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<p>LUIZ PEREIRA e MARIALICE M. FORACCHI BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA Série - Ciências Sociais Volume 16 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE (Leituras de sociologia da educação) edição DEDALUS - Acervo - FE 20500005269 COMPANHIA EDITORA / FEUSP 39253</p><p>A EDUCAÇÃO COMO PROCESSO SOCIAL 35 2 Mas em que consiste essa influência toda especial? Res- postas muito diversas têm sido dadas a essa pergunta. Todas, no entanto, podem reduzir-se a dois tipos principais. A EDUCAÇÃO COMO PROCESSO SOCIALIZADOR: Segundo KANT, "o fim da educação é desenvolver, em cada FUNÇÃO HOMOGENEIZADORA E FUNÇÃO indivíduo, toda a perfeição de que ele seja capaz". Mas, que DIFERENCIADORA se deve entender pelo termo perfeição? Perfeição, ouve-se dizer muitas vezes, é o desenvolvimento harmônico de todas as fa- DURKHEIM culdades humanas. Levar ao mais alto grau possível todos os poderes que estão em nós, realizá-los tão completamente como possível, sem que uns prejudiquem os outros não será, com efeito, o ideal supremo? Vejamos, porém, se isso é possível. Se, até certo ponto, As definições da educação: exame crítico desenvolvimento harmônico é necessário e desejável, não é menos verdade que ele não é integralmente realizável; porque essa harmonia teórica se acha em contradição com outra regra A PALAVRA educação tem sido muitas vezes empregada em da conduta humana, menos imperiosa: aquela que nos obriga sentido demasiadamente amplo, para designar o conjunto de a nos dedicarmos a uma tarefa, restrita e especializada. Não influências que, sobre a nossa inteligência ou sobre a nossa podemos, nem nos devemos dedicar, todos, ao mesmo gênero vontade, exercem os outros homens, ou, em seu conjunto, rea- liza a natureza. Ela compreende, diz Stuart MILL, "tudo aquilo de vida; temos, segundo nossas aptidões, diferentes funções que fazemos por nós mesmos, e tudo aquilo que os outros a preencher, e será preciso que nos coloquemos em harmonia intentam fazer com o fim de aproximar-nos da perfeição de com o trabalho que nos incumbe. Nem todos somos feitos nossa natureza. Em sua mais larga acepção, compreende para refletir; e será preciso que haja sempre homens de sen- mesmo os efeitos indiretos, produzidos sobre caráter e sobre sibilidade e homens de ação. Inversamente, ha necessidade as faculdades do homem, por coisas e instituições cujo fim de homens que tenham, como ideal de vida, exercício e a próprio é inteiramente outro: pelas leis, formas de governo, cultura do pensamento. Ora, pensamento não pode ser pelas artes industriais, ou ainda, por fatos físicos independen- desenvolvido senão isolado do movimento, senão quando tes da vontade do homem, tais como clima, solo, a posição indivíduo se curve sobre si mesmo, desviando-se da ação geográfica". Essa definição engloba como se vê, fatos intei- rior. Daí uma primeira diferenciação, que não ocorre sem ramente diversos, que não devem estar reunidos num mesmo ruptura de equilíbrio. E a ação, por sua vez, como pensa- mento, é de tomar uma multidão de formas diversas vocábulo, sem perigo de confusão. A influência das coisas sobre os homens é diversa, já pelos processos, já pelos resul- e especializadas. Tal especialização não exclui, sem dúvida, tados, daquela que provém dos próprios homens; e a ação certo fundo comum, e, por conseguinte, certo balanço de fun- dos membros de uma mesma geração, uns sobre outros, difere ções tanto orgânicas como psíquicas sem o qual a saúde do da que os adultos exercem sobre as crianças e adolescentes. indivíduo seria comprometida, comprometendo, ao mesmo tem- É unicamente esta última que aqui nos interessa e, por con- po, a coesão social. Mas não padece dúvida também que a é para ela que convém reservar o nome de harmonia perfeita possa ser apresentada como fim último da educação. conduta e da educação. Menos satisfatória, ainda, é a definição utilitária, segundo (*) Emile DURKHEIM, Educação e sociologia, trad. Lourenço Filho, Edições a qual a educação teria por objeto "fazer do indivíduo um São Paulo, 4.8 ed., 1955, pp. 25-36. instrumento de felicidade, para si mesmo e para os seus seme-</p><p>A EDUCAÇÃO COMO PROCESSO SOCIAL 37 36 EDUCAÇÃO E cença, toma caráter mais leigo, mais literário; nos dias de lhantes" (James MILL); porque a felicidade é coisa essen- hoje a ciência tende a