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<p>Copyright© 2019 by Iñaki Rivera Beiras</p><p>Editor Responsável: Aline Gostinski</p><p>Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros</p><p>Tradução e revisão: Bruno Rotta Almeida e Maria Palma Wolff</p><p>19-56347</p><p>CDU: 343.211.3</p><p>CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO</p><p>SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ</p><p>B367d</p><p>Beiras, Iñaki Rivera</p><p>Desencarceramento [recurso eletrônico] : por uma política de redução da prisão a</p><p>partir de um garantismo radical / Iñaki Rivera Beiras ; tradução Bruno Rotta Almeida,</p><p>Maria Palma Wolff. - 1. ed. - Florianópolis [SC] : Tirant Lo Blanch, 2019.</p><p>recurso digital ; 1 MB</p><p>Tradução de: Descarcelacion : principios para una politica publica de reduccion</p><p>de la carcel</p><p>Formato: ebook</p><p>Modo de acesso: world wide web</p><p>Inclui bibliografia e índice</p><p>ISBN 978-85-9477-320-3 (recurso eletrônico)</p><p>1. Direito penal. 2. Direitos fundamentais. 3. Direitos humanos. I. Almeida, Bruno</p><p>Rotta. II. Wolff, Maria Palma. III. Título.</p><p>Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - CRB-7/6644</p><p>04/04/2019 04/04/2019</p><p>Conselho Editorial Científico:</p><p>Eduardo FErrEr Mac-GrEGor Poisot</p><p>Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de</p><p>Investigações Jurídicas da UNAM - México</p><p>JuarEz tavarEs</p><p>Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil</p><p>Luis LóPEz GuErra</p><p>Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da</p><p>Universidade Carlos III de Madrid - Espanha</p><p>owEn M. Fiss</p><p>Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA</p><p>toMás s. vivEs antón</p><p>Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha</p><p>Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch.</p><p>Av. Embaixador Abelardo Bueno, 1 - Barra da Tijuca</p><p>Dimension Office & Park, Ed. Lagoa 1, Salas 510D, 511D, 512D, 513D</p><p>Rio de Janeiro - RJ CEP: 22775-040</p><p>www.tirant.com - editora@tirant.com</p><p>Impresso no Brasil / Printed in Brazil</p><p>É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/</p><p>ou editoriais.</p><p>A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se</p><p>à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).</p><p>Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.</p><p>Iñaki Rivera Beiras</p><p>Prefácio: Luigi Ferrajoli</p><p>Prefácio à edição brasileira: Maria Palma Wolff</p><p>Apresentação do autor: Bruno Rotta Almeida</p><p>Epílogo: Mauro Palma</p><p>DESENCARCERAMENTO:</p><p>POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA</p><p>PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO</p><p>RADICAL</p><p>Teoria</p><p>Florianópolis</p><p>2019</p><p>APRESENTAÇÃO E AGRADECIMENTOS</p><p>Iñaki Rivera Beiras</p><p>A obra que aqui se apresenta é fruto de uma longa trajetória de</p><p>vida: biográfica e também acadêmica e militante. Ao longo de mais de</p><p>três décadas posso dizer que dediquei grande parte da minha vida ao</p><p>estudo do sistema penal, particularmente ao exame dos direitos funda-</p><p>mentais daqueles que por ele passam. Mais explicitamente, esses têm</p><p>sido anos de aprendizagem – dentro e fora da Universidade – para tentar</p><p>entender tantos desdobramentos que envolvem a questão penitenciária</p><p>(como me permiti designar-lhe em obras anteriores). Creio que per-</p><p>guntas fundamentais seguem sem resposta acerca da impossibilidade de</p><p>respeito aos direitos e de satisfação das necessidades de quem habita as</p><p>instituições de reclusão punitiva. Também foram anos de comprovação</p><p>da existência de fenômenos contraditórios, como o aumento de canais</p><p>de defesa de direitos humanos (institucionais e sociais), porém também</p><p>de comprovação da constante violação dos mesmos e o crescimento de</p><p>um sistema penal e penitenciário cuja escala planetária põe em eviden-</p><p>cia seu fracasso, sua violência intrínseca, sua inutilidade, seu altíssimo</p><p>custo (não só econômico, mas também em sofrimento humano) e,</p><p>paradoxalmente, sua manutenção e crescimento.