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Compaixão em uma Cultura Competitiva 7 Zenon Lotufo Jr., PhD. Adaptação de capítulo do livro "The Psychology of Compassion and Cruelty: Understanding the Emotional, Spiritual, and Religious Influences", organizado por Thomas Plante, PhD, Santa Barbara, CA: Praeger, 2015. Em “A Guide for the Perplexed”, pequeno e precioso livro, E. F. Schumacher comenta o slogan da Revolução Francesa; Liberté, Égalité, Fraternité, dizendo que ignorava quem o havia criado mas que devia ser uma pessoa com um insight incomum porque, ao par de opostos Liberté e Egalité, irreconciliáveis pela lógica comum, havia acrescentado um terceiro fator, Fraternité (brotherliness), pertencente a outro e mais alto nível (Schumacher, 1977, p. 124) Qualidades como a fraternidade, a compaixão, a mansidão, o espírito de perdão, que podem ser classificadas como afetivas – ou, como prefere Schumacher, existenciais – exercem um papel de catálise que permite a harmonização de opostos, a combinação de elementos naturalmente incompatíveis entre si, mas que, em muitas circunstâncias, devem coexistir sob pena de se perder algo de essencial. É o caso de liberdade e da igualdade, ambas fundamentais no ideal de vida democrático e, contudo, inconciliáveis sem a intervenção da fraternidade. Na verdade, é difícil imaginar alguma área da atividade humana em que qualidades afetivas não façam toda a diferença, propiciando a conciliação de opostos e a superação de antagonismos, evitando que sejam sacrificados valores importantes. Examinemos algumas dessas polaridades. Liberdade pessoal – Intervenção. Pessoas adultas devem ser obrigadas a usar capacetes quando dirigindo motos, ou cintos de segurança em autos, ou essa é uma opção exclusivamente pessoal e torná-la impositiva beira o fascismo? Temas como esse tem sido objeto de bastante polêmica, provavelmente por boas razões de ambos os lados. De fato, a multiplicação de normas coercitivas ou proibitivas por parte das autoridades constituídas, intervindo em áreas da esfera particular, pode ser uma ameaça à vida democrática; contudo, situações existem em que é discutível se parcela considerável da população dispõe de informações e maturidade mental suficientes para administrar pressões sociais e econômicas que podem induzir a comportamentos danosos ao próprio indivíduo. Trata-se, evidentemente, de questões delicadas, mas a compaixão apresenta a alternativa de empenhar-se em persuadir em vez de tão somente, por um lado, proibir ou obrigar e, por outro, lavar as mãos como que dizendo “Que se dane”. Uma boa pergunta a se fazer diante de casos desse tipo é: Qual seria minha atitude se o/a envolvido/a fosse minha filha ou meu irmão? Justiça distributiva – Justiça por méritos. Uma sociedade deve legislar para que todos os seus membros tenham acesso aos bens necessários a uma vida digna e, mais, para que se sintam dignos de participar dos bens disponíveis, ou, no máximo, proporcionar igualdade de condições para que os mais competentes sejam recompensados por suas realizações. Quanto aos menos capazes, os social e economicamente marginalizados, terão que arcar com as consequências “naturais” de sua incompetência, enquanto os demais lavam as mãos como que dizendo “Que se danem?” Olhando as coisas pela ótica da compaixão, o quadro se mostra diferente. A parábola do Filho pródigo, ou – como alguns, com razão, preferem – do Pai compassivo, ilustra bem o ponto. A partir da consideração de seus méritos, o filho mais velho tem toda a razão de se queixar da atitude do pai, festejando a volta do filho ingrato e perdulário; no entanto, como observa Henri Nouwen, os sentimentos do primogênito seriam outros caso pudesse perceber a situação pelos olhos compassivos do pai, através dos quais a justiça se subordina ao amor (Nouwen, 1992). E eis outro bom exemplo de justiça subordinada à compaixão: Há muito tempo, dois irmãos trabalhavam juntos em sua fazenda. Todas as noites eles dividiam igualmente o produto do trabalho do dia. Um dos irmãos era solteiro e morava sozinho, enquanto o outro era casado e tinha muitos filhos. Um