ocupar o lugar que a arte outrora cialmente subjetiva, que cada um aprecia a seu modo. Tal preenchia. fórmula deixa, portanto, indeterminado fim da educação, e por a própria educação, que fica entregue ao que isso não representa o ideal, ou que, se a arbítrio individual. É certo que SPENCER ensaiou definir obje- educação tem variado, tem sido pelo desconhecimento do que tivamente a felicidade. Para ele, as condições da felicidade deveria ser. argumento é insubsistente. são as da vida. A felicidade completa é a vida completa. Se a educação romana tivesse tido o caráter de indivi- Que será necessário entender pela expressão "vida"? Se dualismo comparável ao nosso, a cidade romana não se teria se trata unicamente da vida física, compreende-se. Pode-se podido manter; a civilização latina não teria podido consti- dizer que, sem isso, a felicidade seria impossível; ela implica, tuir-se nem, a civilização moderna, que com efeito, certo equilíbrio entre organismo e meio, e, dela deriva, em grande parte. As sociedades cristãs da Idade uma vez que esses dois termos são dados definível Média não teriam podido viver se tivessem dado ao livre deve ser também a relação. Mas isso não acontece senão em exame o papel de que ele hoje Importa, pois, para relação às necessidades vitais imediatas. Para o homem, e, esclarecimento do problema, atender a necessidades inelutá- em especial, para o homem de hoje, essa vida não é a vida veis, de que é impossível fazer abstração. De que serviria completa. Pedimos-lhe alguma coisa mais que o funcionamento imaginar uma educação que levasse à morte a sociedade que normal de nosso organismo. Um cultivado preferirá a praticasse? não viver a renunciar aos prazeres da inteligência. Mesmo do postulado tão contestável de uma educação ideal con- ponto de vista material, tudo o que for além do estritamente duz a erro ainda mais grave. Se se começa por indagar qual necessário escapa a toda e qualquer determinação. padrão deva ser a educação ideal, abstração feita das condições de de vida mínimo, abaixo do qual não consentiríamos em descer, tempo e de lugar, é porque se admite, implicitamente, que varia infinitamente, segundo as condições, o meio e o tempo. os sistemas educativos nada têm de real em si mesmos. Não o que, ontem, achávamos suficiente, hoje nos parece abaixo se vê neles um conjunto de atividades e de instituições, len- da dignidade humana; e tudo faz crer que nossas exigências tamente organizadas no tempo, solidárias com todas as outras serão sempre crescentes. instituições sociais, que a educação exprime ou reflete, insti- Tocamos aqui no ponto fraco em que incorrem as defi- tuições essas que, por não podem ser mudadas nições apontadas. Elas partem do postulado de que há uma à vontade, mas só com a estrutura mesma da sociedade. educação ideal, perfeita, apropriada a todos os homens, indis- Pode parecer que isso seja simples jogo de conceitos, uma tintamente; é essa educação universal a única que teorista construção lógica, apenas. Imagina-se que os homens de cada se esforça por definir. Mas, se antes de o fazer, ele conside- rasse a história, não encontraria nada em que apoiasse tal tempo organizam a sociedade voluntariamente, para realizar fins determinados; que, se essa organização não é, por toda hipótese. educação tem variado infinitamente, com o tempo e meio. Nas cidades gregas e latinas, a educação conduzia parte, a mesma, os povos se têm enganado, seja quanto à o indivíduo a subordinar-se à coletividade, a tor- natureza dos fins que convém atingir, seja em relação aos nar-se uma coisa da sociedade. Hoje, esforça-se fazer dele meios com que tenham tentado realizar esses objetivos. E, personalidade Em Atenas, procurava-se formar desse ponto de vista, os sistemas educativos do passado apa- espíritos delicados, prudentes, sutis, embebidos da graça e recem como outros tantos erros, totais ou parciais. Não devem, harmonia, capazes de gozar o belo e os prazeres da pura pois, entrar em consideração; não temos de ser solidários especulação; em Roma, desejava-se especialmente que as crian- com os erros de observação ou de lógica cometidos por nossos ças se tornassem homens de ação, apaixonados pela glória antepassados; mas podemos e devemos encarar a questão, militar, indiferentes no que tocasse às letras e às artes. Na sem nos ocupar das soluções que lhe têm sido dadas; isto Idade Média, a