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A atuação do psicólogo no sistema penal

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Myrella Nora

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<p>A atuação dos psicólogos no sistema penal Tania Kolker Durante muito tempo, os saberes e os fazeres dos profis- sionais de saúde nas prisões estavam quase que irremediavel- mente alinhados com as teorias mais conservadoras sobre o crime, os criminosos e as prisões, cabendo-lhes apenas o papel de operadores técnicos do poder disciplinar. Esse quadro só começa a mudar nas últimas décadas, quando aparecem os primeiros estudos foucaultianos sobre a prisão e são dados os primeiros passos na construção das bases da escola que viria a ser conhecida como criminologia crítica. Além disso, com as contribuições do movimento da reforma penal internacional e com desenvolvimento da cultura de direitos humanos o le- que de contribuições sobre tema amplia-se consideravelmente e começam a ser criadas as condições para a formação de um novo tipo de profissional, quando não mais engajado politicamente, pelo menos familiarizado com leituras mais críticas e desnaturalizadoras. Sendo, porém, a criminalidade um fenômeno tão com- plexo e sujeito a múltiplas determinações, e tratamento penal do crime objeto de tantas controvérsias, é longo e multifaceta- do o caminho dos que descjam construir um conhecimento mais crítico e transformador sobre esse campo de intervenção. Para preciso estabeleccr diálogo entre saberes tão distin- tos como história, sociologia, economia, penal, crimino- logia, psicologia jurídica, entre É fundamental entender O papel da criminalização da pobreza, da demonização das 157</p><p>drogas, da espetacularização da violência, da criação da figura a economia monetária; os suplícios e a pena capital foram as do inimigo interno e da funcionalidade do fracasso da prisão, penas preferenciais no período feudal, atingindo apenas aos especialmente no contexto atual das sociedades neoliberais extratos mais pobres da população; trabalho nas galés serviu globalizadas. Mas é também necessário conhecer os autores para satisfazer a necessidade de remadores; o banimento e a que no passado construíram esse objeto que passou a ser visto deportação estiveram associados ao processo de exploração como a causa dos crimes e a razão de ser das prisões: crimi- colonial e a prisão com ou sem trabalho forçado esteve intima- mente ligada à emergência e ao desenvolvimento do modo de Meu objetivo nesse artigo é delinear um trajeto, propon- produção do um percurso para os leitores desejosos de conhecer os prin- Para melhor entender a função histórica da prisão e cipais autores e as principais idéias que vêm sendo travadas no papel historicamente atribuído ao saber médico-psicológico conflagrado território dos discursos sobre as prisões e nessas instituições, convém voltarmos um pouco atrás no tem- mios judiciários e, com isso, fornecer elementos para a po, a princípio em companhia de Foucault e Castel. Com eles problematização da atuação dos psicólogos nessas possível ver como as diferentes formas de assistir c/ou punir A prisão, tal qual a conhecemos na atualidade, é uma dispensadas aos deficientes, pobres, desempregados, instituição que nasce com capitalismo e desde então, vem marginais e criminosos de nossa história estão relacionadas entre sendo utilizada para administrar, seja pela via da correção, seja si, como estas estratégias estão intimamente relacionadas com pela via da neutralização, as classes tidas como perigosas. Embora hoje seja universalmente usada como forma de sanci- as sucessivas políticas voltadas para o controle das classes tra- balhadoras e como as nossas ações, enquanto técnicos, estão onar a maioria dos crimes, durante muitos séculos servia ape- atravessadas por essas determinações. nas para guardar os criminosos até o julgamento, ou para tornar possível a aplicação de outras penas, como a de trabalho força- do. Até a sua consagração, em fins do século XVIII, diversas as classes outras formas punitivas foram adotadas, sempre de maneira relacionada ao modelo político-cconômico vigente, em geral respondendo à necessidade de formação, aproveitamento e/ou 2 A pena privativa de liberdade veio responder à necessidade de formação de controle da mão de obra pouco qualificada, ou como instru- mão de obra para alimentar a máquina capitalística. Desde então, toda a mento para a gestão das classes consideradas perigosas (por evolução posterior do trabalho nos cárceres (do trabalho produtivo, ao tra- sua pobreza e marginalidade e não apenas por sua criminali- balho não produtivo e finalmente à ausência de trabalho) esteve vinculada dade). Assim, a escravidão como punição esteve par a par com ao valor da mão de obra e do preço dos salários na sociedade livre. Assim, nos períodos em que a mão de obra era escassa, os presos obrigados a economia escravista; as fianças e indenizações nasceram com ao trabalho; quando exército de reserva se expandia e já não havia a necessidade da mão de obra do preso, trabalho nos cárceres tinha apenas a função de contribuir para a formação de uma subjetividade operária e Para uma discussão do conceito de classes perigosas ver 1982 e mais recentemente, quando a tecnologia começou a tornar os homens pres- Coimbra, 2001 e para um aprofundamento da discussão sobre as novas cindíveis, o trabalho penal começou a Ver Melossi, e Pavarini, formas de gestão da pobreza ver 2001. 1980; em Castro, 1983; em Pavarini, 1996; e em Rusche e Kirchheimer, 1999. 158 159</p><p>Mendigos, vagabundos, e trabalhadores não enquadráveis nessa nova configuração. A pobreza, que nos séculos anteriores era valorizada espiritualmente, torna-se mo- Na obra de Castel vemos que a partir da dissolução da tivo de desonra e é criminalizada. A mendicância, a vagabun- ordem feudal tem início intenso processo migratório que em dagem ou a que até então se constituíam em pouco tempo vai inchar as cidades, criar extensos de estratégias eventuais de sobrevivência, muitas vezes para fazer pobreza e engrossar exército de reserva urbano, aumentando frente a períodos sem trabalho, pouco a pouco vão se tornando enormemente número de pessoas involuntariamente desocu- destinos irreversíveis. Mesmo as massas ocupadas são agora padas e sem residência fixa. Forçados a vagar em busca de severamente punidas, ao menor sinal de associação, trabalho, aqueles que não se enquadram na nova ordem eco- cia, ou insurreição. Nesse leque de situações facilmente inter- nômica vão ficando pelas estradas e são empurrados para a cambiáveis, onde segundo Castel, a "criminalidade representa- a mendicância, ou o crime. Sem outra alternativa, essas (ria) a franja externa, alimentada pela área fluida da vagabun- pessoas passam a compor a clientela dos dois tipos de disposi- dagem, ela própria alimentada por uma zona de vulnerabilidade tivos que se firmarão ao longo de todo século XIV e dos três mais ampla, feita da instabilidade das relações de trabalho e da seguintes: a assistência, só acessível aos pobres válidos para fragilidade dos vínculos sociais" (Castel, 1998: 135), o que, na trabalho e com residência conhecida, e a verdade, concorrerá para a constituição daqueles que serão os nesse momento destinada ao enclausuramento dos doentes vené- futuros mendigos, vagabundos ou delinqüentes, serão as pró- reos, loucos, pobres sem domicílio, mendigos vagabundos irredu- prias instituições criadas para geri-los. menores abandonados e moças necessitadas de correção. Nesse processo, a figura do mendigo é recortada entre Na medida em que vão piorando as condições de trabalho, esses novos objetos e passa a ser percebida "como uma espécie vão sendo criadas novas leis para coagir povo a e de povo (que corre o risco de se tornar) independente", que para punir a recusa ao trabalho. É quando e reclu- não conhece "nem lei, nem religião, nem autoridade, nem são se igualam e têm apenas uma função: absorver a massa de polícia", tal como "uma nação libertina e indolente que nunca desviantes, neutralizando-os pelo isolamento e corrigindo-os atra- tivesse tido regras" (Castel, 1998: 75). A mendicância é, então, vés da trabalho (Castel, 1998). perseguida em toda a Europa pré-capitalista e para conjurar Essa preocupação administrativa com as populações tal ameaça, é criado o dispositivo da internação, constituído pobres logo fará emergir novos sujeitos sociais e novos objetos por uma vasta rede de casas de trabalho, casas de detenção e de intervenção. Nos séculos seguintes, e especialmente no perí- hospitais cuja função principal será a transformação dessas for- odo que ficou conhecido como mercantilista, todos os esforços ças inúteis ou potencialmente perigosas em força de trabalho.4 serão empenhados pelos Estados, por um lado, para manter sob controle a mão de obra disponível, e, por outro, punir os 4 Para as casas de trabalho eram enviados os mendigos aptos para o trabalho, os necessitados, os pequenos ladrões, as crianças e jovens rebeldes, as viúvas, os etc. Segundo Melossi e Pavarini, essas casas não eram um lugar 3 hospital só se tornará um dispositivo médico a partir do final do século de produção e sim, um lugar onde se aprendia a disciplina de produção. XVIII. Nesse momento, a internação seja em hospital, em casa de trabalho Além disso, essas instituições serviam como ameaça aos demais pobres, que ou em prisão exercerá função meramente eram obrigados a aceitar qualquer trabalho, sob pena de serem internados. 160 161</p><p>Outro personagem que emergirá dessa nova classifica- ritorial, os vagabundos são punidos também com banimento, ção e que merecerá um tratamento rigoroso é o vagabundo, o trabalho forçado nas galeras, ou a deportação para as colônias. que se assemelha aos mendigos por ser pobre e não estar tra- Castel nos explica o motivo deste tratamento especial: balhando, mas que deles se diferencia por não ter pertencimento A existência dessas populações instáveis, disponíveis para comunitário. Esta categoria tão ampla que, segundo Castel, até todas as aventuras, representa uma ameaça para a ordem o século XVI abarcará "pessoas que mendiguem sem motivo, pública. (...) Não só os vagabundos individualmente, co- velhacos, mendigos que simulem enfermidades, ociosos, metem delitos, mas também a insegurança que represen- luxuriosos, rufiões, tratantes, imprestáveis, indolentes, malaba- tam pode assumir uma dimensão coletiva. Pela formação ristas, cantores, exibidores de curiosidades, arrancadores de de grupos que expoliam o campo e desembocam às vezes dentes, vendedores de teriaga, jogadores de dados, prostitutas, no roubo a mão armada organizado, por sua participação nas emoções e nos motins populares, os vagabundos, sepa- e até operários, ou rapazes barbeiro", a partir dos séculos seguin- rados de tudo e vinculados a nada, representam um peri- tes irá ganhando contornos mais precisos (Castel, 1998: 120). go, real ou fantasmático, de desestabilização social... Assim, em 1566 um decreto real estabelecerá que: Afinal, vagabundos são pessoas ociosas, preguiçosas, pessoas que quem nada tem e não está ligado a nada é levado a fazer não pertencem a nenhum senhor, pessoas abandonadas, com que as coisas não permaneçam como são. Quem nada pessoas sem domicílio, oficio