</p><p>Esses aspectos expressam, dentre muitas outras coisas, a tensão</p><p>permanente entre abolicionismo e garantismo penal, modelos refle-</p><p>xivos sobre os quais se tem escrito e tratado em grande medida como</p><p>se fossem antagônicos. Sobre isto voltarei mais adiante e no final</p><p>do trabalho. Por hora, cabe somente dizer que ambos têm suposto,</p><p>em minha opinião, as expressões críticas mais lúcidas para assinalar</p><p>* Nota dos tradutores: A tradução para o português seguiu as normas técnicas do texto original.</p><p>6 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL APRESENTAÇÃO E AGRADECIMENTOS - IÑAKI RIVERA BEIRAS 7</p><p>caminhos de trabalho, de estudo e de práxis comprometida. Biogra-</p><p>ficamente falando, também cresci entre eles e tive a imensa sorte de</p><p>contar com os melhores mestres, também amigos e, sobretudo, des-</p><p>tacadíssimas referências intelectuais e éticas, que tanto sinto falta no</p><p>presente. Esta investigação pretende situar-se precisamente na dialé-</p><p>tica (que não é igual a modelos antagônicos) entre abolicionismo</p><p>e garantismo penal, no concreto “planeta prisão”, como Massimo</p><p>Pavarini gostava de falar, a partir do que aqui se tem denominado</p><p>garantismo radical, expressão que será definida e dotada de conteúdo</p><p>ao longo do trabalho. Por hora, como forma de apresentação, basta</p><p>assinalar que aludo à existência de um caminho para a redução carce-</p><p>rária, incessante e inacabado, que pode – e entendo que deve – vir da</p><p>“utilização estratégica dos direitos” como um chamamento constante.</p><p>Ainda assim, creio firmemente com Baratta (1994) que a prisão não</p><p>pode cumprir funções positivas, porém, e precisamente por isto, de-</p><p>ve-se, então, aceitar a busca de uma re-integração (desde o exterior)</p><p>dos presos “apesar” da prisão, o que será útil para o desenvolvimento</p><p>de modelos teóricos e de programas desencarceradores que busquem</p><p>uma reavaliação dos direitos dos presos e que serão retomados a partir</p><p>da experiência de diversos países. (Baratta op cit, Rivera Beiras 2008).</p><p>Assim se entendeu por um certo ativismo acadêmico e político</p><p>comprometido com a situação dos presos, no convencimento de que</p><p>se pode, e deve, ser construída uma “cultura de resistência” frente</p><p>à “cultura de emergência e excepcionalidade punitiva”. Isto, como</p><p>logo se abordará, pode desenhar um determinado cenário realista de</p><p>política penal que sirva como “cenário de representação” da irraciona-</p><p>lidade sobre a qual se assenta o universo prisional. A participação da</p><p>sociedade civil pode produzir, no presente, resultados inesperados na</p><p>tarefa proposta e, em grande medida, disso que trata esta investigação,</p><p>empregando ações e cenários internacionais para sua repercussão nas</p><p>realidades nacionais. O particular caso italiano, e o que ali tem acon-</p><p>tecido nos últimos anos, é paradigmático, e, Mauro Palma, um dos</p><p>principais protagonistas, explica no Epílogo deste ensaio.</p><p>Como mais adiante se examinará com detalhes, uma decidida</p><p>política de direitos humanos não pode seguir dando as costas a um volu-</p><p>moso conjunto de direito internacional que deve ser um autêntico guia</p><p>orientador da produção normativa e das práticas institucionais. A falta</p><p>de compromisso na execução das Recomendações internacionais que</p><p>emanam das Organizações e Instituições (europeias, latino-americanas</p><p>e o chamado sistema universal), cuja competência tem sido aceita pelos</p><p>Estados membros, constitui uma prova evidente da desobediência go-</p><p>vernamental à ordem jurídica internacional. E é justamente onde existe</p><p>um terreno fértil e ainda pouco percorrido para demandar a exigência</p><p>constante ao respeito dos direitos fundamentais das pessoas privadas de</p><p>liberdade. Essa falta de ação governamental está sendo cada vez mais</p><p>denunciada por diversos setores da sociedade civil que empregam múl-</p><p>tiplas ferramentas, as quais aqui serão abordadas através de programas</p><p>alternativos, ações sociais, projetos de investigação, e todo um conjunto</p><p>de medidas que, além disto, partem de um convencimento que</p><p>Com efeito, ao contrário, poderia-se dar a falsa impressão</p><p>de uma fé, de uma crença (repito, ingênua) em respeito aos direitos</p><p>dos presos no interior de uma instituição que nasceu como “zona de</p><p>não direito” (Costa 1974) e que justamente em sua essência esta pena</p><p>traduz uma limitação ou uma desvalorização dos direitos fundamentais.