educação era cristã, antes de tudo; na Renas- é, deixando de lado tudo que tem sido, devemos indagar</p><p>38 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE A EDUCAÇÃO COMO PROCESSO SOCIAL 39 agora o que Os ensinamentos da história podem cê-las, se não nos metermos a estudá-las, pela observação, como servir, quando muito, para que não pratiquemos os mesmos físico estuda a matéria inanimada, e biologista, os corpos erros. vivos. Na verdade, porém, cada sociedade considerada em Como proceder de modo diverso? mento determinado de seu desenvolvimento, possui um sis- tema de educação que se impõe aos indivíduos de modo Quando se quer determinar, tão-somente pela dialética, geralmente É uma ilusão acreditar que podemos que deva ser a educação, começa-se por fixar fins certos à educar nossos filhos como queremos. Há costumes com re- tarefa de educação. Mas que é que nos permite dizer que a lação aos quais somos obrigados a nos conformar; se os educação tem tais fins ao invés de tais outros? Não pode- desreipeitamos, muito gravemente, eles se vingarão em nossos saber, a priori, qual a função da respiração ou da filhos. Estes, uma vez adultos, não estarão em estado de viver circulação no ser vivo; só a conhecemos pela observação. Que no meio de seus contemporâneos, com os quais não encon- privilégio nos levaria a conhecer de outra forma a função trarão harmonia. Que eles tenham sido educados, segundo educativa? Responder-se-á que não há nada mais evidente do idéias passadistas ou futuristas, não importa; num caso como que o seu fim: de preparar as crianças. Mas isso seria noutro, não são de seu tempo e, por não estarão enunciar problema por outras palavras: nunca em condições de vida normal. Há, pois, a cada momento, Seria melhor dizer em que consiste esse preparo, a que tende, um tipo regulador de educação do qual não nos podemos a que necessidades humanas corresponde. Ora, não se pode separar sem vivas resistências, e que restringem as veleidades responder a tais indagações senão começando por observar em dos dissidentes. que esse preparo tem consistido e a que necessidades tenha Ora, os costumes e as idéias que determinaram esse tipo, atendido, no passado. Assim, para constituir a noção preli não fomos nós, individualmente, que os fizemos. São pro- minar de educação, para determinar a coisa a que damos esse duto da vida e exprimem suas necessidades. São nome, a observação histórica parece-nos indispensável. mesmo, na sua maior parte, obra das gerações passadas. Todo passado da humanidade contribuiu para estabelecer esse conjunto de princípios que dirigem a educação de hoje; toda Definição de educação nossa história deixou traços, como também deixou a his- tória dos povos que nos precederam. Da mesma forma, os organismos superiores trazem em si como que um eco de Para definir educação, será preciso, pois, considerar os toda a evolução de que são resultado. Quando sistemas educativos que ora existem, ou tenham existido, com- se estuda historicamente a maneira pela qual se formaram pará-los, e aprender deles os caracteres comuns. O conjunto e se desenvolveram os sistemas de educação, percebe-se que desses caracteres constituirá a definição que procuramos. eles dependem da religião, da organização política, do grau Nas considerações do item anterior, já assinalamos dois de desenvolvimento das ciências, do estado das indústrias, etc. caracteres. Para que haja educação, faz-se mister que Separados de todas essas causas históricas, tornam-se incom- haja, em face de uma geração de adultos, uma geração de preensíveis. Como, então, poderá um indivíduo pretender indivíduos jovens, crianças e adolescentes; e que reconstruir, pelo esforço único de sua reflexão, aquilo que seja exercida pela primeira, sobre a segunda. Seria necessário não é obra do pensamento individual? Ele não se encontra definir, agora, a natureza específica dessa influência de uma em face de uma tabula rasa, sobre a qual poderia edificar o sobre outra geração. que quisesse, mas diante de realidades que não podem ser Não existe sociedade na qual sistema de educação não criadas, destruídas ou transformadas à vontade. Não podemos apresente duplo aspecto: de ser, ao mesmo tempo, uno agir sobre elas senão na medida em que aprendemos a conhe- e múltiplo.