e ocupação (Castel, 1998: 121). tem para preservar corre o risco de querer apropriar-se de E outro de 1701 declarará que: tudo. A função da classe perigosa, que em geral é atribuí- da ao proletariado do século XIX, já é assumida pelos vagabundos e pessoas sem fé nem lei (são) aqueles que não vagabundos. (...) Realmente, saber que a maioria dos indi- têm profissão, nem oficio, nem certo, nem lugar víduos rotulados de mendigos ou vagabundos era, de fato, para subsistir e que não são reconhecidos e não podem formada por pobres coitados levados a tal situação pela valer-se da recomendação de pessoas dignas de fé que ates- miséria e pelo isolamento social, pela falta de trabalho e tem sobre a sua boa conduta e bons costumes (Castel, 1998: pela ausência de suportes sociais, não podia desembocar 121). em nenhuma concreta no quadro das sociedades Na mesma época aparecerá farta legislação que deter- pré-industriais. Em contrapartida, estigmatizando ao má- minará como os vagabundos devem ser tratados: na Inglaterra ximo os vagabundos, criavam-se os meios regulamentares de 1547 os que se recusam a trabalhar são entregues a senho- e policiais para enfrentar os tumultos pontuais provocados pela reduzida proporção de vagabundos verdadeiramente res como escravos por dois anos, se reincidem uma vez são perigosos. Podia-se também, sem dúvida, pesar um pouco sentenciados à escravidão pelo resto da vida e se voltam a rein- sobre que, então, funcionava como mercado de traba- cidir são condenados à morte (Castel, 1998). Na França de lho, tentando obrigar inativos a se empregarem por qual- meados do século XVI, os vagabundos são obrigados a traba- quer valor a fim de fazer os salários cairem (Castel, 1998: lhar na construção de fortalezas e estradas. Em Bruxelas, um 138-139). decreto estabelece punição para os trabalhadores que deixem Mas, precisaremos chegar ao século XVIII para assistir seus senhores para tornarcm-se mendigos ou vagabundos ao processo de especialização das instituições encarregadas do (Rusche e Kirchheimer, 1999). Devido a sua situação extrater- seqüestro das populações marginalizadas. Nesse momento em 162 163</p><p>que cresce a população miserável,5 desenvolve-se a produção e fazer com que a plebe não proletarizada aparecesse aos multiplicam-se as riquezas e as propriedades, é preciso aperfei- olhos do proletariado como marginal, perigosa, imoral, çoar os instrumentos de controle social. Com o aparecimento ameaçadora para a sociedade inteira, a escória do povo, o dos grandes armazéns que estocam matérias-primas e mer- rebotalho, a 'gatunagem'; para a burguesia de impor cadorias passíveis de serem roubadas e das grandes oficinas ao proletariado, pela via da legislação penal, da prisão, mas também dos jornais, da 'literatura', certas categorias que reúnem centenas de trabalhadores descontentes, e onde há da moral dita 'universal' que servirão de barreira ideológi- máquinas que podem ser danificadas nasce uma nova neces- ca entre ela e a plebe não proletarizada (Foucault, 1992: sidade de segurança e aparecem os primeiros rudimentos da 50-51). Polícia (Foucault, 1993). Os crimes contra a propriedade pas- sam a prevaleccr sobre os crimes de sangue e os criminosos do Ou ainda nas palavras do autor: século anterior, geralmente "homens prostrados, mal alimenta- Já que a sociedade industrial exige que a riqueza esteja dos, levados pelos impulsos e pela cólera" (Castel, 1998: 71), diretamente nas mãos não daqueles que a possuem mas são agora substituídos por bandos profissionalizados e organi- daqueles que permitem a extração do lucro fazendo-os tra- zados. Para fazer frente a esse novo quadro e ao aparecimento balhar, como proteger esta riqueza? Evidentemente por uma de formas embrionárias de organização das massas trabalha- moral rigorosa: esta formidável ofensiva de moralização doras, novas leis repressivas são criadas, e a Justiça que du- que incidiu sobre a população do século XIX. (...) Foi abso- lutamente necessário constituir o povo como um sujeito rante toda a alta Idade Média funcionara através de tribunais moral, portanto separando-o da portanto arbitrais vai sendo progressivamente substituída por um con- separando nitidamente grupo de delinqüentes, mostran- junto de instituições controladas pelo Estado, que terá a fun- do-os como perigosos não apenas para os ricos, mas tam- ção de administrar as massas revoltosas e assegurar a ordem bém para os pobres, mostrando-os carregados de todos os pública. Começa, então, a ser constituído o embrião daquilo vícios e responsáveis pelos maiores perigos (Foucault, 1992: que se tornará aparelho judiciário. 132-133). A este respeito, Foucault dirá que: Ao mesmo tempo, na passagem da sociedade feudal- A partir de uma certa época, o sistema penal, que tinha para a nova sociedade capitalista liberal nasce uma essencialmente uma função fiscal na Idade Média, dedi- nova forma de punir. Nesse momento, que corresponde à for- cou-se à luta anti-sediciosa. A repressão das revoltas popu- mação de um novo modo de exercer poder, que está em lares tinha sido até então sobretudo tarefa militar. Foi em seguida assegurada ou melhor, prevenida, por um sistema jogo é a emergência de uma outra forma de gerir os homens complexo (Foucault, 1992: 50). que implica uma vigilância individual, perpétua e ininterrupta, ou seja na adoção de uma nova tecnologia, denominada por Para cle, a Justiça, a serviço da burguesia, assumirá como Foucault de disciplina. Esta tecnologia, que será colocada em um de seus papéis: prática nas escolas, nos conventos, nas nos hospitais e nos quartéis, atravessará a sociedade de ponta a ponta consti- 5 Segundo Castel, no período revolucionário havia na França dez milhões de tuindo quadros administráveis que permitirão a transformação indigentes, trezentos mil mendigos, cem mil vagabundos, cento e trinta mil das multidões confusas e perigosas em multiplicidades organi- menores abandonados e alguns milhares de loucos. 164 165</p><p>zadas e Segundo Foucault, é quando as classes a noção de infração, que - diferentemente do dano ou ofensa dominantes descobrem que do ponto de vista da economia do que diziam respeito apenas ao acusado, à vítima e ao soberano poder é "mais eficaz e mais rentável vigiar que punir" (Foucault, lesado em sua autoridade implica o ataque ao próprio esta- 1992: 130). do, à sua lei, e à sociedade. E o criminoso passa a ser visto Trata-sc, segundo como alguém que voluntariamente rompeu o pacto social de- de uma nova economia do poder de castigar, vendo, portanto, ser considerado como inimigo da sociedade assegurar uma melhor distribuição dele, [de fazer com que] (Foucault, 1996). Além disso, a pena passa a ser quantificada e seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser tempo se torna a sua medida principal. Para essa sociedade exercidos em toda parte de maneira contínua e até mais onde a liberdade é um dos maiores bens, a punição predomi fino grau do corpo social, [de torná-lo] mais regular, mais nante será a suspensão temporária da liberdade. A prisão tor mais constante e mais bem detalhado em seus efei- na-se a punição por mas diferente da velha tos (Foucault, 1993: 75). masmorra do período anterior, a prisão-observatório de agora Para a nova ordem jurídico-administrativa, fundada no permitirá punir e ao mesmo tempo isolar, vigiar, controlar, contrato, onde a punição dos criminosos deixa de ser uma prer- conhecer e corrigir. Neste momento a obra de enquadrar e rogativa do para tornar-se um direito da sociedade e em individualizar a população marginal se verá completa: se para que cidadão é sujeito e ao mesmo tempo assujeitado, o senso comum a prisão nasce para dar conta da o prejuízo que um crime traz ao corpo social é a desordem para esta leitura, que podemos chamar de a delin- que introduz nele: o escândalo que suscita, exemplo que será um da prisão. Dito pelo pró- dá, a incitação a recomeçar se não é punido, a possibilida- prio Foucault: de de generalização que traz consigo. Para ser útil, o cas- tigo deve ter como objetivo as do crime, A técnica penitenciária e o homem delinqüente são de al- entendidas como a série de desordens que este é capaz de gum modo irmãos gêmeos. Ninguém creia que foi a desco- (Deve) calcular uma pena em função não do cri- berta do delinqüente por uma racionalidade que trouxe para as velhas prisões o aperfeiçoamento das técni- me, mas de sua possível repetição. Visar não à ofensa pas- sada mas a desordem futura (Foucault, 1993: 85). cas penitenciárias. Nem tampouco que a elaboração inter- na dos métodos penitenciários terminou trazendo à luz a Com o fim dos suplícios que dominaram o sistema de existência 'objetiva' de uma que a abstração punições no período feudal, nasce uma nova maneira de con- e a inflexibilidade judiciárias não podiam perceber. Elas ceber as penas que já não visará tanto ao corpo e sim à as duas juntas e no prolongamento uma da A partir de então, de acordo com princípio de igualdade outra como um conjunto tecnológico que forma e recorta jurídica, todos devem ser tratados de forma igual perante a lei o objeto a que aplica seus instrumentos (Foucault, 1993: 226). e não há crime se não houver uma lei que o Aparece 7 Até então, a prisão não era vista como uma punição em si, servindo apenas No período feudal, os castigos não estavam definidos em lei, ficando por ao propósito de manter sob guarda, evitando a fuga, alguém que se queria conta da vontade do senhor. punir por outros meios. a 166 167</p><p>Os infratores, uma vez captados pelas malhas da lei, se- O delinqüente se distingue do infrator pelo fato de não ser rão submetidos a uma operação que antes de visar corrigi-los, tanto seu ato quanto sua vida o que mais caracteriza. vai transformá-los em delinqüentes. Não importa se o infrator (...) por trás do infrator a quem inquérito dos fatos pode em questão foi premido pela necessidade, ou foi flagrado no atribuir a responsabilidade de um delito, revela-se cará- seu único crime. A máquina penitenciária irá tragá-lo por uma ter delinqüente cuja lenta formação transparece na inves- de suas entradas possíveis e quando o devolver, se um dia o tigação biográfica. A introdução do é importante fizer, já será na qualidade de delinqüente. Marcados para scm- na história da penalidade. Porque ela faz existir o 'crimi- noso' antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste". pre pela infâmia; afastados do seu meio social, em geral por (...) "O se distingue também do infrator pelo muitos anos e irreversivelmente; segregados em meio a crimi- fato de não somente ser o autor de seu ato (autor respon- nosos de todos os tipos, com diferentes graus de habitualidade sável em função de certos critérios da vontade livre e cons- criminosa; ocupados com um trabalho inútil, que de nada lhes ciente), mas também de estar amarrado a seu delito por servirá quando voltarem à liberdade; submetidos a condições um feixe de fios complexos (instintos, pulsões, tendências, que só estimularão a sua revolta; perseguidos por seu estigma e temperamento). (Foucault, 1993: 223-224) por sua folha recusados no mercado de trabalho por Para captar essa nova objetividade, novos sujeitos serão seus antecedentes penais e, doravante sob a vigilância investidos de poder e novas técnicas de exame serão desenvol- te