</p><p>Mas é que precisamente o caminho da redução carcerária, in-</p><p>cessante e inacabável, pode vir da “utilização da estratégia de direitos”</p><p>como uma reivindicação constante que ponha de manifesto que, ao</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 3938 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>ser “levado a sério”, em respeito a esses direitos não pode ser conse-</p><p>guido na prisão, construindo deste modo um caminho, uma “rota</p><p>de fuga” para sua constante redução. Este modelo se denomina aqui</p><p>como “garantismo radical”. E, como se desenvolverá nesta investiga-</p><p>ção, o garantismo radical é um caminho fértil (ainda que certamente</p><p>não seja o único) para aproximarmos séria e rigorosamente o paradig-</p><p>ma da abolição e superação da pena de prisão.</p><p>Ainda assim, creio que, como assinalou Baratta (1994) e logo</p><p>se tratará aqui mais amplamente, ao entender-se que a prisão não pode</p><p>cumprir funções positivas, a reitegração dos presos deve ser buscada</p><p>desde o exterior e “apesar” da prisão, o que serviu de modelo teórico</p><p>para o desenvolvimento de programas desencarceradores que preten-</p><p>deram uma reavaliação dos direitos dos presos. Assim se entendeu por</p><p>certo ativismo acadêmico-político, comprometido com a situação dos</p><p>presos, que podia construir-se uma certa “cultura de resistência” frente</p><p>à “cultura da emergência e excepcionalidade punitiva”. Isto, como</p><p>logo se tratará, podia desenhar um determinado cenário realista de</p><p>política penal que serviria como “cenário de representação” da irra-</p><p>cionalidade sobre a qual se assenta o universo carcerário. Exemplos do</p><p>que assinalo são, entre muitos outros, o “movimentismo” anti-carcerá-</p><p>rio europeu dos últimos cinquenta anos (com numerosos movimentos</p><p>de presos, ex-reclusos, familiares, professores comprometidos, advo-</p><p>gados, juizes...27) propostas seguramente reformistas que advogaram</p><p>por controles permanentes da legalidade, pela criação de “filtros” e</p><p>“vigilantes” judiciais, administrativos, parlamentares, ombudsman e</p><p>organizações da mesma sociedade civil, programas desencarceradores</p><p>e uso alternativo do direito para tentar produzir uma jurisprudencia</p><p>que respeite a dignidade das pessoas presas. Por esta via tem se busca-</p><p>do difundir o que acontece no interior da prisão e realizar uma tarefa</p><p>que, utilizando das ferramentas jurídicas, desencadeie uma estratégia</p><p>27 Para um tratamento mais exaustivo desta questão, remeto à investigação que publiquei faz</p><p>alguns anos sobre o !movimento anti-carcerário europeu dos últimos cinquenta anos, com</p><p>o título ¿Abolir o transformar? Historia de las acciones sociales colectivas en las árceles</p><p>europeas (1960-2010) Movimientos, luchas iniciales y transformaciones posteriores.</p><p>político-cultural de respeito aos direitos e garantias. Exemplos para-</p><p>digmáticos são a Coordinadora para la Prevención y la Denuncia de la</p><p>Tortura, na Espanha, e a associação Antigone per i diritti e le garanzie</p><p>nel sistema penale, na Itália (ambas serão tratadas mais adiante).</p><p>O modelo de prisão-guerra. É também Pavarini (2006) que,</p><p>em outra obra, empregou este termo “não tanto ou não tão somente</p><p>porque as práticas de internação difusa e massiva façam com que o</p><p>atual sistema penitenciário se pareça cada vez mais a um arquipéla-</p><p>go concentrador. [...] Digo ‘guerra’, portanto, por outra razão: por</p><p>uma espécie de re-funcionalização da pena privativa de liberdade e</p><p>do sistema de justiça penal a uma retórica e uma práxis declarada e,</p><p>assim, explícita hostilidade frente a quem cada vez mais é visto como</p><p>o ‘outro’ [...] É indiscutível que a ideología da neutralização seletiva</p><p>– e sobretudo preventiva – está obrigada a recorrer a uma leitura do</p><p>criminoso como o ‘outro’, como alguém absolutamente ‘diferente’ e</p><p>frente a quem deve ser eliminado qualquer sentimento de compreen-</p><p>são. O ‘outro’ pode ser, dependendo do caso, o terrorista, o pedófilo,</p><p>o assassino em série, o mafioso, porém, ainda mais habitualmente o</p><p>delinquente comum” (op. cit: XXVI-XXVIII).