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MÃOS by Felipe Correa Felipe Correa Versão 01 - 23/07/2024 1 MÃOS FADE IN: 1 INT. SALA - NOITE Mãos trêmulas de GARCIA se abrem a sua frente. Mãos trêmulas de MARIA LUIZA tricotam. Mãos firmes de FORTUNATO seguram o cigarro enquanto ele se balança levemente na cadeira de balanço no centro da sala próximo a lareira, única luz do recinto. A esquerda da sala GARCIA de pé percebe o quão trêmulas estão suas mãos. A direita da sala MARIA LUZIA sentada próxima a janela olha apenas para seu tricô. 2 INT. CENTRO CIRÚRGICO - NOITE Tela escura, no centro: "CINCO ANOS ANTES" Mãos de GARCIA [25] com instrumentos cirúrgicos realizam uma sutura onde não aparece sangue. Suas mãos fazem o procedimento com rapidez e segurança. O trabalho é completado. Na sala não há pacientes, apenas uma pele falsa onde o procedimento é realizado, junto a ele estão cinco outros estudantes de medicina tão jovens quanto GARCIA e um médico com aparência mais velha, o PROFESSOR [50], que fala com eles enquanto retira as luvas e o restante das vestimentas hospitalares. PROFESSOR Muito bem Garcia, é assim que se faz uma sutura. GARCIA Com pele falsa é mais fácil. 2 PROFESSOR Espero que seja assim até sua aposentadoria. Isso me lembra de algo que estava querendo falar com vocês. Logo vocês começarão efetivamente a carreira de vocês. No começo há medo, há ansiedade, e também há empolgação. A prática melhora nossas habilidades, seja no centro cirúrgico ou no diagnóstico. A experiência nos ajuda a enxergar nossa profissão com mais naturalidade, e isso nos esfria. Como eu já disse a vocês, é necessário ser frio para fazer o que fazemos, mas vocês não podem esquecer que pacientes não são só carne, são gente, são pessoas, e enquanto vocês conseguirem sentir a vida que está do outro lado, vocês serão bons médicos. Aquele que não sente nada diferente entre suturar essa pele falsa e a de um ser humano e ainda tem prazer no exercício de nossa profissão é apenas um sádico. Não estou aqui para formar sádicos e sim profissionais humanos que irão tratar humanos. Bom, vejo vocês amanhã no hospital, não quero ninguém fugindo do PS. Boa noite. 3 3 INT. SALA DE CINEMA - NOITE Na entrada da sala de Cinema aparece um cartaz do filme "Jogos Mortais 3". Lá dentro GARCIA está sentado ao lado da GAROTA com quem assiste o filme. A GAROTA esconde o rosto com medo no braços de GARCIA enquanto fortes sons de gritos agonizantes e de engrenagens metálicas se movendo se misturam na sala. GARCIA volta os olhos para ela com cara de arrependimento. GARCIA Me desculpe, eu achei que você gostasse de terror. GAROTA Isso não é terror! É loucura! GARCIA [o som de uma serra elétrica inunda a sala e o interrompe, seguido de novos gritos de dor] Não é tão terrível assim. A GAROTA faz uma careta de "é disso que eu estou falando"para GARCIA e volta se esconder. GARCIA retoma sua atenção ao filme, mas uma figura sentada a poucos bancos a frente chama sua atenção. FORTUNATO (40), um homem com um balde de pipoca e uma tatuagem de um machado no canto direito do pescoço assiste o filme como se fosse uma comédia. Ele ri alto de cenas que GARCIA tem dificuldade de assistir. 