dia, o primeiro irmão disse a si mesmo: "Não é justo dividirmos os grãos igualmente. Eu só tenho que cuidar de mim, mas meu irmão tem filhos para alimentar". Assim, todas as noites, secretamente, ele levava uma parte de seu grão para o celeiro de seu irmão. Enquanto isso, o irmão casado um dia pensou o seguinte: "Tenho muitos filhos para me sustentar na velhice enquanto meu irmão não terá ninguém para sustentá-lo quando envelhecer. Não é justo dividir nosso grão como fazemos". Então, secretamente, todas as noites ele levava para o celeiro de seu irmão uma porção de seu grão. Assim, todas as manhãs eles encontravam seu celeiro misteriosamente reabastecido. E assim continuaram até que uma noite eles se encontraram no caminho e entenderam o que estava acontecendo, abraçando-se. Reza a história que Deus a tudo acompanhou e proclamou: "Este é um lugar santo, um lugar de amor, e aqui será construído o meu templo". Isso foi feito e o lugar santo, onde Deus se manifestou, é onde os humanos se descobrem em amor.[endnoteRef:1] [1: A história é contada, entre outros, por Ernest Kurtz and Katherine Ketchan. (Kurtz, 1992)] Compaixão e empatia. Ambas se completam, são necessárias uma à outra. Compaixão sem empatia esgota-se no próprio indivíduo e em nada beneficia seus supostos alvos. Temos um exemplo na mulher de Pilatos que aparentemente demonstra preocupação pela sorte de Jesus, mas se contenta com o lavar de mãos do marido, o que revela estar ela preocupada apenas com o seu próprio sentimento, ou seja, apenas consigo mesma. Dostoievski pinta em cores nítidas o retrato de alguém cujo “amor pela humanidade”, dirigido a uma abstração, parece apenas uma estratégia para evitar culpa ou camuflar o desprezo pelas pessoas reais: 'Eu amo a humanidade', disse ele, 'mas admiro-me de mim mesmo. Quanto mais amo a humanidade em geral, menos amo o homem em particular. Em meus sonhos', disse ele, 'muitas vezes cheguei a fazer esquemas entusiásticos a serviço da humanidade, e talvez eu pudesse realmente ter enfrentado a crucificação se de repente fosse necessário; e, no entanto, sou incapaz de viver no mesmo quarto com alguém por dois dias juntos, como sei por experiência. Assim que alguém está perto de mim, sua personalidade perturba minha autocomplacência e restringe minha liberdade. Em vinte e quatro horas, começo a odiar o melhor dos homens: um porque demora demais no jantar; outro porque está resfriado e continua assoando o nariz. Torno-me hostil às pessoas no momento em que elas se aproximam de mim. Mas sempre aconteceu que quanto mais detesto os homens individualmente, mais ardente se torna meu amor pela humanidade. (Dostoievski, “Os Irmãos Karmazov”, 1952/1880, p. 27) Empatia, em poucas palavras, é a capacidade de se colocar na pele de outra pessoa, sentindo o que ela sente. Ressalvemos que não é nossa intenção, aqui, discutir o significado de empatia, sujeito, como é, a bastante controvérsia[endnoteRef:2]. Talvez seja mais apropriado falar de uma empatia seletiva ou compartimentada, que permite aos neurônios espelho[endnoteRef:3] do indivíduo refletir algumas emoções do outro, mas não as que o levariam a sentir esse outro como próximo. O ponto que interessa salientar é que é possível um conhecimento mais ou menos preciso da mente e dos sentimentos de outra pessoa, conhecimento esse que, sem a companhia da compaixão, pode representar instrumento de manipulação e, mesmo, destruição. Esse é um resultado que Tzvetan Todorov põe em relevo ao comentar o conhecimento que Cortez tinha da mente asteca – instrumentado, ao que tudo indica, pela empatia sem compaixão – e como o usou para subjugar um povo. Todorov compara a atitude que dois personagens importantes na colonização, Cortés e frei Bartolomé de Las Casas, tinham para com os índios: Las Casas conhece os índios menos que Cortés, e os ama mais (...) Conhecimento não implica amor, nem o inverso; e nenhum dos dois implica, nem é implicado pela identificação como outro. (Todorov, “A Conquista da América”, 1984 pp. 185-186) [2: Ver, p. ex. Solomon, 2008] [3: Neurônios espelho são encontrados em várias áreas do