da polícia, os condenados à pena de prisão serão também vidas, mas antes será preciso esperar pela nova reforma penal, condenados à reincidência. inspirada pelas doutrinas positivistas. É quando será constituí- Segundo Foucault: do "um conhecimento positivo dos delinqüentes e de suas es- (O) aparelho penitenciário, com todo programa tecnoló- pécies, muito diferente da qualificação jurídica dos delitos e de gico de que é acompanhado, efetu(a) uma curiosa substi- suas circunstâncias" (Foucault, 1993: 225), que será conhecido tuição: das mãos da justiça ele recebe um condenado; mas como criminologia. aquilo sobre que ele deve ser aplicado, não é a infração, é Estamos agora no século XIX, período caracterizado pelas claro, nem mesmo exatamente o infrator, mas um objeto grandes revoltas e sublevações populares cuja disseminação deve um pouco diferente e definido por variáveis que pelo me- ser impedida a todo custo. Segundo Hobsbawn, "nunca na his- nos no início não foram levadas em conta na sentença, tória da Europa e poucas vezes em qualquer outro lugar, o pois só pertinentes para uma tecnologia corretiva. revolucionarismo foi tão endêmico, tão geral, tão capaz de se Esse outro personagem, que o aparelho penitenciário colo- espalhar por propaganda deliberada como por contágio espon- ca no lugar do infrator condenado, é tâneo", como nesse momento (Hobsbawn, 1998: 127). Não por (Foucault, 1993: 223) acaso, aparecem no período, diversos estudos sobre as massas Foucault nos fala da operação de transformação do in- e sua tendência a agir criminosamente, por contágio e irracional- frator em delinqüente em sua obra Vigiar e Punir. Destaca-se mente, levada por impulsos de Aumentam as ri- neste empreendimento O papel da investigação biográfica: 9 Os autores que se destacaram a esse respeito foram Gabriel Tarde e Le Bon. Ver em Barros, R.D.B., 1994, uma apresentação dessa discussão e sobre 8 Termo que no jargão policial significa atestado de antecedentes policiais. a constituição do modo-indivíduo, para a qual concorreram diversas institui- ções nascidas com a modernidade, como a escola, hospital, a prisão etc. 168 169</p><p>quezas e a produtividade, crescem as cidades, mas como sem- tivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comporta- pre, enriquecimento de poucos se faz com a espoliação a mento que elas representam (Foucault, 1996: 85). segregação dos demais. A mecanização das fábricas vai dei- Por sua vez, naturalizada a reincidência, esta servirá: xando sem trabalho inúmeros artesãos que antes figuravam entre de justificativa para uma rápida modernização das técni- os trabalhadores mais qualificados, engrossando ainda mais cas de controle e repressão utilizadas pelos aparelhos poli- contingente de indigentes. Armazéns, celeiros e fábricas são sa- ciais, dando lugar ao aparecimento de uma queados, máquinas são destruídas, as multidões tomam as ruas fica'. (...) Porém, os efeitos da modernização da polícia não e a massa trabalhadora começa a mostrar cada vez maior ca- se restringiram apenas ao 'mundo do crime'; logo se fize- pacidade de organização. Crescem a indigência e a criminali- ram sentir por todo o tecido social, principalmente junto dade, inflamando as discussões sobre o crime e o tratamento às camadas da população que exigiam maiores cuidados dos criminosos, e a penalidade, antes vista como uma reação em termos de contenção, vigilância e disciplinarização. (...) penal à infração, passa a funcionar como um meio de agir so- No bojo desse processo, apresentando-se inicialmente como bre comportamento e as disposições do infrator. Por sua vez, panacéia para problema da reincidência criminal, cons- tituiu-se uma das mais importantes técnicas de controle a reincidência passa a ser cada vez mais debatida nos meios jurídicos e afins: se em um primeiro momento fenômeno da que hoje nos atinge a todos: a identificação pessoal através das impressões digitais (Carrara, 1998: 64). reincidência permitia ver o fracasso da prisão em seus objeti- vos de corrigir criminoso e prevenir novos crimes, logo essa Para Foucault, se anteriormente julgar era estabelecer a falha será atribuída ao próprio delinqüente, visto como um tipo verdade de um crime e apontar o seu autor, agora objetivo é natural: "O efeito produzido pela prisão torna- julgar também as paixões, as vontades e as disposições. Isto se problema do delinqüente, ao qual a prisão deve dar uma quer dizer que punem-se as agressões, mas por meio delas as resposta adequada" (Foucault, 1997: 31). agressividades; os crimes sexuais, mas ao mesmo tempo, as Com a justificativa de que a punição deve visar a pre- perversões; os assassinatos mas através deles os impulsos e de- venção de novos crimes e evitar a reincidência, a pena agora sejos (Foucault, 1993: Importa agora, não apenas estabele- deve levar "em conta o que é o criminoso em sua natureza cer que lei sanciona esta infração, mas verificar, também, até profunda, o grau presumível de sua maldade, a qualidade in- que ponto a vontade do réu determinou o crime, se infrator trínseca de sua vontade" (Foucault, 1993: 90). Dessa forma, apresenta alguma periculosidade e de que maneira ele será como dirá Foucault em suas conferências melhor corrigido. Isso significa que a partir de agora, o juiz já não julgará sozinho. De um lado, a medicina mental será cha- toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, mada ao tribunal para decidir sobre a responsabilidade e a não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está cm conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que po- periculosidade do criminoso, avaliando se ele se encontrava em estado de loucura na hora do ato e se ele é acessível à SANÇÃO dem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujei- tos a fazer, do que estão na iminência de fazer. [Nasce] a PENAL e de outro, uma nova modalidade de técnicos avaliará noção de periculosidade (que) significa que indivíduo deve efeito da pena sobre o condenado e se ele merece ou não ser ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades posto em liberdade. Para responder a esses novos mandatos, e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efe- emergem diversas instituições, laterais à justiça, com as funções 170 171</p><p>de exame, vigilância e correção. E com elas, aparecem tam- do castigo é decidida e um certo saber sobre criminoso é bém os novos atores que doravante se encarregarão de produ- produzido, é também palco onde se definirá, de acordo com zir diagnósticos e prognósticos acerca do preso e de acompanhar as normas disciplinares vigentes em cada estabelecimento, que as transformações que estão se operando em seu comporta- novas punições se acrescentarão às determinadas por lei. É mento, tornando possíveis um conhecimento individualizado quando a tortura, muito usada no período feudal para fins de do criminoso e uma individualização das penas (por exemplo, prova, será ressignificada e ganhará novos Nesse lu- através da abreviação ou prolongamento das mesmas) que gar que funcionará como um microtribunal, os presos funcionarão como julgamentos adicionais. É quando, segundo observados dia e noite, avaliados, classificados, punidos ou re- Foucault, compensados. Segundo Foucault, dessa observação se extrairá todo aquele que, no antigo regime penal, per- um saber cujo objetivo não é mais determinar se alguma coisa mitia aos juízes modular a pena e aos eventual- se passou ou não, como fazia inquérito no período anterior, mente dar fim a ela, todo aquele arbitrário que os códigos mas sim avaliar se um indivíduo se comporta de acordo com a modernos retiraram do poder judiciário, vemo-lo se norma, se está progredindo ou não, se deve ser punido ou merece reconstituir, progressivamente, do lado do poder que gere ser recompensado. Trata-se, pois, de: e controla a punição (Foucault, 1993: 219-220). um novo saber, de tipo totalmente diferente, um saber de No início do século XIX estabelece-se uma repartição entre que compete à medicina e vigilância, de exame, organizado em torno da norma pelo que compete à justiça. Esta definição, tão importante para destino do infrator e o futuro dessas duas instituições fará nascer uma nova esfera de competência a perícia um novo controle dos indivíduos ao longo de sua existência. Esta é saber a medicina mental um novo tipo de estabelecimento o e um novo a base do poder, a forma de saber-poder que vai dar lugar personagem o louco. A perícia que permitirá avaliar a responsabilidade penal e identificar não às grandes ciências de observação como no caso do até que ponto a vontade do infrator determinou a infração operação que permitirá distin- guir loucos e criminosos em pouco tempo deixará de se interessar apenas pelo que eles inquérito, mas ao que chamamos de ciências humanas: fizeram para se com que eles podem vir a fazer (Castel, 1978: 162-163). Psiquiatria, Psicologia, Sociologia etc. (Foucault, 1996: 88). Para Foucault, essa será a chave de muitos dos excessos que a autonomia da instância carcerária Segundo suas pró- prias palavras: 0 dispositivo da periculosidade esse excesso é desde muito cedo constatado, desde nasci- mento da prisão, seja sob a forma de práticas reais, seja O fim do século XIX é marcado por intensas discussões sob a forma de projetos. Ele não veio, em seguida, como sobre crime, a criminalidade e as penas. Criticada por não um efeito A grande maquinaria carcerária está estar conseguindo dar uma resposta eficaz ao aumento da cri- ligada ao próprio funcionamento da prisão. Podemos ver minalidade e da reincidência, a ESCOLA CLÁSSICA, que consa- sinal dessa autonomia nas violências 'inúteis' dos guar- das ou no despotismo de uma administração que tem A ESCOLA baseada nos ideais do iluminismo, atravessou parte do século XVIII e parte do século XIX. As obras principais desse período foram Dos Delitos e das Penas, de Cesare privilégio das quatro paredes. (Foucault, 1993: 220) Beccaria (1764) e Programa do Curso de Direito Penal de Francesco Carrara (1859). Para os clás- prisão, enquanto instrumento de modulação da pena, sicos, criminoso é aquele que, no exercício do livre arbítrio que implica na perfeita capa- livre cidade de entender a ilicitude de um ato e de agir pautado por esse entendimento viola adquire um poder tal, que além de ser lugar onde a duração conscientemente a norma penal, sendo portanto inteiramente responsável por seus atos. das e Nesse momento, os loucos são colocados fora do Direito Comum. Para a maior parte legislações à época eles estão isentos de pena. 172 173</p><p>grara a igualdade jurídica e a liberdade individual, começa a A oportunidade foi dada com dispositivo da periculo- perder espaço para as idéias dos sidade e a incorporação das medidas de segurança ao rol das liberais que tinham como objeto os delitos, os adeptos da Esco- sanções penais. Desde o século anterior, à medida em que a la Positiva de Direito Penal voltam-se para o homem delin- estrutura da sociedade contratual se generali- qüente e as características que os distinguem dos Com zava, os mendigos, vagabundos e criminosos vinham sendo cada esse objetivo tentam individualizar os fatores que condicionam vez mais reprimidos. Como vimos acima, estes eram indiscri- o comportamento criminoso e, apoiados em pressupostos