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<p>C O M E N T Á R I O</p><p>JOAO</p><p>O C O M E N T Á R I O D E J O Ã O</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)</p><p>Carson, D.A.</p><p>O comentário de João / D.A. Carson ; tradução</p><p>Daniel de Oliveira & Vivian Nunes do Amaral. — São Paulo :</p><p>Shedd Publicações, 2007.</p><p>Título original: The gospel according to John.</p><p>ISBN: 978-85-88315-56-4</p><p>1. Bíblia. N.T. João - Comentários I. Título.</p><p>07-1972 CDD- 226.507</p><p>índices para catálogo sistemático:</p><p>1. Evangelho de João : Comentários 226.507</p><p>2. João : Evangelho : Comentários 226.507</p><p>O C O M E N T Á R I O D E J O Ã O</p><p>D. A. C A R S O N</p><p>T R A D U Ç Ã O</p><p>Daniel de Oliveira e Vivian Nunes do Amaral</p><p>publicações</p><p>Copyright © 1991 D. A. C a r so n</p><p>Título do original em inglês:</p><p>The gospel according to John</p><p>por Intervarsity Press</p><p>38 De Montfort Street, Leicester LEI 7GP, England</p><p>Todos os direitos reservados</p><p>Ia Edição - Abril de 2007</p><p>Publicado no Brasil com a devida autorização</p><p>e com todos os direitos reservados por</p><p>S h e d d P u blic a ç õ es L t d a -M e</p><p>Rua São Nazário, 30, Sto Amaro</p><p>São Paulo-SP - 04741-150</p><p>Tel. (011) 5521-1924</p><p>Email: sheddpublicacoes@uol.com.br</p><p>www.sheddpublicacoes.com.br</p><p>Proibida a reprodução por quaisquer</p><p>meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos,</p><p>fotográficos, gravação, estocagem em banco de</p><p>dados, etc.), a não ser em citações breves</p><p>com indicação de fonte.</p><p>Printed in Brazil / Impresso no Brasil</p><p>ISBN 978-85-88315-56-4</p><p>T r a d u ç ã o : Daniel de Oliveira e Vivian Nunes do Amaral</p><p>R evisã o : Lena Aranha</p><p>D iagram açãO: Edmilson Frazão Bizerra</p><p>C apa: Júlio Carvalho</p><p>mailto:sheddpublicacoes@uol.com.br</p><p>http://www.sheddpublicacoes.com.br</p><p>Dedico este livro à</p><p>Kenneth and Ruth Kantzer</p><p>Sumário</p><p>Prefácio ............................................................................................................. 9</p><p>Abreviações .....................................................................................................11</p><p>Introdução.......................................................................................................23</p><p>I. Algumas características do evangelho de Jo ão ............................23</p><p>II. Como se compreende o evangelho de João: Comentários</p><p>selecionados...................................................................................25</p><p>1. A igreja prim itiva...........................................................................25</p><p>2. Discussões mais recentes..................................................................31</p><p>3. A posição atu al................................................................................3 6</p><p>III. A autenticidade do quarto evangelho........... ...........................42</p><p>1. A possibilidade de uma crítica da fonte efetiva no</p><p>evangelho de João ........................................................................... 42</p><p>2. O desafio da unidade estilística.................................................... 4 6</p><p>3. A relação entre o quarto evangelho e os sinóticos.......................... 50</p><p>4. Reflexões sobre o pano de fundo conceituai.................................. 60</p><p>5. Uma avaliação da “nova crítica” ..................................................64</p><p>IV. A autoria do quarto evangelho................................................. 69</p><p>V..A data e proveniência do quarto evangelho................................82</p><p>VI. O propósito do evangelho de Jo ão ...........................................87</p><p>VII. Algumas ênfases teológicas em Jo ão ....................................... 95</p><p>VIII. Pregar fundamentado no quarto evangelho......................... 100</p><p>IX..A estrutura do evangelho de Jo ão ............................................103</p><p>Análise............................................................................................................105</p><p>Comentário................................................................................................... 109</p><p>Prefácio</p><p>Qualquer pessoa que se lança no desafio de escrever mais um comentário</p><p>sobre o evangelho de João precisa apresentar boas razões para isso.</p><p>O ímpeto original foi resultado de um convite para produzir um volume</p><p>para uma série. À medida que iniciei o trabalho, tornou-se evidente que precisaria</p><p>de outras justificativas mais plausíveis. Um novo comentário precisa de termos</p><p>mais abrangentes para se justificar: é necessário um nicho para si mesmo com</p><p>público-alvo específico, em que se busca resolver alguns problemas ou em que se</p><p>dá uma ênfase particular.</p><p>A partir do momento que esses assuntos foram discutidos com os editores,</p><p>tanto eles como eu mesmo originalmente pensara, a extensão e os detalhes que o</p><p>meu objetivo exigia poderiam ser acomodados dentro da série. Finalmente, porém,</p><p>o assunto foi repensado e chegou-se à conclusão que o melhor seria a publicação</p><p>desta obra não mais como um volume da série. Essa história explica o formato e</p><p>a extensão desse comentário.</p><p>Esse comentário, acima de tudo, busca explicar o texto do evangelho de João</p><p>para aqueles que têm como privilégio e responsabilidade ministrar e pregar a</p><p>Palavra de Deus para outras pessoas, bem como liderar estudos bíblicos. Tentei</p><p>incluir o tipo de informação que esses grupos precisam ter, mas fiz de tal forma</p><p>que o leigo instruído também possa fazer uso da obra em estudos pessoais da</p><p>Bíblia, exclusivamente para propósitos de crescimento pessoal na edificação e no</p><p>entendimento.</p><p>Em particular, tentei:</p><p>(1) Fazer com que o texto possa fluir claramente. Em vez de oferecer estudos</p><p>de palavras detalhados e comentários da sintaxe grega, essas observações foram</p><p>muito breves e buscaram dar sentido ao livro; pois, na verdade, o foco aqui recaiu</p><p>sobre o fluir do pensamento.</p><p>(2) Apresentar uma pequena, mas representativa, parcela da literatura secundária</p><p>sobre João. Sem dúvida, muitos dos leitores desse comentário são pastores instruídos</p><p>e alunos de teologia que precisam de um mapa dos estudos contemporâneos sobre</p><p>João. Sem permitir que essa interação se tornasse uma intrusão, tentei indicar o que</p><p>é valioso e em que pontos (e por que) divergi de alguns deles.</p><p>(3) Para estabelecer algumas linhas diretrizes de como o quarto evangelho</p><p>contribui para a Teologia Bíblica e Sistemática. Naturalmente, não existe necessidade</p><p>de ridicularizar essa síntese; pois qualquer cristão que pensa é, em certo sentido, um</p><p>10</p><p>sistematizador da Palavra. Se todos nós, conscientemente ou não, sistematizamos o</p><p>que lemos nas Escrituras, talvez seja benéfico parar agora e, depois, no curso de um</p><p>comentário exegético e expositivo refletir sobre a contribuição do texto para uma fé</p><p>cristã madura e holística. Oferecer uma exposição consistente do evangelho de João</p><p>como uma narrativa evangelística. Isso não está em consonância, devo confessar,</p><p>com o que está na moda na erudição atual: a opinião majoritária entende que o</p><p>quarto evangelho foi escrito tendo em vista leitores cristãos. Recentemente, escrevi</p><p>um artigo para refutar essa síntese em que tentei estabelecer a opinião minoritária;</p><p>mas esse comentário procura, em parte, apresentar uma defesa global (mesmo que</p><p>completamente preliminar) dessa leitura.</p><p>Ninguém tem mais consciência do que eu mesmo de quão distante estive de</p><p>alcançar esses objetivos, não da forma como gostaria de tê-los alcançado. Sou grato</p><p>pela leitura cuidadosa e pelas sugestões solícitas de Leon Morris e David Kingdon.</p><p>Apesar de não ter concordado sempre com elas, não se deve ignorar o fato de que,</p><p>por causa da sabedoria deles e de sua atenção aos detalhes, essa obra é bem melhor</p><p>do que seria. Sou grato pelos editores, pelo entusiasmo contínuo pela obra, mesmo</p><p>quando se tornou evidente que não poderia ser acomodada na série que fora</p><p>originalmente planejada. Finalmente, gostaria de expressar minha gratidão a Steve</p><p>Bryan.</p><p>Acima de tudo, se esse comentário ajudar algumas pessoas a honrar o Filho</p><p>assim como honram o Pai (5.23), e acreditar que Cristo, o Filho de Deus, é Jesus</p><p>(20.30-31) e, assim,</p><p>literárias que levantam poucas questões históricas (isto é,</p><p>questões sobre o que realmente aconteceu), favorecendo as questões literárias (i.e.</p><p>questões sobre como o texto se mantém coerente e transmite significado). Esse</p><p>enfoque tanto apresenta vantagens como desvantagens, como veremos; mas certa­</p><p>mente tende a mascarar a crença ou descrença do intérprete, uma vez que as questões</p><p>historicamente relevantes não são colocadas.</p><p>Quarto, o ceticismo radical sobre quanto se pode saber sobre o Jesus histórico</p><p>apresenta nuances dramáticas. Além do fato de que muitos alunos de Bultmann</p><p>iniciaram uma nova busca pelo Jesus histórico (o que muitos de nós consideram</p><p>um tanto reducionista, mas, na verdade, representa uma contribuição considerável</p><p>a seu precursor), houve dois desenvolvimentos que exerceram grande influência</p><p>no estudo de João.</p><p>Primeiro, em 1947, alguns meninos beduínos encontraram por acaso o que</p><p>veio a se chamar Rolos do Mar Morto da comunidade Qumran. Seja qual for o</p><p>significado que tenham em outras áreas do estudo bíblico, eles, no que diz respeito</p><p>a João, oferecem incontáveis paralelos à linguagem e às idéias do quarto evangelho.</p><p>Isso não quer dizer que João emprestou elementos do Qumran, ou que o quarto</p><p>evangelista tenha sido um judeu monástico vivendo como um hermitão Qumran:</p><p>o entusiasmo dos estudiosos por essas hipóteses decresceu grandemente (e com</p><p>razão). Os paralelos entre os Rolos do Mar Morto e o quarto evangelho não são</p><p>do tipo que encorajam teorias da dependência direta. Contudo, o que eles realmente</p><p>mostram é que é completamente desnecessário justificar a linguagem de João, por</p><p>seu dualismo lingüístico (luz/trevas, de cima/de baixo etc.), mesmo por algumas</p><p>expressões de sua escolha pessoal (“Espírito da verdade”, “a luz da vida”, “filhos da</p><p>luz”, “pratica a verdade”, “a obra de Deus”), apelando para um posterior ambiente</p><p>helenístico. Os paralelos mais próximos são traçados em relação ao Qumran, um</p><p>mundo conservador judaico que existiu ente 150 a. C. até a queda de Jerusalém e</p><p>da Judéia. Esses paralelos, desse modo, geraram um ‘novo olhar’ sobre o quarto</p><p>evangelho {cf. Robinson, Twelve, pp. 94ss.). Há uma distância considerável entre</p><p>João e o Qumran, como observou um dos primeiros estudiosos a estabelecer ligações</p><p>15 D. Moody Smith, The Composition and Order o f the Fourth Gospel: Bultmann’s Literary</p><p>Theory (Yale University Press, 1965).</p><p>In tro d u ç ã o 36</p><p>entre os dois.16 Mas os achados de Qumran influenciaram outros estudos que</p><p>mostram, por exemplo, como a forma de argumentação em João e sua exposição do</p><p>Antigo Testamento são essencialmente provenientes de correntes de pensamento</p><p>judaicas, de modo que a quantidade de estudiosos que atribuem o quarto evangelho</p><p>a um ambiente predominantemente gnóstico ou helenístico está diminuindo. Aqueles</p><p>que permanecem naquela argumentação tendem a se expressar por meio de</p><p>declarações em vez de interações detalhadas com conhecedores mais profundos das</p><p>fontes judaicas.17</p><p>Segundo, a tese de Gardner-Smith atraiu muitos estudiosos joaninos. Ele</p><p>sustenta que João é praticamente independente dos sinóticos, isto é, que não há</p><p>evidências de que o quarto evangelho tenha sido escrito como uma ‘correção’</p><p>teológica ou ‘adendo’ a um ou mais dos evangelhos sinóticos. Muito do ceticismo</p><p>dirigido a João fundamenta-se na suposição de que, como esse evangelho foi o</p><p>último e derivativo, era menos confiável do ponto de vista histórico. Mas se fosse</p><p>possível demonstrar que esse evangelho não é derivativo, então se poderia afirmar</p><p>que ele preserva uma tradição independente em relação aos acontecimentos originais.</p><p>Nesse caso, o que ele preserva deveria ser confrontado com os sinóticos sem</p><p>preconceito. Dodd desenvolveu esse argumento em uma hipótese rigorosa em</p><p>1963 (HTFG), e muitos comentadores, a partir de então, o seguem (incluindo</p><p>Morris, SFG, pp. 15ss). Essa posição tem seus pontos fracos, como se pode perceber,</p><p>mas o ceticismo da abordagem inicial em relação a João que muitos estudiosos,</p><p>em determinada época, repudiaram tende a diminuir.</p><p>3. A posição atual</p><p>A posição atual caracteriza-se por uma considerável diversidade não só de</p><p>resultados como também de métodos. Não pretendo abordar todo o assunto,</p><p>mesmo porque há excelentes estudos de fácil acesso.18 Em vez disso, ater-me-ei a</p><p>observações em duas áreas. Primeiro, delinearei brevemente as visões de algumas</p><p>vozes dominantes. Se eu falhar ao não mencionar certos estudiosos renomados,</p><p>não significa que a obra deles não tenha valor; por exemplo, não menciono os</p><p>comentários de R. H. Lightfoot e de Hoskyns e Davey. O último é particularmente</p><p>sugestivo, tanto de uma perspectiva teológica como por seu tratamento do uso do</p><p>Antigo Testamento em João. Mas eles não são discutidos aqui (embora sejam</p><p>16 W. F.Albright, “Recent Discoveries in Palestine and the Gospel of St John”, in W. D.</p><p>Davies and D. Daube (eds.), The Background o f the New Testament and its Eschatology (Fs.</p><p>C. H. Dodd; Cambridge University Press, 1954), especialmente p. 170.</p><p>17 Saiba mais consultando o comentário de Haenchen, e de Helmut Koester, op. cit.; e os</p><p>relevantes ensaios de Hedrick/Hodgson.</p><p>18 Além das bibliografias técnicas de H. Thyen (ThR 39, 1974, pp. 1-69, 222-252, 289-330;</p><p>42, 1977, pp. 211-270;44,1979,pp97-134) e Jürgen Becker [ThR 47,1982,pp.279-347)</p><p>pode-se consultar Rudolf Schnackenburg, in BETL, pp. 19ff.; James McPolin, IBS 2, 1980,</p><p>pp. 3-26; Kysar, Fourth, idem, Int 31, 1977, pp. 355-366; D. A. Carson, Themelios 9,</p><p>1983, pp. 8-18; idem, Themelios 14, 1989, pp. 57-64.</p><p>37 In tro d u ç ã o</p><p>citados no Comentário que se segue) porque, de maneira correta ou equivocada, a</p><p>obra deles não se enquadra na presente discussão, tampouco apresenta um</p><p>considerável bloco de opiniões. Segundo, delinearei brevemente a tendência que</p><p>vem surgindo nos estudos joaninos, a aplicação da crítica literária’ ou da ‘nova</p><p>crítica’ ao evangelho de João. As avaliações podem ser adiadas até a seção seguinte.</p><p>Esse breve estudo só terá valor se conseguir apreciar os pontos mais significativos</p><p>tratados pelos vários autores referidos no Comentário a seguir.</p><p>Na área da crítica da fonte, a voz mais articulada é a de Fortna, que não</p><p>procura atribuir cada palavra a uma ou outra fonte, mas que defende longamente</p><p>uma ‘fonte de sinais’ coerente que se pode buscar no quarto evangelho. Ele, como</p><p>muitos outros, sustenta que a enumeração dos dois primeiros sinais (2.11; 4.54)</p><p>oferece evidências substanciais de que os sinais foram muitos, uma fonte que</p><p>originalmente termina em 20.30,31. De um modo geral, ele convenceu poucas</p><p>pessoas de que está certo em relação à centena de detalhes sobre o que deveria ser</p><p>incluído nessa pretensa fonte, mas ele contribuiu para convencer muitos estudiosos</p><p>de que ainda havia uma fonte de sinais, mesmo que seu conteúdo não pudesse ser</p><p>delineado com precisão. A confiança de Fortna em seus detalhes permanece tão</p><p>forte que ele escreveu um segundo livro que busca distinguir entre a teologia da</p><p>fonte, como ele a reconstrói, e a teologia do evangelho de João como chegou até</p><p>nós.19</p><p>Um tipo um tanto diferente de crítica da fonte foi desenvolvido por Brown.</p><p>Ele é um pouco relutante em aplicar o termo ‘crítica da fonte’ a seu próprio trabalho.</p><p>Mesmo assim, ele afirma que revelou cinco camadas de tradições que refletem o</p><p>desenrolar da história da comunidade joanina. Ele acredita que o quarto evangelho</p><p>compreende uma tradição independente sobre Jesus (ou seja, independente dos</p><p>evangelhos sinóticos), moldada dentro da distintiva apresentação joanina do</p><p>evangelho. Ela foi trabalhada dentro de um evangelho escrito e, subseqüentemente,</p><p>revisado pelo menos duas vezes. A visão de Brown desenvolveu-se a partir da escrita</p><p>de seu comentário sobre o quarto evangelho. Ele tanto foi publicado em forma</p><p>popular20 como em um comentário maior sobre as cartas de João.21 A partir de suas</p><p>espécies de crítica da fonte, juntamente com as extrapolações que se tornam possíveis</p><p>ao se apelar às cartas de João, ele sugere que o produto final do quarto evangelho foi</p><p>associado ao produto da interação de cristãos com seis grupos delimitáveis (e</p><p>parcialmente sobrepostos): (1) Cristãos de igrejas apostólicas cuja cristologia foi</p><p>considerada inadequada à comunidade joanina. Esses outros cristãos fizeram as</p><p>confissões do capítulo 1; a comunidade joanina quis fazer a última confissão de que</p><p>Jesus é Deus. Não obstante, a união com esses cristãos tanto era considerada possível</p><p>quanto desejável (Jo 17). (2) Cristãos judeus, cuja fé dependia muito de sinais,</p><p>19 Robert Fortna, The Fourth Gospel and, its Predecessor (T & T. Clark, 1989/Fortress, 1988).</p><p>20 Raymond E. Brown, The Community o f the Beloved Disciple (Geoffrey Chapman/Paul is t,</p><p>1979). Para uma trajetória alternativa (embora comparada), cf. Martyn, GJCH.</p><p>21 Idem, The Epistles o f John (AB: Geoffrey Chapman, 1983/Doubleday, 1982).</p><p>In tro d u ç ã o 38</p><p>rejeitavam a deidade de Cristo. A comunidade joanina não os via como crentes</p><p>verdadeiros (cf. Jo 6.60-66). (3) ‘Cripto-cristãos’, judeus que se julgavam cristãos,</p><p>mas que não se haviam afastado da sinagoga (alguns estudiosos, mas não Brown,</p><p>vêem Nicodemos como o exemplo prototípico). (4) Seguidores de João Batista</p><p>que o julgavam mais importante que Jesus. Daí a polêmica de 1.8, 3.30. (5) ‘Os</p><p>judeus’, ou seja, membros não-crentes da sinagoga em ativa oposição à igreja, que</p><p>excomungavam todo adepto da sinagoga que confessava Jesus como Messias (9.22,</p><p>34). (6) O ‘mundo’, todo aquele que rejeitava a mensagem de Jesus, tanto os</p><p>judeus como os gentios.</p><p>Poucos são os que concordam com Brown em todos os detalhes; mas muitos</p><p>acreditam que ele esteja basicamente certo, embora alguns detalhes sejam questioná­</p><p>veis. Falarei um pouco mais acerca de sua reconstrução na próxima seção. Por</p><p>enquanto, sustento que a visão de Lindars, se o evangelho de João realmente for a</p><p>reunião de fragmentos, é mais confiável que a de Fortna ou Brown. Muito do evange­</p><p>lho de João — sugere Lindars — era originalmente material de sermões que o evan­</p><p>gelista agrupou ao longo do tempo. Não é necessário que se concorde com cada</p><p>sugestão que Lindars oferece sobre a maneira como esses sermões foram reunidos</p><p>para perceber a plausibilidade intrínseca de sua teoria. Ela busca postular “que a</p><p>organização das tradições para compor o evangelho aconteceu por meio de pregações,</p><p>principalmente pregações do evangelista” (Beasley-Murray, pp. xli-xlii). Além disso,</p><p>há muito que se dizer segundo a visão pela qual cada uma das inequívocas combi­</p><p>nações de narrativa-discurso nos doze primeiros capítulos é construída para apresentar</p><p>as boas novas de Jesus Cristo como uma visão completa, um todo evangelístico</p><p>repetido segundo uma gama de diferentes perspectivas, uma vez que o quarto</p><p>evangelho traz as várias unidades reunidas.</p><p>Embora a maioria dos comentadores afirme que João é independente dos</p><p>evangelhos sinóticos, esse consenso, de modo algum, é universal. Graças,</p><p>principalmente, à obra de Neirynck22 e de Solages,23 sem mencionar o detalhado</p><p>comentário de Barrett, uma minoria significativa não se encontra convencida de</p><p>que a independência de João em relação aos sinóticos possa ser afirmada com</p><p>tanta segurança. Talvez, a avaliação mais cuidadosa seja a de Smith (Essays, pp. 97-</p><p>172). O significado desse debate sobre a compreensão do valor histórico de João</p><p>será rapidamente investigado na próxima seção.</p><p>No perceptível pano de fundo do livro, há uma considerável diversidade de</p><p>opiniões. Ele vai desde o cenário decididamente judaico e semita (Odeberg; Schlatter)</p><p>às várias formas de gnosticismo referidas por Bultmann e Haenchen. Dodd (IFG)</p><p>opta pela influência primária da Hermética, que nossas fontes sugerem ser os</p><p>escritos de um movimento gnosticista do século II. Eles contêm as instruções de</p><p>Hermes Trismegistos (também conhecido como o deus egípcio Thoth). Poucos</p><p>22 F. Neirynck in BETL, pp. 73-106; idem, em colaboração com Joël Delobel, Thierry Snoy,</p><p>Gilbert van Belle, Frans van Segbroeck, Jean et les synoptiques: Examen critique de l ’éxègese</p><p>de M.-E. Boismard (BETL 49; Louvain University Press, 1979).</p><p>23 Mgr. de Solages, Jean et les Synoptiques (E. J. Brill, 1979).</p><p>39 In tro d u ç ã o</p><p>são os que concordam com Dodd nesse senddo. Barrett mostra-se extremamente</p><p>eclético, afirmando que as influências judaica, gnóstica, helénica e outras contri­</p><p>buíram na formação do quarto evangelho. A medida que há algum consenso, ele</p><p>se volta para o que é mais comumente percebido como o Sitz im Leben (‘o ambiente</p><p>vital’) do quarto evangelho. Muitos estudiosos de hoje defendem a posição de que</p><p>o evangelho de João foi escrito por volta do século I para fortalecer uma igreja,</p><p>provavelmente na Asia Menor, que tanto poderia estar dialogando com a sinagoga</p><p>local como ter acabado de romper esse diálogo (é provável que ‘diálogo’ não seja</p><p>o melhor termo; talvez ‘confrontação evangélica seja o que mais se aproxime do</p><p>pensamento dos estudiosos). Se essa reconstrução for correta (demonstrarei mais</p><p>adiante, no § VI, que ela não é inteiramente correta), então é possível considerar</p><p>todas as variedades de fonte e de crença que permearam o judaísmo helénico no</p><p>final do século I como parte do cenário desse pensamento. Essa abordagem, em</p><p>certa medida, é defendida por Brown, Schnackenburg e, principalmente, Martyn</p><p>{HTFG).</p><p>Quanto à abordagem dos comentadores modernos relativa ao valor histórico</p><p>do quarto evangelho, não há consenso algum. Esse campo, por exemplo, se estende</p><p>de Morris que alega, apesar do interesse de João por teologia, que a preocupação</p><p>maior dele era a fidedignidade dos testemunhos e o compromisso com a exatidão</p><p>histórica (mesmo que necessariamente seletivo); Bultmann argumenta que no</p><p>campo histórico não se aprende mais com o evangelho de João que com os sinóticos,</p><p>o simples dass (‘que’) da existência de Jesus. Ao longo do caminho podemos pausar</p><p>em Beasley-Murray que opina que há muitos fatos históricos bem-preservados</p><p>em João, mas que o evangelista às vezes diz coisas que não são historicamente</p><p>verdadeiras para preservar a veracidade teológica. Brown, Lindars e Schnackenburg</p><p>tentam avaliar individualmente cada uma das perícopes e apresentam visões um</p><p>tanto disparatadas em relação a quanto é historicamente preservado no quarto</p><p>evangelho. Barrett, embora conservador na maior parte de sua teologia, insiste</p><p>em que o evangelista simplesmente não está interessado em questões históricas,</p><p>mas conta uma história alinhada com as tradições que ele recebeu (e muitas vezes</p><p>se distancia delas) de modo a construir vários pontos teológicos. Principalmente</p><p>na narrativa da Paixão, ele está convencido de que o evangelho de João é</p><p>praticamente sem valor como documento informativo do que realmente aconteceu.</p><p>Martyn (HTFG) é tão cético que dissipa a tensão entre os clamores histórico e</p><p>teológico interpretando como ‘história’ a história da comunidade joanina: o quarto</p><p>evangelho, conforme ele acredita, conta-nos um pouco da história e da teologia</p><p>daquela comunidade, mas praticamente nada sobre a história ou a teologia de</p><p>Jesus.</p><p>Talvez se deva acrescentar que alguns autores, especialmente Dodd (HTFG),</p><p>parecem muito mais conservadores em suas apreciações históricas do que realmente</p><p>são. Em quase todas as perícopes, Dodd descobre algum cerne de verdade histórica,</p><p>mas, no geral, encontram-se muito distantes do que o texto realmente diz. Essa</p><p>distância costuma ficar escondida por trás do tom reverente da apresentação, mas</p><p>o fato é que, quando os pareceres de Dodd são expostos a uma luz mais forte,</p><p>In tro d u ç ã o 40</p><p>julga-se bastante irreal a figura de Jesus que aparece no quarto evangelho, conforme</p><p>avaliada pela ‘história que Dodd realmente ali revela. Conforme um minucioso</p><p>revisor de Dodd escreveu: “Depois de tudo ter sido dito, e cada partícula de</p><p>poeira dourada extraída, o quarto evangelho, no todo, é muito menos confiável</p><p>como fonte de informação histórica (principalmente biográfica)</p><p>que Marcos...”.24</p><p>Se é que há qualquer ‘vanguarda nos estudos atuais sobre João, ela é representada</p><p>pelos estudiosos engajados na ‘crítica histórica, ‘nova crítica’, ‘crítica literária: os</p><p>rótulos variam. O que é comum nas diversas perspectivas representadas pelas obras</p><p>prestes a serem mencionadas é a primazia de uma perspectiva sincrônica do texto:</p><p>isto é, os estudiosos que abordaremos não levantam questões sobre a história do</p><p>texto, o estado da comunidade joanina, o grau da confiabilidade histórica, quais as</p><p>fontes que podem ser identificadas, ou coisas do gênero. Em vez disso, questionam</p><p>como encontrar sentido no texto como ele se apresenta, independentemente de</p><p>qualquer referência extratextual que se possa fazer, e utilizam vários modelos diferentes</p><p>para responder a essa pergunta.</p><p>Alguns desses estudos examinam apenas parte do evangelho. Olsson, por</p><p>exemplo, submete João 2— 4 a um minucioso exame ‘estrutural’ e emerge com</p><p>observações geralmente razoáveis que não nos levam muito longe do que a exegese</p><p>tradicional produziu. Em contraste, Lona adota uma abordagem um tanto diferente</p><p>na passagem escolhida — João 8.33-56. Ele discorre duas vezes sobre ela; na</p><p>primeira, empregando ferramentas críticas mais ou menos tradicionais e, na</p><p>segunda, adotando os modelos da ‘semiótica literária’. Assim, ele pretende abordar</p><p>o texto sincronicamente, usando modelos da teoria da comunicação e da teoria</p><p>estruturalista, na tentativa de estabelecer uma convergência de interpretações</p><p>relativas ao significado de Abraão. Kermode 25 oferece um exemplo excelente de</p><p>como uma crítica literária pode tratar o Prólogo (1.1-18) como um texto que faz</p><p>parte do quarto evangelho, mas sem recorrer às especulações um tanto descontroladas</p><p>sobre um poema original que João teria tomado emprestado, em que partes dele</p><p>seriam intrusões, o que é possível inferir sobre o Sitz im Leben que produziu o</p><p>Prólogo, e assim por diante.</p><p>Outros enfocam um dispositivo retórico em particular — Duke, por exemplo,</p><p>a ironia, e van Belle, os apartes parentéticos em João. 0 ’Day persegue o uso de</p><p>ironia por João até o ponto em que se torna o local da revelação, a forma ‘como’</p><p>Jesus revelou o Pai.26</p><p>Mas, de longe, o livro mais influente e importante nessa área é Anatomy o f the</p><p>Fourth Gospel (1983), de R. Alan Culpepper. Seu objetivo é produzir a primeira</p><p>24 F. W. Beare, N TS 10, 1964, pp. 517-522. Também cf. D. A. Carson, “Historical Tradition</p><p>in the Fourth Gospel: After Dodd, What?”, in GP 2, pp. 83-145.</p><p>25 Frank Kermode, JSN T 28, 1986, pp. 3-16. Ele adotou algo da mesma abordagem, mas</p><p>com um resultado marginal, na apresentação de todo o evangelho: c f Robert Alter e Frank</p><p>Kermode, The Literary Guide to the Bible (Collins, 1987), pp. 440-466.</p><p>26 Não somente em seu livro {cf Abbreviations), mas também em JBL 105, 1986, pp. 657-</p><p>668.</p><p>41 In tro d u ç ã o</p><p>análise ampla do quarto evangelho usando as categorias da crítica retórica. Ele</p><p>insiste em que o significado “se produz a partir do movimento mental que o texto</p><p>convida o leitor a realizar, independentemente, em certa medida, das questões</p><p>concernentes às fontes e à origem”. Portanto, em capítulos sucessivos, Culpepper</p><p>leva-nos a considerações sobre o narrador e o ponto de vista’, o ‘tempo narrativo’,</p><p>o ‘enredo’, os ‘personagens’, os ‘comentários implícitos’ e ‘o leitor subentendido’.</p><p>Todas as categorias são extraídas da poética (isto é, das regras da análise de crítica</p><p>literária) da narrativa.</p><p>Talvez fique mais bem demonstrado como isso funciona na prática por meio</p><p>de um exemplo. Em seu segundo capítulo, Culpepper distingue três termos. O</p><p>autor verdadeiro refere-se à pessoa ou às pessoas que verdadeiramente escreveram o</p><p>quarto evangelho. O autor implícito “é sempre diferente do autor verdadeiro e sempre</p><p>evocado pela narrativa. O evangelho de João, portanto, tem um autor implícito</p><p>pelo simples fato de ser uma narrativa”. Esse autor implícito é uma figura ideal ou</p><p>literária que se pode inferir a partir da soma de escolhas que constituem a narrativa.</p><p>Ele ou ela é uma versão criada do autor real e, às vezes, um subconjunto do real. O</p><p>narrador é um dispositivo retórico, a voz que realmente conta a história. O narrador</p><p>pode ser dramatizado como um personagem da história; alternativamente, o narrador</p><p>pode não ser dramatizado, situação em que se torna tênue a linha que distingue o</p><p>autor implícito e o narrador, embora ela nunca seja inteiramente obliterada. O nar­</p><p>rador conta verdadeiramente a história, dirige-se ao leitor e recorre a apartes explica­</p><p>tivos — em suma, o narrador é intrusivo na narrativa.</p><p>O narrador do quarto evangelho, conforme argumenta Culpepper, adota a</p><p>onisciência como seu ponto de vista psicológico. Na crítica literária, isso não</p><p>significa que o narrador seja literalmente onisciente, como Deus, mas que ele</p><p>adota uma postura ou posição que lhe permite acesso a informações e imagens</p><p>relativas ao que os personagens pensam, sentem, pretendem, acreditam e assim</p><p>por diante. Culpepper encontra evidências para isso em passagens como 6.61;</p><p>13.28; 19.8. Similarmente, há um tipo de ‘onipresença do narrador; ele está</p><p>presente’, em certo sentido, como um observador oculto, no diálogo entre a mulher</p><p>samaritana e Jesus, pois é capaz de registrar o que aconteceu, de relatar “o que</p><p>nenhum personagem histórico poderia saber”. Além disso, esse narrador,</p><p>claramente, escreve em retrospectiva (e.g. 2.20-22; 7.39).</p><p>Culpepper, com base nessa análise, examina relacionamentos entre o narrador</p><p>e Jesus (e.g. ele considera ambos oniscientes, e observa como o narrador determina</p><p>a linguagem e o idioma que os dois utilizam com exatamente a mesma voz), e entre</p><p>o narrador e o autor implícito. Aqui, Culpepper embarca em um estudo importante</p><p>de 21.24,25. Ele se vale de 21.24 para demonstrar que o evangelista (o autor real)</p><p>escolhe identificar o autor implícito como o discípulo amado. “Quando, nos</p><p>versículos finais do evangelho, o narrador dramaticamente abre as cortinas que</p><p>encobriam o autor implícito, o leitor reconhece que o discípulo amado se encaixa</p><p>na imagem que o evangelho projeta desse autor implícito como alguém que conhecia</p><p>Jesus intimamente” (Culpepper, p. 47).</p><p>Há muito mais nesse sentido, e tudo isso merece longas discussões. Mas a</p><p>impressão dominante no que diz respeito à área de estudos sobre João hoje é a</p><p>In tro d u ç ã o 42</p><p>discordância considerável em relação ao que o texto diz ou implica, e em relação</p><p>à confusão quanto aos melhores métodos para se estudar o livro. Portanto, talvez</p><p>agora seja o melhor momento para se oferecer uma breve avaliação de alguns</p><p>desses estudos.</p><p>III. A autenticidade do quarto evangelho</p><p>Nesse estudo sobre a autenticidade’ do quarto evangelho, gostaria de incluir</p><p>uma breve discussão sobre cinco tópicos que oferecem suporte a avaliações sobre até</p><p>onde o quarto evangelho pode ser aceito no que se refere àquilo que ele se propõe a</p><p>ser: uma testemunha confiável da origem, ministério, morte, ressurreição e exaltação</p><p>de Jesus, o Messias. Tal testemunho não tem de ser desapaixonado, mas meramente</p><p>verdadeiro. Aceita-se, por exemplo, que as primeiras testemunha de Auschwitz fossem</p><p>ao mesmo tempo fidedignas e apaixonadas, mesmo que em alguns círculos elas</p><p>fossem rejeitadas de imediato em virtude de sua paixão. Mas se olharmos em</p><p>retrospectiva, uma testemunha de Auschwitz desapaixonada seria obscena. Similar­</p><p>mente, uma testemunha desapaixonada da pessoa, dos ensinamentos e da obra de</p><p>Jesus seria, necessariamente, profana. Colocar o compromisso teológico e a confiabi­</p><p>lidade histórica um contra o outro, como se fossem necessariamente mutuamente</p><p>incompatíveis, é irrealista; pior, é um convite ao profano. Em outras palavras:</p><p>Portanto, em João, não é possível dissociar a testemunha do passado e a do</p><p>presente, da mesma forma como não é possível dissociar Jesus de Nazaré do</p><p>homem e da Palavra: a vida terrena de Jesus não pode ser reduzida à de um</p><p>homem comum, porque a dimensão de eternidade sempre</p><p>deformará o molde</p><p>em que os homens tentam forçar aquela vida terrena. Além disso, o evangelho</p><p>de João não é apenas uma meditação teológica de um cristão de fé que vivia no</p><p>final do século I; ao contrário, é uma obra em que o testemunho de um homem</p><p>e o testemunho do Espírito se fundiram em um só, para revelar o verdadeiro</p><p>significado da vida terrena de Cristo (Léon-Dufour, p. 106).</p><p>í. A possibilidade de uma crítica da fonte efetiva no evangelho</p><p>de João</p><p>A recuperação das fontes do evangelho de João deve ser vista como um esforço</p><p>extremamente problemático.27 Não há motivo para se duvidar de que João tenha</p><p>usado fontes: seu colega evangelista, Lucas, certamente o fez (Lc 1.1-4), e não há</p><p>necessidade para pensar que o quarto evangelista seguiu algum curso distinto.</p><p>Entretanto, até mesmo aqui, há necessidade de precaução: o evangelho de Lucas</p><p>não se coloca como fruto de uma testemunha ocular, enquanto o de João, sim. A</p><p>questão não é se a fonte usada por João teria sido sua memória, o que, em certo</p><p>27 Para uma pesquisa útil sobre a aplicação da crítica da fonte ao quarto evangelho, tf. Smith,</p><p>Essays, pp. 39-93.</p><p>43 In tro d u ç ã o</p><p>sentido, seria verdade, mas inteiramente irrelevante, uma vez que o objetivo da</p><p>crítica da fonte não é separar as memórias do material obtido de outras maneiras,</p><p>mas o de separar os documentos escritos e a tradição oral externa que, conforme se</p><p>alega, serviram como fontes para o evangelho como o conhecemos hoje.</p><p>No entanto, independentemente de quem escreveu o quarto evangelho, a</p><p>pressuposição de que o evangelista usou fontes escritas é diferente da suposição de</p><p>que possamos recuperá-las. Uma das características do evangelho de João sobre a</p><p>qual todos concordam é que, estilisticamente, ele é produto de uma só pessoa.</p><p>Mas o aspecto que suscita dificuldade — o de que os comentários de João e as</p><p>palavras de Jesus soam da mesma maneira — também pode servir de alerta para</p><p>quem se julga capaz de distinguir diferentes fontes ocultas no texto. A unidade</p><p>estilística do livro já foi várias vezes demonstrada como uma evidência concreta</p><p>contra esta ou aquela teoria da fonte.28 Em um outro local, já discuti as principais</p><p>teorias sobre fontes produzidas no século XX e demonstrei que os métodos</p><p>utilizados e os resultados obtidos são inconsistentes, bem como que, em inúmeras</p><p>situações, a evidência mencionada como confirmação de uma fonte tem</p><p>aproveitamento melhor quando compreendida de maneira diferente.29 Hengel</p><p>questiona, com propriedade, a probabilidade de o evangelista ter assumido o</p><p>controle de algo como os chamados 'sinais da fonte’, que todos reconhecem (se é</p><p>que eles algum dia existiram) ter alardeado uma teologia radicalmente diferente</p><p>daquela do evangelista, bem como os incorporaram tão automaticamente que</p><p>poderiam ser recuperados pela erudição de hoje.30 Além disso, se João conhecesse</p><p>os Evangelhos sinóticos (cf. discussão a diante), um ponto sobre o qual todos</p><p>concordam é que a erudição atual possivelmente não seria capaz de reconstruir</p><p>nenhum parágrafo de material sinótico a partir do seu evangelho.</p><p>Uma das tentativas mais recentes e criativas de se empregar elementos estilísticos</p><p>para provar a unidade do quarto evangelho é o estudo de Poythress sobre as conjunções</p><p>gregas de, kai e oun, juntamente com o fenômeno sintático do assíndeto, embora</p><p>esse não tenha informações estatísticas nem seja devidamente valorizado.31 A freqüên­</p><p>cia de conjunções é anormalmente baixa em João; a freqüência de assíndetos é</p><p>extraordinariamente alta. Ele demonstra, até onde essas evidências o levam (e ele</p><p>tem consciência das armadilhas dos pequenos exemplos e de coisas semelhantes),</p><p>que esse teste defende uma única autoria no quarto evangelho, e a mesma autoria</p><p>para o quarto evangelho e para as cartas joaninas.</p><p>28 E. g., E. Schweizer, Ego Eimi: Die religionsgeschichtliche Bedeutung derjohanneischen Bildreden,</p><p>zugleich ein Beitrag zur Quellenfrage des vierten Evangeliums (Vandenhoeck und Ruprecht,</p><p>1939); E. Ruckstuhl, Die literarische Einheit des Johannesevangeliums (Paulus, 1951); idem,</p><p>“Joannine Language and Style”, in BETL, pp. 125-147; G. van Belle, De semeia-bron in</p><p>het vierde evangilie: Ontstaan en groei van een hypothese (Leuven University Press, 1975).</p><p>29 D. A. Carson, JBL 97, 1978, pp. 411-429.</p><p>30 Martin Hengel, “The Wine Miracle at Cana”, in L. D. Hurst e N. T. Wright (eds.), The</p><p>Glory o f Christ in the New Testament (Fs. G. B. Caird; Clarendon, 1987), p. 92.</p><p>31 Vern Poythress, N ovT 26, 1984, pp. 312-340; idem, WTJ 46, 1984, pp. 350-369.</p><p>In tro d u ç ã o 44</p><p>É esse tipo de evidência que convenceu comentadores como Brown, Lindars</p><p>e Haenchen de que a busca de fontes distintas no quarto evangelho é uma causa</p><p>perdida. E por isso que Brown prefere sua busca por tradições separáveis que ele</p><p>alega que se evidenciaram ao longo de uma certa trajetória de desenvolvimento</p><p>teológico (resumido na última seção); é por esse motivo que Lindars prefere pensar</p><p>em uma série de homilias que foram coletadas, publicadas, editadas e agregadas</p><p>durante um período de tempo. Mas como a teoria dos cinco passos de Brown é</p><p>considerada importante, é necessário enxergar que ela também é um tipo de teoria</p><p>de fonte, composta de especulações sobre o Sitz im Leben (o ambiente vital’) de</p><p>cada fonte — apenas no caso dele as fontes são vagas em relação aos limites que as</p><p>definem, e não nas fontes postuladas por Fortna. Brown, obviamente, prefere</p><p>falar sobre o desenvolvimento de ‘tradições’ que sobre a delineação de ‘fontes’.</p><p>Sempre é preciso abordar o texto de João com um bisturi literário para recuperar</p><p>aquelas tradições. Parece que algumas delas encontram-se na superfície, ligadas a</p><p>certas palavras e expressões (que as tornam muito similares às ‘fontes’ literárias),</p><p>enquanto outras são reconstruções oferecidas por Brown para explicar o que ele</p><p>acredita que gerou este ou aquele trecho do texto.</p><p>Em outras palavras, a crítica da fonte de Bultmann e Fortna deparou-se com</p><p>momentos difíceis, pois as sólidas evidências podem ser alvo de explicações muito</p><p>mais simples, enquanto a tradição comprobatória de Brown, muito mais especulativa</p><p>e muito menos controlada que a obra de Fortna, exerceu grande influência —</p><p>provavelmente, pode-se assim dizer, por ser coerente em si mesma e satisfatória, mas</p><p>completamente não-testável. Deve-se lembrar que os seis grupos que Brown acha</p><p>que o evangelho de João confronta são meras inferências do texto do evangelho.</p><p>Mas e mais, novas inferências são possíveis, e até mesmo preferíveis. E tudo nos seis</p><p>grupos de Brown, os quais não passam de inferências, encontra-se fundamentado</p><p>na inferência principal que afirma ser relativamente fácil 1er um texto que afirma ser</p><p>sobre Jesus, sua vida e circunstâncias e os oponentes do grupo (!), e essa inferência</p><p>principal é que produz o documento. Kysar (Fourth, p. 53) conclui: “Se o evangelho</p><p>se desenvolveu de maneira semelhante à sugerida por Brown e Lindars, então está</p><p>completamente fora do alcance dos estudiosos e dos historiadores de João produzir</p><p>uma tentativa de prova de que esse foi o caso”.</p><p>Há questões filosóficas relativas a essa busca descontrolada de fontes e tradições</p><p>que devem ser levantadas. Em reconstruções históricas, é importante não assumir</p><p>um modelo evolucionário “desenvolvimentista”, e pensamentos brilhantes não se</p><p>devem multiplicar além do estritamente necessário. Muitas das reconstruções</p><p>contemporâneas começam com um Jesus mal-discernível, seguido de várias fontes,</p><p>e culminam com um evangelista brilhante. Um escritor pode enaltecer o</p><p>brilhantism do evangelista ao escrever o que parece ser história, quando todos</p><p>sabem que não é: “O Evangelho parece história e o que eles fazem é a conseqüência</p><p>de um extraordinário feito retórico.”32 Pode-se pensar em uma explicação mais</p><p>32 Frank Kermode, The Genesis o f Secrecy (Harvard University Press, 1979), p. 113: também</p><p>citado por Robinson, John, p. 26 n. 89.</p><p>45 In tro d u ç ã o</p><p>simples. Quanto à suposição</p><p>do desenvolvimento evolucionário, a exasperação de</p><p>Ratzinger é compreensível:</p><p>Pode-se perceber, valendo-se apenas de alguns exemplos, como os critérios</p><p>são questionáveis. Quem defenderia que Clemente de Roma é mais</p><p>desenvolvido ou complexo que Paulo? Tiago é mais avançado que a carta aos</p><p>Romanos? Será que o Didachê é mais abrangente que as cartas pastorais?</p><p>Repare no que aconteceu depois: toda a geração dos estudiosos tomísticos</p><p>não foi capaz de apreender a grandeza de seu pensamento. A ortodoxia luterana</p><p>é mais medieval que o próprio Lutero. Mesmo no que diz respeito a grandes</p><p>personalidades, não há nada que embase essa teoria desenvolvimentista.</p><p>Gregório, o Grande, por exemplo, escreveu muito sobre Agostinho, e o conhecia,</p><p>mas, para Gregório, a audaciosa visão agostiniana é traduzida na simplicidade</p><p>do entendimento religioso. Outro exemplo: que padrão se poderia usar para</p><p>determinar se Pascal deveria ser classificado como anterior ou posterior a</p><p>Descartes? Qual dessas filosofias poderia ser considerada a mais desenvolvida?</p><p>Mais exemplos poderiam ser mencionados para ilustrar toda a história humana.</p><p>Todas as avaliações fundamentadas na teoria da descontinuidade na tradição e</p><p>na asserção de uma prioridade evolucionária do “simples” para o “complexo”</p><p>pode, dessa forma, imediatamente ser questionada por falta de fundamento.33</p><p>Isso não significa argumentar que mesmo as mentes mais brilhantes não</p><p>recorram a antecedentes históricos. Ou que as seqüências do desenvolvimento</p><p>não possam, ocasionalmente, ser delineadas. Mas deve-se estar alerta contra</p><p>reconstruções muito fáceis do desenvolvimento do pensamento cristão que, no</p><p>final das contas, não passam de um conjunto possível de inferências. Da perspectiva</p><p>de João, houve um notável desenvolvimento quanto à compreensão dos discípulos</p><p>sobre quem Jesus era, especialmente após a ressurreição e a exaltação de seu Senhor.</p><p>Mas se trata do desenvolvimento do entendimento, não de uma nova invenção</p><p>teológica. Pela constante observação da má compreensão de observadores e de</p><p>discípulos durante o ministério de Jesus, João mostra que é capaz de distinguir o</p><p>que ele e outros compreenderam “naquela época” e o que ele veio a entender</p><p>posteriormente. Além disso, ele insiste na distinção: cataloguei os dados em algum</p><p>lugar (Carson, “Mis”) verificar, e esse catálogo se constitui de uma peça de evidência</p><p>admiravelmente forte de que o evangelista estava consciente da possibilidade de</p><p>anacronismo e de que ele, por decisão pessoal, deliberadamente a evitou.</p><p>Não há, necessariamente, uma conexão entre crítica da fonte e valor histórico.</p><p>Uma peça de literatura coerente pode ser escrita por um autor e ser inteiramente</p><p>ficcional; um editor pode unir diferentes fontes, verificando-as cuidadosamente,</p><p>e produzir uma ousada reportagem histórica. Mas a busca de fontes e tradições</p><p>nos estudos sobre João, como se faz atualmente, raramente é um fim em si mesma,</p><p>33 Joseph Cardinal Ratzinger, Biblical Interpretation in Crisis (The Fourth Annual Erasmus</p><p>Lecture; The Rockford Institute, 1988), p. 10.</p><p>In tro d u ç ã o 46</p><p>mas uma forma de acesso ao desenvolvimento do pensamento cristão, ou à história</p><p>da comunidade joanina. Por mais reveladores que alguns desses estudos possam</p><p>ser, é necessário por vezes questionar não só os métodos de crítica da fonte, mas</p><p>demonstrar a admirável fragilidade das suposições subjacentes.</p><p>Nenhuma dessas discussões pretende sugerir que todos os problemas relativos</p><p>ao quarto evangelho estejam somente nos olhos do observador. Pretende-se apenas</p><p>sugerir que teorias da fonte bastante amplas são inadmissivelmente especulativas</p><p>e, muitas vezes, acabam por contradizer a única evidência textual que realmente</p><p>se tem. As mais proeminentes teorias de deslocamento, ou de relevante inserção</p><p>editorial, são rapidamente discutidas nas notas sobre 6.1,22; 7.1; 13.3lss.; 14.31;</p><p>21.1 ss.,24,25; a importância da enumeração dos dois primeiros sinais encontra-</p><p>se discutida nas notas sobre 4.43-45,54.</p><p>Parece muito mais provável que o evangelista, ele mesmo um pregador cristão,</p><p>proclamou o evangelho durante anos. Sem dúvida, ele fez anotações; sem dúvida,</p><p>aprendeu com outros e incorporou o trabalho de outros. Mas seja o que for que</p><p>ele tenha tomado de outras fontes, como todo bom pregador, ele assimilou e</p><p>tornou esse conteúdo seu, algo que o alto grau de uniformidade de estilo o</p><p>demonstra muito bem. Oportunamente, ele reuniu o material e publicou como</p><p>um livro. Algo bastante provável é que ele tenha produzido o trabalho em etapas,</p><p>mas é muito improvável que o tenha lançado em etapas, pelo menos em etapas</p><p>com um grande intervalo entre elas, pois não há qualquer evidência textual de</p><p>diferenças entre as primeiras e as últimas edições. Há certeza na comunicação,</p><p>simplicidade de enunciado e unidade de tema e de desenvolvimento, algo que a</p><p>crítica retórica certamente aplaude, bem como testifica que ele era uma testemunha</p><p>cristã e teólogo maduros. Não há necessidade de um redator eclesiástico para</p><p>finalizar: os saltos inconvenientes de uma ou outra natureza são exatamente o</p><p>tipo de coisa que um autor pode deixar na suposição de que um redator os resolva.</p><p>De acordo com a teoria da crítica da fonte, é bem provável que o redator não</p><p>consiga resolver tudo, mesmo porque são justamente os embaraços de sua atividade</p><p>redacional que fornecem as pistas para sua existência; mas nunca se explicou</p><p>adequadamente como distinguir entre as aporias (nome que se dá aos “saltos</p><p>indesejáveis”) do evangelista e as aporias de um redator hipotético em um trabalho</p><p>de uniformização estilística como esse. “Tratando a mesma questão de outra forma,</p><p>se fosse possível para um redator deixar o evangelho dessa forma, seria igualmente</p><p>possível para o evangelista fazê-lo. Não temos necessidade de pressupor um</p><p>redator.”34</p><p>2. O desafio da unidade estilística</p><p>Se a unidade estilística significa o fim da abordagem da crítica da fonte a</p><p>João, o problema inverso deve ser explorado: Por que o evangelista deveria</p><p>apresentar seu evangelho dessa maneira, isto é, de modo a revelar pouca distinção</p><p>34 Leon Morris, “The Composition of the Fourth Gospel”, in W. Ward Gasque and William</p><p>Sanford LaSor (eds.), Scripture, Tradition, and Interpretation (Fs. Everett F. Harrosin;</p><p>Eerdmans,1978), p. 172. C f também Robinson, Red, p.310.</p><p>47 In tro d u ç ã o</p><p>estilística entre suas próprias palavras e as de seu Senhor? Sete coisas devem ser</p><p>ditas:</p><p>(a) Embora o estilo do quarto evangelho seja admiravelmente uniforme, ele</p><p>não deve ser superestimado. Reynolds (pp. cxxiii-cxxv) relaciona, em João, cerca de</p><p>150 palavras que são colocadas nos lábios de Jesus, mas as quais jamais são empregadas</p><p>pelo evangelista. Muitas são suficientemente gerais e apropriadas tanto para estarem</p><p>na narrativa do evangelho quanto no discurso de Jesus. Isso não motiva nenhum</p><p>ímpeto de renovar esforços na crítica da fonte: ninguém sugere que as palavras</p><p>colocadas nos lábios de Jesus tenham vindo de uma fonte independente. Mais ainda,</p><p>também foi demonstrado que sempre que uma distribuição de uma marca estilística</p><p>é desigual (e.g. na relativa freqüência do ‘presente histórico’ em material não-discursivo</p><p>e sua relativa falta de freqüência no discurso), o padrão de dispersão é tão</p><p>independente que não oferece apoio a qualquer das teorias da fonte correntes.35</p><p>A relativa uniformidade estilística do livro não deve ser ignorada. Outros</p><p>fatores devem ser considerados.</p><p>(b) Westcott (1. cxv-cxix) defende longamente que há diferentes maneiras de</p><p>se relatar um discurso ou um diálogo extensivo, e sua opinião foi adotada por</p><p>muitos. Não se trata, apenas, de uma questão de extensão: verbatim versus versão</p><p>condensada. É também uma questão de estilo e do objetivo do relato. Em certas</p><p>circunstâncias, dar sabor a um discurso pela inclusão de muitas frases literais e</p><p>gracejos pode ser importante; em outras, pode ser muito mais estratégico concentrar</p><p>a atenção no argumento essencial e destacá-lo, mesmo</p><p>que a linguagem usada seja</p><p>um tanto diferente do discurso original. “Um orador multifacetado fornecerá [...]</p><p>material para vários estudos diferentes. Mas não seria completamente errado</p><p>concluir que o rascunho que preserva quase que literalmente os fragmentos de</p><p>suas palavras, que se prestam a ser assim preservadas, é mais verdadeiro que o</p><p>rascunho que delineia os princípios essenciais de sua doutrina. O primeiro revela</p><p>0 estilo e até mesmo as características externas; o último, revela a alma” (Westcott,</p><p>1 cxv). Westcott continua dando exemplos.</p><p>(c) O problema geral talvez aumente se pensarmos no material de João como,</p><p>primeiramente, material de sermões. E possível explicar melhor muitos pontos</p><p>pela suposição de que estamos “ouvindo” os sermões revisados de um pregador. A</p><p>repetição de: “Em verdade” (RA), nos lábios de Jesus, por exemplo (cf notas</p><p>sobre 1.51), encontrado apenas em João , é um recurso de homilética, e não causa</p><p>qualquer problema a não ser que, por alguma estranha razão, suponhamos que os</p><p>pregadores do mundo antigo só podiam recorrer a citações verbatim. Bastante do</p><p>que foi incluído, ou excluído, no evangelho de João torna-se muito mais bem</p><p>justificado se refletirmos na situação do evangelista como um pregador cristão, desde</p><p>que possamos reconstruí-lo a partir de evidências internas e externas; do que se</p><p>supormos que o evangelista está incluindo tudo o que conhece, ou está tentando</p><p>corrigir algum outro evangelho, ou simplesmente ignora algum fato vital preservado</p><p>35 John J. 0 ’Rourke, JBL 93, 1974, pp. 585-590.