os classificadores também podem se referir ao status social, ou a uma relação de parentesco. O dado em (5) ilustra classificadores nominais na língua Kanjobalan Mayan (Guatemala). (5) Classificador nominal em Kanjobalan Mayan xil [naj xuwan] [no7 lab’a] VER CL:HOMEM John CL:ANIMAL COBRA “(homem) John viu a (animal) cobra” Fonte: Ainkhenvald (2000, p. 82). Em (5), o núcleo xuwan (John) é precedido pela forma naj, um classificador que categoriza xuwan como sendo da classe homem. De maneira semelhante, o núcleo lab’a (cobra) é precedido pela forma no7, também um classificador nomi- nal que categoriza lab’a como sendo da classe animal. Tanto os classificadores quanto os sistemas de gênero são estratégias grama- ticais que classificam os nomes. A diferença é que os primeiros não geram concor- dância, ou seja, “os classificadores classificam apenas o nome em si” (Aikhenvald, 2000, p. 2). Na próxima seção, apresentamos a marcação de masculino e feminino na língua de sinais japonesa e na língua de sinais argentina, línguas não relaciona- das historicamente com a Libras. 3 Masculino e feminino na LS japonesa e LS argentina Na língua de sinais japonesa (NS) e em outras línguas de sinais da Ásia, a marcação de masculino e feminino pode acontecer em configurações de mão (classificadores) relacionadas a categoria pessoa. Há uma configuração de mão dis- ponível para referentes masculino (dedo polegar estendido), feminino (dedo míni- mo estendido) e outra neutro (dedo indicador estendido). O polegar estendido e o mínimo estendido são formas não obrigatórias (Osugi, 1999). De acordo com Sagara (2016), os sinais relacionados a parentesco na NS têm um sistema morfológico produtivo que envolve a noção de masculino e femi- nino e a modificação espacial. Novamente, o polegar estendido indica HOMEM e o mínimo estendido indica MULHER. A Figura 1, a seguir, ilustra esses sinais. Figura 1 – HOMEM e MULHER na língua de sinais japonesa Fonte: Sagara (2016, p. 318). 38 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 O sinal que se refere a casar é realizado a partir da aproximação das confi- gurações de mão HOMEM e MULHER, que remete à união entre um homem e uma mulher. O sinal divorciar é realizado a partir do afastamento delas. A Figura 2, a seguir, ilustra o sinal casar. Figura 2 – CASAR na língua de sinais japonesa Fonte: Sagara (2016, p. 319). Os sinais que se referem a irmãos na NS também apresentam a distinção de masculino e feminino a nível lexical, a partir dessas configurações de mão. O mínimo estendido estabelece a noção de irmã e o médio estendido (uma forma diferente para homem) a noção de irmão. O uso do espaço de sinalização traz uma noção de mais velho ou mais novo. O sinal IRMÃ-MAIS-NOVA é realizado com a configuração de mão que se refere a MULHER que se move para baixo. O sinal IRMÃO-MAIS-VELHO é realizado com configuração de mão que se refere a masculino que se move para cima. A mão posicionada mais ao alto se refere a uma entidade mais velha, enquanto que a mão posicionada mais abaixo se refere a uma entidade mais jovem. Assim, o uso do espaço de sinalização distingue a idade. A Figura 3, a seguir, ilustra esses sinais. Figura 3 – IRMÃ-MAIS-NOVA e IRMÃO-MAIS-VELHO na língua de sinais japonesa Fonte: Sagara (2016, p. 320). Os sinais que denotam as noções de avô e avó também seguem a mesma configuração de mão, mas os dedos selecionados estão curvados. Os sinais HO- MEM-VELHO e MULHER-VELHA definem esses termos de parentesco e, grosso modo, se referem à postura “curvada” no envelhecimento. A Figura 4, a seguir, ilustra os sinais de HOMEM-VELHO e MULHER-VELHA. 39 Parte I – Estudos Linguísticos Figura 4 – Sinal HOMEM VELHO na língua de sinais japonesa Fonte: Sagara (2016, p. 324). Na NS, as configurações de mão: indicador estendido, polegar estendido e mínimo estendido, são classificadores e podem ser considerados como proformas. Essas configurações formam um paradigma cuja seleção depende da classe do re- ferente envolvido. O indicador estendido é uma forma neutra e abarca referentes tanto masculino quanto feminino. O polegar estendido é uma forma masculina, não obrigatória e selecionada em referentes masculinos. Por fim, o mínimo es- tendido é feminino, não obrigatório e selecionado em referentes femininos. Neste caso, pode-se sugerir que a NS possui um sistema de gênero baseado em sexo, pois a seleção de uma proforma depende da classificação do referente. Na língua de sinais argentina (LSA), a marcação de masculino e feminino se manifesta através da justaposição dos sinais VARON (macho) e HEMBRA (fê- mea) posposto ao nome (Massone; Johnson, 1991). Em alguns sinais relacionados a parentesco, também pode ser usado o alfabeto manual para essa marcação. Os referentes masculinos são justapostos com “O” e os femininos com “A”. Nesse sen- tido, o parentesco na LSA apresenta pares alomórficos para marcar masculino e feminino. A Figura 5, a seguir, ilustra o sinal tío e tía, na LSA, a partir da justapo- sição das configurações “O” e “A”, respectivamente. Figura 5 – Sinal tío e tía em LSA Fonte: https://youtu.be/4FaBh1xgjV0. Acesso em 5 de janeiro de 2023. Nesta seção, apresentamos dados da NS e da LSA em relação à marcação de masculino e feminino. Na NS parece haver um sistema de gênero, pois, novamen- te, os classificadores, para se referir a humano, formam um paradigma cuja seleção depende da classe do nome. 40 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 4 Metodologia Para descrevemos as estratégias de marcação de masculino e feminino em nomes (sinais relacionados a parentesco, a animais e a profissões) e em pronomes pessoais (sinais de apontamento) na Libras, analisamos um vídeo do corpus da Libras da região de Palmas-TO, dicionários e um vídeo de um canal no YouTube de uma estudante surda que cursa medicina veterinária. O corpus da Libras de Palmas está sendo elaborado pela Universidade Fe- deral do Tocantins, em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina. Este é um importante passo para consolidar pesquisas descritivas sobre línguas de sinais, no Brasil. Para esta investigação, analisamos um vídeo da etapa de entre- vista, que apresenta 10’50” de duração. Foram analisados os sinais de parentesco, animais e profissão para verificarmos como acontece a marcação de masculino e feminino. Analisamos também os pronomes pessoais. A busca por esses sinais aconteceu no ELAN2, a partir das trilhas que ha- viam sido transcritas. Incluímos na análise os sinais glosados como SURDO, aten- tos para a codificação de uma noção referencial e de uma noção de modificador. Em relação aos sinais de apontamento, buscamos pela glosa IX, que foi convencio- nalmente utilizada pelos transcritores para os sinais de apontamento. Estivemos atentos apenas aos sinais de apontamento que se referiam a pessoa. Desconsidera- mos os apontamentos dêiticos que se referem a partes do discurso, espaço e tem- po, pronome oblíquo, bóia discursiva, pronome dual e o apontamento realizado pela mão não dominante quando simultânea à mão dominante (duplicação). Em relação aos dicionários, analisamos o Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue da Língua de SinaisBrasileira – Deit-Libras (Capovilla; Raphael; Maurício, 2013), o Livro Ilustrado de Língua Brasileira de Sinais (Honora, 2012) e o Dicionário do INES – Instituto Nacional de Educação de Surdos, com o objetivo de verificar se há formas lexicais distintas para designar as noções de masculino e feminino em sinais relacionados a parentesco, a animais e a profissões. Em relação aos animais, buscamos termos que se referem a mamíferos de grande porte, galináceo e que fossem mais recorrentes no repertório cotidiano. A entrada dos dicionários é or- ganizada em português e, por isso, a busca aconteceu a partir do “nome” do sinal. Por fim, analisamos um dos vídeos de um canal do YouTube mantido por uma estudante surda de medicina veterinária3. O canal apresenta 16 vídeos prota- gonizados pela autora. Analisamos o vídeo intitulado INSEMINAÇÃO ARTIFI- CIAL EM BOVINO, que tem duração de 7’53”. Durante a análise dos dados, partimos do pressuposto de que a Libras não apresenta gênero gramatical baseado em sexo. A marcação de masculino e femini- no é feita a partir da justaposição dos sinais glosados como HOMEM ou MULHER (Ferreira, 2010), e não gera concordância. Carneiro (2017) estabelece que a marca- 2 Software Eudico Linguistic Annotador. 3 O canal é mantido pela estudante de medicina veterinária Luanna Sayonara e está disponível em https://www.youtube.com/@luannasayonara6193 (Acesso em 07 de janeiro de 2023). 41 Parte I – Estudos Linguísticos ção de masculino e feminino se manifesta em sinais que se comportam como subs- tantivos, é opcional em referentes animados e ausente em referentes inanimados. Consideramos também que há os sinais MACHO e FÊMEA para marcar masculino e feminino em animais. A marcação em humanos acontece a partir da justaposição dos sinais HOMEM e MULHER e em animais parece ser possível também a justaposição com MACHO e FÊMEA. Após a análise dos dados, categorizamos os resultados e refletimos sobre a presença (ou não) de um sistema de gênero na Libras, a partir da marcação de masculino e feminino. Os resultados estão postos na seção seguinte. 5 Masculino e feminino na Libras Em sinais relacionados a parentesco, há formas lexicais específicas para referen- tes masculinos, específicas para referentes femininos e formas consideradas neutras. Os sinais que se referem ao genitor possuem uma forma para masculino e outra para feminino, neste caso, os sinais PAI e MÃE. Não há uma forma neutra para designar genitor4. O mesmo acontece em relação aos sinais GENRO e NORA, PADRASTO e MADRASTA, PADRINHO e MADRINHA. Novamente, esses pa- res de sinais apresentam uma forma lexical específica para designar referente mas- culino e feminino, mas não apresentam uma forma neutra. Os sinais FILH@, IRMÃ@, SOBRINH@, PRIM@, AV@, SOGR@, TI@, NET@, NOIV@, CUNHAD@ e BISAV@ possuem apenas a forma lexical neutra. O Quadro 1, a seguir, ilustra esse resultado oriundo da análise dos dicionários. Quadro 1 – Léxico para masculino, feminino e neutro em sinais de parentesco Fonte: Dados da pesquisa (2022) 4 De acordo com Woodward (1978), a língua de sinais da Índia apresenta um sinal que se refere a genitor, considerado neutro, que abarca tanto a noção de mãe quanto a noção de pai. 42 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Há variações lexicais para PAI e MÃE na Libras. Os sinais PAI e MÃE são palavras compostas oriundas da justaposição dos sinais HOMEM + BENÇÃO e MULHER + BENÇÃO, respectivamente. O sinal PAI-1 é um sinal soletrado a partir de P-A-I e MÃE-1 também é soletrado, a partir de M-Ã-E. O sinal PAI-2 é articula- do com a configuração de mão “dedo indicador curvado” e com toque no buço de maneira repetida. Este sinal parece se referir a um bigode. O sinal MÃE-2 é articu- lado com a configuração de mão “dedo indicador estendido” e com toque na lateral do nariz, repetidamente. Wilkinson (2009) sugere uma tendência de estrutura de termos de parentes- co nas línguas de sinais, a partir de um estudo comparativo envolvendo 40 línguas. Para a autora, os sinais que denotam homem, mulher, menino e menina estruturam os termos de parentesco de maneira (a) holística e (b) com sobreposição fonológica. No primeiro caso, os sinais de pessoa (referidos acima) são semanticamente estendidos para um termo de parentesco, sem modificação fonológica, e, por isso, são sinais polissêmicos. De acordo com a autora, a extensão semântica esteve mais presente nos termos referente a filhos. Em algumas línguas, os termos com formas holísticas são formados pela jus- taposição do sinal de pessoa com outra unidade lexical para especificar o termo de parentesco. Nesses padrões, envolvendo uma segunda unidade lexical (sinais compostos) que se referem a filhos, prevalecem domínios semânticos – bebê, parto e criança – justapostos aos termos de pessoa. Os sinais PAI e MÃE, na Libras, podem ser categorizados como oriundos de extensão semântica e envolvem uma segunda unidade lexical que deu origem à composição (sinal BENÇÃO). A sobreposição fonológica inclui aqueles termos que carregam, no míni- mo, uma característica articulatória de um termo de pessoa. Neste caso, os termos oriundos de extensão semântica (holísticos) são desconsiderados. Neste processo, intitulado pela autora de derivação semântica, a sobreposição fonológica predomi- nante é o ponto de articulação. Dessa forma, a locação é o parâmetro mais relevante para marcar a derivação semântica no sistema de parentesco. A derivação semân- tica acontece em maior número nos termos para PAI a partir do sinal HOMEM. Além de formas (a) holísticas e (b) com sobreposição fonológica, uma outra possibilidade de estrutura de termos de parentesco é (c) sem sobreposição fono- lógica de termos de pessoa. Esta categoria está mais presente em sinais referen- tes a avós. Wilkinson (2009) sugere que estes termos de parentesco tendem a ser construídos a partir de domínios semânticos diferentes dos termos de pessoa. Nos termos para avós, por exemplo, as línguas de sinais tendem a explorar o domínio antigo, de diferentes formas. Na Libras, os sinais PADRASTO e MADRASTA são oriundos das formas lexi- cais PAI e MÃE. Os sinais GENRO e NORA, PADRINHO e MADRINHA não envol- vem termos de pessoa em sua estrutura e apresentam configuração de mão inicializada. Em relação aos termos de parentesco no corpus da Libras, encontramos o si- nal FILH@, no instante 00:00:55.520, que, no contexto, refere-se a um participante definido e feminino. O sinal é articulado de maneira neutra. Outros termos foram TI@ e PRIM@, em 00:06:48.187 e 00:06:48.711, respectivamente. Estes termos fo- 43 Parte I – Estudos Linguísticos ram articulados em sequência e se referem à categoria familiares e, da mesma for- ma, foram articulados de maneira neutra. O sinal PADRINHO é específico para o masculino e foi articulado no tempo 00:08:26.372. Ainda em relação ao corpus da Libras, analisamos as ocorrências do sinal SURDO, atentos à marcação de masculino e feminino. Caracterizamos as ocorrên- cias em referente ou modificador. Encontramos 25 ocorrências do sinal SURDO. Dentre estas, cinco se mani- festaram funcionalmente como modificadores por trazer a noção de ser surdo. Em relação à definitude, 16 ocorrências tiveram um caráter indefinido e quatro defini- do. Baseamo-nos na identificabilidade enquanto categoria semântica mais próxima da definitude (Carvalho, 2018). O Quadro 2, a seguir, ilustra as ocorrências do sinal SURDO e a categorização dos termos conforme descrevemos. Quadro 2 – Marcação dos sinais SURDO no Corpus da Libras Fonte: dados da pesquisa (2022) 44 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Conforme os dados, apresentados acima (Quadro 2), todas as ocorrências em que SURDO se manifesta como modificador ou referente animado indefinido, não houve marcação de masculino ou feminino. Houve quatro ocorrências em que o sinal SURDO, enquanto modificador, qualificou referente feminino e uma ocor- rência em que qualificouum referente inanimado. Dentre as quatro ocorrências em que o sinal SURDO se manifestou como referente animado definido, tratan- do-se de um referente conhecido, apenas em uma ocorrência houve a marcação de que o participante é masculino. O dado (6), a seguir, reproduz essa construção. (6) marcação de masculino em Libras ‘Foram dois surdos. Os dois discutiram, os dois eram homens (...)’ Fonte: dados da pesquisa (2022) Em (6), vemos o sinal SURDO, inicialmente, sem qualquer menção à mar- cação de masculino e feminino. Nesse sentido, o sinal é categorizado de maneira neutra. A noção de que os participantes são classificados como masculino veio a partir da oração seguinte, que menciona eles serem do sexo masculino: “os dois eram homens”. Em sinais relacionados a animais, encontramos formas lexicais específicas para referentes masculinos, específicas para referentes femininos e formas consi- deradas neutras. Observamos que os sinais CARNEIRO e OVELHA, BODE e CABRA, GALO e GALINHA, BOI e VACA são formas específicas. Essa distinção lexical parece envolver construções icônicas. Foi identificado o sinal BOI@ como uma forma lexical neutra. Há também formas específicas: masculino seria a composi- 45 Parte I – Estudos Linguísticos ção de BOI@ + HOMEM, e feminino a composição de BOI@ + LEITE. Os sinais GAT@, CAVAL@, COELH@, PAT@, LEÃ@, MACAC@ e LOB@ são formas neu- tras. O Quadro 3 ilustra alguns dos itens lexicais relativos a animais que foram coletados nos dicionários. Quadro 3 – Léxico para masculino, feminino e neutro em sinais de animais Fonte: Dados da pesquisa (2022) A princípio, a marcação de masculino e feminino em formas neutras acon- tece a partir da justaposição dos sinais HOMEM para marcar masculino e MU- LHER para marcar feminino. Há também os sinais MACHO e FÊMEA, que tam- bém atendem essa demanda (Figura 6). Figura 6 – FÊMEA e MACHO em Libras Fonte: Capovilla, Raphael e Maurício (2013, p. 1235 e p. 1616) No vídeo do YouTube identificamos os sinais BOI@ e CAVALO@, articu- lados sem justaposição de sinais para designar entidade masculina ou feminina, bem como o sinal VACA através da justaposição de BOI@ + FÊMEA-1. Observa- mos também o sinal MACHO com função dêitica para se referir ao masculino de bovino. A Figura 7 ilustra os sinais MACHO e FÊMEA-1. 46 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Figura 7 – MACHO e FÊMEA-1 em Libras Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=i87840cMRMc Em sinais relacionados a profissões, não encontramos formas lexicais espe- cíficas para referentes masculinos e femininos. Todas as formas lexicais encontra- das foram consideradas neutras. Observamos que nos dicionários, a partir da en- trada dos vocábulos costureira, eletricista, mecânico, pescador, vigilante, aeromoça, alfaiate, arqueiro, autor, barbeiro, comissária de bordo, detetive, escritor, fazendeiro, jornaleiro, marceneiro, marinheiro, mecânico, padeiro, pedreiro, pintor, porteiro, taxista, há uma menção à distinção de masculino e feminino, a partir da justa- posição do nome com os sinais HOMEM e MULHER. Os sinais ADVOGAD@, ARQUITET@, BOMBEIR@, CABELEIREIR@, MÉDIC@, MOTORIST@, PO- LICIAL@, DENTIST@, ENFERMEIR@, ENGENHEIR@, FONOAUDIÓLOG@, OFTALMOLOGIST@, PROFESSOR@, PEDAGOG@, PSICÓLOG@, SECRETÁ- RI@, CANTOR@, VETERINÁRI@ são apresentados de forma neutra. Em relação aos dados do corpus da Libras, identificamos os sinais INTÉR- PRETE, PROFESSOR e TÉCNICO. O sinal INTÉRPRETE aparece em três ocor- rências e, no contexto do discurso em que foram sinalizados, estes sinais referem-se a entidades animadas indefinidas e não houve marcação de masculino ou femini- no. O sinal PROFESSOR é um referente animado definido, que também foi arti- culado de maneira neutra. Por fim, o sinal TÉCNICO é um referente inanimado. Quadro 4 – Sinais INTÉRPRETE, PROFESSOR e TÉCNICO no Corpus da Libras Fonte: dados da pesquisa (2022) Em relação aos sinais de apontamento, no corpus da Libras, identificamos 70 ocorrências, dentre as quais consideramos 57, a partir dos critérios de exclusão descritos na metodologia. Todos os sinais de apontamento analisados foram arti- 47 Parte I – Estudos Linguísticos culados de forma neutra, ou seja, sem a justaposição de sinais que classificassem o participante. Desse total, 30 ocorrências se referiam à primeira pessoa do discurso (referente feminino); quatro ocorrências se referiram à segunda pessoa (referente feminino); 19 ocorrências se referiram à participante mãe (referente feminino); uma ocorrência se referiu ao participante padrinho (referente masculino); uma ocorrência se referiu ao participante terapeuta, em que também não foi especifica- do a classe (referente neutro); duas ocorrências se referiram a participantes huma- nos (plural), um a partir do movimento em varredura e outro sem varredura, em que não foi especificado (referente neutro). Dessa forma, os sinais de apontamento foram articulados de maneira neutra, sem especificar o participante em masculi- no ou feminino, tanto em situações em que a informação poderia ser inferida do discurso (por exemplo, participantes mãe e padrinho), tanto em situações em que essa informação era desconhecida (participante terapeuta). A partir dos dados analisados por Coelho (2022) e Carneiro (2017), sugeri- mos algumas tendências de manifestação sobre a marcação de masculino e femini- no na Libras. A marcação acontece em referentes animados, apresenta um caráter opcional e está ausente em referentes inanimados. A forma não marcada é neutra. A nível lexical, vemos que os referentes animados (pronomes, parentesco, animais e profissões) apresentam uma forma não marcada, considerada neutra para as noções de masculino e de feminino. Apenas em sinais de parentesco e de animais foram observadas formas lexicais específicas. No sistema de parentesco, os sinais PAI e MÃE são considerados extensão semântica dos sinais HOMEM e MULHER, e os sinais PADRASTO e MADRASTA são oriundos dos sinais PAI e MÃE. Há sinais de parentesco específicos que são formas inicializadas. Em sinais de animais, as formas específicas apresentam características icônicas. A marcação de masculino e feminino em referentes animados na Libras acontece a partir da justaposição do nome aos sinais HOMEM e MULHER, res- pectivamente. Em sinais de animais, parece haver as formas MACHO e FÊMEA, que também promovem essa marcação. Assim, o paradigma para humanos é for- mado por dois elementos e não humanos por quatro elementos. A Figura 8, a seguir, esquematiza essas considerações. Figura 8 – Marcação de masculino e feminino na Libras Fonte: dados da pesquisa (2022) 48 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Em relação ao gênero gramatical, sugerimos que na Libras não há um sis- tema de gênero a partir da marcação de masculino e feminino. As formas pro- nominais (sinais de apontamento) e os sinais glosados como SURDO, enquanto modificadores, por exemplo, não apresentam marcação na forma quando o núcleo do sintagma se refere a um participante masculino, feminino, ou ainda, quando essa classificação é indeterminada. 6 Algumas considerações A pesquisa que deu origem a esse capítulo objetivou descrever as estratégias de marcação de masculino e feminino em nomes (sinais relacionados a parentes- co, a animais e a profissões) e em pronomes pessoais na Libras. Em todas as categorias lexicais analisadas, há formas neutras em relação às noções de masculino e de feminino. Em sinais de parentesco e de animais, foram identificadas formas específicas. Em relação aos termos de parentesco, vemos a distinção entre masculino e feminino a nível lexical. A distinção entre os sinais que se referem aos genitores acontece a partir dos sinais HOMEM e MULHER, por um processo de extensão semântica. Há também formas não derivadas de termos de pessoa. Os sinais PA- DRASTO e MADRASTA são derivados de PAI e MÃE, respectivamente. Nos de- mais sinais específicos (GENRO e NORA, PADRINHO e MADRINHA), a distin-ção parece acontecer a partir da inicialização. Em relação aos termos de animais, a distinção acontece a partir de parâmetros que remetem o referente de maneira icônica. A marcação de masculino e feminino em sinais neutros é opcional e acon- tece a partir da justaposição dos sinais HOMEM e MULHER. Em termos de ani- mais, também é possível a justaposição com MACHO e FÊMEA, que parecem ser usados apenas para animais (não em humanos). O uso de MACHO e FÊMEA pa- rece ser opcional, pois os sinais HOMEM e MULHER são usados nesse contexto. O nosso corpus de análise é limitado, o que impossibilitou algumas refle- xões. Pesquisas futuras são necessárias para determinar o escopo desses usos, o caráter morfêmico dos termos disponíveis para essa marcação e seus contextos de predileção. Sugerimos também que a marcação de masculino e feminino na Libras não forma um sistema de gênero. Felipe (2002) faz uma análise dos classificadores en- quanto elementos de um sistema de flexão de gênero. Nesse sentido, de acordo com a autora, haveria na Libras o gênero gramatical baseado em outras caracterís- ticas semânticas (não relacionadas a sexo). Mas essa é uma discussão que foge ao escopo deste capítulo. Referências AIKHENVALD, Alexandra. Y. Classifiers. A typology of noun categorization devices. Oxford: Oxfor University Press, 2000. 49 Parte I – Estudos Linguísticos CAPOVILLA, F. C.; RAPHAEL, W. D.; MAURÍCIO, A. C. L. Novo Deit-Libras: Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue da Língua de Sinais Brasileira. Volume 1: Sinais de A a H. 3º edição revisada e ampliada. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. CAPOVILLA, F. C.; RAPHAEL, W. D.; MAURÍCIO, A. C. L. Novo Deit-Libras: Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue da Língua de Sinais Brasileira. Volume 2: Sinais de I a Z. 3º edição revisada e ampliada. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. CARNEIRO, Bruno Gonçalves. Marcação de masculino e feminino na libras. In: AZERÊDO, Anabel Medeiros de et al. (Org.). Caderno de resumos do X Congresso Internacional da ABRALIN – Pesquisas linguísticas e compromisso político. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2017, p. 246-247. CARVALHO, D. S.. O ESTATUTO MORFOSSINTÁTICO DE DEFINITUDE. In: Carvalho, Danniel da Silva; Teixeira de Sousa, Lílian. (Org.). Gramática Gerati- va em perspectiva. 1ed.São Paulo: Blucher, 2018, v. 1, p. 25-46. COBERTT, G. Gender. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. COELHO, Lia Cláudia. “Gênero” masculino e feminino na libras. 2022. 65 fls. Dissertação (Mestrado em Letras) – Campus Universitário de Porto Nacional, Universidade Federal do Tocantins, Porto Nacional, 2022. EVANS, Nicholas; BROWN, Dunstan; CORBETT, Greville. The semantics of gender in Mayali: partially parallel systems and formal implementation. Langua- ge, n. 78, p. 111-155. FELIPE, Tânia Amara. Sistema de flexão verbal na libras: os classificadores en- quanto marcadores de flexão de gênero. Anais... Congresso Congresso Nacional do INES, 2002. FERREIRA, Lucinda. Por uma gramática de línguas de sinais. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2012. HONORA, M.; FRIZANCO, M. L. E. Livro Ilustrado de Língua Brasileira de Sinais: desvendando a comunicação usada pelas pessoas com surdez. São Paulo: Ciranda Cultura, 2009. KROEGER, Paul R. Analyzing Grammar. An Introduction. Cambridge: Cam- brigde University Press, 2005. MASSONE, M. I.; JOHSON, R. E. Kinship Terms in Argentine Sign Language. Sign Language Studies, vol. 73, winter, 1991. OSUGI, Yutaka. The semantic status of ‘INDEX + MALE’ in Nihon Shuwa (Japo- nese Sign Language). Japonese Journal of Sign Linguistics, v. 15, n. 1-2, p. 1-14, 1999. SAGARA, Keiko; ZESHAN, Ulrike. 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Sign Language Studies, Washington, v. 3, n. 2, p. 157-212, winter, 2003. 51 Parte I – Estudos Linguísticos 3 Perfis linguísticos de Codas brasileiros Gilmara Jales da Costa Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Ronice Muller de Quadros Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) 1 Introdução Os filhos ouvintes de pais surdos são chamados de Codas, conforme a Or- ganização Internacional estabelecida nos Estados Unidos: Children of Deaf Adults (CODA)1. “O termo CODA é na verdade uma abreviação de origem norte-ameri- cana que corresponde a Children Of Deaf Adults, utilizada por essa organização internacional que desenvolve trabalhos envolvendo filhos de pais surdos” (Silva, 2016, p. 33). Assim, o termo Coda passou a se referir aos filhos de pais surdos, terminologia difundida internacionalmente, devido a criação da organização in- ternacional CODA. Esta pesquisa busca delinear como são as relações dos Codas bilíngues com a língua brasileira de sinais (Libras) e o português, a fim de verificar as práticas lin- guísticas, as atitudes diante das relações com as comunidades em que se inserem. Os filhos de pais surdos que adquirem a Libras, sendo uma língua de herança, são crianças bilíngues que crescem em uma família ou em uma comunidade em que a língua de sinais é compartilhada, vivendo em um país de língua falada, o portu- guês (Quadros, 2017). Para Souza (2015), o Coda, geralmente, cresce em um ambiente em que se adquire a língua de sinais naturalmente, porém, ao sair de sua casa, também, sairá de um universo específico, e se confrontará com outro que apresenta carac- terísticas diferentes, sendo o português a língua principal. Os Codas são crianças bilíngues que estão inseridas nas comunidades surdas, diferente das crianças ou- vintes filhas de pais ouvintes. As crianças ouvintes, filhas de pais surdos, repre- 1 Acesse em: codabrasil.blogspot.com 52 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 sentam uma população especial que nos permite buscar respostas sobre as bases linguísticas e cognitivas da linguagem, bem como o processo da linguagem em si, isso porque essas crianças estão inseridas em lares onde uma língua de sinais é o principal meio de comunicação, assim como a língua falada que é utilizada por irmãos, parentes, vizinhos e babás (Neves, 2013). Este presente estudo se ocupa em apresentar esses bilíngues, sendo chama- dos de falantes ou sinalizantes de língua de herança. Logo, como Codas bilíngues bimodais, traçamos as relações entre as línguas e as formas de comunicação que se desenvolvem, atrelando-se às emoções compreendidas culturalmente, indepen- dentemente de serem com surdos e/ou ouvintes. 2 Children of Deaf Adults – Coda(s) Diante de todo histórico linguístico da Libras, não seria diferente a dissemi- nação da língua por meio familiar, como, por exemplo, por meio dos filhos ouvin- tes de pais surdos, esses chamados de Codas. Devido ao termo ter sido amplamen- te disseminado, pela organização dos Codas estadunidenses, ele ficou conhecido internacionalmente. Gomes (2018) explica que essa organização mostrou que, nos Estados Unidos, noventa por cento de filhos de pais surdos são ouvintes, fato de- terminante para a criação de sua identidade, através de depoimentos que afirmam ser esta uma característica nova desses sujeitos, já que eles não se consideravam nem surdos e nem ouvintes, mas, sim, Codas. Os Codas adquirem a língua de sinais, normalmente, em casa, com os pais, já com o restante da sociedade, que não ésurda sinalizante, interagem como fa- lantes da língua local do país. Para descrever esse cenário, os pesquisadores da área utilizam o termo heritage signer (língua de herança) (Lillo-Martin et al., 2016, tradução nossa). No caso do Brasil, a língua voltada para a sociedade, fora do lar, seria o português e a língua usada no lar, a Libras (Gomes, 2018). Nascer em uma família surda, em meio a uma sociedade de ouvintes, é o acontecimento que legitima a existência dos Codas como herdeiros. Os Codas, muitas vezes, tomam consciência do terceiro espaço quando conversam sobre isso nos encontros de Codas, o encontro Coda-Coda, o encontro com o outro igual (Quadros, 2017). Esse terceiro espaço é uma espécie de outra construção identi- tária, um lugar ainda em definição para a criança que habita em dois universos: ouvinte e surdo. Todo ano, no Brasil, há o encontro de Codas, sendo essencial nas relações entre os Codas, uma vez que nele se estabelecem as identidades que ainda estão em processo de amadurecimento. De acordo com Quadros (2017), no Brasil, os encontros de Codas se iniciaram, em 2013, no Rio de Janeiro. Desde então, esses encontros ocorrem anualmente. Esse encontro é esperado por muitos dos Codas, pois é uma oportunidade de se encontrarem e compartilhar a língua e a cultura dos surdos brasileiros e, em especial, compartilham a experiência de ser Coda. As experiências vivenciadas e compartilhadas, em cada encontro, constituem mo- 53 Parte I – Estudos Linguísticos mentos únicos de interação que se estabelecem a partir do que é partilhado, do que é comum, do que é igual. Esse igual, apesar de ser diferente para cada um, é o que garante a relação de identidade entre os Codas (Quadros, 2017). O encontro Coda foi criado pois, geralmente, as associações, clubes e or- ganizações de surdos partilhavam de uma perspectiva que poderíamos chamar de “ponto de encontro” e não de uma socialização dos filhos com a comunidade ouvinte e surda. Em consequência destas situações, os Codas estabeleceram as primeiras marcações sociais para que as pessoas nesta condição passassem a ado- tar nos EUA o nome da instituição para se autorreferenciar. Conforme Preston (1994), o encontro Coda-Coda é mencionado com alívio, como a possibilidade de falar sem ter que explicar o fato de ser filho de pais surdos. Nas histórias desses Codas, parece bastante recorrente a frustração de ter que explicar o que significa ter pais surdos para as pessoas que não fazem ideia do que seja ser surdo, isto é, a maioria delas. Com os Codas, isso se torna desnecessário. A maioria deles teve que lidar com a mesma situação que impacta a constituição de suas identidades: seus pais são surdos e eles são ouvintes. Os Codas, com ambos os pais surdos, tiveram mais contato com a língua de sinais, viram seus pais usarem a língua de sinais com mais intensidade, ao se comu- nicarem um com o outro, e conheceram outros interlocutores surdos com mais fre- quência do que os Codas de famílias com somente um dos pais surdo. Deste modo, os Codas de famílias, em que apenas um dos pais é surdo, tiveram uma experiência de comunicação mista entre língua oral-auditiva e visuo-espacial e, de maneira geral, tiveram menos contato com as comunidades surdas (Gomes, 2018). A criança tem oportunidade de contato com as duas línguas e que muitas vezes a exposição com menos frequência a língua de sinais torna a língua falada sua língua dominante. Apesar de vários Codas serem identificados como pertencentes a uma co- munidade de surdos, fica muito evidente que as experiências vivenciadas por eles apresentam muita diversidade. Alguns filhos de pais surdos conversam com seus pais sem usar uma língua de sinais, gesticulam a boca de forma a garantir uma maior visibilidade, outros misturam os sinais com a fala ou usam a língua de si- nais. Essas diferentes formas de se comunicar com os pais se instauram em cada família de acordo com a forma como os pais lidam com as línguas e estabelecem a relação com os filhos ouvintes. A experiência desses pais com as línguas também parece impactar a forma como os seus filhos estabelecem sua relação com eles. Os Codas, considerados bilíngues bimodais equilibrados, em geral, tiveram pais surdos extremamente positivos em relação à língua de sinais e que se sentiram à vontade para conversar com seus filhos nessa língua. As formas como os indiví- duos, que não são surdos, estabelecem a relação com as línguas também parece ter impacto nas formas com as quais os Codas se relacionam com as línguas e usam mais ou menos a língua de sinais (Quadros, 2017). Para Gorski e Freitag (2010), o uso simultâneo entre duas línguas (línguas falada e português sinalizado), apesar de proposto pela comunicação total, não tem respaldo teórico. Na 54 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 verdade, tal conciliação nunca foi e nem poderia ser possível, devido à natu- reza extremamente distinta das duas línguas em questão. Sendo assim, não demorou muito para que a comunicação total cedesse lugar ao bilinguismo. (p. 17). Petitto et al. (2001) afirmam que as crianças bilíngues são sensíveis ao in- terlocutor, ou seja, escolhem a língua-alvo de acordo com quem está interagindo. No caso específico das crianças bilíngues bimodais, as pesquisas verificam que o desenvolvimento linguístico é alcançado em cada língua, de forma consistente, assim como observado em crianças bilíngues monomodais (Petito et al., 2001). Góes (1994) afirma que [...] o uso simultâneo de uma língua oral e uma língua de sinais é impraticá- vel se quer preservar a estrutura das duas. E chama a atenção para outro in- dicador da impossibilidade e ajuste fala-sinais: a plena simultaneidade não poderia existir também porque expressões faciais e movimentos da boca, que estão implicados em muitos sinais, são incompatíveis com a articulação oral das palavras e eles correspondentes. (p. 159). Nesse sentido, Preston (1996) afirma que a criança Coda cresce, natural- mente, na convivência com seus pais, sem questionar se existe algo de “anormal” acontecendo com ela pelo fato de usar duas línguas – a língua de sinais em casa e a língua oral com ouvintes fora dela –, pois, a princípio, ocorre um desenvolvimento natural. Estes indivíduos (ouvintes, filhos de surdos) transitam por duas cultu- ras e possuem duas línguas correspondentes uma a cada grupo. Sendo assim, são consideradas pessoas bilíngues, devido à exposição a duas línguas diferentes com modalidades distintas: uma língua falada (português, inglês etc.) e uma língua si- nalizada (no caso dos brasileiros, a Libras); e desde o seu nascimento já adquirem características específicas dos Codas, ou seja, apresentam e desenvolvem duas mo- dalidades distintas até chegarem à produção das línguas (Quadros; Cruz, 2011). Em suma, os Codas possuem acesso à Libras e ao português, atravessando zonas de contato, fronteiras linguísticas e culturais, reconhecendo a sua identidade e, os aspectos essenciais da língua de herança. Considerando isso, neste capítulo, apresentamos o recorte de uma pesquisa que ampliou a investigação que vinha sendo realizada sobre sobreposição de bilíngues bimodais: síntese de línguas, com Codas bilíngues, a fim de identificar seus perfis linguísticos em meio a tais contex- tos de práticas linguísticas com a Libras e o português. 