minadamente captados pelas teias de uma mesma rede que deterministas e na noção de hereditariedade, passam a criticar cada vez mais se estendia pela sociedade. A partir do século a noção de livre arbítrio e a questionar a responsabilidade dos XIX, no entanto, essa malha começa a se especializar. Pouco a criminosos. Segundo cles, a liberdade de escolha não podia ser pouco, repressão e assistência se dissociam, inúmeras prisões considerada relevante no julgamento de um ato criminoso, uma são construídas e os loucos são internados em locais especiais. vez que comportamento humano estava predeterminado por Estes últimos, vistos como incapazes de trabalhar e de respon- causas inatas. No entanto, se os criminosos não podiam ser der por seus atos, ao mesmo tempo inocentes e potencialmente considerados, sob esse ponto de vista, moralmente responsá- perigosos, que não transgride(m) a uma lei precisa, mas pode(m) violar veis, deviam ser tratados como socialmente responsáveis pelo a todas passam a ser tratados como um foco especial de desor- perigo que podiam entendendo que a soci- dem. Segundo Castel, por sua singular imunidade às regras do edade tinha direito de se defender desse perigo e que as leis mundo do trabalho e da lei, era como se ameaçassem a pró- não tinham mesmo efeito de intimidação sobre os diferentes pria estrutura que presidia a organização da sociedade. Para homens, positivistas propõem que é preciso criar alguma administrá-los, portanto, era preciso construir-lhes um estatuto sanção para neutralizar os delinqüentes natos, reservando as diferente. Não podendo gerir seus bens, deviam ser tutelados, penas tradicionais aos criminosos ocasionais, de não sendo passíveis de sanção, deviam ser submetidos à serem disciplinados e incorporados ao mercado de internação. Com o movimento alienista começam a ser consti- Na verdade, de acordo com Sérgio Carrara, tuídas as bases teóricas que justificarão a seqüestração dos lou- (a)través do crime, juristas, criminalistas, criminólogos, cos, com base em sua imprevisibilidade, amoralidade e suposta antropólogos criminais, médico-legistas, psiquiatras, todos tendência para crime. Portadores de uma alienação, muitas fortemente influenciados por doutrinas positivistas ou vezes só visível aos especialistas, os diagnosticados como cientificistas, discutiam uma questão política maior: os li- monomaníacos passam a ser objetos de suspeição e devem ser mites 'reais' e necessários da liberdade individual, que ex- internados para evitar que cometam crimes. A loucura é então cessivamente protegida nas sociedades liberais, apontada criminalizada e os alienistas passam a ser chamados aos tribu- como causa de agitações sociais ou, ao menos, como em- pecilho à sua resolução. (...) Cumpria então reformar códi- nais para atuar nos crimes sem causa racional aparente. Cabe- gos e leis para assentar as bases de uma lhes nesse momento distinguir louco do criminoso, respon- ampla reforma institucional que fornecesse ao Estado e às sável do irresponsável, os passíveis de punição ou necessitados suas organizações os instrumentos necessários para uma de tratamento (Castel, 1978). intervenção social mais incisiva e eficaz (Carrara, 1998: 65). 174 175 alienistas</p><p>Com a crise do liberalismo, cresce a contestação da no- ção de livre arbítrio e a criminalidade passa a ser considerada uma vez que os degenerados não podiam como uma realidade ontológica. Os positivistas passam a tra- escolher não e via de regra apresentavam uma ten- balhar com a tese da predisposição hereditária para o delito e dência precoce para o mal, só podiam ser considerados irres- os traços reveladores da personalidade criminosa passam a ser ponsáveis. Além disso, como essa anormalidade costumava se manifestar em diversas formas sintomáticas e com diferentes procurados na biografia, no meio social e/ou na constituição fisica do réu. O crime é visto como a manifestação de uma graus de gravidade, haveria entre o indivíduo normal e o dege- degeneração, anormalidade ou atavismo ou como o sintoma nerado um continuum de inúmeras 10 Todos os de uma personalidade perigosa. O homem criminoso torna-se tipos, no entanto, deveriam ser considerados igualmente alie- nados. objeto de investigação científica e passa a ser visto como um elemento negativo e disfuncional ao sistema social, portador de Seguindo adiante no século, aparecem as teses de uma especial tendência ao crime, de quem a sociedade deve Lombroso (1870), que propõe a existência dos criminosos na- e o crime como um fenômeno atávico. De forma seme- defender-se. Assim, diferentemente da Escola Clássica que via lhante aos degenerados, este novo tipo também não podia es- na pena um meio de defesa contra o crime atuando como um dissuasivo, uma contramotivação à repetição da infração, a pena colher ser honesto, pois crime fazia parte da sua natureza e para a Escola Positivista tem como função a proteção da soci- cra resultado de sua inferioridade biológica. Além da nature- edade contra Isso significa que enquanto para a za criminosa, esses homens tinham como característica uma doutrina anterior, o fim da pena seria a eliminação do perigo série de sinais e atributos que os identificavam. Destacavam-se social que adviria da impunidade do delito e a reeducação do pela ausência de pelos, os braços excessivamente compridos, os condenado seria um resultado acessório, para o Direito Penal maxilares superdesenvolvidos, a vaidade, a imprevidência, a Positivo a pena como meio de defesa social, pretende intervir instabilidade emocional, a imprudência, a impulsividade, a pre- diretamente sobre o indivíduo criminoso, reeducando-o, ou pelo guiça, caráter vingativo, a crueldade, a tendência para a obsce- menos (Bissoli Filho, 1998). nidade, para o jogo, para a bebida e para crime, a homosse- Em decorrência dessas os positivistas propu- xualidade, a insensibilidade à dor, o gosto pelas gírias e tatuagens, nham que para orientar a boa aplicação da pena as sanções entre outros. Além disso, como eram incapazes de sentir re- deveriam ser individualizadas e uma nova modalidade de téc- morso ou culpa, entre eles a reincidência era a regra. nicos devia ser chamada ao tribunal para examinar crimino- e avaliá-lo segundo tipo de criminalidade apresentada. Dentre os autores que mais se destacaram nesse período, qua- 10 Morel incluía entre os degenerados os gênios, os imbecis, os excêntricos, os tro merecem menção especial: loucos, os santos, os suicidas, os imorais, os perversos sexuais, os criminosos, O primeiro foi Morel, que apresenta sua tese sobre a entre outros (Carrara, 1998: 81-104). degeneração em 1857. Segundo o autor, esta condição engen- 11 Houve também quem propusesse a categoria do vagabundo nato e até de drava verdadeiros tipos antropológicos desviantes, hereditaria- pobre nato. A primeira foi proposta pelo Professor Benedikt, em 1891, quando ele diz que existem e raças inteiras, nos quais a vagabundagem é mente destinados a uma vida imoral, à alienação e ao crime. congênita, e, a segunda foi proposta por Alfredo Niceforo, em 1907 (Darmon, 1991: 73). 176 177</p><p>Por sua vez, Garófalo segue os passos de Lombroso, mas a perversidade constante e ativa do delinqüente e a quan- orienta sua pesquisa para os aspectos da personalidade envolvidos tidade de mal previsto que se deve temer por parte do no comportamento criminal. Em sua obra de 1878 propõe que mesmo (Garófalo apud Mecler, 1996: 26). as causas do delito devem ser procuradas no delinqüente, ou Chegamos então em Ferri, o mais importante represen- em suas predisposições hereditárias, e atribui a tendência ao tante da Escola Positiva, que atribuindo às diferentes classes delito a um tipo de anomalia moral, curável ou incurável, que sociais uma natureza específica tratando as desigualdades nos casos mais graves privaria o seu portador dos sentimentos sociais de forma espantosamente preconceituosa divide as ca- morais mais elementares. Manifestando-se contrariamente ao madas sociais em três categorias: estabelecimento de penas fixas, determinadas conforme o deli- a classe moralmente mais elevada que não comete delitos to, Garófalo propõe uma diferenciação das penas que leve em porque é honesta por sua constituição orgânica, pelo efeito conta os caracteres psicológicos dos delinqüentes. Estabelecen- do senso moral (...) (pelo) hábito adquirido e hereditaria- do uma distinção entre os delinqüentes típicos e inassimiláveis e os que mente transmitido (...) mantido pelas condições favoráveis são de adaptação, propõe um sistema de penas em que de existência social (...) Outra classe mais baixa (que) é composta de indivíduos refratários a todo sentimento de a eliminação do delinqüente, absoluta (pena de morte) ou rela- honestidade, porque privados de toda educação e impreg- tiva (prisão temporária, deportação ou relegação), cobre a mai- nados (...) da miséria material e moral (...) (que) herdam de or parte das sanções. Concordando com Lombroso, que atribui seus antepassados (...) A terceira classe (dos que) não nas- à pena capital o mérito de melhoramento da raça, e afirmando ceram para delito, mas não são completamente honestos que há indivíduos que são incompatíveis com a civilização, (Ferri apud Rauter, 29). defende a pena de morte para os que se revelarem destituídos Seguindo os passos dos seus antecessores, Ferri também do sentimento de piedade e refere que procura as razões do crime nos homens, afirma a anormalida- esses delinqüentes representam verdadeiras monstruosida- de dos e abraçando a causa da defesa social avan- des psíquicas e não podem inspirar a ninguém a simpatia, ça na proposta de individualização e indeterminação das sanções que é ponto de partida o fundamento da piedade. Es- insiste no estudo da personalidade do criminoso para a ava- ses indivíduos, colocam-se fora da humanidade, (...) que por isso mesmo, tem o direito de suprimi-los (Garófalo, liação de sua periculosidade. Para o autor, somente a adapta- 1997: 163). ção das sanções à natureza e à periculosidade do delinqüente pode fornecer à sociedade a arma necessária ao sucesso da luta Para distingui-los e determinar a medida punitiva mais ade- contra crime. Segundo suas próprias palavras: quada a cada caso recomenda a avaliação do grau de temibi- do criminoso que ele define como: na justiça penal de ver não se o delinqüente ofen- deu ou não 'um ou antes 'um bem jurídico' e trans- grediu ou não 'a ou antes 'a norma penal', mas de procurar como e em virtude de que cometeu essa ação criminosa e qual a periculosidade que revelou em tal 12 Segundo Delgado esse conceito aparece pela primeira vez em Feuerbach, ação e quais as probabilidades que apresenta de voltar, no ano de 1799, referindo-se a "qualidade de uma pessoa que faz presumir depois da condenação, a uma vida regular e por isso qual fundadamente que violará Direito" (Delgado, 1992: 94). 