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BIOQUÍMICA SISTÊMICA Cássio Morais Loss Glicólise e oxidação do piruvato Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Reconhecer as reações bioquímicas e as fases da via da glicólise. � Diferenciar os destinos do piruvato formado na via da glicólise. � Identificar os produtos finais da via glicolítica. Introdução Para que se mantenham vivas e funcionais, as células consomem grandes quantidades de energia. A glicose é um carboidrato simples (monossa- carídeo), o principal açúcar proveniente da dieta e serve como substrato energético universal para as células animais. Esta molécula possui papel central no metabolismo energético, uma vez que todas as células do corpo são capazes de oxidá-la para produção de ATP. A rota metabólica que oxida glicose com essa finalidade é denominada glicólise e pode ser classificada em dois tipos: glicólise anaeróbica (pode ser realizada na ausência de O 2 , mas apresenta menor eficiência energética) e glicose aeróbica (realizada na presença de O 2 apresentando alta eficiência energética). Neste capítulo, você vai acompanhar como ocorre a oxidação de uma molécula de glicose a duas moléculas de piruvato (um dos produtos finais da via glicolítica), os diferentes destinos que o piruvato pode ter depen- dendo da disponibilidade de O 2 dentro da célula e, por fim, baseado na quantidade de moléculas de ATP produzidas ao final de cada processo, você irá identificar porque a glicólise aeróbica possui maior eficiência metabólica que a glicólise anaeróbica. As reações bioquímicas e as fases da via da glicólise A glicólise é a rota metabólica que oxida glicose e outros monossacarídeos, conservando parte da energia livre presente nestes carboidratos em moléculas de ATP, das quais você já deve ter ouvido falar e que atuam como uma espécie de moeda energética de uso imediato para a célula. A glicólise é um processo que ocorre no citosol e é composta de duas fases: (1) fase preparatória (ou fase de investimento) e (2) fase de produção (ou fase de pagamento). Na primeira fase, para cada glicose que entra na via glicolítica, duas moléculas de ATP são consumidas com a finalidade de manter os interme- diários da glicólise dentro da célula, aumentar o conteúdo de energia livre destes intermediários e converter suas cadeias de carbono a um produto comum, o gliceraldeído-3-fosfato. Na segunda fase, duas moléculas de gliceraldeído-3-fosfato são convertidas a duas moléculas de piruvato. Neste processo, quatro moléculas de ADP são fosforiladas a nível de substrato, resultando na produção de quatro moléculas de ATP. Dois dos fosfatos in- corporados às moléculas de ADP são provenientes da incorporação de duas moléculas de fosfato inorgânico a duas moléculas de gliceraldeído-3-fosfato e os outros dois fosfatos são os mesmos doados pelas moléculas de ATP na fase de investimento, totalizando uma produção líquida de duas moléculas de ATP ao final da via glicolítica. Glicólise e oxidação do piruvato2 Figura 1. Reações enzimáticas da via glicolítica. Fonte: Smith, Marks e Lieberman (2007, p. 403). 3Glicólise e oxidação do piruvato A fase de investimento A primeira reação da via glicolítica é catalisada pela enzima hexocinase, que tem como substratos uma molécula de glicose e uma molécula de ATP. Como produto da reação, ocorre a liberação de uma molécula de glicose-6-fosfato e de uma molécula de ADP. Nessa reação, que é irreversível sob condições fisiológicas, uma molécula de ATP é consumida para que o grupo fosfato do ATP seja incorporado ao carbono 6 (C-6) da glicose. Essa fosforilação inicial garante que os intermediários da via glicolítica permaneçam na célula uma vez que a membrana plasmática não contém transportadores para açúcares fosforilados. A fosforilação do C-6 da molécula de glicose garante a permanência deste açúcar na célula, contudo, não determina que o destino da glicose seja a via glicolítica uma vez que a glicose-6-fosfato atua como precursor em rotas biossintéticas como, por exemplo, nas vias da