4 4 INT. QUARTO - NOITE GARCIA dorme profundamente em sua cama quando é acordado por batidas em sua porta e a voz de seu VIZINHO gritando. VIZINHO Garcia! Garcia! Tem um homem ferido lá em embaixo, ele precisa de ajuda GARCIA se levanta veste as primeiras peças de roupa que vê pela frente e abre a porta. O VIZINHO o encara com olhos arregalados VIZINHO Você é médico nao é? GARCIA ESTUDANTE VIZINHO Um homem foi esfaqueado na barriga e está sangrando lá no térreo. GARCIA Chamaram a emergência? VIZINHO Chamamos, mas ambulância mais próxima está do outro lado da cidade, nunca vão chegar a tempo, vai ter que ser você. GARCIA Pega uns panos limpos e me encontra lá embaixo. GARCIA busca seu seu kit de sutura e de primeiros socorros, coloca-os embaixo do braço, sai, fecha a porta do quarto e desce correndo pelas escadas. 5 5 INT. HALL DE ENTRADA - NOITE Eles chegam no térreo do prédio. No chão na frente da portaria está o PORTEIRO sentado com o ferido(40) deitado apoiando a cabeça em seu colo. Há sangue no chão, o rosto de GARCIA se contorce com a visão do ferido no colo do PORTEIRO. PORTEIRO O senhor é médico? Por favor o ajude! GARCIA Sou estudante. Precisamos pressionar bem a ferida para parar o sangramento. GARCIA se abaixa para observar melhor a cena: o PORTEIRO está tentando segurar o sangramento no canto direito da barriga com um pequeno lenço, o ferido, de olhos fechados, quase inconsciente, se contorce e geme de dor. GARCIA Qual o nome dele? PORTEIRO Não sei, ele estava passando aqui em frente, alguém atacou ele com uma faca, ele deu um grito e caiu no chão, eu só consegui puxar ele pra dentro. O VIZINHO chega com toalhas grandes e limpas, entrega ao PORTEIRO. GARCIA Me ajudem a mantê-lo parado e pressione bem a ferida com os panos. Com uma das mãos GARCIA tenta abrir um dos olhos do ferido, em seguida segura seu rosto levantando do colo do PORTEIRO. 6 GARCIA Moço, você precisa ficar acordado. GARCIA se ajoelha ao lado, abre seu kit, coloca luvas, pega álcool e gaze e olha para suas mãos, elas tremem, ele respira fundo, olha para o rosto do ferido, olha para o rosto do PORTEIRO, que o responde com um olhar desesperado, olha novamente para as mãos trêmulas segurando o álcool e a gaze, respira fundo novamente, mas não consegue se mover. FORTUNATO Precisa de ajuda doutor? GARCIA arregala os olhos assustado e olha para trás procurando entender de onde vinha aquela voz. FORTUNATO está de pé com as mãos nos bolsos e um cigarro na boca olhando para eles. GARCIA vira para ele, repara na tatuagem no pescoço, mas não se move. FORTUNATO se ajoelha ao seu lado. FORTUNATO Posso usar seu kit, doutor? GARCIA faz lentamente sim com a cabeça ainda com olhos arregalados e mãos trêmulas. GARCIA se levanta lentamente para dar espaço a FORTUNATO. O PORTEIRO e o VIZINHO começam a explicar a FORTUNATO em desespero, gritando, tudo que ocorrera até então. GARCIA de pé olha para os dois que gritam mas não ouve nada. (Silêncio) GARCIA observa as mãos de FORTUNADO. Mãos ágeis, mãos firmes, mãos que se movem do ferimento ao kit com naturalidade, buscando os instrumentos e utilizando-os para fechar a ferida. GARCIA senta no chão encostando as costas na parede, no canto da entrada no prédio, olha para as suas mãos ainda com as luvas, elas ainda estão tremendo. GARCIA coloca a cabeça entre os joelhos e as mãos por cima da cabeça enquanto FORTUNATO trabalha no ferimento e o VIZINHO e o PORTEIRO o auxiliam. 