</p><p>In tro d u ç ã o 48</p><p>em algum lugar. A ausência de parábolas narrativas, principalmente parábolas sobre</p><p>o Reino, sugere que a audiência desse pregador não está familiarizada com o texto</p><p>apocalíptico nem é linguisticamente semita. A prevalência de uma terminologia</p><p>que tem um apelo religioso praticamente universal (cf. Comentário abaixo) sugere</p><p>que o evangelista está tentando usar uma linguagem que oferecerá o mínimo de</p><p>barreiras.</p><p>Isso não significa que João não esteja interessado, digamos, no Reino de Deus.</p><p>Inteiramente aparte da crucialidade dos poucos locais em que ele emprega a</p><p>expressão (3.3,5; cf. 18.36), o tema do Reino é poderosamente apresentado em</p><p>certas passagens (cf. esse comentário nos capítulos 18 e 19, por exemplo). Além</p><p>disso, o Reino, nos Evangelhos sinóticos, freqüentemente é um ‘símbolo tensivo’</p><p>capaz de suportar uma quantidade extraordinária de sobretons.36 Isso garante</p><p>que, em algumas passagens, por exemplo, “entrar no Reino” é indiferenciável de</p><p>“passar para a vida” (e.g. Mt 7.14,21) — e João certamente tem muito a dizer</p><p>sobre vida. Em suma, o quarto evangelista está interessado em apresentar certas</p><p>verdades a certas pessoas, e ele exerce a prerrogativa do pregador de moldar sua</p><p>mensagem de acordo com a necessidade. Sempre se comenta que o evangelho de</p><p>João, embora profundo, é mais estreito em foco que os sinóticos. Quando essa</p><p>estreiteza de foco enche uma página inteira, certas coisas, que de outro modo não</p><p>seriam vistas, vêm à luz, mas é compreensível que o leitor experimente uma relativa</p><p>sensação de deslocamento. Quando fica claro o que o pregador (ou seja, o evangelista)</p><p>está fazendo, isto é, quando a escala e sua visão tornam-se claras, a sensação de</p><p>deslocamento rapidamente evapora.</p><p>(d) Esse pregador, é claro, não é apenas um pregador. Ele se apresenta como</p><p>testemunha ocular, um intermediário confiável (cf. notas sobre 19.35; 21.24) entre</p><p>os fatos em si e o povo que precisa ouvi-los. Tampouco ele se encontra sozinho: é</p><p>consciente da necessidade da continuidade da verdade cristã (cf. notas sobre 1.14-</p><p>18) e, especialmente, do papel do Espírito em equipá-lo para sua tarefa (15.26,27;</p><p>16.12-15). No que diz respeito à compreensão de João sobre sua tarefa, podemos</p><p>comentar a liberdade que sentiu para usar sua própria linguagem, os princípios de</p><p>seleção que orientaram sua escolha de material, a natureza da audiência (e agora</p><p>do leitor) que ele previa, o foco de seus interesses, seu admirável hábito de ir ao</p><p>coração de cada ponto. Mas não devemos facilmente supor que alguém que sentia</p><p>com tanta intensidade a importância da fidelidade no testemunho (cf. 10.40-42)</p><p>inventaria narrativas e diálogos para transmiti-los como história. No que diz</p><p>respeito à maneira que essas observações contribuem para o gênero literário como</p><p>o do “evangelho”, consulte o § VI; sobre o propósito do quarto evangelho, veja a</p><p>seguir.</p><p>36 cf. J. Jeremias, New Testament Theology 1: The Proclamation o f Jesus (SCM.1971), pp. 32-</p><p>34; Norman Perrin, Jesus and the Language o f the Kingdom (SCM/Fortress, 1976), esp. pp.</p><p>29-34; R. T. France, “The Church and the Kingdom of God: Some Hermeneutical Is­</p><p>sues”, in D. A. Carson (ed.), Biblical Interpretation and the Church: Text and Context (Pa­</p><p>ternoster, 1984), pp. 30-44.</p><p>49 In tro d u ç ã o</p><p>(e) Porque o Espírito que ajuda os discípulos de Jesus presta testemunho a ele</p><p>depois da ressurreição não é outro senão o Espírito de Jesus, alguns concluem que</p><p>para o evangelista o ensino que ele recebe do Espírito se casa tanto com os</p><p>ensinamentos de Jesus que questões de anacronismo não o preocupam. E por isso</p><p>que João sente-se livre para usar o mesmo estilo e linguagem em todo seu livro. E</p><p>isso revela muito. Já vimos que João freqüentemente distingue o que os discípulos</p><p>de Jesus entenderam enquanto ele estava na carne daquilo que entenderam mais</p><p>tarde. Não se trata, simplesmente, de um ponto de interesse arqueológico do</p><p>evangelista; mas é um axioma teológico, uma vez que nenhum escritor do Novo</p><p>Testamento insiste mais que ele em que os discípulos entenderam muito pouco</p><p>até depois da ressurreição de Jesus e a descida do Espírito que ele legou (cf. Carson,</p><p>‘Mis’).37</p><p>Para João, existe apenas uma, e suprema, revelação: a revelação de Deus em</p><p>Jesus Cristo. Seja qual fosse a revelação que precedera à revelação de Jesus, ela</p><p>simplesmente o antecipou; seja qual fosse a revelação ocorrida após a morte e a</p><p>exaltação de Jesus, ela ainda é a revelação do Filho: o Espírito mostra o que é seu</p><p>e torna-o conhecido aos discípulos (16.14), trazendo à mente deles aquilo que</p><p>Jesus ensinou e auxiliando-os a compreender seu significado (14.26). Na linguagem</p><p>de Hebreus, a maior revelação é a revelação do Filho (Hb 1.1,2). Portanto, embora</p><p>João seja perfeitamente capaz de fazer distinções históricas entre o que se entendia</p><p>no início e o que foi compreendido só mais tarde, a revelação em si é, sempre, a</p><p>revelação do Filho de Deus. Sem sacrificar a integridade histórica de um relato</p><p>que insiste no desenvolvimento da compreensão ao longo do tempo, o evangelista</p><p>deve ter-se sentido livre para apresentar seu evangelho em um determinado estilo,</p><p>seu próprio estilo, precisamente porque ele traz para o presente a revelação do</p><p>Filho por inteiro, incluindo o entendimento gradual daqueles que o receberam, a</p><p>partir da posição vantajosa de alguém que recebeu o Espírito e foi comissionado</p><p>a transmitir as boas novas.</p><p>(f) As diferenças entre João e os sinóticos, por mais significativas que sejam,</p><p>não devem ser exageradas. E claro que há o ‘relâmpago joanino’ (Mt 11.27 par.),</p><p>isto é, passagens que soam muito joaninas dentro dos sinóticos: é plenamente</p><p>plausível que às vezes Jesus falasse naquilo que julgamos ser o “estilo joanino”, e</p><p>que o estilo de João era, em certa medida, influenciado pelo estilo de Jesus.</p><p>Contudo, além disso, ocorrem numerosos paralelos sutis entre João e os sinóticos.</p><p>Alguns serão destacados no Comentário. Mas mencionar os sinóticos nos leva ao</p><p>próximo ponto.</p><p>37 cf. o exaustivo estudo de van Belle sobre os ‘parênteses’ de João ou apartes criados - conforme</p><p>diz ele - para fazer o leitor acompanhar tudo, mesmo quando as pessoas que fazem parte da</p><p>narrativa não o puderam. Para uma lista complementar, cf. F. Neirynck, EphThLov 65,</p><p>1989, pp. 119-123. Mais importante ainda, Cari J. Bjerkelund (Tauta Egeneto: Die</p><p>Prãzisierungsaãtze im Johannesevangelium [WUNT 40; J. C. B. Mohr (Paul</p><p>Siebeck), 1987]</p><p>esp. pp. 133-145) sustenta que os apartes explicativos e o cumprimento das citações estão</p><p>assim unidos para mostrar o compromisso profundo de João às distinções históricas e</p><p>histórico-salvíficas.</p><p>In tro d u ç ã o 50</p><p>(g) Vários dos discursos foram apresentados, com algum grau de plausibilidade,</p><p>moldados nos comentários rabínicos da época. Esses ‘midrashim’ (como são</p><p>chamados) são tão firmemente construídos que se torna muito difícil acreditar</p><p>que não passam de falas isoladas de Jesus (e recuperáveis!) às quais adicionou-se os</p><p>pastiches. Isso leva a duas conclusões. Borgen, que demonstrou a excelente natureza</p><p>do discurso do “pão da vida” (6.26-59) como uma parte da exposição de Êxodo 16,</p><p>defende a unidade do discurso, mas não a atribui a Jesus. Hunter (pp. 97-98)</p><p>também reconhece a unidade, mas acha que não há evidências que nos impeça de</p><p>concluir que o discurso é autêntico. O que se deve acrescentar é que, garantida</p><p>sua autenticidade essencial, o discurso foi colocado nos evangelhos, nos moldes e</p><p>local em que se encontram, pelo evangelista, cujo estilo reflete tão amplamente o</p><p>todo. Algo semelhante poderia ser dito sobre a natureza midráshica de partes de</p><p>João 12, a estrutura de quiasmas de 5.19-30, a natureza coesiva do diálogo com</p><p>Nicodemos, e muito mais.</p><p>Em outras palavras, a unidade estilística do quarto evangelho, considerada no</p><p>aspecto da sintaxe e do vocabulário, argumenta a favor de um cunho autoral unificado</p><p>que torna a busca de fontes uma empreitada duvidosa. Sua integridade de</p><p>composição, considerando-se o fator coesão da argumentação em várias narrativas e</p><p>discursos, implica uma conclusão similar e sugere que a busca de declarações de</p><p>Jesus, breves e aforísticas (Jesus nunca proferiu mais que um aforisma?), é similarmente</p><p>efêmera. Concede-se ao evangelista toda licença estilística: quando se agrupam todas</p><p>as evidências, não é difícil acreditar que quando escutamos a voz do evangelista</p><p>descrevendo o que Jesus disse, estejamos escutando a voz de Jesus.38</p><p>3. A relação entre o quarto evangelho e os sinóticos</p><p>O debate sobre o relacionamento entre João e os sinóticos freqüentemente se</p><p>dá em termos de simples disjunções: ou João conhece os sinóticos e depende</p><p>deles, ou não. Mas não devemos sucumbir à tendência “de falar do conhecimento</p><p>e do uso dos sinóticos por João como se um necessariamente significasse o mesmo</p><p>que o outro, ou fosse conseqüência do outro” (Smith, Essays, p. 148). Ninguém</p><p>alega que João usou Marcos da mesma maneira que Mateus usou Marcos (desde</p><p>que se admita que a dependência entre os dois primeiros evangelhos se dê dessa</p><p>forma). Mas se a obra de Dodd (HTFG) e de outros estiverem corretas, e se João</p><p>preservar uma tradição independente, então, sempre que João e Marcos parecem</p><p>muito próximos (e.g. na ordenação dos fatos em Jo 6/Mc 6), isso poderia ser</p><p>considerado não como evidências da dependência literária direta, mas de uma</p><p>dependência da tradição oral comum e, finalmente, da ordem dos eventos.</p><p>Mas colocar as coisas dessa forma, entretanto, expõe imediatamente a comple­</p><p>xidade do assunto. A questão não pode ser resolvida simplesmente por um exame</p><p>cuidadoso de João e dos demais evangelhos. Vários outros itens encontram-se</p><p>38 Para refletir sobre o valor histórico dos discursos (ou melhor, os diálogos) em João, cf.</p><p>Robinson, Priority, cap. 7.</p><p>51 In tro d u ç ã o</p><p>atrelados à questão da dependência literária, e há controvérsias em relação a todos</p><p>eles: (a) datas de composição relativas: por exemplo, se Marcos e João foram</p><p>escritos durante os anos 60 do século I, a probabilidade de dependência literária é</p><p>menor do que se Marcos tivesse sido escrito, por exemplo, em 50 ou 55 d. C., e João</p><p>em 90 d. C . ; (b) autoria: se a questão não se refere à extensa influência originária de</p><p>antigas tradições em relativo isolamento umas das outras, mas à autoria apostólica,</p><p>isto é, Pedro está por trás da obra de João Marcos (como as evidências externas</p><p>indicam), e João por trás do quarto evangelho, então as explicações que têm por</p><p>base a “tradição oral” parecem menos plausíveis, enquanto que a probabilidade de</p><p>comunicação contínua entre amigos, como Pedro e João o eram, aumenta; (c) o</p><p>relacionamento entre os fatos e o que está contido nos evangelhos: independen­</p><p>temente de João depender de Marcos, a melhor explicação para o fato de João 6 e</p><p>Marcos 6 preservar a mesma ordem de eventos é que eles realmente aconteceram</p><p>naquela ordem.</p><p>E importante lembrar que os evangelhos foram escritos durante a vida de</p><p>algumas pessoas que conheceram Jesus pessoalmente. Os estudos nos quais a crítica</p><p>da forma e a crítica da redação se fundamentam, os trabalhos para os quais se</p><p>voltam, por meio de muitos esforços, ao delinear a origem da tradição oral’,</p><p>consistem em exames cuidadosos da transmissão de tradições dentro de uma</p><p>sociedade pré-letrada (os maoris) por 300 anos ou mais.39 Mas, nos evangelhos,</p><p>estamos lidando com uma sociedade letrada (como o prólogo de Lucas atesta),</p><p>com livros escritos nas décadas após os fatos que relatam, e não séculos depois. As</p><p>observações de Green-Armytage (também citadas por Robinson, Red, p. 256) são</p><p>um tanto insolentes e reducionistas, mas vale a pena reproduzi-las.</p><p>Existe um mundo - não digo um mundo em que todos os estudiosos vivem,</p><p>mas um no qual, em certa medida, eles, de vez em quando, se extraviam, e no</p><p>qual alguns deles parecem habitar permanentemente - e esse não é o mundo</p><p>em que vivo. Em meu mundo, se o The Times e o The Telegraph contam uma</p><p>história de um modo um pouco diferente, ninguém conclui que um deles</p><p>deve ter copiado o outro, nem que as variações nas histórias tenham algum</p><p>significado esotérico. Mas, no mundo do qual estou falando, isso seria algo</p><p>muito normal. Lá, nenhuma história deriva de fatos, mas sempre da versão</p><p>de alguém da mesma história. [...] Em meu mundo quase todos os livros,</p><p>exceto alguns daqueles produzidos por departamentos do Governo, são escritos</p><p>apenas por um autor. Naquele mundo, quase todo livro é produzido por um</p><p>comitê, e alguns deles por vários comitês. Em meu mundo, se leio que o sr.</p><p>Churchill, em 1935, disse que a Europa estava a caminho de uma guerra</p><p>desastrosa, aplaudo essa previsão. Naquele mundo, nenhuma profecia, mesmo</p><p>que vagamente expressa, é feita, a não ser depois do acontecimento. Em meu</p><p>mundo dizemos: “A Primeira Guerra Mundial aconteceu de 1914 a 1918”.</p><p>39 C.f. D. A. Carson, “Redaction Criticism: on the Legitimacy and Illegitimacy of a Literary</p><p>Tool”, in Carson/Woodbridge I, pp. 119-142, 376-381.</p><p>In tro d u ç ã o 52</p><p>Naquele mundo, dizem: “A narrativa sobre a Primeira Guerra tomou forma</p><p>na terceira década do século XX”. Em meu mundo, homens e mulheres vivem</p><p>por um tempo considerável - 70, 80, até mesmo 100 anos - e são equipados</p><p>com algo chamado memória. Naquele mundo (assim parece), eles vêm à</p><p>existência, escrevem um livro e imediatamente perecem, em um estalar de</p><p>dedos, e diz-se a seu respeito, com assombro, que “preservam traços de uma</p><p>tradição primitiva sobre coisas que aconteceram durante seu próprio período</p><p>de vida adulta.40</p><p>Em um assunto em que tanta tinta foi gasta com questões tão complexas,</p><p>será desagradável tentar uma análise rigorosa do problema em um breve comentário</p><p>como este. Não posso fazer nada além de resumir minhas conclusões:</p><p>(a) A tese de que João é literariamente dependente de um ou mais dos evangelhos</p><p>sinóticos não foi demonstrada de maneira indubitável, tampouco a tese contrária,</p><p>de que João é literariamente /«dependente dos sinóticos.</p><p>(b) A dependência literária direta não deveria ser o único assunto. Quando</p><p>vemos a liberdade de João ao citar o Antigo Testamento ou aludir a ele, percebemos</p><p>que se ele adotasse uma prática similar ao citar outras obras escritas ou ao aludir a</p><p>elas, seria extremamente difícil reconstruir qualquer parte deles a partir do</p><p>evangelho que ele escreveu. Minha opinião sobre as datas e a autoria dos evangelhos,</p><p>juntamente com o conjunto de evidências</p><p>literárias que temos (em particular os</p><p>paralelos entre João e Marcos e, em certa medida, entre João e Lucas)41 sugerem</p><p>que João leu Marcos, e, provavelmente, Lucas. Não é impossível que tenha lido</p><p>Mateus, mas é mais difícil provar isso.42 Mas se os tivesse diante dele, quando ele</p><p>escreveu o seu, ele não os consultou, ou, pelo menos, não fez uso literal deles.</p><p>João escreveu seu próprio livro. Os motivos pelos quais ele deixou de lado tanto</p><p>material serão provados adiante, e Smith está certo ao dizer que se João conhecesse</p><p>um ou mais dos sinóticos, “a questão sobre o porquê dele não ter feito maior uso</p><p>dos mesmos exige uma resposta convincente” (Essays, p. 148).</p><p>(c) A relação entre João e os sinóticos não deve ser apenas avaliada exclusiva­</p><p>mente em termos da dependência que possam ter entre si, nem em termos de suas</p><p>divergências, mas também em função de suas similaridades e conexões. Quanto</p><p>às similaridades (cf. Blomberg, pp. 156-157), não relacionamos apenas incidências</p><p>paralelas e ditos, mas toques sutis. Como incidências paralelas podemos destacar</p><p>40 A. H. N. Green-Armytage, John Who Saw a Laymans Essay on the Authorship o f the Fourth</p><p>Gospel (Faber and Faber, 1952), pp. 12-13.</p><p>41 Além das obras de Barrett, Neirynk e de Solages já citados, pode-se encontrar informações</p><p>e reflexões úteis em J. BI inzler, Johannes und die Synoptiker (Katholisches Bibelwerk, 1965);</p><p>E. F. Seigman, “St Johns Use of the Synoptic Material”, CBQ 30, 1968, pp. 182-198; e</p><p>principalmente M. E. Glasswell, “The Relationship between John and Mark”, JSN T 23,</p><p>1985, pp. 99-115.</p><p>42 Mas cf. Gerard Maier, “Johannes und Matthäus - Zweispalt oder Viergestalt des Evangeliums?”</p><p>in CP 2, pp. 267-291, que afirma haver inúmeras ligações sugestivas entre Mateus e João,</p><p>principalmente na narrativa da Paixão. Para um resumo, tf. Blomberg, p. 159.</p><p>53 In tro d u ç ã o</p><p>a unção de Jesus pelo Espírito testificada por João Batista (Mc 1.10 par. / Jo 1.32),</p><p>o contraste do batismo de João Batista com água e o batismo antecipado do</p><p>Messias com o Espírito (Mc 1.7,8 par. / Jo 1.23), o alimento dado aos cinco mil</p><p>(Mc 6.32-44 par. / Jo 6.1-15),43 e o andar sobre as águas (Mc 6.45-52 par. / Jo</p><p>6.16-21). Vários ditos (como Mt 37— 38 par. / Jo 4.35; Mc 6.4 par. / Jo 4.44; Mt</p><p>25.46 / Jo 5.29; Mt 11.25-27 par. / Jo 10.14,15; Mc 4.12 par. / Jo 12.39,40; Mt</p><p>18.12-14 / Lc 15.3-7 / Jo 10.1-15; Mt 10.40 / Mc 9.37 / Jo 12.44,45) são, pelo</p><p>menos, parcialmente paralelos, embora não atestem dependência literária decisiva.</p><p>Alguns deles encontram-se detalhados no Comentário a seguir.</p><p>Mas os paralelos mais sutis não são os menos importantes. Embora João não</p><p>relate parábolas narrativas, ele, não menos que os sinóticos, descreve Jesus com</p><p>metáforas coloridas e ditos, provenientes, muitas vezes, do mundo da natureza</p><p>(e.g. a semeadura e a colheita, 4.37; o aprendizado de Filho, 5.19,20a; ser escravo</p><p>versus filiação, 8.35; trabalhar à luz do dia, 9.4; 11.9,10; o pastor, o ladrão, o</p><p>porteiro, o curral das ovelhas lO.lss.; o grão de trigo, 12.24, a vinha e o lavrador,</p><p>15.1-6; a mulher em trabalho de parto, 16.21). Seja o que for que se entenda por</p><p>“segredo messiânico” em Marcos, o paralelo óbvio é o “mal-compreendido” tema</p><p>em João. Os quatro evangelhos mostram um Jesus com um senso de filiação</p><p>único em relação a seu Pai celestial, incluindo-se aí a atípica forma de dirigir-se a</p><p>Deus como “Aba, Pai”. Os evangelhos registram a autoridade distintiva de Jesus</p><p>em seus ensinamentos; em todos eles, Jesus refere-se a si mesmo como “Filho do</p><p>homem”, e ninguém mais usa esses termos para referir-se a ele ou a qualquer</p><p>outra pessoa (Jo 12.34 não é uma exceção verdadeira). E ao contrário daqueles</p><p>que afirmam que nos sinóticos os milagres são simplesmente produto da fé,</p><p>enquanto em João os “sinais” são o que induz à fé, a verdade é que tanto nos</p><p>sinóticos como no evangelho de João há sobreposição de determinadas perspectivas.</p><p>Nos sinóticos, os milagres não são meramente produtos da fé: eles são conseqüência</p><p>da compaixão de Jesus (Mt 9.36; 14.14; Mc 1.41; Lc 7.13), um meio de Jesus ter</p><p>crédito (Mt 11.4ss.) e uma indicação para a cruz (Mt 8.17; cf Carson, Matt, pp.</p><p>204-207). Se em João os sinais poderiam servir para trazer a fé à existência (e.g.</p><p>10.38, por exemplo), as pessoas poderiam ser repreendidas por confiar neles (4.48)</p><p>tanto quanto nos sinóticos {e.g. Mt 16.1-4), ao passo que a fé baseada na palavra</p><p>de testemunhas é preferível (Jo 20.29).44</p><p>Mais impressionante ainda são os vários locais em que João e os sinóticos</p><p>representam uma tradição interligada, isto é, onde eles reforçam ou explicam um</p><p>ao outro sem demonstrar dependência literária (principalmente cf. Morris, SFG,</p><p>43 A seqüência de eventos relacionados ao alimento dado a cinco mil pessoas e ao andar sobre</p><p>as águas é particularmente rica em paralelos entre João e Marcos, bem como é mencionada</p><p>por aqueles que insistem que João depende diretamente de Marcos. Para um ponto de</p><p>vista contrário, c f a. comparação detalhada oferecida por P. W. Barnett, “The Feeding of</p><p>the Multitude in Mark 6/John 6”, em GP6, pp. 273-293.</p><p>44 Para uma abordagem balanceada, cf. R. Kysar, em John: The Mavrick Gospel (John Knox,</p><p>1976), pp. 65-83.</p><p>In tro d u çã o 54</p><p>pp. 40-63; Robinson, John, caps. 4—6). Veja a seguir uma lista de algumas dessas</p><p>ocorrências.</p><p>(i) E necessário o relato de João a respeito de um extensivo ministério na</p><p>Judéia para explicar vários pontos dos sinóticos, o qual registra um ministério</p><p>galileu relativamente breve (cerca de um ano) e uns poucos dias em Jerusalém</p><p>antes da morte de Jesus. Por que, então, mesmo em Marcos (14.49), Jesus diz que</p><p>ensinava no templo “todos os dias”? Por que as autoridades se irritaram tanto com</p><p>ele a ponto de tramar sua execução, a não ser que tivesse estado anteriormente,</p><p>por determinados períodos, na Judéia? Similarmente, por que a viagem final rumo</p><p>ao sul teria causado tanta agitação (Mc 10.32; (f. Mt 20.17; Lc 18.31), se Jesus</p><p>não tivesse ido ao sul em ocasiões anteriores e a disposição dos líderes judeus já</p><p>fosse algo conhecido? Os quatro evangelhos trazem uma situação concreta (Jo</p><p>ll.lss.). Mesmo a habilidade de Jesus para arrebanhar um asno (Mc ll.lss.) e</p><p>para conseguir um salão mobiliado (Mc 14.12-16) é mais fácil de ser entendida se</p><p>pressupormos que ele tinha inúmeros contatos na Judéia, decorrentes de viagens</p><p>anteriores àquela província. Nos sinóticos, Jesus conhece a família de Maria e Marta</p><p>(Lc 10.38-42), mas apenas a descrição do ministério de Jesus no sul feita por João</p><p>explica como foi possível haver intimidade com uma família que vivia na Betânia.</p><p>C f também Hunter, pp. 57ss.</p><p>(ii) Uma das acusações impetradas contra Jesus em seu julgamento foi a de</p><p>que ele havia ameaçado destruir o templo (Mc 14.58 par.). Embora houvesse</p><p>poucas evidências contra Jesus em relação a esse ponto, a mesma acusação foi dita</p><p>em tom de zombaria no Calvário (Mc 15.29 par.). As mesmas palavras foram</p><p>ditas contra Estêvão (At 6.14). Mas apenas João retrata Jesus dizendo algo</p><p>semelhante (Jo 2.19), e em uma época próxima ao início de seu ministério, talvez</p><p>dois anos antes de seu julgamento - o que ajuda a explicar por que as testemunhas</p><p>não puderam juntar suas histórias.</p><p>(iii) Ainda sobre o julgamento, Marcos não apresenta razões para as autoridades</p><p>judaicas tomarem a decisão (14.64) de levar Jesus a Pilatos. E João que insiste que</p><p>eles não tinham poder para executar um prisioneiro (18.31). Algumas das questões</p><p>históricas difíceis relativas a esse assunto estão abordadas no Comentário. Deve-se</p><p>notar, contudo, que apenas João oferece uma explicação daquilo que é abordado</p><p>pelos sinóticos e oferece a base racional que faz com que seus textos tenham sentido.</p><p>(iv)Ainda em relação à narrativa da Paixão, apenas João tem a explicação</p><p>para o fato de Pedro ter entrado no pátio do sumo sacerdote (fato também relatado</p><p>pelos sinóticos: Mc 14.54,66ss. par.), momento em que ele nega Jesus (Jo 18.15,16).</p><p>(v) Na outra extremidade do evangelho</p><p>de Jesus, os relatos dos sinóticos a</p><p>respeito do chamado de Jesus endereçado a alguns discípulos (Mt 4.18ss. par) são</p><p>mais facilmente compreendidos do ponto de vista histórico, se partirmos do</p><p>princípio, com João 1, de que Jesus já havia feito um contato anterior com eles, e</p><p>que o momento decisivo e fundamental em sua relação já havia acontecido.</p><p>(vi) Se a insistência com que Jesus compele seus discípulos a partir, após</p><p>alimentar os cinco mil, enquanto ele retira-se para as montanhas para orar, parece</p><p>um tanto incongruente (Mc 6.45,46 par.), João nos dá a explicação: o povo estava</p><p>55 In tro d u ç ã o</p><p>a ponto de proclamar Jesus rei, um rei moldado por suas esperanças e expectativas,</p><p>mas não o Rei dos reis que Jesus realmente era (Jo 6.15).</p><p>(vii) Em muitos pontos, João oferece justificativas teológicas explícitas para</p><p>ações ou motivações comuns nos sinóticos, mas relativamente inexplicáveis. Consi­</p><p>deremos, por exemplo, o fato comumente notado de que os sinóticos relatam várias</p><p>expulsão de demônios, enquanto João não relata nenhum. E verdade que os sinóticos</p><p>apresentam algumas reflexões teológicas sobre o que Jesus está fazendo quando elimina</p><p>os demônios (e.g: Mt 12.25-28; Lc 11.14-26); mas é o quarto evangelho que oferece</p><p>uma “teologia do demônio” (Bispo Cassiano, SE I, p. 146; também citada por</p><p>Morris, SFG, p. 56). Os opositores de Jesus, no evangelho de João, atribuem sua</p><p>paternidade ao próprio diabo (8.44). O traidor é movido e inspirado pelo diabo</p><p>(6.70; 13.2). Embora haja três referências ao diabo como o “príncipe deste mundo”,</p><p>na derradeira batalha ele não tem poderes sobre Jesus (14.30) e é vencido por ele</p><p>(12.31; 16.11). Em suma, como sempre, João está profundamente interessado na</p><p>teologia. Se ele não relata nenhuma expulsão de demônios, não é por ignorar esse</p><p>tipo de ocorrência (!), ou por não se agradar delas, uma vez que no meio em que ele</p><p>pregava, a maioria dos exorcistas pertencia a uma conhecida classe de pagãos opera­</p><p>dores de milagres, dos quais, claramente, ele pretendia diferenciar Jesus.45 Embora</p><p>os sinóticos (principalmente Lucas) dediquem pouco espaço à oração, passagens</p><p>como Mateus 7.7,8; 17.20; Marcos 11.22-24, que prometem enormes benefícios</p><p>da oração, são teologicamente aprofundadas por passagens como João 14.13,14;</p><p>15.7,8,16; 16.23,26, em que as bênçãos e as promessas, bem como os benefícios da</p><p>oração são mais integralmente experimentados quando estas são feitas “em nome de</p><p>Jesus”, para aumentar a união com ele, para se alcançar o maior objetivo da oração:</p><p>que o Pai seja glorificado no Filho.46</p><p>Esse padrão de inter-relacionamento também funciona no sentido contrário,</p><p>embora isso não tenha sido adequadamente explorado. Em outras palavras, se</p><p>João, com freqüência, explica algo dos sinóticos, os sinóticos, a miúde, oferecem</p><p>informações que nos permitem compreender melhor o quarto evangelho. Em</p><p>João 18— 19, a narrativa muda tão rapidamente do ambiente judaico para a corte</p><p>romana que é difícil perceber qual ação judicial os judeus empreenderam, se é que</p><p>empreenderam alguma. Os sinóticos têm a resposta. Embora o Prólogo de João</p><p>anuncie que Jesus é a Palavra que estava com Deus e era Deus, e que agora se</p><p>tornou carne, e embora seu evangelho se refira, de forma agradável, à mãe de Jesus</p><p>(2.1-5,12; 19.25-27), e mesmo a seu “pai e sua mãe” (6.42), nada explica, mesmo</p><p>que remotamente, o meio pelo qual aquele que compartilhou da glória do Pai</p><p>antes da criação do mundo (17.5) tornou-se filho de Maria. No que se refere a</p><p>45 Incidentalmente, essa sugestão não prejudica a tese desse comentário de que o quarto</p><p>evangelho foi escrito para evangelizar os judeus da dispersão, os prosélitos e as pessoas</p><p>tementes a Deus ( t f § VI, acima); (f. Sceva e seus filhos, Atos 19.13-16.</p><p>46 Cf. M. M. B. Turner, “Prayer in the Gospel and Acts,” em D. A. Carson (ed.), Teach Us To</p><p>Pray: Prayer in the Bible and the World (Paternoster/Baker, 1989), cap. 4.</p><p>In tro d u ç ã o 56</p><p>esse tópico, as narrativas de Mateus e Lucas são muito mais esclarecedoras; além</p><p>disso, existe uma possibilidade (embora não seja provável) de que foram usados</p><p>por João para injetar ironia em seu texto em 6.42, 7.27,42. Mesmo as palavras de</p><p>Jesus relatadas em 4.44 (“O próprio Jesus tinha afirmado que nenhum profeta</p><p>tem honra em sua própria terra”), que mostram tantas dificuldades em seu contexto</p><p>no evangelho de João (c f as notas de Comentário), são consideradas palavras duras</p><p>por se encontrarem, também, em Mateus 13.57. Por que Filipe aparentemente</p><p>hesita em levar os gentis a Jesus em João 12.21,22, consultando André antes de</p><p>fazê-lo? O quarto evangelho não oferece uma resposta clara. Mas é bem provável</p><p>que uma restrição anterior de Jesus ao ministério de seus discípulos entre os judeus,</p><p>não relatada em João (cf. Mt 10.5, “Não se dirijam aos gentios...”), ainda estivesse</p><p>na mente de Filipe, incitando-o à moderação.</p><p>Muito mais se poderia dizer sobre o inter-relacionamento entre o quarto evan­</p><p>gelho e os sinóticos. Justamente porque não se pode provar nenhuma dependência</p><p>literária direta, porque não se pode demonstrar nenhuma fraude, seria artificial</p><p>pensar que João traz informações de modo a escapar de alguma dificuldade que ele</p><p>encontrou em relação aos sinóticos. Tampouco, trata-se de um caso de harmonização</p><p>perversamente conservadora, como se João não pudesse ser adequadamente lido</p><p>sem referência aos sinóticos, e vice-versa, resultando em um achatamento reducionista</p><p>da testemunha individual de cada evangelho.47 Mais exatamente, é a natureza inci­</p><p>dental desses padrões de inter-relacionamento que tem valor para o historiador.</p><p>Não estou afirmando que as verdades teológicas de João, juntamente com sua paixão</p><p>narrativa, não possam ser apreciadas sem a leitura dos sinóticos, ou que os pontos</p><p>teológicos que os sinóticos mostram quando descrevem o chamado dos discípulos</p><p>não possam ser compreendidos sem que se reporte ao que João diz a respeito disso.</p><p>Na verdade, estou sugerindo que quanto ao aspecto histórico, o padrão é muito</p><p>maior e complexo que qualquer evangelho sugere. Algo de tamanha complexidade</p><p>pode ser delineado pelo exame da natureza inter-relacionada das diferentes</p><p>apresentações dos evangelhos. O resultado é o apreciável sentido histórico de várias</p><p>passagens rapidamente escritas por críticos com pensamentos diferentes.</p><p>(d) As lições compiladas a partir desse padrão de tradições inter-relacionadas</p><p>têm alguma ligação na grande variedade de contradições tanto cronológicas como</p><p>de outra natureza existentes entre João e os sinóticos. Em especial, deve-se sempre</p><p>investigar se existe uma realidade histórica significativa que tanto apóie o</p><p>testemunho de João como de um ou mais dos sinóticos. Esse tipo de consideração</p><p>foi levado em conta no Comentário que se segue. Para discutir a compreensão de</p><p>João Batista de quem ele era, cf. notas sobre 1.21, do “Pentecostes joanino”, cf.</p><p>notas sobre 20.17-23; da limpeza do templo, cf. notas sobre 2.12-22; sobre as</p><p>dificuldades relativas à narrativa da Paixão, cf. notas sobre João 18— 19; e</p><p>particularmente no que tange aos problemas cronológicos decorrentes da relação</p><p>47 Veja um tratamento adequado da harmonização, cf. Craig L. Blomberg, em “The Legiti­</p><p>macy and Limits of Harmonization”, em Carsom/Woodbridge II, pp. 135-174.</p><p>57 In tro d u ç ã o</p><p>da narrativa da Paixão de João com os sinóticos, cf. notas sobre 13.1, 27; 18.28;</p><p>19.14,31,36, 42.</p><p>Alguns exemplos podem ser úteis. Já observamos que a longa lista de confissões</p><p>cristológicas encontra-se explicada em João 1 de maneira variada. Certamente,</p><p>essas primeiras confissões são um tanto diferentes dos testemunhos dos sinóticos,</p><p>em que a confissão de Filipe de Cesaréia (Mc 8.27-30 par.) é central no</p><p>desenvolvimento da narrativa. Recordamos a teoria de Brown de que João coloca</p><p>todas essas confissões cristológicas no primeiro capítulo, pois, silenciosamente,</p><p>está reprovando as outras comunidades cristãs por considerar apenas esses padrões</p><p>confessionais,</p><p>enquanto ele insiste em algo a mais: a confissão de Jesus como</p><p>Deus - a confissão máxima da missão do Salvador (20.28).</p><p>A teoria de Brown apresenta mais dificuldades que as resolve. De qualquer</p><p>forma, se ouvirmos João e os sinóticos com simpatia tanto histórica quanto teológica,</p><p>uma resolução simples se apresenta. Por si só, o relato de João tem um bom sentido</p><p>histórico. A razão pela qual os discípulos de João Batista afastaram-se dele, em seu</p><p>momento máximo de poder e influência, e transferiram sua aliança para alguém da</p><p>Galiléia, ainda desconhecido, é mais fácil de entender por meio da explicação de</p><p>João: o próprio João Batista declarou quem era Jesus, insistindo que ele mesmo</p><p>viera como seu precursor. Aqueles mais afinados com João Batista, mais afeitos a sua</p><p>mensagem, seriam os mais prováveis seguidores de Jesus, e pela razão já apresentada:</p><p>eles acreditavam ser ele o Messias, o Rei de Israel, o Filho de Deus (uma categoria</p><p>que nossas fontes declaram servir como designação do “Messias”, cf. notas sobre</p><p>1.49). Mas isso não significa que os novatos seguidores de Jesus tivessem um entendi­</p><p>mento profundo desses títulos: dos quatro evangelistas, João é que mais persistente­</p><p>mente registra o quanto os primeiros discípulos não compreendiam as coisas direito.</p><p>E tudo isso, conforme já afirmei, faz bastante sentido.</p><p>Mas as apresentações sinóticas também o fazem. O que se espera é que os</p><p>discípulos de Jesus crescessem no entendimento de quem ele era. Constantemente</p><p>atônitos pelo tipo de “Messias” que ele se revelava, com o tempo se convenceram</p><p>de que ele não era outro senão o Messias, a esperança de Israel. Mas mesmo isso</p><p>estava longe de ser uma crença cristã profunda: a atitude de Pedro a seguir (Mc</p><p>8.31-34 par.) é dizer a Jesus que as profecias sobre sua morte iminente eram</p><p>inadequadas ao Messias que eles estavam seguindo. Portanto, os sinóticos mostram</p><p>um entendimento crescente, mas também a grande incompreensão que reinava</p><p>no coração a respeito de toda a crença em Jesus experimentada anteriormente a</p><p>sua morte e ressurreição.</p><p>A sobreposição de ambas as visões de realidade também produz bons</p><p>resultados. O evangelista que mais rapidamente apresenta os títulos cristológicos,</p><p>mais claramente enfatiza a falta de entendimento e a confusão dos seguidores de</p><p>Jesus; os evangelistas que registram sua crescente compreensão, falam menos sobre</p><p>os passos iniciais dos discípulos, mas mostram a que profundidade chegava a</p><p>dificuldade de entendimento. A apresentação de João não parece mais não-histórica;</p><p>ela é apenas parte de realidades históricas mais abrangentes.</p><p>In tro d u ç ã o 58</p><p>Mas isso não significa que devamos constantemente nos referir aos sinóticos</p><p>para compreendermos João. Sobrepor ambas as visões nos dá acesso a certas realidades</p><p>históricas. Devidamente manipuladas, também nos capacitam a discernir o que é</p><p>peculiarmente joanino, além de entender com maior sensibilidade exatamente o</p><p>que o evangelista quer dizer. Sua decisão de apresentar seu evangelho dessa maneira</p><p>- ele constantemente mostrava a incompreensão dos discípulos e de outros e explicava</p><p>o que só mais tarde foi entendido (e.g; 2.19-22; 3.3-5,10; 6.32-35,41,42; 7.33-36;</p><p>8.18-20,27,28; 10.1-6; 11.21-44, 49-53; 12.12-17; 13.6-10, 27-30; 16.1-4, 12-</p><p>15; 18.10,11; 19.14; 20.3-9) - permite-lhe trabalhar aspectos distintos: vale-se da</p><p>ironia para fazer seus leitores enxergarem, reiteradamente, que os discípulos mais</p><p>criam que conheciam, que Caifás mais profetizou que raciocinou, que Pilatos pronun­</p><p>ciou veredictos que foram além do que poderia imaginar. A narrativa se desenvolve</p><p>como uma tragédia grega, seguida pelo leitor passo a passo, mesmo quando os par­</p><p>ticipantes não conseguem entender direito aquilo que estão confessando. E depois,</p><p>diferentemente das tragédias gregas, há triunfo, glorificação: a suprema ironia é que</p><p>na ignomínia e derrota da cruz, o plano de Deus obtém sua maior vitória, uma</p><p>vitória planejada antes da criação do mundo.</p><p>Embora as características cristológicas distintivas de João não possam ser negadas,</p><p>elas também não devem ser exageradas. Na verdade, apenas este evangelho designa,</p><p>explicitamente, Jesus de “Deus” (1.1,18; 20.28), mas ele insiste não só na humanidade</p><p>de Jesus como em sua profunda subordinação ao Pai (ç/f, principalmente, notas</p><p>sobe 5.16-30).48 Contrariamente, os sinóticos, em vez de retratar Jesus como homem,</p><p>apresentam-no como aquele que tem o direito de perdoar pecados (Mc 2.1-12 par.</p><p>- Quem pode perdoar pecados, a não ser somente Deus?) e relatam parábolas em</p><p>que Jesus claramente assume o papel metafórico comumente atribuído a Deus no</p><p>Antigo Testamento. É provável que Mateus e Lucas não pudessem pensar em Jesus</p><p>como um simples mortal: sua perspectiva em relação a sua concepção virginal</p><p>demonstra que o mais profundo entendimento do que significava para Jesus ser o</p><p>“Filho de Deus” estava atrelado ao mistério de seu nascimento (cf. Lc 1.32,35).</p><p>Jesus pode ser Filho de Davi (Mt 1.1), mas ele também é “Emanuel”, “Deus conosco”</p><p>(Mt 1.23). Os evangelhos sinóticos apresentaram a semente do pleno florescimento</p><p>do entendimento da encarnação que viria mais tarde; mas a semente está lá, o código</p><p>genético completo para o crescimento que, depois, acontece.49 Se João nos permite</p><p>48 Confira sobre a humanidade de Jesus no evangelho de João, cf. P. Pokorny, N TS 30, 1984,</p><p>pp. 217-228;Thompson; Carson, pp.146-160; Panimolle, pp. 100-118; Morris, JC, pp.</p><p>43-67; novamente em oposição a Kãsemann, que afirma que a evidência da humanidade de</p><p>Jesus em João não é nada mais que os adornos necessários para assegurar uma cristologia</p><p>docética.</p><p>49 Aprecie um tratamento confiável desse crescimento orgânico da cristologia, cf. I. Howard</p><p>Marshall, The Origins o f New Testament Christology (IVP, 1976; Apollos, 21990); C. F. D.</p><p>Moule, The Origin o f Christology (Cambridge University Press, 1977); e vários ensaios de</p><p>H. H. Rowdon (ed.), Christ the Lord (IVP, 1982).</p><p>59 In tro d u ç ã o</p><p>ver um pouco mais da flor que desabrocha, é por ser mais generoso em apartes</p><p>explicativos que revelam para o leitor o que realmente está acontecendo.</p><p>Mesmo as declarações: “Eu sou”, não constituem o problema histórico que</p><p>parecem ser à primeira vista. Elas são, é claro, muito variadas50, como o Comentário</p><p>mostrará. A clara afirmação de Jesus de sua condição messiânica em 4.26 (“Eu, que</p><p>estou falando com você”), a qual contrasta fortemente com os circunlóquios e a lin­</p><p>guagem carregada de símbolos de tantos pronunciamentos sinóticos, acabam por</p><p>revelar a identidade do interlocutor: uma mulher samaritana, que provavelmente</p><p>não tinha as mesmas expectativas políticas atreladas às idéias de messiado de vários</p><p>grupos judaicos do século I. João também relata que Jesus recorria a uma linguagem</p><p>circunspeta quando estava na Judéia (e.g. 7.28-44; 10.24-29). A maioria das</p><p>declarações: “Eu sou”, em João, tem algum tipo de explicação: “Eu sou o pão da</p><p>vida” (6.35), “Eu sou o bom pastor” (10.11), “Eu sou a videira verdadeira” (15.1).</p><p>Elas são evidentemente metafóricas, e embora para leitores atuais sejam relativamente</p><p>claras, para os primeiros leitores foram difíceis e confusas (6.60; 10.19; 16.30-32):</p><p>os líderes religiosos não diziam esse tipo de coisa.51 Em vez de ocorrências de uma</p><p>forma absoluta de: “Eu sou”, que pode remeter ao uso que Isaías faz da mesma ex­</p><p>pressão como uma referência a Deus (e.g. Is 43.10; 47.8,10, principalmente LXX),</p><p>sua transparência não é tão grande assim (cf. notas sobre 6.20; 8.28,58), e de alguma</p><p>forma têm paralelo em Marcos 6.50; 13.6. E se a mais dramática das declarações</p><p>presentes em João, “Eu lhes afirmo que antes de Abraão nascer, Eu Sou!” (8.58),</p><p>não conta com paralelo explícito, ela faz uma afirmação radicalmente superior ao</p><p>retrato sinótico de Jesus, que não só julga as interpretações judaicas da Lei como</p><p>radicalmente revoga partes dela (Mc 7.15-19), enquanto sustenta que ela se cumpre</p><p>nele (Mt 5.17ss.); que perdoa pecados (Mt 9.1ss.) e insiste</p><p>discernir o amor (3.16) e a ira (3.36) de Deus que se aproximaram</p><p>de nós por meio da vinda do Filho, estarei profundamente agradecido.</p><p>Soli Deo gloria.</p><p>D. A. Carson</p><p>Abreviações</p><p>A21</p><p>AB</p><p>Abbott</p><p>An. Bib</p><p>ANRW</p><p>Appold</p><p>AEC</p><p>ARA</p><p>ARC</p><p>Aram.</p><p>AusBibRev</p><p>AV</p><p>AVR</p><p>B.</p><p>BA</p><p>BAGD</p><p>Barclay</p><p>Barrett</p><p>Barrett, Essays</p><p>Barrett, GJJ</p><p>Barrett, HSGT</p><p>Barth</p><p>Bauer</p><p>BBB</p><p>Almeida século 21</p><p>Anchor Bible</p><p>E. A. Abbott, Joahannine Grammar (Adam e Charles Black, 1905).</p><p>Analecta Biblica</p><p>Aufitieg und Niedergang der römischen Welt</p><p>Mark L. Appold, The Oneness Motif in the Fourth Gospel (WUNT</p><p>1; Tübingen: J. C. B. Mohr [Paul Siebeck], 1976).</p><p>Almeida Edição Contemporânea</p><p>Bíblia Almeida Revista e Atualizada</p><p>Bíblia Almeida Revista e Corrigida</p><p>Aramaico</p><p>Australian Biblical Review [Revisão Bíblica Australiana]</p><p>Authorised Version</p><p>Almeida Versão Revisada de acordo com os melhores textos grego</p><p>e hebraico</p><p>Talmude babilónico</p><p>Biblical Archeologist</p><p>W. 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Bultmann, The Gospel of John: A Commentary, translated by G. R.</p><p>Beasley-Murray, R. W. N. Hoare, and J. K. Riehes (Blackwell, 1971).</p><p>Bürge G. M. Burge, The Anointed Community. The Holy Spirit in the</p><p>fohannine Tradition (Eerdmans, 1987).</p><p>BV Biblia Viva</p><p>BZ Biblische Zeitschrift</p><p>Calvino Joäo Calvino, Calvins Commentaries: The Gospel according to St John,</p><p>2 vols., trad. T. H. C. Parker (Oliver and Boyd, 1959-61).</p><p>Carson D. A. Carson, Divine Sovereignty and Human Responsability: Biblical</p><p>Perspectives in Tension (Marshall, Morgan and Scott, 1981).</p><p>Carson, FWD D. A. Carson, The Farewell Discourse and Final Prayerof Jesus (Baker,</p><p>1980).</p><p>Carson, Matt D. A. Carson, “Matthew”, The Expositors Bible Commentary, vol. 8</p><p>(Zondervan, 1984).</p><p>Carson, “Mis” D. A. Carson, “Understanding Misunderstandings in the Fourth</p><p>Gospel”, TynnB 33 (1982), pp. 59-89.</p><p>Carsom, “OT” D. A. Carson, “John and the Johannine Episdes”, em D. A. Carson</p><p>e H. G. M. Williamson (eds.), It Is Written: Scripture Citing Scrip</p><p>ture. Essays in Honour of Barnabas Lindars, SSF (Cambridge Univer­</p><p>sity Press, 1988), pp. 245-264.</p><p>Carson, D. A. Carson, “The Purpose of the Fourth Gospel: John 20.30-31</p><p>“Purpose” Reconsidered, JBL 108 (1987), pp. 639-651.</p><p>Carson, Wood- D. A. Carson e John D. Woodbridge (eds.), Scripture and Truth (IVP/</p><p>bridge I, II Zondervan, 1983); idem, Hermeneutics Authority, and Canon (IVP/</p><p>Zondervan, 1986).</p><p>CBA Catholic Biblical Association [Associação Bíblica Católica]</p><p>CBQ Catholic Biblical Quarterly</p><p>CBQMS Catholic Biblical Quarterly Monograph Series</p><p>Clark G. H. Clark, The Johannine Logos (Presbyterian and Reformed Pu­</p><p>blishing Company, 1972).</p><p>ConNT Coniectanea Neotestamentica</p><p>CTM Concordia Theological Monthly</p><p>CTR Criswell Theological Review</p><p>Cullmann O. Cullmann, The Johannine Circle (ET SCM, 1976).</p><p>Culpepper R A. Culpepper, Anatomy of the Fourth Gospel: A Study in Literary</p><p>Design (Fortress, 1983).</p><p>Culpepper, JS R. A. Culpepper, The Johannine School (Scholars Press, 1975).</p><p>Daube D. Daube, The New Testament and Rabbinic Judaism (Athlone Press</p><p>1956).</p><p>14</p><p>Dauer</p><p>Davey</p><p>Davies</p><p>de Jonge</p><p>de la Potterie</p><p>Derrett</p><p>Dodd, HTFG</p><p>Dodd, IFG</p><p>Dods</p><p>Duke</p><p>Dunn, Making</p><p>Edersheim</p><p>EDT</p><p>EGT</p><p>Eller</p><p>EP</p><p>EphThLov</p><p>ExpT</p><p>Fenton</p><p>Ferraro</p><p>Ferraro, Spirito</p><p>Fischer</p><p>FN</p><p>Forestell</p><p>Fortna</p><p>Franck</p><p>A. Dauer, Die Passionsgeschichte im Johannesevangelium: Eine</p><p>traditionsgescichtliche und theologische Untersuchung zu Joh 18,1-19,30</p><p>(München: Kösel Verlag, 1972).</p><p>J. E. Davey, The Jesus o f St John (Lutterworth, 1958).</p><p>W. D. Davies, The Gospel and the Land: Early Christianity and Jewish</p><p>Territorial Doctrine (Universidade da Califórnia, 1974).</p><p>M. de Jonge, Jesus: Stranger from Heaven and Son of God (Scholars</p><p>Press, 1977).</p><p>I. de la Potterie, La vérité dans Saint Jean, 2 vols. (Roma: Biblical</p><p>Institute Press, 1977).</p><p>J. Duncan M. Derrett, Law in the New Testament ((Darton, Longman</p><p>and Todd, 1970).</p><p>C. H. Dodd, Historical Tradition in the Fourth Gospel (Cambridge</p><p>University Press, 1963).</p><p>C. H. Dodd, The Interpretation of the Fourth Gospel, (Cambridge</p><p>University Press, 1953).</p><p>Marcus Dods, The Gospel of St. John, EGT.</p><p>P. Duke, Irony in the Fourth Gospel (John Knox Press, 1985).</p><p>J. D. G. Dunn, Christology in the Making: A New Testament Inquiry</p><p>into the Origins of the Doctrine of the Incarnation (SCM, 1980).</p><p>Alfred Edersheim, The Life and Times of Jesus the Messiah, 2 vols.</p><p>(Longman, Green and Co., 1900).</p><p>W. Eiwell (ed.), Evangelical Dictionary of Theology (Marshall, Mor­</p><p>gan and Scott, 1985/Baker, 1984).</p><p>W. Robertson Nicoll (ed.), The Expositor’s Greek New Testa­</p><p>ment, 5 vols. (Hodder and Stoughton, 1897-1910).</p><p>Vernard Eller, Beloved Disciples: His Name,</p><p>que a vida eterna de uma</p><p>pessoa depende da obediência a ele (Mt 7.21-23); que pede lealdade que supera a</p><p>santidade dos laços de família (Mt 10.37-39; Mc 10.29,30) e insiste que ninguém</p><p>conhece o Pai senão aqueles para os quais o Filho o revela (Lc. 10.22); que oferece</p><p>descanso aos cansados (Mt 11.28-30) e salvação para os perdidos (Lc 15); que faz</p><p>calar a natureza (Mc 4.39) e vence a morte (Mt 9.18-26). Essa lista de feitos, em</p><p>alguns casos, pode encontrar paralelos nos profetas ou nos apóstolos, mas sua</p><p>combinação, só encontra paralelo em Deus.52</p><p>50 cf. Philip B. Harner, The 7 arriofthe Fourth Gospel (Fortress, 1970).</p><p>51 A maioria dos pretensos paralelos remonta a fontes gnósticas e herméticas dos séculos II e III</p><p>(ou mesmo depois). As fontes mais próximas, no tempo, a João, pertencentes à primeira</p><p>metade do século I, são palavras da mítica deusa egípcia Isis, que era popular no mundo de</p><p>língua grega: “Eu sou aquela que descobriu o fruto para o homem”; “Eu sou aquela chamada</p><p>deusa entre as mulheres”; (cf. NewDocs 1, §2). Contudo, essas declarações não são grandemente</p><p>metafóricas e, de qualquer forma, não remetem a ressonâncias de declarações do Antigo</p><p>Testamento presentes em João.</p><p>52 Para uma justificação proveitosa das declarações: “Eu sou”, em João, cf. E. Stauffer, Jesus</p><p>and His Story (SCM, 1960), pp. 142-159. Sobre a questão bem mais atual de como os</p><p>estudiosos contemporâneos podem falar adequadamente sobre o “Jesus histórico” e</p><p>reconstruir algo de sua “história”, cf. o ensaio de N. T. Wright, SJT39, 1986, pp. 189-210.</p><p>In tro d u ç ã o 60</p><p>Em suma, o relacionamento variado que João desfruta com os sinóticos longe</p><p>de colocar em questionamento a autenticidade essencial do quarto evangelho,</p><p>pois, em inspeção cuidadosa, ele revela oferecer-lhes suporte ou levá-los em conta</p><p>em boa medida.</p><p>4. Reflexões sobre o pano de fundo conceituai</p><p>A riqueza de conceitos que vários estudiosos ofereceram em relação ao pano</p><p>de fundo do quarto evangelho - o gnosticismo, a hermética, o filósofo Fílon, uma</p><p>ou duas pitadas de judaísmo palestino, o judaísmo helenístico e outros mais - tem</p><p>um importante significado na maneira como vemos o cenário de João, a Palestina</p><p>dos tempos de Jesus. Foi-se o tempo (como já vimos) em que o quarto evangelho</p><p>era atribuído à influência sincrética do helenismo sobre o cristianismo nascente: o</p><p>“novo olhar” promovido pela descoberta dos pergaminhos do Mar Morto forçou</p><p>todos os entusiásticos defensores da influência helenística a fazer uma pausa. Mesmo</p><p>assim, muitos estudiosos ficaram confortáveis com a abordagem de Barrett, que</p><p>tanto em sua Introdução (pp. 27-41) como no Comentário defende que uma rica</p><p>diversidade de influências não-cristãs foi incorporada à essência desse evangelho,</p><p>oferecendo-lhe suas ênfases e forma peculiares.53</p><p>Certamente, isso é parcialmente correto, além de potencialmente enganoso.</p><p>Uma razão pela qual os estudiosos encontram paralelos a João em uma grande</p><p>diversidade de literatura está em seu vocabulário e declarações vigorosas. Palavras</p><p>como luz, trevas, vida, morte, espírito, palavra, amor, acreditar, água, pão, limpar,</p><p>nascimento, filhos de Deus podem ser encontradas em quase todas as religiões.</p><p>Perceberemos que, com freqüência, referem-se a coisas diferentes de religião para</p><p>religião, mas o vocabulário é tão popular como a religião em si. Talvez em nenhum</p><p>outro lugar a importância desse fenômeno tenha sido tão claramente colocada</p><p>que em um pouco conhecido ensaio de Kysar.54 Este compara os estudos de C.</p><p>H. Dodd e Rudolf Bultmann sobre o Prólogo (Jo 1.1-18), ressaltando em par­</p><p>ticular a lista de possíveis paralelos que cada um dos dois estudiosos traça para</p><p>cada frase concebível naqueles versículos. Dodd e Bultmann, individualmente,</p><p>tecem mais de trezentos paralelos, e a sobreposição, em suas listas, é de apenas 7%.</p><p>O risco do que Sandmel chama de “paralelomania” torna-se lamentavelmente</p><p>óbvio.55 Manson vai ainda mais longe e escreve:</p><p>De fato, quando se considera o material citado para explicar João, pode-se</p><p>muito bem começar a pensar que João não era nada além do que uma visão</p><p>de toda a cultura e religião do mundo antigo. Atrevo-me a duvidar do valor</p><p>53 Para um resumo dos paralelos mais freqüentes, cf. Beasley-Murray, pp. liii-lxv; para uma</p><p>análise responsável sobre a mudança da opinião dos estudiosos sobre o background de João,</p><p>cf. W. F. Howard, The Fourth Gospel in the Recent Criticism and Interpretation (revisado por</p><p>C. K. Barrett; Epworth, 1955), pp. 144-163; e principalmente Kysar, Fourth, pp. 102-</p><p>146.</p><p>54 Robert Kysar, Canadian Journal o f Theology 16, 1970, pp. 250-255.</p><p>55 Samuel Sandmel, JBL 81, 1962, pp. 2-13.</p><p>61 In tro d u ç ã o</p><p>deste método comparativo. ... [O] mero amontoar de paralelos verbais pode</p><p>ser mais um estorvo do que uma ajuda.</p><p>O pano de fundo fundamentalmente judeu, bem como o do Antigo Testa­</p><p>mento, no evangelho de João é cada vez mais reconhecido.56 O que chamamos de</p><p>Antigo Testamento é o que ele repetidamente cita e ao que ele repetida e explicita­</p><p>mente alude (e.g. com referências ao tabernáculo, à escada de Jacó, ao poço de Jacó,</p><p>ao maná, ao sábado, e assim por diante). A grande exatidão das observações topo­</p><p>gráficas do evangelista, todas da Palestina,57 comprovam, pelo menos, exposição ao</p><p>pensamento judeu da Palestina. Barrett (p. 121) acredita que isso apenas indica que</p><p>o evangelista valeu-se de alguma fonte palestina notavelmente precisa. À parte das</p><p>complexas questões sobre a autoria desse evangelho {cf. § IV, abaixo), mesmo se</p><p>admitirmos que o próprio evangelista não tinha conhecimento detalhado da</p><p>topografia palestina, o fato de ele ter acesso às boas informações topográficas sobre</p><p>locais da Palestina, nomes e descrições, como as referências ao tanque próximo à</p><p>porta das Ovelhas, 5.2, ao tanque de Siloé, 9.7, ou Enom, perto de Salim, 3.23,</p><p>justificam nossa suposição de que ele poderia ter informações acuradas sobre outros</p><p>aspectos relativos ao ministério de Jesus. E mais fácil ainda acreditar que o próprio</p><p>autor era um judeu da Palestina.