</p><p>40 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE A EDUCAÇÃO COMO PROCESSO SOCIAL 41 Vejamos como ele é múltiplo. Em certo sentido, há tan- tas espécies de educação, em determinada sociedade, quantos Mas, qualquer que seja a importância destes sistemas espe- meios diversos nela existirem. É ela formada de castas? A ciais de educação, não constituem eles toda a educação. Pode- educação varia de uma casta a outra; a dos "patrícios" não se dizer até que não se bastam a si mesmos; por toda parte, era a dos plebleus; a dos brâmanes não era a dos sudras. Da onde sejam observados, não divergem, uns dos outros, senão mesma forma, na Idade Média, que diferença de cultura entre a partir de certo ponto, para além do qual todos se confundem. o pajem, instruído em todos os segredos da cavalaria, e o Repousam assim sobre uma base comum. Não há povo em vilão, que ia aprender na escola da paróquia, quando apren- que não exista certo número de idéias, de sentimentos e de dia, parcas noções de cálculo, canto e Ainda hoje práticas que a educação deve inculcar a todas as crianças, não vemos que a educação varia com as classes sociais e com indistintamente, seja qual for a categoria social a que per- as regiões? A da cidade não é a do campo, a do burguês tençam. Mesmo onde a sociedade esteja dividida em castas não é a do operário. Dir-se-á que esta organização não é fechadas, há sempre uma religião comum a todas e, por con- moralmente justificável, e que não se pode enxergar nela seguinte, princípios de cultura religiosa fundamentais, que serão senão um defeito, remanescente de outras épocas, e destinado os mesmos para toda a gente. Se cada casta, cada família tem a desaparecer. A resposta a essa objeção é simples. Claro seus deuses especiais, há divindades gerais que são reconhe- está que a educação das crianças não deveria depender do cidas por todos e que todas as crianças aprendem a adorar. acaso, que as fez nascer aqui ou acolá, destes pais e não E, como tais divindades encarnam e personificam certos sen- daqueles. Mas, ainda que a consciência moral de nosso tempo timentos, certas maneiras de conhecer o mundo e a vida, nin- tivesse recebido, acerca desse ponto, a satisfação que ela guém pode ser iniciado no culto de cada uma, sem adquirir, espera, ainda assim a educação não se tornaria mais uniforme ao mesmo passo, todas as espécies de hábitos mentais que vão e igualitária. E, dado mesmo que a vida de cada criança além da vida puramente religiosa. Igualmente, na Idade Mé- não fosse, em grande parte, predeterminada pela hereditarie- dia, servos, burgueses e nobres, recebiam todos a mesma dade, a diversidade moral das profissões não deixaria de educação cristã. acarretar, como grande diversidade pedagógica. Se assim é, nas sociedades em que a diversidade intelec- Cada profissão constitui um meio sui generis, que reclama tual e moral atingiu esse grau de contraste, por mais forte aptidões particulares e conhecimentos especiais, meio que é razão o será nos povos mais avançados, em que as classes, regido por certas idéias, certos usos, certas maneiras de ver embora distintas, estão separadas por abismos menos pro- as coisas; e, como a criança deve ser preparada em vista de fundos. certa função, a que será chamada a preencher, a educação Mesmo onde esses elementos comuns de toda a educação não pode ser a mesma, desde certa idade, para todos os indi- não se exprimem senão sob forma de símbolos religiosos, não Eis porque vemos, em todos os países civilizados, a deixam eles de existir. No decurso da história, constituiu-se tendência que ela manifesta para ser, cada vez mais, diversi- todo conjunto de idéias acerca da natureza humana, sobre ficada e especializada; e essa especialização, dia a dia, se a importância respectiva de nossas diversas faculdades, sobre torna mais precoce. A heterogeneidade, que assim se produz, direito e sobre dever, sobre a sociedade, o indivíduo, o não repousa, como aquela de que há pouco tratamos, sobre progresso, a ciência, a arte, etc., idéias essas que são a base injustas desigualdades; todavia, não é menor. Para encontrar mesma do nacional; toda e qualquer educação a do um tipo de educação absolutamente homogêneo e igualitário, rico e a do pobre, a que conduz às carreiras liberais, como a seria preciso remontar até às sociedades no que prepara para as funções industriais, tem por objeto fixar seio das quais não existisse nenhuma diferenciação. Devemos essas idéias na consciência dos