cérebro humano e de outros animais e teriam por função captar sentimentos de outrem, não de forma intelectual, mas sentindo o que esse outro está sentindo. Uma boa matéria a respeito pode ser lida em Blakeslee, 2006.] Qualidades afetivas em baixa no mercado Em um mundo obcecado por levar a melhor em comparações e vencer em atividades competitivas não é de estranhar o desprezo por qualidades como a compaixão, a empatia, a solidariedade, a mansidão. Alfie Kohn observa que a competição é a obsessão 'número um': a vida para nós se tornou uma sucessão interminável de competições. A partir do momento em que o despertador toca até o sono nos alcançar novamente, desde o momento em que somos crianças até o dia em que morremos, estamos ocupados lutando para superar os outros. Esta é a nossa postura no trabalho e na escola, no campo de jogo e em casa. É o denominador comum da vida americana. (Kohn, “No Contest. The case against competition”. 1986, p.1) Características relacionadas à agressividade sempre foram necessárias aos seres humanos, seja para defesa do próprio grupo, seja para alcançar privilégios entre seus pares. Paralelamente, características ligadas à cooperação e ao cuidado também precisaram se desenvolver tendo em vista sua utilidade para o cuidado da família e para que objetivos comunitários fossem alcançados. Sob esse prisma, o debate sobre as “tendências naturais” do homem, deixa de ter sentido: coexistem na biologia de nossa espécie impulsos tanto para agressão quanto para a convivência pacífica; tanto para a competição hostil quanto para a cooperação; tanto para a crueldade quanto para a compaixão, tanto para o amor quanto para ao ódio. Seja no que se refere aos indivíduos, seja às coletividades, o desafio de sempre é saber administrar esse conflito, tarefa que se torna complicada porque, além das tendências inatas, sofremos influência de fatores culturais que favorecem aspectos socialmente indesejáveis de nossas personalidades, ao mesmo tempo em que solapam aqueles desejáveis. É mais do que evidente que “desejáveis” e “indesejáveis”, neste contexto, são conceitos relativos, que se prendem a uma específica visão do mundo e dos valores, quer dizer, uma visão que prioriza a paz, a convivência harmônica e fraterna como a que se espelha no “sonho” de Martin Luther King. É bastante compreensível que valorizemos qualidades que permitiram a nossos antepassados sobreviver em ambientes hostis. Fracassar naquelas situações significava a morte e é fato que aqui e ali subsistem ambientes em que a vida dos menos aptos é posta em perigo. No entanto, à medida que avança a civilização, os riscos maiores que corremos têm a ver mais com a personalidade, com a autoestima, do que com a integridade física ou, como escreveu há algum tempo o psiquiatra George H. Preston: (Preston, 1943, pp. 5-6) O próprio homem é a principal ameaça para a saúde mental do homem. Não são as vicissitudes comuns da vida, mas as complicações queo homem acrescentou a elas que causam problemas. Poderíamos lidar com sexo ou com medo do fracasso ou com a competição sem perigo para a nossa saúde mental, exceto pelo fato de que o homem adicionou costumes, significados e consequências ameaçadoras a esses problemas normais da vida. Comecemos com a competição. O simples competir por comida, por carinho ou por oportunidade reprodutiva é comum a todos os animais, incluindo o homem; mas o homem, particularmente o homem civilizado no mundo ocidental, acrescentou algo novo. Ao fracasso na competição, acrescenta-se a vergonha. Essa é uma soma exclusivamente humana. Se fracassamos, não morremos simplesmente de fome ou frio. As pessoas podem dar-nos roupa e alimento mas, se não podemos conseguir o de que necessitamos por nossos próprios meios, somos desprezados e classificados como inferiores. Não apenas fracassamos como também adquirimos um rótulo ofensivo. (Preston, “The Substance of Mental Health”, 1943, pp. 5-6) Por que competimos? O medo de ser vistos como perdedores assombra, de fato, a todos nós. Contudo, esse temor, por si só, não explica o fato de o impulso para competir continuar intenso