</p><p>Não menos importante é a forma com que o evangelista repetidamente insiste</p><p>em que o que ele está escrevendo é produto não apenas de teologia, mas de</p><p>testemunho (cf. principalmente Boice). A questão sobre o que é um “evangelho”, a</p><p>que gênero pertence, é extraordinariamente difícil,58 mas a tranqüilidade com</p><p>que certos estudiosos simplesmente admitem que todos os antigos “biógrafos” e</p><p>“historiadores” sentiam-se livres para criar falas e colocá-las nos lábios de seus</p><p>heróis e para mesclar referências históricas e anacrônicas, sem qualquer preocupação</p><p>com as conseqüências, é um tanto desconcertante. Embora alguns escritores antigos</p><p>tomassem essas liberdades, desenvolveu-se no século I um conhecimento sofisticado</p><p>sobre a natureza da história, mesmo que fosse concebida, de forma um tanto</p><p>diferente, do que no meio dos historiadores de hoje. As abordagens mais conserva­</p><p>doras da história enfatizam a importância do testemunho ocular em relação aos</p><p>eventos descritos, a importância de entrevistar outras testemunhas oculares, de</p><p>viajar para a cena dos acontecimentos para que eles sejam narrados em um esforço</p><p>56 Somando-se aos muitos comentários, cf. F.-M. Braun, RB 62, 1955, pp. 5-44 (ainda útil,</p><p>embora um tanto datado); G. D. Kilpatrick em Sevenster, pp. 75-87; Robinson, John,</p><p>principalmente cap. 2.</p><p>57 cf. R. D. Potter, SE I (= TU 73), pp. 329-337 (embora corretamente criticado, em certos</p><p>pontos, por Barrett, GJJ, pp. 36-38); W. F. Albright, art. cit., pp. 153-171; Bruce E. Schein,</p><p>Following the Way: The Setting o f Johns Gospel (Augsburg, 1980), construções imaginativas</p><p>que não se deve permitir que solapem a demonstração do conhecimento detalhado que</p><p>João tinha do país; J. Finegan, The Archaeology o f the New Testament (Princeton University</p><p>Press, 1969), passim-, Smalley, pp. 34-37; Robinson, John, pp. 52ss.</p><p>58 Da extensa e crescente literatura, cf. principalmente D. E. Aune, GP 2, pp. 9-60; ou, mais</p><p>popularmente, idem, em Mosaic 20, 1987, pp. 1-10.</p><p>In tro d u ç ã o 62</p><p>para compreender adequadamente a situação, de checar os detalhes por meio de</p><p>pesquisa documentada, de delimitar o alcance do material sempre que se tenha</p><p>informações confiáveis, de insistir, mesmo que ocasionalmente, no uso de fontes</p><p>de falas e, certamente, no conceito de “verdade” no relato histórico, segundo o</p><p>que verdadeiramente aconteceu.59 Além disso, muitas das ênfases características</p><p>do quarto evangelho, incluindo a atribuição de deidade a Jesus, são mais facilmente</p><p>aceitas quando se leva em conta o ambiente do cristianismo judeu.60</p><p>Nada disso, é claro, prova que outras influências também não estivessem</p><p>presentes. Esse é o momento para refletirmos sobre a melhor maneira de abordarmos</p><p>a participação de outras influências na essência do quarto evangelho. O alinhamento</p><p>de possíveis paralelos em outra literatura não é suficiente, a menos que se possa</p><p>mostrar que, conceitualmente (e não apenas no vocabulário) eles são indistinguíveis</p><p>do que João diz e a única explicação existente. Alguns argumentam que João escreve</p><p>para uma comunidade na Palestina. Pressupondo que os líderes pensavam em grego</p><p>e estavam embebidos no pensamento do Antigo Testamento, conforme mediado</p><p>pela LXX ou algo muito similar a esse texto, mas viviam no grande mundo helenístico,</p><p>e sua herança do judaísmo era ainda mais impregnada com a cultura circundante,</p><p>aquela dos judeus da Palestina, que mudanças é provável que João tenha feito para</p><p>comunicar sua mensagem? E como essas mudanças, efetuadas para garantir uma</p><p>comunicação efetiva, diferem da pressuposição de que o evangelista sucumbiu ao</p><p>sincretismo? Colocando de outra forma, que ensinamentos João atribui a Jesus no</p><p>quarto evangelho e os quais podem ser explicados unicamente pela influência sincrética</p><p>do gnosticismo sobre o pensamento do evangelista?</p><p>Isso não significa que Barrett esteja completamente errado. Os primeiros</p><p>cristãos tinham consciência de que estavam se expandindo dentro de um quadro</p><p>de visões de mundo hostil, e os mais sagazes dentre eles, apesar de sua visão</p><p>evangelística, facilmente distinguiam entre o “mundo” e aqueles que o Pai deu a</p><p>seu Filho (para usar as palavras de João). Mas mesmo essa polarização significa</p><p>que houve influência. Os esforços de João para comunicar a verdade aos homens</p><p>e às mulheres distantes da Palestina garantiram que ele, por ser criterioso em sua</p><p>tarefa, não copiou, simplesmente, as tradições recebidas, mas as tratou de uma</p><p>maneira que as tornou mais facilmente compreensíveis. A questão, portanto, é se</p><p>sua tentativa sucumbiu, deliberadamente ou não, frente ao sincretismo que admitia</p><p>correntes de pensamento essencialmente estrangeiras ao evangelho histórico, ou</p><p>simplesmente transpôs as boas novas, como de fato o eram, para um outro código.</p><p>59 c f Colin J. Hemer, The Book o f Acts in the Setting of. Hellenistic History, ed. Conrad H.</p><p>Gempf (WUNT 49; J. C. B [Paul Siebeck], 1989), cap. 3, e com especial referência ao</p><p>trabalho de Loveday Alexander e G. Schepens. cf. também A. W. Mosley, N TS 12, 1965-</p><p>66, pp. 10-26.</p><p>60 Em relação a esse ponto em particular, cf. Richard N. Longenecker, The Christology o f Early</p><p>Jewish Christianity (SCM, 1970), pp. 136-141.</p><p>63 Introdução</p><p>É bem aqui que João prova ser não só uma testemunha fiel como também</p><p>um pregador talentoso. Já salientamos algumas das dezenas de marcas que ele</p><p>deixou no texto para garantir que distinguíssemos entre o que aconteceu “na época</p><p>de Jesus” e o que só foi compreendido mais tarde. Da mesma forma, como Léon-</p><p>Dufour bem colocou, João recorre a um simbolismo rico, em parte para mostrar</p><p>ao leitor aonde os ensinamentos de Jesus, carregados de simbolismo, estavam</p><p>conduzindo.61</p><p>Jesus diz, por exemplo, “Destruam este templo, e eu o levantarei em três</p><p>dias” (2.19). Quando essa declaração foi feita, foi incompreensível tanto para os</p><p>interlocutores de Jesus quanto para seus discípulos. Jesus, afinal de contas, estava</p><p>na área do templo quando declarou isso, portanto, referir-se a ele não seria de</p><p>estranhar. Além disso, o evangelista diz que após a ressurreição, seus discípulos</p><p>acreditaram em suas palavras e nas Escrituras e compreenderam que essa declaração</p><p>se referia ao corpo de Jesus. O padrão pelo qual tantos pontos na antiga religião</p><p>judaica encontram seu cumprimento em Jesus está presente em várias referências de</p><p>João às Escrituras. Contudo, ao mesmo tempo, a destruição do corpo de Jesus e sua</p><p>ressurreição em três dias pressagiaram, aos olhos de João, a destruição do templo em</p><p>Jerusalém e sua reconstrução pelo Senhor ressurrecto, templo este considerado o</p><p>definitivo e o verdadeiro local de encontro entre Deus e os seres humanos. Os</p><p>romanos realmente vieram, tomaram o lugar das autoridades e destruíram a nação</p><p>(11.50) e suas instituições religiosas; o que Jesus ressuscitou em três dias foi o</p><p>cumprimento desses fatos. Ninguém está colocando no texto o que lá não se encontra:</p><p>o leitor cuidadoso do quarto evangelho pode encontrar as pistas liberalmente</p><p>espalhadas, como o Comentário mostrará.</p><p>Exatamente da mesma maneira, o Prólogo se inicia com uma linguagem que</p><p>poderia ser interpretada de diversas maneiras, dependendo do pano de fundo religioso</p><p>do leitor. Mas, conforme o Prólogo avança, o que o evangelista verdadeiramente</p><p>está dizendo torna-se cada vez mais restrito, até que se ouve apenas uma voz cristã.</p><p>Melhor ainda, se o Prólogo for lido após a leitura completa do evangelho de modo</p><p>reflexivo, novas percepções vêm à luz. A linguagem que antes parecia difusa, agora</p><p>se mostra decisivamente cristã, desde o início do texto. João escreveu um livro sutil</p><p>e penetrante, que ele espera que seja lido mais de uma vez.</p><p>Léon-Dufour, ao escrever sobre outros trechos de João, coloca-se da seguinte</p><p>maneira:</p><p>Um primeiro princípio de leitura simbólica, portanto, seria, descobrir a coerência</p><p>dos diálogos e a relevância dos discursos colocando-os no contexto judaico do</p><p>século I. Se não o conseguimos, é porque permitimos a nós mesmos sermos</p><p>deslumbrados pelas luzes da Páscoa. O cristão da atualidade contribuiria para</p><p>apagar as raízes da fé cristã no evento único que foi o encontro de Jesus com os</p><p>homens. [...] Se, em seu texto, João relatou realisticamente o passado de Jesus</p><p>61 NTS 27, 1980-81, pp. 439-456. Geralmente nos evangelhos, cf. Bem F. Meyer, The Aims</p><p>o f Jesus (SCM, 1979).</p><p>Introdução 64</p><p>de Nazaré, ao mostrar sua relevância para o tempo presente, a “leitura” desse</p><p>documento escrito nâo consiste em trazer o passado para o presente, mas em</p><p>desenvolver uma compreensão mais profunda do presente à luz do passado.62</p><p>Dentro de estruturas como essa, não resta dúvida de que João revela em seus</p><p>escritos a influência do mundo que ele busca influenciar com as boas novas de Jesus</p><p>Cristo. Mas temos todas as razões possíveis para duvidar de que essa influência</p><p>aconteça às custas de sua fidelidade como testemunha.63 E as influências dominantes,</p><p>as coisas que enquadram seu pensamento e teologia, são o Antigo Testamento, a</p><p>herança do judaísmo, seu conhecimento da Palestina do século I e da cultura e</p><p>herança daqueles para quem ele escreve e, acima de tudo, seu entendimento da</p><p>pessoa, ministério e obra de Jesus, o Messias, e da compreensão cristã que foi mediada</p><p>por ele por meio da obra do Espírito na vida da Igreja.</p><p>A questão do pano de fundo conceituai do quarto evangelho será um pouco</p><p>mais aprofundada na discussão do propósito do livro, a seguir (§VI).</p><p>5 . Uma avaliação da “nova crítica”</p><p>A aplicação da “nova crítica” ao quarto evangelho requer uma avaliação</p><p>cuidadosa. Para manter o foco da discussão, o que se segue avalia a obra de Culpepper</p><p>(brevemente descrito no § II, acima), que certamente é o melhor e mais responsável</p><p>no assunto.64</p><p>As questões mais óbvias surgem da inadequada transferência de categorias</p><p>desenvolvidas na poética do romance para a literatura cristã. Culpepper não é</p><p>inteiramente insensível ao problema, é claro;</p><p>mas a defesa que faz de seus métodos</p><p>não é muito convincente. O cerne de sua resposta é duplo. Primeiro, embora ele</p><p>admita que “[o] perigo de distorção deve ser constantemente enfrentado quando</p><p>técnicas desenvolvidas para o estudo de um gênero são aplicadas a outro”, ele insiste</p><p>que, “em princípio, a questão se deve haver um grupo de princípios hermenêuticos</p><p>para o estudo das Escrituras já foi colocada há tempos por Schleiermacher” (pp. 9-</p><p>10). Por um lado, isso está inteiramente correto, mas, por outro lado, é relevante</p><p>para o problema em questão. A questão não é se devemos ou não examinar as</p><p>convenções literárias das Escrituras à luz das convenções literárias, mas se o romance</p><p>moderno é o melhor paralelo para os evangelhos do século I. Como Culpepper</p><p>destaca, existem paralelos entre o evangelho de João e a “narrativa romancista realista”,</p><p>mas Culpepper não faz qualquer tentativa para isolar as tífocontinuidades. Para vermos</p><p>um exemplo, Culpepper inclui a discussão dos temas sobre o testemunho ocular</p><p>62 Art. cit., pp. 445-446.</p><p>63 Sem dúvida “Let John be John”, para usar o título de um artigo de James D. G. Dunn, em</p><p>Peter Stuhlmacher (ed.), Das Evangelium und die Evangelien (WUNT 28; J. C. B. Mohr</p><p>[Paul Siebeck], 1983), pp. 309-339; mas, ao contrário de Dunn, podemos duvidar que</p><p>isso signifique que o quarto evangelista tenha sucumbido a um anacronismo teológico.</p><p>64 Parte do que se segue foi retirada de minha review de Culpepper, em TrinJ 4, 1983, pp.</p><p>122-126.</p><p>65 Introdução</p><p>em João nas categorias narrativas de narrador e autor implícito, sem considerar</p><p>seriamente se os temas de testemunho recebem força dentro de um contexto narrativo</p><p>que não o romance, a forma da discussão inevitavelmente oscila para alguma consi-</p><p>deração do tipo e qualidade da história que se pretende contar, que se propõe</p><p>verdadeira - e não só para moldar a história que está sendo narrada.</p><p>O segundo ponto defendido por Culpepper é o argumento de Hans Frei em</p><p>sua importante obra The Eclipse o f Biblical Narrative [O eclipse da narrativa</p><p>bíblica\ ,65 Frei postula que o Iluminismo fez o pensamento ocidental acessar a</p><p>verdade das narrativas em termos exclusivamente históricos. Essa “crise da narrativa</p><p>histórica”, sustenta Frei, levou os alemães a desenvolver uma crítica maior e, assim,</p><p>a questionar a veracidade das narrativas do evangelho; mas isso levou os ingleses a</p><p>inventar o romance, que tem seu tipo próprio de “verdade” - não a verdade na</p><p>qualidade de fatos ou crônicas históricos, mas aquela que se constitui uma pro­</p><p>funda penetração na realidade, construída historicamente em contextos mais ou</p><p>menos específicos. Portanto, em um tempo em que pessoas instruídas “não</p><p>conseguem aceitar como historicamente plausível a caracterização de Jesus [no</p><p>evangelho] como um operador de milagres com amplo conhecimento de sua</p><p>preexistência e de sua vida após a morte (p. 236), o caminho a seguir, afirma</p><p>Culpepper, é não restringir a verdade à verdade histórica e, por conseguinte, nem</p><p>fazer o mesmo com o conteúdo do evangelho, mas reconhecer a natureza peculiar</p><p>da verdade narrativa. Culpepper não está dizendo que as narrativas do quarto</p><p>evangelho nada transmitam de histórico; ao contrário, ele quer preservar um certo</p><p>tipo de mistura: “O futuro do evangelho na vida da Igreja dependerá da habilidade</p><p>dela em transmitir o que está no evangelho e relatar a história de uma maneira</p><p>verdadeira, de tal forma que ambos sejam compatíveis” (p.236). Além disso, seu</p><p>exemplo de milagre na vida de Jesus falha em inspirar confiança (A ressurreição</p><p>poderia ser colocada nas lista de negociáveis? Se não, por que não?), além de ele</p><p>não oferecer critérios que nos guiem, como se a divisão fosse imaterial.</p><p>Bem mais sofisticado é o trabalho de Meir Sternberg, The Poetics o f Biblical</p><p>Narrative [Apoética da narrativa bíblica].66 Para começar, ele dedica atenção es­</p><p>pecial à elaboração de distinções necessárias. Tanto “história” quanto “ficção” são</p><p>termos confusos, parcialmente porque ambos podem referir-se ao mundo, isto é,</p><p>ao objeto representado, e à palavra, isto é, ao discurso que a representa. Sternberg</p><p>continua:</p><p>Essa oscilação terminológica entre mundo e palavra seria uma questão menor</p><p>- a maioria de nós a sustenta, mesmo que por motivos de estilo - se não</p><p>tendesse a escapar de nossas mãos. Longe de ser inócua, ela reforça uma falácia</p><p>conceituai que é potente e grandemente disseminada. A mudança de</p><p>significados leva a uma simbiose de significados, em que a escrita histórica</p><p>65 Yale University Press, 1974.</p><p>66 Indiana University Press, 1985. As páginas 23-25 são de especial relevância.</p><p>Introdução 66</p><p>une-se à escrita ficcional, que se opõe à verdade factual. Essa identificação</p><p>dupla forma um tipo de erro de primeira ordem, pois a escrita histórica não</p><p>é um registro do fato - o que “realmente aconteceu” -, mas um discurso que</p><p>pretende ser um registro do fato, e, tampouco, a escrita ficcional é o resultado</p><p>da livre criação, mas um discurso que reivindica liberdade de criação. A antítese</p><p>reside não na presença ou ausência de valores da verdade, mas de compromisso</p><p>com valores da verdade.</p><p>A diferença entre valor da verdade e a afirmação da verdade é fundamental.67</p><p>A opinião de Sternberg é que uma historiografia ruim ainda é historiografia.</p><p>Mesmo que apresente vários fatos de maneira errada, ela não é transmutável em</p><p>ficção. Da mesma forma, uma obra de ficção que se valha de locações e aconteci­</p><p>mentos e, até mesmo, descrições de pessoas inteiramente reais, nem por isso se</p><p>transforma em uma obra de história. Na verdade, em ambos os casos é a natureza da</p><p>afirmação de verdade que se está considerando, e não o valor de verdade de uma obra</p><p>determinada. “Tanto a historiografia quanto a ficção são gêneros de escrita, não um</p><p>amontoado de fatos ou não-fatos em formato verbal.68 A questão que se deve colocar,</p><p>portanto, é esta: que tipo de afirmação de verdade João faz? A obra sugere ao leitor</p><p>que é uma ficção (independentemente de quanta verdade factual e teológica possa</p><p>conter, isto é, a despeito de seu valor de verdade), ou que pertence ao gênero histórico</p><p>(de novo independentemente de seu valor de verdade)? Ou pertence a algum outro</p><p>gênero?</p><p>E nesse ponto que o trabalho de Culpepper se descontrola. Por ele optar por</p><p>usar a poética do romance como modelo na discussão do evangelho de João, ele se</p><p>compromissou com uma forma de escrita cujas afirmações de verdade encontram-</p><p>se, graças a isso, em desacordo com as afirmações de verdade do quarto evangelho.</p><p>O problema fica mais visível na analogia favorita de Culpepper. Ele não deseja</p><p>que o evangelho de João seja interpretado como uma janela para o ministério de</p><p>Jesus, que nos permite ver, através do texto, sua vida e ministério, mas como um</p><p>espelho no qual vemos não só a nós mesmos, mas também o significado do texto</p><p>existente em algum lugar entre o texto e nós, “e a crença no evangelho pode significar</p><p>abertura para as maneiras como ele chama seus leitores a interagir com ele, com a</p><p>vida e com seu próprio mundo. Isso significa acreditar que a narrativa não é</p><p>apenas confiável, mas correta, e que a vida de Jesus e a nossa resposta significam</p><p>para nós aquilo que a história nos levou a acreditar (p. 237). “Confiável” e “correta”</p><p>em que sentido? Se em algum sentido histórico, nós voltamos para a janela - isto</p><p>é, o narrador “confiável” relata-nos algumas coisas sobre o ministério de Jesus;</p><p>mas se puramente no sentido de “confiabilidade” do romancista, sacrificamos as</p><p>asserções do evangelho em função de certa especificidade histórica, da credibilidade</p><p>decorrente do testemunho ocular, da afirmação de verdade desse evangelho e</p><p>67 Ibid., p. 25.</p><p>68 Ibid, p. 26.</p><p>67 In tro d u ç ã o</p><p>começamos a navegar no mar sem porto da subjetividade existencial, tudo com o</p><p>pretexto de podermos legitimamente tratar João como um romance - ponto que</p><p>ainda está por ser provado. Assim, o significado pode estar na história, na história</p><p>que nós percebemos, a história</p><p>que fica do nosso lado do texto; mas isso, por outro</p><p>lado, não nos conta nada do ministério de Jesus. O evangelho de João torna-se</p><p>um fascinante documento de idéias estimulantes, mas não nos conta nada sobre</p><p>um Salvador objetivo que. verdadeiramente está lá, que morreu e ressuscitou como</p><p>o cordeiro de Deus que tira nossos pecados.</p><p>Isso não é para demonstrar a visão positivista da história associada a Von Ranke.</p><p>Mas para mostrar que “o eclipse da narrativa bíblica” não pode ser superado apelando-</p><p>se ao romance. De qualquer forma, não são poucos os historiadores persuadidos</p><p>pela análise de Frei, de que o aumento da crítica bíblica é historicamente equivocada:</p><p>cristãos do pré-Iluminismo não estavam confusos sobre a distinção entre relatos</p><p>com referências extratextuais (isto é, históricas) e relatos sem tais referências.69 Se a</p><p>abordagem de Culpepper fosse levada a extremos, o que se comunicaria ao leitor</p><p>não seria o evangelho, pois o evangelho é inseparável da auto-revelação de Deus e</p><p>do sacrifício redentor na pessoa de seu Filho no espaço-tempo contínuo que constitui</p><p>a história. A “verdade narrativa” que o romance transmite é avaliada em termos de</p><p>sua universalidade (e.g. a descrição das fraquezas humanas universais, tensões, medos</p><p>amores, ódios, relacionamentos, etc. encontrados em qualquer tempo e sociedade).</p><p>Os contextos historicamente específicos de tal literatura estabelecem contornos de</p><p>relativa verossimilhança, mas não constituem o elemento “universal” pelo qual a</p><p>escrita é valorizada.</p><p>Em contraste, os evangelhos são universalmente aplicáveis aos seres humanos,</p><p>não porque retratam uma figura central que é exatamente como nós, mas precisa­</p><p>mente o contrário: eles descrevem a única figura que, sozinha, pode nos salvar e que</p><p>invade escandalosamente a existência humana em um ponto específico no espaço-</p><p>tempo contínuo. Sem dúvida, ele é contínuo conosco de muitas maneiras, mas</p><p>dizer apenas isso é dizer muito pouco. Ter fé na mensagem do evangelho não é a</p><p>mesma coisa que responder positivamente à história do super-homem, que também</p><p>teria invadido nosso mundo vindo de algum lugar além. Embora a fé bíblica tenha</p><p>um grande componente “subjetivo” ou “pessoal” ou “existencial”, ela depende ainda</p><p>mais de seu objeto - do outro lado da “janela”. A cristandade bíblica não pode</p><p>sobreviver ao “escândalo da particularidade histórica”. Em contraste, o romance</p><p>floresce naquilo que é universal na existência humana.</p><p>A influência dominante da poética do romance no pensamento de Culpepper</p><p>e o conseqüente anuviar de seu julgamento exegético podem ser classificados por</p><p>pontos. O tratamento da chamada “onisciência” do escritor, por exemplo, inclina-</p><p>69 Por exemplo, John D. Woodbridge, Biblical Authority: A Critique o f the Rogers/McKim</p><p>Proposal (Zondervan, 1982). Para um estudo com profundidade sobre o relacionamento</p><p>entre verdade e gêneros literários encontrados na Bíblia, cf. Kevin J. Vanhoozer, “The</p><p>Semantics of Biblical Literature: Truth and Scriptures Diverse Literary Forms”, em Carson/</p><p>Woodbridge II, pp. 51-104, 374-383.</p><p>Introdução 68</p><p>se a satisfazer aos padrões gerados pelos escritores de ficção; mas, face a isso, qualquer</p><p>observador idôneo poderia chegar a conclusões razoáveis sobre o que Jesus sabia, e</p><p>seus discípulos não, ou o que Pilatos temia, a partir das ações e/ou das palavras de</p><p>todos eles. Para citar um outro gênero literário atual, muitas biografias atuais não</p><p>hesitam, de modo responsável, em nos revelar o que seus sujeitos temiam, amavam,</p><p>pensavam e supunham. E se o narrador do quarto evangelho não estava historica­</p><p>mente informado sobre a conversa de Jesus com a mulher samaritana, isso certamente</p><p>não significa que ele poderia ser classificado como um narrador “onipresente” em</p><p>uma história de ficção; mesmo porque há outras maneiras de se estar informado</p><p>sobre a conversa entre duas pessoas além de se estar presente a ela, ainda mais nesse</p><p>caso em que ficamos sabendo especificamente como a mulher falou sobre o episódio</p><p>abertamente (4.29,39,42). Certamente, o quarto evangelista é mais reservado nesses</p><p>assuntos do que, digamos, um romancista vitoriano do século XIX. Ou ainda, embora</p><p>Culpepper, como já vimos, diga coisas muito profundas sobre João 21.24,25, algumas</p><p>de suas avaliações decorrem de sua adoção da ficção poética como uma cama de</p><p>Procusto na qual cada traço de evidência deve ser ajustado para que se encaixe ali.</p><p>Ele se encontra tão profundamente compromissado com a forma de análise do</p><p>romance, que o “autor implícito” e o “narrador” não são mais artífices que nos</p><p>capacitam a realizar certos tipos de análise mais parcimoniosos, dentro da poética</p><p>do romance: eles são quase hipostáticos. Mas se o evangelho de João não for</p><p>condenado a priori à poética da ficção do século XIX, as mesmas evidências e</p><p>argumentos que Culpepper menciona podem ser usados para forjar a conclusão de</p><p>que o evangelista, na verdade, é o discípulo amado.</p><p>Mas há um benefício não-previsto que flui do trabalho de Culpepper.</p><p>Qualquer abordagem, como a dele, que trate o texto como um produto literário</p><p>acabado e o analise dentro desse contexto, traz à questão a legitimidade da pretensão</p><p>de que camadas de tradição podem ser acessadas no evangelho de modo a revelar</p><p>a história da comunidade. Se as aporias, por assim dizer, podem ser integradas à</p><p>abordagem de crítica de fonte de R. T. Fortna, elas também podem ser integradas</p><p>na unidade literária de R. A. Culpepper. Se as aporias podem ser dispositivos</p><p>literários, não são, necessariamente, evidências de suturas.</p><p>Em outras palavras, Fortna e Culpepper representam correntes divergentes</p><p>dentro do conhecimento bíblico contemporâneo; tão divergentes, na verdade,</p><p>que se iniciou um debate sobre qual abordagem ao texto deveria ter precedência.</p><p>Culpepper não tem dúvidas: “Uma vez que se tenha feito esforços para compreender</p><p>o caráter da narrativa dos evangelhos, será necessária uma aproximação com as</p><p>questões históricas tradicionais” (p. 11). Mas o problema é mais profundo que o</p><p>da mera precedência. Se o material pode ser responsavelmente integrado na unidade</p><p>que Culpepper tenciona realizar, ou algo do gênero, que direito temos de dizer</p><p>que a mesma evidência testifica desunião, remendos, fontes discrepantes e assim</p><p>por diante?70 Inversamente, se esse último caso se justifica, não deveríamos concluir</p><p>70 Poderia ser o caso do recente estudo “semiótico” de João 4, de Boers. Durante todo o</p><p>tempo Boers apela para evidências mencionadas pela crítica da fonte em lugar de discutir</p><p>uma unidade mais profunda.</p><p>69 Introdução</p><p>que a descoberta de unidade de Culpepper deve ter sido artificialmente imposta?</p><p>O benefício imprevisto desse debate, portanto, é que ele é capaz de libertar a</p><p>ortodoxia um tanto rígida e perigosa de hoje para abrir possibilidades que foram,</p><p>ilegitimamente, excluídas do tribunal.</p><p>Em suma, a obra de Culpepper é importante, não porque tenha todas as</p><p>respostas, mas porque é o tratamento mais completo do quarto evangelho da</p><p>perspectiva da nova crítica, e estabelecerá a ordem do dia ainda por muito tempo.</p><p>Ela não deve ser vista como uma ameaça à autenticidade do evangelho de João; na</p><p>verdade, de alguma forma, estabelece a integridade literária de João, mesmo que</p><p>se valha de meios questionáveis para atingir seus objetivos.</p><p>IV. A autoria do quarto evangelho</p><p>O quarto evangelho não leva o nome de seu autor; como os sinóticos, ele é</p><p>formalmente anônimo. Até onde sabemos, o título Segundo João foi anexado a ele</p><p>tão logo os quatro evangelhos canônicos começaram a circular juntos, como uma</p><p>só obra, o evangelho quádruplo (cf. § II, acima), isso, em parte e sem dúvida, para</p><p>distingui-lo dos demais. Bruce (p.l) observa, sugestivamente, “E digno de nota</p><p>que, enquanto os quatro evangelhos canônicos poderiam dar-se ao luxo de ser</p><p>publicados anonimamente, os evangelhos apócrifos que começaram a aparecer da</p><p>metade do século II em diante afirmavam (falsamente) ser escritos por apóstolos</p><p>ou outras pessoas</p><p>ligadas ao Senhor”.</p><p>Já traçamos a principal “evidência externa” (isto é, evidência externa ao quarto</p><p>evangelho) que demonstra que o evangelista não era outro que não o apóstolo</p><p>João, o filho de Zebedeu. Tal evidência, como se apresenta, é praticamente unânime.</p><p>Mesmo se Irineu, por volta do final do século II, está entre as testemunhas mais</p><p>fortes, totalmente ambíguas, sua ligação pessoal com Policarpo, que conhecia</p><p>João, significa que a distância, em termos de memórias pessoais, não é muito</p><p>grande. Mesmo Dodd, que não considera a opinião de que o apóstolo João escreveu</p><p>o quarto evangelho, julga a evidência “formidável” e acrescenta: “Não tenho</p><p>conhecimento de qualquer evidência externa contrária, a qual poderia ser chamada</p><p>de irrefutável” (HTFG , p. 2; cf. também Robinson, John, pp. 99-104).</p><p>O fato é que, apesar do apoio à autoria de João de alguns estudiosos de</p><p>vanguarda do século XX,71 e de vários autores populares, a grande maioria dos</p><p>estudiosos contemporâneos rejeita essa concepção. Como se pode perceber, muito</p><p>de sua argumentação não considera a leitura das evidências internas. Isso também</p><p>exige, praticamente, a desconsideração da evidência externa. Isso é particularmente</p><p>lamentável. A maioria dos estudiosos da Antiguidade, quando discutia a autoria</p><p>de algum documento, não colocava de lado, com tanta facilidade, evidências tão</p><p>71 Por exemplo, Theodor Zahn, Introduction to the New Testament, 3 vols. (ET Kregel, 1953</p><p>[da 3a edição alemã, 1909]), 3. 174ss.; Westcott, 1. ix-lxvii; Morris, SFG, pp. 139-192;</p><p>Bruce, pp. 1-6; Michaels, pp. xv-xxiv; Robinson, Red, pp. 254 e seg.; idem, John, pp. 93 e</p><p>seg.; E. Earle Ellis, Southwestern Jounal o f Theology 31, 1988, pp. 24-31.</p><p>Introdução 70</p><p>abundantes, consistentes e inteiramente ligadas à fonte como são as evidências</p><p>externas que apóiam a autoria de João. A maioria dos estudiosos bíblicos de hoje</p><p>não dá tanta importância às evidências externas como seus colegas da cultura</p><p>clássica.72</p><p>Uma maneira de frustrar a força das evidências externas, ainda comuns, mas</p><p>já não tão populares, é apelar para as palavras de Papias, transmitidas e interpretadas</p><p>por Eusébio, em apoio à hipótese de que havia dois Joões. Papias escreve (de</p><p>acordo com Eusébio):</p><p>Se houver a possibilidade de alguém de fato ser um seguidor dos anciãos, eu</p><p>investigaria os discursos dos anciãos, o que André ou Pedro disseram, ou o</p><p>que Filipe, ou Tomé ou Tiago, ou o que João ou Mateus ou qualquer outros</p><p>dos discípulos disse; e coisas que Aristion e João, o ancião, discípulos do</p><p>Senhor, dizem.</p><p>Eusébio, portanto, comenta:</p><p>Aqui, é digno de nota que em sua enumeração ele tenha mencionado o nome</p><p>de João duas vezes: ele coloca o primeiro desses Joões na mesma lista que</p><p>Pedro, Tiago, Mateus e outros apóstolos, claramente indicando os evangelistas;</p><p>mas o último, ele coloca com os outros, em uma sentença separada, fora do</p><p>grupo dos apóstolos, com Aristion antes dele; e claramente o chama de “ancião”</p><p>(H. E. III. xxxix 4-5).73</p><p>Muitos inferiram, a partir dessa passagem, que talvez tenha sido esse segundo</p><p>João, um discípulo de João, filho de Zebedeu, quem escreveu o quarto evangelho.</p><p>Inclusive, talvez Irineu e Teófilo, bem como outros pais da igreja, tenham</p><p>confundido os Joões. De qualquer forma, Irineu erra em outros pontos.</p><p>Mas um estudo recente mostrou que este apelo a Papias é precário. Em par­</p><p>ticular:</p><p>(1) Atualmente, é amplamente reconhecido que onde Eusébio faz uma</p><p>distinção entre “apóstolo” e “ancião”, entendendo que os últimos são discípulos</p><p>dos primeiros e, portanto, uma segunda geração de cristãos, Papias não estabelece</p><p>diferenças. Nos termos de Papias, “os discursos dos anciãos” sãos os ensinamentos</p><p>de André, Pedro e de outros apóstolos. E Eusébio que escreve: “Papias, sobre</p><p>quem estamos agora falando, admite que recebeu os discursos dos apóstolos</p><p>daqueles que foram seus seguidores” (H. E. III. xxxix. 7). Evidentemente, não é</p><p>isso o que Papias disse. Cf. Lightfoot, BE, pp.58 ss.</p><p>(2) Na citação de Papias, o motivo mais óbvio pelo qual João é chamado de</p><p>“ancião” é, precisamente, porque está sendo agrupado com os anciãos mencionados,</p><p>72 Cf. G. Kennedy, “Classical and Christian Source Criticism”, em W. W. Walker, Jr. (ed.),</p><p>The Relationship among the Gospels: An Interdisciplinary Dialogue (Trinity University Press,</p><p>1978), pp. 125-155.</p><p>73 Nesse caso, segui a tradução de H. J. Lawlor e J. E. L. Oulton, Eusebius: The Ecclesiastical</p><p>History and the Martyrs of.Palestine, 2 vols. (repr. SPCK, 1954 [1927], 1. 89, por observar</p><p>diferenças no texto grego ignoradas pela edição da Loeb.</p><p>71 Introdução</p><p>isto é, com os apóstolos (cf David Smith em EGT, 5. 161). É digno de nota que</p><p>“apóstolo” e “ancião” apareçam na mesma referência - 1 Pedro 5.1. Além disso, a</p><p>sintaxe grega específica, utilizada por Papias, bem pode favorecer a leitura de que</p><p>“Aristion e João, o ancião", significam algo do tipo “Aristion e o já mencionado</p><p>ancião João”.74 Em H. E. III. xxxix. 14, também é João, e não Aristion, quem é</p><p>chamado de “ancião”. Ao optar por referir-se aos apóstolos como “anciãos”, Papias</p><p>poderia estar adotando a linguagem de 3João 1 (pressupondo-se que Papias</p><p>acreditava que a epístola fora escrita pelo apóstolo João).</p><p>(3) Parece que a distinção que Papias faz, em suas duas listas, não é entre</p><p>apóstolos e anciãos da geração seguinte, mas entre testemunhas da primeira geração</p><p>que haviam morrido (o que eles disseram) e testemunhas da primeira geração</p><p>ainda vivas (o que eles dizem). Aristion, portanto, pode ser ligado a João, não</p><p>porque ambos não fossem apóstolos, mas porque ambos eram discípulos do Senhor</p><p>da primeira geração. E isso apóia o testemunho de Irineu que afirmou que Papias,</p><p>tanto quanto Policarpo, era um “ouvinte de João”.</p><p>(4) De qualquer forma, Eusébio tinha agenda própria. Ele desgostava tanto</p><p>da linguagem de Apocalipse que se alegrou ao vislumbrar a possibilidade de atribuir</p><p>sua autoria a outro João que não o apóstolo; assim adota “João, o ancião”, conforme</p><p>extraiu de Papias.75</p><p>Em suma, não é certa a existência de um João ancião independente do apóstolo,</p><p>e se houve, é ainda menos certo que ele tenha escrito algo. E se contra as evidências</p><p>aceitamos a interpretação que Eusébio faz de Papias, atribuiremos o quarto</p><p>evangelho a João, e o Apocalipse a João, o ancião, enquanto a maioria dos estudiosos</p><p>da Bíblia não atribui nenhum dos dois livros ao apóstolo. Se existe um manuscrito76</p><p>siríaco do século VIII, que também sugere que houve dois Joões, e que o quarto</p><p>evangelho foi escrito pelo ancião, e não pelo apóstolo, ele pode sugerir que a</p><p>interpretação errônea de Eusébio, como a que se faz atualmente, foi antecipada</p><p>por um estudioso um milênio antes.</p><p>O testemunho de Teófilo, Irineu e outros escritores do século II sobre a autoria</p><p>do quarto evangelho é, de qualquer forma, “formidável”, embora não completamente</p><p>decisivo. Ainda mais importantes são as evidências internas, isto é, aquilo que o</p><p>quarto evangelho diz a respeito de si mesmo.</p><p>A abordagem clássica de Westcott, atualizada por Morris (SFG, pp. 218ss.),</p><p>estabelecia cinco pontos: o autor do quarto evangelho era (a) um judeu, (b) da</p><p>Palestina, (c) uma testemunha ocular, (d) um apóstolo, isto é, um dos Doze, (e) o</p><p>apóstolo João. Hoje em dia, raramente se questiona os dois primeiros pontos,77</p><p>74 C. S. Petrie, N TS 14, 1967-68, p. 21.</p><p>75 Cf.G. Lee, SE W (= TU 112), pp. 311-320.</p><p>76 C f A, Mingana, BJRL 14, 1930, pp. 333-339.</p><p>77 Margaret Pamment é uma exceção, Exp T 94,1983, pp. 363-367, pois sustenta que o discípulo</p><p>amado é um crente gentio. O cerne do argumento é que 21.1 ss. referem-se à missão aos</p><p>gentios (nisso ela está parcialmente correta), e “isso sugere que o discípulo amado [que aparece</p><p>nesse capítulo] é um gentio” (p. 367). Esse é um clássico non sequitur. Assumindo-se que</p><p>todos os primeiros crentes eram judeus, pelo menos algumas das primeiras testemunhas aos</p><p>gentis tinham de ser judeus!</p><p>Introdução 72</p><p>de sorte que não precisamos nos deter aqui,</p><p>até porque são admiravelmente</p><p>trabalhados por Morris. De qualquer forma, a linha de investigação já está implícita</p><p>em observações anteriores dessa Introdução, relativas à importância dos Papiros</p><p>do Mar Morto (que, no mínimo, nos compelem a reconhecer que é desnecessário</p><p>recorrer a um período de expansão do mundo helenístico para justificar expressões</p><p>características de João), ao conhecimento detalhado do evangelista acerca da</p><p>topografia da Palestina e às características das discussões dos judeus conservadores.</p><p>A isso devemos acrescentar o fato amplamente aceito, ao qual recorreu Lightfoot no</p><p>século XIX (BE, pp. 20s.), de que, ao menos em algumas situações, as observações</p><p>de João estão mais próximas do hebreu ou do aramaico que do grego (12.40; 13.18;</p><p>19.37, por exemplo).</p><p>Todos os três outros pontos são debatidos e versam, em sua maior parte,</p><p>sobre a identidade do “discípulo amado”, o modo pelo qual se convencionou</p><p>referir àquele que a NVI, mais prosaicamente, descreve como “o discípulo a quem</p><p>Jesus amava” (e.g. 13.23). O discípulo amado é mencionado a primeira vez na</p><p>última ceia, onde está reclinado próximo a Jesus e faz a mediação da pergunta de</p><p>Pedro ao Mestre (13.23). Ele também está perto da cruz, onde recebe a especial</p><p>comissão de cuidar da mãe de Jesus (19.26,27), e na tumba vazia, quando foi</p><p>mais rápido que Pedro, mas menos ousado, para chegar até ela e entrar nela (20.2-</p><p>9). No epílogo do quarto evangelho (cap. 21), ele aparece como aquele que “escreveu</p><p>estas coisas”; se “escreveu” significa escrever pessoalmente (e não que ele fez com que</p><p>o material fosse escrito por outro, como sugerem alguns), e “estas coisas” referem-se</p><p>ao livro inteiro, e não apenas ao capítulo 21, portanto o discípulo amado é o evan­</p><p>gelista. Se isso estiver correto, então é natural identificar a testemunha ocular que</p><p>viu sangue e água saírem da lateral do corpo de Jesus como o discípulo amado,</p><p>mesmo que ele não seja assim descrito.</p><p>Mas quem é o discípulo amado? A opinião tradicional de que é João, o filho</p><p>de Zebedeu, firmou-se devido a diferentes razões. Que o discípulo amado estava</p><p>presente à ceia não se discute (13.23). Os sinóticos insistem em que apenas os</p><p>apóstolos estavam com Jesus naquela refeição (Mc 14.17 par.),78 o que coloca o</p><p>discípulo amado entre os Doze. Ele é, repetidamente, distinguido de Pedro (Jo</p><p>13.23,24; 20.2-9; 21.20), e não deve ser confundido com nenhum dos outros</p><p>apóstolos citados em João 13— 16. O fato de que ele é um dos sete que saem para</p><p>pescar no capítulo 21 e que, por implicação, não é Pedro, Tomé nem Natanael,</p><p>sugere que ele é um dos filhos de Zebedeu ou um dos outros dois discípulos não</p><p>nomeados (21.2). Dos filhos de Zebedeu, ele não pode ser Tiago, pois ele foi o</p><p>primeiro do grupo apostólico a ser martirizado (durante o reinado de Herodes</p><p>Agripal, 41-44 d. C.; cf. At 12.1,2), enquanto o discípulo amado viveu o suficiente</p><p>para dar credibilidade ao rumor de que ele não morreria (21.23). E estranho o</p><p>fato de que nem João nem Tiago são mencionados pelo nome no quarto evangelho,</p><p>78 Estranhamente, Robinson (John, p. 107 n. 307) pensa que a ligação entre Lc 22.14 e Lc</p><p>24.33 pode colocar esse relato em dúvida. Mas o último fala de outros com os apóstolos</p><p>algum tempo depois da ressurreição, e não na última ceia.</p><p>73 Introdução</p><p>que não cita apenas apóstolos proeminentes como Pedro e André, mas também</p><p>membros relativamente obscuros do grupo apostólico como Filipe e Judas (não o</p><p>Judas Iscariotes) (14.22), a menos que haja uma razão para tal. O motivo tradicional</p><p>parece o mais plausível: o discípulo amado não é outro se não João, e ele delibera­</p><p>damente evita citar seu próprio nome. Isso se torna mais provável quando nos</p><p>lembramos que o discípulo amado está constantemente na companhia de Pedro,</p><p>enquanto tanto os sinóticos (Mc 5.37; 9.2; 14.33; par.) como Atos (3.1— 4.23;</p><p>8.15-25), sem mencionar Paulo (Gl. 2.9), unem Pedro e João pela amizade e</p><p>experiências compartilhadas. Observou-se (Westcott, 1. xlvii) que nesse evangelho</p><p>a maioria dos personagens importantes são designados por nomes ou expressões</p><p>completos: Simão Pedro, Tomé Dídimo, Judas filho de Simão Iscariotes, Caifás,</p><p>o sumo sacerdote daquele ano. Estranhamente, contudo, João Batista é simples­</p><p>mente chamado de João, mesmo quando é citado pela primeira vez (1.6; Mc 1.4</p><p>par.). A explicação mais simples é que João, filho de Zebedeu, não julgou necessário</p><p>distinguir o outro João de si mesmo.</p><p>Mais uma vez, as evidências não são inteiramente conclusivas. É possível, por</p><p>exemplo, que, em João 21.2, o discípulo amado seja um dos discípulos não</p><p>mencionados pelo nome. Mas uma vez que a possibilidade lógica tenha sido</p><p>devidamente considerada, isso parece um expediente um tanto desesperado, que</p><p>se coloca contra a força das evidências internas cumulativas e as substanciais</p><p>evidências externas. Há outras pessoas, também consideradas como possibilidades.</p><p>Alguns sugerem Lázaro, com base em que o “discípulo amado” seria uma forma</p><p>apropriada de auto-referência para alguém de quem se dizia ser amado por Jesus</p><p>(11.5,36).79 Outros sugerem o jovem rico de Marcos 10.21, praticamente com os</p><p>mesmos argumentos.80 Outros ainda indicam o dono do cenáculo, argumentando</p><p>que a razão pela qual ele pôde recostar a cabeça no peito de Jesus foi que, como</p><p>anfitrião, foi colocado em uma posição de honra próximo a Jesus;81 talvez ele fosse</p><p>João Marcos.82 Nenhuma dessas argumentações é convincente, e todas elas,</p><p>notoriamente especulativas. Segundo as evidências sinóticas, somente os Doze</p><p>estavam presentes à última ceia com Jesus, o que leva a três sugestões. Nada há a</p><p>ser dito em relação aos dois primeiros, a não ser que Jesus os amava, o que</p><p>certamente é insuficiente para se identificar o discípulo que Jesus amava, princi­</p><p>palmente se partirmos do pressuposto que o círculo daqueles a quem Jesus amava</p><p>era extremamente limitado. Como segunda sugestão, apelar ao evangelho de</p><p>Marcos para descobrir a identidade do discípulo amado em João parece um procedi­</p><p>mento dúbio. E se o dono cenáculo estava presente como anfitrião, por que será</p><p>que os quatro evangelhos mostram Jesus tomando todas as iniciativas na refeição,</p><p>fazendo as vezes, de fato, o papel do anfitrião? Além disso, não há qualquer</p><p>79 E.g., F. V. Filson, JBL 68, 1949, pp. 83-88; Eller.</p><p>80 E.g., H. B. Swete, JTS 17, 1916, pp. 371-374</p><p>81 E.g., Eugen Ruckstuhl, S N T U 11, 1986, pp. 131-167.</p><p>82 E.g., Marsh, p. 24; Pierson Parker, JBL 79, 1960, pp. 97-110. Sanders (pp. 29-52) acredita</p><p>que João Marcos é o evangelista, mas não o discípulo amado.</p><p>Introdução 74</p><p>evidência patrística de que João, filho de Zebedeu, e João Marcos alguma vez</p><p>tenham sido confundidos.</p><p>Em seu comentário, Brown sustenta com firmeza que o discípulo amado é</p><p>João, filho de Zebedeu (embora ele não o identifique com o evangelista). Na época</p><p>em que seu livro mais popular, o qual deixa claro seu entendimento acerca da história</p><p>da comunidade joanina (Brown, Comni), estava em evidência, ele mudou de opinião</p><p>(pp. 33-34), sem se preocupar com suas próprias evidências. Hoje ele acredita que o</p><p>discípulo amado era alguém de fora, isto é, não era um dos Doze, mas um judeu</p><p>com acesso à corte do sumo sacerdote (18.15,16), provavelmente o discípulo que</p><p>não foi nomeado em 1.35-40. Outros desenvolveram extensivas listas de razões</p><p>pelas quais o discípulo amado não pode ser João, filho de Zebedeu.83 Elas variam</p><p>consideravelmente em qualidade, mas incluem apontamentos como os que seguem:</p><p>João, filho de Zebedeu, era galileu, embora muito da narrativa do quarto evangelho</p><p>se passe na Judéia; João e Pedro são descritos como “homens comuns e sem instrução”</p><p>(At 4.13), portanto, João não poderia escrever um livro sutil e profundo; João e</p><p>Tiago são descritos como “filhos do trovão” (Mc 3.17), possivelmente sugerindo</p><p>impetuosidade, intemperança e cólera, mesmo que o livro de João seja o mais plácido,</p><p>até mesmo místico, dos evangelhos canônicos; João era vingativo em relação aos</p><p>samaritanos</p><p>(Lc 9.54), o que torna difícil imaginá-lo escrevendo um livro que os</p><p>trata de forma gentil (Jo 4).</p><p>Nenhum desses argumentos parece ter força contra o bloco do lado contrário:</p><p>(1) Embora João, filho de Zebedeu, fosse galileu, na época em que escreveu</p><p>não só já vivia há anos na Judéia (na época da igreja primitiva), mas também (segundo</p><p>qualquer visão tradicional) vivia no grande centro metropolitano de Efeso. Restringir</p><p>o foco dos interesses de João a seu local de origem, uma vez que na época em que</p><p>escrevia não vivia lá há décadas, demonstra certa rigidez. Não gostaria que me julgas­</p><p>sem ignorante em relação a Vancouver (Canadá), Cambridge (Inglaterra) e Chicago</p><p>(Estados Unidos), onde passei a maior parte dos últimos vinte anos, só porque fui</p><p>educado em Drummondville, Quebec (Canadá).</p><p>(2) Já se comentou reiteradamente que a expressão de Atos 4.13 não significa</p><p>que Pedro e João eram iletrados, ou profundamente ignorantes, mas, do ponto de</p><p>vista da proficiência teológica contemporânea, eram “homens leigos sem essa</p><p>instrução específica” e não eram diferentes do próprio Jesus (Jo 7.15). O espanto</p><p>das autoridades, de qualquer forma, foi causado pela competência de Pedro e de</p><p>João quando eles deveriam ser (relativamente) ignorantes, não pela ignorância</p><p>deles quando deveriam ter sido mais competentes. Meninos judeus aprendiam a</p><p>ler. Como João nasceu em uma família que, certamente, não era pobre (eles</p><p>possuíam seus próprios barcos, Lc 5.3, e empregavam outros, Mc 1.20), é provável</p><p>que tenha recebido uma educação melhor do que a média. O rabino Akiba,</p><p>aparentemente, foi iletrado até os quarenta anos e, depois, tornou-se um dos</p><p>maiores rabinos de sua geração; não seria de surpreender se alguns dos líderes da</p><p>igreja, décadas após sua fundação, tivessem se devotado seriamente ao estudo.</p><p>83 E.g., Pierson Parker, JBL 81, 1962, pp. 35-43.</p><p>75 Introdução</p><p>(3) A sugestão de que um “filho do trovão” não poderia se tornar o apóstolo</p><p>do amor, ou que um homem de arraigados preconceitos contra os samaritanos</p><p>não poderia ter escrito João 4, é uma negação explícita do poder do evangelho e</p><p>do efeito moderador de anos de liderança cristã em uma época em que as</p><p>transformações pelo poder do Espírito aconteciam amplamente. Esse argumento</p><p>é tão convincente quanto dizer que Saulo, o perseguidor da Igreja, não pode ter-</p><p>se tornado o apóstolo dos gentios.</p><p>(4) No entanto, não fica explícito que o “outro discípulo”, que conseguiu</p><p>que Pedro fosse admitido no pátio do sumo sacerdote (18.15,16), era realmente o</p><p>discípulo amado, podendo, portanto, ser qualquer outro; mas a conexão com</p><p>João é mais forte do que alguns supõem. Parece que esse “outro discípulo” fazia</p><p>parte do grupo daqueles que estavam com Jesus quando ele foi preso, portanto,</p><p>um dos Onze que saíram do salão de cima e acompanharam Jesus ao Monte das</p><p>Oliveiras. Seu relacionamento estreito com Pedro apóia (embora não prove) a</p><p>suposição de que ele não é outro além de João. A idéia de que um pescador galileu</p><p>pudesse ter acesso à corte do sumo sacerdote é com freqüência rejeitada com base</p><p>no argumento de que um peixeiro não poderia entrar facilmente na sala de espera</p><p>do primeiro ministro. Na verdade, o modelo social está completamente errado. Já</p><p>vimos que a família de João tinha algumas posses; eles devem ter sido ricos e, em</p><p>muitas sociedades, o dinheiro quebra as barreiras sociais. De qualquer forma, as</p><p>barreiras sociais relevantes não devem ter sido tão fortes na Palestina do século I:</p><p>os rabinos deviam receber sustento em troca de seus estudos (embora Paulo</p><p>trabalhasse com couro), de modo que, no mundo helenístico, a estratificação que</p><p>separava um professor de um trabalhador manual nos círculos estóicos e outros</p><p>não era um fator relevante em boa parte da Palestina. A Galiléia enviava peixe</p><p>para todo o país, exceto para a costa, e esse alimento entrava em Jerusalém pela</p><p>porta dos Peixes (cf. Ne 3.3; Sf 1.10). Como Robinson (John, p. 117) comenta</p><p>que não é inteiramente fantasiosa a tradição que diz que a familiaridade de João</p><p>com a moça no portão e com os empregados da casa do sumo sacerdote originou-</p><p>se de sua familiaridade com o portão84 dos comerciantes. Ele deveria ter uma</p><p>posição na cidade (19.27), e serviu, em certa ocasião, como “mensageiro” de seu</p><p>pai (um papel que emerge em 13.16). Já foi mencionado que o termo peculiar</p><p>para peixe cozido (opsarion), a maneira como o comércio era conduzido, aparece</p><p>cinco vezes no quarto evangelho (cf. notas sobre 6.9,11; 21.9,10,13) e em nenhum</p><p>outro local do Novo Testamento.</p><p>(5) Embora já se tenha argumentado no passado que um palestino não poderia</p><p>escrever tão fluentemente em grego, isso já não se mantém. Hoje existe um forte</p><p>consenso de que, pelo menos na Galiléia, e talvez em outros locais da Palestina do</p><p>século I, a população falava no mínimo duas línguas e, em alguns casos, três. O</p><p>aramaico era usado nas conversações do dia a dia. Empregava-se o hebreu em</p><p>algumas ocasiões formais e cúlticas, mas a quantidade de pessoas que falavam</p><p>hebreu é incerta. E a julgar pelo montante de moedas gregas e pelas descobertas</p><p>84 Gospel o f the Nazaraeans, Fragment 33, em Hennecke, 1.152.</p><p>Introdução 76</p><p>de inscrições em grego, essa língua era uma alternativa bastante comum para a</p><p>comunicação, o que ligava os judeus não só ao mundo mediterrâneo em geral</p><p>como aos judeus da diáspora e (na Galiléia) à Decápolis em particular. Aqueles</p><p>que, graças ao trabalho que tinham, tiveram um contato mais próximo com o</p><p>exército, provavelmente, também adquiriram algum conhecimento de latim</p><p>relacionado à atividade. Não é preciso visitar muitos países com uma população</p><p>multilingüe, como a Noruega ou a Suíça ou o Quênia, para se reconhecer que esse</p><p>fenômeno não é tão raro assim. De qualquer forma, João viveu no exterior por</p><p>muito tempo antes de escrever, tempo bastante para praticar seu grego. Note-se</p><p>que o grego do evangelho de João é relativamente competente, mas não elegante,</p><p>e revela um número razoável de “realces” semitizantes.85 A linguagem que ele</p><p>utiliza é, “com algumas exceções, a linguagem da LXX”.86 Esse tipo de evidência</p><p>está perfeitamente de acordo com o pouco que sabemos sobre os antecedentes de</p><p>João, filho de Zebedeu.87</p><p>Em suma, as evidências internas são muito fortes, mas não estão além das</p><p>discussões sobre o fato de João, o discípulo amado, ser João, o apóstolo, o filho de</p><p>Zebedeu. Portanto, quem é o evangelista? Colocando a questão de outra forma,</p><p>qual o relacionamento entre o discípulo amado e o quarto evangelista?</p><p>A resposta tradicional é que são a mesma pessoa. Ironicamente, ainda que se</p><p>faça concessões para as categorias equivocadas que Culpepper utiliza, seu tratamento</p><p>de 21.24,25 é o mesmo: o “narrador” permite ao leitor saber que o “autor implícito”</p><p>não é outro senão o discípulo amado. Mas, por várias razões, essa postura tem</p><p>recebido muita oposição. Os cenários resultantes diferem consideravelmente.</p><p>Muitos acreditam que João, filho de Zebedeu, estava atado à tradição, mas que o</p><p>material passou por profundas adaptações até voltar às mãos do evangelista (cuja</p><p>identidade é desconhecida - sabendo-se, apenas, que é o ancião João!), cujo trabalho</p><p>foi, mais tarde, revisado por um redator, cuja mão, talvez, seja perceptível em</p><p>21.24,25. Outros acham que a influência de João, filho de Zebedeu, é mais imediata</p><p>e penetrante: ele, na verdade, não escreve o livro, mas fez com que ele fosse escrito</p><p>(icf. comentários sobre 21.24), talvez por meio das mãos de um amanuense que</p><p>apreciava certas liberdades de expressão e que poderia, devidamente, ser chamado</p><p>de evangelista. Estes são os fatores mais importantes a ser avaliados:</p><p>85 Recentemente, a lingüística fez distinção entre semitismo (em grego, uma expressão ou</p><p>construção sem paralelo no grego e que só faz sentido se assumirmos o pano de fundo de</p><p>uma língua semítica) e realce semítico (expressão ou construção que ocorre raramente no</p><p>grego e cuja freqüência em um determinado documento grego é mais bem</p><p>avaliada se</p><p>recorrermos à influência semítica subjacente). Sem dúvida, o evangelho de João exibe realces</p><p>tanto aramaicos quanto hebreus; é motivo de discussão se apresenta aramaísmos ou</p><p>hebraísmos.