educandos. Resulta desses compreender, porém, que tal espécie de sociedade não repre- fatos que cada sociedade faz do homem certo ideal, tanto senta senão um momento imaginário na história da huma- ponto de vista intelectual, quanto do físico e moral; que esse nidade. ideal é, até certo ponto, mesmo para todos os cidadãos; que a partir desse ponto ele se diferencia, porém, segundo</p><p>A EDUCAÇÃO COMO PROCESSO SOCIAL 43 42 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE meios particulares que toda sociedade encerra em sua com- plexidade. Esse ideal, ao mesmo tempo uno e diverso, é que da definição precedente: constitui a parte básica da educação. Ele tem por função caráter social da educação suscitar na criança: 1) um certo número de estados físicos e mentais, que a sociedade a que pertença considera como Da definição do parágrafo precedente, conclui-se que a indispensáveis a todos os seus membros; 2) certos estados educação consiste numa socialização das novas ge- físicos e mentais, que grupo social particular (casta, classe, rações. Em cada um de nós, já o vimos, pode-se dizer que família, profissão) considera igualmente indispensáveis a todos existem dois seres. Um, de todos os estados men- que o formam. A sociedade, em seu conjunto, e cada meio tais que não se relacionam senão conosco mesmo e com os social em particular, é que determinam este ideal ser acontecimentos de nossa vida pessoal; é que se poderia realizado. chamar de ser individual. O outro é um sistema de idéias, A sociedade não poderia existir sem que houvesse em seus sentimentos e hábitos, que exprimem em nós, não a nossa membros certa homogeneidade: a educação perpetua e reforça personalidade, mas grupo ou grupos diferentes de que faze- essa homogeneidade, fixando de antemão na alma da criança mos parte; tais são as crenças religiosas, as crenças e práticas certas similitudes essenciais, reclamadas pela vida coletiva. morais, as tradições nacionais ou profissionais, as opiniões Por outro lado, sem uma tal ou qual diversificação, toda coletivas de toda a espécie. Seu conjunto forma ser social. cooperação seria impossível: a educação assegura a persis- Constituir esse ser social em cada um de nós tal é fim tência desta diversidade necessária, diversificando-se ela mesma da educação. e permitindo as especializações. Se a sociedade tiver chegado É por aliás, que melhor se revela a importância e a a um grau de desenvolvimento em que as antigas divisões, fecundidade do trabalho educativo. Na realidade, esse ser so- em castas e em classes, não possam mais manter-se, ela pres- cial não com homem, não se apresenta na constituição creverá uma educação mais igualitária, como básica. Se, ao humana primitiva, como também não resulta de nenhum de- mesmo tempo, o trabalho se especializar, ela provocará nas senvolvimento espontâneo. Espontaneamente, o homem não se crianças, sobre um primeiro fundo de idéias e de sentimentos submeteria à autoridade política; não respeitaria a disciplina comuns, mais rica diversidade de aptidões profissionais. Se moral, não se devotaria, não se sacrificaria. Nada há em nossa um grupo social viver em estado permanente de guerra com natureza congênita que nos predisponha a tornar-nos, necessa- sociedades vizinhas, ele se esforçará por formar forte- riamente, servidores de divindades ou de emblemas simbólicos mente nacionalistas; se a concorrência internacional tomar for- da sociedade, que nos leve a render-lhes culto, a nos privarmos ma mais pacífica, tipo que procurará realizar será mais geral em seu proveito ou em sua honra. Foi a própria sociedade, e mais humano. na medida de sua formação e consolidação, que tirou de seu A educação não é, pois, para a sociedade, senão o meio próprio seio essas grandes forças morais, diante das quais pelo qual ela prepara, no das crianças, as condições homem sente a sua fraqueza e inferioridade. Ora, exclusão essenciais da própria existência. Mais adiante, veremos como feita de vagas e incertas tendências sociais atribuídas à here- ao indivíduo, de modo direto, interessará submeter-se a essas ditariedade, a criança não traz, ao entrar na vida, mais do exigências. Por ora, chegamos à fórmula seguinte: que a sua natureza de indivíduo. A sociedade se encontra, a cada como que em face de uma tabula rasa, A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre a qual é preciso construir quase tudo de novo. É preciso as gerações que não se encontram ainda preparadas para a que, pelos meios mais rápidos, ela agregue ao ser egoísta e vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança,cer a-social, que acaba de nascer, uma natureza de vida moral e de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados social. Eis a obra da educação. Basta enunciá-la dessa forma pela sociedade politica no seu conjunto e pelo meio especial para que percebamos toda a grandeza que encerra. A educação a que a criança, particularmente, se destine.