3 Contextualização metodológica A pesquisa se constitui na abordagem qualitativa com aspectos quantita- tivos, quali-quanti, de cunho explicativo que é definida como aquela que tenta explicar os fenômenos, não se restringindo apenas a descrevê-los (Alves-Mazzotti; Gewandsznajder, 2004). Buscando compreender as particularidades e experiên- cias sobre o tema em questão, fazendo um enfoque linguístico, apresentando os 55 Parte I – Estudos Linguísticos princípios, qualidades e características do objeto de estudo, fazendo uma análise comportamental entre os indivíduos, com recursos e técnicas nas formas de esta-tísticas numéricas com informações obtidas durante a coleta de dados. De acordo com Günter (2006, p. 204), a pesquisa qualitativa tem uma gran- de flexibilidade e adaptabilidade, uma vez que “ao invés de utilizar instrumentos e procedimentos padronizados, [...] considera cada problema objeto de uma pes- quisa específica para a qual são necessários instrumentos e procedimentos especí- ficos”. Já a pesquisa quantitativa, pressupõe a utilização de instrumentos padroni- zados, segue um padrão linear no decorrer de toda investigação, seguindo projetos já bem detalhados inicialmente (Tomitch; Tumolo, 2013). A pesquisa se constitui pelo método indutivo que, de acordo com Cruz e Ribeiro (2003, p. 34), “baseia-se na generalização de propriedades comuns a certo número de casos, até agora observados, a todas as ocorrências de fatos similares que se verificarão no futuro. Assim, o grau de confirmação dos enunciados traduzidos depende das evidências ocorrentes”. Com um levantamento bibliográfico, trazendo aspectos relevantes para a pesquisa que, de acordo com Tomitch e Tumolo (2013), tem como objetivo familiarizar o pesquisador com a literatura pertinente ao seu objeto de estudo e que lhe dá subsídios técnico-metodológicos para formular cor- retamente suas hipóteses e/ou questões de pesquisa e realizando uma observação direta das entrevistas do corpus de sobreposição de línguas, da Libras e do portu- guês, captando as explicações e interpretações da realidade dos Codas, aplicando um questionário linguístico. Conforme Dörney (2003, p. 01 apud Silva, 2018, p. 87), questionários, depois de testes de proficiência, são o recurso mais utilizado em pesquisas em L2 e oferecem inúmeras vantagens em seu uso, tal como a possibilidade de obter um montante significativo de dados em pouco tempo e com custos baixos. Além disso, os questionários oferecem a vantagem de acessar determinados fatores não linguísticos, como os aspectos atitudinais da dominância, história linguística dos participantes etc. (Grosjean, 1998; Gertken et al., 2014; Lim et al., 2008). A técnica da pesquisa foi experimental, pois permite ao pesquisador criar uma situação considerada ideal, na qual ele pode manipular e controlar variáveis para testar suas hipóteses através de um experimento. Um experimento que pode então ser definido como uma investigação altamente planejada, na qual o pesqui- sador procura evidências para confirmar ou refutar suas hipóteses sobre a relação entre duas ou mais variáveis (Moreira, 2002). Uma pesquisa que não necessaria- mente é feita em laboratório, mas em ambientes criados pelo pesquisador e que se torne melhor controle para suas verificações. A análise de dados da pesquisa, que deu origem a este capítulo, faz parte do projeto de sobreposição de bilíngues bimodais: síntese de línguas, projeto rea- lizado sob a responsabilidade da professora Dra. Ronice M. de Quadros, o qual foi aprovado pelo Comitê de Ética2, que tem como base a investigação dos tipos de 2 Projeto de sobreposição Bilíngue bimodal, sendo a pesquisadora responsável Ronice Müller 56 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 estruturas de língua usados por Codas e ajudará a entender melhor como a mente humana está organizada para a linguagem, especificamente, quando a pessoa tem duas línguas, neste caso, uma língua de sinais e outra falada. Complementamos os dados coletados por meio de vários instrumentos de avaliação (julgamento de sentenças, produção de narrativas, avaliação comparativa de vocabulário etc.) com um instrumento elaborado no escopo da pesquisa relatada neste artigo. O instrumento elaborado compreende o questionário linguístico para Co- das Bilíngues (QLCB). Conforme Dörney (2003), pensar nos processos gerais do questionário, como “duração, o formato e as partes principais, escrever itens/per- guntas eficazes e elaborar um conjunto de itens, selecionar e sequenciar os itens, escrever instruções e exemplos apropriados, pilotar o questionário e realizar análi- se de item” (Dörney, 2003, p. 16-17). Assim, optamos pelo questionário on-line no Google Forms, pois é mais abrangente, alcançando os Codas de diferentes regiões brasileiras. Com isso, enviamos para os participantes que fizeram parte da pes- quisa de “sobreposição de bilíngues bimodais: síntese de línguas”. O questionário on-line pode ter diversas vantagens devido ao seu maior alcance e a possibilidade de se compreender os perfis que se adequam a esse tipo de pesquisa (Wilson; De- waele, 2010). Na elaboração do questionário, foi necessário anexar o termo de compro- misso3, com orientações do procedimento da pesquisa, em que o participante teve a autonomia de aceitar ou recusar o convite para responder às quarenta questões escritas em português. Neste capítulo, partindo das análises teóricas e do exame de como os bilín- gues bimodais usam a sua língua de sinais e sua língua falada, ao mesmo tempo ou separadamente, já desenvolvidas no âmbito do projeto supracitado, apresenta-se uma comparação entre a fluência na Libras e no português de bilíngues bimodais em relação ao seu domínio linguístico e língua de conforto. Diante das relações entre as línguas, em que bilíngues que são usuários das línguas para diferentes propósitos, em diferentes domínios e com diferentes pú- blicos, buscou-se responder a seguinte questão: Quais são os perfis e dominâncias linguísticas dos Codas, conforme as relações entre as línguas que usam? Servindo como base para o estudo em questão, que visa esclarecer os fato- res essenciais das escolhas que os Codas fazem em relação às línguas, destacando a dominância linguística, as políticas linguísticas e o conceito de bilinguismo. E, considerando o acesso aos Codas bilíngues, optamos pelo questionário eletrônico on-line, a fim de conhecer o perfil linguístico de Codas bilíngues, que usam a Li- bras e o português no cotidiano. de Quadros para o banco de dados do Núcleo de Pesquisas em Aquisição de Línguas de Si- nais da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Projeto este que teve parecer aprova- do de nº 2.657.498, que consta em anexo, seguindo a resolução 510/2016 e com o processo nº 84511918.0.0000.0121. 3 Termo de compromisso e projeto de pesquisa aprovado pelo comitê de ética, com o parecer de nº 4.193.819. 57 Parte I – Estudos Linguísticos Foram elencados os seguintes aspectos para uma melhor análise de dados separado por módulos: (1) história linguística; (2) comunicação (uso da Libras e do português) em diferentes domínios; (3) proficiência linguística (autoavaliação); e (4) atitudes linguísticas, fazendo com que as perguntas sejam direcionadas, pelas experiências linguísticas, ao bilinguismo (português e Libras), procurando, assim, responder o presente estudo. Além disso, Grosjean (1998) aborda que o uso dos questionários, no que tange às pesquisas sobre o bilinguismo, permite o acesso a informações importan- tes para o delineamento do perfil dos participantes, tendo em vista as experiências bilíngues. Além dos aspectos atitudinais da dominância, história linguística etc. Dessa forma, o questionário foi pensado para gerar dados necessários para se atin- gir a meta e os objetivos do projeto. Buscamos conhecer a diversidade de Codas bilíngues, suas histórias e suas práticas linguísticas com a Libras e com o português, juntamente com os critérios de análise das entrevistas, sendo considerados os seguintes itens para obtenção das respostas desta pesquisa: (i) descrever o perfil linguístico dos Codas bilíngues, destacando a sua dominância linguística diante das atitudes, valores e espaço dian- te das línguas, Libras e Português; (ii) descrever e identificar os domínios de uso da Libras e do português por Codas; (iii) descrever os aspectos relativos às atitu- des, aos valores e aos espaços linguísticos dos Codas; (iv) relatar a relação do bilin- guismo em Codas, tendo em vista o processo de aprendizagem nas duas línguas e o contexto bicultural em quetransitam; (v) identificar os níveis de proficiência na língua de sinais dos Codas investigados e analisar as duas correlações por idade e tempo de contato; e (vi) descrever perfis de dominância linguística dos Codas. 4 Apresentação dos dados da pesquisa Os dados analisados, neste capítulo, contam com o suporte dos dados da pesquisa de sobreposição, sob a coordenação da Profa. Ronice Müller de Quadros, que possui dados de entrevistas já realizadas. Assim, a esses dados já obtidos, serão incluídos os dados do questionário que ajudará a esclarecer as questões apresen- tadas acima. As atividades do projeto, “sobreposição de bilíngues bimodais: síntese de línguas”, foram gravadas com 22 Codas bilíngues bimodais, que usam a língua de sinais e a língua falada ao mesmo tempo ou separadamente. Nesta pesquisa, os participantes serão os mesmos da sobreposição e serão recrutados por e-mail com os dados já obtidos, esses 22 Codas que já foram entrevistados, serão contactados, por e-mail, para responder um questionário mais detalhado sobre suas produções em Libras e em português. Entre essas entrevistas existem perguntas de como o sujeito se sente em re- lação a cada língua, com gravação em média de 5 a 10 minutos cada. Assistimos às vinte e duas entrevistas e notamos que 90% (19) deles, se sentem melhor se comuni- cando em Libras do que em português; e que 10% (3) sentem-se confortáveis com o 58 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 português e com pouca afinidade com a Libras. Com base nessas respostas, podemos notar que de acordo com as atitudes linguísticas existe uma dominância linguística. Na mesma entrevista, é perguntado se o participante se considera bilíngue. E todos tiveram uma resposta positiva. Nesse ponto, podemos destacar que os Codas são bilíngues bimodais com diferentes aspectos linguísticos quanto à dominância. Diante disso serão trazidos os principais nortes a respeito do histórico da comunidade surda, cultura surda e as políticas linguísticas que entrecruzam com as relações dos filhos ouvintes de pais surdos que obtêm duas línguas, sendo essas a língua de sinais e o português, essa última majoritária no Brasil. Sendo assim, os Codas tornam-se bilíngues e, nesta condição, destacando a importância de uma educação bilíngue e relacionando com os principais autores os conceitos, situa- ções, vivências e todo o seu processo na constituição de seres bilíngues, bimodais e biculturais. Os Codas bilíngues estão sendo chamados pelo dia da semana e a numera- ção de acordo com a ordem das entrevistas ocorridas no referido dia. Sendo no- minados e organizados conforme o projeto de sobreposição de bilíngues. Foram exploradas as perguntas que buscam responder às questões referentes à relação das línguas, português e Libras, quanto a sua dominância. Quadros (2017 apud Pres- ton, 1994) relata que as experiências das crianças ouvintes de pais surdos, diante das entrevistas, é bastante singular, pois explora a sua cultura além de ampliar o conhecimento do universo surdo e ouvinte em zonas de contato. Nossa meta foi estabelecer um olhar para as fronteiras entre os universos surdos e ouvintes, par- tindo das experiências dos Codas bilíngues (Quadros; Massutti, 2007). É por meio do convívio com os pais surdos sinalizantes que as crianças bilíngues adquirem a Libras. Quadros e Massutti (2007, p. 253), em entrevista com uma Coda, contam que ela relata o seu processo de aprendizado da Libras, por meio de familiares: “eu cresci em uma família de surdos, sim, eu tinha um monte de surdos na minha família... primos, tios, tias e meus pais tinham muitos amigos surdos que costumavam nos visitar e vice-versa [...]”; e conclui: “Eu aprendi a si- nalizar com essas pessoas na minha casa, na casa delas e, também, na associação de surdos”. Essas experiências de convívio com familiares e amigos surdos contri- buem para o seu desenvolvimento natural da língua. 5 Análise e resultados Os dados analisados no presente estudo se darão pela pesquisa de sobre- posição sob a coordenação da Prof. Ronice Müller de Quadros, que já realizou as entrevistas e com os dados já obtidos, assim como incluirá um questionário que ajudará a esclarecer as questões elencadas neste trabalho, questionário para o qual está sendo incluído um novo termo de consentimento. As atividades do projeto de sobreposição de bilíngues bimodais: síntese de línguas foram gravadas com 22 Codas bilíngues bimodais, que usam a língua de sinais e a língua falada ao mesmo tempo ou separadamente. Nesta pesquisa os 59 Parte I – Estudos Linguísticos participantes serão os mesmos da sobreposição e serão recrutados por e-mail com os dados já obtidos pelo coordenador da pesquisa de sobreposição que é a atual orientadora deste projeto. Na pesquisa atual que configura uma pesquisa de mes- trado, esses 22 Codas que já foram entrevistados no projeto anterior, serão recon- tactados por e-mail para responder um questionário mais detalhado sobre suas produções em Libras e em português. Entre essas entrevistas existem perguntas de como o sujeito se sente em relação a cada língua, com gravação em média de 5 a 10 minutos cada. Assisti às vinte e duas entrevistas e pude notar que 90% (19), se sentem melhor se comuni- cando em Libras do que em Língua Portuguesa; e que 10% (3), se sentem confor- táveis com a língua portuguesa e com pouca afinidade na Libras. Com base nessas respostas, podemos notar que de acordo com a sua atitude existe uma dominân- cia linguística entre as línguas. Na mesma entrevista é perguntado se o sujeito se considera bilíngue, e todos tiveram uma resposta positiva. Nesse ponto, posso destacar que os Codas são bilíngues bimodais com diferentes aspectos linguísticos quanto à dominância. As análises serão feitas pela autora como parte integrante da pesquisa, respondendo, assim, a questão problema deste estudo. Diante disso serão trazidos os principais nortes a respeito do histórico da comunidade surda, cultura surda e as políticas linguísticas que entrecruzam com as relações dos filhos ouvintes de pais surdos que obtêm duas línguas, sendo essas a língua de sinais e a língua portuguesa, essa última majoritária no Brasil. Sendo assim, os Codas adquirirem um diferencial em relação aos filhos ouvintes de pais ouvintes, se tornando bilíngues e, nesta condição, destacando a importância de uma educação bilíngue para os Codas e relacionando com os principais autores os conceitos, situações, vivências e todo o seu processo na constituição de seres bilíngues, bimodais e biculturais. Os Codas bilíngues aqui estão sendo chamados pelo dia da semana e a nu- meração de acordo com a ordem das entrevistas ocorridas no referido dia. Sendo nominados e organizados conforme o projeto de sobreposição de bilíngues. Foi explorado as perguntas que busca responder as questões referentes a esta pesquisa que é a relação das línguas, português e libras, quanto a sua dominância. Quadros (2017, apud Preston 1994) relata que as experiências das crianças ouvintes de pais surdos diante das entrevistas é bastante singular, pois explora a sua cultura além de ampliar o conhecimento do universo surdo e ouvinte em zonas de contato. As entrevistas aqui foram traduzidas das filmagens do corpus linguístico da pesquisa de sobreposição de bilíngues. Nossa meta é estabelecer um olhar para as fronteiras entre os universos surdos e ouvintes partindo das experiências dos codas bilíngues (Quadros e Massutti, 2007). O acesso escolar entre os codas se torna marcante devido ao “novo uni- verso” o espaço ouvinte, pois sai do contato familiar no contexto visuoespacial (Libras), partindo para o oral/auditivo (português) e, diante dos relatos nos depa- ramos com as semelhanças entre os codas. Quadros (2017), relata que vivenciou uma situação parecida: 60 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Quando fui pela primeira vez à escola, eu não usava português, embora compreendesse essa língua. Eu conviviaquase que exclusivamente com surdos. Apesar de ter uma irmã mais velha que falava português, nós usá- vamos praticamente apenas a Libras em casa. Lembro que eu não gostava da escola. Fiquei doente várias vezes durante esse primeiro ano, e, assim, o ano foi quase perdido para mim. Acabei me fortalecendo para iniciar o ano seguinte em uma nova escola, da qual eu gostava e, nesse espaço, eu já conseguia me expressar em português. Hoje acredito que eu não gostava da escola porque a escola parecia não saber nada sobre mim e sobre minha família. Não era o meu lugar, pelo menos não refletia nada sobre o lugar a que eu pertencia. Era um ambiente completamente diverso em que todos os sentidos estavam sendo postos em português. A Libras não era considerada língua. Eles pareciam que “olhavam” meus pais como “pobres coitados que eram surdos, não como gente normal. (Quadros, 2017, p.152-153). Compreender que a escola tem um papel fundamental no processo de aprendizagem do aluno é essencial, porém a instituição desconhece o familiar do aluno, o que desconhece a sua língua e a cultura. Sônia também viveu situações em que a escola não fazia a interação com os seus familiares surdos, Alguns acontecimentos na escola foram, de certa forma, perversos. Quando havia atividades que envolviam as famílias, a professora avisava a Sonia de que seus pais não precisavam participar dizendo que a comunicação com eles era muito difícil. A professora sempre dizia que era difícil conversar com seus pais. Isso não era bom. Sonia compartilhava esses acontecimen- tos com seus pais, e sua mãe dizia que era porque a professora não sabia a língua de sinais e, portanto, não teria como conversar com ela. A mãe de Sonia foi a uma reunião na escola e, depois, nunca mais participou de outra reunião. A escola também não exigia a participação da família de Sonia nas reuniões de pais. Isso aconteceu também com seus irmãos. Sonia com- preendeu que isso acontecia porque a escola não era capaz de estabelecer a comunicação com seus pais. A incapacidade era da escola, não de seus. (Quadros, 2017, p. 162-163). A história de Sonia se entrecruza com outros codas que viveram a sua in- fância no contato com familiares e amigos surdos. A mesma situação ocorre com a Maitê, pois ela se percebeu entre “dois mundos” diferentes na escola com expe- riências complicadas, “Em seus relatos, ela sempre dizia que não gostava da escola, se sentia triste, porque era provocada pelos colegas” (Quadros, 2017, p. 174). Se torna recorrente as fragilidades da escola diante dos filhos ouvintes de pais surdos, a escola é o primeiro espaço no qual as crianças têm o contato com a língua, porém no caso dos codas bilíngues que já tem uma primeira língua no contexto familiar, acaba se deparando com as diferenças linguísticas ao entrar na escola. Segundo Quadros (2017) nas biografias de codas, têm o relato da Léa e a Riva, as duas relatam que “na escola, tanto a Léa como Riva tiveram algumas difi- culdades. Léa relata que ingressar no ensino médio, antigo ginásio, foi muito difí- cil, pois, na época, era exigida a realização da prova” [...] “Léa apresentava muita 61 Parte I – Estudos Linguísticos dificuldade no português e precisou ter aulas com uma professora particular para estudar e se preparar para essa prova” (p. 186). A Adriana e a Andréa Venancino destacam as suas realidades escolares diante da língua portuguesa. “Adriana usou exclusivamente a língua de sinais até os 5 anos de idade, quando foi para a escola. Até ir para a escola, ela não falava português” [...] “Quando chegou à escola, ela foi encaminhada para a direção, pois era surda. No entanto, foi muito difícil. A escola foi traumatizante para Adriana. Ela não compreendia por que as pessoas a olhavam com piedade” (Quadros, 2017, p. 194). A relação escolar dos codas diante das análises destaca para uma educação voltada ao bilinguismo, Quadros (2019 p.150) afirma que “a educação bilíngue reconhece as diferenças entre as línguas, as diferenças textuais, linguísticas e polí- ticas implicadas pelas comunidades envolvidas: as comunidades surdas e as comu- nidades ouvintes locais reconhecem suas culturas, identidades e línguas”. Assim, se desenvolve uma flexibilidade cognitiva nas crianças bilíngues, pois contam com um processamento de informação ativado por mais de uma língua. A educação bilíngue viabiliza a Libras como língua de instrução, os pro- fessores e alunos também precisam ser bilíngues, aqui destaco a Libras e o portu- guês. E esses professores acabam conhecendo a comunidade surda, história, expe- riências visuais, a cultura trazendo uma boa interação com os alunos usando as duas línguas, avaliando o desempenho do aluno dentro e fora da escola (Quadros, 2019). Com base nos desafios escolares apontados pelos codas diante das línguas, Libras e português, buscamos apresentar os relatos dos codas a respeito do confor- to linguístico e a importância das línguas, em sua vida. Assim, os Codas bilíngues possuem diferentes relações com as línguas, comprovando assim, as variações na dominância linguística e nas atitudes. Quadros (2019, p. 145), “o uso mais domi- nante de uma língua em relação a outra pode impactar na reestruturação das lín- guas e manter a dominância da língua mais usada. Os domínios variam e podem evidenciar uma ou outra língua como sendo mais forte”. Ou seja, a dominância depende do seu contexto de uso, tornando-se comum a fragilidade de uma das línguas. E isso acontece da mesma forma com os Codas bilíngues. O questionário linguístico para codas bilíngues foi elaborado com base na pesquisa de Silva (2018, p.91) “para descrever os perfis linguísticos de bilíngues surdos”, que buscou analisar a dominância linguística destes perfis bilíngues sur- dos, sendo por meio de um questionário on-line possibilitando uma maior quanti- dade de participantes de outras regiões. Assim, os participantes foram contatados um a um, por e-mail e WhatsApp particular da autora, enviando o link de acesso ao formulário do Google forms com as informações do termo de consentimento e as questões da pesquisa. Quanto aos respondentes do questionário, 20 aceitaram participar, sendo 17 do sexo feminino e 5 do sexo masculino. Em relação à idade, a mínima foi 20 anos e a máxima 54 anos. 62 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Com base nos dados coletados, 19 participantes afirmam ter contato com a Libras antes dos 6 anos de idade. E apenas um que foi na fase adulta. Fazendo uma relação com as entrevistas sobre o período que adquiriu a língua de sinais, 95% afirmam ter contato antes de ir para escola, ou seja, em casa com os familiares e parentes surdos, e apenas um, afirmou ter contato posteriormente por seu pai não saber a Libras, pois sendo usuário de sinais caseiros. Em relação às aquisições das línguas, com a Libras 19 codas, sendo 95% dos participantes afirmam ter adquirido em casa no contato com familiares surdos, 03 (15%) responderam que no contato com surdos em associações, federações etc., 02 (10%) em cursos de Libras e 01 (5%) na igreja também. Com a língua portuguesa, 13 (65%) afirmam ter aprendido na escola, com colegas e professores ouvintes, 06 (30%) no contato com ouvintes em outros contextos, 02 (10%) em casa, no contato com familiares surdos e 02 (10%) fora da escola, com amigos ouvintes. O restante cada um com 01 (5%), na escola, com colegas ouvintes, em casa no contato com familiares ouvintes, em casa com familiares, em casa com familiares ouvintes e familiares. A interação escolar é essencial a todos, no caso dos codas bilíngues, o entrar em um universo ouvinte, fora da sua casa, é bastante significativo, pois existe o encontro com o diferente, o estranhamento com as línguas, e isso marca bastante o coda devido a escola desconhecer a comunidade surda e a Libras e a falta de acolhimento desses sujeitos. As opções de uma escola comum sem surdos e sem Codas, foram 13 res- pondentes, cerca de65% dos participantes e numa escola regular com a maio- ria ouvinte foram 07, ou seja 35% do gráfico sobre o ensino fundamental. Assim, podemos perceber que cerca de 100% dos codas foram inseridos em uma escola ouvinte, sem acesso a Libras. Na pergunta em que idade você percebeu que tinha pais surdos, 90% dos codas perceberam antes dos 6 anos de idade e apenas 10% entre 7 e 12 anos de idade. Nenhum marcou depois dos 13 anos e nem na fase adulta após 18 anos de idade. Já na pergunta se “você era intérprete dos seus pais”, todos responderam que sim, frequentemente. Nenhum coda selecionou, sim, raramente; não, não era necessário ou nunca. Destaco que a maioria dos codas participantes são maiores de 18 anos, ou seja, muitos tiveram que ser “intérpretes” de seus pais desde a infância pela falta de acessibilidade antes da Lei de Libras 10.436/02 que regulamenta a Língua Brasi- leira de Sinais. Assim, ressalto a importância de os pais surdos terem seus direitos linguísticos, como a comunicação e aos intérpretes de Libras, fazendo com que os filhos assumam o papel de filhos. Prosseguindo a respeito das interpretações entre os familiares, fizemos a pergunta: “em que idade você começou a ter uma percepção de que estava inter- pretando para os seus pais?”, sendo que 30% dos codas afirmam ter esse reconhe- cimento antes dos 6 anos de idade, 55% entre 7 e 12 anos de idade e 15% depois dos 13 anos de idade. Sendo nenhum na fase adulta. Os Codas bilíngues quando criança não percebem que estão interpretando para os seus pais, agimos como se estivéssemos conversando e dialogando com os 63 Parte I – Estudos Linguísticos nossos pais e ouvintes, isso acontece de forma espontânea e sem pressão. Por isso, muitos percebem que estão interpretando de fato, após a fase infantil. Segundo Silva (2016), o coda não tem a prática de interpretar e desconhece os processos interpretativos, sendo assim, muitas vezes essas crianças acabam interpretando por base familiar e cultural diante das línguas envolvidas. Diante das relações com as línguas, destacamos os aspectos da escrita dos Codas na língua portuguesa. Essa pergunta teve diferentes respostas quanto às dificuldades na escrita da língua portuguesa. Sendo, 35% sim, frequentemente e sim, raramente. E, 20% não, não era necessário e 10% nunca. Observamos aqui o empate em frequentemente e raramente, porém ambos sinalizam positivo para as dificuldades, somando 70% dos codas bilíngues sentem esse desafio e, com ape- nas 30% afirmam não sentir essa objeção, quanto a escrita na língua portuguesa. Grosjean (2008) descreve que as habilidades com as duas línguas são dadas de diferentes formas, quando um determinado indivíduo convive em casa com uma língua minoritária e a partir de outro momento a língua majoritária é adquirida, o sujeito pode apresentar os diferentes domínios em relação às línguas. Como podemos perceber o nível de importância das línguas são essenciais para os codas, isso tanto nas entrevistas como no questionário, podemos notar essa relação na vida cotidiana dos bilíngues, isso demonstra a sua identidade, a comunicação, as emoções e a aprendizagem desses sujeitos. Conforme Grosjean (2008, p. 164) “Apesar da grande diversidade que exis- te entre essas pessoas, todas compartilham uma mesma característica - todas con- vivem com duas ou mais línguas”. É importante destacar a convivência com as línguas, os usos e as formas que a utilizam no cotidiano, pois diante deste aspecto que muitos codas tem os diferentes níveis de aquisição, conhecimento, uso e com- portamentos com as línguas. Os bilíngues possuem as diferentes situações de vida, propósitos e pessoas, e com isso surge a necessidade do esclarecimento sobre os diferentes usos das línguas, pois muitos bilíngues raramente desenvolvem a mes- ma fluência nas duas línguas (Grosjean, 2008). O bilíngue desenvolve os diferentes comportamentos e atitudes quando es- colhe a língua para usar em determinado tipo de comunicação, se com surdos ou ouvintes, sempre escolhem de acordo com a situação. Segundo Grosjean (2008), esses fatores liberam as diferentes atitudes e comportamentos como uma alteração de personalidade devido a mudança de língua, a principal diferença do bilíngue para o monolíngue é a mudança de línguas que geralmente mudam as culturas conforme as suas interações, enquanto o outro tem apenas uma cultura e uma língua. Dessa forma, o processo de aprendizagem das línguas se dá através da esco- la, essa que se torna fundamental para os codas, de acordo com Quadros (2007) a escola em que os codas frequentam negligenciam a perspectiva bilíngue, sendo es- sencial esse reconhecimento cultural, social e linguístico. Nesse espaço escolar se preconiza as relações entre os pais dos alunos, alunos e escola, sendo que esse pro- cesso interativo é esquecido. Os pais surdos com filhos ouvintes não frequentam a 64 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 escola devido a escola não acolher esses responsáveis, pois muitos não conhecem esse universo e nem compreendem as relevâncias dessa relação. Muitos Codas relatam as barreiras encontradas na escola por serem intér- pretes dos seus pais em reuniões, nas entrevistas a maioria coloca esse fato, por serem recorrentes. “Isso parece estabelecer uma lacuna entre sua família e a escola à qual ela, definitivamente, não pertencia. Por outro lado, ela é ouvinte e necessita- va frequentar esse espaço. Então, a zona de contato é forçada pela sociedade e tem que ser estabelecida. Isso reflete sua posição no mundo” (Quadros, 2007, p. 258). A escola reflete na relação com as línguas, tanto para os surdos como os codas, pois em casa se utiliza a Libras e na escola a língua portuguesa. Muitos codas apontam para essas barreiras, pois quando se deparam com uma nova cultura, diferente do familiar, encontram desafios que a escola desconhece. 6 Conclusão O problema que norteou a pesquisa foi como se dão as relações entre as línguas dos Codas e quais os perfis linguísticos dos Codas bilíngues bimodais, especialmente os perfis de dominância linguística. Assim, tivemos por objetivo ge- ral descrever o perfil linguístico dos Codas bilíngues, destacando a sua dominân- cia linguística diante das atitudes, valores e espaço em relação às línguas, Libras e português, e procuramos seguir os objetivos específicos que foram: investigar os aspectos relevantes das línguas adquiridas por filhos ouvintes de pais surdos (Codas) e a possível influência da língua de sinais, como língua de herança, na relação com o português oral/escrito; relatar a relação do bilinguismo nos sujeitos Codas, tendo em vista o processo de aprendizagem nas duas línguas e o contexto bicultural em que transitam; descrever a importância das políticas linguísticas na educação de surdos e Codas, destacando todo o seu contexto histórico, influência e a educação bilíngue; identificar os níveis de proficiência na língua de sinais dos Codas investigados e analisar as suas correlações por idade e tempo de contato; descrever perfis de dominância linguística dos Codas. Os filhos ouvintes de pais surdos, que são bilíngues bimodais, possuem duas modalidades linguísticas, sendo elas a oral-auditiva e a visual-sinalizada, e que faz com que a criança Coda tenha acesso a dois mundos culturais distintos. Além disso, a bimodalidade linguística contribuem para que ela se torne “ouvido” e “voz” dos seus pais, sendo motivada, mesmo que indiretamente, a ser um tradu- tor e intérprete dos seus pais e de outras pessoas surdas, desde a mais tenra idade. Antigamente, os surdos não tinham direito ao tradutor e intérprete de Li- bras-português em sala de aula, as crianças surdas tinham, quiçá ainda tenham, atrasos linguísticos na formação da sua língua natural e na do português, refletidos em baixos desempenhos e pouco aprendizado efetivo. As comunidades surdas se mobilizaram em prol da educação de surdos, juntamente com organizações da sociedade civil,e foi aprovada a Lei n.º 10.436/2002, que reconhece a língua de sinais, como língua do povo surdo. A Libras é de extrema importância para pes- 65 Parte I – Estudos Linguísticos soas surdas brasileiras e a forma de acesso à educação de qualidade, portanto, sua obrigatoriedade de oferta está ligada aos direitos de aprendizagem do surdo. A preocupação com um lugar profissional, nos faz recordar nossa infância, enquanto “intérprete precocemente”. Nossas lembranças nos conduzem ao lugar da afetividade, de saber de nossa identificação com as comunidades surdas, de gostar de estar em meio aos surdos, atender telefones para eles, para nós era algo natural. Adorávamos frequentar a associação de surdos para conversar e brincar. Hoje, compreendemos que essa sempre foi nossa cultura, nossa comunidade, é onde podíamos e ainda podemos ser nós mesmas. Na medida em que fomos crescendo, adentrando na adolescência, começa- mos a perceber a existência de uma outra cultura além da surda, que o mundo dos ouvintes é uma porta imensa, que precisamos cruzar, enquanto Codas. Para nós, foi confuso no início dessa fase, mas fomos começando a se adaptar, a se conhecer como um sujeito bilíngue e que vive em dois universos distintos, que, por um lado os surdos estavam em busca de acessibilidade, inclusão na educação e uma melhor relação social. E, por outro, os ouvintes ainda estavam em processo de conhe- cimento da Libras. E, para nós, era tudo muito desconhecido, algo inexplicável. E, com o passar dos tempos, temos visto que as pessoas estão mais interessadas em aprender a Libras e que existem diversos cursos de idiomas que já incluem a Libras; os tradutores e intérpretes de Libras, tendo uma maior notoriedade, mos- trando a importância de que este profissional seja capacitado para atuar. Os Codas bilíngues, por ter uma língua de herança adquirida de forma fa- miliar pelos pais surdos, se tornam reféns de uma língua majoritária que acaba “engolindo” a Libras e priorizando o português. Os dados pontuam as barreiras encontradas pelos Codas em relação à língua majoritária e que dessa forma, os re- sultados apontam que os Codas bilíngues bimodais, de diferentes perfis linguísti- cos, apresentam níveis de dominância linguística variada, conforme os pais surdos sabem Libras, os filhos adquirem essa língua mais cedo. As relações familiares são variadas, como também os Codas dos diferentes níveis linguísticos. Referências ALVES-MAZZOTTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. 