</p><p>A isto agregaria que, por certo, este discurso penológico não só</p><p>não é novidade, senão que funda suas raízes em autores como Garó-</p><p>falo e naqueles que desde a Scuola positiva do século XIX batizaram</p><p>semelhante aspiração com o nome de “prevenção especial negativa”.</p><p>Inclusive, creio que este discurso alcançou uma de suas cotas mais</p><p>“elaboradas” quando o programa de Marburgo lisztiano descreveu cla-</p><p>ramente a tipologia criminal reservando-se à aspiração da “inocuização”</p><p>do inimigo como receita que fundaria uma disciplina conhecida como</p><p>Kriminalpolitik (v. Franz von Liszt 1995). No próprio campo cultu-</p><p>ral alemão, estas propostas tiveram uma certa continuidade quando</p><p>Carl Schmitt, em sua obra La categoría del político (1927), assinalou</p><p>claramente que o âmbito da política coincide com aquele que é pró-</p><p>prio da relação amigo-inimigo (cfr 1972). Com base nesta definição,</p><p>o campo de origem e de aplicação da política evidencia, antes de tudo,</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 4140 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>o antagonismo, e sua função consistirá nas atividades para agregar e</p><p>defender os amigos e desagregar e combater os inimigos.</p><p>Nesta visão, a política asume o traço caracterísitco do conflito,</p><p>já que qualquer divergência de interesses pode em algum momento</p><p>transformar-se em rivalidade ou antagonismo entre pessoas ou grupos</p><p>socais. O grau mais alto de conflito político se dá, então, quando o</p><p>recurso à força deve ser empregado. Nesta direção, indica Schmitt que</p><p>o ponto mais agudo do conflito político está, sem dúvida, represen-</p><p>tado pela guerra, tanto a externa como a interna: o combate contra</p><p>o inimigo. Como é bem sabido, de toda esta tradição nasceria mais</p><p>tarde a conhecida tendência do chamado “direito penal do inimigo”</p><p>que traz os passos de Jakobs primeiro, e a guerra global contra o</p><p>terrorismo depois, e fez com que a prisão renascesse em seu emprego</p><p>neo-punitivista atual, “liberada” de toda a pretensão terapêutica.</p><p>O modelo da não-prisão . Diante do cenário que se descreve,</p><p>para terminar este esboço de modelos ideais, há que pensar no aboli-</p><p>cionismo. Além de tudo o que foi dito até aqui nas páginas anteriores,</p><p>deve-se acrescentar que certamente algumas vez se pensou no modelo</p><p>“prisão e território” ou “prisão e sociedade” no sentido de buscar a</p><p>reabilitação dos condenados sem necessidade de fazê-los passar pela</p><p>prisão, mantendo-os em sistemas de liberdades controladas, vigiadas,</p><p>assistidas, sob prova... (Pavarini 2006). Isto abriu a porta ao chamado</p><p>debate sobre alternativas à prisão. Porém, mais além de seu fracasso</p><p>empírico inquestionável, (como demonstram os altíssimos índices de</p><p>reincidência nas ��ltimas décadas) deve se ressaltar o déficit teórico que</p><p>alimentou esta perspectiva. Aludo à confusão (habitual) de configurar</p><p>supostas alternativas à prisão durante o momento de sua execução.</p><p>Sem a pretensão de esgotar o tema, já que logo se voltará a</p><p>este particular com maior profundidade, basta sinalizar agora que, de</p><p>fato, a prisão não se situou (quase) nunca no momento de produção</p><p>do direito (evitando, por mandato legal, o ingresso dos transgressores</p><p>na prisão). Aquela “alternatividade” somente operou, no melhor dos</p><p>casos, como uma modalidade alternativa de cumprir uma mesma pena</p><p>privativa de liberdade, isto é, somente se apresentou no momento da</p><p>determinação judicial da pena ou, pior ainda, de sua execução.