</p><p>44 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE A EDUCAÇÃO COMO PROCESSO SOCIAL 45 não se limita a desenvolver o organismo, no sentido indicado Mas o que demonstra claramente, apesar das aparências, pela natureza, ou a tornar tangíveis os germes, ainda não reve- que aqui, como alhures, a educação satisfaz, antes de tudo, lados, embora à procura de oportunidade para Ela cria a necessidades sociais, é que existem sociedades em que esses no homem um ser predicados não são cultivados; e mais, que eles têm sido muito Essa virtude criadora é, apanágio da educação diversamente compreendidos, segundo grupo social con- humana. De espécie muito diversa é a que recebem os ani- mais, se é que se pode dar o nome de educação ao treina- É preciso saber, por exemplo, que vantagens duma sólida cultura intelectual nem sempre foram reconhecidas por todos mento progressivo a que são submetidos por seus ascendentes, nalgumas espécies. Nos animais, pode-se apressar desenvol- os povos. A ciência, o crítico, que hoje tão alto colo- vimento de certos instintos adormecidos, mas nunca iniciá-los camos, durante muito tempo foram tidos como perigosos. Não numa vida inteiramente O treinamento pode facilitar conhecemos dito que proclama bem-aventurados os pobres de Não devemos acreditar que esta indiferença pelo o trabalho de funções naturais, mas não cria nada de saber tenha sido artificialmente imposta ao homem, com vio- Instruído por sua mãe, talvez passarinho possa voar mais lação de sua própria natureza. Eles não possuem por si mesmos cedo, ou fazer seu ninho, mas pouco aprende além do que apetite instintivo da ciência, como tantas vezes e tão arbi- poderia descobrir por si mesmo. É que os animais, ou vivem trariamente se tem afirmado. Os homens não desejam a ciência fora de qualquer estado social, ou formam estados muito senão na medida em que a experiência lhes tenha demonstrado rudimentares, que funcionam graças a mecanismos instintivos, que não podem passar sem ela. Ora, no que concerne à vida perfeitamente constituídos desde o nascimento de cada animal. individual, ela não é necessária. Como ROUSSEAU já dizia, para A educação não poderá, nesse caso, ajuntar nada de essencial satisfazer às necessidades da vida, a sensação, a experiência à natureza, porquanto esta parece bastar à vida do grupo e instinto podem bastar, como bastam aos animais. Se quanto basta à do indivíduo. No homem, ao contrário, as homem não conhecesse outras necessidades senão essas, muito múltiplas aptidões que a vida social supõe, muito mais com- simples, que têm raízes em sua própria constituição individual, plexas, não podem organizar-se em nossos tecidos, se ma- não se teria posto no da ciência, tanto mais que ela terializando sob a forma de predisposições orgânicas. Segue-se não pode ser adquirida senão após duros e penosos esforços. que elas não podem transmitir-se de uma geração a outra, por O homem não veio a conhecer a sede do saber senão quando meio da hereditariedade. É pela educação que essa transmissão a sociedade sentiu que seria necessário Esse momento se dá. veio quando a vida social, sob todas as formas, se tornou de- Entretanto podem objetar-nos se realmente para as masiado complexa para poder funcionar de outro modo que qualidades morais é assim, porquanto elas nos vêm limitar a não fosse pelo pensamento refletido, isto é, pelo pensamento atividade, e por isso mesmo só podem ser suscitadas por uma esclarecido pela ciência. Então, a cultura científica tornou-se ação vinda de fora, não há outras qualidades que todo homem indispensável; e é essa a razão pela qual a sociedade a reclama se interessa em adquirir e espontaneamente procura possuir de seus membros e a impõe a todos, como um dever. Origi- Sim; tais são as diversas qualidades da inteligência que nariamente, porém, enquanto a