4. reimpr. 2. ed. 1999. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004. CRUZ, C.; RIBEIRO, U. Metodologia científica: teoria e prática. Rio de Janeiro: Axcel Books do Brasil, 2003. DÖRNEY, Z. Questionnaires in second language research. Mahwah, NJ: Erl- baum, 2003. GERTKEN, L. M., AMENGUAL, M., & BIRDSONG, D. Assessing language dominance with the bilingual language profile. In: LECLERCQ, P.; EDMONDS, A.; HILTON, H. (Org.) 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Com isso em mente, buscamos res- ponder às seguintes questões: (i) Como acontece a tessitura referencial em Libras?; e (ii) Como se dá o processo de significação textual, tendo em vista as escolhas lexicais do sinalizante no espaço discursivo? Com o intuito de atender o objetivo proposto, adotamos, como metodolo- gia, a pesquisa de cunho qualitativo, fundamentada em uma perspectiva de revi- são bibliográfica e documental. Assim sendo, o corpus é constituído de gravações de narrativas sinalizadasfeitas com colaboradores surdos que têm a Libras como sua primeira língua. O texto está dividido da seguinte maneira: após essa introdução, na seção a seguir, apresentamos um breve panorama da teoria que sustenta a reflexão contida neste capítulo. Na seção posterior, focamos o procedimento metodológico adota- do. Após, apresentamos o corpus de análise, indicando a construção da tessitura referencial no espaço de sinalização e as suas relações semântico-lexicais e discur- sivas. Por fim, apresentamos as conclusões, seguidas das referências. 70 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 2 Contextualização teórica 2.1 Referenciação: um processo dinâmico fundamental na tessitura textual Na perspectiva tradicional, estudiosos utilizam o termo referência para o ato de nomear objetos do mundo, concebendo-o como uma analogia de espelha- mento do real. Na perspectiva contemporânea – adotada neste capítulo –, partin- do da compreensão de língua como atividade sociocognitiva-interacional e dos estudos da Linguística Textual, pesquisadores utilizam o termo referenciação, em que as entidades designadas deixam de ser objetos do mundo, espelhos do real, e passam a ser objetos do discurso, disponíveis para utilização pelo produtor do tex- to, atualizados no contexto interacional e dependentes de conhecimentos prévios que vão sendo atualizados ao longo do processo sociodiscursivo. Em outras pala- vras, a referenciação retrata uma forma de construção e reconstrução de objetos do discurso realizados por sujeitos, em um processo de interação, o que significa dizer que carrega, entre outros aspectos, os interesses e os pontos de vista dos in- terlocutores envolvidos no processo discursivo (Koch; Marcuschi, 1998). Nesse sentido, os objetos do discurso, sendo construídos e reconstruídos discursivamente, não devem ser entendidos como se já estivessem prontos para serem utilizados e como se fossem válidos para todos os sujeitos, pois eles não são estáticos e não seguem uma norma, mas são desenvolvidos conforme o contexto de interação (Mondada; Dubois, 2003). Essa construção e reconstrução de objetos do discurso, que se constitui como um processo dinâmico fundamental na tessi- tura textual, ocorre quando um objeto é lançado no texto (Introdução) e utilizado novamente (Retomada), podendo a qualquer momento ser desativado (Desfocali- zação) e reativado no curso da progressão textual (Koch; Elias, 2006). Tendo em vista os avanços dos estudos na área, os processos referenciais – Introdução, Retomada e Desfocalização – têm sido retomados e atualizados. Nessa perspectiva, Cavalcante et al. (2010) reorganizaram-nos da seguinte maneira: I. Introdução referencial: ativação de novos referentes. II. Anáfora: “uma retomada ou continuidade referencial de uma entidade qualquer já introduzida no texto, não importa de que maneira” (Cavalcante et al., 2010, p. 237). Mais atual ainda, reforçando e ampliando essa visão, Cavalcante, Custódio Filho e Brito (2014) apontam a Introdução Referencial, a Anáfora e a Dêixis como as três categorias maiores de processos referenciais. Segundo esses pesquisadores, a Introdução Referencial ocorre no momento em que um referente é construído pela primeira vez na mente do coenunciador de um texto, sem ter sido manifesta- do, textualmente, por meio de uma expressão referencial. A partir dessa Introdu- ção, todas as outras expressões referenciais que guardarem alguma relação com tal referente podem gerar diferentes processos de retomada anafórica (Morais, 2017). 71 Parte I – Estudos Linguísticos Em tese, a anáfora se caracteriza por manter os objetos do discurso em foco, dando sustentação à coesão e à coerência textual, uma vez que é utilizada para que a temática seja processada de forma progressiva e significativa. Nesse sentido, Koch (2006, p. 131) afirma que ela é “a operação responsável pela manutenção em foco, no modelo de discurso, de objetos previamente introduzidos, dando origem às cadeias referenciais ou coesivas, que são responsáveis pela progressão referen- cial do texto”. As anáforas podem acontecer nas retomadas por pronomes, elip- ses (de ordem gramatical) ou por formas nominais (de ordem semântico-lexical). Ocorrendo por formas nominais, o referente pode ser recuperado por meio da re- petição – parcial ou total –, por meio de sinônimos ou quase sinônimos, por meio de hiperônimos, por meio de nomes genéricos, por meio de descrições nominais, entre outras possibilidades. Segundo Ciulla (2008), os elementos referenciais promovidos na malha discursiva imbricam-se, de modo que não podemos interpretar completamente um sem ver o outro. Nessa perspectiva, a autora propõe o entrecruzamento dos processos referenciais anáfora e dêixis, pois, conforme suas reflexões, uma mesma expressão desempenha, de uma só vez, funções tanto dêiticas quanto anafóricas, isto é, há em um mesmo elemento referencial a simultaneidade do dêitico e da anáfora, caracterizando um hibridismo discursivo. Assim sendo, dêixis e anáforas, ainda que sejam fenômenos referenciais diferentes, não se excluem. Nesse contexto, Santos e Cavalcante (2014) dizem que “com o passar dos anos e o desenvolvimento dos estudos sobre referenciação, as fronteiras entre os processos referenciais parecem ter sido percebidas como mais tênues” (Santos; Ca- valcante, 2014, p. 224). Assim sendo, entendemos que os processos referenciais, na perspectiva sociocognitivo-interacional, podem ser tratados de forma tênue ou, conforme Ciulla (2008) aponta, como uma fusão de operações discursivas, cognitivas, sociais e interativas realizadas pelos sinalizantes. De modo geral, as discussões sobre os processos de referenciação estão li- gadas às ações desenvolvidas na língua, e essas são identificadas a partir das con- dições de inserção das informações no texto, sinalizando determinadas intenções. O enunciador, ao inserir e retomar certos objetos do discurso, faz escolhas lexicais que não são gratuitas. Ao contrário, esperando alcançar seus objetivos, faz esco- lhas que estão permeadas de estratégias de convencimento, estabelecendo uma orientação semântica e argumentativa no texto. Nessa perspectiva, Koch (2004) afirma que a referenciação constitui, assim, uma atividade discursiva. O sujeito, na inte- ração, opera sobre o material linguístico que tem à sua disposição, operando escolhas lexicais significativas para representar estados de coisas, com vistas à concretização do seu projeto de dizer. (Koch, 2004, p. 31). Seguindo esse viés teórico, Marcuschi (2003) explica que “a referência deve ser tomada como ato criativo de designação” (Marcuschi, 2003, p. 43). Em outras palavras, ao utilizar estratégias de referenciação, o enunciador não está isento de 72 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 intenções, mas as utiliza porque quer reforçar certo argumento, quer mostrar algo para o outro. Assim, ao optar por um determinado item lexical para designar um referente, o enunciador se posiciona, tendo em vista que a escolha da existência de um objeto de discurso implica em observar o tipo de apreciação axiológica que sobre ele incide e qual a voz social o enuncia – afinal, estas são as condições para a constituição de discursos e de, é claro, significados textuais (Alves Filho, 2010). 2.1.1 Processo referencial nas línguas de sinais: um continuum dêitico- -anafórico Partindo da perspectiva da referenciação como uma atividade híbrida, se- mântico-lexical e discursiva, ao utilizar dos recursos oferecidos pela modalidade gestual-visual, o sinalizante constrói e reconstrói objetos do discurso em um pro- cesso de interação, atualizando constantemente suas estratégias referenciais. Na Língua de Sinais Americana (ASL), o processo referencial foi destaque nos estudos de Lillo-Martin e Klima (1990), desde a década de 1990. Para os autores, a referên- cia anafórica, por exemplo, requer que o sinalizador aponte – veja ou gire o corpo – ao local previamenteestabelecido para o referente, caracterizando, então, uma ação conjunta entre a anáfora e a dêixis. Não poderia ser diferente, visto que essa utilização do espaço permite múltiplas possibilidades de reconstrução referen- cial. Para Schlenker (2016), autor contemporâneo que estuda a ASL, nas línguas gestual-visual, o espaço e o apontamento (dêitico) são componentes efetivos da anáfora, principalmente quando se trata de uma anáfora pronominal, em outras palavras, “[...] se o pronome é usado anaforicamente, o antecedente tipicamente estabelece um local, o qual é, em seguida, ‘indexado’ (=apontou para) pelo prono- me. O antecedente, sintagma nominal, é acompanhado com sinal de apontação que estabelece o ‘loci’ relevante” (Schlenker, 2016, p. 7, tradução nossa1). Nesse mesmo sentido, Landaluce (2015), investigador da Língua 2de Sinais Espanhola, que desenvolveu a tese: “La deixis en la Lengua de Signos Española (LSE): Efectos de la modalidad espaciovisual”, aponta a anáfora como uma forma de uso da dêixis, trazendo uma discussão bastante congruente quanto a essa parceria referencial. Ele assevera que, embora em muitas línguas existam elementos exclu- sivamente anafóricos, que não têm vestígios dêiticos, é muito comum um elemen- to dêitico ser utilizado simultaneamente à anáfora, nas línguas visuais-espaciais. Tratando-se do espaço na constituição do processo referencial, Morales López et al. (2019), embasados em estudos da LSE, dizem que “a utilização do espaço para representar os distintos referentes é um recurso a serviço da coesão discursiva, 1 “(...) if the pronoun is used anaphorically, the antecedent typically establishes a locus, which is then ‘indexed’ (=pointed at) by the pronoun. The antecedent Noun Phrases are accompanied with pointing signs that establish the relevant loci” (SCHLENKER, 2016, p. 7) 2 “(...) la utilización del espacio para representar el rol y semirol de los distintos personajes es un recurso al servicio de la cohesión discursiva, porque con estos recursos se produce la progresión temática y la conexión entre las distintas proposiciones” (MORALES LÓPEZ et al., 2019, p. 114). 73 Parte I – Estudos Linguísticos porque com esses recursos se produzem a progressão temática e a conexão entre as distintas proposições” (Morales López et al., 2019, p. 114, tradução nossa). Meurant (2008), em seus trabalhos referentes à Língua de Sinais do Sul da Bélgica (LSFB), corrobora que o olhar cria e organiza um primeiro espaço refe- rencial: o “espaço dêitico”. Esse espaço está fisicamente situado entre o locutor e seu destinatário (considerando como um ser discursivo e não como uma pessoa empírica). Em outras palavras, há uma relação direta de direcionamento discursi- vo entre os interlocutores. Assim como na ASL e na LSE, Meurant (2008) também nos mostra a possibilidade do dêitico e da anáfora ocorrerem simultaneamente, na LSFB, via “loci”. Nessa mesma dinâmica, na Libras, conforme Berenz (1996), uma especifi- cidade do processo referencial é o uso frequente da dêixis, concedendo-a um papel essencial na construção e na reconstrução do referente. A dêixis, no entanto, en- volve propriedades formais, sendo caracterizada como uma forma gramatical que traz o contexto para dentro da prática linguística. Em outras palavras, “os dêiticos são usados no espaço referencial de forma gramaticalizada. Na Libras representam pontos situados no espaço no entorno do sinalizante” (Quadros, 2021, p. 44). Segundo Ferreira-Brito, “os dêiticos são usados frequentemente, em Libras, para referirem e correferirem. Por correferência, entende-se aqui todos os termos que tradicionalmente são chamados de anáfora e catáfora” (Ferreira-Brito, 2010, p. 116, grifos nossos). Podemos entender que, assim como em outras línguas de sinais, na Libras, o dêitico, além de exercer a função de apontar, também executa o papel de retomar; ou seja, há um exercício simultâneo do dêitico e da anáfora. É importante enfatizar que os referentes são introduzidos no espaço à frente do sina- lizador, por meio da apontação em diferentes locais. Nesse contexto, percebemos que o espaço, de fato, é um dos elementos que favorece a coesão e a coerência dos textos enunciados em línguas de sinais. Para Reis (2020), partindo da perspectiva da referenciação como uma prá- tica discursiva – marcada por situação sociocognitiva-interacional –, assim como uma atividade de escolhas lexicais significativas, torna-se indispensável destacar a simultânea relação entre a anáfora e a dêixis na Libras, no espaço discursivo de sinalização, o que contribui efetivamente para a tessitura de cadeia referencial específica da modalidade gestual-visual e para construção dos significados, repre- sentando a dinamicidade e a fluidez entre os processos referenciais na Libras. Também sobre o dêitico e a anáfora nas línguas de sinais, Pizzuto et al. (2006) trazem, no texto: “Deixis, Anaphora and Highly Iconic Structures: Cross- linguistic Evidence on American (ASL), French (LSF) and Italian (LIS) Signed Lan- guages”, uma discussão sobre a construção do dêitico-anafórico nessas línguas de sinais destacadas. Esses pesquisadores definem as estruturas dêitico-anafóricas como recurso de coesão textual que permitem a falantes, ou sinalizantes, mostrar (dêixis) e retomar (anáfora) referentes no discurso, simultaneamente. A partir de uma análise comparativa de narrativas produzidas na ASL, na Língua de Sinais Francesa (LSF) e na Língua de Sinais Italiana (LIS), a pesquisa 74 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 proporciona evidências importantes sobre o processo referencial nas três línguas de sinais. Mais especificamente, os dados analisados permitem avaliar a influência das relações entre as línguas a respeito dos fenômenos investigados. Os autores propõem duas grandes classes de dêitico-anafóricos, nas línguas gestuais-espa- ciais. A primeira é a classe “padrão”, realizada por meio de apontações manuais e visuais, que estabelecem posições marcadas no espaço (os “loci”). Nessa classe, os referentes podem ser simbolicamente atribuídos. Alguns fatores são relevantes para o processo anafórico nessa classe, entre eles: (i) a direção do olhar: a anáfora ocorre com a marcação acentuada da direção dos olhos; (ii) a soletração (datilo- logia): o pronome chama a atenção do interlocutor para a soletração, e a relação entre a soletração e o objeto referido é de inferência, como no exemplo: <ELA M-A-R-I-A>; e (iii) a locação: apontamento direcionado no espaço. A segunda classe, proposta por Pizzuto et al. (2006), é a de complexas uni- dades manuais e não manuais, que não são sinais de apontação nem podem ser classificadas como sinais padrões. Essas unidades apresentam características al- tamente icônicas – denominadas Estruturas Altamente Icônicas (EAIs) ou Trans- ferências (Cuxac, 2000) – e são marcadas por padrões específicos do olhar, por formas manuais que codificam atributos perceptíveis salientes das relações entre o referente e o elemento referencial, e por expressões faciais marcadas e/ou modifica- ções da cabeça, dos ombros e do tronco, tipicamente identificadas como “recursos de troca de papéis”. Quando há a mudança do próprio sinalizante como referente de primeira pessoa a outros referentes que passam a ser os referentes no corpo do sinalizante, Quadros (2021, p. 69) denomina como “alternância de perspectivas”. Cabeza (2020, p. 41, tradução nossa3) designa como “ação construída ou discurso construído” o ato de o sinalizante incorporar o referente, assumindo sua postura e seu modo de agir – o sinalizante age como se fosse o objeto referenciado. E, nesse sentido, Bernardino et al. (2020), ao discutir sobre a ação construída na Libras, destaca que o uso dessa estratégia linguística é extremamente importante para a compreensão dos enunciados pelos surdos, pois expressa uma riqueza de detalhes essenciais para o reconhecimento do referente. Além disso, os autoresdestacam que a ação construída é “uma estratégia linguística referencial, a fim de conduzir a atenção do interlocutor, por meio de recursos linguísticos visuais, para a cena desenvolvida através do discurso narrativo” (Bernardino et al., 2020, p. 23). Vale destacar que, quanto a esse tipo de referência, Liddell (1995), ao estudar a relação entre o espaço e o processo referencial, numa perspectiva de representação metal, denominou-a como “sub-rogada”. Comumente, com base no termo proposto por Quadros (2021), ao alternar as perspectivas para associá-las a referentes específicos, o discurso mantém a coe- são e coerência textual, delegando a função anafórica aos contrastes estabelecidos pelo posicionamento do corpo. Essa alternância de perspectiva pode acontecer de forma mais explícita ou sutilmente, dependendo do gênero. Quadros (2021, 3 “(...) acción construida o discurso construido” (CABEZA, 2020, 41). 75 Parte I – Estudos Linguísticos p.70) traz, como exemplo, a narrativa em que “a alternância de perspectiva é mais marcada com contrastes explícitos no espaço de sinalização”. Em suma, a autora enfatiza que, na Libras, o uso de alternância de perspectiva é extremamente rico e pode ser aplicado de forma sutil ao longo do discurso. 3 Contextualização metodológica O corpus da reflexão apresentada é constituído de gravações de narrativas, feitas com colaboradores surdos, em que a língua de sinais é a sua primeira língua. Para esse momento trazemos partes de algumas narrativas utilizadas durante as pesquisas de doutorado (Reis, 2019) e de pós-doutorado realizadas por Reis (2019; 2020), com objetivo de analisar, especificamente, a construção da tessitura refe- rencial no espaço de sinalização e as suas relações semântico-lexicais e discursivas As gravações das narrativas foram transcritas em glosas-Libras, com o au- xílio do programa Elan (EUDICO – Linguistic Annotator). Foi adotado o sistema de anotação proposto no Manual de transcrição do Corpus Libras (disponível em: https://corpuslibras.ufsc.br/espacointerativo/perguntas/view/11) para o desenvol- vimento das respectivas glosas, as quais foram organizadas de forma a constituir um corpus. Foram consideradas, nas análises, as perspectivas teóricas, apresentadas acima, mais especificamente, enfocamos nos processos referenciais responsáveis pela tessitura textual, Introdução, Anáfora e Dêixis, conforme proposta de Pizzuto et al. (2006), Reis (2022; 2021; 2020; 2019), entre outros, dedicamo-nos a apreciar a presença das classes dêitico-anafóricas, padrão e de complexas unidades manuais e não manuais, com suas especificidades semântico-lexicais e discursivas. 4 Análise de dados A fim de alcançar o objetivo proposto , trazemos as análises realizadas nas narrativas sinalizadas, dos colaboradores surdos, brasileiros, conforme já men- cionado. Tendo em vista a delimitação necessária para estruturação deste capítulo, selecionamos os fenômenos referenciais que mais representaram o corpus. Para efeito de organização, disponibilizamos em formato de quadros, os dados de análise. Conforme podemos ver, a seguir (Quadros 1, 2 e 3), temos três colunas, sendo a primeira composta pelos referentes, ou seja, objetos do discurso; a segunda, dedicada à tessitura textual referencial completa; e a terceira, com a classificação do processo referencial. A primeira análise é feita a partir de um texto humorístico que narra a his- tória de uma professora que tenta ensinar matemática para seu aluno. A professora pergunta ao menino: — Se eu te der quatro chocolates hoje e mais três amanhã, você vai ficar com... com... com...? 76 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 E o garoto esperto: — Contente! Vejamos, a seguir, a análise, em glosa-Libras, considerando a tessitura tex- tual referencial na narrativa citada. Quadro 1 – Processo Referencial em Libras Introdução do Referente/ Objeto do discurso Reconstrução referencial Classificação Ref. 1: PESSOA le <QUEM>qu~ef <interrogativa> PROFESSORA <TENTAR>+++ <ENSI- NAR>+++ MATEMÁTICA Ref. 2: PESSOA ld <QUEM>qu~ ef <interrogativa> HOMEM^PE- QUENO=MENINO (IXmpc) ef <ansiedade-curioso> (IXle-mpc) PROFESSORA PESSOA. (IXmpc) SE EU ENSINAR VOCÊ CONSEGUIR <QUERER>qu ef<interrogativa> 4 CHOCOLATE + AMANHÃ 3 CHOCOLATE. (IXld-mpc) HOMEM^PEQUENO=MENINO PESSOA ESPERT@. (IXmpc) CL (balão-pensa- mento-imaginar) ef<empolgado> somar <quantos chocolate>qu ef <interrogativa> enm <sim sim sim> feliz ef<animado/ alegre>. Dêitico-anafórico de complexas unidades manuais e não manuais: alternância de pers- pectiva. Fonte: elaborado pelas autoras Acima (Quadro 1), temos um texto narrativo curto, de final engraçado, cujo objetivo é provocar risos em quem lê. Para a adequada compreensão do efeito de humor, o interlocutor precisa conhecer minimamente as possíveis situações que se passam no ambiente escolar: esse é o “típico” menino/aluno que estabelece uma interpretação do que a professora diz conforme lhe convém. É possível visualizar, na glosa-Libras, que o referente “PESSOA le <QUEM>qu~ef <interrogativa> PROFESSORA <TENTAR>+++ <ENSINAR>+++ MATEMÁTICA” (Ref. 1) é colocado no espaço de sinalização do lado esquerdo, enquanto que o referente “PESSOA ld <QUEM>qu~ ef <inter- rogativa> HOMEM^PEQUENO=MENINO ef <ansiedade>” (Ref. 2) é posiciona- do do lado direito no espaço de sinalização, na construção referencial, ambos já orientados para os recursos que serão usados no processo de retomada. Após demarcar, no espaço discursivo, o Ref. 1, sua retomada inicial é rea- lizada por meio de uma repetição parcial “(IXle-mpc) PROFESSORA PESSOA”. A repetição como recurso referencial – processo referencial sem recategorização –, durante a construção de cadeias discursivas referenciais, destaca a informação em questão, uma vez que chama a atenção do destinatário para o objeto do dis- curso que se encontra saliente. Segundo Santos e Cavalcante (2014), mesmo as estratégias referenciais sem recategorização também marcam “a intencionalidade, [...] a sequência textual predominante, além de outros aspectos não apenas lin- guísticos, mas condicionados pelo caráter sociocognitivo da linguagem” (p. 229). 77 Parte I – Estudos Linguísticos Acerca do Ref. 2, sua retomada inicial também é realizada por meio de repetição parcial, com o diferencial do acréscimo de um predicativo: “ESPERT@”. Apesar de tratar do mesmo objeto de discurso, no processo de tessitura referencial, há uma qualidade específica do referente adicionada, que expressa uma escolha lexical do sinalizante: “o sujeito, na interação, opera sobre o material linguístico que tem à sua disposição, operando escolhas significativas para representar estados de coi- sas, com vistas à concretização do seu projeto de dizer (Koch, 2004, p. 31)”. Ambas retomadas são nominadas, então, como dêitico-anafórico padrão por repetição. O colaborador surdo, durante a tessitura textual, com o objetivo de “condu- zir a atenção do interlocutor, por meio de recursos linguísticos visuais, para a cena desenvolvida através do discurso narrativo” (Bernardino et al., 2020, p. 23), usou também o recurso de “Troca de Papéis” ou, conforme alguns autores denominam, “Mudança de Postura Corporal”, “Ação Construída”, “Alternância de perspecti- va”, fenômeno também conhecido como “Role Shift”, bastante comum nas línguas gestuais-visuais quando se trata de narrativas. Esse fenômeno é considerado por Cormier et al. (2015) como “dispositivo de representação em que um ou mais ar- ticuladores corporais (incluindo a cabeça, face, olhos, braços e tronco) são usados para representar os enunciados, pensamentos, sentimentos e / ou ações de um ou mais referentes” (p. 167)4. Especificamente, em relação ao referente “menino”, após demarcá-lo no es- paço discursivo, tem-se sua primeira retomada, realizada pelo Role Shift: (IXmpc) ef <ansiedade-curioso>. Nessa reconstrução do referente, o surdo já incorpora a personagem,atribuindo-lhe características físicas (como expressões faciais e cor- porais etc.) e psicológicas (como alegria, animação etc.), coerentes com a atitude do referente. Temos, nesse caso, um dêitico-anafórico de classe de complexas unidades manuais e não manuais, marcado por padrões específicos do olhar, por formas manuais que codificam atributos perceptíveis salientes das relações entre o refe- rente e o elemento referencial, por expressões faciais marcadas e por modificações da cabeça, dos ombros e do tronco, tipicamente identificadas como “recursos de troca de papéis” (Pizzuto et al., 2006). Em um segundo momento, na constru- ção da tessitura semântico-lexical e discursiva, localizamos uma retomada, no instante da troca de papéis: (IXld-mpc) HOMEM^PEQUENO=MENINO PES- SOA. “O usuário da Libras retoma o referente apenas mudando a posição do seu corpo” (Ferreira-Brito, 2010, p. 53 ). Por fim, temos a terceira retomada também por Role Shift: (IXmpc) CL (balão-pensamento-imaginar) ef<empolgado> somar <quantos chocolate>qu ef <interrogativa> enm <sim sim sim> feliz ef<animado/ alegre>. Tanto os sinais manuais quanto as expressões faciais e corporais realiza- das, nesse momento, caracterizam a personagem, e não o enunciador. Nesse senti- do, Cabeza e García-Miguel (2018) defendem que “os sinalizantes adaptam a seus 4 “(...) a representational device where one or more bodily articulators (including the head, face, eyegaze, arms, and torso) are used to represent the utterances, thoughts, feelings and/or actions of one or more referents” (CORMIER et al., 2015, p. 167). 78 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 propósitos comunicativos as possibilidades de construção que lhes oferecem tanto os articuladores manuais quanto os articuladores não manuais (na elaboração da ação construída)5” (p. 258, tradução nossa). Por todas essas questões destacadas, denominamos esse processo referen- cial como dêitico-anafórico de complexas unidades manuais e não manuais, por alternância de perspectivas. Diante dessa análise, vale mencionar que quando a pessoa surda utiliza determinado processo referencial, ele não o faz aleatoriamen- te, ao contrário, há em sua escolha finalidades comunicativas, as quais podem re- velar opiniões, intenções e atitudes do enunciador. A seguir (Figura 1), é possível visualizar as imagens das alternâncias de perspectivas para associá-las a referentes específicos: aluno, narrador, professor. Figura 1 – Imagens com as alternâncias de perspectivas Fonte: Adaptado de Reis (2019). A segunda análise é feita a partir da narrativa baseada na história das pe- ras – Pear Film6 – que, de modo geral, narra a vida de um trabalhador do campo durante a colheita de peras e um menino que rouba uma das cestas de peras es- condido do agricultor. Vejamos, a seguir, a análise, em glosa-Libras, considerando a tessitura textual referencial na narrativa citada (Quadro 2). 5 “(...) los señantes adaptan a sus propósitos comunicativos las posibilidades de construcción que les ofrecen tanto las articulaciones manuales y los articuladores no manuales (en la elaboración de la acción construida)” (CABEZA; GARCÍA-MIGUEL, 2018). 6 Vídeo Pear Film disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bRNSTxTpG7U. Vale desta- car que a “história da pera” é o nome que se usa para fazer referência a qualquer narrativa baseada no filme da pera, produzido por Wallace Chafe, em 1970, com o objetivo de eliciar contações de histórias em diversas línguas, para embasar estudos translinguísticos e transculturais (MC- CLEARY; VIOTTI, 2011). 79 Parte I – Estudos Linguísticos Quadro 2 – Processo Referencial em Libras Construção do Referente/ Objeto do discurso Reconstrução referencial Classificação PERA <p-e-r-a> HOMEM VELH@ BIGODE-GROSSO CHAPEU LUTAR++ TRABALHAR+ IX-CL(homem-colhendo-peras - oc<olhar para cima> - ef<atento>) . CL(homem- -colocando-peras-avental^cesto - ob<olhar para baixo> - ef<esforço>) . CL(ho- mem-colhendo-peras)<mão direita> . CL(homem-colhendo-peras)<mão esquerda> . CL(homem-colocando-peras-avantal^ces- to)<mão direita> . CL(homem-colocan- do-peras-avental^cesto)<mão esquerda> · CL(homem-colhendo-peras)<mão direita> . CL(homem-colhendo-peras)<mano esquer- da>· CL(homem-colocando-peras-avental^- cesto)<mão direita> . CL(homem-colo- cando-peras-avental^cesto)<mão esquerda> · CL(homem-colhendo-peras)<mão direita> CL(homem-colhendo-peras)<mão esquerda> · CL(homem-colocando-peras-avental^ces- to)<duas mãos simultaneamente>) Dêitico-anafórico de complexas unidades manuais e não manuais: in- corporação da personagem. Fonte: elaborado pelas autoras. Acima (Quadro 2), os referentes, em análise, são “pera” e “homem”. Con- forme podemos visualizar, a Introdução do referente “pera” se realiza com o sinal PERA, seguido de sua datilologia <p-e-r-a>. Esse processo de Introdução – sinal seguido de datilologia – já evidencia a preocupação do surdo em aclarar ao seu interlocutor a construção desse objeto do discurso na narrativa. A Introdução do referente “homem” se realiza com os sinais HOMEM VELH@ BIGODE-GROSSO CHAPEU LUTAR++ TRABALHAR+. O sinalizante já caracteriza na apresentação do referente que não se trata de qualquer homem, mas de um agricultor que está dedicado ao trabalho. Esse processo de Introdução promove um convite para uma ativação de conhecimentos culturalmente compartilhados entre os sinalizantes da Libras. Depois do processo de Introdução, o sinalizante constrói o espaço narrativo da história da pera, e começa a desenvolver a cadeia referencial a partir da retoma- da dos referentes em destaque. Nesse sentido, trazemos (Quadro 2) a primeira re- cuperação dos objetos do discurso “pera” e “homem”, que consideramos relevante na narrativa. A retomada desses referentes, como o vemos na glosa-Libras, sucede em conjunto, por meio de padrões específicos do olhar e de expressões faciais mar- cadas, a exemplo oc<olhar para cima> - ef<atento>. Também temos, nesse proces- so de recuperação, os classificadores que mostram a forma do homem lidar com a PERA em seu trabalho de colheita. É como se a pessoa sinalizante descrevesse no 80 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 espaço de sinalização a cena do homem recolhendo peras, e essas sendo armaze- nadas no cesto. Todos esses elementos juntos promovem o desenvolvimento efe- tivo de uma “ação construída” (Cabeza, 2020, p. 41), em que o sinalizante assume a postura e o modo de agir do referente no espaço discursivo. Nessa perspectiva, concordamos com Morales López et al. (2019, p. 114, tradução nossa) quando dizem que “a utilização do espaço para representar os distintos personagens é um recurso ao serviço da coesão discursiva, porque com esses recursos se produzem a progressão temática e a conexão entre as distintas proposições7”. Tendo em vista esses fatores elencados, classificamos então esse processo de recuperação como dêitico-anafórico de complexas unidades manuais e não manuais, por ação cons- truída. Vale destacar que essa estratégia referencial foi muito frequente durante a narrativa. A seguir, temos a sequência de imagens (Figura 2) com alguns momentos do processo de recuperação, analisado acima (Quadro 2). Mostramos, na primeira imagem, a representação do homem recolhendo as peras. Na segunda, buscamos evidenciar os padrões específicos do olhar, assim como as expressões faciais mar- cadas. Por último, temos a imagem do homem colocando as peras colhidas no avental. Figura 2 – Postura e o modo de agir do referente no espaço discursivo Fonte: Adaptado de Reis (2020). A terceira análise também é feita, a partir da narrativa baseada na história das peras, com foco específico na retomada do referente PERA. Vejamos a seguir a análise (Quadro 3), em glosa-Libras, considerando a tessitura textual referencial na narrativa citada. Quadro 3 - Processo Referencial em Libras Construção do Referente/Objeto do discurso Reconstrução referencial Classificação PERA IX(COMER-FRUTA+++ ef<mastigar-com-vo- racidade> od<olhar-direita>) Dêitico-anafórico padrão: hipônimo/hiperônimo. Fonte: elaborado pelas autoras. 7 “(...) la utilización del espacio para representar los distintos personajes es un recurso al servicio de la cohesión discursiva, porque con estos recursos se produce la progresión temática y la conexión entre las distintas proposiciones” (MORALES LÓPEZ et al., 2019, p. 114). 81 Parte I – Estudos Linguísticos Observamos acima (Quadro 3) uma recuperação do referente “pera” por meio de um hiperônimo, ligado ao verbo “comer”: IX(COMER-MASTICAR-FRU- TA+++). Não é comer qualquer coisa, neste caso o próprio sinal realizado com a configuração da mão em C, a orientação da palma da mão voltada para a boca, o movimento retilíneo, o olhar direcionado ao cesto de peras, com a expressão facial de mastigar com voracidade, já caracteriza e contextualiza o sinal de “fruta”, em Libras. Fruta, sendo um hiperônimo de pera, contém todos os traços lexicais do referente em questão. Nesse sentido, segundo Koch (2004), a retomada, por meio de um hiperônimo, de um objeto de discurso previamente introduzido por um hipônimo, constitui estratégia referendada pela norma, mantendo um mínimo de estabilidade informacional, já que a recuperação por hiperonímia funciona neces- sariamente por recorrência a traços lexicais. Assim sendo, o conhecimento cognitivo do sinalizante é de extrema im- portância para a seleção lexical apresentada em um discurso. O domínio de deter- minado campo semântico é o que vai lhe permitir construir a cadeia referencial de sua narrativa e empregar adequadamente os hipônimos e hiperônimos. São escolhas semântico-lexicais e discursivas conscientes do objeto do discurso, de- senvolvidas de acordo com o contexto de interação dos interlocutores (Monda- da; Dubois, 2003). Por todos esses elementos apontados, temos nesse processo de reconstrução referencial um dêitico-anafórico padrão por hiperônimo. Vejamos as imagens (Figura 3) da retomada do referente “pera” por meio do hiperônimo “fruta”, realizada pelo sinalizante. Figura 3 – Reconstrução referencial: hipônimo/hiperônimo Fonte: Adaptado de Reis (2020). 