</p><p>Desse modo, o que na realidade se operou foi um tipo de fle-</p><p>xibilidade da pena em sua fase executiva (que seguiu sendo privativa</p><p>de liberdade)</p><p>e que permitia – sob a retórica de um suposto ajuiza-</p><p>mento dos umbrais de ressocialização – governar disciplinarmente a</p><p>instituição prisional embaixo de uma lógica de prêmios e castigos que</p><p>rebaixam, ainda mais, o estrito universo dos direitos dos presos. Con-</p><p>clui assim Pavarini: “o belo sonho da equação que mais alternativas</p><p>seria igual a menos prisão terminou abruptamente e se demonstrou</p><p>uma falácia. Chegou o momento de recolher os remos do barco”.</p><p>(Pavarini 2009: 142)</p><p>Muitas destas considerações serão retomadas depois neste</p><p>ensaio, também para diferenciar do que pode entender-se por um</p><p>abolicionismo do sistema penal e um abolicionismo da prisão.</p><p>2. APRENDER COM DIVERSAS INICIATIVAS SOCIAIS,</p><p>COMUNITÁRIAS, PROFISSIONAIS, ACADÊMICAS E</p><p>INSTITUCIONAIS: O EMPODERAMENTO</p><p>As perspectivas que foram expostas, suscintamente, acerca da</p><p>penalidade carcerária, podem ajudar a esclarecer certos desenvolvi-</p><p>mentos que logo serão levados a cabo nesta obra. Convém esclarecer</p><p>de imediato que este trabalho se embasa estritamente no único olhar</p><p>que entendo ser possível em um Estado que pretenda denominar-se</p><p>como social, democrático, e de direito, isto é, o olhar assentado na</p><p>exigência do cumprimento da legalidade no interior da prisão, o que</p><p>seria igual desde outro plano, à exigência do respeito efetivo dos di-</p><p>reitos fundamentais das pessoas encarceradas. E, como mais além de</p><p>poder fazer essa afirmação dentro do plano prescritivo (o da “prisão</p><p>legal”), pois no plano descritivo (o da “prisão real”) isso não é possível</p><p>comprovar nem conseguir, então o trabalho desencarcerador e redu-</p><p>cionista é o único possível a partir do paradigma indicado. A exigência</p><p>do respeito da garantia executiva do principio da legalidade (elemento</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 4342 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>fundante do Estado de direito) indica claramente que não se pode</p><p>fazer qualquer coisa com as pessoas presas: estas devem cumprir a pena</p><p>com base na legalidade; em caso contrário, o Estado carece absolu-</p><p>tamente de legitimidade para exigir aos cidadãos o cumprimento da</p><p>ordem jurídica. Não é cabível em uma orden democrática uma prisão</p><p>ilegal. É urgente, em consequência, promover verdadeiros caminhos</p><p>de superação da opção segregativa pelo profundo convencimento da</p><p>impossibilidade da alcançar o respeito da legalidade na prisão. Porém</p><p>esta não vai desenvolver-se, como largamente se insistirá nesta obra,</p><p>sem a participação de pessoas e setores sociais e profissionais atingidos</p><p>e comprometidos com esta problemática.</p><p>As últimas décadas da Modernidade tardia constituem também</p><p>neste terreno um campo de aporias que podem ser explicadas. Por</p><p>um lado, é tempo de encarceramento massivo na maioria dos países</p><p>do mundo, ainda que com níveis distintos (questão que se analisará</p><p>mais tarde). Por outro lado, vivemos um tempo em que este fenô-</p><p>meno foi acompanhado de outro, de signo contrário, e pleno de</p><p>muitíssimas ações no sentido inverso, muitas delas protagonizadas</p><p>por uma nova consciência de “reaproximação” das possibilidades de</p><p>enfrentar o conflito. Esse empoderamento (empowerment) vem sendo</p><p>protagonizado por numerosos setores que vão desde as abordagens e</p><p>alternativas de organizações de direitos humanos da sociedade civil,</p><p>a instituições universitárias, movimentos sociais, iniciativas de corte</p><p>municipalista, redes e plataformas de caráter internacional, projetos</p><p>de pesquisa e uma multiplicidade de ações sociais que em boa parte</p><p>nutrem a elaboração deste trabalho.