178 179</p><p>sanção repressiva que lhe é mais conforme, não crime' Pouco a pouco, a idéia da periculosidade vai concernindo por ele levado a efeito, mas à sua de delin- a todos os criminosos e potenciais, de tal maneira pelo crime praticado. que já não é necessário cometer um delito para ser considera- Ainda segundo o autor: do perigoso. Já que agora O verdadeiro fim do direito penal é Esta distinción de los delincuentes según su peligrosidad a defesa social, é possível justificar a intervenção no seio das deriva de que su conducta antisocial aparece determinada classes perigosas sem esperar pelo delito (Bissoli Filho, 1996: por tendencias congénitas por atrofia del sentido moral, 136-137). por impulsos pasionales, o, en fin, por influjos prevalentes Criminalizando a loucura e patologizando o crime, em del ambiente familiar y social y por las deficiencias y defectos pouco tempo este sistema elimina toda a distinção entre penas de los mismos sistemas carcelarios que son como estufas e medidas de segurança e propõe unificá-las por meio das san- para el cultivo de los microbios criminales. Y sólo en virtud ções por tempo indeterminado. Segundo Rauter, neste momento de esta distinción y clasificación psico-antropológica de los delincuentes le será posible al legislador realizar en la de implantação da criminologia, não era tanto a recuperação práctica, con las sanciones represivas, aquel doble objetivo do criminoso que importava, mas a necessidade de defender a de la defensa social y de la corrección de los condenados, sociedade desses degenerados morais. As sanções passam então que los sistemas penales hasta ahora en uso no han podido a atuar como uma espécie de seleção artificial, eliminando os conseguir, por estar orientados y aplicarse siguiendo el degenerados, os atávicos que a natural deixou escapar criterio exterior de la gravedad de los delitos y no el de la (Rauter, 1982: 30). relación íntima de las diferentes condiciones personales de Quando, enfim, as idéias positivistas começam a ser com- los culpables (Ferri apud Ribeiro, 1998: 16). batidas, surge a concepção dualista do Direito Penal (ou siste- Foi grande o efeito que todas essas proposições produzi- ma do duplo-binário), que, mais dura ainda que a anterior, ram nos meios jurídicos e científicos do mundo ocidental. Em fará coexistir, durante algum tempo, os dois tipos de resposta 1880 é fundada a União Internacional de Direito Penal (UIDP), penal: a pena como retribuição ao crime e a medida de segu- que em pouco tempo se torna a maior difusora dos princípios rança a ser acrescentada à primeira nos casos considerados peri- da defesa social. Nos congressos que se seguem, conceito de Por fim, novas mudanças são introduzidas e o sistema periculosidade é desenvolvido, e em 1905 já se levanta a ques- conhecido como duplo-binário é substituído pelo vicariante. Com tão da periculosidade dos reincidentes. Em 1907-1908 incluem- isso, penas e medidas de segurança passam a ser consideradas se os loucos e deficientes mentais entre os perigosos, em 1910 sanções de natureza diversa, aplicadas para situações diversas: discute-se problema da conciliação entre esta noção e as ga- as primeiras para os imputáveis e as segundas reservadas ape- rantias de liberdade individual, mas no mesmo ano, se decide nas para os inimputáveis. pela de estabelecer medidas especiais de segurança contra os delinqüentes considerados perigosos. No Congresso necess proteger a > de de 1913, é feita nova definição das categorias que devem ser consideradas perigosas, incluindo agora os alcoólicos, os men- 13 Este sistema foi adotado pelo Código Penal italiano de 1930 e inspirou digos e os vagabundos (Bruno apud Bissoli Filho, 1996: 132). diversas outras legislações penais. No nosso país, foi adotado em 1940, até a reforma de 1984. 180 181</p><p>As idéias positivistas vão então perdendo espaço, as pe- temos visto, contemporancamente, nas doutrinas de segurança nas mantêm seu caráter de sanção retributiva, com tempo pré- nacional das ditaduras militares latino-americanas, nas estabelecido e calculado de acordo com a gravidade do crime, cas transnacionais de combate às drogas na guerra ao ter- e universo de pessoas passíveis de receberem sanções por tempo rorismo. indeterminado reduz-se até se limitar aos loucos infratores. Mas, apesar de ter caído em descrédito, a Escola Positiva de Direito Penal deixará entre nós várias heranças: continuarão a fazer A subversão e a droga na América Latina parte de nossas legislações princípio de individualização das penas; os exames que visarão O estudo da personalidade e his- Chegamos então ao século XX quando, sob impacto tória de vida dos condenados e que avaliarão a probabilidade das duas grandes guerras mundiais, é criada a Organização de estes virem a reincidir no delito (exame que será conhecido das Nações Unidas (ONU). Pouco a pouco, são desenvolvidos como criminológico); conceito de periculosidade e as medi- diversos instrumentos legais para a proteção internacional dos das de segurança por tempo indeterminado. Além disso, como direitos humanos, entre os quais viriam a se destacar a Decla- legado dessa escola se manterá a tradição, inteiramente ração Universal de Direitos Humanos, os Pactos Internacio- maniqueísta, de perceber os que delinqüem como um outro pe- nais de Dircitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, rigoso, pernicioso à sociedade, desumano, verdadeiro monstro Sociais e Culturais, a Convenção contra a Tortura e outros e por isso incapaz de viver entre os homens de bem.. Dessa Tratamentos, Desumanos e Degradantes, entre maneira, será sempre possível justificar para eles os tratamen- Paralelamente, na contramão desse movimento, a partir dos tos mais cruéis e ainda garantir a aprovação da PÚBLI- anos sessenta, são implantadas ditaduras militares em diversos CA. Afinal, como nos diz Chomsky, "quando você oprime alguém países das Américas. a alegação da necessidade de fortale- precisa alegar alguma coisa. A justificativa acaba sendo nível cer o Estado contra o comunismo, mas em verdade para ga- de depravação e vício moral do oprimido (...). Examine a con- rantir ambiente necessário ao desenvolvimento do capitalismo, quista britânica da Irlanda, a primeira das conquistas coloniais assiste-se à emergência de uma nova doutrina de segurança ocidentais. Ela foi descrita nos mesmos termos que a conquista da África. Os irlandeses eram uma raça diferente, não eram (Doutrina de Segurança Nacional), que elegerá como inimigo humanos, não eram como nós. Eles tinham que ser esmagados e destruídos" (Chomsky, apud Coimbra, 2001: 63). É que Progressivamente são também estabelecidos diversos dispositivos internacio- As MATRIZES DESTE PENSAMENTO vão se reproduzir nos discursos neopositivistas de corte pseudo- sociológico, para os quais, mascarando os determinantes socioeconômicos desse tipo de pro- nais para garantir um tratamento legal e humano para os presos. Ver as dução e partindo-se da categoria de normalidade para definir a ordem e da anormalidade Regras Mínimas da ONU para Tratamento dos Presos de 1955, Código para definir o que seria a desordem ou da existência de uma patologia social para explicar os de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei de comportamentos e situações sociais 'desviantes' (como morar em áreas irregulares, exercer 1979 e os Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qual- atividades informais ou praticar atos considerados delituosos), crime seria então resultado quer Forma de Detenção ou Prisão de 1988, em Saúde e Direitos Humanos nas "de um ambiente disfuncional patológico, como um foco irradiador do contágio de um mal Prisões, manual publicado pela Secretaria de Humanos e Sistema que se alastra para as 'áreas da sociedade, se os mecanismos de autodefesa Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro em parceria com Conselho da imunológica falharem na sua tarefa de proteção do 'corpo social" (Dornelles, 1997). Comunidade da Comarca do Rio de Janeiro. 182 183</p><p>número um a figura do subversivo. As polícias são militarizadas engordando as estatísticas Adaptando-se ao e aparelhadas para combate a um inimigo interno e a tortu- receituário neoliberal, as políticas de segurança latino-america- ra, que nunca deixara de ser utilizada contra as parcelas nas migram da ideologia de segurança nacional para a ideolo- desfavorecidas da sociedade, é institucionalizada e passa a ser gia da segurança urbana e elegem um novo inimigo comum, ensinada nos quartéis e a ser instrumentalizada para o controle agora proveniente das camadas mais pauperizadas da socieda- da subversão. As legislações são reformuladas à luz da nova de. Nesse novo contexto, as drogas se convertem na mais re- doutrina e as penas de morte e de banimento voltam a fazer cente justificativa para se criminalizar os pobres e jovens e parte dos Códigos alimentam as novas campanhas de alarmismo social (Batista, [Mais recentemente, já com as reformas neoliberais, o 1997; Baratta, 1998). capitalismo ganha novo impulso e passa a dispensar os ditado- Para esta nova ordem, se revela muito mais funcional res de plantão. As novas regras da economia aumentam as ta- alimentar medo e conflito, quebrando todas as antigas for- xas de desemprego e emprego precário, tornando sem efeito as mas de sociabilidade e Se como nos diz Bauman, antigas estratégias de luta dos trabalhadores e lançando em em breve 20% da força de trabalho será suficiente para mover situação de total vulnerabilidade um contingente antes inima- a economia, o que fazer com os outros 80% da faixa vulnerá- ginável de pessoas. Não tendo mais como reintegrá-los ao vel ou excluída, que já não têm mais utilidade? É preciso gerar mercado formal de trabalho os Estados neoliberais inventam novos mecanismos reguladores da insatisfação da sociedade, outra função para as prisões. Segundo Bauman, novos instrumentos de controle social, sendo os principais o encarceramento e a manipulação da insegurança e do nessas condições, o confinamento não é nem escola para o emprego nem um método alternativo compulsório de au- medo (Bauman, 2000). Não é à toa que em nossas sociedades mentar as fileiras da mão-de-obra produtiva quando fa- volta a crescer tanto o aparelho penal C buscam-se novas opor- lham os métodos comuns e preferidos para tunidades para a reedição de legislações penais voltadas para a levar à órbita industrial aquelas categorias particularmente defesa da segurança Como nos diz Zaffaroni, rebeldes e relutantes de livres'. atuais circuns- importante é ter um pretexto para tornar mais repressivo tâncias, o confinamento é antes uma alternativa ao empre- controle social punitivo" (Zaffaroni, 1997: 33-34). go, uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à produ- ção e para a qual não há trabalho 'ao qual se reintegrar' (Bauman, 1998,119-120). Sem perspectivas de vida, legiões de jovens passam a ser 16 De acordo com os dados do referentes ao ano 2000, 96% da empurradas para o tráfico, morrendo antes dos 25 anos ou população prisional de nosso Estado é constituída por homens, 62,61% por pardos e negros, 67,12% por analfabetos ou apenas alfabetizados, 37,93% tem idade inferior a 25 anos e 59,43% está presa por porte (5,08%) ou 15 A esse respeito ver Arquidiocese de São Paulo, Brasil: nunca tráfico de drogas (54,35%). RJ: Vozes, 1985 e Clínica e Política: subjetividade e violação dos direitos humanos, 17 Para Chomsky as drogas e mais recentemente o terrorismo seriam as no- organizado por Cristina Rauter, Eduardo Passos e Regina Benevides, Rio vas ocasiões para a reedição de legislações penais voltadas para a defesa da de Janeiro, Te Corá, 2002. segurança nacional e para a identificação dos novos inimigos comuns. 