5 Conclusão Notamos, com as análises realizadas, como os elementos lexicais não se restringem às suas características dadas, a priori, mas atualizam-se no discurso, ganhando novos sentidos, revelando, assim, o caráter criativo da tessitura textual, em que os referentes alcançam diferentes potencialidades semântico-lexicais e dis- cursivas, durante o processo referencial. Assim sendo, é possível afirmar que a referenciação é um importante elemento na construção da tessitura textual que, 82 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 a partir das intencionalidades do sinalizante, marcadas por suas escolhas lexicais, em um contexto discursivo, auxilia na construção dos significados do texto. De modo geral, os processos referenciais desempenham, simultaneamente, uma série de funções discursivas, entre elas destacamos a organização semântica de partes do texto, a metadiscursividade, a introdução de informações novas, o convite para uma busca/ativação da memória, os efeitos estéticos-estilísticos, as- sim como a marcação de heterogeneidade discursiva e lexical (Ciulla, 2008). Fica evidente, no decorrer das reflexões apresentadas, a dinamicidade da trajetória dos referentes selecionados. A constituição de uma “cadeia referencial é, dessa forma, resultado da manutenção ou evolução de um objeto de discurso” (Koch, 2008, p. 102), e como sabemos, “a unidade do texto depende da coesão e da coerência, ou seja, dos elos estabelecidos ao longo do texto e da composição dos sentidos para integrá-los de forma adequada, consistente com a intenção do sinalizante” (Quadros, 2021, p. 85). A simultaneidade e o espaço foram fatores essenciais no desenvolvimento da tessitura referencial, em Libras. Nesse sentido, é relevante reforçar que “a simultaneidade também é um me- canismo de coesão que garante a coerência nas línguas de sinais” (Quadros, 2021, p. 86). Da mesma maneira, “a utilização do espaço para representar os distintos referentes é um recurso a serviço da coesão discursiva, porque com esses recursos se produzem a progressão temática e a conexão entre as distintas proposições” (Morales López et al., 2019, p. 114, tradução nossa8). Em conclusão, observamos nas narrativas analisadas, tessituras referenciais semântico-lexicais e discursivas por meio do dêitico-anafórico de classe de com- plexas unidades manuais e não manuais, com “ações construídas” (Bernardino et al., 2020; Cabeza, 2020) ou, conforme denomina Quadros (2021), “alternâncias de perspectivas”; e por meio do dêitico-anafórico de classe padrão por repetição, por hiperônimo – que funciona necessariamente por recorrência a traços lexicais. Referências APOTHÉLOZ, D. Papel e funcionamento da anáfora na dinâmica textual. In: CALVACANTE, M. M.; RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. (Orgs.). Referencia- ção. São Paulo: Contexto, 2003. BERENZ, N. F. Person and deixis in Brazilian sign language. University of Cali- fornia, Berkeley. PhD Thesis, 1996. BERNARDINO, E. L. Absurdo ou lógica?: a produção linguística do surdo. Belo Horizonte: Profetizando Vida, 2000. BERNARDINO, E. L. et al. A ação construída na libras conforme a linguística cognitiva. Signótica, v. 32, 2020. 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Na tradução, do poema da Língua Portuguesa para a Libras, há uma relação intrínse- ca entre a linguagem artística e a linguagem poética, pois os elementos semiótico- -ideológicos são organizados e materializados por meio da articulação da palavra do poema em Língua Portuguesa, da linguagem poética sinalizada, presente na composição da tradução em Língua Brasileira de Sinais, da performance tradutória e da composição estética em material audiovisual. 1 Este trabalho, em coautoria, é produto parcial da pesquisa de Doutorado desenvolvida com auxí- lio Bolsa Capes, processo nº 88887.204126/2018-00. 2 Este trabalho, em coautoria, é produto do projeto de pesquisa CNPq “Discursos de resistência, tradição e ruptura”, Proc. 307028/2018-6, do qual sou coordenadora e o coautor é um dos inte- grantes. 3 Utilizaremos grafia Libras (Língua Brasileira de Sinais) de acordo com os documentos oficiais (Lei Federal de nº10.436/2002, Decreto nº 5.626/2005, a Lei nº 12.319, Lei Brasileira de Inclusão, LBI, nº 13.146/15). Parte II Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais (ETILS) 86 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Essas produções audiovisuais são realizadas pelos tradutores e intérpretes de línguas de sinais (TILS4) e por outros sujeitos discursivos – diretor(a), cinegra- fista, técnico de iluminação, roteirista etc. – presentes na recriação-cocriação de um “outro” objeto estético. No pensamento bakhtiniano, o discurso “[...] só pode existir de fato na forma de enunciados concretos de determinados falantes”, ou seja, o sujeito discursivo (Bakhtin, 2016a, p. 28). O sujeito discursivo se constitui na relação com o “outro”, nos diferentes usos da linguagem e nas diversas ativida- des humanas, e é atravessado por discursos alheios e por relações dialógicas. No caso da tradução de poemas da LP para a Libras – presente na literatura surda – o projeto é materializado por meio da linguagem artística, da linguagem poética, da linguagem audiovisual e está ligada a um determinado gênero discur- sivo (poema). Esses elementos semiótico-ideológicos, que participam da constru- ção da obra traduzida, instauram uma dimensão verbo-visual, ou seja, constituída por um plano verbal (escrita-vocal e gesto-visual) e por outros signos em sua di- mensão visual, verbo-visual etc. Neste estudo, observamos a tradução do poema “Todas as Manhãs”5, reali- zada por tradutores-textuais6, juntamente com tradutores-performáticos7, e, tam- bém, produzidas por uma equipe de profissionais da área audiovisual. É relevante destacar que a tradução de poemas da LP para a Libras, tanto a atividade tra- dutória quanto a produção audiovisual podem ser realizadas pelo mesmo TILS. Sua realização enunciativo-discursiva, porém, nunca é individual, na medida em que sempre estará atravessada por relações dialógicas, entretidas com as línguas e linguagens em movimento, com os suportes utilizados e com os discursos que atravessam o intérprete no momento de sua atuação. Considerando esses aspectos, o objetivo deste estudo – resultante da pes- quisa de doutorado (Ferreira-Santos, 2022a) –, a partir da Análise Dialógica do Discurso (ADD), advinda de Bakhtin e o Círculo8, dos estudos da verbo-visuali- 4 Utilizaremos o termo Tradutor e Intérprete de Línguas de Sinais para designar de forma genérica o profissional, conforme regulamentação da profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasilei- ra de Sinais – Libras, pela Lei 12.319/2010. 5 Poema da escritora e poeta Conceição Evaristo (em LP), traduzido para a Libras por Mirian Caxilé e Lívia Vilas Boas, sinalizado pelos surdos Edinho Santos e Nayara Rodrigues. Essa tradu- ção foi produzida pela TV CES (Centro de Educação para Surdos Rio Branco). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yOh-uU-BlEk&t=66s 6 Ferreira -Santos (2022a) nomeia tradutores-textuais os TILS que realizaram as traduções do texto de partida (poemas) para a Libras, porém não realizaram a enunciação do texto de chegada em Libras (performance interpretativa) no material audiovisual. 7 Tradutores-performáticos é o termo utilizado por Ferreira-Santos (2022a) para nomear os tra- dutores que realizaram a enunciação do texto de chegada (tradução final) no material audiovi- sual por meio da performance sinalizada. A tradução performática sinalizada parte já do texto traduzida em Libras ou por roteiro em LP, realizado por outros sujeitos, e performada por outros tradutores, incorporando a tradução em um corpo-texto no material audiovisual diferente dos tradutores de início. 8 Atualmente, o estudo advindo do Círculo (de Bakhtin), denominado pensamento bakhtiniano, envolve trabalhos realizados por diversos intelectuais russos ao longo de várias décadas. Neste 87 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais dade e dos Estudos da Tradução e da Interpretação de Línguas de Sinais (ETILS), é analisar a presença do tradutor-performático e a maneira como ocorrem as re- lações dialógicas e as posições axiológicas na tradução de poemas da LP para a Libras, materializadas em seu corpo-texto. 2 Pressupostos teórico-metodológicos Este estudo está fundamentado na ADD,nos estudos da verbo-visualidade (Brait, 2009, 2010, 2013, 2015) e nos ETILS, como um campo específico do conhe- cimento acadêmico que se relaciona com os Estudos da Tradução (ET) e com os Estudos da Interpretação (EI). O campo dos ETILS, conforme Rodrigues e Beer (2015), além de manter uma relação entre esses dois grandes e integrados cam- pos disciplinares, também mantém com eles inegáveis e explícitas identificação e dependência. A atividade tradutória e a interpretativa ocorrem por meio da mo- bilização enunciativa-discursiva entre língua-linguagem, apresentando, porém, algumas características específicas em sua realização. Conforme Rodrigues e Beer (2015), esses dois processos ocorrem por meio de seu objeto central de estudo, respectivamente. Nesse sentido, [...] “a tradução e o traduzir” e “a interpretação e o interpretar”: Esses dois processos, embora cunhados na translação de material linguístico-cultu- ral de uma língua a outra, caracterizam-se pela maneira por meio da qual acontecem linguística, cognitiva e operacionalmente. Nesse sentido, esses campos disciplinares são justapostos e interdependentes, já que sua coexis- tência é inevitável, e, ao mesmo tempo, distintos e singulares em relação à especificidade de seu foco de estudos. (Rodrigues; Beer, 2015, p. 19). Desta forma, nosso objeto de pesquisa é a tradução de poemas da LP para a Libras, constituído por meio de diversas linguagens, por relações dialógicas, processo em que o projeto enunciativo-discursivo produzido em uma determina- da língua de partida (LP) é recriado e enunciado por outros sujeitos discursivos, por meio de uma língua de chegada (Libras). Neste novo projeto, enunciativo- -discursivo e verbo-visual, ocorre um encontro dialógico cultural. No encontro de culturas, de acordo com Bakhtin (2017a, p.19), elas “não se fundem e nem se confundem; cada uma mantém a sua unidade e sua integridade aberta, mas se elas se enriquecem mutualmente”. As relações dialógicas (discursos em movimento) são “estabelecidas a partir de um ponto de vista assumido por um sujeito, personificadas na linguagem, em enunciados concretos”. Esses enunciados, presentes em uma determinada esfera de circulação, ao ocorrer a mudança para outra esfera, causam uma modificação, uma estudo dialogamos com três autores presentes no Círculo: Mikhail Bakhtin (1895-1975); Valentin N, Volóchinov (1985-1936); Pável N, Medvédev (1891-1938). O diálogo intelectual desses pen- sadores possibilitou um conjunto de reflexões que influenciaram e influenciam os estudos da lin- guagem e têm conduzido estudiosos contemporâneos a refletir sobre o pensamento bakhtiniano em diferentes campos do conhecimento. 88 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 alteração ou uma subversão nas “relações implicadas nos discursos que constituem um texto ou um conjunto de textos” (Brait, 2009, p. 145-146, grifo do autor). No caso das traduções de poemas da LP para a Libras, processo tradutório que se dá entre línguas (vocal-escrita e gestual-sinalizada), os sujeitos discursivos necessitam mobilizar a obra (poema em LP) em uma determinada língua e realizar “outra” forma e estilo-composicional em outra língua (Libras), enfrentando diversos elementos semióticos. Os signos criados no texto de partida e sua relação individual com o poeta (língua-linguagem) necessitam da compreensão do(s) tradutor(es) e/ ou de outros sujeitos participantes para recriar/cocriar o material tradutório. Conforme Volóchinov (2019), é necessário compreender o que são língua e linguagem, pois é esse o material especial, essencial e peculiar para a criação literá- ria. Com relação à tradução de poemas, o TILS primeiramente necessita ser bilíngue (neste caso, LP e Libras) e ter compreensão ativa e responsiva do texto de partida (poema em LP vocal-escrita). A compreensão ativa e responsiva, ou seja, a possibi- lidade de resposta, é determinada na organização do enunciado e na sua totalidade. Não se trata de uma compreensão simples (passiva) cujo fim seja apenas compreender o que o falante quer dizer, sem avaliar a compreensão de sua fala, sem tirar dela uma conclusão nem apresentar uma reação responsi- va [...]. Toda compreensão é, em maior ou menor grau, prenhe de reação responsiva quer em palavras, quer em uma ação. É justamente nessa com- preensão ativa e responsiva que se fixa o discurso do falante: a compreensão não dubla o compreensível; essa dublagem passiva seria inútil para a socie- dade. (Bakhtin, 2016b, p. 121-122). Na tradução de poema da LP para a Libras, os sujeitos discursivos, ao rea- lizarem esse enunciado tradutório e audiovisual, por meio de um gênero do dis- curso, realizam formas relativamente estáveis e típicas de construção do conjunto, ou seja, a obra tradutória. Bakhtin (2017b) especifica a procura da própria palavra que está no gênero, no estilo, na posição de autor, tendo em vista que a procura da própria palavra é, de fato, procura da palavra precisamente não minha, mas de uma palavra maior que eu mesmo; é o intento de sair de minhas próprias palavras, por meio das quais não consigo dizer nada de es- sencial. Eu mesmo posso ser apenas o personagem, mas não autor primário. A procura da própria palavra pelo autor é, basicamente, procura do gênero e do estilo, procura da posição de autor. (Bakthin, 2017b, p. 47). Neste estudo, a partir dessa perspectiva dialógica de tradução, observamos, na tradução em pauta, como ocorrem as interrelações sócio-históricas e culturais – por meio das línguas e linguagens (verbo-visuais) e pela compreensão ativa e responsiva – entre essas duas comunidades linguísticas, materializadas no corpo- -texto do tradutor-performático. Brait (2009, 2010, 2013, 2015) desenvolve o arcabouço teórico para o estudo do verbo-visual, da verbovisualidade, fundamentando-o por meio das contribui- ções dos estudos de Bakhtin e o Círculo. Conforme a autora, os estudos do signo 89 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais ideológico, realizados por Valentin Volóchinov, em Marxismo e filosofia da lin- guagem (MFL), por exemplo, fundamentam a leitura do visual e da cultura visual: [esse texto] se oferece como investigação fundamental sobre a filosofia da linguagem, colocando o estudo do signo no centro de uma investigação ideológica. A perspectiva semiótico-filosófica-ideológica, justamente a que vai construir o que Volóshinov designa como signo ideológico, é a que serve de fundamento para a leitura do visual, da cultura visual, ainda que Voloshi- nov, aparentemente, não tenha se dedicado à imagem. (Brait, 2013, p. 46). A linguagem verbo-visual, conforme Brait (2015) propõe, é [...] uma enunciação, um enunciado concreto articulado por um projeto discursivo do qual participam, com mesma força e importância, a lingua- gem verbal e a linguagem visual. Essa unidade significativa, essa enuncia- ção, esse enunciado concreto, por sua vez, estará constituído a partir de determinada esfera ideológica, a qual possibilita e dinamiza sua existência, interferindo diretamente em suas formas de produção, circulação e recep- ção. (Brait, 2015, p. 194). Brait (2013) aponta, ainda, alguns aspectos fundamentais e necessários na dimensão verbo-visual. A autora lembra que temos de um lado os estudos do vi- sual, especialmente os ligados à arte. E, também, os estudos que procuram ex- plicar o verbal e o visual articulados num único enunciado, presentes na arte ou fora dela. Este casamento entre o visual e o verbal pode sofrer gradações, ou seja, destacar mais o verbal ou mais o visual; porém, a organização do enunciado é rea- lizada em “único plano de expressão, numa combinatória de materialidades, numa expressão material estruturada” (Brait, 2013, p. 50). Considerados esses aspectos da verbo-visualidade, é possível afirmar que a linguagem audiovisual9, constitutiva da tradução de poemas da LP para a Libras, nosso objeto de estudo, participa, decisivamente, para a arquitetônicasemiótico- -ideológica dessa atividade. Nos estudos da Tradução Audiovisual (TAV10), as pes- quisas pertencentes a Tradução Audiovisual Acessível (TAVa) – subcampo que se relaciona diretamente com os Estudos da Acessibilidade (Nascimento; Nogueira, 2019) – contribuem, decisivamente, com os estudos relacionados à atividade tra- dutória em meios audiovisuais. Segundo os autores, “a tradução e a interpretação da língua de sinais, na maioria das vezes, é apenas citada, de forma tímida, entre 9 Utilizaremos o termo linguagem audiovisual, pois compreendemos que o objeto desta pesquisa é um produto audiovisual composto por três linguagens – verbal, sonora e visual – que, embri- cadas, constroem um enunciado concreto específico. A linguagem audiovisual possui aspectos próximos da linguagem cinematográfica, porém com mais abrangência, engloba tudo aquilo que é verbal, áudio e visual: vídeos caseiros, produções publicitárias, jornal televisivo, filmes etc. Já a linguagem cinematográfica possui aspectos específicos, complexos e é direcionada para produ- ções de filmes. 10 Os conceitos TAV e tradução interlingual estão conectados por meio da legendagem, da dubla- gem, do voice-over e da narração (ou voice-off), devido ao fato de que as leis de acessibilidade para o audiovisual forçaram a tecnologia a pensar em novos recursos que tornassem a comunicação nesse meio acessível a pessoas com deficiência auditiva e visual. 90 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 parênteses ou em notas de rodapé, como uma prática interpretativa para surdos e ensurdecidos [...]” (Nascimento; Nogueira, 2019, p. 117; destaque do autor). Os autores observam um contraponto relacionado às pesquisas que envol- vem a TAV no contexto brasileiro, pois há uma busca para inserir a tradução e a interpretação de línguas de sinais no amplo escopo temático da TAV, especialmen- te no contexto da TAVa. Ao mobilizar língua e cultura em uma plataforma multi- modal audiovisual, a tradução e interpretação de línguas de sinais se enquadra na TAVa. (Nascimento; Nogueira, 2019). O estudo de Nascimento e Nogueira (2019) propõe a mudança da terminologia de janela de Libras para tradução audiovisual da língua de sinais (TALS), pois consideram que a janela de Libras corresponde ao “locus de apresentação da tradução” e a TALS à “prática tradutória em si” (p. 126). Neste estudo, compreendemos que nosso objeto de pesquisa se insere na TALS, pois os tradutores e os sujeitos discursivos responsáveis pela obra realizam uma apropriação do espaço por meio do seu corpo-texto, inserem elementos ver- bo-visuais e compartilham o material audiovisual em uma plataforma contempo- rânea (YouTube). A construção composicional na tradução de poemas da LP para a Libras, além de ser enunciada verbalmente (Libras) e materializada em um corpo-texto, é organizada por elementos verbais e visuais, tais como enquadramentos, planos de fundo, camadas de vídeo, imagens, legendas, efeitos e transcrições, figurinos etc. Assim, por meio das lentes dialógicas e verbo-visuais, observamos como a materialidade enunciativo-discursiva no corpo-texto do tradutor-performático, em sua estrutura interna, aponta para fora, ou seja, é direcionada para os aconte- cimentos na vida. 3 Metodologia Este estudo está inserido no campo da perspectiva qualitativa, do tipo ana- lítico-descritiva e, desta forma, buscamos analisar, compreender e interrelacionar informações que possibilitem a compreensão das relações dialógicas e das posi- ções axiológicas materializadas no corpo-texto do tradutor-performático. Para a análise desenvolvida neste estudo, utilizamos os seguintes materiais: texto de partida (escrito em LP) e tradução em áudio-vídeo (baixadas no canal do YouTube – LP para a Libras). Posteriormente, direcionamos nossas lentes dia- lógicas para as questões referentes à atividade tradutória artístico-poética da LP para a Libras, mais especificamente para as relações dialógicas e para as posições axiológicas presentes na materialidade enunciativo-discursiva no corpo-texto dos tradutores-performáticos. Escolhemos a tradução do poema da LP para a Libras, “Todas as manhãs”, compartilhado no principal site de compartilhamento de vídeos, YouTube, em 2016. Os critérios para escolha desta tradução foram: (a) o texto da tradução em Libras ser realizado por determinados sujeitos e o produto audiovisual ser enun- ciado por outros corpos-textos (sujeitos discursivos); e (b) a composição estética- -ideológica dos corpos-textos. 91 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais Figura 1 – Imagem do nome do canal da TV CES e do título da tradução Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=yOh-uU-BlEk. Com relação à composição estética da obra traduzida, a linguagem audio- visual também é responsável pela captação, pela disposição e pela composição do corpo-texto do tradutor-performático no vídeo. A linguagem audiovisual cria uma uniformidade de comunicação, de modo que os profissionais que trabalham na composição do material audiovisual se utilizam de aspectos técnicos na com- posição do material audiovisual, direcionados para o cinema, televisão etc. (Ro- drigues, 2007). O enquadramento, presente na linguagem audiovisual, é um elemento im- portantíssimo para essa construção semiótica-ideológica da obra traduzida. O enquadramento é pensado e organizado tanto para captar a sinalização e a perfor- mance do tradutor como para captar a totalidade da cena (conjuntos de planos). O corpo-texto do tradutor-performático e todos os elementos presentes na cena são capturados pela lente da câmera e, conforme o enquadramento e os ângulos, cria-se uma estética visual que contribui na construção da obra traduzida. O enquadramento do corpo do tradutor-performático na tradução artísti- co-poética da LP para a Libras, no processo de criação do material audiovisual, é um elemento muito importante. Conforme esse corpo-texto (discursivo) for cap- tado, cria-se uma estética verbo-visual com determinada camada ideológica, ou seja, permeada de valores, a qual atua, necessariamente, na percepção do destina- tário. A seguir, apresentamos alguns planos de enquadramento: Quadro 1 – Planos de enquadramento de acordo com o estudo de Rodrigues (2007, p. 29-30). Close (CL): Pode ser nomeado como primeiríssimo plano. Enquadra o rosto inteiro do tradutor-performá- tico, do ombro para cima. Superclose (SCL): Close fechado do rosto do tradu- tor-performático. O enquadramento é realizado entre o queixo e o limite da cabeça. 92 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Plano Próximo ou Primeiro Plano (PP): o tradu- tor-performático é enquadrado do busto para cima. Plano Médio (PM): o tradutor-performático é enquadrado da cintura para cima. Plano Americano (PA): o enquadramento do tradu- tor-performático é realizado do joelho para cima. Plano Inteiro (PI): o tradutor-performático é en- quadrado da cabeça aos pés, deixando um pequeno espaço acima da cabeça e abaixo dos pés. Fonte: Desenvolvido pelos autores Compreendemos que a tradução de poemas da LP para a Libras é uma ati- vidade complexa e desafiadora, pois cria “outro” poema sinalizado – uma vez que os TILS realizam escolhas enunciativo-discursivas e uma performance tradutória –, envolvendo uma complexa recriação/cocriação semiótica, semântica, sintática e fonológica, que visa à produção dos sentidos e efeitos poéticos correspondentes ao texto de partida. Com isso, os procedimentos metodológicos apresentados acima, foram pensados para observar, descrever e analisar a mobilização materializada no corpo-texto do tradutor-performático nessa atividade tradutória artístico-poética. 4 Análise Na tese (Ferreira-Santos, 2022a), que dá origem aos dados e reflexões apre- sentadas, neste capítulo, – por ser uma pesquisa mais extensa – abordamos diver- sos aspectos na tradução de poemas da LP para a Libras, como: (i) a(s) autoria(s) na tradução de textos artístico-poéticosda LP para a Libras; (ii) as posições valo- rativas dos sujeitos responsáveis em realizar a obra tradutória diante da materiali- dade semiótico-ideológica presente nos textos a serem traduzidos; e (iii) os apaga- mentos e a inserção de outros elementos semióticos-ideológicos na mobilização 93 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais enunciativo-discursiva e no processo de criação do novo material verbo-visual na obra tradutória (visibilidades e invisibilidades semiótico-ideológicas). E para este estudo, realizamos um recorte em que abordamos apenas duas categorias de análise, presentes nos corpos-textos dos tradutores-performáticos: (1) as relações dialógicas; e (2) as posições axiológicas. A materialidade enunciativo-discursiva da tradução de poemas da LP para a Libras é concretizada em um material audiovisual (vídeo). Esse processo de re- criação/cocriação é realizado por sujeitos discursivos únicos, que dialogam com o discurso do autor do texto de partida, assumindo uma compreensão ativa e responsiva. Dessa forma, [...] constroem um novo discurso por meio da atividade tradutória (a partir de suas próprias experiências e com elementos verbo-visuais) atravessada por diferentes “vozes”. Portanto, posicionam-se verbo-axiologicamente, recriam-cocriam um novo projeto-discurso em outra esfera de circulação, endereçado aos interlocutores-sujeitos sociais. (Ferreira-Santos, 2022a, p. 251). Com relação ao endereçamento, conforme Medviédev (2016, p.195), “a obra se orienta para os ouvintes e os receptores, e para determinadas condições de realização e de percepção”; ela entra no espaço e tempo real, pois “ocupa certo lugar na existência, está ligada ou próxima a alguma esfera ideológica”. Segundo o autor, a obra também é orientada na vida, “de dentro, por meio do seu conteúdo temático”. Desse modo, uma obra entra na vida e está em contato com os diferentes as- pectos da realidade circundante mediante o processo de sua realização efe- tiva, como executada, ouvida, lida em determinado tempo, lugar e circuns- tâncias. Ela ocupa certo lugar, que é concedido pela vida, enquanto corpo sonoro real. Esse corpo está disposto entre as pessoas que estão organizadas de determinada forma. (Medviédev, 2016, p. 195). No caso do discurso tradutório em Libras, para que ele seja materializado em um objeto audiovisual, é indispensável a presença de um corpo visível. Com- preendemos que o corpo é o suporte da língua, porém, nas línguas de sinais, ocor- re de “uma forma mais evidente” (Fomin; Santiago, 2021, p. 147). Nessa interdis- cursividade, que se inicia na tradução (texto de chegada) e ganha “outra” ênfase valorativa na entonação expressiva dos tradutores-performáticos e na linguagem audiovisual, o corpo – como suporte da língua, plano de expressão dessa língua – instaura posições axiológicas, materializando relações de embates/tensões/con- flitos sociais. O poema “Todas as manhãs”11, de autoria da escritora, poeta, romancista e ensaísta Maria da Conceição Evaristo, apresenta uma construção poética que 11 Publicado no livro Poemas da recordação e outros movimentos. O livro é uma antologia poética que tem como tema a memória, a feminilidade e a resistência negra, e que foi publicado no ano de 2008 pela editora Nandyala, reeditado posteriormente pela editora Malê, no ano de 2017. 94 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 mobiliza lembranças do sofrimento, da escravidão e da esperança por um futuro melhor, realizando escolhas linguístico-enunciativas que marcam o tom emocio- nal-volitivo12. Quadro 2 – Poema “Todas as manhãs” Todas as manhãs Todas as manhãs acoito sonhos e acalento entre a unha e a carne uma agudíssima dor. Todas as manhãs tenho os punhos sangrando e dormentes tal é a minha lida cavando, cavando torrões de terra, até lá, onde os homens enterram a esperança roubada de outros homens. Todas as manhãs junto ao nascente dia ouço a minha voz-banzo, âncora dos navios de nossa memória. E acredito, acredito sim que os nossos sonhos protegidos pelos lençóis da noite ao se abrirem um a um no varal de um novo tempo escorrem as nossas lágrimas fertilizando toda a terra onde negras sementes resistem reamanhecendo esperanças em nós. Fonte: Evaristo, Conceição, 2017, p. 146-147. O poema, em sua realização arquitetônica, apresenta marcas linguístico- -discursivas de memória e identidade do povo negro, expondo sofrimentos e re- forçando a ideia de resistência e esperança. A atividade estética constitutiva do poema, realizada por Conceição Evaristo, enquanto autora-criadora, e pelo eu poético nele instaurado, traz elementos enunciativo-discursivos que resgatam a memória apagada, aspecto indispensável para a reconstrução das identidades do povo negro. É por meio desses elementos da memória, da transmissão de bens culturais e das informações que o povo negro recompõe suas identidades e sua história. As memórias africanas são heranças das culturas (africanas e brasileiras) e vivências do povo (Evaristo, 1996). A tradução do poema, “Todas as manhãs”, por sua vez, apresenta marcas valorativas do texto de partida, porém, no processo tradutório, por meio da ma- terialização semiótico-ideológica em uma dimensão verbo-visual, instauram-se outras posições axiológicas. A discursividade performática realizada pelos dois tradutores surdos e negros, já não é somente direcionada para o povo negro (texto de partida), mas também para o povo surdo (texto de chegada). Nesse sentido, instauram-se posições valorativas do povo surdo-negro, que buscam resgatar a identidade, a memória e a resistência surda e negra. 12 Mikhail Bakhtin utiliza o termo “emocional-volitivo” para “designar precisamente o momento constituído pela minha autoatividade numa experiência vivida – a experimentação de uma expe- riência como minha: eu penso – realizo uma ação por pensamento” (BAKHTIN, 2010[1919], p. 54). 95 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais Observamos que a não presença dos corpos das tradutoras Miriam Caxilé (ouvinte-negra) e Lívia Villas Boas (ouvinte-branca) foram escolhas intencionais. A presença tradutória e performática dos tradutores surdos-negros, assim como a visibilidade dos seus corpos no material audiovisual, instaura uma relação de identificação com o destinatário suposto/hipotético. Edinho Santos e Nayara Ro- drigues (tradutores-performáticos) têm reconhecimento e prestígio nas comuni- dades surdas, uma vez que realizam movimentos sociais e culturais de militância surda e negra, por meio de poemas sinalizados e de participação em apresentações de slam do corpo. Figura 2 – Tradutoras-performáticos: Edinho Santos e Nayara Rodrigues. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=yOh-uU-BlEk. Na tradução artístico-performática, a materialidade semiótico-ideológica e a sua organização com os corpos-textos trazem elementos enunciativo-discursivos valorativos para as comunidades surdas, especificamente para os surdos-negros. Esse fluxo discursivo intersemiótico e ideológico é consciente e cuidadosamente organizado enquanto enunciado. As escolhas dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado são determinadas pela relação valorativa do falante com o objeto do seu discurso. “O estilo individual do enunciado é determinado sobretudo por seu aspecto expressivo” (Bakhtin, 2016a, p. 47). Essas relações valorativo-discursivas entre os sujeitos discursivos são cons- truídas e reconstruídas e, com isso, esses sujeitos se constituem nessas relações dialógicas carregadas de valores sociais e estéticos. O discurso artístico-poético ganha uma riqueza visual nos corpos-textos dos tradutores-performáticos, por meio de sinais, de gestos, de expressões, de movimentos e de figurinos. Essa é a performance cênica que, juntamente com outros elementos semiótico-ideológicos, marca posições valorativas estéticas e sociais e produz sentidos, efeitosde sentido, emoções/sentimentos. 96 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Figura 3 – Elementos verbo-visuais (performance da tradutora-performática) Fonte: Desenvolvido pelos autores, a partir de imagem do vídeo postado no YouTube Na figura (3), com fundo na cor preta e o lettering do poema em fonte digital na cor cinza claro e com efeito sombreado, desfocado, produz-se o sentido de apaga- mento e silenciamento do povo-negro. Esses elementos verbo-visuais, presentes no material audiovisual, instauram a intencionalidade do projeto discursivo da equipe (tradutores-textuais, tradutores-performáticos – surdos –, produtores etc.) que, ao ser direcionada aos interlocutores das comunidades surdas, recria outra posição valorativa: o apagamento do povo surdo-negro. Já os sinais relacionados aos aspec- tos expressivos determinam o estilo individual na relação valorativa com o objeto. Na performance tradutória artístico-poética, os sinais e a expressão corporal-facial instauram a relação emocionalmente valorativa. Observamos a performance que é realizada por meio do corpo-texto em um determinado espaço, sendo que é por meio de uma perspectiva de imprevisibilidade ou de fratura do uni- verso previsível que a Performance se apresenta como evento/ ocorrência que inclui trajetos e modos de impressão do corpo no espaço e encontra, consequentemente, discursividades de um sujeito que se conta, que se diz, que se narra. (Gonçalves; Gonçalves, 2018, p. 143). Segue a imagem da expressividade por meio do corpo-texto do tradutor- -performático: Figura 4 – Tradutor-performático do surdo corpo-texto Fonte: Desenvolvido por Ferreira-Santos (2022a, p. 172) Todas as manhãs Sinal (Libras) Plano de Fundo e lettering do poema (LP) Tradutora-performática (surda). Segundo Plano Cabelo: crespo e solto Figurino: camisa branca Performance tradutória 97 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais A organização em dimensão verbo-visual da tradução do poema, “Todas as manhãs”, é pensada, organizada e direcionada a certas comunidades surdas, pois a presença dos corpos-textos dos surdos-negros e os elementos semiótico-ideoló- gicos criam uma relação de proximidade com o texto de partida e com os inter- locutores, instaurando uma relação de identidade e alteridade e, com isso, possi- bilitando outros efeitos de sentido, imprevistos, que vão além do texto de partida em LP. Nesse processo de criação verbo-visual, as imagens dos corpos-textos dos surdo-negros, em preto e branco, são enquadradas no PM (plano médio) e possi- bilitam uma melhor percepção visual da sinalização e da performance. O lettering apagado do poema no plano de fundo cria o sentido do apagamento da memória e da identidade do povo negro e do povo surdo. A fonte digital (legenda), na cor amarela (primeiro plano), em LP, produz o sentido de esperança do povo negro presente no texto de partida. Na obra traduzi- da, entretanto, os corpos-textos dos tradutores surdos-negros, que gradativamente obtêm cor, a esperança é direcionada ao povo surdo e negro e ganha um colorido semiótico-ideológico. Figura 4 – Imagens do tradutor-performático surdo-negro Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=yOh-uU-BlEk. As escolhas enunciativo-discursivas, em Libras, buscam aproximar-se do significado-sentido das palavras em LP, pois remetem à linguagem africana e car- regam um posicionamento axiológico do povo negro. Observamos que alguns sinais somente aproximaram-se dos sentidos do texto de partida por causa da jun- ção do corpo-texto e dos elementos semióticos-ideológicos nele contidos. A se- guir, a escolha do sinal em Libras [SONHAR/IMAGINAR] para a palavra “banzo”. 