</p><p>86 G. D. Kilpatrick, “The Religious Background of the Fourth Gospel”, em F. L. Cross (ed.),</p><p>Studies in the Fourth Gospel (Mowbray, 1957), p. 43.</p><p>87 Cf. Ellis, art. cit. , p. 25: “Um judeu palestino devia conhecer bem a língua grega e o</p><p>pensamento helenístico, mas um judeu nativo da diáspora provavelmente não demonstraria</p><p>um conhecimento geográfico da Palestina tão acurado e, certamente, não escreveria em</p><p>grego com penetração do idioma semita como o que se observa no evangelho de João.</p><p>7 7 Introdução</p><p>(1) Talvez o motivo mais freqüente para se negar que o discípulo amado é o</p><p>evangelista seja a própria expressão “discípulo amado”. Argumenta-se que nenhum</p><p>cristão denominaria a si mesmo de “o discípulo que Jesus amava”: A expressão é</p><p>forte e mais adequada para alguém se referir a outra pessoa do que para um crente</p><p>endereçar-se a si mesmo. Similarmente, a pessoa que escreveu (lit.) que Jesus estava</p><p>no peito do Pai (eis ton kolpon tou patros, 1.18) abominaria dizer sobre si mesmo</p><p>que ele reclinou-se no peito de Jesus (en tô kolpô lêsou, 13.23).</p><p>Mas esses argumentos, freqüentemente repetidos, deveriam ser abandonados.</p><p>Quando um escritor do Novo Testamento pensa em si mesmo como alguém que</p><p>Jesus amava, nunca é para sugerir que outros crentes não são amados, ou são</p><p>menos amados. Paulo, ao descrever a obra salvadora do Filho de Deus, subitamente</p><p>torna essa obra pessoal: ele “que me amou e se entregou por mim” (G1 2.20): de</p><p>maneira nenhuma Paulo acredita que os gálatas sejam menos amados. Essa sugestão</p><p>revela uma profunda ignorância da dinâmica psicológica da experiência cristã:</p><p>aqueles mais profundamente conscientes de seus pecados e necessidades, e,</p><p>conseqüentemente, os que mais sentem as maravilhas da graça de Deus que os</p><p>alcançou e salvou, eles são os que mais provavelmente falarão sobre si mesmos</p><p>como objetos do amor de Deus em Jesus Cristo. Aqueles que não pensam em si</p><p>mesmos nesses termos deveriam fazê-lo: o não fazer isso reflete a estagnação de</p><p>sua experiência espiritual, como a oração de Efésios 3.14-21 deixa clara. Se um</p><p>“filho do trovão” veio a tornar-se o apóstolo do amor, não é de admirar que ele</p><p>pense em si mesmo como o objeto peculiar do amor de Jesus. Não se trata de uma</p><p>marca de arrogância, mas de quebrantamento. Exatamente por isso é que os cristãos</p><p>ainda cantam na primeira pessoa do singular:</p><p>Amado com amor eterno,</p><p>Guiado pela graça para esse amor conhecer.</p><p>O Espírito, soprado do alto,</p><p>Assim me ensinou!</p><p>Ó essa paz total e perfeita!</p><p>Ó esse arrebatamento totalmente divino</p><p>Em um amor que não cessa.</p><p>Eu sou dele, e ele é meu.</p><p>G e o r g e W. R o b in s o n (1838-77)</p><p>Em João 1.18, e se for para ouvir as nuanças na descrição de João recostado</p><p>ao peito de Jesus (13.23), não se tratará mais do que um exemplo sugestivo de um</p><p>padrão freqüentemente fixado no quarto evangelho: Jesus é o mediador do amor</p><p>de seu Pai, o julgamento de seu Pai, a redenção de seu Pai, o conhecimento de seu</p><p>Pai e a aliança de seu Pai.</p><p>O mesmo tipo de raciocínio provavelmente explica porque o evangelista não</p><p>revela seu nome. Ele prefere referir-se a si mesmo obliquamente, para que o foco</p><p>In tro d u ç ã o 78</p><p>recaia mais ainda sobre aquele a quem ele serve; e, ao escrever, seus propósitos não</p><p>exigem que ele ostente explicitamente sua dignidade apostólica. Ele já é bem</p><p>conhecido por sua escrita (21.24,25), e, como Paulo, quando está escrevendo sem</p><p>intenção fortemente polêmica, não tem necessidade de chamar a si mesmo de</p><p>“apóstolo” (Fp 1.1; contrastar com G1 1.1). A maioria dos estudiosos concorda que</p><p>o discípulo amado não é mera idealização, mas uma figura histórica; em certos</p><p>aspectos, serve de modelo para seus leitores. Eles, também, devem servir como teste­</p><p>munhas da verdade, e viver o amor de Jesus na vida deles.</p><p>Se alguém fosse protestar que esse tipo de argumentação não oferece um</p><p>motivo adequado para o discípulo amado recusar-se a identificar a si mesmo,</p><p>deve-se admitir que se o evangelista é outro que não João, filho de Zebedeu, sua</p><p>falha em mencionar o apóstolo João pelo nome, quando menciona tantos outros,</p><p>é ainda mais difícil de explicar. Pode-se, ainda, ir um pouco mais longe. A sugestão</p><p>de que a expressão “o discípulo que Jesus amava” é mais fácil de entender como</p><p>algo que alguém poderia dizer em relação a outra pessoa mais que a si mesmo não</p><p>é apenas sem mérito, é contraproducente. Ela implica que o evangelista (uma</p><p>pessoa diferente do discípulo amado, segundo essa visão) acreditava que Jesus</p><p>amava certos discípulos, e não outros. Seja qual for o motivo de Jesus ter três</p><p>homens mais íntimos (Pedro, Tiago e João), segundo o testemunho dos sinóticos,</p><p>isso é pouco provável que tenha alguma coisa que ver com a possibilidade de</p><p>Jesus, arbitrariamente, amar mais a alguém.</p><p>(2) Alguns acreditam que “estas coisas” sobre as quais, conforme se diz, o</p><p>discípulo amado escreveu (21.24) referem-se apenas ao conteúdo do capítulo 21,</p><p>não a todo o livro. À parte do fato de que essa visão depende de uma determinada</p><p>leitura do capítulo 21 (cf. comentários feitos sobre esse capítulo), isso resulta em</p><p>uma anomalia: o discípulo amado, aparentemente o apóstolo João, escreveu apenas</p><p>o capítulo 21, enquanto alguma outra pessoa escreveu o restante - embora a</p><p>expressão “discípulo amado” ocorra muito antes do capítulo 21.</p><p>(3) Argumenta-se, com freqüência, que sempre que João aparece com Pedro,</p><p>a superioridade de seu discernimento é realçada. Em João 13, por exemplo, Pedro</p><p>simplesmente faz sinais para o discípulo amado para que faça a Jesus a pergunta</p><p>profética; em João 20, não só o discípulo amado chega à tumba antes de Pedro,</p><p>mas está escrito que apenas ele crê. João diria essas coisas acerca de si mesmo?</p><p>Comentadores mais cuidadosos argumentam, com razão, que, nessas descrições,</p><p>não se trata de uma questão de superioridade ou inferioridade, mas de diferentes</p><p>talentos e personalidades. Barrett (pp. 118-119, 587-588), por exemplo, de modo</p><p>muito convincente, sustenta que 21.24 deve ser lido com os versículos que o</p><p>precedem: coube a Pedro alimentar o rebanho de Deus e glorificar a Deus com</p><p>sua morte, enquanto coube ao discípulo do amor viver por muito tempo e escrever</p><p>aquele livro, servindo como testemunha da verdade. Se o discípulo do amor chega</p><p>à tumba primeiro, Pedro entra primeiro. Se está escrito que o discípulo do amor</p><p>crê, não está escrito que Pedro não crê: a afirmação faz parte de uma descrição</p><p>direcionada a autenticar sua autoria do livro.</p><p>(4) Alguns acreditam que se deve entender 21.22,23 como um indício de</p><p>que o discípulo amado morreu na época da publicação do quarto evangelho, e</p><p>79 Introdução</p><p>uma das razões para a publicação foi aliviar a crise que, conseqüentemente, havia</p><p>surgido. E fácil supor que os rumores, que circulavam livremente, chegaram aos</p><p>ouvidos do apóstolo já idoso, que, a seguir, temeu pelo que poderia acontecer à fé</p><p>de alguns após sua morte, se a fé deles estivesse fundamentada em uma falsa</p><p>interpretação de alguma coisa que Jesus dissera.</p><p>(5) A sugestão de que o discípulo amado tenha ditado o que deveria ser escrito</p><p>a um discípulo que servia de amanuense (cita-se com freqüência Tércio; Rm 16.22)</p><p>recebe menos apoio que João 19.19-22: duvida-se que Pilatos tenha escrito o titulus</p><p>de Jesus na cruz pessoalmente, sendo mais provável que tenha ordenado que isso</p><p>fosse feito. Certamente, não temos como saber qual a liberdade permitida a um</p><p>amanuense no mundo antigo (cf. discussão de Richard N. Longenecker, em Carson/</p><p>Woodbridge I, pp. 101-114). Contudo, o exemplo de Pilatos sugere que o que ele</p><p>mandou escrever era exatamente aquilo que ele queria, e o verbo “dar testemunho”</p><p>em 21.24 sugere que a influência do discípulo amado não era muito remota (cf.</p><p>comentários sobre 21.24). Isso não significa que João não se valeu de</p><p>um amanuense;</p><p>certamente não se deve discutir que apenas a autoria do apóstolo João deve se ajustar</p><p>às evidências internas e externas. É preciso que se diga, contudo, que essa visão</p><p>ajusta-se mais facilmente às evidências e oferece menos explicações tortuosas às</p><p>dificuldades que todas as hipóteses relevantes têm de enfrentar.</p><p>Novamente, em oposição a Brown que (pelo menos em seu comentário) vê o</p><p>discípulo amado como o apóstolo João, mas não como o evangelista, e Cullmann</p><p>(pp.74-85) que vê o discípulo amado como o evangelista, mas não como o apóstolo</p><p>João, as evidências, aqui, parecem favorecer Robinson (Red, p. 310) que escreve:</p><p>“Acredito que ambos estejam corretos naquilo que afirmam, e errados naquilo</p><p>que negam”. Ainda assim, Barrett (p. 132) insiste que é uma “certeza moral” que</p><p>o quarto evangelho não foi escrito por João filho de Zebedeu, enquanto Kümmel</p><p>(p. 245) diz que a autoria de João é “indubitável”. Podemos ficar confundidos</p><p>pelo dogmatismo deles. Barrett escreve (p. 132 n. 2):</p><p>A autoria apostólica foi defendida em profundidade e com conhecimento</p><p>por L. Morris [...], e seus argumentos devem ser cuidadosamente considerados.</p><p>Deve-se reconhecer que não é impossível que o apóstolo João tenha escrito o</p><p>evangelho; é por isso que emprego o termo “certeza moral”. O apóstolo deve</p><p>ter vivido até uma idade avançada; deve-se admitir que ele pode ter recorrido</p><p>a outras fontes além de sua própria memória; ele deve ter aprendido a escrever</p><p>em grego corretamente; ele deve ter aprendido não só a língua, mas o modo</p><p>de pensar dos novos ambientes em que viveu (Éfeso, Antioquia ou Alexan­</p><p>dria); ele pode ter pensado sobre as palavras de Jesus por tanto tempo que elas</p><p>tomaram forma em um novo idioma; ele pode ter-se tornado uma pessoa tão</p><p>obscura que, por algum tempo, os cristãos ortodoxos não deram atenção a</p><p>seu livro. Tudo isso é possível, mas, probabilisticamente, nem tudo deve ter</p><p>acontecido.</p><p>Essa é uma lista misturada. A avaliação da idade avançada passa a ser o elemento</p><p>pelo qual se data o livro. Caso se faça a opção por 80 d. C. (cf § V abaixo) como</p><p>Introdução 80</p><p>data de publicação do livro, João provavelmente estaria com setenta e cinco anos.</p><p>Dodd publicou HTFG quando estava na casa dos oitenta; Goodspeed escreveu</p><p>seu trabalho sobre Mateus aos noventa anos; Sir Norman Anderson ainda escreve</p><p>livros aos oitenta. E não é impossível que o quarto evangelho tenha sido escrito</p><p>antes de 70 d. C. Não consigo imaginar a razão pela qual se deveria considerar de</p><p>todo improvável que um apóstolo “recorresse a fontes além de sua memória”. Já</p><p>tratei do aspecto referente ao grego e à maneira de pensar. Talvez seja útil relatar</p><p>aqui que, quando fui pastor-assistente pela primeira vez em uma igreja de língua</p><p>francesa em Québec, meu superior, com cerca de quarenta anos, era falante nativo</p><p>do inglês, e só começara a aprender francês aos vinte e tantos anos. Recordo-me de</p><p>uma noite em particular, quando voltávamos para casa em seu carro, conversando</p><p>em inglês após um dia cansativo atendendo a chamados pastorais. Repentinamente,</p><p>ele voltou-se para mim e disse: “Sinto muito, Don, vou conversar em francês. Estou</p><p>cansado demais para pensar em inglês”.</p><p>Quanto a fazer as palavras de Jesus terem significado em seu próprio idioma,</p><p>essa é a função do pregador, principalmente em ministérios de culturas cruzadas.</p><p>E a sugestão de que o autor do quarto evangelho era alguém obscuro ou</p><p>desconhecido é, como vimos, um tanto exagerada. Os estudiosos divergem quanto</p><p>ao fato de haver alusões a João na Epístola de Barnabás, no Didachê e em O Pastor</p><p>de Hermas. Provavelmente, a maioria encontra ecos do quarto evangelho em Inácio</p><p>(c. 110 d. C.). O padrão de reconhecimento não é muito surpreendente se o</p><p>evangelho de João tiver sido publicado no final do século I. Não devemos, portanto,</p><p>esperar encontrá-lo em Clemente de Roma (c. 95 d. C.). Talvez haja mais de um</p><p>problema se o quarto evangelho tiver sido publicado antes de 70 d. C. (como</p><p>Morris e Robinson acreditam). Mesmo assim, principalmente se a evidência de</p><p>Irineu a respeito de Papias e Policarpo for vista com compreensão, é difícil dar</p><p>crédito à visão de que “os cristãos ortodoxos não deram atenção” a seu evangelho.</p><p>Além disso, os cristãos daquele tempo e de agora têm seus livros “favoritos”. Mateus</p><p>foi um dos primeiros favoritos; mas João, não. No caso de João, talvez isso esteja</p><p>relacionado ao fato de ele, no início, ter sido usado (e abusado) pelos gnósticos.</p><p>Para pelo menos alguns estudiosos contemporâneos, existe uma matriz de</p><p>crenças, de critérios e de compromissos herdados sobre a origem do quarto</p><p>evangelho, o que torna difícil postular uma autoria apostólica sem abandonar a</p><p>trama herdada.88 Essa matriz está ligada à existência de um círculo joanino</p><p>(Cullmann) ou uma escola joanina (Culpepper JS ), o cerne de uma comunidade</p><p>joanina cuja existência e história podem, em certa medida, ser delineadas por</p><p>inferências extraídas do quarto evangelho e (no caso de, por assim dizer, Brown)</p><p>por inferências oriundas de camadas da tradição as quais se podem acessar. Em</p><p>meu ponto de vista, como esta Introdução sugere, essa trama é formada meramente</p><p>por inferências possíveis e não plausíveis, e a matriz resultante é utilizada como</p><p>88 Por exemplo, na mais extensiva crítica de Robinson (John), P. Grelot (RB 94, 1987, pp.</p><p>519-573) pressupõe que a crítica da fonte pode expor as várias camadas que mostram a</p><p>existência de uma escola inteira de discípulos com tradições que se desenvolvem (por</p><p>exemplo, pp. 543-545); ele não se incomoda em discutir seu caso.</p><p>81 Introdução</p><p>uma grade para eliminar as inferências mais naturais tanto das evidências internas</p><p>quanto das externas.</p><p>Consideremos, por exemplo, a tentativa de Culpepper de colocar a teoria de</p><p>uma escola joanina sobre uma base rigorosa (JS). Seu trabalho é desenvolvido</p><p>com a delineação de várias “escolas” do mundo antigo: a escola pitagórica, a</p><p>academia grega, o liceu, a escola de Qumran, a casa de Hillel, a “escola” de Fílon,</p><p>e assim por diante. Parece que o entendimento de Culpepper em relação à “escola”</p><p>não se diferencia de seita, exceto que uma “escola” tem uma característica adicional:</p><p>ela se preocupa com estudo, aprendizado, ensinamento e escrita (p. 213). Mesmo</p><p>aqui, é claro, seu modelo passa por dificuldades. E ele já se viu forçado a admitir</p><p>isso:</p><p>Nada se sabe a respeito da história da sinagoga-escola em que Fílon trabalhava,</p><p>tampouco sobreviveu ao tempo o nome de seus alunos. A inferência de que</p><p>suas obras continuaram a ser estudadas vem do uso que delas se fez pelas</p><p>últimas escolas cristãs da Alexandria e a evidente popularidade da exegese</p><p>alegórica naquele local. [...] Talvez a razão do silêncio absoluto de nossas</p><p>fontes sobre a história da escola de Fílon se deva ao fato de que, na verdade,</p><p>ele exerceu pouca influência em sua comunidade (p.213).</p><p>Aqui, trata-se de uma especulação acerca do motivo do silêncio das fontes em</p><p>relação a uma escola, cuja existência é uma inferência proveniente do uso poste­</p><p>rior feito pelos cristãos de um dos primeiros escritores judeus! Desse modelo,</p><p>emerge a construção de uma escola joanina, com o discípulo amado como cabeça,</p><p>funcionando para a comunidade como o Paracleto o faz no evangelho de João</p><p>(pp. 261-290). Mas Culpepper não oferece critérios nem algo semelhante para</p><p>que seja possível avaliar como essa “escola” poderia ser diferenciada de um grupo</p><p>de cristãos que compartilhavam os escritos do evangelista e os transmitiam a outros.</p><p>A história da comunidade joanina (ele aqui oscila entre "comunidade” e “escola”),</p><p>conforme ele nos garante, será traçada quando houver um consenso maior sobre</p><p>a “história-composição” do quarto evangelho (p. 279): a suposição é sólida. Ele</p><p>acrescenta que as epístolas joaninas constituem uma evidência da existência de</p><p>“mais de uma comunidade de crentes que compartilhavam as mesmas tradições,</p><p>vocabulário, doutrinas e princípios éticos” - embora, perante isso, também surja</p><p>uma</p><p>suposição coerente sobre a participação da comunidade nos textos, nos quais a</p><p>mais simples das inferências é que as epístolas joaninas constituem uma evidência</p><p>de que seu autor escreveu várias obras para várias comunidades que ele conhecia.</p><p>Elas devem ter constituído um grupo colegiado de igrejas ao redor de uma autoridade;</p><p>em minha opinião, provavelmente o fizeram. Mas ainda é um longo caminho até se</p><p>delinear uma “escola de escritores” e alunos provavelmente responsáveis pela com­</p><p>posição do quarto evangelho. Mesmo o “nós” em João 21.24, um pronome difícil</p><p>sob qualquer ponto de vista (cf. Comentário), não defende sem ambigüidade uma</p><p>“escola” de escritores. Seria mais provável que houvesse um grupo de testemunhas</p><p>composto de anciãos.</p><p>Se, portanto, experimentalmente, afirmamos que o discípulo amado é tanto</p><p>João, o filho de Zebedeu, quanto o quarto evangelista, que diferença isso faz para</p><p>Introdução 82</p><p>nossa interpretação do quarto evangelho? Em determinado aspecto, muito pouca.</p><p>Um determinado livro do Novo Testamento não tem mais autoridade ou transparên­</p><p>cia porque tem um apóstolo como autor; tampouco a gramática grega e a lexicografia</p><p>são transformadas por esse motivo. Em outro aspecto, contudo, deve haver um</p><p>resultado muito importante. Assim como o compromisso com uma hipotética</p><p>“escola” joanina, ou “círculo”, tende a levar os estudiosos a avaliar tanto as evidências</p><p>internas quanto as externas levando em conta a autoria de João de modo um tanto</p><p>diferente do que o exposto neste Comentário; inversamente, a visão de que esse</p><p>evangelho foi escrito por João, filho de Zebedeu (com ou sem a ajuda de um amanu­</p><p>ense) tende a conduzir a uma avaliação cética das evidências obtidas para oferecer</p><p>uma delineação detalhada da comunidade joanina. Isso muda um pouco o foco da</p><p>discussão, como fica claro (ver § VI, abaixo) quando se considera o propósito do</p><p>livro. Enquanto ainda tentamos entender as circunstâncias que levaram João a escrever</p><p>este tipo de livro, e não qualquer outro, estamos livres da fogueira sufocante que é</p><p>tentar reconstruir a comunidade joanina a partir de inferências meramente possíveis,</p><p>versículo por versículo do evangelho, e somos levados a escutar mais atentamente o</p><p>que o evangelista diz sobre Jesus. Levando-se isso em consideração, assim é que</p><p>devemos ler este livro.</p><p>V. A data e proveniência do quarto evangelho</p><p>As sugestões acerca da data do quarto evangelho, surgidas nos últimos cento</p><p>e cinqüenta anos, variam de 70 a. C. aos últimos vinte e cinco anos do século II.</p><p>As datas do século II foram excluídas pela descoberta do Papiro Egerton 2 (cf. §</p><p>II, acima).</p><p>Além dessa limitação, nenhum argumento é completamente convincente, e</p><p>praticamente qualquer data entre cerca de 55 e 95 d. C. é possível. Mesmo assim,</p><p>21.23 sugere que a data mais provável encontra-se mais próxima do final desse</p><p>período do que do início dele (Michaels, p. xxix). Mais por ausência de uma</p><p>prova definitiva que qualquer outra coisa, arriscaria a data de 80 d. C.</p><p>Vale a pena discutir brevemente alguns dos argumentos utilizados para se fixar</p><p>a data em algum momento particular. Algumas datas, é preciso dizer, são antigas</p><p>demais. A inferência a se extrair de 21.19 é que Pedro, com sua morte, glorificou ao</p><p>Senhor, enquanto o capítulo 21 era composto. Pedro morreu em 64 ou 65 d. C.;</p><p>datas anteriores a esta parecem improváveis para o quarto evangelho. Os que</p><p>defendem datas anteriores a 70 d. C. (mas posteriores a 65 d. C.) apontam detalhes</p><p>escritos sobre a Palestina como se Jerusalém e o complexo que abrangia seu templo</p><p>ainda existissem. “Há em Jerusalém, perto da porta das Ovelhas, um tanque” (Jo</p><p>5.2), escreve o evangelista. O argumento seria conclusivo, não fosse o fato de que</p><p>João usa o grego no tempo presente com força “histórica” (i.e. para se referir a algo</p><p>no passado) com mais freqüência que qualquer outro escritor do Novo Testamento.</p><p>Alguns interpretam o uso repetido da palavra “discípulos” em lugar de “apóstolos”,</p><p>para se referir aos Doze, como uma marca de que se tratava de uma igreja primitiva,</p><p>menos estruturada hierarquicamente; aqueles que acreditam que o evangelho foi</p><p>83 Introdução</p><p>escrito mais tarde, usam a mesma data para sugerir que esse evangelho foi escrito</p><p>após todos os apóstolos estarem mortos.</p><p>Alguns sugerem que a influência política atribuída “aos judeus” reflete um</p><p>estágio inicial na relação entre cristãos e judeus, quando os cristãos eram uma</p><p>ínfima minoria. Contrasta, por exemplo, com a relativa posição de poder a que</p><p>Justino Mártir se refere na obra Dialogue with Trypho [Diálogo com Trifão\. Esse</p><p>argumento tem alguma força, mas os judeus tinham superioridade numérica em</p><p>algumas comunidades e poderiam mover a alavanca política até muito depois do</p><p>fim do século I. De qualquer forma, o quarto evangelho tem a intenção de relatar</p><p>como eram as coisas no tempo de Jesus, e não fica claro o quanto dessas descrições</p><p>do evangelista pode ser lido na situação em que de fato se deu. O silêncio do</p><p>quarto evangelho sobre a destruição do templo é considerado por alguns autores</p><p>como uma evidência poderosa de que a melhor data seria 70 d. C. Mas os</p><p>argumentos para tal consideração são complicados. À primeira vista, contudo,</p><p>essa evidência tem alguma força, desde que o tema do evangelista, digamos, em</p><p>2.19-22 pudesse ter se fortalecido, caso a destruição do templo tivesse sido</p><p>mencionada. Será que seu silêncio, no entanto, significaria que ela ainda não</p><p>havia ocorrido? As evidências estão longe de nos convencer disso. A importância</p><p>do templo para os judeus da diáspora variava muito. Se algum período de tempo</p><p>já havia decorrido, talvez uma década, o choque inicial dos relatos de sua destruição</p><p>já havia passado, e não há razão para se pensar que o evangelista deveria ter trazido</p><p>à baila essa informação. Além disso, ele é um escritor que aprecia alusões sutis. Se</p><p>ele escreveu em, digamos, 80 d. C., deve ter tratado a destruição do templo como</p><p>um dado que deu sua contribuição a seu argumento teológico.</p><p>A parte disso e de muitas razões similares para se fixar a data em um período</p><p>anterior a 70 d. C., muito da energia daqueles que sustentam essa opinião está</p><p>focada no pôr em questão os motivos para uma data posterior a 70 d.C.89 Eles, ao</p><p>criticar a posição contrária, são quase tão bem-sucedidos quanto os que defendem</p><p>uma data posterior a 70 d. C.</p><p>Os motivos predominantes para se defender uma data próxima ao final do</p><p>século I, entre 85 e 95 d. C., são basicamente quatro:</p><p>(1) Há um forte acordo entre os teólogos de praticamente todas as correntes</p><p>no que diz respeito à força da tradição sob a qual o evangelho foi escrito, no</p><p>reinado do imperador Domiciano (81-96 d. C.). Mas Robinson (Red, pp.256-</p><p>258) mostrou que essa tradição tem base frágil. Existe uma tradição antiga de que</p><p>o apóstolo João viveu até uma idade avançada, passando, inclusive, pelo reinado</p><p>do imperador Trajano (98-117 d. C.; Irineu, Adv. Haer. 2. 22.5; 3. 3. 4; citado</p><p>por Eusébio, H. E. III. xxiii. 3-4). Jerônimo, admitidamente no século IV, situa a</p><p>morte de João no ano 68 “depois da Paixão de Nosso Senhor” (De. vir. ill. 9), isto</p><p>89 Particularmente, Morris, pp. 35-40; F. L. Cribbs,/5Z 89, 1970, PP. 38-55; Robinson, Red,</p><p>pp. 254-311.</p><p>Introdução 84</p><p>é, ocorrida próximo a 98 d. C.90 Há boas evidências patrísticas de que João foi o</p><p>último dos evangelistas a escrever seu livro (Irineu, Adv. Haer. 3. 1. 1; Clemente,</p><p>como citado por Eusébio, H. E. VI. xiv. 7; o próprio Eusébio, H. E. III. xxiv. 7).</p><p>“Mas que ele escreve como um homem muito velho é uma inferência que só</p><p>aparece mais tarde, a qual é acompanhada por outras colocações que mostram</p><p>que ela é secundária e irrelevante” (Robinson, Red, p.257).</p><p>(2) Muitos estudiosos (encabeçados por Martyn, HTFG) que defendem que</p><p>tanto o conceito como a frase “seria expulso da sinagoga” (9.22; grifo do autor; cf.</p><p>12.42; 16.2; aposynagôgos) revelam um período após a decisão do Concílio de</p><p>Jâmnia para proibir a entrada de cristãos</p><p>His Story, His Thought</p><p>(Eerdmans, 1988).</p><p>Bíblia Sagrada, Edição Pastoral, Editora Paulus</p><p>Ephemerides Theologicae Lovaniensis</p><p>Expository Times</p><p>J. C. Fenton, The Gospel According to John (Clarendon, 1970).</p><p>Giuseppe Ferraro, L '”ora”di Cristo nelquarto vangelo (Rome: Herder,</p><p>1974).</p><p>Giuseppe Ferraro, Lo Spirito nel vangelo di Giovanni (Brescia: Paidéia,</p><p>1986).</p><p>G. Fischer, Die himmlische Wohnungen: Untersuchungen zu Joh 14.2 f</p><p>(Berna/Frankfurt: Lang, 1975).</p><p>Filologia Neotestamentaria</p><p>J. T. Forestell, The Word of the Cross: Salvation as Revelation in the</p><p>Fourth Gospel (An. Bib. 57; Rome: Biblical Institute Press, 1974).</p><p>R. Fortna, The Gospel of Signs (SNTSMS 11; Cambridge University</p><p>Press, 1970).</p><p>E. Franck, Revelation Taught: The Paraclete in the Gospel offohn (Lund:</p><p>Gleerup, 1985).</p><p>15</p><p>Freed</p><p>Fs.</p><p>Gardner-Smith</p><p>GNB</p><p>Gnilka</p><p>Godet</p><p>GRUPO</p><p>Gruenler</p><p>Guilding</p><p>Guthrie</p><p>Guthrie, NTT</p><p>Haenchen</p><p>Hanson</p><p>Harvey</p><p>H. E.</p><p>Heb.</p><p>Hedrick/</p><p>Hodgson</p><p>Hendriksen</p><p>Hengstenberg</p><p>Hennecke</p><p>Holtzmann</p><p>Hoskyns</p><p>Howard</p><p>Howard, CSJ</p><p>HTR</p><p>Hunter</p><p>IBS</p><p>Ibuki</p><p>ICC</p><p>E. D. Freed, Old Testament Quotations in the Gospel of John (SNT</p><p>11; Leiden: Brill, 1965).</p><p>Festschrift (incluindo todos os livros escritos em honra ou em memória</p><p>de alguém).</p><p>P. Gardner-Smith, St. John and the Synoptic Gospels (Cambridge</p><p>University Press, 1938).</p><p>Good News Bible</p><p>J. Gnilka, Johannesevangelium (Würzburg: Echter Verlag, 1983).</p><p>F. Godet, Commentary on the Gospel o f St. John, with a Critical Intro­</p><p>duction, 2 vols., trad. M. D. Cusin (T. & T. Clark, 1887).</p><p>R T. France, D. Wenham e C. Blomberg (eds.), Gospel Perspectives,</p><p>6 vols. (JSOT Press, 1980-86).</p><p>R. G. Gruenler, The Trinity in the Gospel of John: A Thematic Co­</p><p>mmentary on the Fourth Gospel (Baker, 1986).</p><p>A. Guilding, The Fourth Gospel andJewish Worship (Clarendon, 1960).</p><p>D. Guthrie, New Testament Introduction (IVP, ?1990).</p><p>D. Guthrie, New Testament Theologie (IVP, 1981).</p><p>E. Haenchen, A Commentary on the Gospel o f John, trad. R. W Funk,</p><p>eds. R. W. Funk e U. Busse, 2 vols. (SCM/Fortress, 1984).</p><p>A. T. Hanson, Grace and Truth: A Study in the Doctrine of the</p><p>Encarnation (SPCK, 1975).</p><p>A. E. Harvey, Jesus on Trial: A Study in the Fourth Gospel (SPCK,</p><p>1976).</p><p>Ecclesiastical History (Eusebius)</p><p>Hebreu</p><p>Charles W. Hedrick e Robert Hodgson, Hammadi, Gnosti­</p><p>cism, and Early Christianity (Hendrickson, 1986).</p><p>W. Hendriksen, Exposition of the Gospel According to fohn, 2 vols.</p><p>(Baker, 1953-54).</p><p>E. W Hengstenberg, Commentary on the Gospel of fohn, 2 vols. (ET</p><p>T. &T. Clark, 1865-71).</p><p>E. Hennecke, New Testament Apocrypha, 2 vols., ed. W.</p><p>Schneemelcher, trad. R. McL Wilson (Lutterworth, 1963-65).</p><p>H. J. Holtzmann, Evangelium, Briefe und Offenbarung des fohannes</p><p>(Tübingen: J. C. B. Mohr [Paul Siebeck], 31908).</p><p>E. C. Hoskins, The Fourth Gospel, edited by F. N. Davey (Faber</p><p>and Faber, 1954).</p><p>W. F. Howard, “The Gospel according to John”, The Interpreter’s</p><p>Bible, vol. 8 (Abingdon, 1952).</p><p>W. F. Howard, Christianity According to St John (Duckworth, 1943).</p><p>Harvard Theological Review</p><p>A. M. Hunter, According to John (SCM, 1968).</p><p>Irish Biblical Studies</p><p>Yu Ibuki, Die Wahrheit im. 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Gabalda, 1925).</p><p>Latim</p><p>M. Lattke, Einheit in Wort: Die spezifische Bedeutung von ayant]</p><p>ayamv und cpiXei im Johannesevangelium (München: Kösel-</p><p>Verlag, 1975).</p><p>Reinhold Leistner, Antijudaismus im Johannesevangelium? Darstellung</p><p>des Problems in der neueren Auslegungsgeschichte und Untersuchung</p><p>der Leidengeschichte (Bern: Herbert Lang, 1974).</p><p>X. Léon-Dufour, The Gospels and the Jesus of History, trad, e ed. J.</p><p>McHugh (Collins, 1968).</p><p>R. H. Lightfoot, St John’s Gospel: A Commentary (Oxford Univesity</p><p>Press, 1965).</p><p>J. B. Lightfoot, Biblical Essays (Macmillan, 1893).</p><p>B. Lindars, The Gospel o f John (Oliphants, 1972).</p><p>B. Lindars, Behind the Fourth Gospel (SPCK, 1971).</p><p>B. Lindars, New Testament Apologetic: the Doctrinal Significance of</p><p>the Old Testament Quotations (SCM, 1961).</p><p>Alfred Loisy, Le quatrième évangile (Paris: Emile Nourry, 1921).</p><p>H. E. Lona, Abraham in Johannes 8: Ein Beitrag zur Methodenfrage</p><p>(Bern: Herbert Lang, 1976).</p><p>17</p><p>LSJ</p><p>LXX</p><p>Macgregor</p><p>Manson</p><p>Marsh</p><p>Martin</p><p>Martyn, GJCH</p><p>Martyn, HTFG</p><p>Meeks</p><p>Metzger</p><p>Meyer</p><p>Michaels</p><p>Minear</p><p>MM</p><p>Moloney</p><p>Môo</p><p>Morris</p><p>Morris J. Cristo</p><p>Mt</p><p>Mussner</p><p>NA26</p><p>NASB</p><p>NBD</p><p>NEB</p><p>Neot</p><p>Newbigin</p><p>NewDocs</p><p>H. G. Lidell e R. Scott, A Greek-English Lexicon, nova edição revisada</p><p>por H. S. Jones e R Mackenzie, 2 vols. (Oxford University Press,</p><p>1940).</p><p>Septuaginta (versão grega pré-cristã do Antigo Testamento)</p><p>M. I, II, III, IV J. H. Moulton, W. F. Howard e Nigel Turner,</p><p>Grammar of New Testament, 4 vols. (T. &T. Clark, 1908-76).</p><p>G. H. C. Macgregor, The Gospel o f John (Hodder and Stoughton,</p><p>s.d.).</p><p>T. W. Manson, On Paul and John: Some Selected Theological Themes,</p><p>ed. Matthew Black (SCM, 1963).</p><p>J. Marsh, The Gospel o f St John (Penguin, 1968).</p><p>Ralph P. Martin, New Testament Foundations, vol. 1 : The Four</p><p>Gospels (Paternoster, 1976/Eerdmans, 1975).</p><p>J. L. Martyn, The Gospeloffohn in Christian History (Paulist, 1978).</p><p>J. L. Martyn, History and Theology in the Fopurth Gospel (Abingdon,</p><p>21979.</p><p>Wayne A. Meeks, The Prophet-King: Moses Traditions and the</p><p>Johannine Christology (SNT 14; Leiden: E. J. Brill, 1967).</p><p>B. M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament</p><p>(UBS, 1971).</p><p>H. A. W. Meyer, Critical and Exegetical Hand-Book to the Gospel of</p><p>John (ET 1874-78; repr. Winona Lake, IN: Alpha Publications,</p><p>1979).</p><p>J. Ramsey Michaels, John (Harper and Row, 1983).</p><p>P. S. Minear, John: The Martyr’s Gospel (The Pilgrim Press, 1984).</p><p>J. H. Moulton e G. Milligan, The Vocabulary of the Greek New</p><p>Testament, Illustrated from the Papyri and other Non-Literary Sources</p><p>(Hodder and Stoughton, 1930, repr. 1949).</p><p>F. J. Moloney, The fohannine Son of Man (Rome: LAS, 21978).</p><p>DouglasJ. Moo, The Old Testament in the Gospel Passion Narratives</p><p>(Almond, 1983).</p><p>L. Morris, The Gospel according to John (Eerdmans, 1971).</p><p>L. Morris, Jesus is the Christ: Studies in the Theology of John (IVP,</p><p>1989).</p><p>Masoretic Text (o texto-padrão hebraico do Antigo Testamento)</p><p>F. Mussner, The Historical Jesus in the Gospel ofSt John (ET Burns</p><p>and Oates, 1967).</p><p>Nesde-Aland Greek New Testament, 26a edição.</p><p>New American Standard Bible</p><p>J. D. Douglas e N. Hillayer (eds.), New Bible Dictionary (IVP,21982).</p><p>The New English Bible (Nova Bíblia Inglesa), Antigo Testamento,</p><p>1970; Novo Testamento, 21970).</p><p>Neotestamentica</p><p>Lesslie Newbigin,</p><p>na sinagoga. Teses inteiras se basearam</p><p>nesse pressuposto (e.g. Whitacre, pp. 6ss.). Em outras palavras, eles encontram</p><p>nessas expressões um irredutível anacronismo que data o evangelho de João em</p><p>um período posterior a 85 d. C. Até agora essa tese tem sido desafiada em todos</p><p>os pontos (cf. comentários sobre 9.22), e, atualmente, esse argumento exerce menos</p><p>influência que uma década atrás.</p><p>Em termos mais gerais, a despeito da freqüência com que se diz que o quarto</p><p>evangelho reflete relações entre judeus e cristãos no período 70-100 d. C.,</p><p>praticamente quase não temos documentos dos quais se possa dizer, com certeza,</p><p>que pertencem àquele período, e não há nada sugerido pelo quarto evangelho que</p><p>não pudesse ter sido encontrado em algumas comunidades em épocas muito</p><p>anteriores (ou posteriores!).</p><p>(3) Há, com freqüência, inúmeros detalhes tomados como evidências de uma</p><p>data mais tardia. Por exemplo, esse evangelho não fala dos saduceus, que muito</p><p>contribuíram para a vida religiosa de Jerusalém e da Judéia antes de 70 a. C., mas</p><p>perderam importância após essa data. O argumento seria sólido, não fosse pelo</p><p>fato de que João também é similarmente lacônico em relação aos escribas, cuja</p><p>influência aumentou após 70 d. C. E João deixa bem claro que os sacerdotes, que</p><p>rapidamente perderam influência após 70 d. C., tinham pleno controle do Sinédrio</p><p>na época da Paixão de Jesus. Vários detalhes semelhantes são rapidamente discutidos</p><p>nos comentários sobre os capítulos 18— 19.</p><p>(4) No ambiente contemporâneo, talvez a razão mais universal para a fixação</p><p>da data no final do século I seja a reconstrução implícita do desenvolvimento da</p><p>doutrina cristã que muitos estudiosos adotam, uma reconstrução que coloca o</p><p>quarto evangelho no final do processo refletido no Novo Testamento. Muitos</p><p>comentadores pensam que a teologia refletida no quarto evangelho não deve ter</p><p>se desenvolvido muito antes do final do século I. Essa visão ganha uma expressão</p><p>bem concreta no livro de Dunn, Making [Formação], que sustenta que somente</p><p>no final do século I.é que encontramos articulada uma noção bem-desenvolvida</p><p>de um Cristo pessoal, preexistente, e uma correspondente noção de encarnação.</p><p>90 Sobre a fraca evidência de que o apóstolo João foi precocemente martirizado, quase que</p><p>universalmente desprezada (e corretamente) pela maioria dos estudiosos, cf. Guthrie, pp.</p><p>272-273.</p><p>85 Introdução</p><p>Mas muitos não se mostram convencidos dessa tese de reconstruções. Há amplas</p><p>evidências que apóiam essas verdades. A leitura mais natural de Romanos 9.5 é que</p><p>o próprio Cristo é chamado “Deus acima de todos”,91 e Romanos não foi escrito</p><p>depois da metade dos anos 50. Embora essa referência seja discutida, estudos recentes</p><p>defendem que em Filipenses 2.5 e seguintes, que não foi escrito depois do início da</p><p>década de 60 e que, provavelmente, reflete um hino de longa data da igreja, Cristo</p><p>não via sua igualdade com Deus como algo a ser explorado, mas esvaziou-se a si</p><p>mesmo, fez-se homem e sofreu a ignomínia da cruz.92 Se a visão “orgânica” do</p><p>desenvolvimento da cristologia delineada anteriormente (§ III) estiver correta, os</p><p>elementos da cristologia da igreja, a semente, o código genético, se você assim desejar,</p><p>já estava presente no próprio Jesus. Não se pode negar que o desenvolvimento do</p><p>entendimento da igreja aconteceu ao longo de várias décadas. Mas é muito duvidoso</p><p>o fato de que esse desenvolvimento se tenha dado em linha reta, ou que tenha sido</p><p>tão lento como freqüentemente é postulado.93 Como Ellis explica: “Da ressurreição</p><p>de Jesus em diante, não há estágio da história do início do cristianismo em que a</p><p>confissão (implícita ou explícita) de Jesus como Deus esteja ausente.”94</p><p>Além disso, nenhum evangelho ressalta a subordinação funcional de Jesus a</p><p>seu Pai mais fortemente que João (cf. principalmente comentários sobre 5-16-</p><p>30). Em outras palavras, a ênfase, no quarto evangelho, sobre a deidade de Cristo,</p><p>não deve eclipsar ênfases complementares. Se F. C. Conybeare argumentou: “Se</p><p>Atanásio não tivesse o quarto evangelho para extrair textos, Ário não teria sido</p><p>refutado”,95 a resposta de Pollard (p. 3) é apenas levemente exagerada: “Contudo,</p><p>isso é apenas parte da verdade, pois também seria verdadeiro dizer que Ário, se ele</p><p>não tivesse tido o quarto evangelho para extrair textos, não precisaria ser refutado”.</p><p>Em suma, procurar datar o quarto evangelho por meio de trajetórias cristológicas</p><p>não parece muito convincente.</p><p>91 Cf. principalmente B. M. Metzger, “The Punctuation of Rom. 9.5”, em Barnabas Lindars</p><p>e Stephen S. Smalley (eds.), Christ and Spirit in the New Testament (Fs. C. F. D. Moule;</p><p>Cambridge University Press, 1973), pp. 95-112.</p><p>92 Cf, principalmente, N. T. Wright, JTS 37, 1986, pp. 321-352.</p><p>93 Muitos têm discutido esse ponto, muito bem colocado por Robinson, John, cap. 8. Mas sua</p><p>própria solução, exegeticamente, não convence. Após afirmar, corretamente, que a “alta”</p><p>cristologia desenvolveu-se notavelmente cedo, ele expõe sua compreensão da “alta” cristologia</p><p>de João em categorias que mostram que o que ele chama de “alta” cristologia é o que todos</p><p>chamariam de “baixa” cristologia. No evangelho de João, diz ele, Jesus, com freqüência,</p><p>refere-se a si mesmo como “Filho”, mas apenas uma vez como “Filho de Deus”. Se a expressão</p><p>“Deus Unigénito” é original em 1.18, e aplicada a Jesus, trata-se de um escorregão que o</p><p>próprio evangelista teria corrigido com satisfação se lhe tivesse sido apontado. Se em 1.14 a</p><p>“Palavra” torna-se carne, antes dessa “encarnação” a “Palavra” era impessoal. Ainda há muito</p><p>mais sobre isso, mas nada decisivo (cf. comentários nos locais apropriados). Há o erro no</p><p>extremo oposto, de Kasemann: ele defende que Jesus, em João, tem não mais que uma “face</p><p>humana” (cf. J. A. T. Robinson, The Human Face of.God [SCM, 1972]), enquanto o outro</p><p>argumenta que ele é tão completamente divino que os toques humanos são apenas uma</p><p>camada docética superficial.</p><p>94 E. Earle Ellis, art. cit., p. 27.</p><p>95 Hibbert Journal, 1903, p. 620, em sua revisão de Loisy.</p><p>Introdução 86</p><p>Após criticar tantos argumentos relativos à datação, devo agora oferecer dois</p><p>ou três que me levaram a concluir, muito experimentalmente, que o quarto</p><p>evangelho foi publicado por volta de 80-85 d.C. Nenhum deles é conclusivo; e</p><p>todos poderiam ser refutados. Mas vistos conjuntamente, eles têm certo peso.</p><p>Primeiro, não existe pressão convincente para se colocar o evangelho de João</p><p>no início do espectro das datas possíveis, mas existe pressão para que seja colocado</p><p>no final, visto que é citado, em data mais próxima a nós, pelos pais da igreja.</p><p>Segundo, embora os argumentos para se datar João com base em trajetórias</p><p>de desenvolvimento teológico sejam, conforme sugeri, extremamente fracos, se é</p><p>que devemos lhe dar algum peso, em vários pontos o evangelho de João usa uma</p><p>linguagem semelhante ao discurso de Inácio, que é pouco contido e tem poucas</p><p>nuanças teológicas. Estou pensando, em especial, na desenvoltura e freqüência</p><p>com que Inácio refere-se a Jesus como Deus, em sua linguagem sacramental (que,</p><p>em meu ponto de vista, ele em nada compreendeu João), e em suas antíteses</p><p>precisas.</p><p>Terceiro, embora a destruição do templo não tenha tido tanto impacto nos</p><p>judeus da diáspora quanto no judaísmo palestino, é difícil acreditar que, se o</p><p>quarto evangelho tivesse sido escrito depois de 70 d.C., a data seria imediatamente</p><p>após 70 d.C., por exemplo 72 d.C. (um ano antes da queda de Masada). As</p><p>reverberações em torno do Império, tanto para os judeus quanto para os cristãos,</p><p>sem dúvida ainda eram muito poderosas. Foi preciso que um tempo se passasse</p><p>(assim é razoavelmente possível esperar) antes que um documento como o quarto</p><p>evangelho pudesse livremente não fazer uma alusão explícita à destruição do templo.</p><p>Em quarto lugar, embora seja um ponto controvertido, pelo menos ljoão, de</p><p>todas as epístolas joaninas, é a que mais demonstra influências gnósticas. Embora</p><p>alguns defendam que o quarto evangelho</p><p>tenha objetivos similares, enquanto outros</p><p>sugiram que o quarto evangelho seja gnóstico, a verdade, assim parece, é simples. O</p><p>evangelho de João tem seus próprios objetivos, os quais nada têm que ver com o</p><p>gnosticismo em si; pode-se dizer que seu autor não confronta essa corrente do</p><p>pensamento de forma evidente, mas também não sucumbe a ela. E uma dedução</p><p>razoável que, pelos menos, alguns dos hereges que saíram da comunidade joanina</p><p>(ljo 2.19) leram suas interpretações gnósticas no evangelho de João. Se é isso ou</p><p>não, a proposição de que ljoão confronta o gnosticismo sugere que essa epístola</p><p>seja posterior ao quarto evangelho. Se ela vem das mesmas mãos que compuseram</p><p>o evangelho de João (como creio que seja muito provável), ou ainda da mesma</p><p>escola (conforme sugerido com freqüência hoje em diã), deve-se, então, concluir</p><p>que o gnosticismo não era visto como um grande perigo quando o quarto evangelho</p><p>foi escrito, ou, em vários outros pontos, ele teria utilizado outros termos. Em</p><p>outras palavras, sem sugerir que o quarto evangelho sucumbiu ao gnosticismo,</p><p>mas, na verdade, insistindo que ele abrange vários aspectos que facilmente podem</p><p>funcionar como munição contra o gnosticismo, o fato é que ele não é um livro</p><p>que combate tendências gnósticas. Essa diferença de foco teológico entre João e</p><p>ljoão envolve um período de tempo. Se for determinado que esse período é de</p><p>uma década, o quarto evangelho deve ser empurrado para o final do espectro,</p><p>87 Introdução</p><p>mesmo porque ljoão foi escrita por um apóstolo que morreu antes do final do</p><p>século, ou porque, conforme já comentamos, ljoão é citada antes pelos pais da</p><p>igreja. Assim, a data de 80-85 d.C. para a publicação do evangelho de João parece</p><p>razoável.</p><p>A proveniência desse evangelho não é menos incerta. Há quatro locais mais</p><p>comumente propostos. A Alexandria é indicada por alguns, pelo fato de João ter</p><p>certas afinidades com Fílon. Estas são consideravelmente exageradas (cf. comentários</p><p>sobre 1.1) e, de qualquer forma, deve-se admitir que Fílon era lido fora de Alexan­</p><p>dria. Antioquia é colocada à frente, com base no fato de que o quarto evangelho</p><p>apresenta algumas afinidades com as Odes de Salomão siríacas, que, conforme se</p><p>presume, são oriundas dessa região, e com Inácio, que serviu como bispo de Antio­</p><p>quia. Entretanto, mais uma vez, o pressuposto de que a influência literária só é pos­</p><p>sível no local de origem literária não parece convincente já no momento em que se</p><p>explicita isso de maneira tão manifesta. A opinião de que o quarto evangelho deve</p><p>ter sido escrito na Palestina graças a sua estreita familiaridade com detalhes culturais</p><p>e topográficos peculiares à região leva à estranha dedução, bastante estranha em sua</p><p>aparência, de que qualquer livro sobre o Jesus histórico deve ter sido escrito na</p><p>Palestina. Tanto naquele tempo como hoje em dia, sabe-se que os autores não ficavam</p><p>parados em um só local.</p><p>A opinião tradicional é a de que o quarto evangelho foi escrito em Efeso. Em</p><p>grande parte, ela depende do peso dado às evidências patrísticas uniformes, embora,</p><p>algumas vezes, elas sejam difíceis. Eusébio (H. E. III. i. 1) diz que a Ásia (isto é, a</p><p>Ásia Menor, aproximadamente o terço ocidental da atual Turquia) foi designada</p><p>para João quando os apóstolos foram dispersos com o irromper da Guerra Judaica</p><p>(66-70 d.C.). Algumas das designações listadas por Eusébio provavelmente são</p><p>legendárias, mas esta, em particular, é muito provável, pois concorda com outras</p><p>fontes como Irineu [Adv. Haer. 3. 1. 2), que diz que “João, o discípulo do Senhor</p><p>[...] publicou o evangelho na época em que vivia em Efeso, na Ásia”. Contudo,</p><p>alguns alegam que Irineu confunde o apóstolo João com outro João, aquele que</p><p>escreveu o Apocalipse. A questão é complexa demais para ser ventilada aqui. O</p><p>fato de que os montanistas usaram João e que os mesmos encontravam-se, em sua</p><p>maioria, na Frigia, não muito longe de Efeso, sempre é usado para apoiar a</p><p>proveniência efésia; mas, mais uma vez, o evangelho de João, após ser escrito,</p><p>deve ter circulado na Frigia por meio século ou mais, independentemente do local</p><p>onde foi publicado pela primeira vez. O que deve ficar claro é que nenhuma outra</p><p>indicação de local tem o apoio dos pais da igreja; erroneamente ou de modo</p><p>acertado, eles apontam para Efeso.</p><p>VI. O propósito do evangelho de João</p><p>Este tópico, também, tem gerado conclusões muito diversas. Parte da discussão,</p><p>pelo menos, depende de pressupostos ou procedimentos questionáveis, dos quais</p><p>quatro são particularmente comuns:</p><p>Introdução 88</p><p>(1) Muitas das primeiras discussões sobre os propósitos do quarto evangelho</p><p>giram em torno do pressuposto de que João depende dos evangelhos sinóticos.96</p><p>Isso significa que o principal propósito do evangelho de João deveria ser descoberto</p><p>pelo contraste do que João faz com o que fazem os sinóticos. Ele escreveu um</p><p>evangelho “espiritual”, conforme se afirma; ou ele escreveu para complementar os</p><p>esforços dos demais, ou mesmo para suplantá-los. Essas teorias se recusam a deixar</p><p>João ser João; ele deve ser João-comparado-com-Marcos, por exemplo, ou com</p><p>outro sinoticista. Discussões anteriores nesta introdução sobre o relacionamento</p><p>entre João e os sinóticos permitem que eliminemos essas teorias.</p><p>(2) Um número substancial de propostas modernas surgiu a partir de uma</p><p>reconstrução de estudiosos da comunidade joanina, à qual se atribui sua origem</p><p>(e.g. Brown; Schnackenburg; Porsch). Inevitavelmente, existe certo grau de</p><p>circularidade: a comunidade é reconstruída a partir de inferências extraídas do quarto</p><p>evangelho, e como esse pano de fundo é amplamente aceito, a geração seguinte de</p><p>estudiosos tende a construir sobre ele, ou modificá-lo muito pouco, mostrando</p><p>como o quarto evangelho atinge seus propósitos remetendo-se notavelmente àquela</p><p>situação. A circularidade não é necessariamente viciosa, mas é mais fraca do que se</p><p>admite, em virtude do elevado número de inferências meramente possíveis, mas de</p><p>forma alguma determinantes, que são utilizadas para delinear a comunidade em seu</p><p>início.</p><p>Meeks, por exemplo, afirma que a comunidade joanina é sectarista, um</p><p>conventículo isolado em oposição declarada a uma sinagoga poderosa.97 O quarto</p><p>evangelho, portanto, é um resumo dessas polêmicas judaicas, possivelmente uma</p><p>cartilha para novos convertidos, certamente algo para fortalecer a comunidade em</p><p>seu conflito duradouro. Martyn (HTFG) oferece um cenário parecido (discutido</p><p>nas notas sobre Jo 9). Mas componentes mais importantes dessa reconstrução devem</p><p>ser postos em discussão. Pensar a comunidade joanina como isolada e sectária é</p><p>perder a grande visão de João 17, sem mencionar o fato de que a Cristologia de João</p><p>encontra seus paralelos mais próximos nos assim chamados hinos do Novo Testa­</p><p>mento (e.g., Fp 2.5-11; Cl 1.15-20), que sugerem que o evangelista está em estreito</p><p>contato com a igreja.</p><p>Em contraste, Strachan (pp. 44-45) afirma que um dos maiores objetivos de</p><p>João era combater o gnosticismo. Recentes exegeses cuidadosas de várias partes desse</p><p>evangelho provaram ser úteis na batalha da igreja contra o gnosticismo, mas é questio­</p><p>nável se esse era o principal propósito na mente do evangelista (cf. principalmente</p><p>Smalley, pp. 132-135). As categorias são muito judaicas. Comparado com ljoão, o</p><p>quarto evangelho é fraco em respostas ao gnosticismo. Pode-se mesmo concluir que</p><p>se trata de um fracasso retumbante, a julgar pelo número de gnósticos que tentaram</p><p>usá-lo para dar suporte a seus objetivos.</p><p>96 De certa forma, a teoria é tão antiga quanto Clemente de Alexandria (Eusebius, H. E. VI</p><p>xiv 7). No século XX, tomou-se famosa por Hans Windisch, Johannes und die Synoptiker</p><p>(J. C. Hinrichssche Buchhandlung, 1926).</p><p>97 Não apenas seu livro, listado nas Abrevições, mas também seu importante artigo em JBL</p><p>91, 1972, pp. 44-72.</p><p>89 Introdução</p><p>(3) Similarmente, alguns dos itens do propósito de Joio dependem estreitamente</p><p>de um único tema, aspecto ou mesmo ferramenta literária. Mussner,98</p><p>por exemplo,</p><p>examina todas as expressões relacionadas com conhecimento, com ouvir as palavras</p><p>de Jesus, e assim por diante, sugerindo que o evangelista realize uma transferência</p><p>do tempo de Jesus para seu próprio tempo. Nessa visão incorporadora, o passado</p><p>não é anulado, mas o ângulo de visão é do presente. Os leitores são convidados a</p><p>compartilhar a visão do evangelista. A fusão de visões, contudo, é tão forte na visão</p><p>de Mussner, que a palavra distintiva do Jesus histórico não pode ser distinguida.</p><p>Qual o motivo, portanto, da constante distinção que o evangelista faz entre o que os</p><p>discípulos entenderam no início e o que eles compreenderam só depois (cf. discussão</p><p>anterior, § III)? O que se apresenta como um sugestivo ponto inicial para se considerar</p><p>sobre o propósito do quarto evangelho acaba por renegar muitas das características</p><p>essenciais do livro.</p><p>Da mesma forma, Freed" questiona se João 4 não constitui uma evidência de</p><p>que o quarto evangelho foi escrito para, pelo menos em parte, ganhar convertidos</p><p>samaritanos. Pode-se perguntar quais os passos metodológicos que justificam o salto</p><p>de circunstâncias ostensivamente ocorridas nos dias de Jesus para circunstâncias dos</p><p>dias do evangelista. Malina tenta localizar a comunidade joanina pela leitura do</p><p>quarto evangelho dentro dos parâmetros de dois modelos oferecidos pela sociolin-</p><p>güística. Contudo, como demonstrou um debate subseqüente (na palestra em que</p><p>o trabalho de Malina foi apresentado),100 não só a adequação dos modelos sociolin-</p><p>güísticos deve ser questionada (eles são, afinal de contas, projeções de nossas mentes),</p><p>como também a extensão temporal em que se localiza a data da comunidade joanina</p><p>para se encaixar nos modelos pela “leitura espelhada” dos textos e pela visão do que</p><p>realmente não está lá. Em outra tendência, David Rensberger101 aceita sem reservas</p><p>reconstruções modernas da comunidade joanina (baseadas, como vimos, em várias</p><p>inferências apenas possíveis) e, depois, faz inúmeras inferências para delinear</p><p>dimensões sociológicas no propósito de João: o evangelista é um tipo de teólogo da</p><p>libertação. Em determinado ponto, o texto do evangelho é soterrado pela afluência</p><p>de inferências. Não se deve negar que haja implicações éticas na mensagem de João;</p><p>mas deve-se dizer que se toda a tensão for voltada para a alegada comunidade, e</p><p>nenhuma para o Cristo que João procura proclamar, mesmo a mais fraca das intuições</p><p>começaria a dar sinais de alerta. Kasemann defende que o quarto evangelho abarca</p><p>uma cristologia docética, com base em que os elementos humanos na figura de</p><p>Cristo parecem servir como um veículo para a comunicação de revelações e, portanto,</p><p>não são mais que um mero show da humanidade para tornar possíveis as</p><p>comunicações do Cristo joanino. Ele foi criticado em vários aspectos, mas, acima</p><p>98 Mussner, The Historical Jesus and the Gospel o f St. John (ET Burns and Oates, 1967).