184 185</p><p>por esses novos desígnios, as políticas de segu- como operador acirra-se a divisão entre a legal', bem rança pública intensificam controle, encarceramento e até cuidada, ordeira e civilizada onde vivem as pessoas de bem, extermínio das classes vistas como perigosas, atingindo especial- cumpridoras de seus deveres, e a 'cidade ilegal', da sujeira, mente os pobres, jovens e negros, moradores das áreas pobres. desordem e da barbárie, onde SC 'escondem' os criminosos. Para sociedades excludentes e elitistas, onde "segurança públi- os bairros populares as favelas com quartel ca não significa segurança e bem-estar do público mas, ao con- do crime e passa-se a temer a rua e a ver em todo trário, expressa a manutenção de uma ordem desigual e injusta", desconhecido especialmente se cle for jovem, pobre e negro uma polícia violenta e corrupta é absolutamente funcional uma ameaça. uma situação absolutamente con- (Dornelles, favelas e bairros populares são inva- flagrada, onde os habitantes da cidade ilegal ameaçam os di- didos a qualquer hora e sob qualquer pretexto por uma polícia reitos e a vida dos habitantes da cidade legal. Através da lógica que extorque, forja flagrantes, tortura ou mata e é neste con- da guerra, os excessos são considerados inevitáveis, e ficam jus- texto que vai sendo construído imaginário social que permite tificados os cercos das favelas, as detenções a execução de pes- que grande parte de nossa população seja percebida como soas em atitude suspeita e a tortura para obtenção das perigosa e por essa razão não seja vista como beneficiária dos informações (Dornelles, 1997: 114-118). direitos mais essenciais. Identificá-los, pois, como monstros in- É quando os discursos periculosistas nascidos no século desejáveis, faz parte desse grande empreendimento de reenge- anterior tornam-se insuficientes. Para sustentar as políticas de nharia social. encarceramento em massa que se disseminarão pelo mundo em vista as novas subjetividades que se querem afora será preciso adaptar a noção de periculosidade às novas produzir, a gestão midiática do medo e da indiferença cumpre estratégias de controle social, que agem mais difusamente. Será um papel fundamental. A violência é oferecida como espetácu- então, formulado o conceito de risco social, que permitirá uma lo diário aos consumidores em busca de entretenimento e significativa ampliação na escala da intervenção das medidas adrenalina e a exposição repetida a cenas de violência promo- preventivistas. Segundo Pegoraro, a vem ao mesmo tempo o terror e a banalização. Para isso, gestión del riesgo implica la posibilidad de multiplicar las espetaculariza-se e um ambiente de pânico e comoção intervenciones, abarcando así ya no la 'peligrosidad' social generalizados por um lado, ou banaliza-se e justifica-se a siempre encarnada en algún individuo sino factores, violência por outro. O objetivo é a aprovação da opinião pú- ambientes, situaciones, que se convierten en blanco de tales blica a um tratamento da violência de acordo com intervenciones ya sea preventivas o represivas (Pegoraro, a classe social da vítima ou a posição social do perpetrador. 1999: 227). Segundo Dornelles, utilizando-se do medo e da insegurança Ou, como nos diz Sotomayor, dado el viraje que se está desarrollando en las sociedades tardo-capitalistas el control social no se dirige ahora sobre 18 Nesse novo quadro, a própria violência passa a ser estratégica, justificando el sujeto individualmente considerado, sino sobre grupos a militarização da segurança pública, a tolerância com as práticas ilegais e enteros, poblaciones y ambientes, y la peligrosidad va violentas da polícia e com a ação dos grupos de a legalização da dejando de ser, en general, una noción referida a un pena de morte, a redução da idade passível de responsabilização penal etc. 186 187</p><p>individuo en particular para serlo respecto de determina- povo e questionando a noção de define os graus das 'situaciones grupos de riesgo' (Sotomayor, 1996: 145). de irresponsabilidade social de acordo com parâmetros de raça, idade, sexo e cultura. Coerentemente com os ideais positivistas verde-amarelos ele afirma que "a igualdade política não pode A influência do positivismo nas instituições e legislação penal brasileira compensar a desigualdade moral e física" e pergunta: Todas essas discussões sobre periculosidade e risco en- Pode-se exigir que todas estas raças distintas respondam volveram os meios jurídicos acadêmicos brasileiros, produ- por seus atos perante a lei com igual plenitude de respon- sabilidade penal? (...) Porventura pode-se conceber que a zindo efeitos significativos em nossas legislações e instituições. consciência do direito e do dever que têm essas raças infe- Com a proclamação da República, que permite uma riores, seja a mesma que possui a raça branca civilizada? abertura ainda que virtual dos canais de poder à representan- (...) A escala vai aqui do produto inteiramente inaproveitável tes da sociedade civil; a abolição da escravatura, que fim e degenerado, ao produto válido e capaz de superior ma- ao impedimento legal à participação dos descendentes africa- nifestação de atividade mental (Corrêa, 2001: 141). nos na vida urbana; e a imigração estrangeira, que traz para Para ele, que condenava a "estúpida panacéia da prisão Brasil trabalhadores com mais consciência de classe, novas es- celular" (Corrêa, 2001: 145), a melhor mancira de resolver o tratégias tornam-se necessárias para deter os reclamos por ci- problema dessas populações consideradas deletérias para de- dadania dessa parcela da sociedade e justificar tratamento senvolvimento do país era isolamento em asilos. Outro bom desigual a elas conferido. Não por acaso, a mais importante delas foi a justificativa científica para racismo, que vinha le- exemplo desse movimento foi o acordo firmado entre os Go- gitimar a crença na superioridade da raça branca e marcar as vernos dos países do Cone Sul, estabelecendo a obrigação de discussões sobre o tema da defesa social em nosso país (Corrêa, trocarem informações a respeito dos dados individuais das pes- 2001). soas consideradas Mais do que identificar e classi- Nos períodos de crises sociais que seguiram, primeiro ficar os tipos perigosos a escola positivista brasileira propõe, as teorias positivistas italianas, e posteriormente as teorias portanto, uma de cadastro geral dos perigosos. Os anos eugenistas vão oferecer as ferramentas teóricas neces- passam três décadas depois os positivistas brasileiros ainda sárias ao controle social das classes potencialmente perigosas. continuam em ação. Apresentando pesquisas que "comprovam" Diversos trabalhos são escritos e vários congressos são realiza- a possibilidade de se prevenir o crime, Leonídio Ribeiro obser- dos demonstrando a periculosidade dos negros e das diversas va que categorias marginais como as crianças abandonadas, os loucos, (i)sso seria possível desde que se lograsse classificar biotipo- os homossexuais, os alcoólatras, as prostitutas e os criminosos. logicamente, desde a primeira todos os indivídu- Um bom exemplar dessa safra foi Nina Rodrigues que, os, especialmente aqueles que, pela sua constituição e atribuindo à raça negra a debilidade e mental de nosso 20 Ao que indica, esforço de transnacionalização das políticas de 19 Estas teorias, que felizmente não chegaram a ser colocadas em prática em segurança pública imposto pelos EUA à América Latina começou bem an- nosso país, pregavam a eliminação dos infra-homens que a seleção natural tes da terrivel Operação Condor, que nos anos 70 reuniu os governos mili- deixou tares do Brasil, Paraguai, Uruguai, Argentina e Chile. 188 189</p><p>tendências, pudessem ser considerados como 5. É notório que as medidas puramente repressivas e pro- (Corrêa, 2001: 187). priamente penais se revelaram insuficientes na luta contra Estas idéias que se colocavam contra os liberais a criminalidade, em particular contra as suas formas habi- tuais (no sentido de reincidentes). Ao lado disto existe a pressionavam a favor de legislações que incorporassem as me- criminalidade dos doentes mentais perigosos. Estes, isentos didas preventivistas. Assim, ao mesmo tempo em que, tardia- de pena, não eram submetidos a nenhuma medida de se- mente, os nossos primeiros códigos penais introduziam os gurança ou de custódia, senão nos casos de imediata peri- princípios liberais, eram introduzidos também os primeiros traços culosidade. Para corrigir a anomalia, foram instituídas, ao dos ideais positivistas. Para Código Republicano de 1890, lado das penas que têm finalidade repressiva intimidante, que antecedeu a maior parte dessas discussões, não cram con- as medidas de Estas, embora aplicáveis em re- siderados criminosos os indivíduos isentos de culpabilidade em gra post delictum, são essencialmente preventivas, destinadas virtude de affecção mental, como também estavam livres de pena à segregação, vigilância, reeducação e tratamento dos in- divíduos perigosos, ainda que moralmente irresponsáveis os menores de 9 anos, os maiores de 9 e menores de 14 que (Oliveira, 1987: 7). não tinham discernimento, os portadores de imbecilidade nata, enfraquecimento senil e os Em compensação, Este Código, que já incorporará o Princípio de Indivi- para os maiores de 9 e menores de 14 que houvessem obrado dualização das Penas e sistema do duplo binário, introduzirá com discernimento, a legislação previa recolhimento em estabe- também o critério da periculosidade para a aplicação da pena, lecimentos disciplinares industriais; para os vadios e capociras consagrará o dispositivo da medida de segurança a ser cumpri- reincidentes, a internação em colônias penais; para os do cm estabelecimento especial e oferecerá aos Juízes a liber- manos, a internação curativa e para os ébrios habituais que dade de escolher entre os diversos tipos de ou de aplicar fossem nocivos ou perigosos a si próprios, a outrem ou à ordem cumulativamente sanções de espécies diversas. Por outro lado, blica, a internação estabelecimento correcional (Ribeiro, 1998: como o seu modelo europeu 12-13). mínimo e máximo, (o Juiz) graduará a Mas é no Código Penal de 1940, inspirado no Código quantidade de pena de acordo com a personalidade os Italiano de 1930, que verdadeiramente se pode ver a força da antecedentes do criminoso, os motivos determinantes, as influência positivista. Na exposição de Motivos do Ministro circunstâncias e as do crime. Em suma, indi- vidualizará a pena, adotando a quantidade que lhe pareça Campos, lê-se o seguinte: mais adequada ao caso concreto (Oliveira, 1987: 7). Para efeitos de individualização, Código de 1940 dis- tingue os primários e os reincidentes, as circunstâncias agra- 21 Como resultado dessas discussões foi instituído em nosso país o sistema nacional de identificação (as carteiras de identidade) e o cadastramento datiloscópico. 22 Os loucos, como no Código anterior, eram entregues às suas famílias ou 23 As sanções estabelecidas por esse novo Código são: reclusão, detenção, recolhidos a hospitais de alienados, mas somente se assim exigisse a segu- multa, perda de função pública, interdições de direitos, publicação de sen- rança da ordem pública. tença e medidas de segurança. 