98 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Figura 5 – Escolha poética-sinalizada Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=yOh-uU-BlEk. A escolha do sinal, em Libras, [SONHAR/IMAGINAR] para a palavra “banzo”, presente no poema em LP, aproxima-se da memória nostálgica que aco- metia os escravizados trazidos da África, por meio da visibilidade do corpo negro do tradutor-performático, juntamente com o figurino e a expressão performática. A produção de sentidos e efeitos ocorre também na escolha do sinal em Libras referente às palavras, em LP, “acoito sonhos”, pois aproxima-se do signifi- cado-sentido, porém, ao mesmo tempo, possui uma estética poética por meio da produção do sinal e da performance do tradutor. Figura 6 – Tradutor-performático realizando a escolha dos elementos poéticos sinalizados em Libras referente às palavras em LP: “acoito sonhos”. Fonte: Desenvolvido por Ferreira-Santos (2022a, p. 67) – imagem: https://www.you- tube.com/watch?v=yOh-uU-BlEk&t=66s A palavra em LP “acoito”, remete à linguagem africana, com o sentido de abrigar e proteger os sonhos, de modo a não permitir que eles morram. A visibili- dade do corpo negro do tradutor, o figurino e sua performance referente a palavra “acoito” aproximam-se das mesmas marcas ideológicas do povo negro presentes no poema (texto de partida) e instauram uma relação, emocionalmente, valorativa na obra traduzida. Na performance tradutória, a direcionalidade do olhar realizada pelos tra- dutores causa um impacto estético nas traduções. Sinal [IMAGINAR/SONHAR] Sinal [TOD@] Expressão performática [sentido de 1s TRAZER] 99 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais Quadro 3 – Movimento, direção do olhar e expressão facial e corporal realizado pela tradutora-performática. [...] tenho os punhos sangrando e dormentes tal é a minha lida Fonte: Desenvolvido por Ferreira-Santos (2022a) Diante do exposto, consideramos que os tradutores-performáticos assu- mem, na obra traduzida, posições axiológicas por meio das intenções valorativas, das suas escolhas composicionais (lexicais, entoacionais e gestuais). Dessa forma, realizam outro discurso estético, em outras palavras, um outro enunciado particu- lar, irrepetível e autoral. O corpo-texto do tradutor-performático, juntamente com outros elementos semiótico-ideológicos, instaura uma dimensão verbo-visual e, consequentemente, outros posicionamentos valorativos endereçados às comuni- dades surdas-negras. PRES@/ESCRAV@ PRES@/ESCRAV@ 100 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 5 Conclusão Este estudo teve como objetivo a análise da presença do tradutor-perfor- mático e a maneira como ocorrem as relações dialógicas e as consequentes po- sições axiológicas por elas motivadas, considerando que esse processo engendra e faz circular valores na tradução de poemas da LP para a Libras. Esses valores materializam-se nesse corpo-texto do tradutor-performático e tornam o conjunto esteticamente singular, único, e eticamente comprometido. Na tradução, “Todas as manhãs”, os corpos-textos dos tradutores-performáticos ganham visibilidades (no plural) tornando-se presentes no material audiovisual e, ao mesmo tempo, visíveis para o público final. Esses corpos-textos apresentam intencionalidades e posições, na medida em que criam uma relação de proximidade com o texto de partida e com os interlocutores, instaurando relações de identidade e de alteridade. O poema (texto de partida) apresenta marcas enunciativo-discursivas re- lacionadas às questões de militância negra e busca trazer, à memória, as reivin- dicações e denúncias históricas, bem como a opressão dos afro-brasileiros, ainda nos dias atuais. Além disso, como demonstrado, reforçam a ideia de resistência e esperança futuras. Já na mobilização tradutória, do poema para a Libras, os corpo-textos dos tradutores-surdos e negros, juntamente com os elementos semiótico-ideológicos do produto audiovisual, denunciam o apagamento da memória e da identidade do povo negro e surdo. E buscam resgatar a identidade, a memória e a resistência desses povos. Observamos como as escolhas de alguns sinais para Libras, materializadas nos corpos-textos dos tradutores-performáticos, juntamente com o figurino e a expressãoperformática, aproximam-se do significado/sentido da palavra em LP, contribuindo para a aproximação do sentido e efeitos de sentidos do poema. Essa mobilização enunciativo-discursiva possui uma força coletiva, orga- nizada por diversas linguagens em um conjunto que constitui uma arquitetôni- ca estético-semiótico-ideológica: “as formas do signo são condicionadas, antes de tudo, tanto pela organização social desses indivíduos quanto pelas condições mais próximas da sua interação” (Volóchinov, 2017, p. 109). Concluímos que a tradução de poemas da LP para a Libras, atravessada por um enunciado-texto pertencente à cultura ouvintista, realiza uma releitura enun- ciativo-discursiva e cultural, direcionada às comunidades surdas, possibilitando um outro olhar poético com forte expressividade verbo-visual. Dessa forma, essas obras tradutórias contribuem para uma maneira de ler e ver o poema nas línguas gestuais-sinalizadas das comunidades surdas em uma perspectiva verbo-visual e, também, causam uma ruptura na forma tradicional de leitura de poemas em lín- guas vocais-escritas, imposta aos surdos. Esperamos que este estudo colabore com as investigações sobre a atividade tradutória de poemas da LP para a Libras, com o propósito de contribuir para a formação do intérprete de línguas de sinais e para as atividades de trabalho dos 101 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais tradutores e intérpretes de Libras-LP. Isso tudo, como esperamos, com vistas à inclusão e visibilidade dos surdos como sujeitos de atividades poético-estéticas. Referências BAKHTIN, M. A ciência da literatura de hoje (resposta a uma pergunta da revis- ta Novi Mir). In: Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organiza- ção, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2017a. p. 9-19. BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: Notas sobre literatura, cul- tura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2017b. p. 21-56. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Os gêneros do discurso. 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Pesquisas experimen- tais, como as de Ferreira (2010) e Pavlović (2013), mostram que os tradutores de línguas vocais-auditivas tendem a certos comportamentos (e.g. preferir traduzir para sua primeira língua), possivelmente motivados por questões históricas, so- cioculturais e de prática profissional. Esses mesmos aspectos diferem na tradução de línguas gestuais-visuais e nas práticas profissionais dos tradutores e intérpretes 1 Este capítulo é um recorte da pesquisa de mestrado intitulada Direcionalidade em tradução: uma análise processual em tarefas de tradução no par linguístico Libras-português, conduzida sob orien- tação do professor Dr. José Luiz Vila Real Gonçalves, no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais. 2 Usaremos o termo gestual-visual, conforme Rodrigues (2018a), para nos referir às línguas que dependem do sistema gestual para produção e visual para percepção. 3 Usaremos o termo vocal-auditivo, conforme Rodrigues (2018a), para nos referir às línguas que dependem do sistema vocal para a produção e do auditivo para a percepção. 104 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 de Línguas de Sinais – TILS, como apresentado nas pesquisas experimentais em ASL (American Sign Language) de Nicodemus e Emmorey (2013, 2015). No Brasil, com a diversificação das frentes de trabalhos encaradas atual- mente pelos TILS, a atividade de tradução é uma realidade na atuação desses pro- fissionais, mesmo que em menor escala se comparada a de interpretação, porém ainda pouco investigada e descrita em trabalhos de pesquisa, especialmente com enfoque processual. Neste capítulo, apresentamosuma análise do processo tradutório intermo- dal realizado por dois grupos de tradutores e intérpretes de Libras-português – TILSP, sendo um grupo considerado mais experiente e um grupo menos experien- te, na execução de tarefas de tradução da Libras em vídeo para o português escrito (Libras→PT) e do português escrito para a Libras em vídeo (PT→Libras), por meio de um estudo empírico-experimental. Como metodologia de coleta de dados, uti- lizamos um questionário prospectivo de perfil, a gravação das tarefas de tradução e o protocolo verbal retrospectivo semiguiado. Em relação aos dados, realizamos uma análise qualitativa e quantitativa, sendo que, para a análise quantitativa, uti- lizamos os indicadores de esforço temporal e técnico, adaptados de Krings (2001). Essa pesquisa pretendeu contribuir com novas reflexões e na descrição do comportamento processual do TILSP, envolvendo a direcionalidade como uma das variáveis, bem como com o desenvolvimento de pesquisas empírico-experi- mentais para o campo dos Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais (ETILS). O capítulo será organizado da seguinte forma: na seção 2, apresentamos uma breve fundamentação teórica; na seção 3, a metodologia de coleta e análise de dados, com os detalhes dos procedimentos realizados e o desenho experimen- tal; na seção 4, a apresentação e análise quantitativa e qualitativa dos dados de pesquisa; na seção 5, discutiremos os resultados encontrados; e, por fim, na seção 6, apresentaremos as considerações finais com os possíveis desdobramentos e su- gestões para pesquisas futuras. 2 Fundamentação Teórica Considerando o tradutor, como figura principal do ato tradutório e buscan- do desvendar e compreender seus processos mentais, a abordagem processual, a partir dos estudos processuais da tradução (Alves, 2003), nos permite a observa- ção e descrição das estratégias utilizadas, as possíveis variáveis que podem influen- ciar o produto, a motivação de certas escolhas tradutórias, entre outros fatores que, aplicados e controlados em um desenho de pesquisa empírico-experimental, nos ajudam a entender a complexidade envolvida no processo e no produto de tradução. O campo dos Estudos da Tradução, por se caracterizar como interdisci- plinar, permite observar o processo tradutório utilizando diferentes métodos, técnicas e abordagens teóricas. Neste trabalho de cunho empírico-experimental, 105 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais utilizamos o recurso de gravação de tela por meio do programa OBS Studio e o protocolo verbal retrospectivo. Levando em consideração que, nesta pesquisa, envolveremos o português, que se estabelece na modalidade vocal-auditiva, e a Libras, na modalidade ges- tual-visual, temos o que Rodrigues (2018a) denomina de processo intermodal. Conforme o autor, o processo tradutório intermodal, por envolver línguas de mo- dalidades distintas, sofre implicações decorrentes dos efeitos da modalidade. A modalidade pode incorrer sobre as línguas envolvidas, ou seja, gestual-visual x vocal-auditiva e a modalidade de uso dessas línguas, ou seja, oral x escrita, suge- rindo, assim, uma dupla intermodalidade para as tarefas propostas. Essa dupla in- termodalidade, possivelmente, causa impactos no desempenho dos TILSP e deve ser considerada durante as análises. Como referência de trabalhos que envolvem o processo de tradução ou interpretação intermodal com viés experimental, recor- remos a Rodrigues (2013), Zampier (2019) e Avelar (2020). Assim como a modalidade e os efeitos da dupla intermodalidade, a di- recionalidade é uma variável que pode causar impactos no processo tradutório intermodal. Bessa (2022) em sua dissertação, compreende a direcionalidade da seguinte maneira: direcionalidade é um fenômeno que se estabelece a partir da relação do tradutor com as línguas envolvidas. A figura do tradutor é essencial na de- finição de direcionalidade, pois esse “efeito de direcionalidade” acontece e depende da relação do tradutor com a língua-fonte (L1, L2, L3...) e a língua- -alvo (L1, L2, L3...). (Bessa, 2022, p. 33). No contexto das línguas gestuais-visuais, as pesquisas sobre direcionalida- de ainda são escassas e a maioria aborda os processos interpretativos. Com isso, apoiamo-nos em pesquisas sobre direcionalidade na interpretação simultânea in- termodal, como as de Nicodemus e Emmorey (2013, 2015) e Silva (2021). Na tentativa de qualificar e quantificar o esforço despendido durante o pro- cesso tradutório, realizamos uma adaptação para a tradução intermodal das de- finições de esforço temporal e esforço técnico proposto por Krings (2001) para a pós-edição. O esforço temporal, de forma sucinta, é o tempo despendido durante a tarefa e o esforço técnico, é o esforço mecânico (digitação, exclusão, inserção etc.) despendido durante a tarefa. Jakobsen (2002), ao realizar uma pesquisa experimental com tradutores no par linguístico inglês-dinamarquês, observou que o processo tradutório se dividia claramente em três fases: uma fase inicial de orientação, uma fase intermediária de redação (ou produção da primeira versão) e uma fase final de revisão. Para con- tribuir na mensuração e parametrização do esforço temporal e técnico, realizados neste trabalho, nos baseamos na segmentação proposta por Jakobsen (2002) e a adaptamos para o processo tradutório intermodal para as tarefas de tradução do PT→Libras e da Libras→PT. 106 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 3 Metodologia Nesta seção, descreveremos o desenho experimental, detalhando os cri- térios de seleção de participantes para a pesquisa experimental, a aplicação do questionário prospectivo de perfil, os procedimentos das tarefas de tradução nas direções Libras→PT e PT→Libras, a seleção dos textos fonte em português e em Libras e, por fim, a metodologia de análise de dados. 3.1 Os participantes Como forma de coletar dados sobre o perfil dos TILSP e selecionar parti- cipantes para a tarefa experimental, aplicamos um questionário prospectivo de perfil, elaborado com base em Zampier (2019), com perguntas relacionadas ao perfil acadêmico e profissional, compreensão geral sobre as atividades de tradução e interpretação e questões direcionadas à prática e experiência profissional com a tradução intermodal, que foi o foco da pesquisa. O questionário recebeu 116 respostas e, a partir delas, selecionamos oito TILSP, organizados em dois grupos: um grupo com quatro participantes, consi- derados mais experientes (G1), com mais de doze anos de atuação na área; e o grupo considerado menos experiente (G2), com quatro a seis anos de atuação na área. Fizemos uma escolha arbitrária para a faixa temporal de experiência profis- sional, presumindo que a expertise4 em tradução e em interpretação apresentaria uma correlação direta com o tempo de atuação e que o intervalo temporal entre os dois grupos seria suficiente para se observar tal distinção. Os participantes da tarefa experimental se enquadraram nos seguintes critérios: (i) ter a atividade de TILSP como principal fonte de renda; (ii) ter alguma experiência com a tradução Libras-português, com trabalho publicado em sites institucionais ou na grande mídia; (iii) ter pelo menos uma das seguintes credenciais: certificado Prolibras, ou avaliação de proficiência realizada por instituições de ensino superior ou cre- denciadas por Secretarias de Educação, ou bacharelado em Letras-Libras; e (iv) ter o português como L1 e a Libras como L2. Participantes que se autodeclararam CODAs5, no questionário prospectivo de perfil, não tiveram seus dados aplicados a esta pesquisa, pela possibilidade de considerarem possuir mais de uma L1 ou língua materna (i.e., Libras e português). 3.2 A tarefa de tradução e seus procedimentos Os oito TILSP participantes realizaram a tradução de um texto do portu- guês escrito para a Libras em vídeo e a tradução de um texto em Libras em vídeo para o português escrito.A ordem de realização das tarefas foi alternada entre os 4 Utilizamos o conceito de expertise conforme Shreve (2006). 5 Children of Deaf Adults. 107 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais TILSP para minimizar o efeito de facilitação ou familiaridade. O texto em Libras6, disponível em vídeo, foi elaborado por uma pessoa surda, sendo sua L1 a Libras, com a duração de 1 minuto. O vídeo, postado pelo autor nas redes sociais, tem o objetivo de alertar e explicar sobre o tema “manipulação”. A partir do texto em Libras, foram produzidas duas traduções para o português escrito e a partir des- sas traduções, foi solicitado a uma professora de português, sem o conhecimen- to da Libras, que elaborasse um texto em português7 de forma livre, seguindo os mesmos padrões linguísticos, estilísticos e discursivos das traduções apresentadas, com o objetivo de ser publicado nas redes sociais. Convidados para participar como voluntários, com base nas informações do questionário prospectivo de perfil, os TILSP realizaram as tarefas de tradução por meio de videochamada via Google Meet, plataforma que disponibilizou recur- sos úteis para a aplicação do experimento, como o compartilhamento de tela e o chat para compartilhamento de links com os textos que seriam traduzidos. Antes de iniciar o experimento, os participantes foram orientados e informados sobre todos os procedimentos das tarefas de tradução a serem executadas. Optamos por não informar sobre o assunto do texto, a fim de evitar qualquer influência na tra- dução. Todo o experimento foi gravado pelo software OBS Studio, que possui a função gravar tela. Os participantes podiam despender o tempo que julgassem necessário para a realização das tarefas, bem como consultar especialistas, realizar pesquisas on-line ou utilizar qualquer material físico que desejassem, desde que pudéssemos acompanhar todos os procedimentos. Para gerar os dados qualitativos de ordem subjetiva, aplicamos o protocolo verbal retrospectivo semiguiado8, com perguntas sobre as facilidades, dificuldades e estratégias utilizadas durante cada uma das traduções e uma autodeclaração de como consideravam seu desempenho em cada uma das direções. 3.3 Metodologia de análise de dados A análise de dados foi dividida em duas etapas: (i) análise qualitativa; e (ii) análise quantitativa. Utilizamos para a análise qualitativa, as respostas advin- das do questionário prospectivo de perfil, a gravação das tarefas de tradução, o protocolo verbal retrospectivo e a discriminação das ações durante o processo tradutório nas direções Libras→PT e PT→Libras nas fases de orientação, redação e 6 Link do texto em Libras para a tradução Libras→PT: https://www.youtube.com/watch?v=wi9U- Touyy5Y. Vídeo disponível originalmente na rede social do autor, sendo autorizado a ser utilizado para os fins desta pesquisa. 7 Para conhecer o texto em português para a tradução PT→Libras, acessar a dissertação comple- ta de Bessa (2022), disponível no Repositório da UFMG link: https://repositorio.ufmg.br/hand- le/1843/42863. Acessar o Apêndice D, página 143. 8 Para conhecer o protocolo verbal retrospectivo semiguiado aplicado na pesquisa, acessar a dis- sertação completa de Bessa (2022), disponível no Repositório da UFMG link: https://repositorio. ufmg.br/handle/1843/42863. Acessar o Apêndice E, página 144. 108 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 revisão do processo tradutório (Jakobsen, 2002), conforme o Quadro 1 e o Qua- dro 2, a seguir. Quadro 1 – Fases do processo tradutório intermodal na direção Libras→PT Fase de orientação Tempo do participante assistindo ao vídeo do TF em Libras e tempo de apoio externo antes do participante iniciar a produção do texto da tradução. Fase de redação Tempo para a realização da primeira versão do TA: inicia quando o participante digita a primeira tecla, sendo considerado nesta fase o tempo de digitação e edição do TA, tempo consultando o TF e o tempo de apoio externo. A fase se encerra ao digitar o último ponto final do TA pela primeira vez. Fase de revisão Tempo despendido realizando ajustes finais no TA e apoio externo. Fonte: Bessa (2022, p. 53). Quadro 2 – Fases do processo tradutório intermodal na direção PT→Libras Fase de orientação Tempo do participante lendo o TF em português e tempo de apoio externo antes de iniciar a produção de sinais para a tradução. Fase de redação Inicia quando o participante realiza o primeiro sinal, considerando nesta fase o tempo da sinalização de preparação, o tempo de recodificação (conversão do TF escrito em áu- dio), o apoio externo e o tempo da primeira tradução do TA em Libras gravada em vídeo. A fase se encerra ao finalizar a produção do TA gravado em vídeo pela primeira vez. Fase de revisão Tempo visualizando a gravação do TA, tempo em apoio externo e tempo gravando novas versões do TA em vídeo. Fonte: Bessa (2022, p. 54). Para a análise quantitativa, realizamos um mapeamento dos indicadores de esforço temporal e técnico, com base no trabalho de Krings (2001) para a pós- -edição, elaborando uma proposta exploratória de definição métrica de esforço temporal e técnico na tradução intermodal. Como indicador de esforço temporal, utilizamos o tempo total despendido em cada fase (orientação, redação e revisão) e em cada direção (PT→Libras e Libras→PT). Para o esforço técnico, as análises foram realizadas separadamente para cada direção, devido às diferenças entre a modalidade das línguas envolvidas e os produtos dos TA. Na tradução Libras→PT, foram consideradas, como medidas de esforço téc- nico, as ações de produção e edição, sendo: (i) total de caracteres produzidos no TA (CTA); (ii) caracteres apagados na fase de redação (CARd); e (iii) caracteres apagados na fase de revisão (CARv). Definimos a fórmula: 2x CARd + 2x CARv + CTA, para calcularmos o total de caracteres. Para a tradução na direção PT→Libras, foram consideradas as seguintes medidas para o esforço técnico: (i) total de sinais produzidos no TA (STA); (ii) total de sinais produzidos na fase de redação (SRd); e (iii) total de sinais produ- zidos na fase de revisão (SRv). Definimos a soma SRd + SRv, para calcularmos o total de sinais. 109 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais A fim de viabilizar uma comparação do esforço temporal (ETp) e do esforço técnico (ETc) entre as duas direções na tradução intermodal, levando em consi- deração a diferença de modalidade entre as línguas envolvidas, elaboramos uma proposta exploratória de definição métrica a partir de fórmulas ponderadas. O cálculo para o esforço temporal para as duas direções foi estabelecido pela relação entre o tempo total de cada participante e o maior tempo despendido na tarefa (RTTM) somado à relação de tempo ponderado das fases (RTPF), tendo a seguinte fórmula: RTTM + RTPF = ETp. Para calcular o esforço técnico para a tradução na direção Libras→PT, uti- lizamos a relação de esforço mecânico de digitação (REMD) multiplicado pelo valor da relação de esforço de busca de auxílio externo (REAEx), sendo a fórmula: REMD x REAEx = ETcTLP. O esforço técnico para a tradução na direção PT→Li- bras foi formado pela relação de esforço mecânico de sinalização (REMS) multi- plicado pela relação de esforço de busca de auxílio externo, gravações de áudio e de sinalizações (REAEx-i), sendo a fórmula: REMS x REAEx-i = ETcTPL. Tendo o esforço temporal e técnico ponderado para cada direção e levando em consideração que o resultado dos cálculos propostos gera grandezas aproxi- madas, sugerimos a parametrização para a síntese do esforço temporal e técnico (ETT). Com isso, apresentamos a seguinte equação: ETT = ETp + ETc. Como exposto por Bessa (2022), a proposta de parametrização de esfor- ço temporal e técnico não pretende realizar generalizações e reconhece que tem limitações, porém com ela buscamos contribuir com as pesquisas experimentais intermodais e pesquisas vinculadasaos ETILS. 4 Apresentação e análise dos dados de pesquisa 4.1 Resultado do questionário prospectivo de perfil O questionário prospectivo de perfil recebeu 116 respostas de TILSP de to- das as regiões do país, sendo a região sudeste a mais expressiva. O nível de escola- ridade da maioria dos respondentes é a pós-graduação lato sensu (especialização). Quando perguntados sobre sua primeira língua, 100% dos respondentes disseram que tinham o português como L1. Dos 116 respondentes, 111 (96%) disseram ter como segunda língua a Libras. Com isso, como desejávamos analisar respostas dos participantes que tinham como L1 o português e como L2 a Libras, os 5 respon- dentes que não apresentaram esse padrão de respostas não foram considerados para as próximas questões referentes à direcionalidade. Ao serem perguntados em qual direção se sentiam mais proficientes para traduzir, 51,4% disseram que da sua L1 para sua L2, 36,9% disseram se sentir igualmente proficientes em ambas as direções e 11,7% disseram da sua L2 para a sua L1. Sobre a direção que se sentem mais proficientes para interpretar, 61,3% disseram que da sua L1 para sua L2, 27% disseram se sentir igualmente proficien- tes em ambas as direções e 11,7% disseram da sua L2 para sua L1. O mesmo tipo 110 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 de pergunta foi realizada para a tradução e para a interpretação para que os res- pondentes perceberem que estávamos tratando as duas atividades como distintas, possibilitando-nos realizar análises do padrão de respostas em cada uma delas. Sobre a preferência por alguma direção de tradução, ao serem perguntados sobre em qual direção preferiam traduzir, 52,3% disseram que da sua L1 para sua L2, 36,9% disseram não ter preferência de direção para traduzir e 10,8% dis- seram que preferiam traduzir da sua L2 para sua L1. Já para a interpretação 67,6% disseram que preferem interpretar de sua L1 para sua L2, 23,4% disseram não ter preferência de direção para interpretar e 9% disseram que preferem interpretar da sua L2 para sua L1. Sobre a formação recebida em tradução e em interpretação, para a tradução 67,6% disseram que receberam a formação em tradução da sua L1 para sua L2, 14,4% disseram que receberam treinamento em ambas as direções igualmente, 11,7% disseram que receberam formação da sua L2 para sua L1 e 6,3% disseram que não receberam formação em tradução. Na pergunta sobre formação em inter- pretação, 77,5% disseram que receberam formação da sua L1 para sua L2, 12,6% disseram que receberam formação da sua L2 para sua L1, 9% disseram que rece- beram formação em ambas as direções igualmente e 0,9% disseram que não rece- beram formação em interpretação. Podemos observar o seguinte com as respos- tas apresentadas pelos respondentes: (i) os TILSP em sua maioria se sentem mais proficientes, preferem e declararam receber uma maior formação de sua L1 para sua L2, tanto na tradução quanto na interpretação; (ii) os dados sobre a tradução e a interpretação, apresentaram diferenças nas porcentagens, demonstrando uma possível compreensão por parte dos respondentes sobre a diferença das atividades de tradução e de interpretação; e (iii) existe uma preferência na direcionalidade para a tradução intermodal da L1 para a L2, diferentemente da preferência dos tradutores intramodais que é da L2 para L1. 4.2 Análise qualitativa do experimento da tradução na direção Libras→PT A partir do questionário prospectivo de perfil, selecionamos 8 TILSP pro- fissionais, sendo 4 TILSP menos experientes (entre 4 e 6 anos de experiência pro- fissional) e 4 TILSP mais experientes (com 12 anos ou mais de experiência profis- sional). Todos os participantes realizaram as mesmas tarefas (uma tradução para L1 e outra para L2), alternando-se a ordem de início das tarefas entre os partici- pantes e, ao final, responderam o protocolo retrospectivo semiguiado. Jakobsen (2002) categoriza o processo tradutório nas fases de orientação, redação e revisão. Com base na observação da gravação do experimento e do pro- tocolo retrospectivo semiguiado, apresentaremos nossas observações a partir do desempenho dos participantes e as delimitações em cada fase no processo tradu- tório intermodal. Conforme Bessa (2022), com base em Jakobsen (2002), a fase de orienta- ção se dá quando o tradutor tem acesso ao texto fonte (TF) e é finalizada assim 111 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais que o tradutor digita a primeira letra ou caractere do texto alvo (TA); no caso da tradução intermodal, quando realiza o primeiro sinal. Nessa fase, foi contabili- zado o tempo que os TILSP se dedicaram assistindo ao TF (vídeo em Libras) e recorreram ao apoio externo. Nessa tarefa, nenhum dos participantes demandou o apoio externo e verificamos que os mais experientes (G1) dedicaram mais tempo na compreensão do TF, antes de iniciar a produção do TA, em comparação com os participantes menos experientes (G2). A fase de redação inicia-se assim que o tradutor aciona a primeira tecla para a elaboração do TA. Consideramos para a tradução intermodal a digitação da produção do TA, consultas/retomadas ao TF e pesquisas externas, sendo essa fase finalizada quando o TILSP digita o último ponto final ou o último caractere correspondente ao TF pela primeira vez. Durante essa fase, foi relatada dificuldade por parte dos participantes em lidar com a produção do português escrito. Com isso, pudemos observar uma dispersão dos dados entre os participantes mais ex- perientes e menos experientes em relação ao tempo gasto digitando e editando o TA, consultando o vídeo do TF e o tempo despendido em apoio externo durante a fase de redação. A fase de revisão, tem o seu início definido logo após o tradutor digitar o último ponto final ou o último caractere pela primeira vez, sendo considerado, en- tão, o final da primeira versão da tradução. Com a primeira versão pronta, inicia- -se a fase de revisão com os ajustes finais do tradutor no TA. Consideramos, nessa fase, o tempo despendido pelos participantes realizando ajustes finais e pesquisas externas. 4.3 Análise qualitativa do experimento da tradução na direção PT→Libras No questionário prospectivo de perfil, a maioria dos participantes disse que prefere realizar a tradução na direção PT→Libras (para L2). Supomos que essa preferência esteja relacionada, entre outros fatores, com a prática de interpretação na direção PT→Libras, que é a preponderante entre os TILSP. Para a fase de orientação na tradução intermodal PT→Libras, consideramos o momento em que os participantes iniciam a leitura do TF e a finalização é defi- nida quando o participante realiza o primeiro sinal para a elaboração do TA em Libras. As pesquisas externas também foram contabilizadas em cada uma das fases (orientação, redação e revisão). Nessa fase de orientação, não foram observados padrões recorrentes entre os participantes, mas, de forma geral, verificamos que os participantes mais experientes despenderam mais tempo. Definimos o início da fase de redação da tradução PT→Libras quando o TILSP realiza o primeiro sinal, mesmo que a produção do sinal seja apenas uma “preparação” para a elaboração do TA, e consideramos a fase finalizada assim que o TILSP produz o último sinal do TA pela primeira vez. A fase de redação foi com- posta pelas etapas: (i) preparação (momento em que o TILSP realiza a produção de sinais de forma aleatória ou ordenada, com o intuito de formular a produção do 112 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 TA); (ii) recodificação (a transformação do TF do português escrito para o portu- guês em sua modalidade de uso oral); (iii) apoio externo; e (iv) primeira tradução gravada. Nesta fase, por haver várias etapas e demandas operacionais, presumimos que, ao se tratar de esforço temporal, a tradução PT→Libras pudesse demandar mais tempo dos participantes. Porém, ao verificarmos os dados de uma forma geral e com a aplicaçãode testes estatísticos, observamos que essa suposição não se confirmou, além das medidas de tempo apontarem para maior duração média para a tradução na direção Libras→PT. Após a fase de redação, inicia-se a fase de revisão, na qual os participantes fazem as correções, as alterações e/ou os ajustes que julgam necessários. Nesta fase, os TILSP ainda podem recorrer às pesquisas externas para solucionar algum problema ou validar uma tomada de decisão. Dividimos essa fase nas seguintes etapas: (i) visualização da tradução realizada; (ii) regravações da tradução; e (iii) pesquisas externas. Percebemos, nesta fase, novamente uma dispersão dos dados entre os participantes. Na fase de revisão, o que se percebe, normalmente, entre tradutores mais experientes é um dispêndio significativo de tempo, por ser con- siderada uma etapa importante durante o processo tradutório, para se garantir a qualidade do produto final. Porém, no nosso experimento, três dos tradutores experientes sequer assistiram às traduções realizadas, demonstrando que a tarefa tradutória ainda não é dominada de forma suficiente entre os TILSP experientes. 4.4 Análise quantitativa do experimento Baseando-nos em Krings (2001), nos desdobramentos de Fonseca (2016) e conforme Bessa (2022), utilizamos para a análise quantitativa as medidas de esforço temporal e esforço técnico para a tradução intermodal. Ressaltamos que a pesquisa foi realizada com um número limitado de participantes, porém con- sideramos que os resultados servem como uma exploração inicial relevante. Foi utilizado o teste não paramétrico de Wilcoxon para as amostras dependentes e o teste não paramétrico de Mann-Whitney para as amostras independentes, consi- derando a ausência de normalidade na maioria das amostras. Comparando os grupos G1 e G2, levando em consideração as fases (orien- tação, redação e revisão) isoladamente ou o tempo total da tarefa, não foram en- contradas diferenças significativas. Também não houve diferenças significativas entre as fases nas duas direções ou na comparação de cada fase entre a tradução Libras→PT e a tradução PT→Libras. Na tradução Libras→PT, considerando todos os participantes conjuntamen- te, ou seja, G1 e G2, tivemos alguns dados apontados como significativos como o tempo despendido na fase de orientação (158,5s), significativamente menor que o tempo despendido na fase de redação (582,5s), e esse último, significativamente maior que o tempo despendido na fase de revisão (89,5s). Para a quantificação do dispêndio de esforço técnico, as análises foram realizadas separadamente para a tradução Libras→PT e PT→Libras. Como men- 113 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais cionado na seção 3.3, a fórmula que usamos para mensurar o esforço técnico na tradução Libras→PT foi a seguinte: 2x CARd + 2x CARv + CTA. A quantificação duplicada de CARd e CARv se dá pela lógica dos TILSP primeiro realizarem a ação de digitação e, posteriormente, a ação de apagamento do caractere, gerando assim um esforço técnico/mecânico dobrado (uma tecla é digitada e depois apa- gada). Ao serem aplicados os testes estatísticos não paramétricos de Wilcoxon e Mann-Whitney, não foram observadas diferenças significativas entre os grupos ou entre as fases. Um resultado significativo, mas esperado, foi a maior produ- ção dos participantes do G1 e G2 durante a fase de redação em relação à fase de revisão. Na tradução na direção PT→Libras, para a quantificação do dispêndio do esforço técnico, utilizamos o total de sinais produzidos no TA (STA) considerando a soma SRd + SRv, sendo que, em alguns casos, o SRd inclui também os sinais do TA. Com a aplicação dos testes estatísticos, foi apresentada uma diferença signifi- cativa na produção de sinais no TA entre os grupos G1 e G2. O grupo G1 apresen- tou uma produção de sinais significativamente maior (134,0) que a produção de sinais do grupo G2 (83,0). Outro dado significativo indicou que a quantidade de sinais produzidos no TA (STA) é significantemente menor que os sinais produzi- dos na fase de redação (SRd). 4.5 Proposta exploratória de definição métrica do esforço temporal e técnico na tradução intermodal Como exposto na metodologia de análise de dados, elaboramos uma proposta exploratória de definição métrica, com o objetivo de parametrizar as medidas de esforço temporal e esforço técnico. A partir dos resultados, foram aplicados testes estatísticos para verificarmos se haveria diferenças significativas entre as amostras. Para quantificar o esforço temporal (ETp), utilizamos a relação entre o tempo total de cada participante e o tempo máximo da tarefa (RRTM) somado à relação do tempo ponderado das fases (RTPF), sendo RRTM + RTPF = ETp9. Após a aplicação de testes estatísticos, os valores não apresentaram diferenças es- tatisticamente significativas entre as direções (Libras→PT x PT→Libras) ou entre os grupos (G1 x G2). Para a quantificação do esforço técnico (ETc), por haver a diferença entre as unidades de produção, os cálculos para cada direção foram realizados separa- 9 Em RRTM, calcula-se: tempo total de cada participante em cada tarefa (TT) dividido pelo tempo total máximo, que se refere ao tempo do participante que mais demorou a realizar a tarefa (TTM). Para os valores de RTPF, utilizamos a ponderação: tempo da fase de orientação (TO) dividido pelo tempo total de cada participante em cada tarefa (TT) somado a duas vezes tempo da fase de redação (TRd) dividido pelo tempo total de cada participante em cada tarefa (TT) somado a três vezes o tempo da fase de revisão (TRv) dividido pelo tempo total de cada participante em cada tarefa. Com isso, RRTM + RTPF é o resultado de TT/TTM + (TO/TT + 2x TRd/TT + 3x TRv/ TT). 