glicogênese e das pentoses-fosfato. A segunda reação da glicólise é uma reação de isomerização catalisada pela fosfo-hexose-isomerase. Essa reação move o grupo carbonil presente no C-1 da hexose para o C-2, permitindo a ação da fosfofutrocinase-1 (também conhecida como PFK-1). A reação catalisada pela PFK-1 consome uma molécula de ATP aofosforilar o C-1 da hexose – que, após a reação de isomerização realizada pela fosfo-hexose-isomerase, possui um grupo hidroxilem vez de um grupo carbonil – , reação que também é irreversível sob condições fisiológicas. Na quarta reação enzimática da glicólise, a enzima aldolase quebra a molécula de frutose-1,6-bisfosfato em dois produtos fosforilados de três carbonos, di-hidroxiacetona-fosfato e gliceraldeído-3-fosfato. A última reação da fase de investimento é uma reação de isomerização catalisada pela enzima triose- fosfato-isomerase, que converte uma molécula de di-hidroxiacetona-fosfato a gliceraldeído-3-fosfato. Desta forma, ao final da fase de investimento, duas moléculas de gliceraldeído-3-fosfato são produzidas a partir de uma molécula de glicose e o consumo de duas moléculas de ATP. Glicólise e oxidação do piruvato4 A fase de pagamento Na primeira reação da fase de pagamento, catalisada pela gliceraldeído-3- -fosfato-desidrogenase, uma molécula de fosfato inorgânico é incorporada ao gliceraldeído-3-fosfato através do consumo de um NAD+ e da produção de um NADH. A molécula de 1,3-bisfosfatoglicerato produzida na primeira reação da fase de pagamento serve como substrato energético para a produção no nível de substrato de uma molécula de ATP. Nas duas reações seguintes, o grupo fosforil das trioses fosfato é ativado através de uma reação de isomeri- zação e de uma desidratação (realizadas pela fosfoglicerato-mutase e enolase, respectivamente), resultando na produção de fosfoenolpiruvato. Na última reação da fase de pagamento, a piruvato-cinase converte o fosfoenolpiruvato em piruvato e, como resultado da energia liberada pela reação, uma segunda molécula de ATP é produzida ao nível de substrato. Essa reação é a terceira e última reação irreversível que compõe a via glicolítica. Vias alimentadoras da glicólise Apesar de a glicose ser o principal açúcar utilizado como substrato energético pela glicólise, muitos outros carboidratos provenientes da dieta são também oxidados pela via glicolítica após serem transformados em um dos intermediários glicolíticos. Os mais significativos são a frutose (obtida principalmente da sacarose), a galactose (obtida principalmente da lactose) e a manose. Além disso, polissacarídeos de armazenamento contidos na célula (como o glicogênio, na célula animal, e o amido, na célula vegetal) podem ser quebrados em moléculas de glicose-1-fosfato, que entram na via glicolítica após serem convertidas a glicose-6-fosfato por intermédio da reação catalisada pela enzima fosfoglicomutase. Os destinos do piruvato O destino das moléculas de piruvato produzidas ao final da via glicolítica irá depender do tipo celular em que a glicólise ocorre e da disponibilidade de oxigênio na célula. De modo geral, o piruvato pode ser destinado para três rotas metabólicas distintas, todas as três com o propósito de regeneração 5Glicólise e oxidação do piruvato do NAD+ consumido na reação da gliceraldeído-3-fosfato-desidrogenase. Os três principais destinos do piruvato podem ser (1) a completa oxidação a CO2 e água para produção de ATP, (2) fermentação láctica ou (3) fermen- tação alcoólica. A primeira situação irá ocorrer sobre condições aeróbicas (ou seja, quando houver a disponibilidade de oxigênio). Nessa situação, a molécula de piru- vato será transportada para a matriz mitocondrial, onde será convertida a acetil-CoA, que entrará no ciclo do ácido cítrico e será completamente oxidado a CO2 e água. As reações que oxidam o piruvato por essa rota metabólica produzem quatromoléculas de NADH, uma de FADH2 e uma de GTP (um análogo do ATP) por molécula de piruvato.As moléculas de NADH e FADH2 serão regeneradas a NAD + e FAD através da doação de