7 6 INT. HALL DE ENTRADA - MANHÃ GARCIA abre os olhos. O rosto de FORTUNATO está sorridente e inclinado ao seu e é escurecido pela luz do dia que surge atrás dele. Ele ainda segura as luvas sujas de sangue. GARCIA volta a si e olha para o centro do Hall e vê o porteiro com um pano de chão e um rodo limpando o sangue do chão. Nenhum sinal do ferido. FORTUNATO Ei doutor! Bom dia! GARCIA Onde está o homem ferido? FORTUNATO Ele tá bem, eu o enviei pra casa, e pedi pra voltar aqui uma vez por dia para checar seu curativo. GARCIA Você mora aqui no prédio? FORTUNATO Não, mas você mora, disse pra procurar você. Garcia seu nome né? Perguntei pro porteiro. Me chamo Fortunato. GARCIA Procurar por mim? Ele precisa ir para um hospital! 8 FORTUNATO Calma! Calma! Dei uma olhada e aparentemente aquele ferimento não prejudicou nada interno. Mandei ele manter aquilo limpo, e se ele tiver algum sintoma de febre ou inchaço pra ele ir sim para algum hospital. Você só precisa dar uma olhada e trocar o curativo, tenho certeza que você consegue. GARCIA Eu não consegui nem te ajudar ontem, por quê não pediu pra ele ir para sua casa? FORTUNATO Eu sei que você é estudante, é normal travar nas primeiras vezes que você fica responsável por algoassim. Agora não tem mais risco de vida, você consegue sim. Eu não consigo, vou viajar amanhã, só estava de passagem para visitar uns familiares. GARCIA Como pode ter tanta certeza de que não tem ferimentos internos? Você é médico? 9 FORTUNATO Passei um tempo servindo o exercito americano no Afeganistão, meu pai era americano, passei boa parte da vida lá. Não vivo disso, mas me acostumei com esse tipo de ferimento, dá pra saber. Eu tenho que ir, mas fica com meu cartão. Me manda umas fotos pra me atualizar do ferido. GARCIA Farei isso, qual era o nome dele? FORTUNATO Sei lá, não perguntei, o porteiro deve saber. Até a próxima Garcia, espero encontrá-lo novamente. Os homens se cumprimentaram e FORTUNATO se foi. GARCIA ficou parado de pé, olhando para seu cartão e depois olhando para a figura de FORTUNATO que se distanciava. 10 7 INT. ENTRADA DO CINEMA - NOITE Na entrada do cinema de rua o cartaz mostra o título "Jogos Mortais 5". GARCIA está pronto para entrar, sozinho e avista um homem com uma tatuagem de machado no pescoço, seu rosto demonstra o reconhecimento de FORTUNATO e caminha até ele. GARCIA Quanto tempo! Fortunato, certo? FORTUNATO Doutoooor! Quanto tempo! Isso mesmo, e você é o Doutor Garcia né? GARCIA Exatamente, fico feliz de te encontrar, há muito tempo penso que te devo um pedido de desculpas, e claro um obrigado. FORTUNATO Você não me deve nada doutor. GARCIA Devo sim, você salvou a vida daquele homem aquele dia, se dependesse de mim ele estaria morto, e eu desnorteado que fiquei acabei sendo bem rude. FORTUNATO Vamos fazer assim, se quer tanto me agradecer venha em casa domingo, estou morando aqui no Brasil agora, aqui na cidade, você precisa conhecer a minha esposa. GARCIA Domingo? Esse domingo? 11 FORTUNATO Esse domingo, não comece a forjar desculpas, não admito desculpas, vou te enviar o endereço no Instagram. E bom filme! Acredito que esse é ainda melhor que aquele que vimos quase juntos. FORTUNATO termina de falar e entra imediatamente na sala de cinema junto com dezenas de pessoas. GARCIA fica parado sem reação enquanto as pessoas entram esbarrando nele. 8 INT. SALA DE ESTAR DE FORTUNATO - DIA A sala de estar de FORTUNATO é ao mesmo tempo clássica e moderna, Uma sala grande com um grande