</p><p>Como se verá ao longo de toda a segunda parte desta obra,</p><p>quando se propõe um programa para o desencarceramento, existem,</p><p>tanto na Europa como na América Latina, muitas opções, demandas, al-</p><p>ternativas, propostas concretas de trabalho de onde surge um riquíssimo</p><p>corpus do que se pode e deve aprender acerca das possibilidades reais de</p><p>estreitamento do emprego da opção carcerária. E isso, como se exporá,</p><p>ocorre em temas muito específicos da problemática: desde a situação</p><p>dos presos doentes a das mulheres recolhidas com filhos a seu encar-</p><p>go, da arquitetuera penitenciária à luta contra a tortura e a violência</p><p>institucional, da necessária modificação e rotatividade dos operadores</p><p>penitenciários à necessidade de reconfigurar programas de reintegração</p><p>ao exterior das pessoas encarcerads. Assim se pode dar conta de uma</p><p>nova imaginação, independente, comprometida e que olha para o ho-</p><p>rizonte dos direitos humanos e das recomendações internacionais nesta</p><p>matéria; um autêntico caminho para a redução da prisão. Dar conta</p><p>delas para aprender com essas direções, e reunir experiências diversas de</p><p>trabalho des-encarcedor, constitui o objetivo desta obra.</p><p>3. A PRISÃO COMO CONTRADIÇÃO INSTITUCIONAL</p><p>Em um recente trabalho, Ferrajoli assinala que deve enfrentar-</p><p>se de uma vez “a superação da reclusão penitenciária ou ao menos de</p><p>seu papel como pena principal” (2016: 9) já que a pena de reclusão</p><p>penitenciária é, por sua natureza, contrária i) ao critério de justifica-</p><p>ção da pena em geral como minimização da violência punitiva; ii)</p><p>ao modelo teórico e normativo da pena privativa de liberdade como</p><p>pena igual e taxativamente determinada por lei; e iii) aos princípios</p><p>de respeito da dignidade da pessoa e da finalidade reeducativa da pena</p><p>positivamente estabelecida em muitas Constituições (ibid). Em conse-</p><p>quência, acrescenta o autor italiano, uma política liberal deveria hoje</p><p>ter a coragem de dar um salto civilizatório: “assumir como perspectiva</p><p>de longo prazo a progressiva superação da prisão e, enquanto isto,</p><p>despojar a reclusão de seu atual papel de pena principal e paradig-</p><p>mática, limitando, drasticamente a duração e reservando-a somente</p><p>para as ofensas mais graves aos direitos fundamentais (como à vida</p><p>e à integridade pessoal), aos quais somente justificam a privação de</p><p>liberdade pessoal a qual é, também um direito fundamental constitu-</p><p>cionalmente garantido”. Para isto, Ferrajoli indica os passos a seguir:</p><p>Em primeiro lugar, uma política de desencarceramento deste tipo</p><p>quer dizer, antes de tudo, a abolição da vergonha que ainda existe na</p><p>Itália pela manutenção da pena de prisão perpétua: uma pena que na</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 4544 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>Itália é claramente inconstitucional porque está em contraste absoluto</p><p>com os requisitos e princípios da pena, por seu caráter contrário ao</p><p>“sentido de humanidade” e por sua falta de finalidade reeducadora,</p><p>algo requerido pelo artigo 27 da Constituição. Em segundo lugar, quer</p><p>dizer a redução da duração da pena, isto é, a diminuição de seus limi-</p><p>tes máximos de 15 ou de 10 anos ou ao menos aos máximos penais</p><p>estabelecidos pelos Códigos europeus: vinte anos segundo o Código</p><p>Penal francês (artigos 18 e 19) suíço (artigo 35) austríaco (artigo 18)</p><p>norueguês (artigo 17) grego (artigo 52 e 54) e luxemburguês (artigo 16);</p><p>quinze anos segundo o Código alemão (artigo 14 e 17) e desde logo, 12</p><p>ou 10 anos segundo os Códigos da Finlândia (cap. 2) e da Suécia (cap,</p><p>26). Em terceiro lugar, uma política de desencarceramento deve hoje</p><p>apontar para a limitação da pena carcerária somente para os delitos mais</p><p>graves, e, a previsão para os demais delitos, começando pelos de caráter</p><p>patrimonial, de uma ampla gama de penas: limitativas da liberdade ou</p><p>de outros direitos que não consistam na segregação, ou seja, na privação</p><p>total da liberdade pessoal, que contenha o corpo e a alma em uma insti-</p><p>tuição total, sendo uma mistura de pena corporal e disciplinar. Enfim,</p><p>uma política de desencarceramento deve ademais acontecer como efeito</p><p>de uma séria despenalização, que confira credibilidade ao direito penal</p><p>restituindo o seu caráter de extrema ratio, ficando reservada somente</p><p>para ofensas a direitos e a bens fundamentais.