</p><p>99 E. D. Freed, N o vT U , 1970, pp. 241-256.</p><p>100 Bruce J. Malina et al., The Gospel o f John in Sociolinguistic Perspective, ed. Herman C.</p><p>Waetjen (Protocolo da Quadragésima-oitava Palestra; Centro de Estudos Hermenêuticos</p><p>na Cultura Helénica e Moderna).</p><p>101 Overcoming the World: Politics and Community in the Gospel o f John (SPCK, 1988).</p><p>Introdução 90</p><p>de tudo, porque a data verdadeira que ele isola em João encaixa-se melhor em um</p><p>contexto amplamente explanatório no qual a glória da divina auto-revelação em</p><p>Cristo é manifesta no âmbito do humano e mundano e, por fim, no âmbito da</p><p>vergonha e da aparente derrota (cf. Carson, principalmente pp. 154 e seguintes; e</p><p>observações anteriores).</p><p>(4) Finalmente, vários comentadores adotam o que se poderia chamar de</p><p>abordagem sintética. As melhores sugestões de outro (ou o que parecem sê-lo) são</p><p>combinadas, de modo que o objetivo do evangelho de João é evangelizar judeus,</p><p>evangelizar helenistas, fortalecer a igreja, catequizar novos convertidos, gerar ma­</p><p>terial para a evangelização dos judeus e assim por diante.102 Parte do problema</p><p>aqui é a confusão entre propósito e efeito plausível. Só porque o evangelho de</p><p>João pode ser usado para oferecer conforto aos desolados do século XX, isso não</p><p>significa que seja esse o motivo do evangelista tê-lo escrito. Da mesma maneira, só</p><p>porque esse evangelho poderia ajudar os cristãos judeus a testemunhar para os</p><p>judeus não-convertidos e prosélitos na sinagoga não significa, por si só, que este é</p><p>o motivo dele ter sido escrito. Pensar em todos os bons efeitos plausíveis que</p><p>várias partes desse livro poderiam ter não oferece motivos adequados para se pensar</p><p>que algum deles, ou todos eles juntos, fossem o objetivo que o evangelista tinha</p><p>em mente quando colocou a pena no papel.</p><p>Outras propostas que não convencem podem ser examinadas na maioria das</p><p>apresentações.</p><p>O melhor lugar para se começar são as próprias colocações de João:</p><p>“Jesus realizou na presença dos seus discípulos muitos outros sinais miraculosos,</p><p>que não estão registrados neste livro. Mas estes foram escritos para que vocês creiam</p><p>que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome” (20.30,31).</p><p>As palavras que expressam “que vocês creiam” escondem uma variante textual: tanto</p><p>hinapisteuête (presente do subjuntivo) ou hinapisteusête (subjuntivo aoristo). Alguns</p><p>defendem que a última expressão dá suporte a uma proposta evangelística: que se</p><p>deve ter fé, que se deve acreditar. A primeira, portanto, embasa uma proposta</p><p>edificadora: que se deve continuar na fé, continuar a acreditar. De fato, pode</p><p>facilmente ser demonstrado que ambas as expressões são usadas tanto para se começar</p><p>a ter fé como para se continuar a ter fé (cf. Carson, “Purpose”, pp. 640-641), de</p><p>modo que nada pode ser resolvido por intermédio de uma variante ou de outra.</p><p>Vale a pena comparar esses versículos com o que está em ljoão: “Escrevi-lhes</p><p>estas coisas, a vocês que crêem no nome do Filho de Deus, para que vocês saibam</p><p>que têm a vida eterna” (ljo 5.13). Esse versículo, claramente, foi escrito para</p><p>encorajar os cristãos; e João 20.30,31, pela forma contrastante de sua expressão,</p><p>soa evangelístico.</p><p>Essa impressão é confirmada pela sólida evidência sintática de que a primeira</p><p>cláusula de seus propósitos em 20.31 deve ser interpretada “que vocês devem</p><p>acreditar que Cristo, o Filho de Deus, é Jesus”. Assim, a questão fundamental do</p><p>102 Beasley-Murray, pp. lxxxvii-xc, aproxima-se dessa postura.</p><p>ycaro</p><p>Realce</p><p>91 Introdução</p><p>quarto evangelho não é: “Quem é Jesus?”, mas: “Quem é o Messias? Quem é o</p><p>Cristo? Quem é o Filho de Deus?”.103 Em seu contexto, essas são questões de</p><p>identidade, não de tipo, isto é, a questão: “Quem é o Cristo?”, não deve, aqui, ser</p><p>interpretada como se significasse: “Sobre que tipo de ‘Cristo’ vocês estão falando?”,</p><p>mas: “Vocês afirmam saber quem é o Cristo. Provem-no, então: quem é ele?”.</p><p>Esses assuntos são discutidos no Comentário sobre 20.31, e as justificativas</p><p>técnicas estão em Carson (“Purpose” [“Propósito”]). Por enquanto, é suficiente</p><p>observar que os cristãos não fariam esse tipo de pergunta, porque já conheciam a</p><p>resposta. As pessoas que mais provavelmente fariam esse tipo de pergunta seriam</p><p>os judeus e os prosélitos judeus que sabiam o que “o Cristo” significa, as que</p><p>tinham algum tipo de expectativa messiânica e que, talvez, mantivessem diálogo</p><p>com os cristãos, pois queriam saber mais. Em suma, o evangelho de João não é só</p><p>evangelístico em seus objetivos (que era uma vertente dominante até o século XX,</p><p>quando apenas poucas pessoas o defendiam),104 mas busca, em particular,</p><p>evangelizar judeus e prosélitos judeus.</p><p>Essa visão não tem sido popular, mas vem crescendo em influência,105 e pode-</p><p>se comentar muito a respeito dela. Ela pode, inclusive, receber apoio indireto de</p><p>alguns estudos recentes que tentam interpretar o quarto evangelho como uma</p><p>obra de literatura missionária. Os melhores dentre eles106 oferecem excelentes</p><p>exegeses, mas dão pouca atenção ao fato de que, com uma pequena adaptação, as</p><p>mesmas</p><p>exegeses poderiam justificar a tese que o evangelho de João não foi escrito</p><p>para crentes sobre a missão, mas para estrangeiros para realizar a missão.</p><p>103 Pode-se demonstrar que, antes de o cristianismo fazer qualquer avanço, “Filho de Deus” era</p><p>usado nos círculos judaicos em paralelo com expressões referentes ao Messias davídico (cf.</p><p>comentários sobre 20.30,31). Mesmo no quarto evangelho, das onze ocorrências de “Filho</p><p>de Deus” (duas das quais são variantes), três estão em paralelo com Messias ou Cristo (1.49;</p><p>11.27; 20.31), uma está ligada à ressurreição, um conceito tipicamente judaico (5.25), duas</p><p>são ligadas ao Antigo Testamento e/ou tradição judaica (10.36; 19.37), e as cinco restantes</p><p>são inteiramente compreensíveis dentro de um contexto judaico. Portanto, a vertente que</p><p>diz que o acréscimo da expressão “Filho de Deus” em 20.31 sugere uma extensão da</p><p>mensagem ao mundo helenístico, fora do contexto judaico, não se justifica.</p><p>104 Por exemplo, W. Oehler, Das Johannesevangelium eine Missionsschrift fü r die Welt</p><p>(Bertelsmann, 1936; idem, Zum Missionscharackter des Johannesevangeliums (Bertelsmann,</p><p>1941); Dodd, IFG, p. 9; C. F. D. Moule, The Birth o f the New Testament (Black, 31982),</p><p>pp. 136-137; Guthrie, pp. 284-285; Morris, pp. 855-857; c f Martin, pp. 274ss.</p><p>105 K. Bornhaüser; W. C. van Unnik, SEI, 1959, PP. 382-411; J. A. T. Robinson, N TS 6,</p><p>1959-60, pp. 117-131 (repr. Robinson, Twelve, pp. 107-125); David D. C. Braine, SNTU</p><p>13, 1988, pp. 101-155, principalmente pp. 105-111; Geoge J. Brooke, “Christ and the</p><p>Law in John 7-10”, em Barnabas Lindars (ed.), Law and Religion-. Essays in the Place ofthe</p><p>Law in Israel and Early Christianity (SPCK, 1988), pp. 102-112; Carson, “Purpose”.</p><p>106 Cf, principalmente, Okure, passim. Algo similar poderia ser dito em relação a Miguel</p><p>Rodriguez Ruiz, Das Missionsgedanke des Johannesevangeliums: Ein Beitrag zurjohanneischen</p><p>Soteriologie e Ekklesiologie (Echter Verlag, 1987). Para examinar estudos recentes sobre</p><p>João a partir dessa ótica, c f Schnackenburg, 4.58-72.</p><p>Introdução 92</p><p>A tradução de palavras semitas (e.g. 1.38,41; 4.25; 19.13,17) tem pouco</p><p>influência na raça ou religião da pretensa audiência; ela apenas se reflete na</p><p>competência lingüística da audiência. Muito mais importante é a combinação de</p><p>citações bíblicas e, principalmente, alusões ao Antigo Testamento que pressupõem</p><p>considerável familiaridade com o Antigo Testamento grego.107 Essas alusões podem</p><p>ser explícitas (e.g. a cobra no deserto, 3.14; o maná vindo do céu, 6.31ss.), mas elas</p><p>são muito mais marcantes quando implícitas. Alguns, por exemplo, analisam a</p><p>maneira como a pessoa e a obra de Jesus estão atadas a elementos das festas judaicas,</p><p>ou a maneira como Jesus repõe o “lugar sagrado” (cf. Davies pp. 288-335). Culpepper</p><p>(p. 221) observou corretamente que nenhuma explicação é dada para “Filho do</p><p>homem” (cf. Comentário sobre 1.51), sobre “o Profeta” (1.21,25; 6.14), sobre o</p><p>demônio (13.2) ou Satanás (13.27). A história da escada de Jacó é pressuposta</p><p>(1.51), as palavras de abertura: “No princípio”, lembram as palavras de abertura de</p><p>Gênesis 1.1. Estes e fatos semelhantes excluem a visão de que o evangelista escrevia</p><p>para leitores biblicamente iletrados. Se o trabalho é evangelístico e endereçado àqueles</p><p>que têm alguma competência no que denominamos Antigo Testamento, os judeus</p><p>da diáspora e os prosélitos do judaísmo constituem a única possibilidade. Combinado</p><p>ao individualismo do quarto evangelho108 - isto é, à ênfase sobre o aceitar individual</p><p>da fé e à resposta adequada à graciosa revelação de Deus em Jesus - o quadro é</p><p>determinante.</p><p>Se João está profundamente interessado em evitar que os judeus da diáspora</p><p>cometam os mesmos erros e pecados que os judeus da Palestina, não é de surpreender</p><p>que ele usasse uma linguagem forte para denunciar “os judeus” (cf. Comentário</p><p>sobre 1.19ss.). João bem poderia ter interesse em diferenciar os judeus comuns de</p><p>(pelo menos) alguns de seus líderes. O quarto evangelho não é tão anti-semita</p><p>como algumas pessoas pensam: nele está que a salvação vem “dos judeus” (4.22)</p><p>e, com freqüência, a referência a “judeus” significa “judeu da Judéia” ou “os líderes</p><p>judeus” ou coisa do gênero.109 Anti-semita é, simplesmente, a categoria errada</p><p>para se encaixar o quarto evangelho: qualquer hostilidade que esteja presente refere-</p><p>se a questões teológicas relacionadas com a aceitação ou com a rejeição da revelação,</p><p>e não de raça. Como poderia ser uma questão de anti-semitismo, uma vez que todos</p><p>os primeiros cristãos eram judeus, e todos os quatro evangelistas e seus leitores</p><p>também o eram? Aqueles que respondem a Jesus — sejam judeus, sejam samaritanos,</p><p>sejam “outras ovelhas” (10.16) que serão conduzidas por Jesus — são abençoados;</p><p>aqueles que o ignoram ou o rejeitam o fazem por falta de fé, por desobediência</p><p>(3.36) e cegueira condenável (9.39-41), e não por uma questão genética.</p><p>107 Cf. D. A. Carson, “John and the Johannine Episdes”.</p><p>108 Cf. Moule, op. cit., pp. 136-137.</p><p>109 Cf. principlamente Reinhold Leistner, Antijudaismus im Joahannesevangelium? Darstellung</p><p>des Problems in der neueren Auslegungsgeschichte und Untersuchung des Leidengeschichte</p><p>(Herbert Lang, 1974); S.Wilson, IBS 1, 1978, pp. 28-50.</p><p>93 Introdução</p><p>O Comentário que se segue detém-se ocasionalmente para mostrar como uma</p><p>passagem ou outra se encaixa bem na proposta acima mencionada. Alguns</p><p>sustentam, por exemplo, que João 14— 17 provavelmente não pode ser visto como</p><p>basicamente evangelístico. Tal julgamento é prematuro, por pelo menos duas razões.</p><p>Primeira, o evangelismo da igreja primitiva não era meramente existencial. Ele</p><p>tinha de explicar, por assim dizer, “como se vai daqui para lá”, principalmente se a</p><p>audiência-alvo era judaica. Segundo, a melhor literatura evangelística não só explica</p><p>por que devemos nos tornar cristãos e como nos tornarmos cristãos, mas o que</p><p>significa ser cristão. João 14— 17 aborda esses conceitos de maneira bastante precisa,</p><p>e numerosos detalhes naqueles capítulos também sugerem uma intenção</p><p>evangelística (e.g. 14.6).</p><p>Barrett {G JJ, pp. 1-19) tece grandes objeções a essa tese porque encontra</p><p>outras ênfases, diferentes das judaicas, no quarto evangelho. Mas isso dificilmente</p><p>é um impedimento para a tese. O judaísmo da diáspora não foi nada senão</p><p>sincrético. A evidência de Barrett é cuidadosamente colocada; sua conclusão não</p><p>está vinculada a ela.</p><p>Essas breves reflexões sobre os propósitos do evangelho de João estão relacionadas</p><p>em nossas discussões anteriores sobre a relação existente entre João e os sinóticos. Se</p><p>João tinha consciência da existência de um ou mais dos evangelhos sinóticos, por</p><p>que ele não usou mais o material deles? Não que ele devesse usar tudo, mas não é de</p><p>surpreender que ele não use temas deles perfeitamente compatíveis com o seu? Por</p><p>que, por exemplo, ele não menciona a transfiguração, com sua antecipação da glória</p><p>final de Jesus, a superioridade de Jesus sobre Moisés e Elias (“Este é o meu Filho</p><p>amado em quem me agrado. Ouçam-no!”), a condição de Filho de Jesus e a relação</p><p>disso com seu sofrimento (cf. Mt 17.1-13; Mc 9.2-13; Lc 9.28-36) — todos eles</p><p>não são temas preciosos para João?</p><p>Certamente, João conhecia muito mais materiais que poderia utilizar, mas</p><p>escolheu não fazê-lo (21.31; 21.25). Não devemos presumir que silêncio a respeito</p><p>de algum assunto signifique ignorância. Mas, se admitimos que o evangelista era</p><p>João, filho de Zebedeu e, além disso, que tinha lido um ou mais dos evangelhos</p><p>sinóticos, e se seu propósito ao escrever fosse evangelizar os judeus e os prosélitos</p><p>da diáspora, então é possível concluir que: (a) ele não escreveu para superar ou</p><p>corrigir os evangelhos que já se encontravam em circulação, mas porque os julgou</p><p>inadequados para seus objetivos-, (b) foram seus próprios objetivos que amplamente</p><p>determinaram o que ele incluiu ou deixou de incluir em seu evangelho. Aqui, sem</p><p>investigarmos o propósito de cada um dos sinóticos, é possível</p><p>que um ou mais</p><p>desses evangelhos tenha sido lido por pessoas de seu público-alvo. Mas João dá</p><p>seu próprio testemunho. Anos de pregação para os judeus, tanto da Palestina</p><p>quanto os da diáspora, deram-lhe algumas idéias de como isso poderia ser feito.</p><p>Então, ele coloca suas idéias no papel; o resultado é o evangelho de João.</p><p>Na maior parte do quarto evangelho, há um mover dos sinais para o discurso,</p><p>a poderosa reiteração de uma gama relativamente pequena de temas que lidam</p><p>basicamente com as questões mais fundamentais: o cuidadoso relato de como os</p><p>primeiros discípulos vieram para a fé cristã, o padrão de relacionamento das</p><p>Introdução 94</p><p>Escrituras do Antigo Testamento com essa comunidade da nova aliança, os avisos</p><p>contra a descrença cuidadosamente expostos, as explicações sobre tal descrença</p><p>contra o pano de fundo de textos análogos do Antigo Testamento (principalmente</p><p>o cap. 12), a maneira pela qual a presença de Jesus ainda é mediada pelo Espírito</p><p>Santo, que as Escrituras do Antigo Testamento prometeram que caracterizaria a</p><p>era messiânica, a maneira diferenciada de abordar a morte, ressurreição e exaltação</p><p>de Jesus, as ênfases especiais na narrativa da ressurreição, e muito mais.</p><p>As omissões são mais difíceis de ser explicadas, não por não se encaixarem</p><p>nos propósitos do evangelho de João, mas porque as explicações para o silêncio</p><p>são sempre especulativas. Em relação à omissão da narrativa da transfiguração,</p><p>considerada por muitos como a mais grave, podemos considerar isto:</p><p>(1) Essa não é a única omissão: a omissão da instituição da ceia do Senhor</p><p>tem gerado enormes discussões e em nada são relevantes à transfiguração: cf.</p><p>Comentário sobre 6.25 e seguintes.</p><p>(2) E possível, embora certamente não seja provável, que muitos de seus</p><p>leitores já estivessem familiarizados com um ou outro relato da transfiguração —</p><p>da mesma forma que muitos estudiosos afirmam que grande parte dos leitores</p><p>conhecia a ceia do Senhor e, portanto, sua instituição. O mesmo poderia ser dito</p><p>em relação a outras surpreendentes omissões, especialmente se um ou mais dos</p><p>sinóticos estavam em circulação. E digno de nota quão poucos episódios sinóticos</p><p>estão presentes em João, e a ausência daqueles que não poderiam ser omitidos</p><p>(e.g. a alimentação dos cinco mil não poderia ser deixada de lado, se João pretendia</p><p>incluir o discurso do pão da vida). Sem sugerir que o evangelista pretendia superar</p><p>ou corrigir os sinóticos (tal observação é muito abstrata e torna João um mero</p><p>parasita dos sinóticos, além de desconsiderar os objetivos declarados de João,</p><p>20.30,31); isso significa que João, se ele escolheu escrever seu próprio livro segundo</p><p>seus próprios propósitos, deveria fazê-lo sem sentir a pressão de simplesmente</p><p>repetir aquilo que já foi feito.</p><p>(3) Os temas importantes relacionados à transfiguração (mencionados acima)</p><p>estão todos presentes em João, mas:</p><p>(4) João deve ter decidido omitir a narrativa, porque não se afinava com sua</p><p>ênfase sobre a cruz/exaltação de Jesus como a glorificação definitiva do Filho. É</p><p>claro que ele poderia fazer com que a transfiguração se encaixasse. Para aqueles que</p><p>tinham olhos para ver, os sinais de Jesus demonstravam sua glória (2.11) mesmo</p><p>antes da cruz; pode-se presumir que a transfiguração poderia ser tratada da mesma</p><p>maneira. Mesmo assim, João sustenta a ênfase da glória do Filho no contexto de</p><p>sua humanidade, culminando na cruz e no retorno à glória que ele tinha com o</p><p>Pai antes da criação do mundo; ele não retrata lampejos de glória um tanto abstratos</p><p>daquela missão, um antegozo do que estava para acontecer, separadamente da</p><p>missão em si. Assim, no paralelo mais próximo da transfiguração, a voz vinda do</p><p>céu em João 12.28, tudo gira em torno da iminência da ‘hora que não é nada</p><p>menos que a cruz/exaltação em si. A hora do Filho ser glorificado está “aqui”, ou</p><p>seja, é o próximo item no tempo soberano e gracioso de Deus; mas não é uma</p><p>demonstração visível de glória antes do ápice em torno do qual o evangelho de</p><p>João foi construído.</p><p>95 Introdução</p><p>(5) Se o propósito de João é evangelizar judeus e prosélitos, sem dúvida ele</p><p>está consciente da ‘pedra de tropeço’ que a cruz é para os judeus {(f. ICo 1.23).</p><p>Parte de seu objetivo, portanto, ao escrever um livro evangelístico para judeus e</p><p>prosélitos, é tornar coerente a noção do Messias crucificado. Ele não pode re­</p><p>mover a ofensa intrínseca da cruz. O que ele pode fazer, o que ele sente que tem de</p><p>fazer, é mostrar que a cruz estava lá desde o início do ministério de Jesus (Jesus é</p><p>anunciado como o Cordeiro de Deus, 1.29), e que a cruz é, ao mesmo tempo, nada</p><p>menos que um plano de Deus, a evidência da rejeição de um povo a seu Messias, a</p><p>maneira para que Jesus retornasse à presença de seu Pai, o cerne dos inescrutáveis</p><p>propósitos de Deus para trazer limpeza Qo 13) e vida a seu povo, o nascer da era</p><p>escatológica prometida, o surpreendente plano de Deus para trazer glória a si mesmo</p><p>ao ser glorificado em seu Messias. E se esse é o objetivo de João, não é inteiramente</p><p>surpreendente que ele tenha decidido não dizer nada sobre a transfiguração. Seu</p><p>propósito era extremamente focado para admitir isso.</p><p>Essa abordagem pode ser embasada pela reflexão sobre o “enredo” do quarto</p><p>evangelho. O “enredo” não é só uma mera seqüência de eventos. “O rei morreu, e</p><p>depois a rainha morreu”, isso é uma história. “O rei morreu e depois a rainha</p><p>morreu de desgosto”, isso é um enredo. A seqüência temporal é preservada, mas o</p><p>senso de causalidade lhe faz sombra.110 Portanto, o enredo do evangelho de João</p><p>é bastante conciso e está atado, finalmente, à “hora”, ao propósito de Deus no</p><p>evento redentor crucial de todo o testemunho cristão, a morte, ressurreição e</p><p>exaltação de Jesus Cristo, e a urgência de fé verdadeira no curso daquele evento.</p><p>Nada deterá João em enfatizar aquele ponto - até mesmo em pressionar homens e</p><p>mulheres a entrar em acordo acerca daquele ponto.</p><p>VII. Algumas ênfases teológicas em João</p><p>Algumas das ênfases de João já foram apresentadas. Sua teologia é tão maravilho­</p><p>samente integrada que, no entanto, tentar compartimentalizar seu pensamento,</p><p>separando por itens seus componentes, acaba, até certo ponto, por desfigurá-lo. Os</p><p>comentários com os melhores sumários teológicos são, provavelmente, os de Barrett</p><p>(pp. 67-99) e Schnackenburg (em suas muitas dissertações). Vários estudos de nível</p><p>intermediário são úteis,111 como são as seções sobre João em algumas teologias-</p><p>padrão do Novo Testamento.112 Embora haja incontáveis obras que examinem este</p><p>ou aquele aspecto de seu pensamento, não há nenhuma abordagem da teologia</p><p>joanina que esteja à altura desse nome.</p><p>110E. M. Forster, Aspects o f the Novel (1927, repr. Penguin, 1962), p. 87; citado em Culpepper,</p><p>p. 80. Cf. também J. A. du Rand, “Plot and Point of View in the Gospel of John”, em</p><p>Petzer/Hartin, pp. 149-169.</p><p>111 E.g., Howard, CJS-, Vanderlip; Morris,/C; e if. Kysar, Fourth, pp. 173-263; Smith, Essays,</p><p>pp. 175-222.</p><p>112 E.g., W. G. Kümmel, The Theology o f the New Testament (SCM, 1974), pp. 255-319; George</p><p>E. Ladd, A Theology o f the New Testament (Lutterworth, 1975/Eerdmans, 1974), pp. 213-</p><p>308.</p><p>Introdução 96</p><p>Uma vez que o Comentário tenta oferecer alguns comentários teológicos (não</p><p>somente observações sobre palavras e cenários históricos e coisas semelhantes), o</p><p>que se segue não é somente uma exposição de várias ênfases teológicas do quarto</p><p>evangelho como uma lista de brevíssimos sumários de tais ênfases e uma indicação</p><p>de onde são tratados mais longamente no Comentário.</p><p>(1) A apresentação de João sobre quem é Jesus baseia-se no cerne de tudo o</p><p>que é distintivo nesse evangelho. Não é apenas uma questão de títulos endereçados</p><p>a Jesus que não são encontrados fora do evangelho de João (e.g. “Cordeiro de</p><p>Deus”, “Palavra”, “Eu sou”). Em vez disso, fundamental a tudo o mais que se diz</p><p>dele, Jesus é peculiarmente o Filho de Deus, ou simplesmente o Filho. Embora</p><p>“Filho de Deus” possa servir de sinônimo grosseiro para</p><p>“Messias”, ele é enriquecido</p><p>pela maneira única na qual Jesus, como Filho de Deus, relaciona-se com seu Pai.</p><p>Ele está funcionalmente subordinado ao Pai e faz somente aquilo que o Pai lhe</p><p>incumbe de dizer ou fazer, e faz tudo o que o Pai faz, pois o Pai lhe mostra tudo o</p><p>que faz. A perfeição da obediência de Jesus e a natureza não-qualificada de sua</p><p>dependência torna-se, assim, os loci (lugares) nos quais Jesus revela nada menos</p><p>que as palavras e feitos de Deus. Embora “Filho de Deus” pudesse ser usado de</p><p>maneiras extraordinariamente diversas no mundo antigo, essa ênfase distintiva</p><p>em João lança seu brilho sobre vários outros títulos cristológicos. “Filho de Deus”,</p><p>como já vimos, pode ser paralelo a “Messias”; mas esse título é tão poderosamente</p><p>restringido por essa relação entre o Pai e o Filho, que “Messias” se torna não</p><p>apenas uma categoria profética ligada à linhagem de Davi e à expectativa dos</p><p>profetas, mas também um título que exprime a obra profundamente reveladora do</p><p>servo prometido de Deus.</p><p>Similarmente, embora “Filho do homem” possa acomodar as nuanças que recebe</p><p>nos sinóticos, em que caracteristicamente se encaixa em uma das três categorias (o</p><p>Filho do homem ministrando na terra, sofrendo em humilhação e morte, bem</p><p>como vindo em glória apocalíptica para inaugurar o Reino consumado), a configu­</p><p>ração de pronunciamentos em João é bastante independente. Tipicamente, o Filho</p><p>do homem é ‘elevado’ na morte, glorificado por intermédio da morte, de forma que</p><p>aqueles que acreditam nele terão vida eterna. Mas esse título, também, tem implica­</p><p>ções de revelação: só o Filho do homem esteve no paraíso e, portanto, pode falar o</p><p>que nenhum outro homem conhece; só ele é a ligação entre o céu e a terra (1.51;</p><p>3.11-13).</p><p>Portanto, é maravilhoso que o título condensador dado a Jesus por João seja</p><p>‘Palavra’.113 Trata-se de uma escolha brilhante. “No princípio era aquele que é a</p><p>Palavra”; no início Deus expressou a si mesmo, por assim dizer. E aquela expressão</p><p>de si mesmo, a própria Palavra de Deus, identificada com Deus e distinguível dele</p><p>mesmo, agora se tornou carne, a culminação da esperança profética.</p><p>Para “Filho de Deus” ou “Filho”, cf. Comentário sobre 1.14,34,49; 3.16-18;</p><p>5.16-30,37,38,43-46; 8.36ss.; 10.31-39; 11.27; 14.10; 15.22-24; 17-lss.; 19.7;</p><p>20.17,30,31.</p><p>113 [N. do T.] Em algumas versões, Verbo.</p><p>97 Introdução</p><p>Para “Filho do homem”, cf Comentário sobre 1.51; 3.13,14; 5.27; 6.27,53,</p><p>54,62; 8.28,29; 9.35; 12.23-34; 13.31,32.</p><p>Para “Rabi” ou “Mestre”, cf. Comentário sobre 1.38,49; 3.2,26; 4.31,32; 6.25;</p><p>[8.4]; 11.3,8,28; 13.13; 20.16.</p><p>Para “Messias” ou “Cristo”, cf. Comentário sobre 1.19,20,29ss.,40-42; 3.1-3;</p><p>4.25,26,28,29; 6.60-62; 7.30-32,40-42; 9.22,39; 10.22-30; 11.27; 12.34;</p><p>20.30,31.</p><p>Para “Cordeiro de Deus”, cf. Comentário sobre 1.28,29-36; 10.14-18;</p><p>11.51,52; 12.1; 15.13; 19-14, e cf. Comentário sobre o tópico “salvação”, a seguir.</p><p>Para o uso de: “Eu sou”, com ou sem predicados, cf. Comentário sobre 4.26;</p><p>6.20,35; 8.12,18,23,24,28,58; 10.7,9,11,14; 11.25,26; 13.19; 14.6; 15.1,5;</p><p>18.6,8.</p><p>Para Jesus como Rei de Israel ou dos judeus, cf. Comentário sobre 1.49; 12.13-</p><p>18; 18.33-38; 19.2,3,12,15,19-22.</p><p>Para a maneira como Jesus, como a “Palavra”, ilumina esse evangelho, cf.</p><p>Comentário sobre 1.1-18; 3.3; 5.19-30; 6.63; 10.34-36; 12.44-50; 13.31,32; 14.6;</p><p>16.12; 17.6,17; 19.5; 21.25.</p><p>Para Jesus como Deus, cf. Comentário sobre 1.1,14,18; 5.19-30; 8.24,28,58;</p><p>10.33-36; 18.5,6,8; 20.28.</p><p>Para outros títulos e ênfases cristológicos (exceto aqueles implícitos em outras</p><p>ênfases joaninas, a seguir), cf. Comentário sobre 1.25-27,34,38,39; 3.1,2,16-21;</p><p>4.19,24,33,34,42; 5.9,10,26,31,32,45,46; 6.14,15,46,61,68; 7.7-9,18,45,46,52;</p><p>8.14,30; 9.7,16,17; lO.lss.; 11.32-35; 12.7,8,12-15,44-50; 13.1ss.,36,37;</p><p>14.6,7,9-11,28-31; 15.1-5; 16.2,3; 17-lss.; 18.4,11.</p><p>(2) Tanto no mundo antigo quanto no atual, salvação não era uma categoria</p><p>transparente; precisava ser preenchida. Podemos perguntar: salvação de quê?; E</p><p>por que meios? O fato de que Jesus não veio para julgar o mundo, mas para salvá-</p><p>lo (3.17; 12.47), pede que reflitamos acerca da natureza da salvação que ele realizou.</p><p>A salvação, ele insiste, vem dos judeus (4.22): o cenário da compreensão de Jesus</p><p>de sua própria missão é moldado pelas Escrituras e mediado pelos judeus, e não</p><p>por distintivos samaritanos, menos ainda pelo gnosticismo.</p><p>Se Jesus é o Cordeiro de Deus, isso significa que ele pode tirar os pecados do</p><p>mundo (1.29,36). A escravidão da qual ele liberta homens e mulheres é a escravidão</p><p>do pecado (8.34ss.). Apesar da grande ênfase sobre Jesus como aquele que revela</p><p>seu Pai, a salvação não vem (como no gnosticismo) pela mera revelação. A obra de</p><p>João é um evangelho: todo o desenvolvimento do enredo se dá em torno da cruz</p><p>e da ressurreição. A cruz não é simplesmente um momento revelatório (contra</p><p>Forestell): ela é a morte do pastor por suas ovelhas, o sacrifício de um homem por</p><p>sua nação, a vida que é dada para o mundo, a vitória do Cordeiro de Deus, o</p><p>triunfo do Filho obediente que, em conseqüência de sua obediência, transmite</p><p>sua vida, sua paz, sua alegria e seu Espírito.</p><p>Para o desenvolvimento que João faz do tema da salvação, e noções</p><p>relacionadas: de pecado, de expiação, de vida e de conhecimento de Deus, ver</p><p>Comentário sobre 1.4,5,8-11,16,17,29-34; 2.12-17,23-25; 3.1,2,14,15,16-21,36;</p><p>Introdução 98</p><p>4.10,13-26,44,48,53; 5.14,22,23,24,39,40; 6.27,33,36,51-58,62,63; 7.17,18;</p><p>[8.1-11]; 8.15,21-26,31ss.; 9.5,25,38-41; 10.11-18; 11.49-52; 12.14,15,44,50;</p><p>13.5-10; 15.21-25; 17-lss.; 18.15-18,25-27; 19.11,34-37; 20.23,30,31.</p><p>(3) Poucas áreas do pensamento de João foram mais discutidas e obtiveram</p><p>resultados mais divergentes que a escatologia (cf. Carson, pp. 134-146). O</p><p>desenvolvimento que João faz desse tema está intimamente ligado à maneira</p><p>característica como ele emprega a expressão “a hora” (também traduzida como</p><p>“tempo”, 2.4; 7.6). A maior parte do Novo Testamento revela a tensão de se</p><p>tentar, simultaneamente, expressar a maravilhosa verdade de que no ministério,</p><p>morte, ressurreição e exaltação de Jesus os últimos dias prometidos por Deus já</p><p>chegaram e de insistir que o cumprimento daquela esperança ainda estava por vir.</p><p>Diferentes autores expressam essa tensão de maneiras diversas. O reino de Deus já</p><p>chegou, mas devemos esperar por sua vinda. O Espírito Santo nos é dado como</p><p>entrada e garantia de novos céus e de nova terra, da prometida nova criação com</p><p>a esperança da ressurreição; enquanto isso, gememos em nossos corpos terrenos</p><p>esperando pela redenção que um dia será nossa. A mesma tensão existe em João:</p><p>“está chegando a hora, e de fato já chegou” (4.23; 5.25). Jesus nos deixou sua paz,</p><p>mas neste mundo teremos aflições (16.33).</p><p>Acima de tudo, nas águas da exaltação de Jesus e em seu legado do Espírito,</p><p>podemos ter vida eterna agora mesmo: essa é uma característica de João, que</p><p>coloca sua ênfase na alegria presente de bênçãos escatológicas. Mas isso nunca</p><p>acontece às custas de alguma esperança futura: está chegando a hora em que aqueles</p><p>que estão nos túmulos se levantarão para o julgamento daquele que foi designado</p><p>pelo Pai para exercer todo julgamento (5.28-30). Isso não é nem uma aberração</p><p>no pensamento de João, nem uma obra da tradição não-assimilada e acrescentada,</p><p>de forma desajeitada, por um redator incompetente. E parte do que torna possível</p><p>aos cristãos ver a si mesmos vivendo entre o “já” e o “ainda não”, entre o dia-D e</p><p>o dia-V (para empregar a famosa analogia de Cullmann). João insiste que Jesus</p><p>mesmo agora se faz presente entre seus seguidores na pessoa de seu Espírito (e.g.</p><p>14.23) e ele mesmo insiste que Jesus está voltando para buscar os seus para a</p><p>morada que preparou para eles (14.1-3).</p><p>Para examinar as particularidades de João sobre escatologia, cf. Comentário</p><p>sobre 1.31-33; 2.4; 3.3,5,15,16; 4.23,24,37,38; 5.21,24-29; 6.14,15,25;</p><p>8.15,16,51; 11.23-26; 12.20-36; 13.1,31,32,36,37; 14.1-4,11,18-20,22,23,27;</p><p>16.6,7,13; 16.19ss.;</p><p>17. lss.,12,24-26; 19.25-27,34,35; 20.17; 21.20-23.</p><p>(4) Os ensinamentos de João a respeito do Espírito Santo apresentam similari­</p><p>dades com as ênfases dos sinóticos. O Espírito é dado a Jesus em seu batismo; Jesus,</p><p>em contraste com João Batista, é aquele que batizará seu povo “no Espírito Santo”.</p><p>Mas Jesus é dotado, de forma única, com o Espírito (3.34; cf. Lc 4.14-21). Ele não</p><p>é apenas aquele que possui e dá o Espírito, mas, ao legar o Espírito escatológico, ele</p><p>desempenha seu papel como aquele que apresenta o que é característico sob a</p><p>prometida nova aliança (3.5;7.37-39; embora tal terminologia não seja usada). No</p><p>discurso de despedida, o Espírito Santo é repetidamente descrito como o paraklêtos</p><p>- uma expressão significativa que fornece substância para o trabalho do Espírito</p><p>99 Introdução</p><p>entre os crentes como nenhuma outra do Novo Testamento. Acima de tudo, João</p><p>liga a dádiva do Espírito à morte e à exaltação do Filho. O resultado são os elementos</p><p>do que veio a ser conhecido como a doutrina da trindade. Cf. Comentário sobre</p><p>1.31-34; 3.3,5,6,33,34; 4.23,24; 6.63; 7.37-39, 14.16,17,23,25,26; 15.26,27;</p><p>16.7-15; 20.21-23.</p><p>(5) Embora o uso do Antigo Testamento feito por João não seja tão freqüente</p><p>ou tão explícito quanto ,o de Mateus, ele não é superficial (embora haja críticas</p><p>quanto a esse aspecto), e ele é enriquecido por um número extraordinariamente</p><p>freqüente e sutil de alusões ao Antigo Testamento. Uma das características dessas</p><p>alusões é a maneira pela qual se admite que Jesus substitui as figuras e as instituições</p><p>do Antigo Testamento. Ele é o novo templo, aquele sobre o qual Moisés escreveu,</p><p>o verdadeiro pão dos céus, o Filho verdadeiro, a videira verdadeira, o tabernáculo,</p><p>a serpente do deserto, a Páscoa. Raramente articulada, há uma hermenêutica</p><p>subjacente em ação, um modo de se ler o Antigo Testamento que remete a Jesus.</p><p>Para considerações sobre estas questões, cf. Comentário sobre 1.14-18,22,23,</p><p>34,45,47,51; 2.1,17-22,23; 3.5,14,29,30; 4.21,22,33,34; 5.17,35,38-40,45,46,47;</p><p>6.27-34,35,45,49,50,51; 7.19,22-24,37-39; [8.5-8]; 9.7,28,29; 10.1,2,3,10,11,34-</p><p>36; 12.13,14,28,34,37-43; 13.18,34,35; 15.1ss.,20,25; 17.6,12,19; 19.18,19-</p><p>22,28,29,34,36,37.</p><p>(6) Nenhum evangelho preserva mais exemplos de incompreensão e falhas de</p><p>entendimento que o de João. Como já vimos (§ III, acima), o evangelho que é</p><p>mais explícito em sua alta cristologia é o mais insistente em que os primeiros</p><p>discípulos entenderam muito pouco dele naquele tempo. Essa polaridade nos</p><p>fornece uma abordagem admirável da maneira como João lidou com a história:</p><p>muitas das incompreensões que ele atribui aos discípulos de Jesus, no tempo em</p><p>que ele estava na carne, provavelmente não poderia ocorrer na época em que ele</p><p>escreveu o evangelho. João não só pode fazer a distinção entre “antes” e “depois”,</p><p>mas a estrutura de sua teologia pede que ele assim faça. De outro modo, o padrão</p><p>histórico de revelação progressiva da salvação com o qual ele opera poderia se</p><p>dissolver. Cf. Comentário sobre 2.19-22, 3.4; 4.11,33,34; 6.34,35,52,60-62;</p><p>7.24ss.,4l,42; 8.13ss.,19,27,31ss.; 10.6,19-21,24,31-33,39; 11.16, 12.16,29,30;</p><p>13.28,36,37; 14.5,8; 16.17,18; introdução ao 20.1ss., 9.</p><p>(7) Como houve muito interesse por parte dos estudiosos na delineação da</p><p>comunidade joanina, houve uma ênfase correspondente sobre o povo de Deus</p><p>nesse evangelho - a igreja. Algumas dessas discussões foram mal-encaminhadas:</p><p>e.g houve considerável especulação sobre por que não há menção de oficiais da</p><p>igreja, como os presbíteros e os diáconos. Isso, obviamente, é uma instância de</p><p>uma teoria apresentada de forma precipitada: entretanto, por mais que pensemos</p><p>que somos capazes de inferir dados sobre a comunidade joanina, o fato é que João</p><p>se dispôs a escrever um evangelho, a escrever sobre o ministério de Jesus, sua morte,</p><p>ressurreição e exaltação, e não a escrever sobre as conseqüências daquele ministério.</p><p>As partes do livro que se relacionam mais imediatamente com a igreja são, portanto,</p><p>colocadas em termos de o que acontecerá após Jesus ter voltado para o Pai.</p><p>Dito isso, os elementos de o que significa pertencer ao povo de Deus, o que</p><p>significa, de fato, ser a Igreja, estão generosamente presentes {cf. Guthrie, NTT,</p><p>ycaro</p><p>Realce</p><p>Introdução 100</p><p>pp. 720-730). Se não há nada sobre o funcionamento da vida da Igreja, ou a</p><p>mecânica da organização e da administração, há muito sobre a eleição, vida, origem,</p><p>natureza, testemunho, sofrimento, frutos, orações e unidade da Igreja, pois essas</p><p>coisas estão indissoluvelmente ligadas à pessoa e missão do Filho. C f Comentário</p><p>sobre 1.10-13; 3.3,5,19-21,33,36; 4.23,24; 5.24; 6.33,37-40,63-65; 7.37-39;</p><p>8.30ss.; lO.lss.; 11.50-52; 12.24-26; 13.1,8,12-17,34,35; 14.1-4,6,7,12-14,21-</p><p>23; 15-lss.; 17.1ss.; 19.23,24,28,29; 21.1-14,15-23.</p><p>(8) De uma natureza um tanto diferente é o que João diz (ou não diz!) sobre</p><p>os sacramentos. Por um lado, não há registros da instituição da ceia do Senhor e,</p><p>por outro lado, o discurso do pão da vida é ricamente dotado de expressões que</p><p>milhões de cristãos felizmente empregaram na santa ceia. O quarto evangelho,</p><p>conforme argumento, não é nem sacramental nem anti-sacramental: essas categorias</p><p>estão erradas. Mas, por seu cuidadoso uso da linguagem, conduz as pessoas à</p><p>realidade, ao Cristo, recusando-se a parar naquilo que aponta para a realidade. Cf.</p><p>Comentário sobre 1.24-26; 3.5,22ss.; 4.2; 6.1 l,22ss.; 7.37-39; 9.7; 13.10,11,14,15;</p><p>15-lss.; introdução a 17.1ss; 19.34; 21.13.</p><p>(9) As complexidades que reúnem eleição, fé e as funções dos sinais merecem</p><p>reflexão. João declara que homens e mulheres são responsáveis pelo crer; bem</p><p>como são moralmente condenáveis pelo não crer. Se a fé brota em conseqüência</p><p>do que é revelado nos “sinais”, muito bem: eles legitimamente servem de base</p><p>para a fé (e.g. 10.38). Por outro lado, as pessoas são veementemente criticadas por</p><p>sua dependência aos sinais (4.48). A melhor fé é aquela que escuta e crê, não aquela</p><p>que vê e crê (20.29). Mas, em última instância, a fé se torna em eleição soberana do</p><p>Filho (15.16), em ser parte da dádiva do Pai ao Filho (6.37-44). E isso, devemos</p><p>insistir, pulsa todo o tempo no coração do livro, que é insistentemente evangelístico.</p><p>A vontade de Deus nunca é violada, mesmo na dureza do coração humano (12.37ss.),</p><p>nunca há o menor traço de falta de determinação ou de fatalismo, mas sempre está</p><p>presente um estímulo para se crer no “Salvador do mundo” (4.42).</p><p>Nenhum livro do Novo Testamento dirige maior atenção sobre essas polaridades</p><p>essencialmente bíblicas que o evangelho de João. Cf. Comentário sobre 1.12,13; 2.1-</p><p>11,23; 3.1-5,19-21,27,36; 4.53,54; 5.5,6,37,38; 6.1-21,26,29,30,31,37-44,63-70;</p><p>7.1-5,31; 8.45-47; 9.1-12,35-41; 10.3-5,14,15,25-29,37,38; 11.1-44,45-48;</p><p>12.10,11,17-19,37-44; 13.1; 14.11; 15.16; 16.22; 17.2, 6,11-16; 20. lss.,29,30,31;</p><p>21.1-14.</p><p>VIII. Pregar fundamentado no quarto evangelho</p><p>Como este Comentário é direcionado a futuros pregadores ou a líderes de</p><p>estudo bíblico, fazem-se necessárias duas ou três observações. Essas observações,</p><p>em parte, se fazem necessárias porque os tópicos teológicos abordados na última</p><p>seção foram tão abstraídos do texto que perderam a vida e o poder das narrativas</p><p>do evangelho e dos discursos. Mas essas observações também podem ser necessárias</p><p>porque muitos jovens pregadores (e outros não tão jovens!) podem considerar</p><p>101 Introdução</p><p>fácil pregar a partir de epístolas, mas encontram pouco a dizer, quando seu funda­</p><p>mento são os evangelhos.</p><p>Das três observações que se seguem, as duas primeiras dizem respeito a se pregar</p><p>a partir de qualquer dos evangelhos, e a última ao desafio peculiar de fazê-lo com</p><p>base no evangelho de João. Em todas elas, presumo que o leitor já se tenha dedicado</p><p>a refletir sobre as relações entre textos antigos e textos contemporâneos, entre palestra</p><p>expositiva e pregação expositiva (em que as pessoas recebem tanto cutucões como o</p><p>bálsamo do texto), entre a rigorosa exatidão exegética</p><p>e a apresentação vívida.</p><p>(1) O desafio de pregar a partir dos evangelhos é, em parte, o desafio de pregar</p><p>com base em uma narrativa. Os melhores seminários ocidentais e congregações</p><p>teológicas reforçam a propensão cultural para o abstrato e enchem a cabeça dos</p><p>alunos com a importância de exegeses gramaticais e lexicográficas. Tais exegeses,</p><p>obviamente, são de enorme importância. Mas para os alunos que não têm pendor</p><p>por literatura, elas podem gerar o efeito indesejável de colocar o foco na árvore,</p><p>talvez no terceiro nó do quarto galho de trás da sexta árvore à esquerda, e a floresta</p><p>permanece sem ser vista, ou talvez não passe de um vago e infeliz desafio.</p><p>O antídoto é prestar atenção à narrativa - não só à narrativa do evangelho</p><p>como um todo, mas em cada narrativa dentro dele. O significado preciso, por</p><p>exemplo, de João 3.5 não pode ser extraído com propriedade do significado de</p><p>João 3.1-21; o significado de João 2.4 não pode ser bem apreendido sem qúe se</p><p>reflita sobre o significado de João 2.1-11. E claro que também se pode dizer o</p><p>inverso: o significado de João 3.1-21 gira em torno de 3.5 (e muitas outras coisas</p><p>também). E o significado da perícope (nome dado a uma unidade individual</p><p>dentro de um evangelho) 2.1-11 também depende de seu lugar dentro do evangelho</p><p>como um todo, isto é, o que vem imediatamente antes e depois dele, o fluir do</p><p>texto e a ambientação do contexto, o lugar da perícope individual dentro de todo</p><p>o evangelho.</p><p>Teoricamente, a maioria de nós reconhece essas coisas. Em minha experiência,</p><p>contudo, pouquíssimos pregadores travam uma luta com essas implicações. Eles,</p><p>com freqüência, trabalham exclusivamente a partir de pontos atomísticos de</p><p>gramática para a perícope; raramente trabalham a partir do evangelho através da</p><p>perícope, em direção a pontos individuais de gramática. Essas duas atividades são</p><p>necessárias na leitura de qualquer texto, mas essa necessidade é especialmente</p><p>urgente na narrativa dos textos.</p><p>(2) O desafio de se pregar a partir dos evangelhos é fazê-lo dentro da história</p><p>da redenção. E nesse ponto que, assim temo eu, determinados pregadores, em</p><p>contextos mais conservadores, inconscientemente tropeçam nos mesmos tipos de</p><p>erros que alas mais radicais da crítica do evangelho.</p><p>A crítica do evangelho, como já vimos, dedica tanta atenção às reconstruções</p><p>imaginativas e detalhadas de comunidades dos evangelistas que o que os evangelistas</p><p>dizem sobre Jesus ou afirmam que ele disse ou fez recebe pouco destaque. Por</p><p>diferentes razões, muitos pregadores conservadores ficam tão ocupados em delinear</p><p>ycaro</p><p>Realce</p><p>ycaro</p><p>Realce</p><p>Introdução 102</p><p>aplicações a suas próprias congregações que a questão principal lhes escapa: “O</p><p>que esta passagem nos diz a respeito de Jesus?” . Não é uma questão de pietismo</p><p>irrefletido. Essa é a questão que deve ser feita precisamente porque o material que se</p><p>está estudando é um evangelho.</p><p>Para apresentar esse aspecto de modo mais positivo, é imprescindível colocar</p><p>os evangelhos em seu devido lugar dentro da história da redenção. Embora os</p><p>evangelhos tenham sido escritos após a maioria das epístolas, o que eles se propõem</p><p>a reportar o que aconteceu antes de elas serem escritas. Usando uma analogia:</p><p>dois historiadores competentes que descrevam a Segunda Guerra Mundial, um</p><p>deles em 1950 e o outro em 1990, terão visões diferentes em relação ao mesmo</p><p>acontecimento. Em certa medida, pode-se dizer algo a respeito de seus respectivos</p><p>pontos de vista a partir de suas obras. Mas, em ambos os exemplos, o tópico de</p><p>suas exposições é a Segunda Guerra, e não as comunidades intelectuais da qual</p><p>cada um deles emergiu. A analogia é imperfeita, é claro, pois um escritor de</p><p>evangelho provavelmente interessa-se muito mais pelo testemunho confessional e</p><p>pela edificação imediata de seus leitores que por uma história contemporânea.</p><p>Mesmo assim, o ponto é importante, não só para a crítica do evangelho, mas</p><p>também para o pregador. João escreve seu livro de seu lugar vantajoso, mas ele</p><p>não esquece que está escrevendo sobre Jesus, o Jesus da história, o Jesus que</p><p>ministrou, morreu e ressuscitou. Já vimos amplas evidências de que João fazia</p><p>distinção entre o que os discípulos entenderam durante o tempo do ministério de</p><p>Jesus e o que eles só foram compreender mais tarde. Isso significa que o pregador</p><p>deve constantemente refletir sobre o que o evangelista está lhe dizendo sobre Jesus,</p><p>tanto sobre o que aconteceu “antes” quanto o que os cristãos, auxiliados pelo</p><p>Espírito, vieram a entender daquela revelação sem paralelo.</p><p>Embora haja várias passagens nos Evangelhos que podem ser diretamente</p><p>aplicadas pelo pregador a sua congregação, em particular, ou à sociedade contem­</p><p>porânea, de forma geral (e.g o mandamento do amor, Jo 13.34,35), há ainda muito</p><p>mais, cuja aplicação adequada pede reflexão sobre o que a passagem diz sobre Jesus.</p><p>Com “o que a passagem diz sobre Jesus” não me refiro exclusivamente à pessoa,</p><p>palavras e feitos de Jesus (embora também não seja menos que isso), mas a tudo o</p><p>que pode ser conhecido sobre Jesus e seu lugar na história redentora. Como Jesus</p><p>aparece na “história” da Bíblia? Feito da forma apropriada, a pregação sobre os</p><p>evangelhos leva a congregação a se aprofundar na Palavra e a encontrar a mais pro­</p><p>funda e transformadora aplicação que emerge dessa visão. Em outras palavras, o</p><p>claro propósito de João, ao escrever o quarto evangelho, não é que seus leitores</p><p>devem crer, mas que devem acreditar que o Cristo, o Filho de Deus, é Jesus, e que,</p><p>ao acreditar nisso, eles teriam vida em nome de Jesus. Martelar incessantemente a</p><p>urgência de acreditar, sem parar para pensar em que João deseja que seus leitores</p><p>venham a crer e em quem ele quer que eles confiem, é trair o evangelho de João.</p><p>Pregar com base nos evangelhos é, acima de tudo, um exercício de exposição e de</p><p>aplicação da cristologia.</p><p>(3) Mesmo assim, aqueles que se propõem a expor o evangelho de João, em</p><p>vez de um dos sinóticos, freqüentemente se vêem às voltas com vãs repetições. A</p><p>ycaro</p><p>Realce</p><p>ycaro</p><p>Realce</p><p>ycaro</p><p>Realce</p><p>103 Introdução</p><p>visão de João é menos abrangente que os demais evangelhos. Por toda a riqueza de</p><p>sua apresentação de Jesus, sua própria aplicação, feita, vez após vez, com força</p><p>motriz, diz respeito ao que os leitores devem crer. Muitos pregadores iniciaram</p><p>uma série de exposições sobre esse livro e acabaram por julgá-la maçante, mesmo</p><p>a seus próprios ouvidos, e a abandonaram por volta do capítulo 7, 9, ou coisa</p><p>parecida.</p><p>Duas sugestões resolvem plenamente esse problema. A primeira foi expressa</p><p>sob esse último aspecto mencionado: a série de pregações deve se concentrar na</p><p>figura de Jesus, na insondável riqueza cristológica que há nesse evangelho. A segunda</p><p>sugestão é escolher uma base de texto relativamente ampla para cada sermão. Se</p><p>um pregador leva seis semanas para expor o Prólogo (1.1-18) e está verdadeiramente</p><p>transmitindo uma mensagem com conteúdo, grande parte do material está sendo</p><p>“encompridado”. Muito melhor é esgotar o prólogo em um sermão, completar o</p><p>capítulo 1 na semana seguinte e continuar em um bom ritmo de modo que,</p><p>enquanto um pregador lento estiver apresentando os comentários finais sobre</p><p>1.51, você já estará no discurso de despedida.</p><p>IX. A estrutura do evangelho de João</p><p>Como muitas outras facetas do evangelho de João, a estrutura básica dele</p><p>parece relativamente simples até que se comece a refletir sobre ela. Sem dúvida,</p><p>essa complexidade, envolta em simplicidade, é a razão pela qual se tem publicado</p><p>estudos sobre a estrutura de João nas últimas duas ou três décadas.</p><p>Em face disso, o quarto evangelho apresenta um Prólogo (1.1-18) e um epílogo</p><p>ou apêndice (21.1-25), entre os quais há duas seções centrais, 1.19— 12.50 e</p><p>13.1—20.31. Sob a influência de dois ou três estudiosos importantes, essas seções</p><p>vem sendo designadas, respectivamente, “Livros dos Sinais” e “Livro da Glória”</p><p>(Brown, 1. cxxxviii-cxxxix), ou “Livro dos Sinais” e “Livros da Paixão” (Dodd,</p><p>IFG, p.</p><p>289). As vantagens são óbvias.</p><p>Contudo, “Livro dos Sinais” soa como se os sinais estivessem restritos a 1.19—</p><p>12.50, enquanto 20.30,31 deixa claro que, do ponto de vista do evangelista, todo</p><p>o evangelho é um livro de sinais. Além disso, embora seja verdade que a Paixão de</p><p>Jesus foi relatada nos capítulos 13 a 20, a narrativa da Paixão em si não tem início</p><p>antes do capítulo 18. Se os capítulos 13 a 17 podem ser incluídos com a alegação</p><p>de estarem tematicamente ligados à Paixão, o mesmo se dá com várias passagens</p><p>nos capítulos 1 a 12 (e.g. 1.29,36; 6.35ss.; 11.49-52).</p><p>Outros defendem uma estrutura um tanto diferente. Wyller,114 por exemplo,</p><p>defende que 10.22-29 é a “culminância estrutural” da obra, a “mudança do destino”</p><p>do herói, em torno da qual todo o restante do material está organizado. A despeito</p><p>da plausibilidade superficial de seu argumento, é difícil acreditar, em bases</p><p>temáticas, que esses versículos tenham a importância estrutural que Wyller lhes</p><p>atribui, e é quase impossível acreditar que o símile da caverna de Platão é o modelo</p><p>114 Egil A. Wyller, S T 42, 1988, pp. 151-167.</p><p>ycaro</p><p>Realce</p><p>Introdução 104</p><p>mais plausível para a estrutura de um evangelho. Outro estudioso identificou</p><p>uma estrutura extremamente concêntrica, moldada para se harmonizar com a</p><p>estrutura do Prólogo.115 Contudo, estruturas tão complexas e tão discutidas, por</p><p>não serem intuitivamente óbvias, deveriam ser vagamente consideradas.</p><p>Na tentativa de explicar toda a complexidade que há em João, a discussão</p><p>mais recente, e a mais importante, sobre a estrutura de seu evangelho116 encontra</p><p>quiasmas fundamentais os quais o autor chama de “perícopes de ligação” e “seções</p><p>de ligação”. Por exemplo, ele sugere que 2.1 — 12.50 poderia ser chamado de</p><p>“Livro dos sinais de Jesus”, que 11.1— 20.29 seria o “Livro do tempo de Jesus”, e</p><p>que a sobreposição dos capítulos 11 e 12 constitui a “seção de ligação”. Embora</p><p>haja discussões acerca de alguns detalhes, ele é bem-sucedido em mostrar como o</p><p>quarto evangelho é bem organizado e unificado. E não há nada de casual nisso.</p><p>Muitos já demonstraram, por exemplo, que seções isoladas, de vários tamanhos,</p><p>são nitidamente conduzidas a um final (e.g. 1.18; 4.42; 4.53,54; 10.40-42; 12.44-</p><p>50; 20.30,31; 21.25).</p><p>Um dos motivos pelos quais os críticos encontram tantas estruturas mutuamente</p><p>excludentes em João é que lidar repetidamente apenas com alguns temas torna</p><p>possível “encontrar” todo tipo de paralelos e quiasmas.</p><p>A análise que se segue busca examinar o desenvolvimento do evangelho como</p><p>uma narrativa em contraponto às considerações mais formais sobre a estrutura.</p><p>Por exemplo, comenta-se com freqüência que a seção 2.1— 4.54 reflete um inclusio</p><p>(isto é, um artifício literário pelo qual uma passagem é ligada a outra pela mesma</p><p>característica literária): a ação se move de Caná para Caná. Mas embora esteja no</p><p>Comentário, e o próprio inclusio nos auxilie a discernir que o trecho de 2.1— 4.54</p><p>constitui uma unidade, não fica nada claro que Caná por si só seja tão importante</p><p>no pensamento joanino que seja necessário lhe conceder um grande significado</p><p>teológico, além de seu pequeno papel em ajudar os leitores a seguir o movimento</p><p>do texto.</p><p>Estou convencido de que a análise segue o movimento de pensamento que o</p><p>evangelista pretendia, mas deve-se enfatizar que esse esquema não tem maior</p><p>autoridade que as divisões dos capítulos e dos versículos que nos são mais familiares,</p><p>as quais não representavam parte dos escritos originais. Isso não é tanto a base da</p><p>exposição que se segue, mas seu resultado. Se, desse modo, isso auxiliar os leitores</p><p>a acompanhar o Comentário e, em certa medida, a acompanhar o pensamento de</p><p>João à medida que ele dá testemunho do Messias, o Filho de Deus, então ele é</p><p>amplamente justificado.</p><p>115 Jeffrey Lloyd Staley, The Print,s First Kiss: A Rhetorical Investigation o f The Implied Reader</p><p>in the Fourth Gospel (SBLDS 82; SP, 1985).</p><p>116 George Mlakushyil, The Christocentric Literary Structure o f the Fourth Gospel (An. Bib.</p><p>117; Pontifical Bibical Institute, 1987).