mesmo quando estamos bastante seguros, por nossas posses e/ou nosos feitos, de ser vistos como vencedores. Em parte, essa tendência pode ser atribuída à nossa natureza biológica, em parte temos que buscá-la em questões de autoestima. Esta é um fator básico na explicação do comportamento humano e, antes de mais nada, é preciso evitar confundi-la, como frequentmente tem acontecido tanto em publicações populares quanto acadêmicas, com algo que seria mais propriamente denominado narcisismo, ou seja, com opinião exagerada e irreal a respeito de si mesmo e das próprias qualidades. Uma autoestima saudável tem como coluna mestra a aceitação de si mesmo. Que significa isso de aceitação? Traduzindo o conceito em um sistema de crenças sobre si mesmo, teríamos algo como o seguinte: Não preciso ser nem um pouco diferente do que sou neste exato momento; há coisas em mim que quero mudar, mas essas mudanças jamais ocorrerão através de autocríticas que me rebaixam e geram frustração e desânimo. Não preciso me comparar a ninguém; não preciso me considerar superior nem inferior a ninguém. Sugerimos que um fator decisivo ligando a autoestima à competitividade decorre da confusão que fazemos de duas dimensões componentes da autoimagem. Desde os primeiros momentos da vida de uma pessoa ela tem sensações agradáveis ou desagradávis que dependem, em grande medida da forma como é tratada por seus cuidadores. À medida que cresce, essas sensações vão se transformando em crenças a respeito de si mesma, dos outros, e do mundo em geral. Provavelmente a primeira e mais importante crença a se arraigar na mente infantil é a que responde à pergunta[endnoteRef:4]: Am I lovable, or am I worthless?, ou, em outras palavras, A maioria das pessoas vai me amar simplesmente pelo que eu sou, ou nunca serei amado por ser quem sou? Pensando nas respostas como situadas em pontos de um contínuo, dificilmente encontraremos pessoas em um dos extremos; em geral estamos mais para um lado ou para o outro e há uma tendência para que, com pequenas variações no decurso da vida, as posições sejam estáveis, o que não significa que sejam imutáveis. A boa notícia é que, até onde sabemos, quando há mudança substancial, ela se dá na direção positiva como pode acontecer em uma psicoterapia bem sucedida ou em uma profunda experiência espiritual. Esta é uma das dimensões que mencionamos; vejamos a outra: [4: Não é preciso dizer que estamos nos referindo a um processo intuitivo e que falar em “pergunta” nesse contexto é apenas uma metáfora.”] Á medida que a criança cresce e – como costuma acontecer com praticamente todos nós – toma consciência de que o amor que lhe dedicam varia em função do seu comportamento, passa a tentar se comportar de forma a coresponder ao que acredita que esperam dela. Há também as hipóteses piores de que cada um dos pais ou de outros cuidadores transmitam condições diferentes e conflitantes, conflitos que também podem surgir com relação aos outros ambientes humanos de que, com o correr do tempo, a criança participe, circunstâncias em que será difícil evitar o surgimento de transtornos emocionais. É provável, então, que se estabeleça adaptação submissa às influências circunstancialmente mais fortes e adaptação rebelde frente às demais. Seja como for, o aspecto marcante é que a pessoa em desenvolvimento sentirá que seu valor é determinado não pelo que ela é, mas por seu desempenho em comparação com outros indivíduos, ou seja, por como se sai em competições. Em um livro publicado há algumas décadas e que obteve, injustamente, relativamente pouca atenção, o psicólogo Inglês Peter Fletcher expõe com clareza a questão: Às vezes em tantas palavras, às vezes em ações que falavam mais alto do que palavras, lhe diziam com toda a autoridadedo poder e sabedoria de seus anciãos que você deveria respeitar a si mesmo, nem pelo que você era – um ser humano sensível, consciente e em crescimento. – mas pelo que você poderia fazer: isto é, pela sua capacidade de competir com sucesso com os outros em várias formas de ação utilitária. Deixe-me enfatizar isso. Tudo o que foi dito ou feito durante