114 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 damente. Para o esforço técnico na direção Libras→PT (ETcTLP), considerando a unidade caracteres, decidimos multiplicar a relação de esforço mecânico de digita- ção (REMD) pelo valor da relação de esforço de busca de auxílio externo (REAEx). Dessa forma, temos: REMD x REAEx = ETcTLP10. Para o cálculo do esforço técni- co na direção PT→Libras (ETcTPL), considerando a unidade sinais, multiplicamos a relação de esforço mecânico de sinalização (REMS) pela relação de esforço de busca de auxílio externo, gravações de áudio e de sinalizações (REAEx-i), sendo REMS x REAEx-i = ETcTPL11. Aplicados os testes estatísticos, Teste T de Student para as amostras dependentes e independentes, assim como no esforço temporal, as amostras do esforço técnico não apresentaram diferenças estatisticamente sig- nificativas entre as direções ou entre os grupos. Pode-se supor, a partir dos resultados, que não haja um padrão consistente entre os grupos, que parecem ter tido uma formação limitada ou reduzida em relação às atividades de tradução, seja Libras→PT, seja PT→Libras. Porém, existe a necessidade de análises mais aprofundadas e de estudos com maior número de participantes a fim de se obterem dados que apontem de forma mais consistente possíveis padrões e tendências. Por fim, com base nas explorações anteriores, decidimos apresentar um pa- râmetro que sintetizasse os dois esforços abordados, nesta pesquisa, considerando que, após as ponderações, os valores dos dois parâmetros de esforço têm gran- dezas próximas, sendo o esforço temporal e técnico (ETT) o resultado da soma do esforço temporal (ETp) e do esforço técnico (ETc), ou seja, ETT = ETp + ETc. Após o teste de correlação, entre os participantes menos experientes, não foi en- contrado um padrão recorrente e, com relação aos participantes mais experientes, 10 Para conseguirmos o valor de REMD, primeiro é preciso saber o valor do esforço mecânico de digitação (EMD). Para isso, calculamos o total de caracteres do TA (CTA) somado a duas vezes o valor do total de caracteres apagados na fase de redação (CARd), somados a duas vezes o valor do total de caracteres apagados na fase derevisão (CARv), sendo CTA + 2x CARd + 2x CARv = EMD. Achado o valor de EMD, divide-se esse pelo maior valor de esforço mecânico de digitação entre os participantes (EMDmax) e assim teremos o valor de REMD (EMD/EMDmax = REMD). Para o cálculo de REAEx, que é a medida de esforço de busca de auxílio externo ponderado em relação ao conjunto de participantes, é proposta a divisão do total de sites acessados em buscas de apoio externo (AEx) pelo maior valor de busca de auxílio externo entre os participantes (AExmax). Alguns participantes não realizaram pesquisas externas e para que o valor não resulte em um valor final igual a zero, a proposição inclui a soma a um, para que varie entre um e dois. Assim temos: 1+ AEx/ AExmax = REAEx. 11 Para conseguirmos o valor de REMS, primeiro é preciso saber o valor do esforço mecânico de sinalização (EMS). Para isso, somamos o total de sinais produzidos em diferentes fases da tarefa, incluindo o produto traduzido. Assim, somamos o total de sinais produzidos na fase de redação (SRd) ao total de sinais produzidos na fase de revisão (SRv), sendo SRd + SRv = EMS. Achado o valor de EMS, dividimos pelo maior valor de esforço mecânico de sinalização entre os participan- tes (EMSmax) e assim teremos o valor de REMS (EMS/EMSmax = REMS). Para o cálculo de REAEx- -i, propomos que o valor do total de sites (telas) acessados em busca de apoio externo (AEx) seja dividido pelo maior valor de AEx entre os participantes (AExmax), soma-se a isso o valor estabele- cido (1 ou 0, sendo 1 = sim; 0 = não) para gravação de áudio do texto em português (GA), somado ainda à divisão entre o número de gravações e sinalizações do TA (GS) e o maior valor de GS entre os participantes (GSmax). Assim temos: 1 = AEx/AExM + GA + GS/GSmax = REAEx-i. 115 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais observou-se que dois participantes tiveram uma diminuição de esforço temporal e técnico na tradução PT→Libras em relação à Libras→PT, enquanto dois outros participantes apresentaram a tendência oposta. Em termos de análise dos fenômenos observados, não podemos afirmar que haja um padrão recorrente e sistemático em nenhum dos grupos ou no con- junto de participantes; como dito anteriormente, são necessários estudos mais aprofundados com um número maior de participantes. 5 Discussão dos resultados Ao observarmos a existência de uma indicação de tendência de preferên- cia para o processo interpretativo intermodal, que é o processo mais comum de atuação entre os TILSP, esta pesquisa pretendeu verificar se, assim como ocorre na interpretação, na tradução intermodal do par-linguístico Libras-português, ha- veria uma tendência de preferência de direcionalidade. Para isso, utilizamos as respostas do questionário prospectivo de perfil. Tivemos no questionário 111 res- postas válidas para a pergunta “em qual direção prefere traduzir” e 52,3% (58 res- pondentes) disseram preferir traduzir da sua L1 para sua L2, ou seja, mostraram preferência pela tradução na direção PT→Libras. Com isso, podemos inferir, que diferentemente da tradução intramodal com línguas vocais-auditivas, na tradu- ção do par linguístico Libras-português, existe uma preferência de direcionalidade para a direção PT→Libras. Conforme exposto pelos participantes do experimento, em Bessa (2022), elencamos os principais motivos que os levam a preferir a tradução na direção PT→Libras: (i) maior rapidez e agilidade para produzir e fazer escolhas na tradu- ção para a Libras; (ii) sensação de conforto ao traduzir do português para a Libras; (iii) falta de prática na tradução da Libras para o português; (iv) sensação de maior esforço cognitivo na tradução da Libras para o português; e (v) na tradução da Libras para o português, os ouvintes são mais críticos e avaliativos que o público surdo. Sobre as estratégias de tradução na direção Libras→PT, utilizadas pelos TILSP menos experientes e mais experientes na tradução, as principais observa- das e relatadas durante o protocolo verbal retrospectivo foram: (i) assistir ao vídeo em Libras mais de uma vez; (ii) recorrer a apoio externo; e (iii) considerar a ar- ticulação labial (mouthing) do autor. Na direção PT→Libras, as estratégias foram as seguintes: (i) recorrer a apoio externo; (ii) gravar em áudio o texto escrito em português (recodificação); e (iii) utilizar um sinal correspondente a outro. As es- tratégias mencionadas não foram necessariamente utilizadas por todos os partici- pantes, não sendo possível identificar uma tendência entre os grupos. A estratégia de recodificação do texto, como decidimos chamar nesta pes- quisa, aproxima os TILSP da experiência com a interpretação simultânea, com a qual estão mais acostumados a atuar, implicando um processo híbrido, mesclando aspectos do processo tradutório com aspectos da interpretação. 116 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Apesar de elencarmos, acima, algumas das estratégias empregadas pelos participantes do experimento, observamos uma variação nos procedimentos uti- lizados pelos TILSP e uma falta de padrão consistente tanto para o grupo menos experiente quanto para os mais experientes, indicando possivelmente uma falta de formação e orientação sobre as ações e estratégias para o processo tradutório intermodal. Cada participante se apropriou de uma ou mais estratégias conforme sua necessidade e de maneira idiossincrática. Para a quantificação do dispêndio de esforço temporal, foi realizada a con- tabilização do tempo gasto nas fases de orientação, redação e revisão de cada dire- ção; e o dispêndio de esforço técnico foi feito a partir da contabilização do esforço mecânico de ações de produção e/ou apagamentos realizados em cada fase nas duas direções. As fases do processo de tradução (orientação, redação e revisão) foram compostas por etapas diferentes, considerando as especificidades de cada direção e essa categorização foi baseada na proposta de Jakobsen (2002). Nos Quadros 3 e 4, abaixo, apresentamos uma síntese das principais obser- vações da análise qualitativa e quantitativa para o esforço temporal e esforço téc- nico. Para o esforço temporal, não houve diferenças significativas entre os grupos ou entre as fases, a partir dos testes estatísticos, e para o esforço técnico, apenas o seguinte dado foi estatisticamente confirmado: (i) na tradução PT→Libras, os TILSP mais experientes produziram uma maior quantidade de sinais no TA em relação aos menos experientes. Quadro 3 – Síntese do resultado das análises do esforço temporal Esforço Temporal Fases do proces- so de tradução Tradução Libras→PT Tradução PT→Libras Fase de Orientação Os TILSP mais experientes dedicaram mais tempo na fase de orientação em relação aos menos experientes. Os TILSP mais experientes dedicaram mais tempo na fase de orientação em relação aos menos experientes. Fase de Redação Os dois grupos de TILSP despenderam mais tempo na fase de redação em relação às fases de orientação e de revisão. Não houve padrão ou diferença signifi- cativa entre os grupos de TILSP na fase de redação. Fase de Revisão Os TILSP mais experientes dedicaram me- nos tempo na fase de revisão em relação aos menos experientes. Não houve padrão ou diferença signifi- cativa entre os grupos de TILSP na fase de revisão. Dispêndio total De forma geral, os dois grupos de TILSP despenderam mais tempo no processo de tradução Libras→PT. De forma geral, os dois grupos de TILSP despenderam menos tempo no proces- so de tradução PT→Libras. Fonte: Bessa (2022, p. 118). 117 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais Quadro 4 – Síntese do resultado das análises do esforço técnico Esforço Técnico Tradução Libras→PT Tradução PT→Libras CARd total de caracteres apagados na fase de redação Os dois grupos de TILSP apresenta- ram maior ação de apagamento na fase de redação. SRd total de sinais produzidos na fase de redação Os TILSP mais experientesproduziram uma maior quantidade de sinais na fase de redação em relação aos menos experientes. CARv total de caracteres apagados na fase de revisão Os TILSP mais experientes realiza- ram menos ações de revisões em relação aos menos experientes. SRv total de sinais produzidos na fase de revisão Os dois grupos de TILSP não apre- sentaram diferenças significativas de produção na fase de revisão CTA total de caracteres do texto alvo Maior produção de caracteres no TA pelos TILSP mais experientes em relação aos menos experientes. STA total de sinais do texto alvo Os TILSP mais experientes produziram uma maior quantidade de sinais no TA em relação aos menos experientes. (confirmado estatisticamente) Total de caracteres Maior ação de produção/edição total de caracteres pelos TILSP mais experientes em relação menos experientes Total de sinais Maior produção no total de sinais pelos TILSP mais experientes em relação aos menos experientes Fonte: Bessa (2022, p. 119). A partir da síntese apresentada, observamos que os dados se comportam de maneira diferente entre as duas direções, indicando os efeitos da direcionalidade sobre a tradução. Os dados da pesquisa apontaram que os TILSP mais experientes despenderam mais esforço, principalmente na tradução PT→Libras com a pro- dução do TA, realizando uma maior quantidade de sinais em relação aos menos experientes. Criada a proposta de parametrização do esforço temporal (ETp) e esforço técnico (ETc) e a síntese dos esforços temporal e técnico (ETT), conforme apre- sentado anteriormente, os testes estatísticos foram aplicados e não foi encontrado um padrão recorrente entre os grupos ou entre os participantes. 6 Considerações finais A partir da análise qualitativa e quantitativa do esforço temporal e técnico no processo tradutório intermodal, pudemos observar indícios de que a direciona- lidade, perpassada pela intermodalidade, é uma variável que influencia no esforço temporal e técnico despendido pelos TILSP mais experientes e menos experientes participantes do experimento. Verificamos nos dados brutos, um maior esforço temporal para os dois grupos de participantes na tradução na direção Libras→PT em comparação a tradução na direção PT→Libras. Possivelmente, por influência da prática com interpretação, percebemos, para os dois grupos de participantes da pesquisa, uma maior automatização dos 118 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 processos na tradução PT→Libras e, mesmo essa direção demandando uma maior quantidade de processos, os dados apontaram um menor dispêndio de esforço temporal em relação à tradução Libras→PT. Indepedentemente do tempo de experiência, a tradução se apresentou como uma tarefa desafiadora para os TILSP, especialmente na direção Libras→PT. Na análise qualitativa e no protocolo verbal retrospectivo semiguiado, a dificul- dade em traduzir nessa direção foi evidenciada pela maioria dos participantes. Traduzir um texto de uma modalidade para outra requer habilidades específicas e, como aponta Rodrigues (2018b), os cursos de formação devem preparar os TILSP para lidarem melhor com os efeitos da modalidade por meio do desenvolvimento da competência tradutória intermodal. Algumas suposições são levantadas, conforme Bessa (2022), para os testes estatísticos aplicados à proposta exploratória de definição métrica dos esforços temporal e técnico, os quais não apresentaram diferenças significativas, deman- dando, portanto, mais reflexões e possíveis refinamentos. Além disso, o perfil distintivo entre os dois grupos de participantes, especialmente pela sua reduzida experiência com tarefas de tradução em ambos, pode não ter sido suficiente para fazer emergir diferenças significativas na realização das tarefas; os textos selecio- nados podem não ter sido desafiadores e complexos o suficiente para refletir uma diferença entre os grupos que impactasse o processo em relação aos esforços pes- quisados. Todas essas reflexões demandam pesquisas futuras que busquem testar e aprimorar as questões levantadas e discutidas por Bessa (2022), contribuindo para novas análises nos campos da tradução intermodal e da direcionalidade na tradução. Referências ALVES, F. 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Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Univer- sidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2019. 121 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais 7 Agência e ativismo tradutório na promoção da Justiça Social e dos Direitos Humanos na Literatura Surda e Sinalizada Jonatas Rodrigues Medeiros UniversidadeFederal de Santa Catarina (UFSC) Centro Universitário Uninter Silvana Aguiar dos Santos Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Universidade Federal do Ceará (UFC) 1 Introdução O debate em torno do conceito de agência ainda é emergente no campo dos Estudos da Tradução e nos Estudos da Interpretação, especialmente nos ETILS – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais. Neste capítulo, fruto da dissertação de mestrado intitulada “Poesia de Direitos Humanos e injustiça social na Literatura Surda: tradução, interpretação, agência e ativismo”1, tem-se como objetivo abordar os conceitos de agência e de ativismo articulados às produções artísticas literárias surdas e às suas traduções que versam sobre direitos humanos e sobre injustiças sociais. Como se articula o conceito de agência e o de ativismo em contextos de tradução literária que versam sobre direitos humanos e sobre injustiças sociais? Parte-se da premissa de que intérpretes e tradutores surdos e ouvintes ocu- pam distintos lugares socioideológicos. Assim, pode-se compreender que diferen- 1 O presente capítulo é fruto da dissertação “Poesia de Direitos Humanos e injustiça social na Lite- ratura Surda: tradução, interpretação, agência e ativismo” defendida em outubro do ano de 2022 junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução - PGET da Universidade Federal de Santa Catarina. O trabalho encontra-se em fase de catalogação junto à Biblioteca da referida instituição. 122 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 tes sujeitos sociais, participantes das comunidades surdas, como poetas e tradu- tores, estão envolvidos em cadeias de significados de teor político. Diante dessa questão, suas produções podem corresponder a uma agenda ideológica a favor de diferentes pautas reivindicatórias. Assim, neste texto, toma-se a perspectiva de agentes da tradução, debatidas por Milton e Bandia (2009), e se articula com os cenários dos ETILS, focalizando o conceito de agência e de ativismo na literatura surda e sinalizada. Dessa for- ma, evidencia-se as produções que envolvem a temática de direitos humanos e de injustiças sociais, localizando as principais discussões nos contextos artístico e literário. Na primeira seção, “Conceito de agência nos estudos da tradução”, discu- tem-se os conceitos de agência, ativismo e agentes da tradução, dentro dos Estudos da Tradução. No final da primeira seção, apresenta-se a abordagem metodológica, de cunho qualitativo, por meio da pesquisa netnográfica. Explica-se as contribui- ções desse tipo de metodologia para o mapeamento e a construção do corpus de poesias sinalizadas registradas em vídeo. Na segunda seção. “Tradução e Agência na Promoção de Direitos Humanos e Justiça Social na Comunidade Surda: Arte e Literatura”, apresenta-se exemplos de produções artísticas literárias em uma lín- gua de sinais e atividades de agência de tradução que ocorrem no interior das comunidades surdas, apresentando ações realizadas em especial no lócus das redes sociais pelo coletivo SurdoVisão, o Grupo Movimento das Surdas Feministas do Brasil (MOSFB) e o trabalho solo e coletivo do tradutor multiartista Efraim Canu- to. Nas considerações finais, resgatamos os conceitos apresentados e a articulação entre o conceito de agência e as práticas tradutórias realizadas nas comunidades surdas. 2 Conceito de agência nos Estudos da Tradução O conceito de agência ganha força, dentro dos Estudos da Tradução, após a articulação fecunda entre esse campo, os Estudos Culturais e as discussões pós- -coloniais. Assim sendo, nesta seção, partimos da compreensão de que, mais do que simples casualidade, intervenções culturais, linguísticas, literárias e revolucio- nárias, fazem parte de agendas políticas relativamente organizadas por diferentes grupos sociais e seus atores. Desse modo, intérpretes e tradutores/as circulam em diferentes instituições, ideologias, textos, crenças e campos teóricos e políticos. Embora suas preparações podem (ou não) se estruturar em uma lógica de neutralidade, enquanto sujeito social e político, intérpretes e tradutores/as atuam em determinadas molduras narrativas. Suas técnicas, por mais que possam ser fundadas em epistemologias menos subjetivas, não deixam de estar acentuadas a valores e a letramentos que extrapolam a perspectiva de transposições linguísticas. Sujeitos, politicamente engajados, podem promover a circulação de deter- minadas narrativas e posições ideológicas dentro de seus contextos de atuação. Assim, aborda-se inicialmente, nesta seção, as semelhanças e as diferenças entre o 123 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais conceito de ativismo e agência e, por fim, o de agentes da tradução. Na sequência, mostra-se como, dentro das comunidades surdas, é observável a agência de intér- pretes e de tradutores/as de Libras-português em espaços ativistas. Os pesquisadores, Milton e Bandia (2009), afirmam que a agência pode ser observada por parte de tradutores, editoras, políticos e empresas que desejam contribuir para mudanças de hábitos sociais, linguísticos, políticos e culturais. O papel individual de certos agentes pode se desdobrar em traduções, produções de artigos, cursos, palestras e todas as formas de divulgar determinados conhecimen- tos. Para os autores, agentes da tradução atuam na introdução de novos conceitos literários e filosóficos, por meio de suas traduções, imprimindo valores, ideologias e causas em suas atividades. Vale ressaltar ainda que diferentes agentes podem influenciar tendências literárias e a apresentação de novos autores/as para suas comunidades. Milton e Bandia (2009) identificaram diferentes formas de agências tra- dutórias, tais como financiadores de determinadas obras a serem traduzidas ou editoras engajadas que podem disseminar traduções de literaturas de grupos mi- norizados e de países sem reconhecimento de suas obras, promovendo literaturas pós-coloniais e ideias revolucionárias. Os autores ressaltam que agentes da tradução podem atuar individualmen- te, porém sempre estando atrelados a uma teia social coletiva. Ainda é possível averiguar o habitus de intérpretes e de tradutores/as (em uma perspectiva Bour- dieuana), que se inserem em determinados contextos, executando certas temáticas com maior frequência e interesse. Embora intérpretes e tradutores/as busquem seguir certas convenções para serem aceitos/as no mercado profissional e terem credibilidade, suas ações pessoais ou coletivas demonstram diferentes preferên- cias, posições políticas, ideológicas e religiosas, além de identidades que os/as constituem como raça, gênero, sexualidade, classe social, território, línguas de co- nhecimento etc. O campo acadêmico e cursos de formação reforçam normas, comporta- mentos, teorias mais proeminentes e técnicas que julgam ser melhor e permitem maior neutralidade em suas ações. Pesquisas sobre a sociografia de tradutores/as, que analisam suas trajetórias, seus interesses e suas filiações, buscam observar a influência desses percursos nas escolhas lexicais e perspectivas tradutórias. Milton e Bandia (2009) explicam sobre a negociação de conflitos que ope- ram na tradução, a qual afirmam que, quando se pensa em agência, se correlaciona com o agir e o intervir. Ao pensar isso, compreende-se o lugar ativo em que intér- pretes e tradutores/as podem atuar, levando a questões sobre o que os/as motivam e o seu engajamento com tais traduções, seus canais, sua forma de seleção de tex- tos, assim como os argumentos de suas seleções. Para exemplificar esse debate, Bandia (2009) descreve como a agência na tradução pode servir para a história, dando exemplo de como o senegalês Cheikh Anta Diop (tradutor, historiador, antropólogo, físico e político) trabalhou na tra- dução-decifração dos hieróglifos egípcios para línguas de escrita moderna. O ob- 124 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 jetivo do tradutor era mostrara correspondência entre os conhecimentos pro- duzidos pelo Antigo Egito e a África Negra para contestar a narrativa européia do século XX de que a África subsaariana não havia contribuído em nada com a humanidade, que esta era sem história, que suas línguas seriam primitivas e, portanto, intraduzíveis para as línguas modernas de dimensões científicas. Seu trabalho mostra um lugar de agência em prol da história, desejando, por meio do seu trabalho de tradução-decifração, inserir a história da África, em especial a subsaariana, no contexto do movimento da história universal constituída no de- correr de sua época (Bandia, 2009). O trabalho de Diop, segundo Bandia (2009), contestava a tradução colonial da África como uma tábua rasa, sem contribuições à humanidade, o que justifica os argumentos de desumanização dos povos africanos e da legitimidade de sua colonização. Para Bandia (2009), sua agência tradutória contribui como uma (re) escrita da história. Isso é o papel da tradução na produção e na gerência de nar- rativas para se inscrever na história e para questionar distorções, apagamentos, problemas e debates controversos. O intelectual Diop percebia a tentativa de bran- queamento da civilização do Antigo Egito, em benefício da ideologia europeia de superioridade racial, e, por isso, engajou-se na construção de uma narrativa que demonstrava a articulação entre diferentes povos na África (Bandia, 2009). Em sua agência tradutória, por exemplo, Diop traduziu para o senegalês a Teoria da Relatividade de Einstein com o objetivo de desmentir a narrativa acadê- mica ocidental de que as línguas africanas não possuem sofisticação para expres- sar conceitos abstratos. Seu engajamento novamente era para contestar o discurso de linguistas e de antropólogos que argumentavam sobre a intraduzibilidade de línguas que consideravam nativas e primitivas. As reflexões de Diop, para além da história e da antropologia, contribuem também para se pensar a tradução, ao con- siderar questões inerentes à tradução intercultural, à impossibilidade da tradução literal, em línguas que não compartilham as mesmas culturas e imagens, além da relação da tradução com características sociogeográficas (Bandia, 2009). De forma semelhante, o ativismo da tradução também ocorre por meio da agência individual ou coletiva de pessoas que são intérpretes e tradutores/as pro- fissionais ou que possuem habilidades tradutórias inter ou intraculturais (Baker, 2006b). Mona Baker é uma pesquisadora oriunda do continente africano, resi- dente na Inglaterra. A autora possui pesquisas relacionadas ao papel da tradução, em especial daqueles que traduzem em contextos de ativismo, guerras e situações sensíveis que envolvem conflitos e luta por direitos e narrativas marginalizadas. A pesquisadora aborda a centralidade da tradução, entendendo que esta afeta o mundo real e as relações sociais, culturais e políticas. Baker (2016) enfatiza que é impossível ignorarmos as responsabilidades éticas e sociais de intérpretes e tradutores/as, que como cidadãos participam ativamente da produção de todos os aspectos do ambiente em que vivemos. Baker (2016, p. 8, tradução nossa) explica que “[...] as intervenções dis- cursivas e não discursivas na arena política são fortemente mediadas por vários 125 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais atos de tradução que permitem a conexão de movimentos de protesto em todo o mundo”2. Não sendo a tradução um processo desinteressado, nem neutro, a autora entende que intérpretes e tradutores/as são pessoas com domínio na mediação de duas (ou mais) línguas e podem ver a ação tradutória como uma ferramenta para mudar o mundo. Assim, inspirados pelo pensamento de Baker (2016) e dos de- mais autores, cabe-nos compreender como os intérpretes e tradutores/as de Libras transitam e são impactados pelos discursos de pautas reivindicatórias em poesias de artistas surdos/as e traduções de literaturas sobre Direitos Humanos. Essa abordagem possibilita-nos estabelecer a relação da literatura e dos direitos humanos, já que a ideia de direito na humanidade é posta como uma construção histórica, da relação do humano com o processo de empatia com o outro e a organização social em prol da valorização da vida. Para Baker (2018), a interpretação e a tradução podem estar envolvidas com agendas fora das insti- tuições formais, desafiando as narrativas dominantes da época. A autora cita uma variedade de coletivos de intérpretes e tradutores/as que se organizam com o ob- jetivo de promover contradiscursos e lutar por justiça social e causas humanitá- rias, colocando suas habilidades linguísticas e tradutórias em função de causas que acreditam. A agência de intérpretes e tradutores/as se cruzam na medida em que suas histórias pessoais se aproximam umas das outras, criando senso de identidade e sentimento de coletividade. Para Baker (2018), não faltariam exemplos de comu- nidades de intérpretes e tradutores/as empenhados/as em ambientes acadêmicos, associações, Organizações não Governamentais (ONGs,) organizações pró Direi- tos Humanos, grupos políticos e, até mesmo, entidades comerciais fornecendo apoio de tradução e de interpretação, ideologicamente engajado, contribuindo com determinadas causas. De forma semelhante, Tymoczko (2010b) entende os/as tradutores/as como sujeitos sócio-históricos e culturalmente construídos. A autora explica que existe a autoridade do/a tradutor/a como agente construtor de significados, sujeito ético e ideologicamente responsável por suas escolhas e (re)leituras. Isso mostra a neces- sidade de reconhecermos intérpretes e tradutores/as como agentes participantes das mudanças sociais. A tradução assim é tida como uma atividade ética, política e ideológica e não apenas uma transposição estritamente linguística. Essa questão leva-nos a discutir as narrativas de intérpretes e tradutores/ as de Libras-português frente aos conteúdos com engajamento poético de cunho político que reivindicam pautas dos direitos humanos. Baker (2006a, 2006b, 2016, 2018), em suas pesquisas, apresenta uma possível crítica aos Estudos da Tradução, elencando experiências de ação tradutória que subvertem a narrativa acadêmica de discursos apolíticos e neutros imprimidos na prática profissional de intérpretes e tradutores/as. Em diversos textos publicados, sobre a agência e o ativismo desses 2 No original: “[…] that discursive and non-discursive interventions in the political arena are hea- vily mediated by various acts of translation, and that this is precisely what enables protest move- ments to connect and share experiences across the globe” (BAKER, 2016, p. 8). 126 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 sujeitos, a autora demonstra que narrativas com a atitude, a posição socioideológi- ca e o contexto que determinados intérpretes e tradutores/as vivem, podem aferir diretamente em suas escolhas, tanto interpretativas, no sentido textual, quanto do próprio conteúdo a qual se engaja a traduzir. Nessa perspectiva, as contribuições de Tymoczko (20010b) dialogam dire- tamente com esses elementos já pautados até o presente momento. A autora pro- blematiza as relações existentes entre o texto, a língua e a cultura de partida com seus “correspondentes” de chegada, observando que intérpretes e tradutores/as, como sujeitos históricos, estão sempre inseridos em um contexto político ideoló- gico e podem agir a favor de uma determinada causa. Tymoczko (2010a, 2010b) defende a tese de que intérpretes e tradutores/as devem ser ativistas engajados/as; desse modo, devem se manter visíveis a todos, como sujeitos políticos e ideológi- cos. Abaixo (Quadro 01), mostramos alguns dos elementos que dizem respeito à agência e ao ativismo na tradução. Quadro 01: Agência e ativismo na Tradução AGÊNCIA NA TRADUÇÃO ATIVISMO NA TRADUÇÃO Individual ou coletivo Coletivo Particular ou organizacional (editoras, agências,investidores, messenatos etc.) Ligado aos movimentos sociais Nem sempre é visível Deve se manter visível Não necessariamente é feita pelo tradutor, mas pode ser quem incentiva ou financia a traduções Historicamente nomeado como agitadores, movi- mentadores, rebeldes, abolicionistas, reformado- res, anarquistas etc. Pode influenciar tendências literárias de cunho político variado, estético-estilístico, temático, de gênero etc. Engajam em literaturas de cunho político-ideo- lógico A pauta pode ser política, literária, geográfica, religiosa, estilística ou autoral A pauta é sempre ligada a movimentos políticos sociais Dentro de diferentes espectros políticos (da direita à esquerda), literários, estéticos etc. Dentro de diferentes espectros políticos (da direita à esquerda) Nem sempre possui uma agenda Está ligada a agendas políticas Fonte: Elaborado por Medeiros (2022, p. 164). Tymoczko (2010a, 2010b) faz defesas mais enfáticas sobre o poder de ma- nipulação de textos por meio da interpretação e da tradução, podendo favorecer as línguas de chegada e contribuir para uma não colonização das ideias contidas no texto-fonte. A autora argumenta sobre um papel possível de identificar e com- bater, por meio dessa atividade linguística e tradutória, ideologias imperialistas. 127 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais Diferentemente dessa posição, Baker (2006a) ressalta o cuidado que intérpretes e tradutores/as ativistas devem ter em suas mediações linguísticas, uma vez que estando desnudados/as de seu lugar ideológico, tornam-se mais responsáveis em tentar ser o mais próximo possível do texto-fonte, mantendo suas ideias para não serem acusados/as e descredibilizados/as. Mona Baker apresenta, no livro “Translating Dissent Voices from and with the Egyptian revolution” (Traduzindo a dissidência: Vozes do e com a Revolução Egípcia), a diversidade de narrativas traduzidas, em diferentes formatos, sobre a Revolução Egípcia. As escritas literárias que contam acontecimentos, fotografias, cinemas, legendagens e artes de rua são vistas, neste trabalho, como formas de tradução, não restritas apenas à transposição linguística de signos verbais, mas amplas, abarcando diferentes sistemas de signos e suportes, o que envolve tradu- ção intersemiótica. Como exemplo de outras formas de tradução, indica-se a tradução de tes- temunhos e a de experiências vividas, o registro audiovisual de depoimentos e sua legendagem, para que a mensagem ultrapasse as fronteiras nacionais, as fotogra- fias e as narrativas que as acompanham, além de grafites de rua, poesia, cartoons etc. Essas ações forjam redes de solidariedade entre intérpretes e tradutores/as com movimentos revolucionários. Para Baker (2016), no caso da Revolução Egípcia, era evidente que as tradu- ções, em seus mais variados suportes, eram realizadas exclusivamente por volun- tários, os quais se alinhavam aos mesmos valores dos movimentos sociais que ali emergiram, utilizando suas capacidades linguísticas e tradutórias em favor de um projeto político comum. A criação e a tradução de poesia mostram um exemplo dessa possibilidade de forjar novas linguagens dentro de uma conjuntura de crise. Assim, a tradução desempenha papel fundamental na disseminação de contranar- rativas. Outro exemplo que podemos observar, nessa perspectiva, são as pesqui- sas realizadas na descrição de povos originários, no Peru, e suas línguas indíge- nas. Ciudad, Howard e Ricoy (2017) investigaram como intérpretes e tradutores/ as atuam ativamente pela pauta de direitos de comunidades locais, narrando-as como atores que desenrolam um papel multifacetado, combinando sua função técnica com uma postura de ativismo e a favor dos direitos linguísticos e culturais de seus povos. As pesquisas utilizam-se de aportes teóricos da Antropologia, da Sociologia e dos Estudos da Tradução. Conforme Ciudad, Howard e Ricoy (2017) atestam, o ativismo de intérpre- tes e tradutores/as está diretamente ligado às ideologias linguísticas e às dinâmicas de autorrepresentação indígena. A visão que podemos estabelecer desses intérpre- tes e tradutores/as que atuam com as comunidades originárias é de agência e não a “invisibilidade” comumente atribuída a esses profissionais. O lugar de ativismo, como mostram os autores, ocorre antes da formação desses intérpretes e tradutores/as, no contato com suas comunidades. Esses/as profissionais, quando em atuação, manifestam seus ativismos em diferentes ações, 128 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 seja nos serviços estatais, em meios de comunicação de massa ou em redes sociais. Estão sempre difundindo, defendendo e promovendo a língua e a cultura dos gru- pos indígenas comunitários em que atuam. Na próxima seção, apresenta-se o conceito de agência articulado ao con- texto de literatura, surda e sinalizada, que tematiza a pauta dos direitos humanos e das injustiças sociais. Como vimos, nesta seção, agentes da tradução atuam em diferentes contextos e de variadas formas na promoção de ideias, engajamento e disseminação das informações. As habilidades tradutórias são colocadas a serviço de uma determinada ideologia, sendo a tradução um meio eficaz de abastecer dife- rentes comunidades linguísticas de novas crenças ou mesmo proposições políticas e de transformação social. 