</p><p>Análise</p><p>I. Prólogo (1.1-18)</p><p>II. A Auto-revelação de Jesus em palavras e atos (1.19-10.42)</p><p>A. Prelúdio do ministério público de Jesus (1.19-51)</p><p>1. A relação de João Batista com Jesus (1.19-28)</p><p>2. O testemunho público de João Batista a respeito de Jesus (1.29-34)</p><p>3. Jesus conquista seus primeiros discípulos (1.35-42)</p><p>4. Jesus conquista mais dois novos discípulos, Filipe e Natanael (1.43-51)</p><p>B. Início do ministério: sinais, palavras e obras (2.1 - 4.54)</p><p>1. O primeiro sinal: Jesus transforma água em vinho (2.1-11)</p><p>2. Jesus purifica o templo (2.12-17)</p><p>3. Jesus substitui o templo (2.18-22)</p><p>4. Fé inadequada (2.23-25)</p><p>5. Jesus e Nicodemos (3.1-15)</p><p>6. Comentário ampliado I (3.16-21)</p><p>7. O testemunho contínuo de João Batista acerca de Jesus (3.22-30)</p><p>8. Comentário ampliado II (3.31-36)</p><p>9. Jesus e a mulher samaritana (4.1-42)</p><p>10. O segundo sinal: Jesus cura o filho de um oficial (4.43-54)</p><p>C. A oposição crescente: mais sinais, obras e palavras (5.1-7.52)</p><p>1. A cura junto ao tanque de Betesda (5.1-15)</p><p>2. A resposta de Jesus à oposição (5.16-47)</p><p>a. O relacionamento de Jesus com seu Pai (5.16-30)</p><p>b. Os testemunhos a respeito de Jesus (5.31-47)</p><p>3. A alimentação dos cinco mil (6.1-15)</p><p>4. Jesus anda sobre as águas (6.16-21)</p><p>5. Discurso sobre “Pão da Vida” (6.22-58)</p><p>a. A busca por Jesus (6.22-26)</p><p>b. O verdadeiro maná (6.27-34)</p><p>c. Jesus, o pão da vida (6.35-48)</p><p>d. Comendo a carne do Filho do homem (6.49-58)</p><p>A n á lis e 106</p><p>6. Opinião dividida e iniciativa divina (6.59-71)</p><p>7. Ceticismo e incerteza (7.1-13)</p><p>8. Na festa das cabanas I (7.14-44)</p><p>a. Os ensinamentos de Jesus (7.14-24)</p><p>b. Quem é Jesus Cristo (7.25-36)</p><p>c. A promessa do Espírito (7.37-44)</p><p>9. A incredulidade dos líderes judeus (7.45-52)</p><p>Excurso: a mulher surpreendida em adultério (7.53-8.11)</p><p>D. Confrontação radical: sinais, obras e palavras culminantes (8.12-10.42)</p><p>1. Na festa das cabanas II: o debate de Jesus com “os judeus” (8.12-59)</p><p>a. A autoridade do testemunho de Jesus (8.12-20)</p><p>b. A origem da autoridade de Jesus (8.21-30)</p><p>c. Os filhos de Abraão (8.31-59)</p><p>2. Jesus cura um cego de nascença (9.1-41)</p><p>a. O sinal (9.1-12)</p><p>b. A investigação feita pelos fariseus (9.13-34)</p><p>i. O primeiro interrogatório do homem curado (9.13-17)</p><p>ii. O interrogatório dos pais do homem curado (9.18-23)</p><p>iii. O segundo interrogatório do homem curado (9.24-34)</p><p>c. A visão do cego e a cegueira dos que enxergam (9.35-41)</p><p>3. Jesus, o pastor de ovelhas (10.1-21)</p><p>a. A ‘figura de linguagem’ (10.1-5)</p><p>b. Falta de entendimento (10.6)</p><p>c. Expansão (10.7-18)</p><p>d. A reação dos judeus (10.19-21)</p><p>4. Na festa da Dedicação: declarações cristológicas e oposição aberta (10.22-</p><p>39)</p><p>a. Jesus, o Messias (10.22-30)</p><p>b. Jesus, o Filho de Deus (10.31-39)</p><p>5. Retirada estratégica e avanço contínuo (10.40-42)</p><p>III. Transição: Vida e morte, rei e servo sofredor (11.1-12.50)</p><p>A. Morte e ressurreição de Lázaro (11.1-44)</p><p>1. A morte de Lázaro (11.1-16)</p><p>2. Jesus, a ressurreição e a vida (11.17-27)</p><p>3. A angústia de Jesus (11.28-37)</p><p>4. A ressurreição de Lázaro (11.38-44)</p><p>B. A decisão judicial de matar Jesus</p><p>1. A conspiração e seu paradoxo (11.45-53)</p><p>2. A resposta de Jesus (11.54)</p><p>107 A n á lis e</p><p>C. Triunfo e morte iminente (11.55-12.36)</p><p>1. Contexto: A Páscoa dos judeus (11.55-57)</p><p>2. Maria unge Jesus (12.1-11)</p><p>3. A entrada triunfal (12.12-19)</p><p>4. Gentios provocam o anúncio da ‘hora’ por Jesus (12.20-36)</p><p>D. Teologia da incredulidade (12.37-50)</p><p>1. A profecia das Escrituras (12.37-43)</p><p>2. A autoridade por trás da promessa de Jesus - e uma ameaça feita por ele</p><p>(12.44-50)</p><p>IV. Auto-revelação na cruz e exaltação de Jesus (13.1—20.31)</p><p>A. A última Ceia (13.1-30)</p><p>1. Jesus lava os pés dos discípulos (13.1-17)</p><p>2. Jesus prediz sua traição (13.18-30)</p><p>B. O discurso de despedida: parte I (13.31-14-31)</p><p>1. Jesus prediz a negação de Pedro (13.31-38)</p><p>2. A promessa do lugar para onde Jesus está indo (14.1-4)</p><p>3. Jesus, o caminho para o Pai (14.5-14)</p><p>4. A partida de Jesus e a descida do Espírito</p><p>da verdade (13.15-31)</p><p>C. O discurso de despedida: parte II (15.1-16.33)</p><p>1. A videira e os ramos (15.1-16)</p><p>a. A metáfora (15.1-8)</p><p>b. O conteúdo da metáfora (15.9-16)</p><p>2. A oposição do mundo (15.17-16.4a)</p><p>3. A obra do Espírito Santo (16.4b-15)</p><p>4. A perspectiva de alegria depois das tribulações do mundo (16.16-33)</p><p>D. A oração de Jesus (17.1-26)</p><p>1. Jesus ora por sua glorificação (17.1-5)</p><p>2. Jesus ora por seus discípulos (17.6-19)</p><p>a. Os fundamentos dessa oração (17.6-1 la)</p><p>b. Jesus ora para que seus discípulos sejam protegidos (17-1 lb-16)</p><p>c. Jesus ora para que seus discípulos sejam santificados (17.17-19)</p><p>3. Jesus ora por aqueles que ainda crerão ((17.20-23)</p><p>4. Jesus ora para que todos os crentes sejam aperfeiçoados a fim de que vejam</p><p>a glória dele (17.24-26)</p><p>E. O julgamento e Paixão de Jesus (18.1-19.42)</p><p>1. A prisão de Jesus (18.1-11)</p><p>2. Jesus diante de Anás (18.12-14)</p><p>3. Pedro nega a Jesus pela primeira vez (18.15-18)</p><p>A n á lis e 108</p><p>4. Anás interroga Jesus (18.19-24)</p><p>5. Pedro nega a Jesus pela segunda e pela terceira vezes (18.25-27)</p><p>6. O julgamento de Jesus diante de Pilatos (18.28-19.16a)</p><p>a. Pilatos questiona a acusação (18.28-32)</p><p>b. Pilatos interroga Jesus (18.33-38a)</p><p>c. Barrabás (18.38b-40)</p><p>d. Jesus é sentenciado (19.1-16a)</p><p>7. Jesus é crucificado (19.l6b-30)</p><p>8. A perfuração do lado de Jesus (19.31-37)</p><p>9. O sepultamento de Jesus (19.38-42)</p><p>F. A ressurreição de Jesus (20.1-31)</p><p>1. Pedro e João no túmulo vazio (20.1-9)</p><p>2. Jesus aparece a Maria (20.10-18)</p><p>3. Jesus aparece aos discípulos (20-19.23)</p><p>4. Jesus aparece novamente aos discípulos - incluindo Tomé (20.24-29)</p><p>5. Conclusão: o propósito do quarto evangelho (20.30-31)</p><p>V. Epílogo (21.1-25)</p><p>A. Jesus aparece aos discípulos junto ao mar (21.1-14)</p><p>B. Jesus, Pedro e João (21.15-24)</p><p>C. A grandeza de Jesus (21.25)</p><p>Comentário</p><p>I. O Prólogo (1.1-18)</p><p>O Prólogo é o vestíbulo para o restante do quarto evangelho (como o evangelho</p><p>de João freqüentemente é chamado), simultaneamente atraindo o leitor e introdu­</p><p>zindo os temas principais. Os seguintes paralelos entre o Prólogo e o restante do livro</p><p>imediatamente se destacam,1 embora, conforme veremos, haja muitos outros de</p><p>natureza mais sutil:</p><p>Prólogo Evangelho</p><p>A preexistência do Logos ou Filho 1.1,2 17.5</p><p>Nele estava a vida 1.4 5.26</p><p>Vida é luz 1.4 8.12</p><p>Luz rejeitada pelas trevas 1.5 3.19</p><p>Mas não extinta por elas 1.5 12.35</p><p>Luz vindo ao mundo 1.9 3.19; 12.46</p><p>Cristo não é recebido pelos seus 1.11 4.44</p><p>Nascido por Deus e não da carne 1.13 3.6; 8.41,42</p><p>Vendo sua glória 1.14 12.41</p><p>O Filho ‘Unigénito’ 1.14,18 3.16</p><p>Verdade em Jesus Cristo 1.17 14.6</p><p>Ninguém viu a Deus, exceto aquele</p><p>que está junto do Pai 1.18 6.46</p><p>Não somente isso, mas muitas daquelas palavras centrais e temáticas desse</p><p>evangelho são, primeiro, introduzidas nesses versículos: vida, luz (1.4), testemunha</p><p>(1.7), verdadeiro (no sentido de ‘genuíno’ ou ‘definitivo’, 1.9), mundo (1.10), glória,</p><p>verdade (1.14). Mas, de forma suprema, o Prólogo resume a forma como a ‘Palavra’,</p><p>que estava junto com Deus no princípio, entrou na esfera do tempo, da história, da</p><p>tangibilidade2 — em outras palavras, como o Filho de Deus foi enviado ao mundo</p><p>para tornar-se o Jesus da história, de forma que a glória e graça de Deus pudessem</p><p>ser manifestadas de modo singular e perfeito. O restante do livro não é nada mais</p><p>que uma ampliação desse tema.</p><p>1 Adaptado de Robinson, More, p. 68.</p><p>2 Cf. Frank Kermode, JSN T 28, 1986, pp. 3-16.</p><p>João 1.1-18 112</p><p>A firmeza das conexões entre o Prólogo e o Evangelho torna improvável a</p><p>teoria de que o Prólogo foi composto por outra pessoa, não o evangelista. Sugestões</p><p>de que o Prólogo, embora escrito pelo evangelista, foi composto depois do restante</p><p>do livro (como a introdução desse comentário foi escrita por último!) são realistas,</p><p>mas especulativas.</p><p>Muitas sugestões são feitas de que o Prólogo era originalmente um poema de</p><p>alguma outra tradição religiosa (talvez gnóstica,3 embora não faltem teorias), do</p><p>qual João se apropriou e adaptou a seus próprios fins. Todo escritor, em algum</p><p>sentido, usa fontes, mas a forma mais veemente dessa hipótese chega a ponto de</p><p>tentar arrancar os alegados acréscimos de João na esperança de expor o original’.</p><p>Quanto mais específicas as sugestões quanto à forma e ao conteúdo desse original’,</p><p>mais especulativos os argumentos parecem ser, e o resultado é que poucos adotam</p><p>uma forma tão intensa dessa teoria hoje. Se João usou fontes no Prólogo não podemos</p><p>isolá-las, porque elas foram tão profundamente trabalhadas e entrelaçadas em um</p><p>tecido de novo desenho que não há linhas evidentes.</p><p>O termo ‘poema pode ser aplicado ao Prólogo somente com alguma hesitação.</p><p>Muitos sustentam que o Prólogo é poesia interrompida por duas inserções de prosa</p><p>(1.6-8,15). A grande diversidade das sugestões sobre como o ‘poema se mantém</p><p>unido (cf. Brown, 1.22) confirma o que os estudiosos clássicos são rápidos para</p><p>apontar sobre outras bases: esses versículos não refletem a estrutura e o ritmo da</p><p>poesia grega. Alguns, portanto, propõe que as características poéticas do Prólogo</p><p>sejam explicadas apelando-se às características poéticas do hebraico ou do aramaico,</p><p>na pressuposição de que o Prólogo seja uma tradução grega de uma obra semítica</p><p>subjacente. Mas as características em questão — paralelismo de vários tipos, orações</p><p>curtas, quiasmos freqüentes e coisas assim - são achadas por todo o texto em</p><p>prosa do evangelho inteiro. O máximo que se pode concluir é que a freqüência de</p><p>tais características em 1.1-18 nos permite a falar de ‘prosa rítmica’.</p><p>Em particular, especialmente na primeira metade do Prólogo (l.l-12a), há um</p><p>conjunto de palavras de ligação que emprestam deliberado ritmo e dignidade ao</p><p>texto. Por exemplo (usando palavras do português, mas com a ordem de palavras do</p><p>texto grego), nós encontramos nos versículos 1 e 2 (ARC), “No princípio [...] Verbo</p><p>[...] Verbo [...] Deus [...] Verbo [...] Deus [...] no princípio [...] Deus”; no versículo</p><p>3, “foram feitas [...] foi feito se fez”; nos versículos 4 e 5, “vida [...] vida [...] luz [...]</p><p>luz [...] trevas [...] trevas”; nos versículos 7 a 9, “para testemunho da luz [...] a luz</p><p>[...] testificasse da luz [...] a luz verdadeira, que alumia a todo homem que vem ao</p><p>mundo” ; nos versículos 10 a 12, “mundo [...] mundo [...] mundo [...] o que era</p><p>seu, e os seus não o receberam [...] o receberam”. Do versículo 12b em diante há</p><p>poucos desses elos, e, à medida que o texto, com crescente explicitação, aprofunda-</p><p>se no domínio da história, a aceleração do ritmo acrescenta movimento para a frente.</p><p>3 Para uma avaliação prudente da relação entre o Prólogo e o Trimorphic Protennoia (o</p><p>documento gnósdco ao qual atualmente se apela mais vezes), C f Craig A. Evans, N T S</p><p>27, 1981, pp. 395-401.</p><p>113 João 1.1-18</p><p>A estrutura do Prólogo também é debatida. Do grande número de propostas</p><p>apresentadas por vários escritores, uma das mais críveis (embora ainda não</p><p>inteiramente livre de dificuldades) é o grande quiasmo proposto por Culpepper.4</p><p>Se começarmos com os dois extremos do Próbgo dirigindo-nos para o meio, então,</p><p>em certos aspectos, 1.1,2 é paralelo de 1.18, 1.3 é paralelo de 1.17, 1.4,5 é paralelo</p><p>de 1.16, 1.6-8 é paralelo de 1.15, 1.9,10 é paralelo de 1.14, 1.11 é paralelo de</p><p>1.13, 1.12a é paralelo de 1.12c, fazendo 1.12b (“deu-lhes o direito de se tornarem</p><p>filhos de Deus”) o ‘pivô’ sobre o qual o quiasmo gira, o centro da atenção. Se o</p><p>Prólogo focaliza a auto-revelação de Deus na Palavra (Verbo) que se torna carne</p><p>(1.14), revelando, portanto, a glória de Deus e tornando-o (1.18), ele também</p><p>nos introduz no resultado dessa revelação misericordiosa: algumas pessoas se tornam</p><p>filhas de Deus, mas o mesmo não acontece com outras. O restante do evangelho</p><p>está muito preocupado em dizer quem são os verdadeiros filhos de Deus, quem</p><p>realmente são os filhos de Abraão: eles são os que recebem o Espírito e são nascidos</p><p>de novo.</p><p>Se João pretendia ou não que seus leitores encontrassem um quiasmo em seu</p><p>Prólogo, ele claramente</p><p>The Light Has Come: An Exposition of The Fourth</p><p>Gospel (Handsel/Eerdmans, 1982).</p><p>G. H. R. Horsley, New Documents Illustrating Early Christianity, vols.</p><p>1-4 (Macquarie University, 1981-86).</p><p>18</p><p>Nicholson</p><p>NIDNTT</p><p>NIGTC</p><p>NovT</p><p>nr</p><p>NRT</p><p>NTLH</p><p>NTS</p><p>NVI</p><p>O’Day</p><p>Odeberg</p><p>Okure</p><p>Olsson</p><p>Painter</p><p>Pancaro</p><p>Panimolle</p><p>par.</p><p>PEQ</p><p>Petzer/Hartin</p><p>Phillips</p><p>Filon</p><p>PL</p><p>Plummer</p><p>Pollard</p><p>Porsch</p><p>Porter</p><p>RB</p><p>Reim</p><p>G. C. Nicholson, Death as Departure: The Joahannine Descent-</p><p>Ascent Schema (SBLDS 63; Scholars Press, 1983).</p><p>C. Brown (ed.), The New International Dictionary of New Testament</p><p>Theology, vols. 1-4 (Paternoster, 1975-78).</p><p>New International Greek Testament Commentary</p><p>Novum Testamentum</p><p>nota de rodapé</p><p>Nouvelle Revue Théologique</p><p>Nova Tradução na Linguagem de Hoje</p><p>New Testament Studies</p><p>Nova Versão Internacional</p><p>G. R. O’Day, Revelation in the Fourth Gospel: Narrative Mode and</p><p>Theological Claim (Fortress, 1986).</p><p>Hugo Odeberg, The Fourth Gospel (repr. Amsterdã: B. R. Grüner,</p><p>1968[1929]).</p><p>Teresa Okure, The Johannine Approach to Mission (WUNT 31;</p><p>Tübingen: J. C. B. Mohr [Paul Siebeck], 1988).</p><p>B. Olsson, Structure and Meaning of the Fourth Gospel (Lund: Gleerup,</p><p>1974).</p><p>J. Painter, John: Witness and Theologian (SPCK, 1975).</p><p>Severino Pancaro, The Law in the Fourth Gospel (SNT 42; Leiden:</p><p>E. J. Brill, 1975).</p><p>Salvatore Alberto Panimolle, L’evangelista Giovanni: penserio e opera</p><p>lettereria del quarto evangelista (Rome: Borla, 1985).</p><p>e paralelo (s)</p><p>Palestine Exploration Quarterly</p><p>J. H. Petzer e P. J. Hartin (eds.), A South African Perspective on the</p><p>New Testament (Fs. B. M. Metzger; Leiden: E. J. Brill, 1986).</p><p>J. B. Phillips, The New Testament in Modern English (Bles/ Collins,</p><p>1960).</p><p>Filon (De Cher.: On the Cherubim; De Fug. et Inv.: On Flight and</p><p>Finding; De Post. Caini: On the Posterity of Cain; Leg. Gaium: On the</p><p>Embassy to Gaius; Legum Alleg.: Allegorical Interpretation of Genesis;</p><p>Mut.: On The Change of Names; Som.: On Dreams).</p><p>J. P. Migne (ed.), Patrologia Latina.</p><p>A. Plummer, The Gospel according to St. John (Cambridge University</p><p>Press, 1882).</p><p>T. E. Pollard, Johannine Christology and the Early Church (SNTSMS</p><p>13; Cambridge University Press, 1970).</p><p>Felix Porsch, Johannes-Evangelium (Stuttgart: KBW, 1988).</p><p>Stanley E. Porter, Verbal Aspect in the Greek of the New Testament,</p><p>with Reference to Tense and Mood (SBG 1; Bern: Peter Lang, 1989).</p><p>Revue Bilíngüe</p><p>G. Reim, Studien zum alttestamentlichen Hintergrund des</p><p>Johannesevangeliums (SNTSMS 22; Cambridge University Press,</p><p>1974).</p><p>19</p><p>RevQum Revue de Qumram</p><p>Reynolds H. R. Reynolds, The Gospel of St John, 2 vols. (London: Funk and</p><p>Wagnalls, 1906).</p><p>Richter G. Richter, Die Fußwaschung im Johannesevangelium: Geschichte ihrer</p><p>Deutung (Regensburg: Friedrich Pustet, 1967).</p><p>Richter, Studien G. Richter, Studien zum Johannesevangelium (Regensburg: Verlag</p><p>Friedrich Pustet, 1977).</p><p>Herman Ridderbos, Het evangelie naar Johannes, 2 vols. (Kämpen:</p><p>J. H. Kok, 1987- ).</p><p>J. Riedl, Das Heilswerk Jesu nach Johannes (Freiburg: Herder, 1973).</p><p>H. Ritt, Das Gebet zum Vater: Zur Interpretation von Joh 17</p><p>(Würzburg: Echter Verlag, 1979).</p><p>A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in Light of</p><p>Historical Research (Broadman, 1934).</p><p>Robinson, John J. A. T. Robinson, The Priority of John (SCM, 1985).</p><p>Robinson, More J. A. T. Robinson, Twelve More New Testament Studies {SCM., 1984).</p><p>Robinson, Red J. A. T. Robinson, Redating the New Testament (SCM, 1976).</p><p>Robinson, J. A. T. Robinson, Twelve New Testament Studies (SCM, 1962).</p><p>Twelve</p><p>RTR Reformed Theological Review</p><p>Sanders J. N. Sanders, A Commentary on the Gospel according to St John, ed. e</p><p>complementada por B. A. Mastin (Black, 1968).</p><p>SB H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar zum neuen Testament aus</p><p>Talmud und Midrash (München: C. H. Beck, 1926-61).</p><p>SBG Studies in Biblical Greek</p><p>SBLDS Society of Biblical Literature Dissertation Series</p><p>SBLMS Society of Biblical Literature Monograph Series</p><p>Schlatter A. Schlatter, Der Evangelist Johannes (Stuttgart: Calwer, ? 1975).</p><p>Schnackenburg R. Schnackenburg, The Gospel according to St John, trad. K. Smyth,</p><p>C. Hastings e outros, 3 vols. (Burns and Oates, 1968-82); vol. 4 só</p><p>em alemão, com o subtítulo Ergänzende Auslegungen und Exkurse</p><p>(Freiburg: Herder, 1984).</p><p>Schürer Emil Schürer, The Historyofthe Jewish People in the Age of Jesus Christ</p><p>(175 BC — AD 135), 4 vols.; revisto e editado por Geza Vermes,</p><p>Fergus Millar, Martin Goodman, e Matthew Black (T. & T. Clatck,</p><p>1973-87).</p><p>SE Studia Evangélica, 6 vols.; ed. K. Aland, F. L. Cross, E. A. Livingstone</p><p>e outros (1959-73).</p><p>Segovia F. F. Segovia, Love Relationships in the Johannine Tradition: Agape /</p><p>Agapan in 1 John and The Fourth Gospel (SBLDS 58; Scholars Press,</p><p>1982).</p><p>Sevenster M. C. Rientsma et. al., Studies in John (Fs. J. N. Sevenster; SNT 24;</p><p>Leiden: E. J. Brill, 1970).</p><p>Sherwin-White A. N. Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New</p><p>Testament (Oxford University Press, 1963).</p><p>Sidebottom E. M. Sidebottom, The Christ of the Fourth Gospel (SPCK,1961).</p><p>Riderbos</p><p>Riedl</p><p>Ritt</p><p>Rob</p><p>20</p><p>Simoens Y. Simoens, La gloire d'aimer: Structures stylistiqties et interprétatives</p><p>dans le Discours de la Cène (Jn 13-17) (Roma: Biblical Institute Press,</p><p>1981).</p><p>A. J. Simonis, Die Hirtenrede im Johannes-Evangelium: Versuch einer</p><p>Analyse von Johannes 10,1-18 nach Entstehung, Hintergrund und Inhalt</p><p>(Rome: Päpstliches Bibelinstitut, 1967).</p><p>Scottich Jounal of Theology</p><p>S. S. Smalley, John: Evangelist and Interpreter (Paternoster, 1978).</p><p>D. M. Smith, Johannine Christianity: Essays on its Setting, Sources,</p><p>and Theology (University of South Caroline Press, 1984).</p><p>Supplements to Novum Testamentum</p><p>Society for New Testament Studies Monograph Series</p><p>Studien zum Neuen Testament und seiner Umwelt</p><p>Scholars Press</p><p>Studia Theologica</p><p>R. H. Strachan, The Fourth Gospel: Its Significance and Environment</p><p>(SCM, 31941).</p><p>R V. G. Tasker, The Gospel according to St. John (Tyndale Press, 1960).</p><p>G. Kittel e G. Friedrich (eds.), Theological Dictionary of the New</p><p>Testament, 10 vols. (ET Eerdmans, 1964-74).</p><p>W. Temple, Readings in St Johns Gospel (1939-40; repr. Macmillan,</p><p>1968).</p><p>Theologische Beiträge</p><p>Marianne M. Thompson, The Humanity of Jesus in the Fourth Gospel</p><p>(Fortress, 1988).</p><p>Theologische Rundschau</p><p>W Thüsing, Die Erhöhung und Verherrlichung Jesu im</p><p>Johannesevangelium (Münster: AschendorfF, 31979).</p><p>Theologische Zeitschrift</p><p>Theologische Literaturzeitung</p><p>P.-RTragan, La parabole du “Pasteur” et ses explications: Jean 10,1-18</p><p>(Rome: Editrice Anselmiana, 1980).</p><p>Trinity Journal</p><p>Allison A. Trites, The New Testament Concept of Witness (SNTSMS</p><p>31; Cambridge University Press, 1977).</p><p>Texte und Untersuchungen</p><p>Tyndale Bulletin</p><p>leitura divergente</p><p>Versão Autorizada (Versão Rei James)</p><p>G. van Belle, Les parenthèses dans l ’évangile de Jean: Aperçu historique</p><p>et classification. Texte Grec de Jean (Leuven University Press, 1985).</p><p>van Hartingsveld L. van Hartingsveld, Die Eschatologie des Johannesevangeliums (Assen:</p><p>Van Gorcum, 1962).</p><p>Vanderlip D. George Vanderlip, Christianity According to John (Westminster,</p><p>1975).</p><p>VE Vox Evangélica</p><p>Simonis</p><p>SJT</p><p>Smalley</p><p>Smith, Essays</p><p>SNT</p><p>SNTSMS</p><p>SNTU</p><p>SP</p><p>ST</p><p>Strachan</p><p>Tasker</p><p>TDNT</p><p>Temple</p><p>TheolBeit</p><p>Thompson</p><p>ThR</p><p>Thiising</p><p>ThZ</p><p>TLZ</p><p>Tragan</p><p>TrinJ</p><p>Trites</p><p>TU</p><p>TynB</p><p>v .l.</p><p>VA</p><p>van Belle</p><p>21</p><p>Vellanickal</p><p>VPR RV</p><p>VR</p><p>VT</p><p>WBC</p><p>Westcott</p><p>Whitacre</p><p>Wiles</p><p>Wilkens</p><p>Wilkinson</p><p>WTf</p><p>WUNT</p><p>Zerwick</p><p>ZNW</p><p>ZWT</p><p>M. Vellanickal, The Divine Sonship of Christians in the Johannine</p><p>Writings (Roma: Biblical Institute Press, 1977).</p><p>Versão-Padrão Revisada (Americana</p><p>Versão Revisada</p><p>Vetus Testamentum</p><p>Word Biblical Commentary</p><p>B. F. Westcott, The Gospel according to St John: The Greek Text with</p><p>Introduction and Notes, 2 vols. (John Muray, 1908).</p><p>Rodney A. Whitacre, Johannine Polemic: The Role o f Tradition and</p><p>Theology (SBLDS 67; Scholars Press, 1982).</p><p>M. F. Wiles, The Spiritual Gospel: The Interpretation of the Fourth</p><p>Gospel in the Early Church (Cambridge University Press, I960).</p><p>W. Wilkens, Zeichen und Werke: Ein Beitrag zur Theologie des 4 .</p><p>Evangeliums</p><p>esperava que eles detectassem certa progressão em sua</p><p>linha de pensamento. Isso, por sua vez, sugere que as duas referências a João</p><p>Batista (1.6-8,15) não são acidentalmente colocadas nem são, de alguma forma,</p><p>repetitivas. Em 1.1-5, João traça seu relato de Jesus até bem antes do início do</p><p>ministério, bem antes do nascimento virginal, bem antes até mesmo da criação.</p><p>O relato deve retroceder até a Palavra divina e eterna, o agente de Deus na criação e</p><p>a fonte da vida e da luz. Tendo estabelecido esse ponto de partida absoluto, o</p><p>evangelista se volta depois para o ponto de partida comum a toda a tradição cristã</p><p>primitiva: o ministério de João Batista (1.6-8), cuja transitoriedade e função de</p><p>testemunha o qualifica a ser considerado como um contraste para a verdadeira luz</p><p>que está vindo ao mundo. É a vinda dessa luz e as reações a ela que são, nesse</p><p>momento, acentuadas (1.9-13). Embora ela tenha sido quase universalmente</p><p>rejeitada, algumas pessoas nascidas de Deus receberam o direito de se tornar filhas</p><p>de Deus. A vinda da luz, ou da Palavra, que tornou isso possível foi nada menos que</p><p>a encarnação, o ‘en-carnar’ da Palavra de forma que sua graça e verdade pudessem</p><p>ser vistas pelos seres humanos em um ser humano (1.14). E nesse ponto que o</p><p>testemunho de João Batista é, de maneira apropriada, novamente introduzido (1.15),</p><p>e se eleva ao patamar da particularidade histórica. Precisamente por que os leitores</p><p>do evangelista têm familiaridade com o Antigo Testamento, ele conclui, por meio</p><p>de uma breve articulação, o relacionamento entre Jesus Cristo e a revelação que já</p><p>foi dada anteriormente, em especial na aliança mediada por Moisés (1.16-18).</p><p>1. No princípio, essas palavras, imediatamente, fazem qualquer leitor lembrar-</p><p>se do Antigo Testamento, o versículo de abertura da Bíblia: “No princípio Deus</p><p>4 Alan Culpepper, NTS 27, 1980-81, pp. 1-31. Para um quiasmo levemente diferente,</p><p>Cf. Jeff Staley, CBQ48, 1986, pp. 241-263.</p><p>João 1.1-18 114</p><p>criou os céus e a terra”. Gênesis começa com a criação; João se refere à criação (w.</p><p>3,4), mas logo se volta para o que Paulo chama de ‘nova criação’ (Jo 3; cf. 2Co</p><p>5.17). O contexto, em Gênesis e aqui, mostra que o princípio é absoluto: o princípio</p><p>de todas as coisas, o princípio do universo. A palavra grega por trás de ‘princípio’,</p><p>archê, com freqüência transmite o significado de ‘origem’ (cf BAGD), bem como</p><p>pode haver ecos daquilo aqui, porque se mostra logo que a Palavra que já estava</p><p>‘no princípio’ é o agente de Deus na criação (w. 3,4), o que nós podemos chamar</p><p>o originador’ de todas as coisas. Ao admitir que a Palavra tinha essa função, era</p><p>inevitável que na origem de todas as coisas ela já existisse. Como Marcos começa</p><p>seu evangelho com a mesma Palavra, “Princípio do evangelho de Jesus Cristo”</p><p>(grifo do autor), é também possível que João esteja fazendo uma alusão à obra de</p><p>seu colega, dizendo na realidade: “Marcos lhes falou sobre o princípio do ministério</p><p>público de Jesus; eu quero mostrar a vocês que o ponto de partida do evangelho</p><p>pode ser traçado até bem antes disso, antes do princípio do universo inteiro”.</p><p>Embora os significados de ên (‘era’) e egeneto (traduzido por ‘foram feitas’ em v.</p><p>3, ‘surgiu no v. 6 e ‘tornou-se’ no v. 14) freqüentemente se sobreponham, João,</p><p>repetidamente, usa os dois verbos lado a lado para estabelecer algo como um contraste.</p><p>Por exemplo, Jesus, em 8.58, insiste: “antes de Abraão nascer [uma forma do segundo</p><p>verbo], Eu sou [uma forma do primeiro verbo]” (grifo do autor). Em outras palavras,</p><p>quando João usa os dois verbos no mesmo contexto, ên geralmente assinala existência,</p><p>ao passo que egeneto assinala ‘vir a ser’ ou ‘entrar em uso’. No princípio, a Palavra já</p><p>existia.5 Estendendo nossa imaginação para trás como faremos, não podemos</p><p>descobrir nenhum ponto no tempo em que podemos concordar com Ario, que, ao</p><p>falar sobre a Palavra, disse, ‘Houve um tempo em que ela não existia’.6</p><p>Mas o que se quer dizer por ‘Palavra’? O termo subjacente, logos, era utilizado</p><p>tão amplamente e em contextos tão diferentes no grego do século I (cf. LSJ) que</p><p>muitas sugestões, quanto ao que ele pode significar aqui, foram apresentadas.7</p><p>Os estóicos entendiam que logos era o princípio racional pelo qual tudo existe, a</p><p>essência da alma humana racional. No que diz respeito a eles, não há outro deus</p><p>senão o logos, e tudo que existe surgiu dos logoi seminais, sementes desse logos.</p><p>Outros sugerem o pano de fundo do gnosticismo, um movimento muito difundido</p><p>no mundo mediterrâneo dos primeiros três séculos, mas mal-definido; contudo,</p><p>deve se admitir que, até onde vão nossas fontes, há pouca evidência de existência</p><p>de gnosticismo desenvolvido antes de João escrever seu evangelho (cf a Introdução,</p><p>5 Os outros dois usos de ‘era/estava’ no v. 1 são menos carregados, teologicamente falando,</p><p>porque o verbo lá funciona como uma cópula’, isto é, como um conectivo ligando o</p><p>sujeito com seu complemento. Assim, em a Palavra estava com Deus’, o verbo liga a</p><p>Palavra’ e com Deus’ a fim de estabelecer um relacionamento, enquanto que em ‘a Palavra</p><p>era Deus’ o verbo liga ‘a Palavra’ e ‘Deus’ de forma a predicar algo da Palavra.</p><p>6 Sócrates, Ecclesiastical History, I. v. 2.</p><p>7 Para panoramas úteis tf. N ID N T T , 3. 1081-1119; H. Bietenard, A N R W W 19.2, pp.</p><p>580-618; NBD, pp. 703-704.</p><p>115 J o ã o 1 .1 - 1 8</p><p>§§ II-III). Ainda outros pensam que João fundamentou-se em Fílon, judeu do</p><p>século I muito influenciado por Platão e seus sucessores. Fílon faz uma distinção</p><p>entre o mundo ideal, que ele chama de o logos de Deus’, e o mundo real ou</p><p>fenomenal que é só a cópia deste. Em particular, bgos para Fílon pode referir-se</p><p>ao homem ideal, o homem primitivo, do qual derivam todos os seres humanos</p><p>empíricos. Mas o logos de Fílon não tem personalidade distinta, e não se tornou</p><p>encarnado. A doutrina do logos de João, em contraste, não está ligada a esse</p><p>dualismo. De forma mais geral, bgos pode se referir ao pensamento interno, daí</p><p>‘razão’, ou mesmo até ‘ciência’. Essa é a razão por que alguns defendem ‘Razão’</p><p>como uma possível tradução de logos (e.g: Clark). Alternativamente, logos pode se</p><p>referir à expressão externa, daí ‘fala’ ou ‘mensagem’, que é o motivo de a ‘Palavra</p><p>ser considerada por muitos o termo mais apropriado, desde que não se refira</p><p>estritamente a um mero sinal lingüístico, mas seja entendida como algo que</p><p>signifique ‘mensagem’ (como em ICo 1.18).</p><p>Seja como for que se entenda o termo grego, há um pano de fundo mais</p><p>prontamente disponível que o fornecido por Fílon ou as escolas filosóficas gregas.</p><p>Considerando-se que João, com freqüência, cita ou alude ao Antigo Testamento,</p><p>esse é o lugar para começar. Lá, ‘a Palavra’ (hebr. dâbât) de Deus está ligada com</p><p>a poderosa atividade de Deus na criação (cf. Gn 1.3ss.; SI 33.6), revelação Qr 1.4;</p><p>Is 9.8; Ez 33.7; Am 3.1,8) e libertação (SI 107.20; Is 55.1). Se é dito que o Senhor</p><p>fala ao profeta Isaías {e.g. Is 7.3), em outro lugar nós lemos que “a palavra do</p><p>Senhor veio a Isaías” (Is 38.4; grifo do autor; cf. Jr 1.4; Ez 1.6). “Mediante a</p><p>palavra do Senhor foram feitos os céus” (SI 33.6): em Gênesis 1.3,6,9, etc. Deus</p><p>simplesmente fala, e sua poderosa palavra cria. Aquela mesma palavra executa</p><p>libertação e juízo (Is 55.11; cf. SI 29.3ss.). Quando alguns de seu povo enfrentaram</p><p>a doença que os levou à beira da morte, Deus “enviou a sua palavra e os curou, e</p><p>os livrou da morte” (SI 107.20). Essa personificação da ‘palavra torna-se até mais</p><p>vívida nos escritos judaicos fundamentados no Antigo Testamento (e.g. Sabedoria</p><p>18.14,15). Se essa herança foi mediada por João pela versão grega do Antigo</p><p>Testamento, a qual muitos cristãos primitivos usavam, ou até por uma paráfrase</p><p>aramaica (chamada de targuni), a fonte última para essa escolha de linguagem não</p><p>pode ser alvo de dúvida séria.</p><p>Há outros componentes no pano de fundo do Antigo Testamento para o</p><p>termo logos. A ‘Sabedoria’ de Deus é altamente personificada em algumas passagens</p><p>(especialmente</p><p>Pv 8.22ss.), tornando-se o agente da criação e um maravilhoso</p><p>dom. Essa personificação é novamente estendida em textos judaicos posteriores</p><p>(e.g. Sb 1 .T l— 8. lss.; Eclo 24). Muitos estudiosos, encontrando freqüentes paralelos</p><p>da literatura de Sabedoria com João,8 sustentam que o evangelista atribui ao logos</p><p>alguns dos atributos da Sabedoria. Algo semelhante poderia ser afirmado para o</p><p>lugar daTorá (aproximadamente, a lei ou ensino de Deus) no pensamento rabínico;</p><p>8 E.g. Craig Koester, The Dwelling o f God: The Tabernacle in the Old Testament, Intertes-</p><p>tamentalfewish Literature, and the New Testament (CBQM S 24; CBA, 1989), pp. 108-</p><p>110; Dodd, IFG, pp. 274-277; Haenchen, 1. 138-140.</p><p>João 1.1-18 116</p><p>e, novamente, a Palavra a qual João está anunciando escolhe tais temas e, em certos</p><p>aspectos, os transcende (veja abaixo sobre os w. 16-18). Há muito a ser dito em</p><p>favor de ambas as teorias. Entretanto, a ausência da terminologia de Sabedoria no</p><p>evangelho de João sugere que os paralelos entre a Sabedoria e o logos de João podem</p><p>surgir da dependência comum dos usos de ‘palavra’ no Antigo Testamento e na</p><p>Torá, dos quais ambos emprestaram termos, e menos da dependência direta de um</p><p>para com o outro. Em suma, a ‘Palavra’ de Deus no Antigo Testamento é sua poderosa</p><p>auto-expressão na criação, revelação e salvação, e a personificação daquela ‘Palavra’</p><p>torna adequado, para João, aplicá-la como um título à auto-revelação definitiva de</p><p>Deus, a pessoa de seu próprio Filho. Embora a expressão provasse ser mais rica para</p><p>os leitores judeus, também ressoaria nas mentes de alguns leitores cujo pano de</p><p>fundo fosse inteiramente pagão. No caso destes, entretanto, eles logo descobririam</p><p>que independentemente do que houvessem entendido que o termo significava no</p><p>passado, o autor, cuja obra eles estavam lendo no momento, os forçava a um novo</p><p>pensamento (veja sobre o v. 14).</p><p>Deve-se ir adiante. A riqueza de cenários culturais distintos para o termo</p><p>logos no Prólogo de João sugere que o fator determinante não é esse ou aquele</p><p>pano de fundo, mas a experiência que a igreja tem de Jesus Cristo. Isso não é o</p><p>mesmo que dizer que o pano de fundo é irrelevante. Antes, quer dizer que quando</p><p>os cristãos procuravam por categorias adequadas para expressar o que eles tinham</p><p>vindo a conhecer de Jesus Cristo, muito do que eles aplicavam a ele necessariamente</p><p>desfrutava de uma superabundância de associações antecedentes. Os termos tinham</p><p>de ser semanticamente relacionados ao que os cristãos queriam dizer, ou eles não</p><p>poderiam ter se comunicado em sua própria época. Não obstante, muitos dos</p><p>termos que escolheram, incluindo esse, tinham uma esfera semântica tão ampla</p><p>que eles podiam moldar o termo para seu próprio uso a fim de fazê-lo transmitir,</p><p>no contexto de sua própria obra, o que eles sabiam ser verdadeiro sobre Jesus Cristo</p><p>(cf. Boice, p. 163). Nesse sentido, por mais proveitoso que o estudo do pano de</p><p>fundo possa ser, ele não pode, por si mesmo, determinar exatamente o que João</p><p>quer dizer com logos. Para essa informação, embora não se deixe de pensar através</p><p>dos usos do pano de fundo, devemos, acima de tudo, ouvir o próprio evangelista.</p><p>Como essa Palavra, essa divina auto-expressão, existia no princípio, pode-se</p><p>supor que ela estava com Deus, ou era o próprio Deus. João insiste que as duas</p><p>afirmações são verdadeiras. A Palavra, conforme ele afirma, estava com Deus. A</p><p>preposição traduzida por ‘com’ épros, que geralmente significa ‘para’ ou ‘em direção</p><p>a. Assim, muitos escritores dizem que João está tentando expressar uma intimidade</p><p>peculiar entre a Palavra e Deus: a Palavra está orientada em direção a Deus, como</p><p>amantes que perpetuamente correm em direção um do outro em uma cena de</p><p>praia de um filme romântico. Isso sem dúvida é forçado. No grego do século I,</p><p>pros estava invadindo o território normalmente ocupado por outras palavras que</p><p>significavam ‘com’. Na NVI, todas as seguintes ocorrências de ‘com’ têm pros por</p><p>trás delas: “Não estão aqui conosco as suas irmãs?” (Mc 6.3); “Todos os dias eu</p><p>estive com vocês” (Mc 14.49); “habitar com o Senhor” (2Co 5.8); “Gostaria de</p><p>mantê-lo comigo” (Fm 13); “a vida eterna, que estava com o Pai” (ljo 1.2; [grifos</p><p>1 1 7 João 1.1-18</p><p>do autor]). O que notamos acerca de todos esses exemplos, entretanto, é que em</p><p>todas essas construções, menos uma ou duas bastante peculiares (e.g. IPe 3.15),</p><p>pros pode significar ‘com’ somente quando uma pessoa está com uma pessoa,</p><p>geralmente em algum relacionamento bastante íntimo. E isso sugere que João</p><p>pode já estar apontando, bastante sutilmente, que a ‘Palavra’ de que ele está falando</p><p>é uma pessoa com Deus e, portanto, diferenciável de Deus, a qual desfruta de um</p><p>relacionamento pessoal com ele.</p><p>E mais, a Palavra era Deus. Essa é a tradução exigida pela estrutura do grego,</p><p>theos ên ho logos. Um grande número de escritores argumenta que como theos,</p><p>‘Deus’, aqui não tem artigo, João não está se referindo a Deus como um ser</p><p>específico, mas apenas às qualidades de ‘divindade’. A Palavra, eles dizem, não era</p><p>Deus, mas divina. Isso não é o bastante. Há uma palavra perfeitamente adequada</p><p>em grego para ‘divina’ (theios). Mais importante, há muitas passagens no Novo</p><p>Testamento em que o substantivo predicado não tem artigo, e mesmo assim é</p><p>específico. Mesmo nesse capítulo, “tu és o Rei de Israel!” (1.49), no original não</p><p>há artigo antes de ‘Rei’ (cf. também Jo 8.39; 17.17; Rm 14.17; G14.25; Ap 1.20).</p><p>Demonstrou-se que, nessa construção, é comum para um substantivo predicado</p><p>finito ser colocado antes do verbo, ser anartro (isto é, sem artigo; cf. nota adicional).</p><p>De fato, o efeito de ordenar as palavras dessa forma é enfatizar ‘Deus’, como se</p><p>João estivesse dizendo: ‘e a Palavra era Deus? Na realidade, se João tivesse incluído</p><p>o artigo, ele teria dito algo muito falso. Ele teria identificado a Palavra com Deus,</p><p>de forma que nenhum ser divino poderia existir separado da Palavra. Nesse caso,</p><p>seria sem sentido dizer (nas palavras da segunda oração desse versículo) que a</p><p>Palavra estava com Deus. A “Palavra por si mesma não constitui toda a Trindade;</p><p>não obstante a divindade que pertence ao restante da Trindade pertence também</p><p>a ela” (Tasker, p. 45). “A Palavra estava com Deus, a eterna companheira de Deus;</p><p>a Palavra era Deus, o próprio ser de Deus.”9</p><p>Aqui, portanto, estão alguns dos constituintes cruciais de uma doutrina madura</p><p>da trindade. “João pretende que o todo de seu evangelho deva ser lido à luz desse</p><p>versículo. Os feitos e as obras de Jesus são os feitos e as obras de Deus; se isso não é</p><p>verdade, o livro é blasfemo” (Barrett, p. 156). Pode bem ser que a autoridade do</p><p>Antigo Testamento para essa atribuição de divindade ao Messias seja o Salmo 45</p><p>(como foi para o escritor de Hb 1), em que o mais óbvio entendimento do texto é</p><p>que o próprio Deus se dirige ao rei messiânico como ‘Deus’.10 Outros sugerem</p><p>Isaías 9.7. Certamente, há ampla evidência de que os cristãos primitivos não foram</p><p>lentos em chegar a confessar a Jesus não só como Messias, mas também como Deus</p><p>(Rm 9.5; Fp 2.5-11; Cl 1.15-20 - embora em cada instância alguns críticos leiam a</p><p>evidência de outra forma). João é o mais direto de todos os escritores do Novo</p><p>Testamento nesse aspecto {(f. também 20.28).</p><p>9 Edmund P. Clowney, ‘A Biblical Theology o f Prayer’, in D. A. Carson (ed.), Teach Us to</p><p>Pray: Prayer in the Bible and the World (Paternoster/Baker, 1990).</p><p>10 Cf. G. Reim, N T S 30, 1984, pp. 158-160; M. J. Harris, TynB 35, 1984, pp. 65-89.</p><p>João 1.1-18 118</p><p>2. Em certo sentido, esse versículo é simplesmente uma repetição das primeiras</p><p>duas orações do versículo 1. Mas João inclui essas palavras para assegurar que o</p><p>que ele já disse seja entendido. Afinal de contas, o versículo 1 é muito condensado.</p><p>Agora, João trabalha em retrospectiva, dizendo na realidade: ‘Essa Palavra, que é</p><p>Deus, é exatamente aquela que eu disse que também era no princípio, e que ela</p><p>estava com (pros) Deus’. Em particular, o versículo</p><p>2 reitera a oração do meio do</p><p>versículo 1, e assim prepara o caminho para o versículo 3.</p><p>3-4. Assumindo que a NVI representa corretamente a relação entre o versículo 3</p><p>e o versículo 4 (veja notas adicionais), bem como traduz corretamente o grego,</p><p>então o versículo 3 simplesmente insiste, positiva e negativamente, que a Palavra era</p><p>o agente de Deus na criação de tudo que existe. Positivamente, Todas as coisas foram</p><p>feitas por intermédio dele; negativamente, sem ele, nada do que existe teria sido feito. A</p><p>mudança no tempo verbal de foram feitas para teria sido feito é, portanto, a mudança</p><p>do ato de criação para o estado de criação. Mesmo assim, a última é uma forma</p><p>estranha de expressão. O grego pode ser mais bem traduzido como: ‘Todas as coisas</p><p>foram feitas por ele, e o que foi feito (tomando hogegonen como o sujeito da segunda</p><p>oração), de forma alguma, foi (tomando ouden adverbialmente) feito sem ele’.11 De</p><p>qualquer forma, a afirmação é muito clara. Assim como em Gênesis, em que, por</p><p>causa da Palavra falada de Deus, tudo veio a ser, e assim como em Provérbios 3.19;</p><p>8.30, em que a Sabedoria é o meio (personificado) pelo qual tudo existe, também</p><p>aqui: a Palavra de Deus, entendida no Prólogo como um agente pessoal, criou tudo.</p><p>Que o Cristo preexistente criou tudo é um tema comum no Novo Testa­</p><p>mento, mesmo que o título ‘Palavra’ nessa conexão se restrinja à presente passagem.</p><p>Referindo-se a Jesus Cristo, Paulo diz que todas as coisas foram criadas “por ele”</p><p>e, até mesmo, “para ele”, e que “nele tudo subsiste” (Cl 1.16,17). O escritor de</p><p>Hebreus fala do Filho como aquele por meio de quem Deus fez o universo (Hb</p><p>1.2); o Apocalipse o apresenta como o “Amém, a testemunha fiel e verdadeira [o</p><p>archê: o princípio? O originador? O governante?], o soberano da criação de Deus”,</p><p>(Ap 3-14) — e aqui ‘Amém’ pode ser uma tentativa de traduzir o hebraico ‘âmòn de</p><p>Provérbios 8.30, em que a sabedoria é o ‘artífice’. ‘Nenhuma dependência literária</p><p>é provável entre uma e outra dessas passagens: o ensino que elas transmitem antecede</p><p>a todas elas e, portanto, é impressionantemente primitivo’ (Bruce, p. 32). João pode</p><p>compartilhar a linguagem de alguma filosofia helenística, mas sua forte doutrina da</p><p>criação evita, radicalmente, o dualismo do qual muito da tradição está impregnada.</p><p>‘Vida’ e ‘luz’ são símbolos religiosos quase universais. No uso de João eles não</p><p>são apoios sentimentais, mas formas de focalizar as excelências da ‘Palavra’: Nele</p><p>estava a vida, e esta era a luz dos homens. Muitos comentadores chamam a atenção</p><p>para o paralelo formal em 5.26: “Pois, da mesma forma como o Pai tem vida em</p><p>si mesmo, ele concedeu ao Filho ter vida em si mesmo”. O relacionamento entre</p><p>11 Georg Korting, B Z 33, 1989, pp. 97-104.</p><p>119 João 1.1-18</p><p>Deus e a Palavra no Prólogo é semelhante ao relacionamento entre o Pai e o Filho</p><p>no restante do evangelho. Ambos 1.4 e 5.26 insistem que a Palavra/Filho</p><p>compartilha da vida de Deus, mas tem existência própria. Mais tarde, Jesus afirma</p><p>que ele é ambos a luz do mundo (8.12; 9.5) e a vida (11.25; 14.6). Tanto a</p><p>sabedoria como aTorá são geralmente associadas com vida e luz nas fontes judaicas;</p><p>João as une a Cristo, a Palavra.</p><p>Não obstante, há uma diferença entre essa passagem e grande parte do restante</p><p>do evangelho, em que luz e vida são postas em primeiro plano. João, no restante</p><p>desse livro, está muito interessado em ‘luz’ e ‘vida’ à medida que se relacionam</p><p>com salvação: a ‘luz’ é revelação que as pessoas podem receber em fé ativa para</p><p>serem salvas, a ‘vida’ é ou vida de ressurreição ou a vida espiritual que é seu antegozo.</p><p>Se 1.4, em contraste, é lido no contexto dos primeiros três versículos, o mais</p><p>provável é que a vida inerente à Palavra esteja relacionada não com a salvação, mas</p><p>com a criação. A vida com existência própria da Palavra foi tão dispensada na</p><p>criação que ela se tornou a luz da raça humana (tôn anthrôpôn, ‘de seres humanos’).</p><p>Não fica claro se João está pensando em nossa constituição essencial, o fato de</p><p>que nós fomos feitos ‘à imagem de Deus’ (cf. Gn 1.27, continuando o tema da</p><p>criação), ou no reflexo dele mesmo no universo que ele criou (o que teólogos</p><p>algumas vezes chamam de revelação ‘natural’ ou ‘geral’; cf. Rm 1.20), ou até na</p><p>mais específica revelação ligada à vinda do Filho. Pelo menos nesse versículo, João</p><p>está mais interessado na fonte da luz (a vida da Palavra) e seu propósito (para a</p><p>raça humana) que no modo, ou propósito, de sua distribuição.</p><p>5. Esse versículo é uma obra prima de ambigüidade planejada. Se um judeu</p><p>helenista, ou, quanto a isso, mesmo um grego pagão, leu os versículos de abertura</p><p>até esse ponto, e não teve nenhuma experiência pessoal de cristianismo, ele pode</p><p>muito bem tomar o versículo 5 como se referindo exclusivamente à criação, sem</p><p>implicações morais. Luz e trevas não são simplesmente opostos; trevas nada mais</p><p>são que a ausência de luz. Na primeira criação, “trevas cobriam a face do abismo”</p><p>(Gn 1.2) até que Deus disse: “Haja luz” (Gn 1.3). Em nenhuma outra ocasião, a</p><p>não ser a da criação, poderia ser mais apropriadamente dito: A luz brilha nas</p><p>trevas. Precisamente porque João está falando de criação, e não está descrevendo</p><p>um universo dualístico no qual luz e trevas, bem e mal, são opostos emparelhados,</p><p>ele pode descrever a vitória da luz: e as trevas não a derrotaram (como o verbo</p><p>katelaben pode ser traduzido). Esse entendimento do versículo 5 está de acordo</p><p>com aqueles que dizem que o Prólogo não faz menção da encarnação, ou mesmo</p><p>da revelação pessoal e salvadora da Palavra, até o versículo 14.12</p><p>Mas qualquer leitor que tivesse entrado em constante diálogo com cristãos, e,</p><p>mais importante, qualquer leitor que tivesse lido todo esse evangelho uma vez e o</p><p>estivesse relendo agora, não poderia deixar de ver, no versículo 5, uma antecipação</p><p>12 E.g. Dunn, Making, pp. 239-243; Dodd, IFG, pp. 268-272. A sugestão de Sanders, p.</p><p>75, de que há incluída aqui uma referência ao fracasso da perseguição em reprimir o</p><p>evangelho, é desnecessariamente anacrônica e não contribui em nada para a fluência</p><p>do Prólogo.</p><p>J o ã o 1 .1 - 1 8 120</p><p>da dualidade luz/trevas que domina muito do restante do livro. As ‘trevas’ em João</p><p>não são somente ausência de luz, mas um mal concreto (cf. 3.19; 8.12; 12.35,46;</p><p>ljo 1.5,6; 2.8,9,11); a luz não é só revelação ligada à criação, mas à salvação. À parte</p><p>da luz trazida pelo Messias, a Palavra encarnada, as pessoas amam as trevas porque</p><p>suas obras são más (3.19) e, quando a luz aparece, elas a odeiam, porque não querem</p><p>que suas obras sejam expostas (3.20). De fato, sempre que é verdade que a luz brilha</p><p>nas trevas, também é verdade que as trevas não a entenderam (tomando katelaben</p><p>como na NVI). Ler o versículo 5 dessa forma antecipa o tema da rejeição que se</p><p>torna explícito nos versículos 10 e 11. Alternativamente, mesmo se katelaben significa</p><p>algo como não a derrotaram (veja nota adicional), é bastante possível que João,</p><p>escritor sutil que é, queira que seus leitores vejam na Palavra tanto a luz da criação</p><p>como a luz da redenção que a Palavra traz em sua encarnação.</p><p>6-8. As origens últimas de Jesus Messias, conforme insistirá João, estão na</p><p>Palavra pré-encarnada que estava com Deus e que era Deus. Mas quando ele</p><p>chega ao relato do ministério público de Jesus no estágio da história humana, o</p><p>evangelista, em comum com os sinóticos e com a pregação da igreja primitiva,</p><p>começa com o testemunho de João Batista (1.19ss.; cf. At 1.21,22; 10.37;</p><p>13.24,25). Por isso, é inteiramente apropriado para ele introduzir João Batista</p><p>aqui. A Palavra, em quem é inerente a vida que é a luz dos homens, foi primeiro</p><p>manifestada na arena pública da história quando um homem enviado por Deus</p><p>deu testemunho dela. O nome daquele homem era João. Algo bastante interessante</p><p>é que somente nesse evangelho não há a descrição adicional de ‘Batista’ para João,</p><p>embora o evangelista seja cuidadoso em distinguir outros personagens que têm o</p><p>mesmo nome (e.g. ‘Então</p><p>Judas [não o Iscariotes]’), 14.22; “deu-o ajudas Iscariotes,</p><p>filho de Simão” (13.26). O evangelista não precisa identificar João como ‘o Batista’,</p><p>porque ele nunca menciona pelo nome o único outro João do círculo de Jesus:</p><p>João, o filho de Zebedeu, o irmão de Tiago e amigo chegado de Pedro. A explicação</p><p>tradicional para esse silêncio ainda é a melhor: João, filho de Zebedeu, foi o</p><p>responsável por esse evangelho e preferiu referir-se a si mesmo só obliquamente</p><p>(cf. Introdução, §IV).</p><p>O significado do precursor para a história está fundado no fato de que ele foi</p><p>enviado por Deus, designado para essa tarefa específica. O fato de ter sido</p><p>comissionado pelo Todo-Poderoso o coloca na mesma categoria que Moisés (Ex</p><p>3.10-15) e os profetas (e.g. Is 6.8; Jr 1.4ss.) - na realidade, nesse aspecto, ele é</p><p>como o próprio Jesus, que também foi enviado por Deus (3.17. um tema freqüente</p><p>no quarto evangelho. C f as notas adicionais). Obediente a sua comissão, ele veio</p><p>como uma testemunha para testificar acerca da luz. A linguagem utilizada nos</p><p>tribunais, ‘testemunha’ e ‘testemunho’, é comum no Novo Testamento {cf. Trites,</p><p>esp. pp. 78-127),13 mas, em especial, nesse evangelho. Uma descrição mais plena</p><p>13 Similarmente Harvey, e de certa maneira Boice. Não obstante tal linguagem de</p><p>‘testemunho’ é usada no mundo antigo em muitos contextos fora do tribunal: Cf. J.</p><p>Beuder, Martyria: Traditionsgeschichtliche Untersuchungen zum Zeugnisthema bei Johannes</p><p>(Josef Knecht, 1972). Em conseqüência, a cena de tribunal vigorosamente apresentada</p><p>por Trites e Harvey precisa de substancial restrição.</p><p>121 J o ã o 1 .1 - 1 8</p><p>do testemunho de João Batista aparece nos versículos 19-34; 3.27-30; 5.35, com</p><p>um maravilhoso resumo em 10.40-42. Mas outras testemunhas da verdade da</p><p>auto-revelação de Deus na Palavra são numerosas: há o testemunho da mulher</p><p>samaritana (4.39), das obras de Jesus (5.36; 10.25), do Pai (5-32,37; 8.18), do</p><p>Antigo Testamento (5.39,40), da multidão (12.17), e do Espírito Santo e dos</p><p>apóstolos (15.26,27). Todos esses dão testemunho de Jesus, e ele próprio dá</p><p>testemunho da verdade (18.37), em conjunção com o Pai (8.13-18).</p><p>O propósito do testemunho de João Batista, embora, é claro, não seu resultado,</p><p>era que todos os homens pudessem crer. João 1.35-37 provê um exemplo em que o</p><p>testemunho de João Batista não foi só efetivo, mas particularmente frutífero em</p><p>seu resultado. Assim, como o testemunho de João Batista é relacionado em todos</p><p>os quatro evangelhos canônicos com o começo do ministério de Jesus, pode-se</p><p>dizer que ele, como Abel, “embora esteja morto, por meio da fé ainda fala” (Hb</p><p>11.4). Todos que alguma vez chegaram à fé são, indiretamente, dependentes dessa</p><p>proclamação da identidade e propósito salvador de Jesus Messias.</p><p>O versículo 8, com sua insistência negativa de que o Batista não era a luz,</p><p>levou muitos a especular que o evangelista escreveu essas palavras para refutar um</p><p>grupo de pessoas que sustentavam que João Batista era, ele próprio, a revelação</p><p>final de Deus à humanidade, e que os cristãos haviam erroneamente elevado Jesus</p><p>a essa posição. Fica claro, em Atos 19.1-7 e em fontes posteriores, que algumas</p><p>pessoas se associaram com o batismo de João; mas que elas tenham de fato se</p><p>oposto às declarações dos cristãos não fica assim tão claro. João pode ter escrito o</p><p>versículo 8a com um determinado grupo em mente, mas é importante lembrar</p><p>que, em geral, o retrato de João Batista no quarto evangelho é altamente favorável</p><p>(cf. Barth, pp. 50ss.), e bem de acordo com Mateus 11.2-15, que também</p><p>fundamenta o significado do lugar do Batista na história redentora no testemunho</p><p>peculiar que ele deu de Jesus Cristo (cf. Carson, Matthew, pp. 260-269). Além</p><p>disso, a asserção negativa do versículo 8a pode simplesmente pavimentar o caminho</p><p>para o versículo 9. Em qualquer caso, a oração negativa no versículo 8a é parte de</p><p>uma construção que pode ter o objetivo de enfatizar a certeza do plano divino.</p><p>Correndo o risco de exagero na tradução, poderíamos traduzir o versículo assim:</p><p>‘Ele não era a luz, mas foi necessário que ele desse testemunho da luz’.14</p><p>9. Se a frase “estava chegando ao mundo” for entendida como masculina e</p><p>ligada a ‘todos os homens’, então devemos traduzir esse versículo como a NVI o</p><p>faz na nota de rodapé: “Esta era a luz verdadeira que ilumina todo homem que</p><p>vem ao mundo” (similar à versão da ARC). Se essa for a tradução correta, então</p><p>nada há aqui ou no versículo 10 que nos force a ir além da iluminação concedida</p><p>a toda a raça na atividade criadora da Palavra (cf. w. 4,5). Esse ponto de vista é</p><p>reforçado por uma expressão rabínica comum: ‘todo aquele que vem ao mundo’,</p><p>usada para descrever ‘todo homem’. Mas essa expressão é sempre plural; a</p><p>construção aqui é singular. E melhor entender “estava chegando ao mundo” como</p><p>14 Cf. E. Delebeque, Etudes Classiques 54, 1986, pp. 147-158.