sua infância para convencê-lo de que você era uma pessoa melhor, mais amável, preciosa ou desejável quando você teve sucesso do que quando você falhou, estava doutrinando você com a ideia essencialmente totalitária de que seu valor pessoal dependia de sua “força”. , usando essa palavra em seu sentido mais amplo para significar qualquer tipo de habilidade intelectual, bem como energia e habilidade que possam ajudar a aumentar a eficiência na manipulação e, com ela, a segurança física. (…) Se concordamos com a doutrina de que o valor de um ser humano pode ser determinado pela estimativa de quão bem equipado ele está com essas habilidades e poderes, estamos negando sua realidade pessoal e definindo-o como nada mais do que uma engrenagem na máquina social ou econômica. .(Fletcher, “O Medo e os Conflitos Emocionais no Mundo Moderno”, 1972, pp. 21-22) Como consequência, a pessoa tenderá a ver o mundo humano em termos de relações de poder, um mundo em que imperam comparações e competição. Inevitavelmente, nesse clima, valorizará todos os recursos pessoais que lhe permitam sair-se vitorioso nesse meio, ao passo que verá como indesejáveis as características que o tornam vulnerável, sem se dar conta de que costumam ser, exatamente, as que mais contribuem para um relacionamento frutífero com os demais e para uma vida digna de ser vivida. Crenças culturais Evidentemente, não é só o que nos dizem quando crianças que afeta nossa autoestima e nosso modo de pensar. Vivemos imersos em uma cultura cujas crenças nos atingem através meios de comunicação variados e de âmbito global. Diversos autores têm alertado quanto ao problema de que as crenças mais influentes nessa cultura global têm suas raízes em fatores econômicos e que os resultados dessa influência são bastante negativos para o bem estar de sociedades e pessoas. Uma dessas crenças é que a competição, sobretudo no que se refere à economia, é necessária, inevitável e benéfica. Veja, por exemplo, o que escreve Wolfgang Kasper, professor emérito de Economia na University of New South Wales, Australia : “O senador Henry Clay estava certo quando disse ao Senado dos EUA em 1832: ‘De todos os poderes humanos que operam nos assuntos da humanidade, nenhum é maior do que o da competição’". (Kasper, "Competition" in The Concise Encyclopedia of Economics”. 2008) Até certo ponto, ideias desse tipo – e seu reflexo na autoestima e na competição – encontram respaldo em crenças religiosas, como é o caso do calvinismo conservador e predeterminista ao associar a salvação da alma a uma escolha fortuita de Deus e da qual é possível ter certeza observando o resultado em atividades competitivas neste mundo; o êxito nos negócios indicaria quem são os eleitos. Consequentemente, os pobres e mal sucedidos, além de sofrerem nesta vida, estariam certamente condenados ao inferno na outra. Mais ainda, como nota Alain de Botton, essa idologia “religiosa”, que encontra seus representantes atuais nos teólogos da prosperidade, defende uma meritocracia em que se veria justiça tanto na distribuição da riqueza quanto da pobreza, (Botton, “Status Anxiety”, 2004, p. 67. Ênfases no original) e A ideia de que o sucesso ou o fracasso estão ligados a uma espécie de lei cósmica que premia ou castiga quem fizer por merecer uma ou outra sorte tem tanto impacto na cultura contemporânea que em torno dela surgiu um interessante veio de estudos em psicologia social sob os títulos justice motive, just world theory e o associado system-justifying ideologies (Lerner & Lerner, 1981; Ross & Miller, 2002; Andre & Velasquez, 1990; Jost & Hunyady, 2005). Crenças culturais desse tipo estão em grande medida a serviço de ideologias incompatíveis com a compaixão, a empatia e outros sentimentos que, por sua vez, são incompatíveis com a competição já que, entre outras consequências, sem ela consumiremos menos. Na realidade, é muito mais ampla e profunda a incompatibilidade entre sitemas sociais, políticos e econômicos que – valendo-nos da expressão de Martin Buber – vêem as pessoas como um “it” a quem dominar e explorar. Dessa forma, como procura mostrar, por