dois elétrons para a cadeia de transporte de elétrons. É nesta etapa que existe a participação de oxigênio, uma vez que ele é o aceptor final dos elétrons que são transportados através do sistema mitocondrial de transporte de elétrons. O fluxo de elétrons por este sistema provoca um bombeamento de prótons para o espaço intermembrana da mitocôndria, e o retorno destes prótons ocorre através do poro de uma proteína denominada ATP-sintase, gerando uma força próton-motriz suficiente para que esta enzima produza uma molécula de ATP para cada quatro prótons que fluem através de seu poro (processo denominado fosforilação oxidativa). A oxidação de cada NADH, e o consequente fluxo de elétrons provenientes desta molécula através da cadeia de transporte de elétrons, é capaz de bombear 10 prótons para o espaço intermembrana, enquanto que a oxidação do FADH2 é capaz de bombear apenas seis prótons. Desta forma, cada molécula de NADH produz 2,5 moléculas de ATP, enquanto que cada FADH2 produz 1,5 molécula de ATP por meio de fosforilação oxidativa. O destino do NADH citosólico A quantidade de NAD+ disponível no citosol é limitada, portanto o NADH produzido pela reação da gliceraldeído-3-fosfato-desidrogenase necessita ser regenerado novamente a NAD+ para que a via glicolítica não seja ini- bida por escassez desta coenzima. Desta forma, conforme mencionado anteriormente, o destino do NADH citosólico está intimamente ligado ao Glicólise e oxidação do piruvato6 destino do piruvato. Uma vez que o oxigênio é o aceptor final de elétrons da cadeia de transporte de elétrons, em situações aeróbicas, o NADH pode ser regenerado a NAD+ através da doação de elétrons para este sistema de transporte de elétrons. Contudo, a membrana interna da mitocôndria é impermeável a NADH e não possui transportadores para essa molécula para a matriz mitocondrial, e, portanto, não há como o NADH citosólico doar seus elétrons para este sistema de maneira direta. Assim, em condições aeróbicas, o NADH citosólico é regenerado a NAD+ por intermédio de mecanismos de lançadeira de elétrons – lançadeira de glicerol-3-fosfato, que produz 1,5 molécula de ATP, ou a lançadeira de malato-aspartato, que produz 2,5 moléculas de ATP. Já quando as células se encontram em condições anaeróbicas, ou não possuem a maquinaria necessária para realizarem fosforilação oxidativa (como os eritrócitos, por exemplo, que são desprovidos de mitocôndrias), o NADH citosólico é regenerado a NAD+ por um processo denominado fermentação, que pode ser láctica (no músculo esquelético em contração vigorosa, em eritrócitos e em alguns microrganismos) ou alcoólica (em microrganismos como leveduras, por exemplo). Na fermentação láctica, a alta razão NADH/NAD+ favorece a conversão de piruvato a lactato. Nesta reação catalisada pela lactato-desidrogenase, há o consumo de uma mo- lécula de piruvato e de uma molécula de NADH, resultando na produção de um lactato e na regeneração de uma molécula de NAD+, que agora está novamente disponível para servir de aceptor de elétrons na reação catalisada pela gliceraldeído-3-fosfato-desidrogenase. Já na fermentação alcoólica, a regeneração de NADH irá ocorrer através da conversão de uma molécula de piruvato a uma molécula de etanol. Esta fermentação ocorre através de duas reações enzimáticas catalisadas pela piruvato-descarboxilase e pela álcool-desidrogenase. Na primeira reação, uma molécula de piruvato é descarboxilada, resultando na produção de uma molécula de acetaldeído e na liberação de uma molécula de CO2. Na segunda reação, os elétrons do NADH são doados para a molécula de acetaldeído, resultando na produção de uma molécula de etanol e de uma molécula de NAD+, que estará nova- mente disponível para servir de aceptor de elétrons na reação catalisada pela gliceraldeído-3-fosfato-desidrogenase. 