</p><p>João 1.1-18 122</p><p>uma forma neutra ligada à ‘luz’, adotando a tradução da NVI: Estava chegando ao</p><p>mundo a verdadeira luz, que ilumina todos os homens. O apoio mais convincente</p><p>para essa tradução é o fato de que ‘estava chegando ao mundo’ ou sendo enviado</p><p>ao mundo é, nesse evangelho, repetidamente predicado daquele que é a Palavra.</p><p>Além disso, a sintaxe grega peculiar que essa tradução pressupõe é uma característica</p><p>comum do estilo de João (cf. 1.28; 2.6; 3.23; 10.40; 11.1; 13.23; 18.18,25).15 O</p><p>que isso significa é que, nesse versículo, é a Palavra, a luz, que está vindo ao</p><p>mundo, em algum ato distinto da criação. Se a encarnação não é explicada tão</p><p>vigorosamente como no versículo 14, é a mesma visitação especial que está em</p><p>vista. Poucos poderiam ler o quarto evangelho pela segunda vez sem reconhecer</p><p>que a vinda da Palavra ao mundo, descrita no Prólogo, nada mais é que o envio do</p><p>Filho ao mundo, descrito no restante do livro.</p><p>A palavra para ‘verdadeira’ (alêthinos), aqui e, com freqüência em João, significa</p><p>‘real’ ou ‘genuína. Ocasionalmente, a Palavra simplesmente significa ‘veraz’ como</p><p>oposto a ‘falso’, aplicável a declarações, testemunho e opiniões (e.g. 4.37; 19.35);</p><p>mas caracteristicamente é aplicada à luz (aqui). Adoradores (4.23); pão do céu</p><p>(6.32), a videira (15.1), e até ao próprio Deus (7.28; 17.3). Outras pessoas ou</p><p>instituições podem reivindicar ser a luz, serem adoradores, ser a videira, ser o pão</p><p>do céu, até ser ‘deus’; João começa com a intenção de apresentar a luz, a videira e</p><p>o pão verdadeiros, e assim por diante.</p><p>Em algumas passagens essa noção de ‘verdadeiro’ ou ‘genuíno’ transforma-se</p><p>gradativamente em ‘definitivo’, porque o contraste não é simplesmente com o</p><p>que é falso, mas com o que é anterior e provisório ou antecipatório na história da</p><p>misericordiosa auto-revelação de Deus. ‘O uso joanino de alêthinos carrega algo</p><p>do significado grego de “real”, mas é o real porque é a plena revelação da verdade</p><p>de Deus’ (Ladd, p. 167). Assim, o maná provido no Antigo Testamento era</p><p>genuinamente de Deus; mas Jesus é o pão verdadeiro, o definitivo e, portanto, o</p><p>genuíno pão do céu. Israel era a videira escolhida de Deus, e João, alegremente,</p><p>reconheceria o fato; mas agora o próprio Jesus é o locus ou haste da comunidade</p><p>da aliança de Deus, cujos membros devem estar relacionados a ele como ramos.</p><p>Assim também aqui: qualquer leitor do Antigo Testamento saberia que a lei e a</p><p>Sabedoria dão luz (cf. sobre 8.12), mas o que João está dizendo é que a Palavra</p><p>que veio ao mundo é a luz, a verdadeira luz, a genuína e definitiva auto-revelação</p><p>de Deus ao homem.</p><p>Como João insiste que a Palavra foi o agente da criação, pode-se pensar que</p><p>agora, quando ele descreve aquela Palavra como vindo ao mundo, ele quer dizer</p><p>nada mais que aquela Palavra invadiu a ordem criada que ela mesma formou.</p><p>Mas mundo para João tem implicações mais específicas. Embora alguns tenham</p><p>sustentado que para João a palavra kosmos (‘mundo’) algumas vezes tem implicações</p><p>positivas (“Deus tanto amou o mundo”, 3.16), algumas vezes implicações neutras</p><p>(como aqui; cf. também</p><p>21.24,25, em que o ‘mundo’ é simplesmente um grande</p><p>15 Para uma outra possibilidade, Cf. Borgen, Logos, p. 103.</p><p>123 João 1.1-18</p><p>lugar que pode conter uma grande quantidade de livros), e muitas vezes implicações</p><p>negativas (“o mundo não o reconheceu”, 1.10), uma inspeção mais cuidadosa</p><p>mostra que, embora um punhado de passagens preserve uma ênfase neutra, a</p><p>vasta maioria decididamente é negativa. Não há ocorrências positivas sem</p><p>ambigüidades. O ‘mundo’, ou muitas vezes, ‘este mundo’ (e.g. 8.23; 9.39; 11.9;</p><p>18.36), não é o universo, mas a ordem criada (especialmente de seres humanos e</p><p>assuntos humanos) em rebelião contra seu criador (e.g. 1.10; 7.7; 14.17,22,27,30;</p><p>15.18,19; 16.8,20,33; 17.6,9,14). Portanto, quando João nos diz que Deus ama</p><p>o mundo, isso é um testemunho do caráter de Deus (3.16) e está longe de ser um</p><p>endosso do mundo. O amor de Deus deve ser admirado não porque o mundo é</p><p>tão grande, mas porque o mundo é tão mau. Barrett (pp. 161-162) pensa que, em</p><p>3.16, o mundo pode ser ‘separado em seus componentes’, aqueles que crêem e</p><p>aqueles que não crêem. De fato, o ‘mundo’ no uso de João não compreende</p><p>ninguém que tem fé. Aqueles que vêm à fé não são mais deste mundo; eles foram</p><p>tirados deste mundo (15.19). Se Jesus é o Salvador do mundo (4.42), isso diz</p><p>muito sobre Jesus, mas nada de positivo sobre o mundo. De fato, isso nos diz que</p><p>o mundo precisa de um Salvador.</p><p>Essa estrutura está em desacordo com qualquer interpretação gnóstica ou de</p><p>qualquer outro tipo que divida a raça humana com base em diferenças na constituição</p><p>das pessoas, algumas sendo essencialmente capazes de receber a luz, porque algo</p><p>daquela luz foi captado em seus próprios seres. Mesmo no versículo 9, em que</p><p>‘mundo’ pode inicialmente ser tomado como uma instância de kosmos com sentido</p><p>neutro, João está armando o palco para a massiva rejeição registrada no versículo</p><p>10. Além disso, se a luz vem ao mundo, é porque a própria residência da vida está</p><p>bastante fora dele; ela não pertence a este mundo (8.23; 18.36), que é caracterizado</p><p>pelas trevas. O que é próprio deste mundo é excessivamente repugnante para Deus</p><p>(ljo 2.16).</p><p>O que, portanto, João quer dizer quando fala que essa luz que estava chegando</p><p>ao mundo ilumina (phôtizei) todos os homens? As complexidades são muitas:</p><p>(1) O verbo phôtizei pode significar ‘iluminar (interiormente)’, isto é, ‘dar</p><p>conhecimento’. Embora lexicalmente secundário, esse significado é comum na</p><p>LXX (e.g. SI 19 [18]. 8), e é conhecido no Novo Testamento (e.g. E f 1.18). Assim,</p><p>as interpretações possíveis são três: (a) A verdadeira luz brilhou sobre ‘todos os</p><p>homens’ sem exceção antes de vir ao mundo (na encarnação), e continua a assim</p><p>fazer. A idéia é próxima do que os teólogos sistemáticos chamam de ‘revelação</p><p>geral’, que deixa os seres humanos sem desculpas (conforme Paulo argumenta,</p><p>Rm 1.20; também Calvino, 1.15; Morris, p. 95). O pensamento é paralelo a 1.4</p><p>lido à luz de 1.3 (cf notas, acima). Mas é um pouco tarde no Prólogo para voltar</p><p>àquele tema. (b) Alternativamente, pode-se entender que a verdadeira luz está</p><p>brilhando no contexto da encarnação, iluminando não ‘todos os homens’ sem</p><p>exceção, mas ‘todos os homens’ sem distinção (isto é, não só os judeus; cf. At 1.8;</p><p>Cl 3.11). O pensamento é então paralelo a 1.4 lido à luz de 1.5 (cf notas, acima;</p><p>Bruce, p. 36). Lindars vê um paralelo com Sabedoria 9.9-18, ‘em que a Sabedoria,</p><p>identificada com o Espírito Santo, é a fonte da revelação, que se pode também</p><p>João 1.1-18 124</p><p>facilmente deixar de perceber’ (p. 89). Mas é duvidoso que João sempre elimine</p><p>distinções entre a Palavra e o Espírito Santo, que, em qualquer caso, não foi ainda</p><p>introduzido. Mais importante, há razões para pensar que a ‘luz’ em João tenha</p><p>uma função mais discriminadora (cf. abaixo), (c) Uma variação na segunda</p><p>interpretação é um apelo à famosa ilustração de Agostinho de uma cidade com</p><p>somente um professor. Embora nem todos os cidadãos sejam alunos do professor,</p><p>ele é não obstante o professor de todos. Assim, Cristo é a única verdadeira luz que</p><p>Deus deu ao mundo, e, portanto, a luz para todo homem. Mas por mais</p><p>teologicamente verdadeiro que isso seja, não é o que o texto diz. Ele não fala da</p><p>Palavra servindo como luz (potencial) destinada a todos os homens, mas de dar</p><p>luz para todos os homens.</p><p>(2) O verbo phôtizei pode ter como seu significado lexical primário ‘lançar</p><p>luz sobre’, isto é, ‘fazer visível’, ‘trazer à luz’. A iluminação interior agora não está</p><p>em vista (seja da revelação geral seja da luz especial que acompanha a salvação).</p><p>Antes, o que está em jogo é a revelação objetiva, a ‘luz’, que vem ao mundo com</p><p>a encarnação da Palavra, a invasão da ‘verdadeira luz’. Ela brilha sobre todo homem</p><p>e divide a espécie: aqueles que odeiam a luz reagem como o mundo faz (1.10):</p><p>eles fogem para que suas obras não sejam expostas por essa luz (3.19-21). Mas</p><p>alguns recebem essa revelação (1.12,13), e assim fazendo testemunham que suas</p><p>obras são feitas por meio de Deus (3.21). No Evangelho de João, repetidamente</p><p>acontece que a luz brilha sobre todos e força uma distinção (e.g. 3.19-21; 8.12;</p><p>9.39-41). Essa luz “brilha sobre todo homem” (quer ele veja isso quer não) (Barrett,</p><p>p. 161).</p><p>10. A Palavra, portanto, estava no mundo como resultado de sua vinda espe­</p><p>cial a ele. Nossa decisão a respeito do significado de ‘mundo’, no versículo 9, tem</p><p>seu efeito sobre a interpretação do versículo 10. Esse era o mundo que foi feito</p><p>por intermédio dele - não uma mera repetição de versículos 3 e 4, desde que ‘mundo’,</p><p>como temos visto, tem um foco mais estreito que ‘todas as coisas [que] foram</p><p>feitas’. A questão é que João não permitirá nenhum dualismo ontológico, o ponto</p><p>de vista de que existe um princípio do mal inteiramente independente do universo</p><p>que Deus criou. Longe disso: fora da Palavra, ‘nada do que existe teria sido feito’</p><p>(1.3). Isso inclui o kosmos, o mundo dos seres humanos e seus assuntos em rebelião</p><p>contra a Palavra. Em lugar de permitir dualismo, João baseia a responsabilidade</p><p>moral da raça na doutrina da criação. Esse mundo criado por meio da ‘Palavra’</p><p>não o reconheceu, eles não o ‘conheceram’ {cf. notas adicionais).</p><p>11. Esse versículo não é meramente uma repetição comovente do versículo 10,</p><p>embora seu páthos caracterize a vinda da Palavra como mais pessoal e amorosa</p><p>que a vinda do logos no pensamento gnóstico e pagão. De fato, por essa razão, o</p><p>versículo foi instrumento na conversão de Agostinho (Confissões, VII, 9). A Palavra</p><p>para o que era seu: essa é uma tentativa de traduzir eis ta idia: o neutro ta idia pode</p><p>significar ‘sua própria propriedade’, ou melhor, ‘sua própria casa’ (como em 16.32;</p><p>125 João 1.1-18</p><p>19.27; cf. Howard, p. 470; Tucídides, I. I4 l) .16 O primeiro podia estar se referindo</p><p>ao mundo como a ‘propriedade’ da Palavra; o último inclina o significado em</p><p>favor de uma referência à nação e à herança judaicas.17</p><p>Se a Palavra de Deus veio para a humanidade caída nos termos gerais</p><p>anteriormente descritos no versículo 5, ela veio na lei, na profecia e na sabedoria,</p><p>em atos de libertação, de julgamento e de misericórdia, bem como em teofania,</p><p>simples e brilhante. Agora a Palavra vem em auto-revelaçao pessoal ‘à própria</p><p>casa’, mas seu próprio povo (como o masculino hoi idioi deve ser traduzido) não</p><p>a recebeu. Por causa da universalidade da obra criadora da Palavra, há, é claro, um</p><p>sentido em que todas as pessoas são seu próprio povo; mas à luz do restante do</p><p>evangelho, o evangelista está provavelmente pensando aqui na nação judaica de</p><p>quem a salvação vem (4.22). De fato, a expressão usada, hoi idioi, é para João</p><p>caracteristicamente (cf. esp. 1.41; 5.18; 10.3,4,12) um termo relacional. João</p><p>focaliza não o mero status da comunidade da aliança, mas seu adequado</p><p>relacionamento com a Palavra.</p><p>Repetidamente, sob a mesma velha aliança, os profetas descrevem a recalcitrância</p><p>do povo de Deus. “O tempo todo estendi as mãos a um povo obstinado, que anda</p><p>por um caminho que não é</p><p>bom, seguindo as suas inclinações; esse povo que sem</p><p>cessar me provoca abertamente” (Is 65.2,3), declara o Senhor. “Desde a época em</p><p>que os seus antepassados saíram do Egito até o dia de hoje [o início do cativeiro</p><p>babilónico], eu lhes enviei os meus servos, os profetas, dia após dia. Mas eles não me</p><p>ouviram nem me deram atenção. Antes, tornaram-se obstinados e foram piores do</p><p>que os seus antepassados” (Jr 7.25,26). Esse é o tema que João está escolhendo, e ele</p><p>o desenvolverá de seu jeito;18 porque se houve um ponto dominante que os cristãos</p><p>precisaram afirmar em seu evangelismo dirigido aos judeus do século I (quer fossem</p><p>judeus impregnados da tradição semítica quer fossem aqueles mais orientados para</p><p>o mundo helenístico) era a proposição de que as próprias Escrituras exigiam que o</p><p>homem que eles proclamavam como Salvador e Senhor fosse crucificado e</p><p>amplamente rejeitado por seu próprio povo. Esse tema, como veremos, alcança seu</p><p>ápice em 12.37-41.</p><p>16 Embora ta idia possa se referir ou às posses ou ao lar/terra natal, a expressão completa,</p><p>eis ta idia, sempre na LXX e no Novo Testamento, significa ‘para o lar/terra natal de</p><p>alguém’.</p><p>17 J. Jervell (ST 10, 1956, p. 21), embora ele aceite que eis ta idia aqui signifique ‘para sua</p><p>própria casa’, pensa, entretanto, que o mundo é a própria terra natal do Logos, não a</p><p>nação judaica. Isso seria inteiramente contrário ao uso joanino de ‘mundo’ (kosmos; cf.</p><p>notas sobre v. 9). Cf. ainda J. W. Pryor, ‘Jesus and Israel in the Fourth Gospel - John</p><p>1.11’, NovTòl, 1990, pp. 201-218.</p><p>18 Contudo, ao mesmo tempo, ‘os judeus’ (cf. notas sobre 1.19) representam tão</p><p>normalmente o mundo no quarto evangelho que, mesmo após termos concluído que</p><p>o v. 11 articula um foco mais emocional e mais estreito que o v. 10, o padrão mais</p><p>amplo de rejeição, abarcando o ‘mundo’ inteiro, nunca está muito distante.</p><p>João 1.1-18 126</p><p>12-13. Por si mesmos, os versículos 10 e 11 seriam realmente severos; mas os</p><p>versículos 12 e 13 suavizam imediatamente a rejeição total da Palavra indicando</p><p>que, como nos tempos do Antigo Testamento, permanece um remanescente fiel.</p><p>Muitos têm indicado que as palavras “os seus não o receberam” (1.11) poderiam</p><p>ser afixadas sobre os primeiros doze capítulos desse livro, mas, sobre os capítulos</p><p>13—21, poderíamos levantar o estandarte: Contudo, aos que o receberam.... Outra</p><p>forma de descrever essas pessoas é dizer que eles creram em seu nome. O ‘nome’ é</p><p>mais que um rótulo; é o caráter da pessoa, ou até a própria pessoa. A expressão</p><p>inteira não garante que aqueles que expressaram tal fé são crentes genuínos (veja</p><p>comentários sobre 2.23-25); mas que, no máximo, tal fé gera fidelidade à Palavra,</p><p>confia nela completamente, reconhece suas declarações e a confessa com sua</p><p>gratidão. E isso que significa ‘recebê-lo’.</p><p>Para aqueles que receberam a Palavra, para aqueles que manifestaram tal fé, a</p><p>Palavra deu-lhes o direito (exousia; não ‘poder’ como na ARA) de se tomarem filhos</p><p>de Deus. Essas pessoas desfrutam do privilégio de tornarem-se o povo da aliança</p><p>de Deus, um privilégio perdido pelo próprio povo do Messias (1.11), aqueles</p><p>relacionados a ele pela natureza e pela graça da velha aliança (cf. notas sobre w.</p><p>16, 17).19 Em João o crente se torna uma ‘criança (teknon) de Deus, mas somente</p><p>Jesus é o ‘filho’ (huios) de Deus. A linguagem é diferente da de Paulo, que descreve</p><p>ambos, Jesus e o crente, como ‘filhos’ de Deus, mas os crentes são filhos somente</p><p>por adoção. Assim, ambos os escritores presumem uma distinção entre a ‘filiação’</p><p>de crentes e a ‘filiação’ única de Jesus.</p><p>Outra forma de descrever aqueles que recebem a Palavra é sugerida pela metáfora</p><p>dos ‘filhos de Deus’: eles são filhos nascidos não de descendência natural, nem da</p><p>decisão humana ou da vontade de um marido, mas nasceram de Deus. O Prólogo assim</p><p>nos introduz ao tema do ‘novo nascimento’ do capítulo 3. As séries de negações</p><p>afirmam o mesmo ponto geral que 3.6: “O que nasce da carne é carne, mas o que</p><p>nasce do Espírito é espírito”. Nascer na família de Deus é bastante diferente de</p><p>nascer em uma família humana. ‘Descendência natural’ (lit. ‘de sangues’, isto é, um</p><p>relacionamento de sangue, sob a pressuposição de que a procriação natural envolve</p><p>a mistura de sangue) não serve para nada - que significa que herança e raça, mesmo</p><p>a raça judaica, são irrelevantes para o nascimento espiritual. Em João 8, o evangelista</p><p>elabora sobre esse tema, mostrando que a descendência física a partir de Abraão não</p><p>significa nada se a fé de Abraão não for reproduzida (cf. também Rm 4; G1 3). O</p><p>nascimento espiritual não é produto de desejo sexual, ‘a vontade da carne’, aqui</p><p>traduzida como ‘vontade de algum homem’; certamente não é o resultado da vontade</p><p>de um marido (que se entende que seja o ‘líder’ em questões sexuais). Novo</p><p>nascimento é, finalmente, nada mais que um ato de Deus.</p><p>Alguns têm afirmado que fé (v. 12) é a condição lógica e temporal do novo</p><p>nascimento (1.13; ^.Barrett, p. 164); outros têm argumentado exatamente o</p><p>19 J. W. Pryor, RTR 47, 1988, p. 48.</p><p>127 João 1.1-18</p><p>contrário (e.g. Holtzmann, pp. 40-42). De fato, esses versículos se abstêm de</p><p>enunciar a conexão entre fé e novo nascimento. Aqueles que recebem a Palavra</p><p>são idênticos àqueles que crêem em seu nome, e estes são idênticos àqueles que</p><p>nascem de Deus (cf. mais sobre essa discussão em Carson, pp. 181-182).</p><p>14. Pela primeira vez desde o versículo 1, o termo ho logos, ‘a Palavra’, reaparece.</p><p>Nesse ponto, a encarnação, o ‘en-carnar’ da Palavra, é articulada da forma mais</p><p>corajosa. Se o evangelista tivesse dito somente que a Palavra eterna assumiu a</p><p>humanidade ou adotou a forma de um corpo, o leitor impregnado pelo dualismo,</p><p>tão popular no mundo helenístico, poderia não entender. Mas João não é ambíguo,</p><p>ele chega quase a chocar com as expressões que usa (cf. especialmente Barth, pp.</p><p>85ss.): a Palavra tomou-se carne. Como orações sucessivas nesse versículo aludem</p><p>a Êxodo 33.7— 34.35, é tentador pensar que essa primeira oração faz o mesmo. A</p><p>‘Tenda do Encontro’ era o lugar onde o Senhor “falava com Moisés face a face,</p><p>como quem fala com seu amigo” (Êx 33.1; grifo do autor). Em Êxodo, Moisés</p><p>ouve o nome divino falado pelo próprio Deus, e isso é seguido pela palavra escrita</p><p>sobre duas tábuas de pedra. Agora, João nos diz, a Palavra de Deus, sua auto-</p><p>expressão, tornou-se carne.</p><p>Essa é a suprema revelação. Se nós devemos conhecer a Deus, nem racionalismo</p><p>nem misticismo irracional serão suficientes: o primeiro reduz Deus a mero objeto,</p><p>e o segundo abandona todos os controles. Mesmo a revelação de Escrituras</p><p>antecedentes não pode competir com essa revelação, como a carta aos Hebreus</p><p>também afirma em categorias chocantemente similares: “Há muito tempo Deus</p><p>falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados por meio dos</p><p>profetas, mas nestes últimos dias falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu</p><p>herdeiro de todas as coisas e por meio de quem fez o universo” (Hb 1.1,2). A</p><p>Palavra, a própria auto-expressão de Deus, que estava com Deus e era Deus, tornou-</p><p>se carne: ela vestiu nossa humanidade, exceto nosso pecado. Deus escolheu se</p><p>fazer conhecido, final e definitivamente, em um homem real e histórico: “quando</p><p>‘a Palavra tornou-se carne’, Deus tornou-se homem” (Bruce, p. 40).20</p><p>A Palavra fez sua habitação entre nós. Traduzindo mais literalmente, o verbo</p><p>grego skênoô significa que a Palavra armou seu tabernáculo, ou morou em sua</p><p>tenda, entre nós. Para os judeus de língua grega e outros leitores do Antigo Testa­</p><p>mento em grego, o termo traria à mente o skênê, o tabernáculo onde Deus se</p><p>encontrava com Israel antes do templo ser construído. O tabernáculo foi edificado</p><p>por ordem de Deus: “E farão um santuário para mim, e eu habitarei no meio</p><p>deles” (Êx 25.8). O povo devia fazer esse ‘tabernáculo’ (Êx 25.9; hebr. miskan gr.</p><p>skênê) e toda sua mobília em exato acordo com o padrão que Deus havia fornecido.</p><p>20 Kasemann afirmou que isso não é nada mais que o mínimo</p><p>de forma humana exigida</p><p>para que a Palavra seja percebida de alguma forma, bem como que o evangelho é, na</p><p>realidade, docético — isto é, que ele adota uma cristologia na qual a Palavra somente</p><p>parece se.r humana. Para um estudo mais detalhado, cf. Carson, pp. 154ss.; Thompson,</p><p>passim. Sobre teorias de fonte como a de Richter, Studien, pp. 149-198, que julga que</p><p>esse versículo é uma interpolação, cf. a Introdução, § III.</p><p>João 1.1-18 128</p><p>Ainda mais tarde, a ‘Tenda do Encontro’ (hebr. môhel mçôd,, Êx 33.7) é chamado</p><p>na LXX, hê skênê martyriou (lit. ‘a tenda [tabernáculo] do testemunho’).21 Se a</p><p>alusão em João 1.14 é ao tabernáculo ou à tenda do encontro, o resultado é o</p><p>mesmo: agora, o evangelista sugere que Deus escolheu habitar entre seu povo de</p><p>uma forma ainda mais pessoal, na ‘Palavra que se tornou carne’.</p><p>Judeus helenistas com pelo menos um conhecimento superficial de hebraico</p><p>perceberiam com facilidade outra conexão entre as palavras de João e o Antigo</p><p>Testamento. O verbo hebraico correspondente para ‘habitar’, sakan, algumas vezes</p><p>aplicado ao ‘habitar’ de Deus com Israel (e.g. Êx 25.8; 29.46; Zc 2.13), e o</p><p>substantivo para ‘tabernáculo’, miskan, são cognatos do termo pós-bíblico skina.</p><p>Essa palavra, estritamente falando, significa ‘residência’, mas, em geral, se refere à</p><p>glória de Deus que se fez presente no tabernáculo e no templo. A nuvem brilhante</p><p>da presença de Deus pousou (sakan) sobre o tabernáculo, e a glória do Senhor o</p><p>encheu (Êx 24.16; 40.34,35; semelhantemente o templo, lRs 8.10,11). No</p><p>hebraico pós-bíblico, skina-glória era nada menos que a manifestação visível de</p><p>Deus. Aludindo a tais temas, João pode estar dizendo a seus leitores que Deus</p><p>manifestou-se mais claramente quando a Palavra tornou-se carne. A Palavra</p><p>encarnada é o verdadeiro skina, a manifestação definitiva da presença de Deus</p><p>entre seres humanos, porque essa Palavra tornou-se homem. Mas essa conexão é</p><p>menos que certa, desde que ela depende de algum conhecimento de hebraico, e</p><p>em outro lugar João aparentemente pressupõe que seus leitores não têm nenhum</p><p>conhecimento de hebraico (cf 1.38,41,42; 9.7; 20.12).22</p><p>Qualquer que seja a conexão com a skina, João traça uma linha explícita com</p><p>‘glória’: Vimos a sua glória. Na LXX, a palavra para ‘glória’, doxa, geralmente traduz</p><p>o hebraico kabôd, uma palavra usada para denotar a manifestação visível da auto-</p><p>revelação de Deus em uma teofania (Êx 33.22; Dt 5.22), ou mesmo a posição</p><p>‘gloriosa’ do povo de Deus quando ele se levanta para salvá-los (Is 60.1). Não é</p><p>nenhuma surpresa que todos no templo, conscientes da presença do Senhor,</p><p>clamem: ‘Glória!’ (SI 29.9) - o que também mostra como a palavra quase significa</p><p>‘louvor’ em alguns contextos (e.g. João 5.41). A glória de Jesus foi manifestada em</p><p>seus ‘sinais’ (2.11; 11.4,40); ele foi supremamente ‘glorificado’ em sua morte e</p><p>exaltação (7.39; 12.16,23; 13.31,32). Isso não significa que ele não tivesse glória</p><p>nenhuma antes de começar seu ministério público, porque, de fato, ele desfrutava</p><p>da glória com o Pai antes da encarnação e retornou para assumir essa glória</p><p>novamente após sua ressurreição (17.5,24). Outros homens procuraram sua própria</p><p>glória (5.44; 12.43); em contraste, a relação peculiar que a Palavra encarnada</p><p>tinha com o Pai era tal que ela nunca procurou glória para si mesma, mas somente</p><p>a glória de Deus (5.41; 7.18; 8.50). No contexto da encarnação, o nós que viu a</p><p>21 Essa é a conexão traçada por Henry Mowvley, ExpT 95, 1983-84, p. 136. As palavras</p><p>‘do testemunho’, antes que ‘do encontro’, dependem de uma pontuação diferente do</p><p>hebraico.</p><p>22 Cf. Craig Koester, op. cit., pp. 105s.</p><p>129 João 1.1-18</p><p>glória da Palavra deve se referir ao evangelista e outros cristãos que realmente</p><p>viram Jesus nos dias de sua vida terrena. Cf. Estêvão em Atos 7.55, em que kai</p><p>pode significar ‘e também’: Estêvão, “cheio do Espírito Santo, levantou os olhos</p><p>para o céu e viu a glória de Deus, e [também] Jesus em pé, à direita de Deus”.</p><p>A glória que João e os outros viram era a glória do Unigénito. A expressão</p><p>subjacente foi traduzida por Filho ‘Unigénito’ em traduções mais antigas, mas</p><p>apesar de esforços de alguns para restaurar essa tradução,23 a NVI (na nota de</p><p>rodapé) está um pouco mais próxima do que se quis dizer. A glória manifestada</p><p>na Palavra encarnada é o tipo de glória que um Pai concede ao seu Filho Unigénito</p><p>e muito amado — esse ‘Pai’ é o próprio Deus. Assim é nada menos que a glória de</p><p>Deus que João e seus amigos testemunharam na ‘Palavra que se tornou carne’.</p><p>As palavras cheia de graça e de verdade podem ser descritivas da Palavra,</p><p>especialmente se o termoplêrês, ‘cheio’, for entendido como nominativo, concordando</p><p>com logos, ‘Palavra’; mas porque ‘cheio’ é geralmente indeclinável (isto é, formalmente</p><p>não ‘concorda’ com nenhuma forma de palavra em particular), parece melhor</p><p>entender a expressão como um modificador de ‘glória’. A glória de Deus manifesta</p><p>na Palavra encarnada era cheia de graça e de verdade. Nesse caso, João está quase</p><p>certamente dirigindo seus leitores para Êxodo 33— 34 (cf. Hanson, pp. 5ss.). Lá</p><p>Moisés implora a Deus: “Peço-te que me mostres a tua glória” (Êx 33.18). O Senhor</p><p>responde: “Diante de você farei passar toda a minha bondade, e diante de você</p><p>proclamarei o meu nome: o S e n h o r .24 Terei misericórdia de quem eu quiser ter</p><p>misericórdia, e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão” (Êx 33.19). A</p><p>glória de Deus, portanto, é supremamente sua bondade. Assim Moisés fica sobre o</p><p>monte Sinai, e é-nos dito que “o S e n h o r desceu na nuvem, permaneceu ali com ele</p><p>e proclamou o seu nome: o S e n h o r . E passou diante de Moisés, proclamando:</p><p>‘S e n h o r , S e n h o r , Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de</p><p>fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o</p><p>pecado”’ (Êx 34.5-7).</p><p>As palavras em itálicos explicam a natureza daquela bondade que é a glória</p><p>de Deus. As duas palavras cruciais em hebraico são hesed (variadamente traduzida</p><p>23 E.g. J. V. Dahms, NTS29,1983, pp. 222-232; Dodd, IFG, p. 305.0 termo monogenês</p><p>é um de diversos termos usados na LXX para traduzir o hebraico yâ hid, referindo-se a</p><p>um filho ‘único’ (e.g. Jz 11.34; Tobias 3.15; 6.14; 8.17; cf. Lc 7.12; 8.42; 9.38; e</p><p>especialmente Hb 11.17 acerca de Isaque, que não era o filho ‘único’ de Abraão, mas</p><p>era seu filho ‘único/querido’. Esse componente ‘querido’ ou ‘amado’ do significado da</p><p>palavra é refletido em Gênesis 22.2, em que Isaque é chamado filho yâ h id de Abraão,</p><p>e a LXX traduz a palavra por agapêtos, ‘amado’.</p><p>24 A palavra em versal-versalete, ‘Senhor’, é uma tentativa de captar as quatro consoantes</p><p>YHWH, tradicionalmente transliteradas ‘Yahweh’ ou ‘Jehovah’. Questões quanto ao</p><p>‘significado’ do nome são resolvidas menos por etimologia que pela forma que o nome,</p><p>refletindo o próprio caráter de Deus, é revelado no tratamento de Deus com seu povo.</p><p>No fim de seu ministério, Jesus pode declarar que ele tornou conhecido o ‘nome’ do</p><p>Pai, e o fará conhecido (17.26).</p><p>João 1.1-18 130</p><p>por ‘amor firme’, ‘misericórdia, ‘amor de aliança - mas, recentemente, mostrou-</p><p>se com muita clareza que é a graciosidade do amor que está em jogo25) e *met</p><p>(‘verdade’ ou ‘fidelidade’). Essas duas expressões aparecem repetidamente no Antigo</p><p>Testamento. As duas palavras que João usa, “cheio de graça e de verdade ’ (grifo do</p><p>autor), é sua forma de resumir as mesmas idéias (sobre verdade, cf. Schnackenburg,</p><p>2. 225-237; Ibuki, pp. 176-207). A glória revelada a Moisés, quando o Senhor</p><p>passou diante dele e ressoou seu nome, manifestando que a bondade divina</p><p>caracteriza-se por inefável graça e verdade, era exatamente a mesma glória que</p><p>João e seus amigos viram na ‘Palavra que se tornou carne’.</p><p>E algumas vezes objetado que, na LXX, a expressão característica para ‘graça</p><p>e verdade’ é eleos [‘misericórdia’] kai alêtheia, não (como em Jo 1.14) charis kai</p><p>alêtheia. De fato, charis (‘graça’) nunca é usada para traduzir</p><p>o hebraico hesed,</p><p>exceto em Ester 2.9. Não é impossível que João, trabalhando diretamente a partir</p><p>do hebraico, simplesmente preferiu charis (assim Lindars, p. 95; Sanders, p. 82).</p><p>Alternativamente, (embora menos provável), nós podemos supor que em João</p><p>1.14 ‘verdade’ está logicamente subordinada à graça, e a expressão inteira significa</p><p>algo como verdadeiramente cheia de graça’. Nesse caso, podemos pensar não em</p><p>Êxodo 34.6, mas em Êxodo 33.16, em que Moisés pergunta: “Como se saberá</p><p>que eu e o teu povo podemos contar com o teu favor, se não nos acompanhares?”.</p><p>A LXX traduz desta forma: ‘E como será verdadeiramente (alêthôs, o advérbio</p><p>cognato) conhecido que eu tenho achado graça (charin) contigo...?</p><p>E também possível que o evangelista esteja fazendo eco a algumas palavras</p><p>dos profetas. O Senhor declara: “Grita e regozija, ó Filha de Sião. Porque eu estou</p><p>vindo, e eu viverei (kataskênôsô) entre vocês” (Zc 2.10 [LXX 2.14]). “Então vocês</p><p>saberão que eu sou o Senhor, o seu Deus, que habito (kataskênôn) em Sião, o meu</p><p>santo monte” (J1 3.17). “Minha morada (kataskênôsis) estará com eles; eu serei o</p><p>seu Deus, e eles serão o meu povo. Então, quando o meu santuário estiver entre</p><p>eles para sempre, as nações saberão que eu, o S e n h o r , santifico Israel” (Ez 37.27,28;</p><p>cf. Lv 26.11 MT; Ap 21.22-23).</p><p>Até esse ponto, um leitor pode ser desculpado por pensar que a glória manifesta</p><p>na Palavra encarnada era abertamente visível - que o Jesus que está para ser</p><p>apresentado por nome andou pela Galiléia e pela Judéia com um tipo de lumines­</p><p>cência que o distinguia, pois não era um mortal comum, mas o Filho de Deus. Mas,</p><p>à medida que João prossegue com seu evangelho, torna-se cada vez mais claro que a</p><p>glória que Cristo manifestou não foi percebida por todos. Quando ele realizava um</p><p>milagre, um ‘sinal’, ele revelava “a sua glória” (2.11), mas somente seus discípulos</p><p>tinham fé nele. O sinal miraculoso não era em si uma glória evidente; os olhos da fé</p><p>eram necessários para ‘ver’ a glória que era revelada pelo sinal. Desse modo, à medida</p><p>que o livro avança, a revelação da glória de Jesus está especialmente ligada à cruz de</p><p>Jesus e à exaltação que se segue {cf. Thiising) - e certamente somente aqueles que</p><p>25 Cf. Francis I. Andersen, ‘Yahweh, the Kind and Sensitive God’, in Peter T. O’Brien e</p><p>David Peterson (eds.), God Who Is Rich in Mercy (Fs. D. B. Knox; Anzea, 1986), pp.</p><p>41-88.</p><p>131 João 1.1-18</p><p>têm fé ‘vêem’ a glória de Deus na ‘Palavra que se tornou carne’ em eventos como</p><p>esses. Há um segredo na manifestação da glória na Palavra encarnada, um segredo</p><p>penetrado pelo evangelista e pelas testemunhas iniciais que podiam dizer: Vimos a</p><p>sua glória. Em uma passagem profunda, Bultmann (pp. 60ss.), corretamente, enfatiza</p><p>que a glória aparece em forma humana-, mas sua ênfase sobre o humano torna-se tão</p><p>extrema que surge a pergunta se ele pensa que há qualquer ser divino que se tornou</p><p>encarnado. No Prólogo de João, uma vez captada a identidade da Palavra, a encarnação</p><p>é vista como um estupendo ato de revelação, de auto-revelação divina; mas se a</p><p>identidade da Palavra não é captada, a encarnação em si não faz nenhum sentido.</p><p>C f de la Potterie, pp. 76-78.</p><p>15. Como o versículo 16 seguiria muito bem o versículo 14, alguns consideram</p><p>o versículo 15 como uma interpolação. Seria mais justo concluir que o versículo 15</p><p>é um planejado comentário parentético. A menção anterior do testemunho de</p><p>João Batista (w. 6-8) trata da vinda da luz preexistente ao mundo; esse versículo</p><p>abandona aquele tema e baseia a glória da Palavra encarnada em um indivíduo</p><p>concreto, um ‘ele’ concreto atestado por outro indivíduo. Assim ele prepara o</p><p>caminho para o relato detalhado do testemunho de João Batista, que vem logo</p><p>depois do Prólogo.</p><p>O tempo presente (João dá testemunho dele) seguido imediatamente pelo tempo</p><p>perfeito (lit. “Ele exclama”) se combinam para sugerir que o evangelista está</p><p>apresentando o testemunho de João Batista tanto, vividamente, como se ele estivesse</p><p>em progresso, quanto abrangentemente, resumindo-o como um conjunto. Antes</p><p>de o Batista ser capaz de apontar para um indivíduo específico (cf. v. 33), ele foi</p><p>capaz de anunciar em termos gerais o advento longamente esperado daquele que</p><p>vem: aquele que vem depois de mim é superior a mim, porque já existia antes de mim.</p><p>Em todos os quatro evangelhos, Jesus entrou no ministério público depois de</p><p>João. Em uma sociedade na qual idade e precedência garantia uma honra particu­</p><p>lar, isso pode ter sido tomado por muitos observadores superficiais como um</p><p>indício de que João Batista era maior que Jesus. Não é assim, pois João Batista</p><p>insiste: Jesus o superou (lit. ‘tornou-se antes de mim’), precisamente porque já</p><p>existia antes dele. A expressão peculiar significa ‘porque ele foi primeiro com respeito</p><p>a mim’. Isso inclui não só prioridade temporal (cf. BLH, “pois antes de eu nascer</p><p>ele já existia”) que destaca a preexistência enfatizada no começo do capítulo, mas</p><p>também a primazia absoluta. Essa foi a proclamação de João Batista antes de</p><p>saber de quem ele falava. Assim, após identificá-lo, ele podia dizer, Este é aquele de</p><p>quem eu falei etc. e, ao colocar esse sumário do testemunho de João Batista aqui, o</p><p>evangelista, por antecipação, está identificando Jesus com a ‘Palavra que se tornou</p><p>carne’: ‘Este é aquele de quem eu falei’ (grifo do autor).</p><p>16-17. O versículo 14 descreve a glória de Deus manifesta na Palavra encarnada</p><p>como cheia de graça e de verdade. Ao escolher esse termo, João diz que é dessa pleni­</p><p>tude que nós temos recebido graça sobre graça. Assim, ‘plenitude’ não tem nenhum</p><p>sentido técnico ou gnóstico.</p><p>O significado das últimas três palavras do versículo 16, charin anti charitos,</p><p>habitualmente traduzidas por “graça sobre graça”, volta-se principalmente para a</p><p>João 1.1-18 132</p><p>força da preposição anti. Em adição a um número de opções altamente improváveis,</p><p>as interpretações mais importantes são as seguintes:</p><p>(1) A palavra anti significa corresponde a’ (e.g. Bernard, 1. 29): a graça que o</p><p>cristão recebe em algum sentido corresponde à graça de Cristo. Essa teoria não trata</p><p>adequadamente a forma em que o versículo 17 é arranjado, como a explicação do</p><p>versículo 16. Além disso, anti nunca tem, claramente, o sentido de corresponde a’,</p><p>exceto em alguns compostos (e.g. antitypos, lit. contragolpe’, um golpe correspon­</p><p>dendo a outro, e daí ‘antítipo’).</p><p>(2) A palavra anti significa em retorno por’: uma graça é dada em retorno por</p><p>outra. Mas a idéia de graça sendo dada ‘em retorno por’ alguma outra coisa, um</p><p>tipo de qüiproquó, é estranho ao Novo Testamento, em geral, e a João, em par­</p><p>ticular. Tentativas de contornar esse ponto - como a de Agostinho, de que a graça</p><p>em que nós vivemos pela fé é dada em retorno por outra, a graça da imortalidade</p><p>(In Jojan. Tract, iii. 8) — são estranhas ao contexto e ignoram a conexão entre o</p><p>versículo 16 e o 17.</p><p>(3) De longe, a mais popular interpretação moderna sustenta que anti significa</p><p>‘sobre’ ou ‘em adição a’ (e.g. Schnackenburg, 1. 275-276; Bultmann, p. 78; Bruce,</p><p>p. 43; M. J. Harris em N ID N TT3. 1179-1180); daí a tradução ‘graça sobre graça’</p><p>(NVI; ARA; ARC) e “com bênçãos e mais bênçãos” (BLH). ‘À medida que os dias</p><p>vão e vêm, um novo suprimento toma o lugar da graça já concedida como, no mar,</p><p>uma onda segue outra onda’ (Rob, p. 574; cf. Zerwick § 95). Isso é teologicamente</p><p>verdadeiro, é claro, mas é muito duvidoso se é isso que João está dizendo. A preposição</p><p>normal para tal significado é epi, não anti. Há um paralelo que todos citam (Fílon,</p><p>de Post. Caini 145), mas, vendo mais de perto, ele não ajuda. Fílon fala de ‘graças’,</p><p>não ‘graça’; para ele não há um acúmulo de graças, uma ‘sobre’ a outra, mas uma</p><p>substituição de graças, um tipo substituindo o outro. O que ele diz, algo bastante</p><p>diferente de João, é que Deus é sábio ao dispensar suas ‘graças’ em pequenas doses,</p><p>de forma que as pessoas não recebem mais do que elas podem suportar; João está</p><p>enfatizando</p><p>a grande fartura da graça de Deus.26</p><p>(4) A teoria mais convincente toma anti em um de seus usos mais comuns (e,</p><p>de longe, o mais comum na LXX), como ‘em lugar de’: da plenitude de Cristo todos</p><p>nós temos recebido graça em lugar de graça.</p><p>Mas o que isso significa? Alguns sustentam que a graça recebida por intermédio</p><p>de Cristo nos dias de sua carne é substituída pela graça do Espírito Santo após a</p><p>ascensão de Cristo, mas essa teoria é inteiramente estranha ao contexto, como</p><p>também ignora o elo forte entre o versículo 16 e o 17. O último segue de perto a</p><p>‘graça em lugar de graça (v. 16) com um explicativo ‘pois’ ou ‘porque’: Pois a Lei</p><p>fo i dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por intermédio de Jesus</p><p>Cristo. Diante disso, parece que a graça e a verdade que vieram por meio de Jesus</p><p>são o que substitui a Lei; a própria Lei é entendida como uma manifestação ante­</p><p>rior da graça.</p><p>26 Sobre esse ponto e a discussão subseqüente devo muito a Ruth B. Edwards, JSN T 32,</p><p>1988, pp. 3-15. Cf. também de la Potterie, 1. 145-150).</p><p>133 João 1.1-18</p><p>As principais objeções contra essa interpretação da fluência do texto merecem</p><p>ser mencionadas:</p><p>(1) A mais comum é que ‘o tema da presente passagem é que a graça não veio</p><p>por Moisés’ (Barrett, p. 168), e, portanto, não podemos imaginar João falando da</p><p>graça do evangelho substituindo a graça da Lei. Certamente, em Paulo graça e Lei</p><p>são habitualmente contrastadas, mas essa não é a única forma em que seu</p><p>relacionamento pode ser concebido. O próprio Paulo pode chamar a Lei de “santa”</p><p>e “boa” (Rm 7.12,16). Além disso, essa objeção pressupõe que as duas metades do</p><p>versículo 17 são colocadas uma contra a outra (e.g. Gnilka, p. 16; Haenchen,</p><p>1.120; Pancaro, p. 541); mas nada há no texto grego que exija antítese. Como</p><p>alguns têm notado (Lindars, p. 98; J. Jeremias, TD N T4. 873), faz muito sentido</p><p>ver no original esta comparação: ‘Pois a Lei foi dada por intermédio de Moisés; a</p><p>graça e a verdade vieram por intermédio de Jesus Cristo’. A aliança da Lei, portanto,</p><p>é vista como um dom gracioso da parte de Deus, agora substituído por um dom</p><p>mais gracioso, “a graça e a verdade” incorporada em Jesus Cristo - aqui nomeado,</p><p>pela primeira vez, como o ser humano que é nada mais que a ‘Palavra que se</p><p>tornou carne’.</p><p>(2) Alguns sustentam que o quarto evangelho é profundamente oposto à Lei</p><p>e, possivelmente, não poderia tê-la visto como uma manifestação da graça de</p><p>Deus. Isso é largamente baseado em duas referências à “Lei de vocês” (8.17; 10.34),</p><p>entendidas como a forma de o evangelista distanciar-se da Lei. Mas essa é uma</p><p>leitura bastante equivocada da evidência. Nas duas passagens, a autoridade da Lei</p><p>é aceita, além de servir como a justificação de algo que o próprio Jesus estava</p><p>ensinando. Em ambas as passagens, as palavras são atribuídas a Jesus. No contexto,</p><p>as expressões cruciais significam algo assim: a própria Lei de vocês, ‘de vocês’ no</p><p>sentido daquilo que vocês reivindicam para vocês mesmos; de vocês apesar do</p><p>fato de que vocês se escondem por trás da autoridade dela e tentam usá-la contra</p><p>mim e meu ensino; de vocês mesmo que, quando examinada zelosamente, ela me</p><p>apóie. Isso dificilmente indica uma rejeição da Lei! Além disso, que Jesus é o</p><p>verdadeiro pão da vida (cap. 6) não significa que o maná inicial não fosse um dom</p><p>gracioso; o fato de que Jesus pode ser comparado à serpente no deserto (3.14)</p><p>pressupõe que o original era em si mesmo uma boa manifestação de graça. Para</p><p>João, a Lei e os profetas escreveram sobre Jesus (1.45); os judeus são repreendidos</p><p>por não crer no que Moisés escreveu, porque se tivessem crido em Moisés teriam</p><p>crido em Cristo (4.45-54; 7.19,22,23). O comentário exoneratório de Barrett (p.</p><p>168), ‘nem a graça de Deus está disponível em dois graus’, mostra total</p><p>incompreensão; até Paulo pode falar da graça de Deus sendo aperfeiçoada (2Co</p><p>12.9).</p><p>(3) Inversamente, outros argumentam que, para João, a Lei, em algum sentido,</p><p>continua em vigor: as Escrituras não podem ser anuladas (10.34), e, portanto, é</p><p>irracional pensar que João, em 1.16,17, pode ver a graça do evangelho, a graça</p><p>que veio em Jesus Cristo, como substituta da Lei. Mas, novamente, a cuidadosa</p><p>atenção à forma pela qual o quarto evangelho trata o Antigo Testamento diminui</p><p>a dificuldade. Nas passagens já mencionadas, e em um grande número de outras,</p><p>João 1.1-18 134</p><p>entende-se que as Escrituras do Antigo Testamento apontam para Jesus, o antecipam</p><p>e, assim, profetizam sobre ele. Naquele sentido, ele as cumpre. Se mesmo a aliança</p><p>da Lei é profética’ nesse sentido (cf. Mt 11.13), então quando aquele para quem ela</p><p>aponta chega, ela é, em algum sentido, deslocada. Ela pode continuar em vigor</p><p>como um contínuo indicador daquilo que ela predisse, mas a autoridade válida</p><p>encontra-se naquilo que ela anunciou primariamente e que agora chegou. A Lei,</p><p>isto é, a lei-aliança, foi dada pela graça e antecipou a Palavra encarnada, Jesus Cristo;</p><p>agora que ele veio, essa lei-aliança profética está necessariamente ultrapassada por</p><p>quem ela ‘profetizou que viria. O pensamento não é diferente de Mateus 5.17-20</p><p>(cf. Carson, Matthew, pp. 140-147). E esse motivo profecia/cumprimento que explica</p><p>por que as duas manifestações de graça não são precisamente idênticas. A fluência</p><p>da passagem e o tema do livro, como um todo, magnificam a nova ‘graça’ que veio</p><p>em Cristo Jesus. Essa graça é maior que a graça da Lei cuja função, na visão de João,</p><p>era primariamente antecipar a vinda da Palavra. Essa interpretação é reforçada se</p><p>aceitarmos o paralelismo entre versículo 17 e o 18 (sugerido por Ibuki, p. 205): o</p><p>versículo 17b é para o versículo 17a o que versículo 18b é para versículo 18a.</p><p>‘No judaísmo, a Lei tornou-se um fim em si mesma, algo que podia ser</p><p>separado de Moisés, por meio de quem ela foi dada. A graça e a verdade que</p><p>vieram por intermédio de Jesus Cristo nunca podem ser dissociadas dele’ (Tasker,</p><p>pp. 44-45). Esse ponto encontra-se por trás da escolha dos verbos: a lei ‘foi dada’</p><p>(edothe), a graça e a verdade ‘vieram’ (egeneto), ‘como se, segundo o ordenado e</p><p>justo curso do plano divino, esse fosse o resultado natural de tudo o que havia</p><p>acontecido antes’ (cf Westcott, 1. 127; Hanson, p. 7). Isso não pode significar</p><p>que não há contraste entre a lei e Jesus Cristo: esse contraste é explícito, na superfície</p><p>do texto.27 Mas a Lei que foi dada por intermédio de Moisés, e a graça e a verdade</p><p>que vieram por intermédio de Jesus Cristo (v. 17), igualmente surgiram da pleni­</p><p>tude da Palavra (v. 16), seja em sua unicidade preexistente com o Pai, seja em seu</p><p>status como a ‘Palavra que se tornou carne’. E dessa ‘plenitude’ que nós temos</p><p>recebido ‘uma graça substituindo a outra’. E nesse sentido que o versículo 16 é</p><p>uma explicação do versículo 14 (ele começa com hoti, ‘pois’ ou ‘porque’): “vimos</p><p>a sua glória”, escreve João, por causa da plenitude de sua graça e de sua verdade,</p><p>nós recebemos a graça que substitui a graça anterior: a graça da encarnação, da</p><p>‘Palavra que se tornou carne’, da glória do Filho ‘tabernaculando’ conosco para</p><p>substituir, agora, a graça da aliança anterior, mas, essencialmente, da revelação</p><p>promissiva. O ‘nós’ que recebe essa nova graça pode ter começado com João e as</p><p>primeiras testemunhas oculares (cf. 1.14), mas agora inclui todos que compartilham</p><p>da mesma fé (cf. 20.29).</p><p>18. Ninguém jam ais viu a Deus, João escreve, como se para lembrar seus</p><p>leitores não só de um lugar comum do judaísmo, mas também do fato de que no</p><p>episódio no qual Moisés viu a glória do Senhor (Êx 33-34), ao qual uma alusão</p><p>27 É corretamente enfatizado, mas de forma exagerada em Klaus Haacker, Die Stiftung des</p><p>Heils: Untersuchung zur Struktur der johanneischen Theologie (Stuttgart: Calwer, 1972).</p><p>135 João 1.1-18</p><p>acabava de ser feita (1.14), ele não teve permissão para ver a Deus (Êx 33.20).</p><p>“Talvez, devessemos dizer que Moisés, menos de forma antropomórfica, mas de</p><p>modo metafórico, viu, por assim dizer, o reflexo do esplendor</p><p>da glória divina”</p><p>(Bruce, p. 44). Nesse sentido menor, Deus fala com Moisés ‘face a face’, e Moisés</p><p>“vê a forma do S e n h o r ” (Nm 12.8). A visão que Isaías teve do Senhor assentado</p><p>em seu trono foi tão vívida e aterrorizante, tão próxima da ‘coisa real’, mesmo que</p><p>tenha sido apenas só a aba28 da veste do Senhor que enchia o templo, que ele</p><p>chegou a clamar: “Ai de mim! Estou perdido! Pois sou um homem de lábios</p><p>impuros [...]; os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos!” (Is 6.5). Tal</p><p>linguagem é tão chocante que os tradutores do judaísmo tardio a suavizaram. O</p><p>fato permanece que a pressuposição consistente do Antigo Testamento é que Deus</p><p>não pode ser visto, ou, mais precisamente, se um ser humano pecador o visse, este</p><p>morreria (Êx 33.20; Dt 4.12; SI 97.2). Aparentes exceções são sempre, de alguma</p><p>forma, possíveis.</p><p>Mas, João acrescenta o Unigénito e amado (o termo é monogenês: (veja notas</p><p>sobre 1.14) [o próprio] Deus o tornou conhecido. Esse provavelmente é o texto</p><p>correto (veja nota adicional). O que ele significa é que o Filho amado, a Palavra</p><p>encarnada (1.14), o próprio Deus, enquanto estando ao lado do Pai - assim como</p><p>no versículo 1 a Palavra era simultaneamente Deus e estava com Deus — quebrou</p><p>a barreira que tornava impossível para seres humanos ver a Deus, e o tornou</p><p>conhecido. Isso prepara o caminho para 6.46 e 14.9: “Quem me vê, vê aquele que</p><p>me enviou”.</p><p>As palavras traduzidas por que está junto do Pai na NVI poderiam mais</p><p>literalmente ser traduzidas por ‘que está no seio do Pai’. Uma expressão semelhante</p><p>é encontrada em outro lugar: Lázaro está no seio de Abraão (Lc 16.22,23), e João</p><p>descansa no seio de Jesus na última ceia (13.23). Ela, aparentemente, transmite</p><p>uma aura de intimidade, de amor e de conhecimento mútuos. “Ninguém viu o</p><p>Pai”, João nos disse, mas ele ainda acrescentará, “a não ser aquele que vem de</p><p>Deus” (6.46), aquele que está no seio do Pai. É essa intimidade que torna possível</p><p>para Jesus conhecer e falar sobre coisas celestiais (3.12,13; cf. Mt 11.27). Essa</p><p>‘Palavra que se tornou carne’, o próprio Deus, é, não obstante, diferenciável de</p><p>Deus, e como tal é íntima de Deus; como homem, a auto-expressão encarnada de</p><p>Deus tomou Deus conhecido. Ben Sirach podia perguntar quem poderia descrever</p><p>(ekdiêgêsetai) Deus (Eclo 43.31); João declara que a Palavra encarnada o tornou</p><p>conhecido (exêgêsato). ‘Exegese’ deriva desse termo grego: podemos quase dizer</p><p>que Jesus é a exegese de Deus. Em um outro trecho do Novo Testamento, o verbo</p><p>significa ‘contar uma história’ ou ‘narrar’ (Lc 24.35; At 10.8; 15.12,14; 21.19).</p><p>28 A palavra hebraica sul (Is. 6.1) deve ser traduzida por ‘aba’, não ‘cauda’. A palavra pode</p><p>significar as duas coisas, mas não parece existir evidência de que monarcas do oriente</p><p>próximo desse período usassem caudas.</p><p>João 1.1-18 136</p><p>Nesse sentido, podemos dizer que Jesus é a narração de Deus.29 “Da mesma forma</p><p>que Jesus dá vida e é vida, ele ressuscita os mortos e é a ressurreição, dá pão e é o</p><p>pão, fala a verdade e é a verdade, assim, quando ele fala a palavra, ele é a Palavra”</p><p>(C. H. Dodd em tradição oral: cf Beasley-Murray, p. 10).</p><p>A ênfase do Prólogo, portanto, é sobre a revelação da Palavra como a revelação</p><p>definitiva do próprio Deus. Esse tema é dramaticamente reforçado pelos notáveis</p><p>paralelos entre o versículo 1 e o 18, constituindo um inclusio, um tipo de enve­</p><p>lope literário que sutilmente envolve tudo de 1.1-18 em sua esfera. Assim no seio</p><p>do Pai’ é paralelo a com Deus’; o Unigénito, [o próprio] Deus’, é paralelo a era</p><p>Deus’; e dizer que essa pessoa única e amada tornou Deus conhecido é dizer que</p><p>ela é a Palavra’, a auto-expressão de Deus.</p><p>O Prólogo antecipa muitos dos temas e dos termos do restante do livro. Se</p><p>‘Palavra’ em si mesma não reaparece nesse sentido cristológico (embora (f. Ap</p><p>19.13; talvez ljo 1.1) é, provavelmente, porque o evangelista conscientemente</p><p>procurou um termo que claramente resumisse suas principais ênfases cristológicas.</p><p>Um termo que reaparece por todo o evangelho pode bem ter sido tomado como</p><p>meramente um título entre muitos, e não como um resumo do todo. Para usar a</p><p>linguagem de Paulo, Jesus é a “imagem [visível] do Deus invisível” (Cl 1.15).</p><p>E importante notar que os paralelos conceituais mais próximos no Novo Tes­</p><p>tamento ao Prólogo são provavelmente os assim chamados ‘hinos cristológicos’</p><p>(e.g. Fp 2.5-11; Cl 1.15-20), material quase universalmente datado como ante­</p><p>rior, e o qual certamente foi amplamente difundido. Isso sugere que o Prólogo de</p><p>João é menos inovador que alguns pensam.30 A forma da apresentação é nova; a</p><p>cristologia subjacente não é. E isso por sua vez sustenta que João e seu círculo não</p><p>são ‘sectários’, fundamentalmente sem contato com o restante da igreja (assim</p><p>Meeks). As conexões entre o Prólogo e as outras partes do Novo Testamento são</p><p>intuitivamente retomadas na hinologia cristã, como nesse hino de louvor composto</p><p>por Josiah Condor (1789-1855):</p><p>29 Assim J. P. Louw, Neot 2, 1968, pp. 32-40. A sugestão de M.-E. Boismard (RB 59,</p><p>1952, pp. 23-39) de que o verbo significa ‘assumir a direção’ e a preposição eis significa</p><p>‘para’ (ele assumiu a direção para dentro do seio do Pai’) depende de um grego altamente</p><p>improvável, além de desconsiderar o fato de que nesse período a preposição eis estava</p><p>começando a passar os limites de en (daí ‘no seio do Pai’ em lugar de para).</p><p>30 Peter Hofrichter, Im Anfang war der ‘Johannesprolog’ (Verlag Friedrich Pustet, 1986),</p><p>em um notável tour de force, sustenta que o Prólogo ‘original’, que ele ‘recupera’ com a</p><p>crítica de fontes, é a fonte conceituai por trás de toda a cristologia do Novo Testa­</p><p>mento. Sua apresentação não é convincente (cf. a empolada revisão de Raymond E.</p><p>Brown, CBQ 49, 1987, pp. 668-669); mas que ele chegue a afirmar qualquer coisa</p><p>mostra que o Prólogo de João não está fundamentalmente em descompasso com pelo</p><p>menos algumas outras ênfases no Novo Testamento.</p><p>137 João 1.1-18</p><p>Tu és a Palavra eterna,</p><p>O Filho Unigénito do Pai;</p><p>O Deus que fo i visto e ouvido,</p><p>E o Amado dos céus.</p><p>Digno, Ó Cordeiro de Deus, és tu</p><p>Que todo joelho a Ti se curve.</p><p>Em ti a glória do Pai</p><p>brilha e é mais perfeitamente expressa;</p><p>Possuí a plena divindade,</p><p>Eternamente divino:</p><p>Digno, Ó Cordeiro de Deus, és tu</p><p>Que todo joelho a Ti se curve.</p><p>A verdadeira imagem do infinito,</p><p>Cuja essência é oculta;</p><p>Brilho de luz com existência própria;</p><p>O coração de Deus revelado:</p><p>Digno, Ó Cordeiro de Deus, és tu</p><p>Que todo joelho a Ti se curve.