exemplo, Gary Olson em seu Empathy Imperiled – Capitalism, Culture, and the Brain (Olson, 2013), uma vez que esses sistemas não poderiam florescer em uma cultura em que abundassem empatia e compaixão, seus beneficiários, conscientemente ou não, se empenham em desmerecer tais sentimentos ou em utilizá-los para seus próprios objetivos. Nesse sentido, é instrutivo analisar o modo como a publicidade, sobretudo de TV, tenta associar empatia, amizade e amor familial a aatividades cuja obsessão pelo lucro leva a desrespeitar, sempre que possível, os direitos dos cidadãos e os cuidados com o meio ambiente. Para restaurar o valor da compaixão. Bom número de publicações mais ou menos recentes procura estabelecer uma base científica ou, mais particularmente, biológica, como critério para o comportamento individual e a para a vida social. A motivação mais frequente desses textos é refutar conceitos bastante difundidos pelos que defendem o que o filósofo francês Roger Garaudy chamou certa vez de monoteísmo de mercado – para ele a religião que mais cresce no mundo – conceitos, como, por exemplo, de que a natureza humana é essencialmente agressiva e competitiva e que, ausente a perspectiva de obter lucro à custa dos demais, não haveria motivação para empreender e criar riquezas. A refutação se faz recorrendo à pesquisa científica, procurando mostrar, entre outros argumentos, que primatas não humanos, além de outros mamíferos, são capazes de compaixão, de empatia e de kindness, ou que sentimentos como esses são produto da evolução de nossa espécie e estão hard wired em nossos cérebros. Há abundância de livros e papers que tratam desses temas e não é difícil localizá-los. Esses esforços são importantes e bem vindos; são, contudo, a nosso ver, insuficientes na medida em que, de uma forma geral, se prendem a crenças culturais no mínimo discutíveis. Tentar resumir a questão em pouco espaço é um risco que, de qualquer forma, vale a pena correr. Tentemos. Crença 1. Demonstrar que algo integra a “natureza humana” constitui base para argumentos morais. A discussão sobre uma natureza humana tem uma história longa da qual dois pontos altos da antiguidade merecem ser citados: diante do relativismo moral dos sofistas, Sócrates recorre á noção de areté, comumente traduzida como virtude , mas que, no contexto do discurso socrático, teria a ver sobretudo com o conhecimento da natureza de um ser, conhecimento esse necessário para poder determinar seu funcionamento ótimo e, portanto, estabelecer o que, para esse ser, estaria certo ou errado. O mundo das ideias platônico também tem a ver com isso ao propor a existência de um ideal para cada ser com relação à qual seu comportamento pode ser avaliado.[endnoteRef:5] A questão de uma natureza humana também será discutida por St. Augustine – o teólogo que, depois de S. Paulo, maior influência teve sobre o mundo cristão. Para ele, a natureza humana era inicialmente boa, mas teria sido totalmente corrompida pelo pecado original, fato que justificaria punições como a escravidão e a condenação às penas eternas.[endnoteRef:6] O fato é que, a discussão sobre o que consistiria essa natureza humana sempre esteve presente no desenrolar do pensamento filosófico havendo sido, em tempos pósmodernos, fortemente influenciada por áreas de pesquisa como a primatologia e as neurociências. O resultado, resumindo muito a questão, tem sido uma imagem do ser humano caracterizada pelo determinismo biológico e/ou social. Então, seja para defender características “boas” ou socialmente desejáveis do comportamento humano,seja para demonstrar seu lado sombrio, não sobra espaço para nenhuma forma do que pode ser apropriadamente chamado de livre-arbítrio. Se somos maus, é porque nossa natureza tende para o mal; se somos bons, é porque é a inclinação para o bem faz parte da natureza humana. Analisar esse debate e suas consequências nos levaria muito além do âmbito deste capítulo, mas vale a pena mencionar uma pequena história que chegou até nós através de Cícero[endnoteRef:7]: certa ocasião apareceu em Atenas um sírio de nome Zópiron, que, na qualidade de