190 191</p><p>vantes e atenuantes e introduz uma aplicação subjetivista da entender caráter criminoso do fato, ou de determinar-se pena. Assim, é estabelecido que: de acordo com esse entendimento (Oliveira, 1987: 15). 24. O Juiz, ao fixar a pena, não deve ter em conta somen- Atribuindo à pena a função de retribuir dano e corri- te o fato criminoso, nas suas circunstâncias objetivas e con- gir o condenado, Código de 1940 impõe como condição para mas também delinqüente, a sua personalidade, a concessão de livramento condicional não apenas que preso seus antecedentes, a intensidade do dolo ou grau de culpa apresente bom comportamento mas, também, que fique de- e os motivos determinantes (art. 42). O réu terá de ser monstrada através de exame a cessação da sua periculosida- apreciado através de todos os fatores endógenos e exógenos, de. Por sua vez, para que internado por medida de segurança de sua individualidade moral (...) e da sua maior ou menor desatenção à disciplina social. Ao Juiz incumbirá investi- seja desinternado, a mesma condição será exigida. As medidas gar, tanto quanto possível, os elementos que possam con- de segurança, definidas como medidas de prevenção e assistência so- tribuir para exato conhecimento do caráter ou índole do cial e destinadas para aqueles que, sendo ou não penalmente réu que importa dizer que serão pesquisados o seu responsáveis, forem considerados perigosos, serão impostas por curriculum vitae, as suas condições de vida individual, famili- tempo indeterminado e deverão perdurar até que fique com- ar e social, a sua conduta ou subseqüente provada, através de exame pericial, a cessação do estado peri- ao crime, a sua maior ou menor periculosidade (probabilida- goso (Oliveira, 1987: 24). de de vir ou tornar o agente a praticar fato previsto como a revisão de 1984 e a entrada em vigor da Lei de crime). Esta, em certos casos, é presumida pela para Execuções Penais, uma nova política criminal e penitenciária efeito da aplicação obrigatória da medida de segurança; mas fora desses casos, fica ao prudente arbítrio do Juiz começa a ser desenhada. Segundo a Exposição de Motivos da seu reconhecimento. (art. 77) Nova Parte Geral, objetivo é restringir a pena privativa de liberdade aos casos de verdadeira necessidade. São reconheci- Importante para a aplicação deste instrumento legal é a dos os altos custos dos estabelecimentos penais e os efeitos de- avaliação da responsabilidade penal que deverá ser feita medi- letérios da prisão para os infratores primários e ocasionais ante perícia médica. Adotando sistema biopsicológico de que perdem paulatinamente a aptidão para trabalho e são avaliação, o Código estabelecerá, que de acordo com seu expostos a situações de violência e corrupção altamente dano- artigo 22: sas é proposto de forma manifestamente um novo 18. É isento de pena o agente que, por doença mental, ou elenco de penas, alternativas à reclusão. O Princípio de Indivi- desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao dualização das Penas é aperfeiçoado e são estabelecidos os ins- tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de trumentos e os procedimentos que fornecerão as bases para um tratamento individualizado do preso. É também aperfeiço- ado e ampliado sistema de progressão/regressão das penas, 24 Para os efeitos dessa lei são considerados presumidamente perigosos: os que agora poderão ser cumpridas regime fechado, semi- inimputáveis e semi-imputáveis que nos termos do artigo 22 são isentos de aberto ou aberto, de acordo com as condições do preso. Desa- pena; os ébrios habituais condenados por crime cometido em estado de parece da legislação O sistema do duplo binário dispensando a embriaguez; os reincidentes crime doloso e os condenados por crime cometido através de associação, bando ou quadrilha de malfeitores. aplicação da medida de segurança aos imputáveis, e aos semi- 192 193</p><p>imputáveis passa a ser aplicada a pena ou a medida de segu- dade produtiva e educativa, e sob Além disso, rança, de acordo com a de cada caso. Quanto às têm direito de descontar um dia de prisão para cada três dias medidas de segurança para os portadores de transtornos men- trabalhados. Devem também submeter à disciplina estabele- tais, praticamente não há nenhuma diferença. Apesar de Có- cida e no caso de infringir as regras são sujcitos a sanções dis- digo ter excluído a periculosidade presumida, o conccito continua ciplinares. Isto é que determina a lei brasileira. a ser aplicado aos Isso significa que os exames de verificação de cessação de periculosidade deixam de ser aplica- dos aos imputáveis, mas são substituídos pelos exames crimino- Prisões e violência lógicos, que vão ser usados para instruir os pedidos de livramento condicional e progressão de regime, devendo informar se Nossas prisões são muito diferentes do que estabelece a interno está em condições de receber beneficio De acordo com Departamento Penitenciário Nacional Com a Lei de Execução Penal, são estabelecidas as no- (DEPEN), temos hoje cerca de 250 mil presos nas delegacias e vas condições que devem ser garantidas aos presos e interna- prisões Por falta de vagas nas unidades penais, di- dos para cumprimento de suas sanções. Estes passam a ter versas pessoas literalmente amontoadas cumprem suas penas, direito à assistência material, à saúde, jurídica, educacional, parcial ou totalmente, em delegacias ou casas de custódia. Muitas social e religiosa. Curiosamente não há menção à assistência nunca ouviram falar em CTC e nunca foram assistidas por psicológica. Para orientar a individualização da pe- psicólogo ou assistente social. Como bcm diz Cristina Rauter, nal devem ser classificados, segundo os seus antecedentes e a realidade de nossas prisões é muito pouco panóptica. Nossas personalidade. Esta classificação será feita por Comissão Téc- prisões são na verdade depósitos, mais ou menos caóticos, cuja nica de Classificação (CTC), presidida pelo Diretor e compos- finalidade parece ser apenas a exclusão e o castigo (Rauter, ta, no mínimo por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um 1982: 23-24). Mais de 90% não têm acesso a advogado parti- psicólogo e um assistente social. Esta Comissão tem como atri- cular e por falta de assistência jurídica, ou devido à lentidão da buições estudar e propor medidas que aprimorem a execução Justiça brasileira, muitos continuam presos mesmo após termi- penal, acompanhar a execução das penas, elaborar progra- nada a pena, ou cumprem-na em regime fechado, apesar de ma individualizador, apurar as infrações disciplinares e avaliar terem direito a livramento condicional ou a cumpri-la em regi- as condições dos presos com direito a livramento condicional me mais brando. Passam meses ou anos em celas absolutamen- ou progressão de regime. Os condenados à pena privativa de te desumanas e infestadas de baratas, ratos e fezes de pombos; liberdade estão por sua vez obrigados ao trabalho, com finali- são expostos a todo tipo de violência (entre os próprios presos ou por parte do próprio corpo funcional); geralmente recebem alimentação insuficiente e de má qualidade, sem falar nas muitas 25 De acordo com parágrafo único do artigo 83 deste Código, "para condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que liberado não voltará a 26 De acordo com censo de 1995, 95,4 presos para cem mil ha- bitantes. Hoje essa cifra já subiu para 146,5 em ccm mil. 195 194</p><p>vezes que esta é deixada intencionalmente ao sol para que es- com os bandidos estes respondem com cada vez mais ousa- trague. O fornecimento de água é precário, as caixas de água dia e violência, inclusive, executando ou tortu- nunca são lavadas e na falta de água corrente, os presos fre- rando suas vítimas. A criatura foge, enfim, ao controle do criador armazenam água para o banho e preparo de e pânico, tornado real, toma conta das pequenas refeições em latões enferrujados e imundos. Apesar de viverem em condições absolutamente insalubres, a assistên- cia médica oferecida aos presos geralmente é A atuação dos psicólogos nas unidades prisionais obstruída ou até cobrada por atravessadores e com exceção do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro não conta com a co- O dia a dia dos psicólogos nas prisões transcorre meio bertura do SUS. São poucas as unidades penais que oferecem a centenas de papéis. São infindáveis laudos, relatórios ou pa- oportunidade de estudo ou trabalho para os presos, as punições reccres, feitos ou por fazer, e mesmo assim, a qualquer por infração disciplinar são manejadas sádica e arbitrariamen- que entremos nas ouviremos dos presos as eternas e a tortura individual ou coletiva é cometida queixas de que ainda não foram chamados para fazer seus Em nome da segurança da unidade, os presos exames. Pudera, as unidades penais de nosso país costumam têm os seus objetos pessoais examinados e destruídos, e seus alojar ccrca de 500 presos, algumas atingem a marca dos 1.000 familiares, que segundo a lei não podem ser atingidos pela pena, e com sorte as equipes técnicas chegam a contar com dois pro- são freqüentemente tratados com desrespeito e obrigados a fissionais da área de psicologia. Além disso, há as inúmeras submeter-se a revistas (Kolker, 2002: 89-97). sessões da CTC para apurar as infrações disciplinares. Assober- Aqui, como na maioria dos países, vêm aumentando bados de tarefas disciplinadoras ou de juízos a emitir sobre os muito os índices de encarceramento, a maioria dos delitos en- presos, os psicólogos das unidades prisionais dificilmente po- volve porte ou tráfico de drogas e a idade dos presos dimi- dem realizar algum trabalho mais transformador nessas comis- nui cada vez mais. As campanhas pela lei e pela ordem exigem ou estabelecer outro tipo de relações institucionais com os cada vez mais rigor (sob suas formas legais ou ilegais) no trato demais funcionários, internos seus No entan- 27 A assistência médica oferecida aos presos do sistema penitenciário do Rio de Janeiro é a que oferece a melhor estrutura (ambulatorial e hospitalar), 29 Segundo Zaffaroni, a capacidade reprodutora de violência dos meios de tem maior número de programas (DST-Aids, tuberculose, prevenção ao comunicação é enorme: na necessidade de uma criminalidade mais cruel câncer ginecológico, etc.) e a que tem mais recursos, que são cobertos pelo para melhor excitar a indignação moral, basta que a televisão dê exagerada SUS. Ainda assim, fazer chegar esses serviços aos presos é um desafio nem publicidade a vários casos de violência ou crueldade gratuita para que, sempre bem diatamente, as demandas de papéis vinculados ao assumam con- 28 Por outro lado, os alojamentos dos guardas igualmente desassistidos pelo teúdos de maior crueldade por conseguinte, os que assumem papel Estado são pouco melhores do que os dos presos; a rela- correspondente ao estereótipo ajustem a sua conduta a esses papéis (Zaffaroni ção entre número de guardas e presos é sempre abaixo da apud Batista, 1998). recomendável, agravando stress dos e é alto número de Exceções são feitas aos casos dos psicólogos que trabalham em unidades agentes com história de alcoolismo e abuso de drogas, ou que respondem a hospitalares, atuam em programas de prevenção a sexualmente processos. transmissíveis, ou prestam assistência a presos com dependência química. 