organização social era muito lhe permitem adaptar a conduta à natureza das Tais simples, muito pouco variada, sempre igual a si mesma, a são, também, as qualidades físicas e tudo quanto contribua tradição cega bastava, como basta o instinto para o animal. para a saúde e o vigor do organismo. Para essas, pelo menos Nesse estado, pensamento e "livre exame" eram inúteis, parece que a educação não faz senão ir adiante do que a se não prejudiciais, porque ameaçavam a tradição. Eis porque natureza conseguiria por si mesma; mas ainda assim, para esse eram proscritos. estado de perfeição relativa, a sociedade concorre muito: Dá-se o mesmo com as qualidades físicas. Se o estado do apressa aquilo que, sem seu concurso, só muito lentamente meio social inclina a consciência pública para o ascetismo, a se daria. educação física será relegada a plano secundário. o que</p><p>46 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE A EDUCAÇÃO COMO PROCESSO SOCIAL 47 se produziu, em parte, nas escolas da Idade Média; e esse Foi assim que adquirimos esse poder de resistirmos a nós ascetismo era necessário, porque a única maneira de adaptação mesmos, esse domínio as nossas tendências, que é dos às concepções da época era tê-lo em apreço. Tal seja a corrente traços distintivos da fisionomia humana, pois ela é tão desen- da opinião, a educação física será de uma ou de outra espécie. volvida em nós quanto mais plenamente representamos as qua- Em Esparta, tinha por objeto, especialmente, enrijar os lidades do homem de nosso tempo. membros para resistir à fadiga; em Atenas, era um meio de tornar os corpos belos à vista; nos tempos da cavalaria, pe- Do ponto de vista intelectual, não devemos menos à diam-se-lhe guerreiros ágeis e flexíveis; em nossos tempos, não sociedade. É a ciência que elabora as noções cardeais, que tem senão um fim higiênico, preocupando-se especialmente dominam pensamento: a noção de causa, de lei, de espaço, em corrigir os efeitos danosos da cultura intelectual muito de número; noções de corpo, de vida, de consciência, de intensa. Desse modo, mesmo quando as qualidades pareçam sociedade, etc. Todas essas idéias fundamentais se encontram à primeira vista espontaneamente desejadas pelos indivíduos, perpetuamente em evolução: é que elas são o resumo, a re- refletem já as exigências do meio social que as prescreve como sultante de todo trabalho justamente ao contrário necessárias. de serem seu ponto de partida, como PESTALOZZI Estamos agora em condições de esclarecer uma dúvida que Não concebemos hoje homem, a natureza, as coisas, espaço todo trecho interior sugere. Se os indivíduos, como mos- mesmo como os homens da Idade Média os concebiam; é tramos, só agem segundo as necessidades sociais, parece que que os nossos conhecimentos e os nossos processos a sociedade impõe aos homens insuportável tirania. Na rea- já não são os mesmos. Ora, a ciência é obra coletiva, por- lidade, porém, eles mesmos são interessados nessa submissão; quanto supõe vasta cooperação de todos os sábios, não somente porque novo ser que a ação coletiva, por intermédio da de dada época, mas de todas as épocas que se sucedem na educação, assim edifica, em cada um de nós, representa O que história. há de melhor no homem, que há em nós de propriamente Aprendendo uma língua, aprendemos todo um sistema de humano. idéias organizadas, classificadas, e, com isso, nos tornamos her- Na verdade, o homem não é humano senão porque vive deiros de todo trabalho de longos séculos, necessário a essa em sociedade. É difícil, numa só lição, demonstrar com rigor organização. Há mais, no entanto. Sem a linguagem, não esta proposição tão geral e tão importante, resumo dos tra- idéias gerais, porquanto é a palavra que as fixa, que balhos da sociologia contemporânea. Mas posso afirmar que dá aos conceitos suficiente consistência, permitindo ao espírito essa proposição é cada vez menos contestada. E, além disso, a sua aplicação. Foi a linguagem que nos permitiu ascender não será difícil relembrar, embora sumariamente, os fatos es- acima da sensação; e não será necessário demonstrar que, de senciais que a justificam. todos os aspectos da vida social, a linguagem é um dos mais Antes de tudo, se há hoje verdade histórica estabelecida preeminentes. é a de que a moral se acha estritamente relacionada com a Por esse exemplo se vê a que se reduziria o homem, se natureza das