</p><p>Conclui Ferrajoli recordando que, com a reclusão,</p><p>o condenado</p><p>é jogado, com muita frequência, em um inferno: em uma sociedade</p><p>selvagem abandonada de fato em grande parte do jogo “livre” das re-</p><p>lações de força e de poder entre presos e ao desenvolvimento de uma</p><p>criminalidade carcerária incontrolável, que é exercida sobre os mais</p><p>débeis e indefesos. Além disso, acrescenta que dentro da prisão toda a</p><p>violência, toda a violação de direitos, toda a lesão da dignidade humana</p><p>das pessoas é possível. “De fato, na maior parte das prisões, os presos</p><p>se encontram literalmente em condições de sujeição – a seus carcerei-</p><p>ros, e ao grupo de poder que se forma entre os presos – e toda a vida é</p><p>disciplinada por regras e práticas em parte escritas, e em grande parte</p><p>não escritas, que fazem de qualquer prisão uma prisão completamente</p><p>diversa da outra, de toda pena uma pena diversa da outra, de cada preso</p><p>um preso diversamente discriminado ou privilegiado a respeitos dos</p><p>demais: pela diferença em matéria de espaços comuns, das condições</p><p>de habitabilidade das celas, dos chuveiros, de horários de pátio e de ar</p><p>livre, de condições higiênicas e sanitárias; pelas inumeráveis prescrições</p><p>e sobretudo proibições, muitas das quais são completamente distintas</p><p>entre uma prisão e outra; pelas vexações pequenas e grandes, às quais</p><p>são submetidos os presos em violações de direitos fundamentais”. (ibid)</p><p>O autor acaba sintetizando: a prisão equivale a uma contra-</p><p>dição institucional . Por quê? Porque é uma instituição criada pela</p><p>lei, porém na qual se desenvolve o próprio governo das pessoas. É</p><p>um lugar confiado ao controle total do Estado, porém cujo interior</p><p>não é regido por controles e regras, senão a lei do mais forte: a lei da</p><p>força pública dos agentes penitenciários e da força privada dos presos</p><p>mais prepotentes e organizados. É uma instituição pública dirigida</p><p>à custódia dos cidadãos, mas que não consegue garantir os direitos</p><p>fundamentais elementares, começando pelo direito à vida. Gera uma</p><p>vida completamente artificial, produzida pelo direito, mas em seu</p><p>interior é reproduzido o Estado de natureza, sem regras e sem direito,</p><p>onde sobrevive o homo homini lupus e onde a máxima segurança ex-</p><p>terna é acompanhada da máxima insegurança interna. “É um aparato</p><p>coercitivo. Máxima expressão de poder do Estado sobre o cidadão,</p><p>porém em cujo interior mesmo o Estado está ausente, e não o Estado</p><p>de direito senão simplesmente o Estado em sua acepção hobbesiana,</p><p>capaz de assegurar a integridade pessoal” (ibid).</p><p>Como se pode comprovar, desde o que aqui se designa como um</p><p>autêntico garantismo radical, a pena de prisão não admite uma refor-</p><p>ma que seja compatível com uma perspectiva de respeito aos direitos</p><p>fundamentais. Assim como a literatura vem assinalando, a reforma da</p><p>prisão desde uma perspectiva como a assinalada, somente pode estar</p><p>dirigida pela sua constante e inacabável redução e superação. (cfr. Pa-</p><p>varini 2006, Bergalli 2006, Rivera 2008 y 2009, Zaffaroni 1998).</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 4746 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>4. PESSIMISMO E DESENCANTO ACERCA DAS AL-</p><p>TERNATIVAS AO EMPREGO DA PRISÃO (E SUAS CON-</p><p>SEQUÊNCIAS)</p><p>A interpelação radical formulada por Ferrajoli, além de profun-</p><p>damente lúcida é muito útil para que o pessimismo que vem sendo</p><p>assentado (e acentuado) acerca da impossibilidade de se pensar em</p><p>mecanismos alternativos ao encarceramento, seja revisado. A que pes-</p><p>simismo se alude? Vejamos.</p><p>Se algo foi criticado sobre o pensamento critico que em torno</p><p>da chamada “questão criminal” vem sendo desenvolvido nas últimas</p><p>décadas, tem sido o fato deste realizar numerosos questionamentos</p><p>sem apontar “alternativas” ou ”soluções” aos problemas desvelados.