tapete de estampa discreta embaixo de móveis bonitos organizados em torno de uma lareira. Acima da lareira o quadro "A queda de Ícaro"de Pieter Bruegel. O tom de marrom claro em partes das paredes combinam com a tonalidade da cor da madeira dos móveis, das almofadas muito bem organizadas no sofá e do piano no canto. O restante é branco, enfatizando a claridade do dia que entra pelas cortinas também brancas na imensa janela. GARCIA entra na sala guiado por FORTUNADO, GARCIA se acomoda no sofá voltado de frente para lareira e FORTUNATO na cadeira de balanço bem próxima a lareira. FORTUNATO Fico feliz que tenha vindo. Peço desculpas por MARIA LUIZA, ela não veio recebê-lo porque está terminando de preparar a mesa para o almoço. GARCIA Pelo cheiro, deve estar muito bom. 12 FORTUNATO Você vai adorar a comida dela, falando nela, olha ela aí. Por uma entrada no canto direito da sala aparece MARIA LUIZA (30). Uma jovem de baixa estatura, magra, parada na porta sem saber onde colocar sua mãos. Ela força um sorriso tímido para GARCIA e evita olhar diretamente em seus olhos. FORTUNATO Pare de ser tão caipira e venha cumprimentar GARCIA direito MARIA LUIZA Muito prazer, perdão pelo atraso, mas já podemos comer. GARCIA O prazer é todo meu. FORTUNATO Você vai ver, ainda tem muita coisa que ela precisa aprender, mas ela tem sido muito útil pra mim. 9 INT. SALA DE JANTAR DE FORTUNATO - DIA Os três sentam em uma mesa de oito lugares. FORTUNATO em uma das extremidades e os outros dois a seu lado. A sala de jantar bem iluminada com luz natural possui a mesma decoração do restante da casa e uma grande quantidade de comida com pratos de diferentes tipos e tamanhos preenchem a superfície da mesa com um perfeito aparelho de jantar. GARCIA acaba de experimentar um dos pratos. GARCIA Você que fez tudo isso? A comida está perfeita. 13 MARIA LUIZA Muito gentil, obrigada. FORTUNATO O assado poderia ter chegado em um ponto melhor, e o molho poderia ter um pouco mais de sal, o restante está OK, algumas coisas ela ainta tá aprendendo, mas eu vou ensinar direitinho, ela chega lá. Mas me diga, Garcia, você gostou do filme? GARCIA Não tanto quanto os anteriores, mas foi um bom divertimento. FORTUNATO Um ótimo divertimento, mas fiquei curioso, como pode ter sido entretenimento para alguém, que, pelo que eu me lembre não tem tanto estômago para sangue? 14 GARCIA Não consigo relacionar nada disso com minha prática profissional, quando eu sei que o sofrimento é real o sinto em outra parte do meu ser, e então sempre espero que meu senso de urgência, minha ânsia por ajudar, meus estudos e agora minha pequena experiência prevaleçam a todo o resto que me congelou como quando nos conhecemos. Para mim o entretenimento aqui é exatamente o horror que sinto, vivenciar sentimentos fortes sabendo que ninguém está realmente sofrendo é o que vale o ingresso. Inclusive, MARIA LUÍZA, FORTUNATO já te contou sobre quando nos conhecemos? FORTUNATO Ah não, não precisamos disso. GARCIA (Vira-se para MARIA LUIZA) Precisamos sim. Um homem apareceu ferido no prédio onde eu vivia, me chamaram para acudi-lo, mas eu estudante na época, na hora congelei. Graças a Deus FORTUNATO estava na região, viu a cena e foi ajudar. Se não fosse por ele uma vida teria sido perdida aquele dia. O rosto de MARIA LUIZA se ilumina em alegria e surpresa, ela vira para FORTUNATO e toca em sua