fisionomista, vangloriava-se de poder descrever o caráter moral de qualquer pessoa apenas observando seu aspecto físico. Aparentemente, estava alcançando bastante sucesso quando resolveram solicitar-lhe que fizesse o diagnóstico de Sócrates. Quem já viu uma imagem do filósofo ou leu sobre sua aparência sabe que esta não era das mais agradáveis: olhos saltados, lábios grossos, barriga avantajada, levando o estrangeiro a atribuir-lhe características como pouca inteligência, raciocínio lento e obsessão por mulheres, ou seja, bem o contrário do que seu comportamento demonstrava. Diante do riso dos presentes, tomou Sócrates a defesa de Zópiron afirmando que ele estava correto em seu diagnóstico; de fato, ele, Sócrates, tinha todas essas tendências, mas ele as superava através da razão, do autoconhecimento e da educação. [5: Ver a respeito W. K. C. Guthrie (Guthrie, 1950, Filósofos Gregos”, 1971, “Sócrates”)] [6: Sobre as ideias de St. Augustine, ver Elaine Pagels (Pagels, “Adão, Eva e a Serpente”, 1989). Os maus-tratos sofridos quando criança por Augustine e sua influência na teologia do bispo de Hipona são discutidos por Lotufo Jr. em (Lotufo Jr., Teologia e Plenitude Humana, 2022).] [7: O episódio é relatado por Cícero em “Tratado do Destino” 5.10 e em Tusculanas 4.37.80. ] Desde a aurora do pensamento filosófico, os sábios se deram conta de que precisavam administrar tendências que conflitam em suas almas. Alguns tiveram mais êxito, outros menos, mas sempre evitaram atribuir seus fracassos a forças alheias a seu controle, bem como censuraram quem os fazia, tal como Shakespeare, pelos lábios de Edmund: Esta é a excelente falsidade do mundo, que, quando estamos mal de fortuna - muitas vezes o resultado do nosso próprio comportamento - culpamos por nossos desastres o sol, a lua e as estrelas: como se fôssemos vilões por necessidade; tolos por compulsão celestial; patifes, ladrões e traidores, por predominância esférica; bêbados, mentirosos e adúlteros, por uma obediência forçada da influência planetária; e tudo em que somos maus, por um impulso divino: uma admirável evasão do homem desavergonhado, para colocar sob a responsabilidade de uma estrela suas disposições caprinas![endnoteRef:8] [8: King Lear, Act 1,Scene 2.] Um ponto interessante a considerar é que, nessa discussão sobre determinismo e livre-arbítrio, estamos diante de dois pressupostos diferentes sobre a natureza humana. Tratando-se, inevitavelmente, de pressupostos, nenhuma das posições é, nem poderia ser, resultado de pesquisa científica. A consequência de ignorar esse fato gera sofismas grotescos como o que podemos ler em um dos livros de Burrhus Skinner: A hipótese de que o homem não é livre é essencial para a aplicação do método científico ao estudo do comportamento humano. (Skinner, “Science and Human Behavior”, 1953, p. 447) A concepção do indivíduo que emerge de uma análise científica é desagradável para a maioria daqueles que foram fortemente afetados pelas filosofias democráticas. (Idem, p. 469. Ênfase adicionada) Pressupostos são onipresentes e inevitáveis; esquecer ou camuflar sua presença esvazia qualquer argumentação, coisa que sucede com frequência no discurso das ciências humanas, mas que, com igual frequência, passa despercebido por parte de argumentadores, leitores e ouvintes. Para evidenciar o fato de que uma argumentação tem por base pressupostos ou crenças, vale a pena fazer uso de uma pergunta inspirada no critério de cientificidade proposto por Karl Popper: “O que precisaria ocorrer para que você mude sua posição?” Vamos aplicá-la à controvérsia sobre determinismo ou livre-arbítrio; é possível imaginar alguma ocorrência que mude o ponto de vista de uns ou de outros contendores? Nossas mentes têm grande dificuldade para conviver com incertezas; algumas dessa incertezas podem ser resolvidas, outras dissolvidas; mas ainda outras existem com as quais precisamos conviver e que só podem ser superadas, se for necessário superá-las, apelando-se para outro nível: o de suas consequências. Diante de incertezas, o caminho mais comum é também o mais lamentável: a fixação em um ponto