</p><p>Mas os elevados mistérios de teu nome</p><p>Transcendem a compreensão de um anjo;</p><p>Somente o Pai — declaração gloriosa! —</p><p>Pode compreender o Filho:</p><p>Digno, O Cordeiro de Deus, és tu</p><p>Que todo joelho a Ti se curve.</p><p>Em todo o universo de bem-aventuranças,</p><p>O centro e sol são o Senhor;</p><p>Tu és o tema eterno de louvor,</p><p>Ao Amado do céus:</p><p>Digno, Ó Cordeiro de Deus, és tu</p><p>Que todo joelho a Ti se curve.</p><p>Como o Filho, a ‘Palavra que se tornou carne’, ‘narrou’ Deus ou ‘fez a exegese’</p><p>dele para o homem, narrativa essa que João agora passa a nos contar.</p><p>Notas adicionais</p><p>1. Dunn, Making [Formação], p. 241, cita Fílon, Som. I. 227-230, que, ao</p><p>discutir o relacionamento do logos com Deus, também faz seu argumento depender</p><p>da presença ou ausência de um artigo: ‘Aquele que é verdadeiramente Deus é Um,</p><p>mas aqueles, que impropriamente são assim chamados, são mais que um. Da mesma</p><p>forma, a santa palavra na presente instância indica aquele que é verdadeiramente</p><p>João 1.1-18 138</p><p>Deus por meio do artigo: “Eu sou o Deus”, enquanto omite o artigo quando</p><p>menciona aquele que é impropriamente assim chamado, dizendo: “Quem apareceu</p><p>a ti no lugar” não “do Deus”, mas simplesmente “de Deus” [Gn 31.13 LXX - en</p><p>tropô theou], Aqui ela dá o título de “Deus” a sua principal Palavra...’. Dunn não</p><p>afirma que João empresta de Filon, mas que Fílon ‘demonstra que uma distinção</p><p>entre ho theos e theos, como nós achamos em João 1.1 b-c, seria deliberada pelo</p><p>autor e significativa para o leitor de grego’. Mas o paralelo</p><p>in Erzählungs- und Redestoff (Zürich: Zwinglie, 1968).</p><p>John Wilkinson, The ferusalem Jesus Knew: An Archaeological Guide</p><p>to the Gospels (Thames and Hudson, 1978).</p><p>Westminster Theological Journal</p><p>Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament</p><p>Maximilian Zerwick, Biblical Greek Illustrated by Examples, trad.</p><p>Joseph Smith (Roma: Pontifical Biblical Institute, 1963).</p><p>Zeitschrift fur die neutestamentliche Wissenschaft</p><p>Zeitschrift fur wissenschaftliche Theologie</p><p>Introdução</p><p>I. Algumas características do evangelho de João</p><p>Talvez o evangelho de João, dentre os quatro evangelhos, seja o mais usado</p><p>pelos cristãos de todos os tempos, e com propósitos variados. Estudantes</p><p>universitários distribuem cópias gratuitas a seus amigos na esperança de que</p><p>conheçam o Salvador. Cristãos idosos, em seus leitos de morte, pedem que lhes</p><p>sejam lidos trechos desse evangelho. Acadêmicos escrevem dissertações de alto</p><p>nível sobre o relacionamento de João e algum antigo corpus de literatura. Crianças</p><p>memorizam capítulos inteiros e cantam canções baseadas em suas verdades.</p><p>Incontáveis sermões têm sua linha-mestra fundamentada nesse livro ou em alguma</p><p>parte dele. Ele esteve, praticamente, no centro da controvérsia cristológica do</p><p>século IV e, nos últimos 150 anos, tem estado no cerne do debate sobre a relação</p><p>entre História e Teologia. Até pouco tempo, o versículo mais conhecido da Bíblia</p><p>era João 3.16 (provavelmente substituído, hoje em dia, por Mt 7.1!): até uma</p><p>criança pequena poderia recitá-lo. Nesse evangelho, o amor de Deus é</p><p>dramaticamente mediado por Jesus Cristo - tanto que se alega que Karl Barth</p><p>comentou que a mais profunda verdade que já se ouviu foi “Jesus me ama, eu sei</p><p>/ Pois a Bíblia assim o diz”.</p><p>Mesmo assim, o leitor atento não precisará de muito esforço para perceber</p><p>diferenças notáveis entre o quarto evangelho (como também é conhecido o</p><p>evangelho de João) e os sinóticos.</p><p>Primeiro, o evangelho de João não inclui grande parte do material característico</p><p>dos sinóticos. Não há parábolas narrativas em João, tampouco relato da transfigu­</p><p>ração, nenhum registro da instituição da ceia do Senhor, nenhuma palavra sobre</p><p>Jesus expulsando demônios, nenhuma menção às tentações de Jesus. Há menos de­</p><p>clarações breves e vigorosas, e mais discursos, mas alguns discursos que se encontram</p><p>nos sinóticos (e.g. o discurso no monte das Oliveiras, Mc 13 par.) não aparecem em</p><p>João. Embora, indubitavelmente, pressuponha-se o batismo de Jesus e o chamado</p><p>dos Doze, na verdade não são descritos. Mesmo temas centrais dos sinóticos quase</p><p>desaparecem no evangelho de João: em particular o Reino de Deus ou o Reino dos</p><p>céus, que é parte de uma pregação de Jesus nos evangelhos sinóticos — o tema</p><p>central de suas parábolas narrativas é raramente mencionado como tal (cf. notas</p><p>sobre 3.3,5; 18.36).</p><p>In tro d u ç ã o 24</p><p>Segundo, João traz grande quantidade de material que os sinoticistas sequer</p><p>mencionam. Todo o material que está em João 2— 4, incluindo-se, por exemplo,</p><p>a miraculosa transformação de água em vinho, seu diálogo com Nicodemos e seu</p><p>ministério em Samaria não tem contraparte nos sinóticos. Ademais, a ressurreição</p><p>de Lázaro, as freqüentes visitas de Jesus a Jerusalém, e seus extensos diálogos ou</p><p>discursos no templo e em várias sinagogas, sem mencionar muito de suas instruções</p><p>particulares aos discípulos, são exclusividade do quarto evangelho.</p><p>Sem dúvida, uma boa explicação para isso é o fato de João ter relatado</p><p>principalmente o ministério de Jesus no sul, na Judéia e em Samaria, em vez de na</p><p>Galiléia; mas as diferenças entre João e os sinóticos não podem ser todas atribuídas</p><p>ao foco geográfico. Não menos surpreendente é que os temas predominantes em</p><p>João estejam ausentes nos sinóticos. Apenas em João Jesus é explicitamente</p><p>identificado como Deus (1.1,18; 20.28). Aqui, também, Jesus faz uma série de</p><p>afirmações importantes do tipo: “Eu sou”: Eu sou a luz do mundo, a ressurreição</p><p>e a vida, o bom pastor, a videira, o pão vivo, a água viva, o caminho, a verdade e</p><p>a vida. E elas culminam em uma série de declarações absolutas do tipo: “Eu sou”,</p><p>que recendem a Deus (cf. notas sobre 6.20; 8.24,28,58). O quarto evangelho</p><p>contém várias oposições, ou dualismos, se assim preferir, mais fortes que nos</p><p>sinóticos: vida e morte, de cima e de baixo, luz e trevas, verdade e mentira, visão</p><p>e cegueira, e outras mais.</p><p>Terceiro, esses temas tornam-se ainda mais problemáticos para alguns leitores</p><p>quando, pelo menos formalmente, eles contradizem o tratamento de temas</p><p>similares nos evangelhos sinóticos. Aqui, por exemplo, João Batista nega que seja</p><p>Elias (1.21), embora, nos sinóticos, Jesus insista que ele o é (Mc 9.11-13 par.).</p><p>Que dizer da dádiva do Espírito Santo (Jo 20.22) e sua relação com Atos 2? Acima</p><p>de tudo, como entender o fato de que nos sinóticos os discípulos parecem crescer</p><p>em seu entendimento de quem é Jesus, no início conhecem muito pouco, mas</p><p>alcançam vários pontos altos ao longo do caminho, como em Cesaréia de Filipe</p><p>(Mc 8.27-30 par.), enquanto que em João, já no primeiro capítulo, vários</p><p>indivíduos confessam Jesus não como rabi, mas como Messias, o Filho de Deus,</p><p>Filho do homem, Cordeiro de Deus e Rei de Israel?</p><p>Quarto, há várias dificuldades cronológicas que se deve apontar. Além das</p><p>questões óbvias, como a relação entre purificação do templo, no início (Jo 2.14-</p><p>22) e no final (Mc 11.15-17 par) do ministério público de Jesus, ou a duração</p><p>desse ministério, conforme atestado pelo número de Páscoas a que se refere (João</p><p>relata pelo menos três, e os sinóticos apenas uma); há uma ou duas questões de</p><p>grande dificuldade decorrentes, em parte, do conhecimento do pano de fundo</p><p>das circunstâncias e dos rituais. Em particular, a cronologia da Paixão no quarto</p><p>evangelho, quando comparada à dos sinóticos, parece tão idiossincrática que deu</p><p>origem a teorias complexas sobre calendários independentes, ou sobre argumentos</p><p>teológicos de que João teria deliberadamente alterado a cronologia. Jesus e seus</p><p>discípulos cearam durante a Páscoa, e ele foi preso na noite da Páscoa e crucificado</p><p>no dia seguinte, ou ele foi crucificado ao mesmo tempo em que o Cordeiro pascal</p><p>estava sendo sacrificado? E quanto ao fato de os sinóticos mostrarem a crucificação</p><p>25 In tro d u ç ã o</p><p>de Jesus às “nove horas da manhã” (a hora terceira), enquanto que em João a</p><p>decisão final de Pilatos se dá “por volta do meio-dia” (à hora sexta)?(ver p. 23)</p><p>Quinto, estudantes de grego, provavelmente, de modo bem mais imediato</p><p>que aqueles que lêem apenas as traduções, observam que o estilo da escrita é bem</p><p>diferente da dos sinóticos. O vocabulário, por exemplo, é mais enxuto, há uso</p><p>freqüente de parataxes (orações coordenadas em vez de subordinadas, preferidas</p><p>pelo grego elegante), emprego peculiar de pronomes [e. g ekeinos, aquele’, em</p><p>João, não é empregado com mais freqüência que ‘ele’) e vários exemplos de assíndeto</p><p>(simplesmente enunciando orações umas após as outras, sem conectá-las com</p><p>particípios ou conjunções, como o grego prefere). E mais importante ainda, há</p><p>pouquíssima diferença entre as palavras atribuídas a Jesus e os comentários do</p><p>evangelista. João reescreveu todos os comentários.</p><p>Finalmente, alega-se com freqüência vários anacronismos históricos ou outras</p><p>discrepâncias. “Levantem-se, vamo-nos daqui!”, diz Jesus em 14.31; mas precisa-</p><p>se de dois capítulos de material até que fique a movimentação de alguém totalmente</p><p>clara. A maior parte dos estudiosos sustenta que João 21 é uma espécie de apêndice</p><p>acrescentado à conclusão original (20.30,31). Em pelo menos uma parte, não fica</p><p>muito claro em que momento as palavras de Jesus terminam e as de João começam</p><p>(3.10-21). Principalmente, a ameaça de excomunhão da sinagoga (9.22) é</p><p>considerada anacrônica por muitos, visto que (como se argumenta) tal disciplina</p><p>só foi instituída no final da década de 80 do século I.</p><p>A maior parte das características do evangelho de João são discutidas no</p><p>Comentário, portanto, não há necessidade</p><p>entre as observações</p><p>autoconscientes de Fílon sobre o artigo e a sintaxe de João não é estreito. O logos</p><p>de Fílon, impessoal como é, nunca realmente ameaça o Deus pessoal/transcendente</p><p>do monoteísmo judaico de forma nenhuma, e a distinção sintática que ele traça é</p><p>um argumento de expediência, freqüentemente contradito pelas exigências da própria</p><p>gramática grega. Em contraste, a omissão do artigo por João não é parte de um</p><p>elaborado argumento, sintaticamente mal concebido, para provar um ponto, mas o</p><p>uso grego comum, nem mesmo demonstravelmente autoconsciente. Sintaticamente,</p><p>a questão não diz respeito simplesmente à presença ou ausência de artigo, mas à</p><p>presença ou ausência de artigo com substantivos predicativos nominativos definidos</p><p>precedendo uma cópula finita31 - o que torna irrelevante o alegado paralelo em</p><p>Fílon.</p><p>3-4. É muito difícil decidir se as duas últimas palavras do texto grego do versículo</p><p>3 devem ser lidos com o que precede (NVI: sem ele, nada do que existe teria sido</p><p>feito’; semelhantemente ARC) ou com o que está no versículo seguinte (BLH: “Por</p><p>meio da Palavra, Deus fez todas as coisas, e nada do que existe foi feito sem ela”). K.</p><p>Aland32 argumenta veementemente pela segunda pontuação, que certamente preva­</p><p>leceu na igreja primitiva, entre ortodoxos e heterodoxos igualmente. Considerando-</p><p>se todos os fatos, porém, os argumentos de Schnackenburg (1. 239-240) em favor</p><p>da leitura das palavras com o resto do versículo 3 parecem persuasivos. Em par­</p><p>ticular, João regularmente começa suas sentenças com a preposição ‘em’, que é</p><p>como começa o versículo 4. Além disso, é muito difícil compreender exatamente</p><p>o que ‘Aquilo que veio a ser era vida nele’ (uma tradução bastante literal da segunda</p><p>opção) poderia significar; e a objeção de que a leitura da NVI é tautológica (‘nada</p><p>do que existe teria sido feito’) não significa muito para aqueles que notaram quão</p><p>freqüentemente João recorre à repetição (e.g . w. 1,2). De qualquer forma, como</p><p>as notas principais nesse versículo sugerem (acima), há outra forma de traduzir o</p><p>texto, mesmo com essa pontuação, a qual evita essa acusação.</p><p>5. O verbo katalambanô (do qual deriva katalaben) significa ‘pegar’, e daí,</p><p>por extensão, ‘conquistar, dominar’ ou, alternativamente, ‘captar com a mente’ e,</p><p>portanto, ‘entender’. João pode estar jogando com os dois significados, como</p><p>31 Cf. E. C. Colwell, JBL 52, 1933, pp. 12ss.; L. E. McGaughy, Toward a Descriptive</p><p>Analysis o f E IN A I as Linking Verb in New Testament Greek (SBLDS 6; Society of Bibli­</p><p>cal Literature, 1972).</p><p>32 Z N W 5 9 , 1968, pp. 174-209.</p><p>139 João 1.1-18</p><p>outros autores faziam na época (cf. Barrett, p. 158). Entretanto, na única outra</p><p>passagem no quarto evangelho em que o verbo é usado com a metáfora luz/trevas,</p><p>o significado conquistar, dominar’ é exigido pelo contexto (traduzido por ‘surpre­</p><p>endam’ na NVI, Jo 12.35), que pode ter algum apoio aqui. Que o tempo seja</p><p>aoristo é de pouco significado em si, já que o tempo meramente estabelece que o</p><p>escritor olha para a ação de forma holística, não que a ação ocorreu em um tempo</p><p>específico, mais de uma vez, instantaneamente ou coisas assim. A sugestão de BAGD</p><p>preserva a ambigüidade: as trevas não dominaram a luz.</p><p>6. O fato de que se diz que ambos, João Batista e Jesus, foram enviados por</p><p>Deus levou alguns a negar que a expressão, quando aplicada a Jesus, seja qualquer</p><p>indicação dessa preexistência, desde que tal preexistência dificilmente poderia ser</p><p>um predicativo de João. Mas, à parte do fato que a forma passiva do verbo é usada</p><p>para João Batista (1.6; 3.28), enquanto que a ativa é reservada para Jesus (Morris,</p><p>p. 89), é o contexto mais amplo que é o determinante. A preexistência de Jesus já</p><p>foi estabelecida pelo Prólogo em outras bases, de forma que quando nos é dito que</p><p>o Pai enviou seu Filho ao mundo (3.17), nós estamos pré-condicionados pelo</p><p>texto a pensar em preexistência e encarnação.</p><p>10. O verbo traduzido por ‘reconhecer’ pela NVI é ginôskô-, o outro verbo</p><p>comum que trata de ‘conhecimento’ é oida. ‘Conhecimento’ é um tema importante</p><p>no quarto evangelho, embora o próprio substantivo não seja encontrado em</p><p>nenhum lugar no quarto evangelho nem nas cartas joaninas. De forma distinta</p><p>do grego antigo, os dois verbos parecem ser usados como sinônimos (cf. 7.27',</p><p>8.55; 13.7; 21.17). Embora ambos os termos possam ser usados a respeito de</p><p>conhecimento de fatos (7.49; 9.20; 11.57; 18.2), em João eles são mais</p><p>caracteristicamente usados a respeito do conhecimento humano das pessoas divinas</p><p>e do relacionamento entre aquelas pessoas. Cf. Barrett, pp. 162-163. Sobre o</p><p>relacionamento entre conhecimento e fé, cf. Painter, pp. 86-100.</p><p>13. Um número surpreendente de estudiosos (principalmente católicos</p><p>romanos), junto com a BJ, segue a Vetus Latina e alguns manuscritos siríacos, que</p><p>lêem um verbo singular, ‘nasceu’, em lugar de plural, ‘que nasceram’ (e.g. Vellanickal,</p><p>pp. 112-132; esp. J. Galot, Etre né de Dieu [Nascido de Deus] Roma: Pontifical</p><p>Biblical Institute, 1969). O texto, nesse caso, apoiaria a concepção e o nascimento</p><p>virginais de Jesus. A fluência seria, portanto: ‘... para aqueles que crêem no nome</p><p>daquele que nasceu, não de sangue...’. Nenhum manuscrito grego apóia essa leitura.</p><p>Não menos importante, pode-se imaginar como os copistas se movem do plural</p><p>para o singular por adoção de um argumento afortiori: Se os cristãos são nascidos</p><p>de Deus, quanto mais verdadeiro isso é em relação a Jesus? E difícil imaginar um</p><p>motivo para tão profunda corrupção textual em outra direção. C f Metzger, p.</p><p>197.</p><p>18. A série de variantes textuais é bastante complicada, mas provavelmente a</p><p>leitura correta é monogenês theos, ‘o Unigénito e amado, [o próprio] Deus’ - tomando</p><p>‘Deus’ como aposto. Nenhuma outra passagem coloca essas palavras juntas como</p><p>essa, o que provavelmente explica a mudança feita por muitos copistas para monogenês</p><p>João 1.1-18 140</p><p>huios, o Filho Unigénito e amado (ou, na linguagem mais tradicional, ‘o Filho</p><p>Unigénito’). Essa é uma expressão tão comum em João que é difícil imaginar qualquer</p><p>copista mudando ‘Filho’ para ‘Deus’. De forma semelhante, é possível explicar o</p><p>fracamente atestado monogenês, sem acrescentar nem ‘Filho’ nem ‘Deus’, como uma</p><p>tentativa de melhorar a leitura difícil com ‘Deus’, ao simplesmente eliminar o último;</p><p>é difícil imaginar por que qualquer copista teria acrescentado ‘Deus’ a monogenês se</p><p>essa forma curta tivesse sido original. Cf. Metzger, p. 198.</p><p>I. Auto-revelação de Jesus em</p><p>palavras e atos (1.19-10.42)</p><p>A . P r e l ú d io d o m in is t é r io p ú b l ic o d e J e s u s ( 1 . 1 9 - 5 1 )</p><p>1. A relação de João Batista com Jesus (1.19-28)</p><p>19. Como nos evangelhos sinóticos, o mesmo acontece aqui: o ministério de</p><p>João Batista é apresentado antes de o evangelista detalhar as formas em que Jesus</p><p>‘narrou Deus. O Prólogo nos contou que o Batista “veio como testemunha, para</p><p>testificar acerca da luz” (1.7); agora o evangelista passa rapidamente ao testemunho</p><p>de João. O testemunho que o evangelista focaliza é o testemunho que João Batista</p><p>deu às delegações oficiais enviadas de Jerusalém. Os outros escritores dos evangelhos</p><p>não fazem menção a esse teste oficial, mas nada há de intrinsecamente improvável</p><p>no relato. Admitida a ampla influência que João Batista exercia (cf. Mt 3.5, 7),</p><p>teria sido irresponsável da parte dos líderes se eles tivessem deixado de investigá-</p><p>lo.</p><p>Esse é o primeiro uso da expressão ‘os judeus’. Ela é freqüente no quarto</p><p>evangelho e, como ela geralmente ocorre para designar aqueles que se opunham a</p><p>Jesus, há muita discussão sobre essa expressão. Alguns vêem na expressão evidência</p><p>de anti-semitismo cristão; outros pensam que ela se refere principalmente aos</p><p>líderes judeus, não ao povo em geral; alguns pensam que ela reflete a geografia</p><p>(um galileu podia muito bem se referir a seus companheiros israelitas da Judéia</p><p>como ‘judeus’); ainda outros pensam que a diversidade de uso em João revela</p><p>diferentes fontes</p><p>de que nos detenhamos nelas aqui.</p><p>Contudo, fica claro que a independência de João é um dos motivos pelo qual esse</p><p>evangelho recebeu tratamentos tão diversos ao longo da história da igreja.</p><p>II. Como se compreende o evangelho de João:</p><p>Comentários selecionados</p><p>1. A igreja primitiva</p><p>Não deve ter passado muito tempo desde a publicação do quarto evangelho</p><p>até que ele fosse reunido aos demais, formando o evangelho quádruplo. Em outras</p><p>palavras, a maior parte do evangelho de João circulava, no início, como parte de</p><p>um livro. Esse livro não era um rolo de pergaminho como, indubitavelmente, os</p><p>primeiros manuscritos o foram, mas um ‘códice’, um livro com folhas separadas,</p><p>como os da atualidade, e costurado ou colado em um dos lados. Era conhecido,</p><p>simplesmente, como O evangelho, e continha os quatro evangelhos canônicos.</p><p>Depois, esse ‘evangelho’ foi dividido em partes, ‘Segundo Mateus’, ‘Segundo</p><p>Marcos’, ‘Segundo Lucas’ e ‘Segundo João’.</p><p>Acredita-se que essa atribuição de autoria tradicional não foi acrescentada</p><p>aos livros antes de 125 d.C. Mas, recentemente, Martin Hengel montou uma</p><p>defesa plausível da perspectiva que sustenta que esses ‘títulos’ foram acrescentados</p><p>individualmente a cada um de seus livros desde o início, isto é, os quatro evangelhos</p><p>In tro d u ç ã o 26</p><p>canônicos não são mais anônimos que qualquer outro livro com página de rosto</p><p>que inclui o nome do autor.1 Os argumentos de Hengel ainda não receberam a</p><p>atenção que merecem. Embora aqui eu não sustente que são convincentes, eles</p><p>devem ser mantidos em mente por aqueles que rechaçam a evidência de Papias,</p><p>que será discutida em breve.</p><p>Provavelmente, o primeiro fragmento do Novo Testamento que chegou até</p><p>nós é de João, Papiro 52, datado de 130 d.C., e contém algumas palavras de</p><p>João 18. Dois outros papiros códices surgiram no final do século II: o Papiro 66</p><p>engloba a maior parte dos capítulos 1 a 14 e parte dos capítulos restantes, enquanto</p><p>o Papiro 75 contém a maior parte de Lucas, seguido por João 1 a 11 e parte dos</p><p>capítulos 12 a 15. O Papiro 45 data do início do século III e contém partes dos</p><p>quatro evangelhos e de Atos, embora nenhum livro, pois todos estão mutilados,</p><p>esteja completo. Depois disso, os manuscritos tornam-se mais ricos, como os</p><p>notáveis unciais (manuscritos em letras maiúsculas) do século IV, seguidos pela</p><p>minusculização, várias delas, nos séculos seguintes.</p><p>As idéias e a linguagem do evangelho de João encontram afinidades com as</p><p>Odes de Salomão, uma coleção de hinos do mesmo período, bem como com as</p><p>cartas de Inácio, bispo de Antioquia (c. 110-115 d.C.), mas ainda não se provou</p><p>nenhuma dependência direta.2 Policarpo, bispo de Esmirna, e escritos de cerca de</p><p>120 d.C., citam claramente ljoão (em Fp 1.7, citado vagamente ljo 4.2,3). Se</p><p>alguém concluir (como eu) que as cartas joaninas foram escritas depois do quarto</p><p>evangelho, e pelo mesmo autor, é razoável supor que Policarpo também conhecia</p><p>o quarto evangelho; mas não há evidência literária conclusiva. Aparentemente, o</p><p>gnóstico Basílides (c. 130 d.C.) cita João 1.9 (“Estava chegando ao mundo a</p><p>verdadeira luz, que ilumina todos os homens.”) como um comentário sobre</p><p>Gênesis 1.3 (“Disse Deus: “Haja luz”.), mas essa informação depende de Hipólito</p><p>(.Refutation o f Heresies vii 22. 4). Se ele estiver certo, esta é a primeira referência</p><p>explícita a João que chegou a nosso conhecimento.</p><p>Na verdade, o interesse gnóstico em João continuou forte pelos séculos II e</p><p>III. O gnosticismo não era um sistema de pensamento ordenado com contornos</p><p>bem-definidos, mas (conforme assinalou um estudioso) “uma mixórdia teosófica”.</p><p>Ele surgiu, em parte, do neoplatonismo que se desenvolveu mais de dois séculos</p><p>antes de Cristo. Essa visão de mundo colocava o que é ‘espírito’ ou ‘real’ em</p><p>oposição ao que é meramente material, temporal e sem importância. O gnosticismo</p><p>ia mais longe, sustentando a existência de uma espécie de redentor-gnóstico que</p><p>veio para as pessoas “espirituais” e que explicou a origem delas no mundo espiritual,</p><p>libertando-as, portanto, de suas amarras ao mundo material por meio desse</p><p>‘conhecimento’ (do grego gnôsis) de sua verdadeira natureza. Aqueles que eram</p><p>1 Martin Hengel, Studies in the Gospel o f Mark (Londres, 1985), pp. 66-84. Para discussão, cf.</p><p>com D. A. Carson, Leon Morris e Douglas J. Moo, Introdução ao Novo Testamento (Edições</p><p>Vida Nova, cap. 2).</p><p>2 Deve-se salientar, no caso das Odes de Salomão, a inexistência, também, de argumentos</p><p>convincentes para demonstrar uma dependência em sentido inverso.</p><p>27 In tro d u ç ã o</p><p>verdadeiramente ‘espirituais’ recebiam essa mensagem; aqueles que eram totalmente</p><p>materiais a rejeitavam. Em algumas formas de gnosticismo havia categorias interme­</p><p>diárias. Mas, em qualquer caso, a natureza dos laços, nesse sistema, é a escravidão</p><p>à matéria, ignorância da verdadeira origem de cada um; a natureza da redenção é</p><p>o ‘conhecimento’ especial transmitido pelo redentor-gnóstico. No gnosticismo já</p><p>maduro do século II, Jesus era identificado como esse redentor-gnóstico, e o</p><p>evangelho de João, interpretado (ou mal interpretado) de modo a justificar esse</p><p>sistema de idéias.</p><p>Assim, o Evangelho da verdade (c. 140 d.C.), que tanto pode ser atribuído a</p><p>Valentino como a um de seus discípulos, aparentemente alude ao quarto evangelho</p><p>várias vezes, mesmo sem citá-lo explicitamente. Está escrito (26.4-8) que quando a</p><p>Palavra surgiu “ela se fez corpo” (sômd), que é mais do que a maioria dos gnósticos</p><p>poderia aceitar, mas provavelmente ‘corpo’ seria considerado menos material e</p><p>ofensivo que a “carne” (sarx, Jo 1.14J de João. Pouco depois, Valentino coloca-se</p><p>claramente em relação à Palavra quando diz “aqueles que eram matérias eram estran­</p><p>geiros e não viam sua forma nem o reconheciam. Pois ele veio em carne (sarx) de tal</p><p>natureza que ninguém poderia barrar seu progresso” (31.1-7): aparentemente, há</p><p>uma confusão entre o corpo de Cristo durante seu ministério e o corpo ressurrecto</p><p>(Jo 20.19). Herácleo, um dos discípulos de Valentino, escreveu o primeiro comentário</p><p>sobre João de que se tem notícia. Não veio a nós de modo independente, mas é</p><p>constantemente citado por Orígenes em seu comentário sobre o quarto evangelho,</p><p>datado do século III.</p><p>Os gnósticos, obviamente, não foram os únicos a utilizar o evangelho de João.</p><p>Embora vários pais da igreja da primeira metade do século II aludam, provavelmente,</p><p>ao quarto evangelho (cj. discussão a seguir), o primeiro escritor da corrente ortodoxa</p><p>a citar João, até onde temos registro, é Justino Mártir, que a certa altura comenta:</p><p>“Cristo verdadeiramente disse: ‘A menos que se nasça de novo, não se entrará no</p><p>Reino dos céus’. E evidente, para todos nós, que ninguém que já nasceu pode entrar</p><p>novamente no ventre’ de sua mãe” (Primeira apologia 61.4-5). Isso, muito provavel­</p><p>mente, é uma referência a João 3.3-5, embora este não seja citado. Alguns estudiosos</p><p>questionam se não seria apenas uma referência à tradição oral que chegou a Justino,</p><p>independentemente do evangelho de João, pois em vários pontos em que deveria</p><p>referir-se a João (por exemplo, em seus ensinamentos sobre a pré-existência da Palavra</p><p>de Deus), ele não o faz. Justino não relaciona explicitamente nenhum dos evangelhos</p><p>canônicos a um autor específico, mas refere-se a eles como ‘memórias dos apóstolos’.</p><p>A primeira citação inequívoca do quarto evangelho que atribui o trabalho a</p><p>João é deTeófilo de Antioquia (c. 181 d.C.), mas, mesmo antes dessa data, muitos</p><p>escritores, inclusive Taciano (aluno de Justino), Cláudio Apolinário (bispo de</p><p>Hierápolis) e Atenágoras, sem dúvida, citaram o quarto evangelho como fonte de</p><p>autoridade. Isso nos leva de volta a Policarpo e Papias, de quem temos informações</p><p>provenientes de Irineu (final do século II) e de Eusébio, historiador da igreja</p><p>primitiva (século IV). Policarpo foi martirizado em 156 d.C., aos 86 anos. Por</p><p>isso, não há motivo para negar a verdade das afirmações de que ele se associou aos</p><p>In tro d u ç ã o 28</p><p>apóstolos na Ásia</p><p>(João, André, Filipe) e foi “aceito com a supervisão da igreja de</p><p>Esmirna por testemunhas oculares e ministros do Senhor” (H. E. III. xxxvi).</p><p>Irineu conheceu Policarpo pessoalmente, e é Policarpo quem faz a mediação</p><p>para nós da mais importante informação sobre o quarto evangelho. Escrevendo a</p><p>Florino, Irineu recorda:</p><p>Lembro-me mais claramente dos acontecimentos daquele tempo que dos mais</p><p>recentes, pois aprendemos que as crianças crescem com a alma e se tornam</p><p>unidas a ela, de modo que posso falar, inclusive, do lugar em que o abençoado</p><p>Policarpo sentou-se e debateu, de como ele veio e partiu, do caráter de sua</p><p>vida, de sua aparência, do discurso que ele fez para o povo, de como ele</p><p>relatou sua conversa com João e com os demais que haviam visto o Senhor,</p><p>de como ele se recordava das palavras destes e de quais eram as coisas</p><p>concernentes ao Senhor que ele escutou dessas pessoas, incluindo seus milagres</p><p>e ensinamentos3, e de como Policarpo as recebeu das testemunhas oculares</p><p>da palavra da vida de como relatou tudo de acordo com as Escrituras (H. E.</p><p>V. xx. 5-6).</p><p>A maioria dos estudiosos reconhece que esse ‘João’, certamente uma referência</p><p>ao apóstolo João, filho de Zebedeu, está na mente de Irineu, e não é outro senão</p><p>o João que ele, enfaticamente, insiste ser o quarto evangelista. Para Irineu, o</p><p>evangelho deveria ser ‘quádruplo’ (no sentido descrito acima), e isso era algo tão</p><p>natural quanto a existência de quatro ventos. Em relação ao quarto evangelho,</p><p>escreveu ele: “João, o discípulo do Senhor, que se recostou em seu peito, publicou</p><p>o evangelho enquanto residia em Efeso, na Ásia” (Contra heresias iii. 1. 2.). Em</p><p>outras palavras, o nome do quarto evangelista é João, e deve ser identificado como</p><p>“o discípulo a quem Jesus amava”, em João 13.23.</p><p>A evidência de Papias, similarmente, depende de fontes secundárias. Papias</p><p>era um contemporâneo de Policarpo e deve ter sido aluno de João (Irineu afirma</p><p>isso, Contra heresias, v. 33. 4; mas Eusébio nega, H. E. III. xxxix 2). Certamente</p><p>que Eusébio insiste que Papias citou ljoão (H. E. III. xxxix). O fato de Eusébio</p><p>não mencionar que Papias cita o quarto evangelho é irrelevante: o propósito claro</p><p>de Eusébio era discutir as partes disputadas do Novo Testamento, bem como</p><p>algumas daquelas pessoas que ligaram o século'I ao que se seguiu, em lugar de</p><p>apresentar uma lista de citações de livros “famosos”.4</p><p>Outra peça de evidência referente a Papias é mais difícil de se avaliar. Cerca</p><p>de 140 d.C., Marcião, um seguidor extremado dos escritos de Paulo, que se</p><p>convencera que somente esse apóstolo seguira verdadeiramente os ensinamentos</p><p>de Jesus, enquanto todos os outros reincidiram no judaísmo, dirigiu-se a Roma</p><p>3 A tradução é da edição Loeb de Eusébio, exceto nessa oração, em que a edição, claramente,</p><p>erra.</p><p>4 Contudo, nessa conexão, percebe-se que a carta ljoão deveria ser mencionada, por ser</p><p>universalmente aceita. Talvez, como sugere Westcott (1. lxiii-lxiv), isso é porque ela pertence</p><p>às cartas ‘gerais’ ou universais’, que constituem um conjunto de escritos excepcionais.</p><p>29 In tro d u ç ã o</p><p>para tentar convencer a igreja local de seus pontos de vista. Ele argumentou, sem</p><p>sucesso, que o cânone mais adequado do Novo Testamento compreendia dez</p><p>cartas de Paulo e um evangelho, uma versão mutilada de Lucas. Marcião era tão</p><p>perigoso que conseguiu sensibilizar pessoas e obter réplicas. Em particular, os</p><p>chamados prólogos Contra Marcião aos evangelhos foram considerados parte dessas</p><p>réplicas (embora se deva admitir que alguns estudiosos acreditem que eles</p><p>emergiram em período posterior). O prólogo Contra Marcião a João chegou a nós</p><p>em uma versão do latim relativamente alterada. Ela nos informa que o evangelho</p><p>de João foi publicado enquanto ele ainda se encontrava vivo, e foi ditado por João</p><p>e escrito por Papias, um homem de Hierápolis e um dos discípulos mais próximos</p><p>de João. Segundo Marcião, ele foi expulso pelo próprio João. Essa informação,</p><p>conforme se argumenta no prólogo, deriva dos cinco livros exegéticos do próprio</p><p>Papias: a referência é do Exegesis ofthe Dominical Logia [Interpretações dos ditos do</p><p>Senhor], que sobreviveu durante a Idade Média em algumas bibliotecas da Europa,</p><p>mas que, infelizmente, não existe mais.</p><p>Algumas das informações fornecidas pelo prólogo Contra Marcião são,</p><p>claramente, equivocadas. E bastante duvidoso que João tenha excomungado Marcião:</p><p>cronologicamente, isso fica muito improvável. Além do que, como aponta Bruce</p><p>(p. 10), Papias deve ter dito que as igrejas, ou certos discípulos, ‘escreveram’ o que</p><p>João disse, e mais tarde foi citado de forma deturpada como: “Eu escrevi”, pois no</p><p>grego, essa última forma é indistinguível de ‘eles escreveram’. Ainda assim, não há</p><p>dúvida, nesse documento, de que João foi o responsável pelo quarto evangelho.</p><p>Não só Irineu, mas também Clemente da Alexandria e Tertuliano, proveram,</p><p>no século II, evidências consistentes da crença de que o apóstolo João escreveu o</p><p>evangelho. Segundo Eusébio (H. E. VI xiv. 7), Clemente escreveu: “Mas aquele</p><p>João, depois de tudo, consciente de que os fatos exteriores encontravam-se relatados</p><p>nos evangelhos, a pedido de seus discípulos e, divinamente, movido pelo Espírito</p><p>de Deus, compôs um evangelho espiritual”. Uma versão mais enigmática desse</p><p>desenvolvimento, até mesmo de seus detalhes menos plausíveis, encontra-se preserva­</p><p>da no Cânone Muratoriano, a primeira relação ortodoxa dos livros do Novo Testa­</p><p>mento que veio a público, provavelmente datada do final do século II. Essa versão</p><p>nos relata que não só os discípulos companheiros de João e os bispos o instaram a</p><p>escrever, mas que por meio de um sonho ou profecia foi revelado a André que João</p><p>deveria mesmo aceitar a tarefa e escrever em seu próprio nome, e os demais deveriam</p><p>revisar seu trabalho e contribuir com ele. A maioria dos estudiosos acredita que isto</p><p>seja uma dedução a partir de João 21.24.</p><p>Alguma evidência indireta é, em certos aspectos, ainda mais impressionante.</p><p>Taciano, um aluno do Justino Mártir, compôs a primeira ‘harmonização’ dos quatro</p><p>evangelhos: ele separou os quatro livros e os organizou em uma narrativa contínua.</p><p>Esse Diatessaron (como é chamado), primeiramente preparado em grego, exerceu</p><p>enorme influência na tradução siríaca. Mas o ponto crucial a se observar é que,</p><p>justamente, o evangelho de João é que forneceu os parâmetros dentro dos quais os</p><p>demais evangelhos se enquadraram. Tal fato não se daria caso houvesse dúvidas</p><p>sobre a autenticidade do livro.</p><p>In tro d u ç ã o 30</p><p>Na verdade, no final do século II, os únicos que negavam a autoria de João</p><p>do quarto evangelho eram os chamados Alogoi — um adjetivo substantivado que</p><p>significa ‘pessoa sagaz’, mas que foi usado pelos ortodoxos como um trocadilho</p><p>endereçado àqueles que rejeitavam a doutrina do logos (“Palavra”: cf. notas em</p><p>1.1), exposta no quarto evangelho, e, portanto, o quarto evangelho. Mais tarde,</p><p>um ancião da Igreja Romana, chamado Gaio, que era um dos Alogoi, manteve a</p><p>ortodoxia em todos os pontos, exceto em sua rejeição ao evangelho de João e ao</p><p>Apocalipse. Contudo, pelo menos parte de sua motivação era sua oposição virulenta</p><p>ao montanismo, um movimento carismático ‘extremado’ que surgiu na metade</p><p>do século II, o qual proclamava que seu líder, Montano, era o porta-voz do</p><p>prometido Paracleto. Uma vez que todos os dizeres do Paracleto que se referem ao</p><p>Espírito estão no evangelho de João (14.16,26; 15.26; 16.7-15), Gaio não</p><p>necessitou de muita persuasão para alinhar-se aos Alogoi nesse ponto.</p><p>Certamente, do final do século II em diante, há um acordo tácito na igreja</p><p>em relação à autoria, canonicidade e autoridade do evangelho de João. Um</p><p>argumento silencioso, nesse caso, mostrou-se poderoso (porque, em outras</p><p>circunstâncias, seria de se esperar que a pessoa em questão fizesse muito barulho!):</p><p>“E muito significativo que Eusébio, que teve acesso a muitos trabalhos que,</p><p>atualmente, encontram-se perdidos, fale sem reservas do quarto evangelho como</p><p>uma inquestionável obra de João” (Westcott, 1. lix). O silêncio é ‘mais significativo’</p><p>precisamente porque cabia a Eusébio discutir os casos duvidosos.</p><p>Não se deve pensar que as diferenças entre João e os sinóticos (§ I, acima) não</p><p>fosse percebida pelos primeiros pais da igreja (cf. Wiles, pp. 13-40). A observação</p><p>de Clemente de Alexandria, de que João compôs ‘um evangelho espiritual’, é</p><p>embaraçadora. Certamente, o sentido de espiritual’, aqui, opõe-se a ‘histórico’;</p><p>ele pode significar ‘alegórico’ ou ‘simbólico’. Irineu (Contra heresias ii. 22. 3) apela</p><p>para a duração do ministério de Jesus na cronologia de João para combater ligações</p><p>que os gnósticos construíram entre a Paixão de Jesus, que eles afirmam ter ocorrido</p><p>no 12° mês após seu batismo, e o 12° éon, importante em sua cosmologia. Eusébio,</p><p>Epifânio e Agostinho assumiram a tarefa de explicar outras dificuldades entre</p><p>João e os sinóticos, recorrendo por vezes a uma tortuosa ingenuidade. Orígenes</p><p>não acredita que as cronologias possam ser reconciliadas a nível histórico, mas</p><p>argumenta que a falsificação material pode ser o meio, ao se utilizar da alegoria,</p><p>de preservar e de apresentar a verdade espiritual. Em contraste, Teodoro busca a</p><p>solução das dificuldades cronológicas argumentando que os sinóticos não</p><p>apresentam, de fato, uma cronologia contra a qual se possa entrar em conflito: a</p><p>maior parte de sua apresentação é gradativa e pode encaixar-se dentro do esquema</p><p>de João. Se existem diferenças entre o evangelho de João e os sinóticos no que diz</p><p>respeito à Paixão, por exemplo, devemos nos lembrar de que João não só esteve</p><p>presente na maior parte desse episódio (diferentemente dos demais discípulos,</p><p>que se haviam afastado), como também o fato de que qualquer evento complexo</p><p>recordado por várias pessoas está sujeito a ser descrito de modos independentes,</p><p>embora complementares. Isso prova, no ponto de vista de Teodoro, que as diferentes</p><p>testemunhas não tramaram uma fraude, e, portanto, seus relatos são dignos de</p><p>confiança. Assim, sua tentativa de solução opera a nível histórico.</p><p>31 In tro d u ç ã o</p><p>2. Discussões mais recentes</p><p>Limitações de espaço proíbem-me de desenvolver um sumário das maiores</p><p>contribuições e falhas interpretativas dos pais da igreja.5 O mesmo acontece com</p><p>comentários sobre a Idade Média e a Reforma. Caso o quarto evangelho tenha</p><p>sido interpretado de modo a dar base para alguma forma de misticismo cristão,</p><p>ou para tornar clara a verdade da justificação pela fé, pelo menos não há dúvida</p><p>de que sua autoria pertence ao apóstolo João, e que este, em alguns pontos, é o</p><p>mais focado dos quatro evangelhos canônicos6, havendo, portanto, possibilidade</p><p>de uma reconciliação fundamental entre João e os sinóticos.</p><p>Com o advento do Iluminismo, uma consciência histórica veio sobre si mesma.</p><p>Na maioria das universidades européias surgiram dúvidas sobre a fidelidade</p><p>histórica dos evangelhos, as quais cresceram como uma onda desde cerca de 1750</p><p>em diante (embora seus antecedentes sejam ainda mais remotos). Até 1835,</p><p>contudo, o evangelho de João deu-se melhor que os sinóticos, embora por motivos</p><p>questionáveis. Os críticos perceberam que João não relatava nenhuma expulsão</p><p>de demônios. Ele rapidamente passa de milagres a discursos: inclusive, sua palavra</p><p>favorita é ‘sinal’, e não ‘maravilha’ ou ‘obra de poder’. Tudo isso satisfez o ambiente</p><p>intelectual cada vez menos aberto ao sobrenatural, e cada vez mais enamorado</p><p>por noções básicas ou essenciais expressas por intermédio de vários ‘mitos’.</p><p>As mudanças vieram em 1835 com a publicação da primeira edição de Das</p><p>Leben Jesu. Krittsch bearbeitet,7 de David Friedrich Strauss.8 Em alguns pontos,</p><p>Strauss só representou, de forma um pouco mais aguçada, o ceticismo de muitos</p><p>de seus colegas. Ele era um rigoroso anti-sobrenaturalista e apelava, sem reservas,</p><p>para a categoria de ‘mito’, naquele tempo mais comumente relacionados aos estudos</p><p>do Antigo Testamento que aos do Novo, cuja finalidade era explicar como algumas</p><p>idéias podiam ser expressas por uma antiga civilização de forma concreta, as quais</p><p>a geração de Strauss (assim ele acreditava) não podia mais aceitar a nível meramente</p><p>histórico. No que diz respeito aos estudos de João, sua maior importância foi</p><p>aplicar essa abordagem à Cristologia, cujo resultado foi a apresentação, genuína e</p><p>5 Pode-se encontrar um bom sumário, cf. Tomás de Aquino, Commentary on the Four Gospels</p><p>Collected out ofthe Works ofthe Fathers (ET John Henry Parker, 1845). Para uma rápida</p><p>visão sobre os comentários medievais acerca da obra de João, cf. Panimolle, pp. 447-49.</p><p>6 Calvin (1.6) sustenta que João “enfatiza mais [que os sinóticos] a doutrina na qual são</p><p>explicados o ministério de Cristo e o poder de sua morte e ressurreição. Ele acrescenta: “E</p><p>uma vez que todos eles têm o mesmo propósito, revelar Cristo, os três primeiros exibem seu</p><p>corpo, se me for permitido expressar-me nesses termos, mas João revela sua alma. Por esse</p><p>motivo costumo dizer que esse evangelho é uma chave que abre o entendimento para os</p><p>demais, pois quem compreender o poder de Cristo, como está vividamente retratado aqui,</p><p>lerá com melhor aproveitamento o que os demais relatam sobre o manifesto redentor.”</p><p>7 Essa obra só recentemente foi traduzida para o inglês, com o título The Life o f Jesus Critically</p><p>Examined (SCM, 1973).</p><p>8 Para se ter uma idéia bem completa da importância de Strauss, tf. Horton Harris, David</p><p>Friedrich Strauss and His Theology (Cambridge University Press, 1973).</p><p>In tro d u ç ã o 32</p><p>simultânea, de Jesus como Deus e homem, conforme a narrativa de João, o que</p><p>também se enquadra na categoria ‘mito’, e, assim, o quarto evangelho torna-se o</p><p>evangelho de menor credibilidade histórica dentre os canônicos. No que diz respeito</p><p>a Cristo no centro da Cristologia, Strauss substituiu uma idéia, a idéia de que na</p><p>humanidade “o espírito divino [certamente não-compreendido como o Deus</p><p>pessoal-transcendente da Bíblia!] manifesta a si mesmo, e é a humanidade que</p><p>deve ser vista como o verdadeiro Cristo” .9 Strauss, de um só golpe, acaba com</p><p>qualquer entendimento histórico do cristianismo. A mesma tacada relega o quarto</p><p>evangelho, aos olhos de um crescente número de críticos, à categoria de obra, da</p><p>perspectiva dos historiadores, menos útil do Novo Testamento.</p><p>O livro de Strauss desencadeou uma tempestade de fogo. Ele foi demitido de</p><p>seu cargo e difamado pela imprensa. O opróbrio que enfrentou era de natureza</p><p>hipócrita, pois os tipos de ceticismo que expressava já eram bem disseminados.</p><p>Mas a maioria dos estudiosos da Bíblia de tendência cética tentou disfarçar seu</p><p>ceticismo em fé, e a maioria deles deixou a pessoa de Jesus, conforme apresentada</p><p>nos evangelhos, sem crítica alguma. Strauss recusou-se a aceitar esse jogo, e as</p><p>suspeitas reprimidas de uma sociedade ainda amplamente controlada por crenças</p><p>cristãs recaíram sobre ele. Muitos de seus colegas acadêmicos distanciaram-se dele,</p><p>pelo menos por algum tempo, temendo por seus próprios empregos.</p><p>Contudo, a obra de Strauss tornou-se extraordinariamente influente, mesmo</p><p>entre aqueles que não conseguiam ir tão longe quanto ele. Antes de esboçar os</p><p>desmembramentos que surgiram em seu curso, é importante reconhecer que nem</p><p>todos os estudiosos julgavam que ele estava no caminho certo. Durante os 150 anos</p><p>que se seguiram, grandes personalidades contribuíram com os estudos sobre João</p><p>dentro de um quadro ortodoxo. Como exemplos desses estudos, temos os</p><p>excepcionais comentários de E. Hengstenberg, B. F. Westcott e Leon Morris; bem</p><p>como as apresentações críticas conservadoras deTheodor Zahn, J. Gresham Machen</p><p>e Donald Guthrie — sem mencionar centenas de pessoas menos eminentes, que</p><p>contribuíram com a discussão, que mantiveram sua integridade intelectual enquanto</p><p>liam o evangelho de João com a convicção de que estavam ouvindo as palavras de</p><p>um apóstolo de Jesus que entendeu seu papel de testemunha da verdade.</p><p>Ainda assim, a principal corrente que estudava João voltou-se</p><p>para outra direção.</p><p>No final do século XIX e início do XX, o movimento mais importante era a escola</p><p>da ‘história das religiões’. Ela intentava enquadrar o surgimento e o desenvolvimento</p><p>de todas as religiões como desenvolvimentos puramente naturalistas e históricos. O</p><p>cristianismo era interpretado como um tipo de amalgamação de antigàs seitas</p><p>misteriosas com os vestígios de judaísmo, ou como o resultado da união fecunda</p><p>entre os pensamentos judaico e grego, ou gnóstico. De acordo com essa perspectiva,</p><p>o evangelho de João era visto como o final desse desenvolvimento, a evidência do</p><p>que acontecera quando a seita palestina se estabeleceu na fronteira do mundo helénico.</p><p>9 Ibid., p . 55.</p><p>33 In tro d u ç ã o</p><p>Muito do poder desse movimento se perdeu quando os últimos estudos mostraram,</p><p>repetidamente, que não havia separação entre o pensamento judaico e helénico</p><p>no século I; que o compromisso filosófico com o anti-sobrenaturalismo não possibi­</p><p>litava a leitura adequada dos textos; e que teorias sobre possíveis linhas retas traçadas</p><p>pelos desenvolvimentos histórico e religioso são artificiais e empiricamente negadas</p><p>pelo surgimento de qualquer movimento religioso que possa ser estudado de perto.</p><p>A maioria dos estudiosos contemporâneos se beneficiou da escola’, na qual apren­</p><p>deram a formular questões históricas com mais rigor que seriam capazes de outra</p><p>forma. Alguns se mantiveram dentro dos limites do movimento como ele se mani­</p><p>festava na virada do século XIX.10</p><p>No que diz respeito a João, o mais importante erudito do século XX a estudá-</p><p>lo foi Rudolf Bultmann. Seu principal comentário sobre João, uma exuberância</p><p>de conhecimento com incontáveis detalhes, caracteriza-se por quatro aspectos:</p><p>(1) Ele insistia em que a base mais importante do cristianismo de João foi o</p><p>gnosticismo mandaen. Certamente ele foi capaz de traçar vários paralelos intrigantes.</p><p>A dificuldade da tese, contudo, é que o esse gnosticismo mandaen, até onde vão as</p><p>fontes existentes, foi um fenômeno tardio. Nenhuma de nossas fontes escritas é</p><p>anterior ao século VII d.C. Contudo, Bultmann sustentava que esse gnosticismo</p><p>mandaen antecede o cristianismo e é determinante para o modelar do cristianismo</p><p>joanino.</p><p>(2) Bultmann empregou críticas da fonte sistemática sobre o quarto evangelho</p><p>e separou não só uma ‘fonte de sinais’ (mais sobre esse último aspecto) e uma fonte</p><p>discursiva, como também encontrou outras peças, até mesmo uma última obra de</p><p>um pressuposto ‘redator eclesiástico’ que tentou encaixar o livro em formas mais</p><p>convencionais de cristianismo. As críticas de Bultmann estendiam-se às palavras e às</p><p>frases separadas de seu contexto. Em uma de suas apreciações mais famosas, por</p><p>exemplo, ele argumenta que as palavras “água e” em João 3.5 são tributáveis ao</p><p>redator eclesiástico.</p><p>(3) Bultmann era rigorosamente compromissado com o anti-sobrenaturalismo,</p><p>como deixa evidente em seu famoso ensaio de 1941.11 Tal fato, inevitavelmente,</p><p>afetou seu julgamento acerca da fidelidade histórica de muito do que há em João.</p><p>Por isso, a essência de sua apreciação sobre o que os historiadores podem realmente</p><p>saber sobre Jesus é que ele existiu — um grosseiro dass (‘que’), e nada mais.</p><p>(4) Mas, segundo ele mesmo, isso náo é importante. O cristianismo era melhor</p><p>depois de ser ‘demitologizado’ (influência de Strauss), o que o fez ser apresentado à</p><p>humanidade contemporânea livre das crenças que a ciência moderna (em sua opinião)</p><p>não poderia aceitar. Essa semente, o verdadeiro cristianismo, submetida a uma</p><p>inspeção minuciosa, torna-se muito semelhante a uma forma de existencialismo.</p><p>10 Pode-se citar, em especial, Helmut Koester, Einführung in das Neuen Testament im Rahmen</p><p>der Religionsgeschichte und Kulturgeschichte der hellenistischen und römischen Zeit (de Gruyter,</p><p>1980 [ET Fortress, 1982]); também alguns dos comentadores da prestigiosa série Hermeneia.</p><p>11 Cf. Rudolf Bultmann, “New Testament and Mithology”, in Hans Werner Bartsch (ed.),</p><p>Kerygma and Myth: A Theological Debate, tr. Reginald H. Fuller (SPCK, 1953), pp. 1-44.</p><p>In tro d u ç ã o 34</p><p>Deus não é mais o Deus bíblico pessoal e transcendente, mas o ‘fundamento de</p><p>toda criação’. Fé não é mais crer no Deus que existe e fala a verdade que deve ser</p><p>crida e obedecida, mas um profundo auto-abandono aos clamores da ‘existência</p><p>autêntica’. Quando pregava, Bultmann usava a linguagem tradicional da espiritua­</p><p>lidade cristã, mas o que almejava transmitir era retirado do que historicamente se</p><p>entendia com essas expressões. O evangelho de João, dos quatro evangelhos canônicos,</p><p>era o que se mostrava mais próximo de expor um tipo de cristianismo ‘demitologi-</p><p>zado’, que Bultmann aprovava (influência do elogio a João pré-Strauss), de modo</p><p>que sentiu grande afinidade por tal evangelho. Em sua perspectiva, Bultmann estava</p><p>salvando o cristianismo do homem e da mulher modernos; da perspectiva de seus</p><p>críticos tenazes, e ele, portanto, sacrificou a fé “de uma vez por todas confiada aos</p><p>santos” (Jd 3).</p><p>Muitos fatores contribuíram para que a influência de Bultmann diminuísse.</p><p>Primeiro, embora alguns estudiosos, principalmente na Alemanha, ainda acreditem</p><p>que o gnosticismo seja a única grande influência do quarto evangelho (o que está de</p><p>acordo com o comentário de Haechen), praticamente ninguém defende o gnosticis­</p><p>mo mandaen. A evidência contra a teoria é muito forte. Além disso, há fortes razões</p><p>(e, em minha opinião, bastante convincentes) que justificam a visão que, embora o</p><p>neoplatonismo tenha exercido grande influência sobre algumas pessoas das igrejas</p><p>primitivas, o gnosticismo, juntamente com o mito do redentor gnóstico, não surgiu</p><p>antes do final do século I, e, em muitas de suas formas, é um parasita do judaísmo</p><p>e/ou do cristianismo.12 E desconcertante quando esses componentes reais não são</p><p>devidamente considerados. Helmut Koester, em um ensaio recente que avalia “Pro­</p><p>vérbios gnósticos e tradições controversas em João 8.12-59” (em Hendrick/Hodgson,</p><p>pp. 97-110), por exemplo, traça uma série de interessantes paralelos e simplesmente</p><p>afirma que o evangelista conhecia esses provérbios ou similares, sem considerar a</p><p>possibilidade de que, em pelo menos alguns casos, a dependência possa ter-se dado</p><p>por caminhos diferentes. Tal argumento é reforçado pela obra recente de Tuckett,13</p><p>que oferece evidência convincente de que sempre que se puder traçar, em algum</p><p>nível, um paralelo entre os sinóticos e os documentos gnósticos do Nag Hammadi,</p><p>o movimento parte dos sinóticos para o Nag Hammadi. Embora não exista ainda</p><p>um trabalho detalhado a esse ponto sobre João, possivelmente o resultado não será</p><p>muito diferente.14 De qualquer forma, paralelismos verbais não têm maior impor­</p><p>tância a menos que as afinidades conceituais sejam cuidadosamente consideradas.</p><p>12 Ver principalmente E. M. Yamauchi, “Pre-Christian Gnosticism in the Nag-Hammadi</p><p>Texts?”, Church History 48, 1979, pp. 129-141; idem, Pre-Christian Gnosticism (Baker,</p><p>21983).</p><p>13 C. M. Tuckett, Nag Hammadi and the Gospel Tradition: Synoptic Tradition in the Nag</p><p>Hammadi Library (T. & T. Clark, 1983).</p><p>14 Alguns trechos foram prudentemente avaliados: cf. Craig A. Evans, no que tange à Trimor-</p><p>phic Protennoia constante do Prólogo, in N TS 27, 1981, pp. 395-401.</p><p>35 In tro d u ç ã o</p><p>Segundo, a resposta decisiva de D. Moody Smith à crítica da fonte15 de</p><p>Bultmann significou que ninguém o segue sem hesitações a esse respeito. A crítica</p><p>da fonte de João ainda conta com defensores (c f Comentário adiante, e no § III),</p><p>mas a obra detalhada de Bultmann sofreu mesmo um eclipse.</p><p>Terceiro, o particularmente virulento anti-sobrenaturalismo abraçado por Bult­</p><p>mann foi mitigado por dois fatores. (1) Embora muitas das convenções intelectuais</p><p>da época constrangessem vários dos escritores dentro de um estilo desapaixonado e</p><p>brando (o qual oferece muitas vantagens ao debate acadêmico), o fato é que muitos</p><p>estudiosos bíblicos são crentes convictos. (2) O interesse intelectual em João está</p><p>mudando para abordagens</p>

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