sociedades, pois que, como o mostramos nas pá- se retirasse dele tudo quanto a sociedade lhe empresta: retor- ginas anteriores, ela muda quando as sociedades mudam. É naria à condição de animal. Se ele pôde ultrapassar o estádio que ela resulta da vida em comum. a sociedade que nos em que os animais permanecem, é porque, primeiramente, não lança fora de nós mesmos, que nos obriga a considerar outros se conformou com resultado único de seus esforços pessoais, interesses que não os nossos, que nos ensina a dominar as mas cooperou sempre com seus semelhantes, e isso yeio reforçar paixões, os instintos, e dar-lhes lei, ensinando-nos sacrifício, o rendimento da atividade de cada um. Depois, e sobretudo, a privação, a subordinação dos nossos fins individuais a outros mais elevados. Todo sistema de representação que mantém porque os resultados do trabalho de uma geração não ficaram em nós a idéia e o sentimento da lei, da disciplina interna perdidos para a geração que se lhe seguiu. Os frutos da expe- riência humana são quase que integralmente conservados, gra- ou externa, é instituído pela sociedade. ças à tradição oral, graças aos livros, aos monumentos figurados,</p><p>48 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE aos e instrumentos de toda espécie, que se transmitem de geração em geração. solo da natureza humana se recobre, assim, de fecunda camada de aluvião, que cresce sem cessar. 3 Ao invés de se dissipar, todas as vezes que uma geração se extingue e é substituída por outra, a sabedoria humana vai sendo acumulada e revista, dia a dia, e é essa acumulação CONDICIONAMENTO SOCIOCULTURAL indefinida que eleva o homem acima do animal e de si DA PERSONALIDADE(*) mesmo. Como a cooperação, no entanto, esse aproveitamento de Ralph LINTON experiência não se torna possível senão na sociedade e por ela. Para que legado de cada geração possa ser conservado e acrescido, será preciso que exista uma entidade moral dura- doura, que ligue uma geração à outra: a sociedade. Por isso mesmo, suposto antagonismo, muitas vezes admitido, entre UMA DAS MAIS IMPORTANTES CONQUISTAS dos tempos modernos indivíduos e sociedade, não corresponde a coisa alguma no é o reconhecimento da cultura. Tem-se dito que a última terreno dos fatos. Bem longe de estarem em oposição, ou coisa que um habitante das profundezas do mar descobriria de poderem desenvolver-se em sentido inverso, um do outro seria, justamente, a água. Ele só se tornaria consciente da sociedade e indivíduo são idéias dependentes uma da outra. existência desta, se algum acidente trouxesse à superfície e Desejando melhorar a sociedade, indivíduo deseja melhorar o introduzisse na atmosfera. homem, através da maior parte a si próprio. Por sua vez, a ação exercida pela sociedade, de sua história, tem sido apenas vagamente consciente da especialmente através da educação, não tem por objeto, ou existência da cultura e, ainda, adquiriu essa consciência pelos por efeito, comprimir o indivíduo, desnaturá-lo, contrastes entre os costumes da sua própria sociedade e os mas ao contrário e torná-lo criatura verdadei- de alguma outra com a entrar em A ramente humana. Sem dúvida, o indivíduo não pode engran- capacidade para ver a cultura de sua própria sociedade como decer-se senão pelo próprio esforço. O poder do esforço uma totalidade, avaliar seus padrões e apreciar suas implica- constitui, precisamente, uma das características essenciais do ções, exige um grau de objetividade que raramente ou nunca homem. é alcançado. Não é acidentalmente que a compreensão da cultura pelos cientistas modernos derivou grandemente do estudo de culturas não-européias, cuja observação pôde ser facilitada pelo constraste. Aqueles que não conhecem outra cultura, senão a sua própria, não podem conhecer nem mesmo esta. Até muito recentemente, mesmo os psicólogos foram incapazes de compreender que todos os seres humanos, eles próprios inclusive, se desenvolvem e agem num ambiente que é, em sua maior parte, culturalmente determinado. Na medida em que restringiram suas investigações a indivíduos criados dentro dos limites de uma única cultura, não poderiam deixar de chegar a conceitos da natureza humana que estavam muito Ralph The Cultural Background of Personality, Routledge & Kegan Paul Ltd., Londres, 1958, pp. 81-98. Tradução de Maria F. Don- nangelo.</p>

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