de vista, em uma visão do mundo, a partir da qual tudo o mais será interpretado e julgado. O processo pode ser comparado ao imprinting estudado pelos etólogos; uma impressão é feita no cérebro de um animal jovem que se abre a ela durante um curto período, fechando-se logo em seguida. Konrad Lorenz tornou famosa sua experiência com gansinhos que, logo após o nascimento, seguem o primeiro objeto que se move à sua frente. A partir do momento em que se dá o imprinting intelectual pela adesão a uma ideologia política, a um credo religioso ou cientificista, a uma determinada visão do mundo, quase todo o processo a que chamamos de pensamento passa a ser filtrado pelas lentes instaladas naquele momento. Talvez, diferente do que ocorre com gansinhos, o processo de consolidação do processo seja um pouco demorado, o que pode dar a impressão de que tudo foi precedido por cuidadosa reflexão. O resultado, contudo, é sempre o mesmo: uma cabeça que se fecha à busca, á curiosidade, aos muitos mistérios do mundo em que vivemos. É triste verificar que o fechamento, produzindo uma espécie de lobotomia não invasiva[endnoteRef:9], frequentemente torna o indivíduo tanto presunçoso quanto insensível aos sentimentos de que temos falado: empatia, compaixão, solidariedade. [9: Lotufo Jr. and Lotufo Neto address this process of non invasive lobotomy in Lotufo Jr. , 2010.] Crença 2. A “salvação” está no avanço e na aplicação do conhecimento científico. O questionamento dessa crença faz logo pensar em obscurantismo e atraso; note-se, contudo, que não estamos pondo em dúvida o valor do conhecimento científico, mas apenas a ideia de que ele, por si só, trará a solução para os graves problemas que a humanidade enfrenta. O que nem sempre se percebe é que essa crença faz parte de uma visão do mundo que dispensa os sentimentos e a ação neles baseada. Empatia, amor, compaixão e generosidade podem ser pesquisadas, analisadas e dissecadas; seu papel no comportamento humano pode ser posto em relevo; textos acadêmicos podem jorrar daí em profusão; mas, perguntemo-nos: quanto disso tudo resulta em mudanças no mundo real, no mundo em que as pessoas comuns sofrem os efeitos dos males que são diagnosticados mas para os quais não têm remédios à disposição? William James observou certa vez que os fisiologistas chamavam de “dinamogénico” o estímulo que aumenta as contracções musculares dos homens a quem é aplicado, e acrescentou: mas os apelos podem ser dinamogénicos tanto moral como muscularmente. (James, “The Energies of Man, in Essays on Faith and Morals”, 1962/1907) Ideias precisam gerar força, produzir movimento, transformação. Até que ponto o conhecimento “frio” pode fazê-lo? Talvez o recurso a uma passagem de Karl Jaspers ajude a esclarecer o ponto: em seu livro La Fe Filosófica [endnoteRef:10] (Jaspers, 1953) o filósofo alemão compara as atitude de Galileu e Giordano Bruno frente ao tribunal da Inquisição: Galileu defendia uma verdade demonstrável; tratava-se apenas de usar um telescópio para verificar o que era afirmado. A verdade, em casos como esses, não depende de quem a sustenta; não faz sentido querer morrer por uma exatidão suscetível de ser demonstrada (p.11). No entanto, quando uma ideia só tem a sustentá-la o testemunho pessoal, retratar-se dela pode ser sentido como uma traição à própria consciência, como expressa MartinLuther diante da Diet of Worms e da ameaça a sua vida:. Não posso e não vou retratar nada, pois ir contra a consciência não é certo nem seguro [endnoteRef:11] [10: The content of this book is the manuscript that served as basis for conferences pronounced by Jaspers at the University of Basel in July 1947. We could not find any other edition besides this one published in Argentina.] [11: Quoted by Roland Bainton in “Here I Stand – A Life of Martin Luther” (Bainton, 1963, p. 144)] É evidente que o fato de alguém estar disposto a morrer por uma ideia não garante a veracidade dela, mas também é fato que há ideias não só verdadeiras como também tão importantes que valem, ao menos, algum incômodo. Que a compaixão é essencial é uma delas: incomodemo-nos. Notas