mão com carinho. FORTUNATO 15 sorri para ela com um certo desconforto. FORTUNATO Aquilo provavelmente era bandido doutor, não seria grande perda para o mundo. MARIA LUIZA solta sua mão e olha para baixo descontente. GARCIA De qualquer forma, fiquei impressionado com suas habilidades. Ele voltou no dia seguinte e vi o curativo, estava perfeito. Se eu abrisse uma clínica, com certeza o contrataria como enfermeiro. FORTUNATO abre um grande sorriso. FORTUNATO É isso então, vamos abrir uma clínica. Eu tenho o espaço perfeito no centro. GARCIA Você não pode estar falando sério. FORTUNATO Falo muito sério, todos os casos mais feios, lido eu, você pode ficar só com a parte chata e com os casos chatos, nunca mais vai ter que se preocupar com ter estômago pra prática. Não precisa responder ago... GARCIA (Com a mão esticada para um aperto de mão) Fechado. 16 Os dois apertam as mãos enquanto MARIA LUIZA olha para baixo um tanto confusa e come sua refeição. 10 INT. ESCRITÓRIO DE FORTUNATO - DIA GARCIA e FORTUNATO conversam enquanto apontam para o desenho de uma planta na tela de um notebook no escritório de FORTUNATO. MARIA LUIZA passa para trazer uma garrafa térmica com café e xícaras, GARCIA agradece, ela sorri, FORTUNATO pega a xícara sem notar a presença dela. 11 INT. HOSPITAL - DIA GARCIA e FORTUNATO com capacetes de proteção andam por corredores de paredes brancas e cumprimentam o empreiteiro da obra. FORTUNATO, sozinho, leva o empreiteiro por um corredor, desce escadas e aponta para uma porta fechada. O empreiteiro vê, concorda, e sublinha uma palavra na folha em sua prancheta: LABORATÓRIO AVANÇADO. 12 INT. SALA DE JANTAR - DIA GARCIA e FORTUNATO riem juntos sentados a mesa de jantar, enquanto brindam com champagne com muita comida pela mesa. MARIA LUIZA chega trazendo mais um prato. FORTUNATO olha para ela e aponta para a garrafa quase vazia com um olhar de repreensão e se retira para atender o celular. MARIA LUIZA pega a garrafa, alguns pratos sujos e se dirige para a cozinha. GARCIA segura um de seus braços, lhe entrega uma taça com champagne e faz sinal para brinda com ele. Ela sorri, larga os pratos e olha nos seus olhos enquanto bebe o champagne. GARCIAvai até o piano e se senta. 17 GARCIA Posso? MARIA LUIZA PoR favor, acho que nunca vi isso ser usado. GARCIA começa a tocar The Blower’s Daughter de Damien Rice. Ele não canta, apenas olha para MARIA LUIZA com uma interrogação em sua expressão. MARIA LUIZA assente com a cabeça indicando que conhece a música e dá mais um gole no champagne. GARCIA volta os olhos para o piano enquanto MARIA LUZIA assiste em pé parada ao seu lado. Uma lágrima cai do olho dela, ela rapidamente enxuga. 13 INT. SALA DE ESTAR - DIA Tela escura com os dizeres: 1 ANO DEPOIS GARCIA chega entra na sala de estar e não há ninguém lá, apenas um saco plástico grande no chão no meio da sala. Ele abre. Dentro do saco há o corpo de um pequeno cachorro em estados avançados de decomposição, rapidamente ele fecha o saco e levanta a cabeça. ( Parada na entrada oposta do recinto)MARIA LUIZA Por isso eu te chamei aqui hoje. GARCIA O que significa isso? MARIA LUIZA Eu encontrei no lixo da casa ontem, o cheiro me levou até isso. Desculpa te assustar assim, mas foi a forma que eu achei de fazer alguém acreditar em mim. 18 GARCIA Acreditar no que exatamente? MARIA LUIZA Sobre FORTUNATO, ele se fecha no escritório