3 Tradução e agência na produção de Direitos Humanos e Justiça Social na Comunidade Surda: Arte e Literatura No contexto brasileiro, é visível a presença de intérpretes e tradutores/as de Libras contribuindo para diversos movimentos surdos, tal como no reconhe- cimento da Libras e no #ENEMLIBRASJÁ3. É possível mencionarmos a presença desses/as profissionais em movimentos sociais surdos que organizam suas pautas em diferentes temáticas, por meio das redes sociais, os quais fazem uso da inter- pretação e da tradução em seus projetos. As narrativas produzidas por ativistas surdos/as conseguem alcançar um número maior de público graças às traduções e às legendagens feitas de forma colaborativa por intérpretes e tradutores/as aliados às reivindicações surdas. Citamos três exemplos: o coletivo SurdoVisão, o Grupo Movimento das Surdas Feministas do Brasil (MOSFB) e, por fim, o trabalho de agência de tradução do tradutor multiartista Efraim Canuto. Os materiais utilizados para o debate conceitual aplicado, neste capítulo, são resultados da pesquisa, como mencionado acima, que originou a dissertação “Poesia de Direitos Humanos e injustiça social na Literatura Surda: tradução, in- terpretação, agência e ativismo” defendida no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A metodologia da coleta de dados seguiu inspiração netnográfica de inserção nas comunidades surdas cibernéticas. A netnografia funciona como significativa fer- ramenta de análise que contribui para observação de comunidades alocadas no espaço digital, ou ciberespaço, como explica Kozinets (2014). O autor afirma que esse modelo metodológico se estende de forma orgânica e natural para pesqui- sas de bases observacionais, como entrevistas, estatísticas descritivas, coletas de dados, arquivos, análise de caso histórico, videografia, técnicas projetivas como colagens, análise semiótica etc. 3 Na dissertação de mestrado, disponível no banco de dados da PGET, discorremos sobre a pre- sença de intérpretes e tradutores/as de Libras nos movimentos sociais surdos em prol dos direitos linguísticos das pessoas surdas. 129 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais Embora oriunda da área administrativa e de marketing, princípios da me- todologia netnográfica tem sido utilizada em pesquisas na área da educação, so- ciologia e linguística. Os arquivos separados para a análise teórica, deste capítulo, foram selecionados a partir do trabalho de imersão nos contextos artísticos sur- dos, promovidos nas redes sociais como Instagram,Facebook e a plataforma de vídeo YouTube4. A exemplo, citamos o MOSFB, grupo que reúne mulheres surdas feministas de várias regiões do país. A proposta das páginas no Facebook e do Instagram é de congregar e apoiar outras mulheres surdas e disseminar informações sobre o feminismo, mulheres LGBTQI+, visibilidade lésbica, violência doméstica e outras temáticas. Entre suas produções é notório o engajamento de suas narrativas por meio da interpretação e da tradução. Há diferentes vídeos que possuem a tradução da sinalização de mulheres surdas em formato de legenda ou a tradução em Libras de discursos feitos em português (Figura 01). Figura 1 – Ações MOSFB Fonte: Imagem extraída da página do Instagram do MOSFB (Medeiros, 2022, p. 166) O movimento também organiza diversas lives com convidadas surdas e ouvintes (Figura 02). Dentre as convidadas e as temáticas que já circularam nas páginas, podemos citar Gabriela Grigolom e Márcia Tiburi, as quais discutem a “Política e Mulheres no Brasil, passado, presente e futuro” e “Beijar Mulher é um ato Político”, com Camila Marins e Louren Farias. 4 Os dados foram coletados no período de julho de 2020 a março de 2022 e a pesquisa autorizada pelo Comitê de Ética, sob o protocolo 4.801.516 130 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Figura 2 – Lives e temáticas do MOSFB Fonte: Imagem extraída da página do Instagram do MOSFB. (Medeiros, 2022, p. 167) Além disso, o movimento organiza grupos de estudos feministas, lives com convidadas diversas e participação em diferentes marchas e protestos de cunho político. Nas páginas do grupo, há uma diversidade de vídeos informativos pro- duzidos em Libras de forma independente, sendo todos os vídeos sinalizados com tradução e legenda em português, e alguns com áudio. Quando são vídeos com fala em português há tradução em Libras inserida no vídeo. As intérpretes e as tradutoras, que contribuem para o movimento, atuam de forma colaborativa e engajada, participando da tradução de vídeos, legendagem, interpretação de lives, reuniões e divulgação do movimento. Sem as práticas in- terpretativas e tradutórias, as ações ficariam circunscritas às comunidades surdas, não visibilizando suas lutas para um grupo maior de mulheres e outros movimen- tos feministas. É interessante observarmos que essa preocupação é oriunda das mulheres surdas, já que infelizmente outros movimentos feministas compostos pela maioria ouvinte nem sempre se articulam para receber mulheres surdas em suas atividades. O Coletivo SurdoVisão é outro grupo cujas produções também se preocu- pam com a atividade de interpretação e de tradução e legendagem de suas nar- rativas. As temáticas que circulam na página são variadas. O Coletivo debate a polarização política nas comunidades surdas, o lugar de fala das pessoas surdas, professores/as surdos/as, violência doméstica contra mulheres surdas, história dos/as surdos/as brasileiros/as, história dos movimentos surdos, poesias surdas com diferentes temas políticos, entre outros assuntos, mas enfatizando sempre o empoderamento surdo (Figura 03). 131 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais Figura 3 – Lives do Coletivo SurdoVisão Fonte: Imagem extraída da página do Instagram do SurdoVisão (Medeiros, 2022, p. 168) A maioria dos vídeos, postados pelo Coletivo SurdoVisão, possuem tra- dução com legenda e voz. Como grupo independente, intérpretes e tradutores/ as atuam de forma colaborativa para possibilitar que as narrativas surdas sejam compartilhadas com as pessoas que desconhecem a Libras. O grupo de intérpretes e tradutores/as que contribuem são mulheres e homens aliados que desempenham um papel político ao concederem suas habilidades linguísticas, tradutórias e inter- pretativas às pautas plurais de um movimento surdo cibernético. O coletivo também já promoveu lives com temáticas como “A luta das Co- munidades Surdas: impactos sobre as Línguas de Sinais e os Direitos Humanos” (com interpretação da Língua de Sinais Internacional para Libras e português) e “Polarização na Comunidade Surda: Existe ou Não?”. Também é possível verifi- carmos a produção de vídeos documentários (Figura 04) que debatem questões como “geração surda”, que são sobre surdos/as idosos/as, que registram a memória de grupos de surdos que foram proibidos de usarem uma língua de sinais e que denunciam o modelo educacional oralista, ao qual foram submetidos em um pas- sado que ainda reflete no presente. Figura 4 – SurdoVisão - Documentário Fonte: Imagem extraída da página do Instagram SurdoVisão. (Medeiros, 2022) O registro dessas narrativas são uma importante ação de constituição da memória surda através do suporte do vídeo, sendo um gênero literário profícuo para documentação dos saberes surdos e as histórias sinalizadas (orais) produzidas 132 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 por essas comunidades. A tradução novamente é um elemento agregado à preocu- pação do SurdoVisão, o texto legendado possibilita a expansão do público alcan- çando com as atividades do coletivo. Os/as intérpretes e tradutores/as envolvidos com essas produções, podem ser vistos como agentes de tradução que contribuem para a constituição dessa memória surda, em expansão, graças às tecnologias. Além disso, o grupo traz séries de artes visuais produzidas por artistas sur- dos/as, como é possível exemplificar nos quadrinhos feitos por Catherine, Candy Uranga e Diogo Madeira (Figura 05), cuja mensagem denuncia a violência domés- tica contra uma mulher surda. A narrativa denuncia a violência de homens surdos contra mulheres surdas e a dificuldade de denúncia via celular, cujo único canal é a central de Libras, porém congestionada devido à alta demanda de atendimento e presente apenas em algumas capitais do país. Figura 5 – SurdoVisão: Quadrinhos Fonte: Imagem extraída da página do Instagram do MOSFB (Medeiros, 2022, p. 169) O fato de as artistas e de o artista trazerem um personagem homem surdo revela o desejo de quebrar com o tabu de comunidades surdas inocentes, harmo- niosas e não machistas. O racismo e o machismo são estruturais e impactam tam- bém as pessoas surdas, constituindo subjetividades também agressivas e precon- ceituosas. Além disso, nas imagens, é possível averiguar a personalidade agressiva do personagem em persuadir a mulher surda e agredi-la. A presença de substân- cias alcoólicas, mudança de comportamento do homem surdo, a violência sexual e os hematomas no corpo da mulher surda são evidentes na narrativa. Nas hashtags que descrevem a postagem na página do Instagram aparecem termos como denúncia, assédio, machismo, lei Maria da Penha, direitos surdos, mulheres surdas, feministas e feminismo. Essa arte exemplifica bem um lugar de agência de artistas que traduzem, em um outro sistemas de signos, assuntos que po- dem ser lacunares dentro das comunidades surdas e que são ignorados por movi- mentos sociais, políticas públicas, debates acadêmicos e a sociedade civil em geral. Outra arte que demonstra ativismo, por meio de distintos suportes e o ato de tradução de artistas surdos/as, são os quadrinhos intitulados “Rótulos de diver- sas surdas”, feitos pela artista Yanna Porcine (Figura 06). A poeta trabalha entre a 133 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais linguagem verbal e não verbal para apresentar a dicotomia narrativa da perspecti- va das comunidades surdas e de pessoas desconhecedoras sobre a diversidade sur- da. Sua crítica consiste na visão romantizada de comunidades surdas homogêneas de identidades fixas. Além disso, é visível a crítica da narrativa produzida pelo senso comum social, que identifica as pessoas surdas em um viés audista sobre seus corpos e suas línguas de sinais. Figura 6 – Quadrinhos “Rótulos de diversas surdas” Fonte: Imagens extraídas da página do Instagram do SurdoVisão (Medeiros, 2022, p. 172) As comunidades surdas são compostaspor ativistas surdos/as que tradu- zem suas inquietações nos mais diferentes suportes, assim como ativistas intér- pretes e tradutores/as de Libras, os quais contribuem com tradução, interpretação, legendagem, edição de vídeo e construção coletiva das pautas surdas. Voltando-se para a literatura sinalizada, assim como para as performances literárias, podemos averiguar uma diversidade de textualidades registradas em ví- deos com a temática de direitos humanos e de injustiças sociais. Podemos articular o conceito de agentes da tradução ao contemplar as produções de determinados intérpretes e tradutores de Libras que possuem engajamento nas redes sociais pro- movendo literatura e arte sinalizada. As produções do intérprete e do tradutor Efraim, por exemplo, são vastas e em diversas linguagens. Suas atividades expandem-se como produtor de con- teúdo em Libras, performance, poeta, designer, roteirista e filmaker. A maioria de suas produções públicas estão ligadas às comunidades surdas. Como intérprete e tradutor, transita entre o contexto educacional e, principalmente, o artístico com músicas, poesias, textos literários, teatro e cinema. Muitas produções são espontâ- 134 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 neas, traduções de músicas com mensagens direcionadas aos Direitos Humanos, como o samba enredo “Ainda existe escravidão?” e o texto poético “Pele Marcada”, de Larissa Luz. Efraim propõe, para além da disseminação de mensagens políticas, perspectivas estéticas que dialogam com a performance tradutória, com a lingua- gem audiovisual e teatral. Figura 7 – Agência Tradutória de Efraim Fonte: Acervo do autor. (Medeiros, 2022, p.241) Efraim quebra com estéticas mais estáticas da sinalização em Libras, pro- pondo diferentes formas de registro audiovisual, com inventividade nos ângulos, nos planos cinematográficos e na edição de seus vídeos. No teatro, suas participa- ções também rompem com o local comumente atribuído para os/as intérpretes e os/as tradutores/as de Libras, o canto da boca de cena. Milton e Bandia (2009) observam essa característica de inovação e de mudanças estilísticas também como formas de agência. Para os autores, há dois tipos específicos de agentes: aqueles que realizam mudanças de estilos na tradução, de modo a amplificar diferentes formas de tradução disponíveis; e aqueles que introduzem novas obras e estilos de tradução nos grupos linguísticos que atuam. No espetáculo, “O Subnormal”, primeira imagem da Figura 07, a atuação de Efraim acontece com outro ator. Figurino e iluminação correspondem à drama- turgia da peça, um estilo de performance tradutória ainda pouco difundida e acei- tável no contexto da tradução teatral. Outro lugar de agência nas ações de Efraim a favor da Literatura Surda e da Sinalizada podemos ver na sua presença ativa no Slam das Mãos, como no cartaz de “Residência Artística Suar”, do qual participa como condutor do evento. Ainda podemos observar seu caráter performático em traduções artísticas que operam a partir de seu corpo, como principal signo de textos, em que a negritude e a ancestralidade são a temática. Na poesia, de onde 135 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais foi extraída a imagem abaixo (Figura 09), performatizada no Slam das Mãos, no Palco Giratório do Sesc, vemos Efraim de costas, sinalizando o sinal de Iemanjá. Figura 8 – Tradução Performance de Efraim Fonte: Acervo do autor. (Medeiros, 2022, p. 241) A tradução como performance5 evoca, justamente, o corpo como signo marcante e constituído de sentidos. Como Carrascosa (2018) explica, o corpo per- formático faz disseminação de imagens. A autora, ao comentar sobre o teatro afro- diaspórico, explica: “os gestos performáticos configuram um canal estético-corpo- ral-vocal para traduzir a realidade cotidiana opressiva (corporal e mentalmente), alterando sua ordem simbólica na série histórico-social” (Carrascosa, 2018, p. 81). A agência de Efraim também opera com poesias audiovisuais. Dois exemplos são a poesia sinalizada, “80 Tiros” (Figura 10), na qual, além da performance, Efraim utiliza diferentes planos cinematográficos, assim como recursos intersemióticos como legendas. O poema faz referência ao fuzilamento e ao homicídio de Evaldo Rosa e Luciano Macedo, dois homens negros, assassinados por 12 militares. Figura 9 – Tradução de Poesia Surda e legendagem de Efraim Fonte: Acervo do autor. (Medeiros, 2022, p. 243) No vídeo #justicapormiguel, Efraim faz captação de imagem do ato #justi- capormiguel realizado em Pernambuco. Conforme descrição do vídeo postado no YouTube, o material é nomeado como “Poesia visual no ato”. O material refere-se à morte de Miguel, de 5 anos de idade, que caiu do 9º andar de um apartamento de classe média alta de Pernambuco. O ocorrido foi consequência da negligência de 5 O conceito de tradução e performance é utilizado, aqui, dentro de uma perspectiva pós-colonial dos Estudos da Tradução, compreendendo o ato tradutório como uma ação subjetiva e de subje- tivação, que rompe com os cânones estéticos literários e coloca o corpo em jogo, como parte que pulsa e cria outros signos para além da letra. 136 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Sari Cortes Real, primeira-dama da cidade de Tamandaré. Ela permitiu que Mi- guel subisse sozinho no elevador porque ele estava “birrento” e pedindo pela mãe6. A narrativa pública que apresenta esse fato compreende o nível de negligên- cia, de perversidade e de racismo da atitude da patroa, uma vez que desumaniza a infância e a vulnerabilidade de Miguel, uma criança negra e periférica. A poe- sia visual, gravada em um ato, em favor da justiça por Miguel, foi produzida por Efraim e Stephanie Saskya. Na narrativa do vídeo, diversas pessoas fazem o sinal de “NEGR@/PRET@” em meio ao protesto. O plano da gravação é aproximado, revelando apenas parte do rosto dos que sinalizam, dando mais ênfase ao sinal. Os cortes ocorrem entre sinais de “PELE”, “VIDA” e imagens do ato. Efraim aparece no vídeo sinalizando “MIGUEL, NÃO FOI ACIDENTE”, “ELES QUEREM NOS VER MORRER”, entre outros textos que são oriundos de um poema escrito por Efraim, sobre racismo e extermínio da população negra. Aqui também recursos como a legenda das palavras estão pre- sentes. Mona Baker (2016) afirma que tradutores/as se engajam em lutas políticas e atuam na produção de diferentes narrativas públicas. Além disso, diferentes su- portes e linguagens podem ser ativados para a disseminação dessas mensagens, inclusive utilizando diferentes estéticas com o objetivo de chamar atenção para determinada pauta política. As questões estéticas podem ser estratégias narrativas de amplificação da temática, pois, dialogando com Milton e Bandia (2009, p. 2, tradução nossa), ve- mos que “[...] em certos casos, inovações estilísticas estão ligadas ao político”7. Isso confere esforços para a transformação de cânones estilísticos também da tradução em Libras, cujo lugar de “enquadramento” da tradução, de “indumentária” e de “performance adequada (neutra)” de traduzir é subvertida. Figura 11 – Legendagem de poesia Fonte: Acervo do autor (Medeiros, 2022, p. 244) 6 Como estava ocupada fazendo as unhas com uma manicure, deixou Miguel ir sozinho até o elevador. Nas câmeras do prédio, é possível ver Sari indo até o elevador, onde a criança estava, e apertar um dos últimos andares, deixando o menino de apenas 5 anos subir sozinho. A mãe de Miguel, Mirtes Renata Souza, era funcionária na casa de Sari e estava levando os cachorros para passear quando a tragédia aconteceu. 7 No original: “But in certain cases the stylistic innovations are linked to the political” (MILTON; BANDIA, 2009, p. 2). 137 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais Outra atividade de Efraim, além da tradução, é a legendagem e a narração de poesias produzidas por poetas surdos/as (Figura 11). Como, por exemplo, opoema “O mundo chora e pede paz”, de Alan Godinho, no qual, além da parti- cipação da tradução, Efraim assina a edição e a narração. O poema refere-se a conflitos bélicos, uma das temáticas dos Direitos Humanos. A tradução faz parte do projeto TraduLab, da Avuá Libras. Em síntese, as atividades de Efraim, em diferentes direcionalidades linguísticas, suportes, linguagens e sistemas de signos, contribuem para agendas em prol aos direitos humanos e denúncia de injustiça social. Como pudemos observar, os coletivos surdos desempenham um importan- te papel de disseminação de debates, produções artísticas e literárias sobre direitos humanos e injustiças sociais. Tais produções podem ser vistas como traduções de denúncias sociais e reivindicações de direitos. Ainda, diversos trabalhos literários ou mesmo informativos, passam por tradução e legendagem, o que evidencia a presença de intérpretes e tradutores/as de Libras que atuam como agentes de tra- dução na promoção de narrativas surdas ligadas aos direitos humanos. 4 Considerações finais Neste capítulo, apresentamos o conceito de agência, nos Estudos da Tradu- ção, e sua distinção do conceito de ativismo. Localizamos o papel ativo socioideo- lógico ocupado por intérpretes e tradutores/as que podem dispor de suas técnicas e habilidades linguísticas e tradutórias a favor de determinadas ideias e agendas políticas. Na primeira seção, “Conceito de agência nos Estudos da Tradução”, reto- mamos a pesquisa de Badia (2019) para exemplificar como o trabalho de Cheikh Anta Diop, promoveu uma tensão com as concepções teóricas do século XX que negava a contribuição da África subsariana para o conhecimento produzido pela humanidade. Seu trabalho de tradução tinha como agenda política o combate às teorias européias oriundas de um racismo científico em voga em sua época. Abordamos as contribuições de Baker (2016) ao analisar diferentes supor- tes e sistemas de signos como formas de tradução de ideias políticas e movimen- tos revolucionários. A produção de vídeos, legendas, fotografias, cartoons, grafites e contos, entram na gama de linguagens acessadas para se traduzir socialmente mensagens de revolução e transformação social. Ainda, dialogamos com Tymoc- zko (2010a, 2010b) que posiciona sobre a necessidade de intérpretes e tradutores se posicionarem sempre de forma visível como sujeitos políticos, uma vez que a neutralidade seria tão somente um instrumento retórico. Na segunda seção, “Tradução e Agência na Promoção de Direitos Huma- nos e Justiça Social na Comunidade Surda: Arte e Literatura”, apresentamos a arti- culação do conceito de agência em grupos como o coletivo SurdoVisão e o Grupo Movimento das Surdas Feministas do Brasil (MOSFB), além de descrever aspectos de agência do trabalho solo/coletivo do tradutor multiartista Efraim Canuto. 138 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Por fim, destacamos o lugar de agência e ativismos de poetas e artistas sur- dos/as que fazem de suas artes canal de denúncia e reivindicação por justiça social. Também se agrega valor ao fato de essas artes, na maioria das vezes, promoverem em seu escopo narrativo diferentes formas e modalidades de tradução, seja dos/as próprios/as poetas (em autotradução) ou intérpretes e tradutores/as aliados/as às comunidades surdas e às suas bandeiras de lutas. Referências BAKER, Mona. A tradução como um espaço alternativo para ação política. Tradução Cristiane Roscoe-Bessa, Flávia Lamberti e Janaína Araujo Rodrigues. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 38, n. 2, p. 339-380, maio/ago. 2018. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2018v38n2p339 BAKER, Mona. Beyond the spectacle: translation and solidarity in contemporary protest movements. In: BAKER, Mona. (org.). Translating dissent: voices from and with the Egyptian revolution. Londres: Routledge, 2016. p. 1-18. BAKER, Mona. Translation and activism: emerging patterns of narrative com- munity. The Massachusetts Review, [s. l.], v. 47, n. 3, p. 462-484, 2006b. 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Amherst: University of Massachusetts Press, 2010a. 139 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais 8 Discursos sobre os intérpretes educacionais na Educação Infantil: vozes na pesquisa científica Elaine Aparecida de Oliveira da Silva Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Neiva de Aquino Albres Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) 1 Introdução Reconhece-se nas práticas de educação para surdos, “o direito que as crian- ças que usam uma língua diferente da língua majoritária, de serem educadas em sua língua” e, portanto, sua materialização não pode ser compreendida como “uma decisão de natureza técnica, mas [...] politicamente construída tanto quanto sociolinguisticamente justificada” (Skliar, 1999, p. 10). Atualmente, a maioria das escolas brasileiras estrutura-se em uma perspectiva inclusiva e utiliza o bilinguismo como modelo educacional. Assim, em um dos mo- delos proposto pelo Decreto n.º 5.626/2005, os intérpretes de Libras-português pas- saram a atuar com o objetivo de possibilitar o acesso linguístico às crianças surdas. Art. 22. As instituições federais de ensino responsáveis pela educação básica devem garantir a inclusão de alunos surdos ou com deficiência auditiva, por meio da organização de: [...] II – escolas bilíngues ou escolas comuns da rede regular de ensino, abertas a alunos surdos e ouvintes, para os anos finais do ensino fundamental, ensino médio ou educação profissional, com docentes das diferentes áreas do conhecimento, cientes da singularidade linguística dos alunos surdos, bem como com a presença de tradutores e intérpretes de Libras – Língua Português [...]. (Brasil, 2005). A partir do Decreto n.º 5.626/2005, que regulamenta a Lei da Libras de n.º 10.436/2002 assim como o art. 18 da Lei n.º 10.098/2000, todas as instituições, desde a Educação Infantil até o ensino superior, devem garantir a atuação do tradutor e 140 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 intérprete de Libras-português para os surdos. Dessa maneira, a discussão apresen- tada neste capítulo, decorre de uma investigação que se justifica pela necessidade de se conhecer as pesquisas que já foram produzidas no Brasil sobre a mediação educacional feita por intérpretes para crianças surdas, especialmente na Educação Infantil. Cabe esclarecer que, apesar do decreto citado prever a atuação deintérpre- tes educacionais (IE) na Educação Infantil, esse é um ponto de tensão nas comuni- dades surdas, o qual é criticado por pesquisadores. Então, cabe perguntar:1) Quais pesquisas já foram produzidas no Brasil sobre o IE atuante com crianças na Educa- ção Infantil, a partir do estado-da-arte sobre tradução e interpretação educacional produzidas pelo Núcleo de Pesquisas em Interpretação e Tradução de Línguas de Sinais (InterTrads)?; 2) Como se configuram conexões entre pesquisadores marcan- do os discursos acadêmicos?; e 3) Como a polifonia se apresenta nessas pesquisas? Considerando tais questões, o nosso objetivo, neste capítulo, é fornecer uma visão geral da atual situação da interpretação Libras-português na Educação Infantil, a partir de revisão sistemática e de meta-análise. Para tanto, destacamos a polifonia que compõe o texto acadêmico científico (dissertações e teses). 2 Referencial Teórico As concepções inerentes às relações dialógicas podem ser compreendidas nas mais diversas categorias de atividade humana. É fundamental que aconteça a materialização para que as relações lógicas sejam dialógicas, concretas na voz dos diversos sujeitos. Nas palavras de Bakhtin, a orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso e, ainda, todo discurso nasce no diálogo como sua réplica viva, forma-se na mútua-orientação dialógica do discurso de outrem no interior do objeto. A concepção que o discurso tem do objeto é dialógica. (Bakhtin, 1998, p. 88-89). O que o autor indica consiste na ideia de que, com base nos estudos da linguagem, a partir da teorização concebida pelo Círculo, há percursos para se examinar a organicidade do discurso. Brait (2006) define esse horizonte teórico- -metodológico e aponta que sem querer (e sem poder) estabelecer uma definição fechada do que seria essa análise/teoria dialógica do discurso, uma vez que o fechamento signi- ficaria uma contradição em relação aos termos que a postulam, é possível explicar seu embasamento constitutivo, ou seja, a indissolúvel relação exis- tente entre língua, linguagens, história e sujeitos que instaura os estudos da linguagem como lugares de produção de conhecimento de forma compro- metida, responsável, e não apenas como procedimento submetido a teorias e metodologias dominantes em determinadas épocas. (Brait, 2006, p. 10). Seguindo os princípios desse método e considerando a totalidade, como a forma de diálogo entre sujeitos (pesquisadores/autores dos discursos), ponderan- do que a linguagem corresponde às formas do dizer e do ser no mundo. A autora 141 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais indica que ao se estudar o discurso não podemos dissociá-lo dos sujeitos que enun- ciam. Do ponto de vista da linguagem, as características discursivas apontam para contextos mais vastos, como os de “formações discursivas, sociais e históricas”. Tomamos as dissertações e teses, nesta pesquisa, analisadas como discur- sos, como textos acadêmicos e como uma organicidade específica do discurso. Ba- seadas em Bakhtin (2010), empregamos o termo arquitetônica como um elemento estrutural-relacional concreto do ato, que se orienta na participação singular no existir humano. Nessa perspectiva, se relaciona a linguagem e a ideologia de seres concretos nos momentos arquitetônicos: eu-para-mim, o outro-para-mim, e eu- -para-o-outro, envoltos em valores, que acontecem de forma específica no tempo e no espaço. Assim, para a análise das dissertações e teses, considerando que não se pode abstrair o seu contexto histórico e ideológico, destaca-se a relação sujei- to-objeto, ou seja, autor-discurso. Dessa forma, compreendemos que cada texto é singular, único. Portanto, a forma de auto-suficiência, de auto-satisfação, inerente a tudo o que é este- ticamente acabado, é uma forma puramente arquitetônica e impossível de ser transferida para a obra como material organizado, pois esta apresenta-se como uma entidade teleológica composicional onde cada momento e todo o conjunto estão voltados para um fim, realizam algo, servem para algo. (Bakhtin, 2010, p. 24). Seguindo os princípios da perspectiva dialógica da linguagem e conside- rando a totalidade, como a forma de diálogo entre sujeitos (pesquisadores/autores dos discursos), ponderando que a linguagem são as formas do dizer e do ser no mundo. Ao se estudar o discurso não podemos dissociá-lo dos sujeitos que enun- ciam. Do ponto de vista da linguagem, as características discursivas apontam para contextos mais vastos, como os de “formações discursivas, sociais e históricas”. 3 Metodologia Da Pesquisa Pretendeu-se, por meio de pesquisa qualitativa, analisar os discursos pro- venientes de pesquisadores que têm como objeto os intérpretes educacionais que atuam com crianças surdas. Para tanto, considerando que Albres (2019) desen- volveu o levantamento de teses e dissertações, no Brasil, que abordam o trabalho de IE, nos valeremos desse levantamento nesta revisão sistemática. Nesse sentido, revisamos os trabalhos disponíveis (dissertações e teses), os quais constituem a uni- dade de análise da pesquisa que deu origem às reflexões apresentadas neste capítulo. Vale esclarecer que a busca dos estudos, a triagem dos títulos e resumos, a decisão final de elegibilidade, segundo os critérios de inclusão e exclusão, após a leitura na íntegra dos estudos e a extração dos dados para análise foram realiza- das por Albres (2019). Assim, a parte inicial de revisão sistemática já tinha sido estabelecida. Os estudos selecionados abordam a atividade do IE. Com base no repositório, tem-se disponíveis 338 pesquisas. 142 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 A busca sistemática foi conduzida nas seguintes bases de dados: (1) Biblio- teca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), que integra os sistemas de informação de teses e dissertações existentes nas instituições de ensino e pesquisa do Brasil – nesse site, encontra-se o trabalho completo, pois possibilita o acesso à biblioteca da universidade de origem que precisa, obrigatoriamente, disponibilizar o trabalho desde o ano de 2004 –; e (2) Catálogo de Teses e Dissertações da Coor- denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Além da estratégia de busca original, procurou-se, através da ferramenta de rastreio dos estudos que citaram os artigos selecionados, potenciais estudos que não foram localizados inicialmente. Tal procedimento foi realizado nas referências e no Lattes dos orientadores, conforme descrito por Albres (2019) em sua pesquisa de pós-doutorado. Assim, os estudos selecionados abordam a atividade do IE. Tabela 1 – Número total de pesquisas e o recorte realizado DOCUMENTO CORPUS TOTAL EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS RECORTE DE ED. INFANTIL Dissertações 266 63 4 Teses 72 18 2 TOTAL 338 81 6 Fonte: Elaborado pela autora com base em Albres (2019) e Costa (2021). Para a pesquisa de mestrado, desenvolvemos algumas etapas de refinamen- to, a partir do corpus, levantado por Albres (2019) e Costa (2021), para construção de um objeto de pesquisa específico envolvendo o trabalho do IE com crianças surdas. Esse corpus vem sendo constantemente alimentado. Atualmente, mais pre- cisamente em fevereiro de 2023, o corpus está com 366 pesquisas, pois vem sendo constantemente atualizado como refere Costa (2021). Essas pesquisas podem ser consultadas no repositório (Figura 1). Quando realizamos a pesquisa de mestrado da primeira autora, trabalhamos com o corpus de 338 dissertações teses. Figura 1 – Página do repositório com o corpus de pesquisa Fonte: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/184906 143 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais O recorte selecionado para a realização da análise do discurso foi composto por seis (6) trabalhos que abordam a Educação Infantil, sendo duas (2) teses e qua- tro (4) dissertações, o que corresponde a 7,4% das pesquisas sobre criançassurdas (do total de 81 pesquisas). Essa pequena porcentagem apenas revela o quanto des- conhecemos como se tem desenvolvido a educação de crianças surdas pequenas no Brasil. Assim, chegamos ao seguinte (Quadro 1): Quadro 1 – As pesquisas sobre Educação Infantil PESQUISAS DISSERTAÇÃO 2006 TURETTA, Beatriz Aparecida dos Reis. A criança surda e seus interlocutores num programa de escola inclusiva com abordagem bilíngue. https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/190808 2012 CÔRTES, Diolira Maria. “Brincar vem”: a criança surda na educação infantil e o despertar das mãos. Acesso em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/210184 2014 RABELO, Dayane Bollis. O bebê surdo na educação infantil: um olhar sobre inclusão e práticas pedagógicas. Acesso em: https://repositorio.ufsc.br/hand- le/123456789/210186 2017 COSTA, Renata dos Santos. O professor intérprete de Libras em uma escola polo do município de Nova Iguaçu. 2017. https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/190829 TESE 2016 TEIXEIRA, Keila Cardoso. A criança surda na educação infantil: contribuições para pensar a educação bilíngue e o atendimento educacional especializado. https://repositorio. ufsc.br/handle/123456789/229669 2018 RABELO, Dayane Bollis. A educação infantil para crianças surdas em muni- cípios da região metropolitana de Vitória. https://repositorio.ufsc.br/hand- le/123456789/212900 Fonte: Elaborado pela autora. As concepções inerentes às relações dialógicas podem ser compreendidas nas mais diversas categorias de atividade humana. É fundamental que aconteça a materialização do discurso para que as relações lógicas sejam dialógicas, concretas na voz dos diversos sujeitos. Para Bakhtin (1998). com base nos estudos da lingua- gem a partir da teorização concebida pelo Círculo, há percursos para se examinar a organicidade do discurso. 144 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 4 Discursos e suas Múltiplas Vozes Na perspectiva teórica que estudamos, questões ligadas ao funcionamento das línguas e a sua interpretação, ao mesmo tempo que abordam a negociação e construção de sentidos e significados, não se pode prescindir o sujeito que enuncia e seu contexto histórico e social, visto que “[...] a linguagem não é falada no vazio, mas numa situação histórica e social concreta no momento e no lugar da atualiza- ção do enunciado” (Brait, 2005, p. 93). Quando tomamos o total das pesquisas compiladas por Albres (2019) e Costa (2021), no âmbito do InterTrads, ou seja, das 338 pesquisas apenas seis (6) versam sobre a Educação Infantil, o que evidencia uma comparação fortemente desproporcional com outros níveis de ensino, reforçando a necessidade de maio- res investimentos em pesquisa nesse nível de ensino. Dentre estas, apenas seis (6) abordam a atuação do intérprete na educação infantil. Ressalta-se que o Decreto n.