7Glicólise e oxidação do piruvato Figura 2. Os três destinos catabólicos possíveis do piruvato formado na glicólise. Fonte: Nelson e Cox (2014, p. 548). Glicólise e oxidação do piruvato8 Papel da glicólise na produção de cervejas A indústria cervejeira utiliza fermentação alcoólica na produção de seus produtos. Após a formação do malte, preparação do mosto (o meio rico em açúcares a serem fermentados pelas leveduras), ocorre a adição das leveduras (cepas de Saccharomyces cerevisiae) ao mosto aerado. Estas leveduras crescem e se multiplicam rapidamente, devido à energia obtida do metabolismo aeróbico de glicídios simples (glicólise até piruvato e ciclo do ácido cítrico). Depois que todo o oxigênio dissolvido no mosto é consumido, as leveduras alteram o seu metabolismo de aeróbio para o anaeróbico, fermentando os glicídios simples em etanol e CO 2 (as moléculas de piruvato produzidas na via glicolítica são transformadas em etanol e CO 2 ). Desta forma, o fermento biológico utilizado na produção de cervejas nada mais é que microrganismos consumindo substratos energéticos (açúcares) para produção de ATP e manutenção da própria sobrevivência. Os produtos finais da via glicolítica Nas sessões anteriores desse capítulo, você aprendeu que, durante a fase de investimento da glicólise, duas moléculas de ATP são consumidas para a produção de duas trioses-fosfato para cada molécula de glicose. Você viu também que cada uma destas trioses-fosfato produz duas moléculas de ATP, uma molécula de NADH e uma molécula de piruvato ao final da fase de paga- mento da glicólise. Desta forma, os produtos finais da via glicolítica são duas moléculas de ATP, duas moléculas de NADH e duas moléculas de piruvato 9Glicólise e oxidação do piruvato para cada molécula de glicose oxidada. Apesar disso, a glicólise libera apenas uma pequena fração da energia total disponível na molécula de glicose. O que definirá se a energia remanescente nas duas moléculas de piruvato produzidas ao final da via glicolítica será extraída através de reações oxidativas no ciclo do ácido cítrico e na fosforilação oxidativa será a disponibilidade de oxigênio e a capacidade de oxidação mitocondrial da célula. Em condições aeróbicas, o piruvato será completamente oxidado dentro da mitocôndria; desta forma, a glicólise aeróbica irá produzir cerca de 30 a 32 moléculas de ATP (dependendo do mecanismo de lançadeira de elétrons envolvido na oxidação das moléculas de NADH citosólico) para cada molécula de glicose oxidada. No caso de a glicólise ocorrer em condições anaeróbicas, o piruvato será fermentado a lactato ou a etanol e CO2 (dependendo do tipo de célula envolvida) e somente duas moléculas de ATP serão produzidas para cada molécula de glicose oxidada. Efeito Warburg Durante a década de 1920, um cientista alemão chamado Otto Heinrich Warburg descreveu que células tumorais utilizavam glicose de maneira diferente das células normais. Ele observou que estas células cancerígenas “fermentavam” glicose até lactato mesmo na presença de oxigênio suficiente para suportar a produção de ATP na mitocôndria através de fosforilação oxidativa. A fermentação de piruvato a lactato mesmo na presença de oxigênio ocorrida nas células tumorais é muitas vezes referida como “glicose aeróbica”, fenômeno denominado efeito Warburg. Acesse o link para compreender melhor as reações da via glicolítica através de uma abordagem termodinâmica: https://goo.gl/1s9pVz Glicólise e oxidação do piruvato10 HEIDEN, M. G. V.; CANTLEY, L. C.; THOMPSON, C. B. Understanding the Warburg effect: the metabolic requirements of cell proliferation. Science, Washington, v. 324, p. n. 5930, p. 1029-1033, 22 May 2009. Disponível em: <http://science.sciencemag.org/ content/324/5930/1029>. Acesso em: 11 set. 2017. NELSON, D. L.; COX, M. M. Princípios de bioquímica de Lehninger. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. SMITH, C. M.; MARKS, A. D.; LIEBERMAN, M. Bioquímica médicabásica de Marks: uma abordagem clínica. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2007. Leituras recomendadas RODWELL, V. W. et al. Bioquímica ilustrada de Harper. 30. ed. Porto Alegre: AMGH, 2017. VOET, D.; VOET, J. G. Bioquímica. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. 11Glicólise e oxidação do piruvato