e no porão e eu ouço coisas. Gritos. De cães, gatos, e outras coisas que eu nem consigo identificar. GARCIA Desde quando acontece isso? MARIA LUIZA Desde de sempre. Antigamente era bem de vez em quando, e parou por um tempo depois que vocês abriram a clínica. Mas agora voltou e está muito mais frequente e o sons estão mais terríveis. GARCIA Seria stress pós traumático talvez? MARIA LUIZA Mas pós traumático de que? GARCIA Da guerra oras, isso é muito comum? MARIA LUIZA Que guerra? Fortunato nunca foi a guerra nenhuma. GARCIA Então como ele conseguiu suas habilidades de enfermeiro? 19 MARIA LUIZA Eu não sei. Eu não sei. Eu tenho medo de perguntar. Mas de qualquer forma, eu não aguento mais. Isso tem de parar. Eu vou enlouquecer. Você é médico, diga que está me fazendo mal, e não é mentira, está mesmo. Por favor Garcia. GARCIA Eu vou falar com ele, a gente vai resolver isso GARCIA põe pega a mão dela enquanto fala. Ela repara no gesto, olha para mão dele segurando a dela, dá um sorriso triste e retira a mão da dele. MARIA LUIZA Obrigada, você tem feito muito bem pro meu marido. Agora... Eu... Preciso fazer alguma coisas da casa, me desculpe. GARCIA Claro, claro, eu preciso ir pra clínica mesmo, a noite volto para falar com Fortunato, na clínica é mais difícil. Bom, nos vemos em breve. Até mais MARIA LUIZA Até. GARCIA fala já se direcionando a porta e saindo. 20 14 INT. HALL DE ENTRADA/ESCRITÓRIO - NOITE GARCIA toca a campainha da casa e ninguém atende. Ele ouve gritos de MARIA LUIZA. Ele tenta a maçaneta. Como está aberta ele entra correndo pelo Hall. Os gritos vêm do escritório, ele corre nessa direção. Encontra MARIA LUIZA chorando com as mãos no rosto na porta do escritório. MARIA LUIZA [gritando] O rato! O rato! Ela corre para a sala de estar e fica de pé na direção oposta olhando para FORTUNATO. Com olhos arregalados ela aponta para a porta do escritório. Ele se direciona até a porta e abre com cuidado. Ele vê FORTUNATO segurando um saco branco de pano grosso. O saco se mexe violentamente. FORTUNATO ri. Ri a mesma risada do cinema de anos atrás. FORTUNATO GARCIA meu amigo! Finalmente peguei esse desgraçado. Ah ha. Com uma das mãos FORTUNATO segura o saco com a outra ele segura uma tesoura. Ele coloca a mão com a tesoura dentro do saco e corta alguma coisa. Suas mãos se movem firmes e seguras. Gritos do animal inundam a casa e divertem mais ainda FORTUNATO. MARIA LUIZA senta-se ao chão com as mãos nos ouvidos. O saco fica manchado de vermelho, assim como a tesoura. GARCIA Mate-o de uma vez. FORTUNATO pareceu não ouvi-lo, em um transe de alegria ele repete o ato com a tesoura. Mais gritos do animal inundam a casa. GARCIA aumenta o tom e o volume de sua voz. 21 GARCIA Fortunato, por favor, você está assustando Maria Luiza. Por Deus homem, você está me assustando. Sem demonstrar outro sentimento que não fosse êxtase, FORTUNATO coloca a tesoura mais uma vez dentro do saco e calmamente a aperta, com mais força dessa vez. Os gritos cessam. O saco fica imóvel e a mancha vermelha aumenta. FORTUNATO fecha o saco com um nó, leva-o até o pequeno lixo do escritório e o joga dentro. Levanta a cabeça e diz olhando nos olhos de GARCIA. FORTUNATO Fracotes. 