º 5.626 não prevê a atuação do IE na Educação Infantil. Apresentamos os traba- lhos levantados sobre IE na Educação Infantil (Figura 1), seu contexto histórico e temporal relacionado às políticas públicas do Brasil. Figura 2 – Linha histórica das pesquisas Fonte: Elaborado pela autora. 145 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais A primeira pesquisa selecionada, para esse corpus, é de 2006, ano mar- cado por grandes transformações em decorrência da recente promulgação da lei que reconhece a Libras (Brasil, 2002) e do Decreto n.º 5.626 (Brasil, 2005) que a regulamenta e que aborda a educação bilíngue. Desde meados dos anos de 1990, vivemos a consolidação de uma política de inclusão escolar no Brasil (Mendes, 2006) que promoveu mais espaços de escolas comuns com a matrícula de alunos surdos, por exemplo. Assim, como a reorganização de atendimento especializado para essa clientela com professores de Libras e intérpretes de Li- bras-português. Entre 2006 e 2012 não identificamos pesquisas com o tema da Educação Infantil e interpretação educacional para compor o corpus. Constatamos a re- tomada em 2012 com o trabalho de Cortez (2012), logo em seguida por outros (Rabelo, 2014, 2018; Costa, 2014; Teixeira, 2016). Todas as autoras descrevem, analisam e explicam situações, atividades, ati- tudes e discursos. Todavia, ponderam sobre o que observaram em suas pesquisas e sobre o que dizem que “as comunidades surdas” desejam. Ocorre um processo de refração no projeto de dizer das pesquisadoras, refletindo e refratando os discur- sos acadêmicos e das comunidades surdas. Aspecto importante da perspectiva bakhtiniana para a análise, relaciona-se ao projeto de dizer do autor, o que se refere à intenção discursiva de um enun- ciado. Bakhtin (2011) explica que a intenção discursiva é um dos dois elementos que determinam o texto como enunciado; no outro polo está a própria realização dessa intenção. Considerando as relações dialógicas, no interior do texto e fora dele, Bakhtin observa que todo enunciado é emoldurador da intenção discursiva do autor, ou seja, para a elaboração de um projeto de dizer, deve-se considerar a interação entre autor/leitor, levando em conta tanto o que está explícito quanto o que está implícito. Assim, a intenção discursiva (projeto de dizer) implica a “relação da palavra com o pensamento e da palavra com o desejo, com a vontade, com a exigência. [...] A palavra como ato” (Bakhtin, 2011, p. 320), ato responsável, que não pode ser reduzido a relações estritamente linguísticas (gramaticais). Bakhtin (2012 [1920/1924]) compreende a palavra como ato singular, individual e irrepetível pelo qual o sujeito é responsável, pois não há ação isenta de ideologia, de valora- ção, de vontade e de desejo. É necessário [...] assumir o ato não como um fato contemplado ou teoricamente pensado do exterior, mas assumido do interior, na sua responsabilidade. Essa responsabilidade do ato permite levar em consideração todos os fatores: tanto a validade de sentido quanto a execução factual em toda a sua concreta historicidade e individualidade; a responsabilidade do ato conhece um único plano, um único contexto, no qual tal consideração é possível e onde tanto a validade teórica, quanto a factualidade histórica e o tom emotivo-volitivo figuram como momentos de uma única decisão. (Bakhtin, 2012, p. 80). 146 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Na análise que apresentamos, partimos das citações selecionadas, das de- finições sobre os papéis dos IE, destacamos a construção do discurso sobre o IE, contextualmente situado entre as ideologias das comunidades surdas e das pro- postas de educação inclusiva. Assim, os discursos estão relacionados aos contextos diversos para sua materialização, relacionando-os ao projeto de dizer das autoras, em dissertações e teses. De certa forma, os trabalhos não defendem a atuação do IE na Educação Infantil. As críticas são tecidas pela falta de professores surdos como modelo lin- guístico, mas não necessariamente pela presença do IE na Educação Infantil. Nos trabalhos analisados, constatamos que as tarefas descritas como dos intérpretes seriam perfeitamente desenvolvidas por um professor bilíngue, atuando conjun- tamente com um professor regente em sala mista (surdos e ouvintes): planejar, ensinar, interpretar. Os trabalhos ainda indicam haver uma confusão de papéis, uma sobreposição entre ser professor e ser intérprete. Todas as pesquisas analisadas indicam o papel educacional do intérprete em sala de aula, como também o desenvolvimento da tarefa de interpretação por outros profissionais, como pelo professor bilíngue ou pelo professor/instrutor de Libras. Consideramos que esses profissionais, embora sejam denominados como intérpretes, poderiam ser denominados como professores bilíngues atuando na Educação Infantil. Albres (2015) discorre sobre as políticas e suas normativas para a atuação dos IE. A autora critica a abstração que se faz e a desconsideração das diferentes realidades do Brasil. De acordo com ela, o ideal é registrado, todaviana dinâmica da escola não é possível apenas se trabalhar com o ideal. Cabe questionar, em cada instituição qual a for- mação inicial desses profissionais, quais experiências como alunos e como docentes, quais experiências como intérpretes de língua de sinais, que nível de língua de sinais de fato eles têm (proficiência) e que estudo/aperfeiçoa- mento lhes é proposto pelas próprias secretarias de educação a que estão contratados. Tudo isso contribuirá para a construção das identidades do intérprete educacional. (Albres, 2015, p. 44). Na Educação Infantil, as crianças e seus interlocutores vivem múltiplas lin- guagens, verbais e não verbais. A partir de uma reflexão linguístico-discursiva, consideramos que as crianças se constituem pelas linguagens em ação em sala de aula e se apropriam de diferentes formas de comunicação. A Educação Infantil tem grande relevância nesse processo, como espaço de constituição de linguagem: local no qual os surdos terão a possibilidade de sua aquisição de modo mais natural, ou seja, terão a aquisição da Libras à medida que brincam, que dialogam com os colegas surdos, com os educa- dores bilíngues: Libras/Português, numa constituição dialógica de lingua- gem, conforme já descrita anteriormente (Bakhtin, 2010). Por essa razão, não vemos como funcional a atuação de intérpretes educacionais nessa fai- xa etária, uma vez que o aluno surdo, na maioria dos casos, não domina a língua de sinais, e as relações de aprendizagem por processos tradutórios 147 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais ainda são muito complexas para uma criança surda que não tem no con- texto familiar o uso da língua de sinais – o que ocorre na maioria dos casos. (Martins; Albres; Sousa, 2015, p. 111-112). Pelo que constatamos, os professores desenvolvendo a função de intérpre- tes também na Educação Infantil são modelos linguísticos e discursivos, reverbe- ram as línguas e suas ideologias. Professores assumem o papel de intérpretes na Educação Infantil envolvidos por um discurso de “melhor com intérprete (pro- fessor especializado) do que sem nada”. Essa é uma tensão que não sanamos com esta pesquisa. Concebemos que o papel de educador (professor bilíngue) é o mais importante nessa fase da educação. Sobretudo, é importante destacar que a atuação do Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais Educacional (TILSE) tem sido alvo de discussão nas polí- ticas educacionais que tensionam a educação inclusiva de surdos. Ele tem sido convocado a atuar, inclusive, na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental – contrariando a argumentação anteriormente posta, uma vez que sua atuação se mostra melhor nos anos finais do Ensino Fundamental e nas demais etapas de escolarização. Todavia, vale destacar que a presença do intérprete passa a ser garantida pelo Decreto 5.626/05, que regulamenta a Lei n°10.436/02 e o artigo 18 da Lei no 10.098/2000, respondendo a questões de acessibilidade linguística amplamente discutida. Assim, vemos o fortalecimento e uma maior procura pela atuação de intér- pretes de língua de sinais educacional. De algum modo, essa movimenta- ção se reflete na regulamentação da profissão do tradutor/intérprete na Lei n° 12.319/2010, que passa a ter um campo maior de atuação profissional. (Martins; Albres; Sousa, 2015, p. 112). Compreendemos que as pesquisadoras se constituem nas relações que es- tabelecem em seu processo formativo e com seus pares, orientadores, professores e grupos de pesquisa. Assim como com os autores que estudam, com os livros que citam e com os que convivem na vida concreta. As pesquisadoras que se de- dicaram a estudar o tema da Educação Infantil e crianças surdas também eram professoras e estavam envolvidas nas questões práticas da escola e da sala de aula, participaram de grupos de pesquisa em instituições públicas de ensino e buscaram desenvolver suas pesquisas valendo-se de uma revisão de literatura. Para contextualizar a formação, como pesquisadoras, das participantes des- ta pesquisa, ou seja, das autoras das dissertações e teses que versam sobre o intér- prete na Educação Infantil, levantamos os nomes das orientadoras e apresentamos uma síntese do contexto em que essas pesquisas foram geradas e dos grupos de pesquisa a que pertenciam. Considerando a polifonia dos discursos acadêmicos, desde os discursos re- portados quanto a palavra própria do pesquisador, apresentamos a seguir as orien- tadoras das pesquisas e seus interesses a partir das pesquisas registradas no Cur- rículo Lattes. Consideramos que as vozes das orientadoras marcam os trabalhos desenvolvidos sobre Educação Infantil e crianças surdas pelo seu próprio papel de orientação. 148 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Quadro 2 – Conexões de orientações e grupos de pesquisas Orientadoras Orientandas/Pesquisadoras Prof.ª Dr.ª Maria Cecilia Rafael de Góes Beatriz Aparecida dos Reis Turetta (2006) Prof.ª Dr.ª Ivone Martins de Oliveira Diolira Maria Côrtes (2014) Dayane Bollis Rabelo (2014 e 2018) Prof.ª Dr.ª Sonia Lopes Victor Keila Cardoso Teixeira (2016) Prof.ª Dr.ª Celeste Azulay Kelman Renata dos Santos Costa (2017) Fonte: Elaborado pelas autoras. As quatro orientadoras são renomadas professoras pesquisadoras no Brasil. Importante indicar que essas orientadoras trabalham com a temática da educação de minorias, grupos socialmente e historicamente excluídos da escola. Essas orien- tadoras formam grupos de pesquisas que trabalham também na perspectiva histó- rico-cultural, pautando-se em uma abordagem qualitativa e social da vida huma- na. Esses aspectos são similares entre as orientadoras, podendo indicar a polifonia. Para Bezerra (2007), a polifonia se definirá pela convivência e pela intera- ção de vozes, em um mesmo espaço do romance, todas representando um determinado universo e marcadas por ele. Dessa forma, encontrar nos gê- neros discursivos vozes e consciências independentes, como sendo sujeitos de seus próprios discursos, nos quais os autores não as avaliam desde seu prisma social, de seu arcabouço de valores, mas as tratam como a cons- ciência do outro e não uma projeção da sua própria consciência, é uma tarefa árdua. Por um lado, pode ser encontrado na materialidade linguística dos enunciados concretos a heteroglossia (pluriliguismo/plurivocidade), a luta social entre as diferentes “verdades sociais” (Faraco, 2009, p. 70). (Pires; Koll; Cabral, 2016, p. 123). Além da orientação, os grupos de pesquisa também contribuem para que os trabalhos tenham uma linha de pensamento. Contudo, nem todas as autoras indicam em suas introduções a participação em algum grupo de pesquisa. Por exemplo, Teixeira (2016) explicita que participava da pesquisa da sua orientadora Sonia Lopes Victor intitulada “A educação especial na educação infantil e no pri- meiro ano do ensino fundamental: estudos dos processos de inclusão e do atendi- mento educacional especializado”, como também do Grupo de Pesquisa “Infância, Cultura, Inclusão e Subjetividade” (Grupicis), registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Relata que o objetivo desse grupo é investigar a educação especial na educação infantil e no primeiro ano do ensino fundamental, visando à realização de estudos sobre os processos de inclusão e ao atendimento educacional especializado de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. (Teixeira, 2016, p. 15). 149 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais Tendo por base o postulado bakhtiniano de que “[o] nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros” (Bakhtin, 2015, p. 223) e que esta afirma- ção se atribui também ao discurso acadêmico, bem como os seus efeitos de sentido em dissertações e teses. Segundo Bakhtin (2015), o discurso caracteriza-se por ser polifônico, isto é, revestido das palavrasdo outro, de novos valores, sendo incor- porados diversos posicionamentos axiológicos no discurso dos autores quando de nossa leitura das dissertações e teses. Nos escritos de Bakhtin (1997), a polifonia denomina a pluralidade de vo- zes em equilíbrio presente na obra de alguns autores. Bakhtin estudou a obra de Dostoiévski, romancista russo que viveu no século XIX, mas este conceito é ex- pandido para todos os discursos que em sua trama envolvem a incorporação ou reformulação de outros discursos. Trata-se de uma metáfora criada a partir da teoria musical que utilizamos também para analisar discursos acadêmicos, como as teses e dissertações. Usamos o “conceito de polifonia, uma vez que no âmbito do enunciado funcionam inúmeros mecanismos de circunscrição da alteridade, de uma relação complexa com alteridade que denuncia uma relação do enunciador com a própria palavra e com a língua” (Costa, 2015, p. 332). Há elementos visuais explícitos no discurso acadêmico em que podemos estabelecer discursividade como a citação direta e indireta dentro do texto escrito. Mas há outros discursos que circulam em interações entre professores e alunos em momentos de orientação, assim como as orientações e considerações realizadas pelos professores que compõem as bancas de qualificação e defesa (compondo os rituais da pós-graduação) que, por vezes, são mais difíceis de serem percebidos quando do relatório de pesquisa finalizado, ou seja, dissertações e teses. Dessa forma, a seguir, apresentamos a composição das bancas de mestrado e doutorado. Quadro 3 – Conexões de orientações e grupos de pesquisas Orientandas / Pesquisadoras Banca examinadora Beatriz Aparecida dos Reis Turetta (2006) Prof.ª Dr.ª Maria Cecília Rafael de Góes (Orientadora) Prof.ª Dr.ª Cristina Bróglia Feitosa de Lacerda Prof.ª Dr.ª Maria Cristina da Cunha Pereira Diolira Maria Côrtes (2014) Prof.ª Dr.ª Ivone Martins de Oliveira (Orientadora) Prof. Dr. Rogério Drago Prof.ª Dr.ª Vera Lucia Messias Fialho Capellini Dayane Bollis Rabelo (2014) Prof.ª Dr.ª Ivone Martins de Oliveira (Orientadora) Prof. Dr. Rogério Drago Prof.ª Dr.ª Maria de Fatima Carvalho Keila Cardoso Teixeira (2016) Prof.ª Dr.ª Sonia Lopes Victor Prof.ª Dr.ª Lucyenne Matos da Costa Vieira Machado Prof. Dr. Reginaldo Célio Sobrinho Prof.ª Dr.ª Angela Maria Cautyt Santos da Silva Prof.ª Dr.ª Sonia Mari Shima Barroco 150 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 Renata dos Santos Costa (2017) Prof.ª Dr.ª Celeste Azulay Kelman (Orientadora) Prof.ª Dr.ª Ana Ivenicki Prof.ª Dr.ª Wilma Favorito Dayane Bollis Rabelo (2018) Prof.ª Dr.ª Ivone Martins de Oliveira (Orientadora) Prof.ª Dr.ª Lucyenne Matos da Costa Vieira Machado Prof. Dr. Rogério Drago Prof.ª Dr.ª Dilza Côco Prof.ª Dr.ª Silvia Moreira Trugilho Fonte: Elaborado pela autora. Todos os professores convidados para compor as bancas são pesquisadores envolvidos com o campo da educação e atuantes na educação especial, bem como em políticas públicas visando minimizar as diferenças sociais. De certa forma, é possível perceber a polifonia também examinando os au- tores (textos) que são citados nas dissertações e teses, os autores que são convida- dos para o diálogo sobre o conceito de IE, sobre a educação de surdos e o contexto político. De tal modo, apresentamos, a seguir, um quadro com as citações concei- tuais sobre o IE ou relacionadas a esse profissional. Citações no corpo do discurso Turetta (2006) por ser a primeira pesquisadora a se dedicar ao estudo do IE Infantil teve acesso menor a trabalhos com essa temática. Ela cita apenas Lacerda (2002). Constatamos que as primeiras autoras selecionaram citações mais genéri- cas que tratavam do desenvolvimento infantil e da importância de seus interlocu- tores para a aprendizagem e por conta própria constroem suas generalizações em relação às situações educacionais das crianças surdas e seus interlocutores, sejam eles os professores e instrutores de Libras ou os IE. É possível perceber que os mesmos textos circulam entre as pesquisadoras, guardadas as devidas diferenças cronológicas. Costa (2017) foi a pesquisadora que fez uma revisão de literatura mais ampla, em período histórico, e mais abrangente, envolvendo teses, dissertações, artigos científicos, capítulos de livros e livros completos. Ela traz para o corpo do seu texto (dissertação) várias citações e constrói um diálogo com os autores e os coloca para conversar. Apresentamos, a seguir, algumas das citações selecionadas de sua dissertação para ilustrar as afirmações (conceitos ou definições) sobre o IE. Por sua vez, Rabelo (2018) cita Lacerda (2000) e Lodi (2013). Todas as autoras citam a legislação nacional que indica o serviço de inter- pretação na educação, formação indicada e o papel dos intérpretes, como o Decre- to nº 5.626 de 2005 (Brasil, 2005). Constatamos a recorrência de citação da autora Cristina Lacerda (2000, 2002, 2008, 2009, 2010) em diferentes textos, assim como dessa autora em parceria 151 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais com outros autores. A autora Ana Claudia Balieiro Lodi (2013) também foi bas- tante citada, inclusive em textos em parceria com Cristina Lacerda (Lodi, Lacerda, 2009) . É importante mencionar que além do tema de pesquisa das autoras serem similares, elas se inscrevem na mesma perspectiva teórica, o que pode ser um fator de seleção para compor o relatório de pesquisa e dialogar com as autoras. Há ainda as vozes das comunidades surdas com afirmações que refletem e refratam os discursos que reverberam o desejo por uma educação bilíngue para surdos e a educação como um direito linguístico. Em síntese, constatamos que as citações são usadas para discutir temas como formação, denominação e atuação dos IE. Todas as pesquisas analisadas, nesta dissertação, concordam que se o intér- prete for atuar na Educação Infantil terá que assumir mais que o papel de interpre- tação. Esse fato também é indicado na literatura internacional e nacional, desde o início desses estudos, como aponta Lacerda (2006), ao afirmar que que [...] o objetivo último do trabalho escolar é a aprendizagem do aluno surdo e seu desenvolvimento em conteúdos acadêmicos, de linguagem, sociais, entre outros. A questão central não é traduzir conteúdos, mas torná-los compreensíveis, com sentido para o aluno. Deste modo, alguém que tra- balhe em sala de aula, com alunos, tendo com eles uma relação estreita, cotidiana, não pode fazer sinais – interpretando – sem se importar se está sendo compreendido, ou se o aluno está aprendendo. Nessa experiência, o interpretar e o aprender estão indissoluvelmente unidos e o intérprete edu- cacional assume, inerentemente ao seu papel, a função de também educar o aluno. (Lacerda, 2006, n.p.). Constatamos que os discursos das pesquisadoras reverberam múltiplas vo- zes, ao mesmo tempo em que trazem o projeto de dizer das próprias pesquisa- doras. Os discursos se entrelaçam construindo uma polifonia sobre a Educação Infantil para as crianças surdas. Para Lodi e Lacerda (2009), a Educação Inclusiva Bilíngue parte da pers- pectiva de organizar a escola com base no princípio da circulação efetiva da Libras em todo o espaço escolar. Diante da reivindicação de lideranças surdas represen- tadas pela Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), o PNE/2014 fez a retificação e distinção entre escolas inclusivas e escolas bilíngues, classes inclusivas e classes bilíngues e, em 2021, a Lei n.º 14.191 coloca a educação bilíngue como modalidade de ensino. Essas atuais modificações nas políticas edu- cacionais podem contribuir para uma maior reflexão sobre os modos de organizar a Educação Infantil para as crianças surdas na direção de uma educação bilíngue em que a Libras é o norte para a educação, e em que o espaço dos professores bilín- gues, inclusive de professores surdos, sejam eles de Libras ou de outras disciplinas escolares, seja uma política efetiva.152 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 5 Considerações Finais Sobre a pluralidade de vozes, destacamos como as pesquisadoras são au- toras dos discursos, evidenciando como esses discursos são habitados por outras vozes, sejam elas dos autores dos textos com quem dialogam, dos orientadores, dos professores que participaram das bancas de qualificação ou defesa do trabalho acadêmico, assim como as coerções das comunidades surdas, concebendo os dis- cursos sociais e ideológicos. Constatamos que os discursos das pesquisadoras reverberam múltiplas vo- zes, ao mesmo tempo em que trazem o projeto de dizer das próprias pesquisa- doras. Os discursos se entrelaçam construindo uma polifonia sobre a Educação Infantil para as crianças surdas. É importante destacar que tanto a literatura quanto as comunidades surdas não incentivam a colocação de IE para acompanhamento de crianças surdas em Educação Infantil. Voltam-se para a consolidação de uma Educação Bilíngue em que a criança surda tenha o direito de desenvolver-se em Libras e que a construção de conhecimento de mundo seja por meio da Libras com interlocutores (educado- res) proficientes em Libras sem a mediação de intérpretes, ou seja, que os professo- res sejam bilíngues, de preferência com a presença de professores surdos adultos. Mais pesquisas são necessárias, por exemplo, para explorar as interações em sala de aula, os processos de aprendizagens das crianças surdas, os papéis dos IE com crianças e na escola de Educação Infantil. Além disso, são necessárias mais informações sobre as estratégias interpretativas empregadas em diferentes dinâ- micas de sala de aula com crianças pequenas em nível de Educação Infantil, quan- do for o caso. Apesar de não ser a melhor estratégia, para educação de crianças surdas, a colocação de IE, não podemos negar que essa prática existe em muitas redes municipais e estaduais de ensino e precisam ser avaliadas. Embora se tenha constatado a presença de IE na Educação Infantil, o pe- queno número de trabalhos e a falta de uma descrição detalhada de suas tarefas indicam a necessidade de um estudo específico para produção de afirmativas mais precisas sobre os limites e possibilidades de atuação de intérpretes nesse nível de escolarização. Referências ALBRES, N. A. 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Nas duas casas legisla- tivas, que possuem atribuições legislativas, de fiscalização e de controle, são várias as atuações de deputados e senadores, ainda que a elaboração de leis se destaque como a atividade basilar em ambos os órgãos. O processo legislativo, por meio do qual as leis são formuladas, compreende a elaboração, a análise e votação de pro- postas, etapas em que constantemente se produz informação, seja em documentos escritos ou em interações nas audiências públicas, sessões e reuniões, que podem ser acompanhadas presencialmente ou por meios de comunicação, como TV, rá- dio e mídias sociais. Para que os surdos possam acessar a informação que circula no Congresso, seja de forma presencial ou virtual, são necessários serviços de interpretação simul- tânea de e para a Língua Brasileira de Sinais - Libras, prestados por profissionais ha- bilitados a desempenhar essa função em situações e ambientes muito variados. Para tanto, políticas de tradução e de interpretação se expressam tanto em documentos regimentais, comprometidos com o acesso à informação, quanto em contratos de tradutores e intérpretes. Apesar de consignados por tais documentos, esses serviços carecem de monitoramento e de consolidação, muito em função de não existir car- go efetivo de tradutor e de intérprete de Libras-português no Congresso Nacional, sendo os profissionais contratados geralmente por meio de licitação. Com base nesse cenário, buscou-se identificar as políticas linguísticas ex- plicitadas nos contratos de tradução e interpretação e outros documentos rele- vantes, de modo a subsidiar futuras contratações e de atender as necessidades de interpretação de Libras-português de cada contexto. 158 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 2 Políticas linguísticas e políticas de tradução e de interpretação no par linguístico Libras-português Segundo Rajagopalan (2013, p. 34), “todo gesto de cunho político envolve uma questão de escolha entre diferentes alternativas que se apresentam”. Nesse sentido, as políticas linguísticas implicam decisões relacionadas às línguas, esco- lhas que podem ocorrer em instâncias governamentais, institucionais ou em práti- cas familiares e locais. Essa interferência sobre as línguas se concretiza por meio de ações regimentais, como a definição das funções das línguas nas sociedades, além da criação de instrumentos como gramática, dicionário e léxico para “equipar” as línguas locais. No Brasil, historicamente, difundiu-se a ideia de que somos um país mo- nolíngue, promovendo o silenciamento das línguas minoritárias. Apesar de a Constituição Federal determinar que o português é a única língua oficial no Brasil, Oliveira (2009, p. 20) afirma que seriam faladas, em nosso país, cerca de 215 lín- guas. Torquato (2010) destaca, no entanto, que o Estado tem promovido políticas que interrompem o silenciamento, como o reconhecimento da Libras e a cooficia- lização de algumas línguas por parte de alguns municípios brasileiros1. No caso das línguas de sinais, apesar de terem sido identificadas pelo menos 21 línguas de sinais no Brasil (Silva, 2021, p. 106), entre línguas faladas em aldeias, em comuni- dades isoladas e comunidades de fronteiras, a Libras, falada por uma significativa parcela dos surdos brasileiros, foi a única reconhecida pela legislação. As políticas de tradução2 e de interpretação, por sua vez, abrangem as de- finições acerca dos processos e dos produtos das atividades tradutórias e inter- pretativas, que podem ter relação com a escolha dos textos e discursos a serem traduzidos ou interpretados, com a formação e com as condições de atuação dos profissionais, para citar alguns entre vários exemplos. Baseando-se nos estudos de Meylaerts (2010), Santos e Francisco (2018) apresentam uma definição abrangente acerca do tema: [...] o termo “política de tradução” é um guarda-chuva que abriga uma série de assuntos a serem dialogados e pesquisados, tais como: a formação de tradutores, as condições de produção e de recepção dos textos, a circulação das traduções por meio das editoras, o mercado de trabalho, as ideologias e estratégias adotadas no processo tradutório (que podem dar visibilidade ou não a determinada cultura), assim como os textos escolhidos para serem traduzidos e aqueles que ficam marginalizados perante os sistemas cultu- rais. (Santos; Francisco, 2018, p. 2943). 1 Destaca-se, nesse sentido, a atuação do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (IPOL). Para mais informações, ver http://www.ipol.org.br/. 2 Apesar de este capítulo pretender abordar apenas questões relacionadas à interpretação, em di- versos momentos, a observação de práticas ligadas à tradução foi importante para a compreensão das políticas de forma geral. 159 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais Apesar de estar inserido no mapa de Holmes, que marcou a inauguração dos Estudos da Tradução, no final da década de 1960, o tema “políticas de tradu-ção” ainda é pouco pesquisado. Segundo Schäffner (2007), foi somente a partir da década de 1980 que pesquisas baseadas em estudos culturais passaram a com- preender a tradução como um fenômeno complexo, focando em práticas sociais, culturais e comunicativas, no fator ideológico da tradução e na relação entre os fatores socioculturais e o comportamento tradutório. Assim, os estudos começa- ram a levantar questões como quem decide quais textos traduzir, de e para quais idiomas? Onde as traduções são produzidas? Quais fatores determinam o com- portamento do tradutor? Como as traduções são recebidas? Quem escolhe e for- ma tradutores? Para quais línguas? (Schäffner, 2007), entre outras. As respostas a essas perguntas se manifestam por meio de decisões políti- cas, o que significa dizer que envolvem relações de poder. Optar por uma língua de tradução ou de interpretação ou escolher um discurso a ser interpretado não são decisões neutras. A tais decisões, geralmente institucionais, sobrepõe-se o cunho político do papel do próprio intérprete em atuação. Alvarez e Vidal (1996) desta- cam que, por transitar entre culturas e reconstruir significados na cultura-alvo, a tradução é um ato político e todas as suas escolhas, desde o que traduzir até como traduzir, são determinadas por agendas políticas. A diversidade de assuntos regidos por políticas de tradução (e de interpre- tação), que abrange processos e produtos, bem como profissionalização – compe- tências, tecnologias, contextos profissionais, avaliação, certificação, honorários – e o desenvolvimento histórico da profissão, evidencia a necessidade de discutir tais políticas não apenas no âmbito acadêmico, mas junto aos órgãos representativos e às entidades de classe de tradutores e intérpretes. Importa destacar que a política de tradução também afeta as direções de tradução, algumas línguas sendo menos traduzidas que outras (Schäffner, 2007). No caso das interpretações intermodais, que envolvem língua de sinais e língua oral, como Libras e português, a direção mais requerida é para a língua de sinais3. Santos e Veras (2020) afirmam que a aprovação de leis e a criação de docu- mentos são as manifestações e aplicações mais explícitas das políticas de tradução e de interpretação, uma vez que manifestam a institucionalização e oficialização das ações por elas definidas. Meylaerts (2010, p. 165), por sua vez, destaca o papel das normas jurídicas na constituição das políticas de tradução. Tais normas têm 3 Na interpretação intermodal, há diferenças metodológicas e operacionais entre as duas direções de atuação, que requerem o emprego de uma série de estratégias diferentes para cada uma das direções (Lourenço, 2018). Há pesquisas, como as realizadas por Nicodemus e Emmorey (2015), Nicodemus (2008), Crasborn (2006), van den Bogaerde (2010), Napier et al. (2005) e Silva (2021), que mostram que, diferente do que ocorre com intérpretes intramodais que atuam com duas línguas orais, entre os intérpretes intermodais existe uma preferência para atuar a partir da sua primeira língua (a língua oral) para a sua segunda língua (a língua de sinais). Essa preferência pode ser explicada por fatores relacionados a um maior esforço cognitivo (Rodrigues, 2018a; Ro- drigues, 2018b); aos aspectos psicológicos e afetivos do profissional (Masutti; Santos, 2008); ou às demandas, historicamente, apresentadas ao intérprete (Rodrigues, 2018a; Bontempo, 2015). 160 SELS – Série Estudos de Língua de Sinais – v. 6 o objetivo de determinar as formas como a tradução deve ocorrer no âmbito pú- blico, definindo se e como as pessoas que não falam a língua oficial do país terão acesso aos serviços públicos. As línguas – e por consequência todas as decisões que as envolvem – estão diretamente relacionadas a questões de prestígio e de poder e os mecanismos institucionais ajudam a controlar “quem está dentro” e “quem está fora” (Meylaerts, 2009, p. 10). Assim, as políticas de tradução e interpretação refle- tem as relações de poder existentes, as quais têm impacto direto sobre a categoria profissional e sobre as comunidades que precisam dos serviços de interpretação. Em se tratando da Libras, destacam-se três fatores que permeiam as políti- cas linguísticas e as políticas de tradução e de interpretação: a luta dos movimen- tos surdos e dos movimentos de tradutores e de intérpretes de línguas de sinais (TILS4), o reconhecimento da Libras pela legislação federal e o seu fortalecimento no ambiente acadêmico (Santos; Zandamella, 2015). Segundo Brito (2019), o movimento surdo emergiu, no Brasil, na década de 1980, ganhando força principalmente com a criação da Federação Nacional de Educação de Surdos (Feneis5), em 1987, que estabeleceu como principal luta o reconhecimento da Libras. Em um primeiro momento, tal luta teve como base os direitos sociais e humanos, se alinhando ao movimento das pessoas com deficiên- cia, de forma geral (Brito; Neves; Xavier, 2013). Foi a partir da década de 1990, que a luta pelo reconhecimento da Libras passou a ser embasada não apenas na igualdade de oportunidades, mas, principalmente, nas questões de identidade, de direitos linguísticos e culturais6 (Brito, 2019). No que tange ao trabalho realizado pela Feneis, é importante ressaltar sua atuação para a estruturação, certificação e formação continuada dos profissionais que já atuavam com o par linguístico Libras-português. Na década de 1990, as questões referentes à profissionalização dos tradutores e dos intérpretes de Libras- -português eram tratadas no âmbito do Departamento Nacional de Intérpretes da Feneis, em um momento em que os cursos de formação desses profissionais eram escassos. Assim, estabeleceu-se a primeira relação entre os movimentos surdos e a atuação e formação de TILS (Santos; Zandamella, 2015). Uma das maiores conquistas do movimento surdo foi a Lei n.º 10.436/2002, também conhecida como Lei de Libras, que se constituiu um marco na história das políticas linguísticas e de tradução e interpretação referentes à língua de sinais do 4 Ao nos referirmos apenas aos intérpretes de línguas de sinais, usaremos a sigla ILS. 5 Santos (2006, p. 23) afirma que a Feneis “é um marco de posição política dos surdos que exem- plifica as tentativas que permeiam, desde sua fundação, a preocupação por um olhar diferente em relação aos surdos”. Brito, Neves e Xavier (2013, p. 68), por sua vez, defendem que “a Feneis foi a principal e maior organização do movimento social surdo, mas este incluiu também o agir coleti- vo de indivíduos vinculados a diferentes grupos e associações, tais como diversas associações de surdos, a Companhia Surda de Teatro, a Comissão Paulista para a Defesa dos Direitos dos Surdos, a Coalização Pró-Oficialização da Libras e o Grêmio Estudantil do INES”. 6 Tal mudança pode ser vista no documento intitulado A educação que nós surdos queremos (FE- NEIS, 1999), redigido por cerca de 300 surdos do Brasil inteiro, durante o pré-congresso ao V Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngue para Surdos, realizado em Porto Alegre (RS). 161 Parte II – Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais Brasil, ao reconhecer a Libras como meio de comunicação dos surdos brasileiros7. Por reconhecer aos surdos o direito de se comunicar em sua própria língua, as instituições precisaram inserir tradutores e intérpretes em seus quadros. Essa Lei foi regulamentada pelo Decreto n.º 5.626/2005, o qual estabeleceu “uma espécie de planejamento linguístico para a implementação da Lei de Libras” (Quadros; Stumpf, 2018, p. 23). O Decreto determinou a criação de cursos de nível superior para for- mação profissional do tradutor e do intérprete, política de certificação profissional, por meio do ProLibras8, bem como a inserção da Libras como disciplina em cursos de licenciatura e de fonoaudiologia e o acesso de surdos à Educação e à Saúde. Com a promulgação do Decreto, foi criado o primeiro curso de bacharela-