196 197</p><p>to, uma das atribuições das CTCs é estudar e propor medidas que aprimorem a execução penal. Além disso, como vimos ção, quando serão colhidos seus antecedentes pessoais fami- acima, sequer está previsto na Lei de Execução Penal a assis- liares, seu grau de escolarização e profissionalização, suas ha- tência psicológica aos reclusos. Por outro lado, os psicólogos, bilidades e interesses, seus antecedentes penais e a história de assim como os demais técnicos que trabalham nessas institui- seu delito, e a cada mudança de regime ou pedido de livra- dificilmente têm contacto com funcionamento interno mento condicional deverão ser apuradas as mudanças opera- das prisões. Estes, geralmente por problemas de segurança, ou das em seu comportamento e SC as condições do apenado fazem por falta de tempo, mas muitas vezes por desinformação ou supor que ainda estão presentes as razões que levaram a desinteresse, não costumam ter acesso às galerias desconhe- delinqüir. Como nos aponta Rauter, a qualquer momento um cendo silenciando acerca dos reais problemas dos estabe- laudo desfavorável do condenado poderá significar prolonga- lecimentos onde trabalham, inclusive no que diz respeito às mento da sua reclusão, a pretexto de se continuar um trata- costumeiras sessões de tortura (Kolker, 2002). Todas essas ques- mento sabidamente inexistente, mas ainda assim, como se tões, no entanto, estão ainda à espera de uma discussão mais acreditassem na eficácia da prisão como instrumento de trata- profunda, tanto no próprio sistema penal, como nos sindicatos mento do preso, os psicólogos devem buscar na avaliação do e conselhos comportamento do interno a resposta para as suas clássicas Falemos pois dos exames. Como bem diz Rauter, em perguntas. artigo fundamental para os que trabalham no sistema penal,/a Buscando identificar os pressupostos cm que se baseavam partir de 1984, com a consagração do princípio de individua- os antigos Exames de Verificação de Cessação de Periculosida- lização das penas, "ampliam as oportunidades cm que um con- de Cristina Rauter concluiu que um determinismo denado será tornado alvo de uma avaliação técnica" e crescem cego, mecânico e simplista os Assim, fatores em importância "os procedimentos que visam diagnosticar, como a morte precoce da mãe, abandono do pai, a separação analisar ou estudar a personalidade e a história de vida dos litigiosa dos dois, mães que trabalham fora e deixam os filhos condenados", com objetivo de adequar tratamento peni- com os vizinhos, privações financeiras, casos de alcoolismo, tenciário às características e necessidades de cada preso" ou de dependência de drogas, ou de antecedentes penais na família, "prever futuros comportamentos (Rauter, 1989: abandono precoce da escola, falta de profissionalização e pas- 9). Assim, ainda que o propalado tratamento penitenciário nunca sagem na infância por instituição correcional, vistos em con- tenha chegado a existir em nosso país e que pelo contrário, as junto ou isoladamente, sempre derivavam na conclusão de que penas de reclusão tenham cada vez mais perdido caráter de resultado óbvio seria a prática de crime e, enfim, a reclusão. correção ou tratamento, para se converter em instru- Segundo as palavras da própria autora: mentos de neutralização e eliminação das classes perigosas, cada O processo de reconstituição da história do condenado nos vez mais, desde que ingressar no sistema penitenciário, des- EVCP, poderia ser descrito como uma mirada cm direção tino dos presos estará subordinado aos técnicos que ao passado do buscando a confirmação de que sobre eles forem emitidos significa que ao ingressar na prisão os apenados deverão ser submetidos a uma longa avalia- 31 Atualmente, só são submetidos aos exames de avaliação da periculosidade, os internados por medida de segurança. 198 199</p><p>realmente existiram acontecimentos sua vida que por Na impossibilidade de concluir.. sua própria natureza são geradores de crime. Circula-se tautologicamente sobre este tipo de raciocínio: se tenho diante de mim alguém que está preso e condenado, este Inspirando-me em Pavarini, que contratado para escre- alguém só pode ser criminoso e como criminoso só pode ver um livro introduzindo os conceitos de criminologia, preo- ter história de Este passado, a se tem acesso cupou-se muito mais em colocar problemas do que propor pela fala do preso, mas esta não por certo, uma via to- definições, chego ao fim de minha exposição sem apontar ne- talmente confiável: acredita-se certamente que ele procu- nhuma direção aos psicólogos que desejem experimentar prá- rará enganar, falscar a Lança-se mão dos autos ticas mais transformadoras. Longe de mim tal pretensão. Até do processo-crime, da ficha de comportamento porque não existem fórmulas. Como O autor italiano, que con- etc. Com base nestes dados considerados fessou que "no escribir un manual de criminologia porque no chega-se ao que se desejava: vidas pontilhadas de indícios que só poderiam levar ao crime (Rauter, 1989: 13). decir con certeza que és la criminologia", mas poderia "ayudar a comprender qué ofrece y pra qué sirve esta criminologia" (Pavarini, 1996: Não se leva em conta, portanto, os processos de crimi- 22), penso que serei mais útil se ajudar O leitor a problematizar nalização e a seletividade das leis, das polícias e do sistema sua prática e a indagar a serviço de que quer investir seus sa- que fazem com que determinadas pessoas tenham beres e competências. Na impossibilidade de concluir, deixo, maiores chances de estar ali e outras não. Não se leva cm con- então, um mal-estar, uma inquietação ainda sem forma, uma ta, tampouco, os efeitos deletérios da prisão sobre o preso, mesmo provocação ao pensamento, à problematização ou quem sabe quando O crime que motivou a condenação seja de menor poder à INVENÇÃO. Afinal, as práticas verdadeiramente transformadoras ofensivo e desproporcional ao dano que a permanência na prisão só se fazem naqueles momen- EMBORA ALGUNS autores entendam crime como Também, não são examinadas as razões externas ao fenômeno natural, nem tudo está dominado no tos fugidios e inesperados dos preso, que podem, por exemplo, determinar a sua reincidên- campo da criminologia. Baratta e Castro, dois dos acontecimentos, dos bons en- grandes expoentes da Criminologia Critica, não cia. Seguindo-se, apenas, critérios técnicos, se buscará no preso se interessam por explicações tautológicas para contros, que são possíveis mes- acontecimento-crime. Para a Criminologia Criti- e somente nele as condições que façam presumir que não voltará a mo numa prisão. ca não é possível estudar sem se levar em conta a ação seletiva e configuradora Jurandir Freire, em um de carreiras criminais exercidas pelas agências de antigo mas ainda importante controle social. texto, já nos alertava que é impossível prever comportamen- 32 Como se pode depreender das análises de Rauter, é necessária muita inge- to humano como quem prevê a dilatação do metal pelo calor. nuidade, ou em alguns casos má-fé, para acreditar que que consta nos É impossível controlar a imprevisibilidade dos homens. Para processos é necessariamente a expressão da verdade. E certo que a maioria dos presos alegam inocência, mas tampouco costumam ser muito confiáveis ele, qualquer tentativa neste sentido só pode estar a serviço de as informações constantes nos processos. uma mascarada cumplicidade com as razões de estado. E ava- 33 Um bom exemplo desta ação seletiva e do papel dos diferentes níveis do liar uma pessoa segundo seu grau de adaptação às normas so- complexo nesta seleção é diferente trata- ciais não pode ser considerado outra coisa (Freire, 1989). Isso mento dado aos jovens que são flagrados portando drogas: para os jovens das classes favorecidas é geralmente lançado mão do paradigma médico e significa que mandato dos técnicos da área psi que trabalham aos demais, O paradigma criminal. Ver em Batista, 1998. em prisões, e dentre eles dos psicólogos, precisa ser urgente- 200 201</p><p>mente repensado. Se vimos acima que as prisões produzem Bissoli Filho, F. (1998) Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência efeitos de subjetivação, que sistema penal ao configurar a criminal. Santa Catarina: Obra Jurídica. contribui para a produção e reprodução dos de- Carrara, S. (1998) Crime e loucura: 0 aparecimento do manicômio judiciário no inicio do linqüentes, que podemos fazer para trabalhar pela descons- século. Rio de Janeiro/São Paulo: trução dessas carreiras, para a produção de desvios nessa Castel, R. (1978) A ordem a idade do ouro do alienismo. Rio de Janeiro: trajetória que se quer preconizar como irreversível? Como uti- Graal. (1998) As metamorfoses da questão social: uma crônica do lizar nossas competências não para reafirmar destinos, e sim RJ: Vozes. para ajudar a desviar desvio para outras direções mais criati- (1987) A gestão dos riscos. Rio de Janeiro: Francisco vas a favor da vida? Castro, L. A. (1983) Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense. Para ajudar a esquentar essa discussão, deixo também Chomsky N. (1997) Entrevista publicada em Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, algumas palavras de Guattari já tão repetidas por seus leitores, ano 2, n. 4, Rio de Janciro: Freitas mas tão vivas Coimbra, C. (2001) Operação Rio: a mito das classes perigosas. Niterói: Oficina do Autor. devemos interpelar todos que ocupam uma posi- Darmon, P. (1991) Médicos e assassinos na Belle Rio de Janeiro: Paz e ção de ensino nas ciências sociais e psicológicas, ou no Terra. campo do trabalho social todos aqueles, enfim cuja pro- Delgado, P. G. (1992) As razões da tutela: psiquiatria, justiça e cidadania do louco no fissão consiste em se interessar pelo discurso do outro. Eles Brasil. Rio de Janciro: Te Cora. se encontram numa encruzilhada política e Dornelles, J.R.W. (1997) Violência urbana, direitos de cidadania e políticas públicas fundamental. Ou vão fazer jogo dessa reprodução de de segurança in Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, ano 2, número 4, modelos que não nos permitem criar saídas para os pro- Rio de Janeiro: Freitas Bastos. cessos de singularização, ou, ao contrário, vão estar traba- Foucault, M. (1992) Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal. lhando para o funcionamento desses processos na medida Foucault, M. (1993) Vigiar e punir: da violência nas prisões. RJ: de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam Vozes. pôr para funcionar (Guattari, 1986: 29). Foucault, M. (1996) A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Freire, J. C. (1989) da psiquiatria no Brasil um corte ideológico. Rio de Janeiro: Xenon. Garófalo, R. (1997) Criminologia: estudo sobre 0 delito e a repressão penal. São Paulo: Referências bibliográficas Guattari, F. (1986) Micropolítica: cartografias do desejo. RJ: Vozes. Baratta, A. (1997) Criminologia critica e critica do direito penal: introdução à sociologia A. P. (1982) As classes perigosas: banditismo urbano e rural. Rio de do direito penal. Rio de Janeiro: Janeiro: Graal. Barros, R. D. B. (1994) Grupo: a afirmação de um São Paulo: Hobsbawn, E.J. (1998) A era das revoluções: Europa 1789-1848. São Paulo: Paz Departamento de Psicologia Clínica da e Terra. 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