15 INT. SALA DE ESTAR - NOITE Mãos trêmulas de GARCIA se abrem a sua frente. Mãos trêmulas de MARIA LUIZA tricotam. Mãos firmes de FORTUNATO seguram o cigarro enquanto ele se balança levemente na cadeira de balanço no centro da sala próximo a lareira, única luz do recinto. A esquerda da sala GARCIA de pé percebe o quão trêmulas estão suas mãos. A direita da sala MARIA LUZIA sentada próxima a janela olha apenas para seu tricô. FORTUNATO E o jantar Maria Luiza? Está pronto? MARIA LUIZA Sim, só preciso esquentar. FORTUNATO Vamos comer então, o que acham? GARCIA e MARIA LUIZA fazem sim com a cabeça, os três se levantam em direção a sala de jantar. 22 16 INT. SALA DE JANTAR - NOITE Os três comem em silêncio. MARIA LUIZA tosse alto, para de comer e continua a tossir. FORTUNATO O vinho acabou, pega outra garrafa pra gente Maria Luiza? Talvez te ajude com a tosse. Ela concorda com a cabeça, se levanta e vai até a cozinha tentando conter a tosse. Ela volta com outra garrafa na mão, para na entrada e olha para GARCIA. GARCIA Você não parece bem, o que está sentindo? MARIA LUIZA Eu... Ela cai com a garrafa no chão perdendo os sentidos. Os dois homens se levantam imediatamente para ajudá-la. 17 INT. CLÍNICA - DIA Tela escura: 6 meses depois GARCIA sai de seu escritório, cumprimenta as pessoas na sala de espera, vai até a recepção. A recepcionista JOYCE lhe pergunta JOYCE Alguma notícia de Fortunato doutor? 23 GARCIA Ele acabou de me ligar, pediu desculpas, disse que vai ter que ficar com a esposa a semana toda outra vez. JOYCE Ele falou alguma coisa sobre como ela está? GARCIA Nada bem. Vou tentar passar lá hoje a noite pra ver direito como estão. JOYCE Diga que eu mandei melhoras pra ela. Apesar de tudo MARIA LUIZA tem muita sorte. Se um dia eu ficar tão doente espero ter alguém como FORTUNATO pra cuidar de mim também. Ele não a deixa, dia ou noite. Deve amar muito ela. GARCIA Ama sim. Do jeito dele, mas ama sim. Ok, quantos agendamentos temos pra hoje a tarde? 18 INT. HALL DE ENTRADA/SALA DE ESTAR - NOITE FORTUNATO abre a porta, seu cabela está bagunçado, ele está segurando alguns lençóis dobrados de qualquer forma. 24 FORTUNATO Entre meu amigo, por favor. (ele vira enquanto fala e vai andando para dentro da casa) Ela está na sala, vai fazer bem pra ela conversar com você. FORTUNATO desaparece pelos corredores, GARCIA entra na sala de estar. O ambiente está iluminado pela lareira. No sofá no meio da sala está deitada MARIA LUIZA. Ela não tem mais seus cabelos. Com muitos cobertores, um balde no chão ao seu lado e lenços na mão ela abre o melhor sorriso que consegue ao ver GARCIA. MARIA LUIZA Meu amigo, que bom que veio, sente-se por favor, me perdoe por não levantar. Ela faz o movimento para sentar-se, mas GARCIA a impede, ele se agacha ao lado se sua cabeça. GARCIA Tem algo que eu possa fazer? MARIA LUIZA Sim, você tocaria um pouco pra mim? GARCIA Claro. GARCIA senta-se ao piano, no canto da sala, e toca uma versão de The blower’s daughter de Damien Rice. FADE OUT: FIM INT. SALA - NOITE INT. CENTRO CIRÚRGICO - NOITE INT. SALA DE CINEMA - NOITE INT. QUARTO - NOITE INT. HALL DE ENTRADA - NOITE INT. HALL DE ENTRADA - MANHÃ INT. ENTRADA DO CINEMA - NOITE INT. SALA DE ESTAR DE FORTUNATO - DIA INT. SALA DE JANTAR DE FORTUNATO - DIA INT. ESCRITÓRIO DE FORTUNATO - DIA INT. HOSPITAL - DIA INT. SALA DE JANTAR - DIA INT. SALA DE ESTAR - DIA INT. HALL DE ENTRADA/ESCRITÓRIO- NOITE INT. SALA DE ESTAR - NOITE INT. SALA DE JANTAR - NOITE INT. CLÍNICA - DIA INT. HALL DE ENTRADA/SALA DE ESTAR - NOITE