</p><p>De fato, semelhante crítica foi construída inclusive com elementos de</p><p>constante menosprezo das reflexões críticas nos últimos anos; como</p><p>se estas tivessem carência ou incapacidade de formular desenhos al-</p><p>ternativos às tradicionais formas de organização e funcionamento dos</p><p>sistemas penais. É óbvio dizer que este tipo de menosprezo refletiu,</p><p>novamente, a postura mais conservadora de um pensamento crimi-</p><p>nológico e penológico ancorado ainda nos parâmetros positivistas,</p><p>nunca suficientemente abandonados.</p><p>Junto a isto, outros fenômenos contribuíram ao estabelecimen-</p><p>to de certo pessimismo na busca de fórmulas de contenção, redução,</p><p>substituição, etc., de um dos sistemas penitenciários cada vez mais aco-</p><p>metidos por uma profunda crise de legitimação (por seu crescimento</p><p>desmensurado, sua ineficácia, sua violação intrínseca, etc.). De fato, fe-</p><p>nômenos tais como a crise da cultura do welfare, a derrocada dos mitos</p><p>ressocializadores, a ineficácia das mal chamadas “medidas alternativas”,</p><p>as opções custodiais, o crescimento constante da presença penitenciária</p><p>(aumento que tem sido díspar em certos países) e outros fenômenos</p><p>similares tem provocado nas últimas décadas a consolidação e o esta-</p><p>belecimento de uma perigosa conclusão: aquela que afirma que não</p><p>existem alternativas – reais, viáveis – ao emprego do sistema penitenciário</p><p>e/ou da prisão para o tratamento e a regulação dos conflitos sociais.</p><p>No campo do sistema penal e penitenciário, podemos contem-</p><p>plar um horizonte que tem sido definido como um “novo holocausto”:</p><p>a situação a que chegou os EUA, onde vários milhões de pessoas</p><p>“vivem” de uma forma ou de outra, dentro do sistema penal (seja nos</p><p>corredores da morte das prisões, ou em penitenciárias públicas ou</p><p>privadas, ou nos campos e colônias de trabalho, ou em regimes de se-</p><p>miliberdade controlados por um exército de operadores ou através de</p><p>controles telemáticos, ou em centros psiquiátricos, etc.)28 constituin-</p><p>do a mais clara consequência do perigo apontado. Em um exemplo</p><p>semelhante, as funções que o sistema penal deve cumprir são reveladas</p><p>claramente: eliminação (física) e neutralização (arquitetônica, mecâ-</p><p>nica, farmacológica ou química, etc.) dos transgressores da lei penal,</p><p>constituem os pilares fundamentais sobre os quais se assentaram as</p><p>campanhas de “Lei e ordem”, “tolerância zero”, etc., que alimentaram</p><p>semelhantes resultados. Será conveniente atentar à nova barbárie que</p><p>se anuncia desde o triunfo eleitoral de Donald Trump...</p><p>Em outros contextos, particularmente nos sistemas penitenciários</p><p>de muitos países da América Latina, do leste europeu e de certos países</p><p>do centro da Europa, o panorama de degradação, superlotação e obsce-</p><p>nidade, também alcança níveis que, se fossem de conhecimento geral,</p><p>deveriam resultar inadimissíveis para a consciência contemporânea.</p><p>E com isto tudo, de que pessoas e magnitudes estamos falando?</p><p>5. O ENCARCERAMENTO EM MASSA E A PERSPECTI-</p><p>VA DO DANO SOCIAL</p><p>Há quinze anos, os relatórios do International Center for Prison</p><p>Studies (ICPS) vêm alertando sobre o aumento incontrolável da po-</p><p>pulação encarcerada em todo o mundo, com ritmos e geografias</p><p>28 A leitura da obra de Christie (1993) continua sendo altamente recomendada nesse sentido. No</p><p>entanto, se o autor noruego qualificava de “novo holocausto” um sistema penitenciário que, na</p><p>época, reunia nos EUA 1.200.000 pessoas privadas de liberdade, o que diria o autor quando, quase</p><p>sete anos depois, apenas no final do milênio, o número chegava a 2.000.000 de indivíduos?</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 4948 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>diferentes. Um relatório do World Prison Population List indicou um</p><p>número de pouco mais de 11 milhões de pessoas presas no mundo. É</p><p>especialmente alarmante o caso de países que excedem 100 presos por</p><p>100.000 habitantes, que, a propósito, são muito numerosos.</p><p>Outro relatório mais recente (de final de outubro de 2015)29</p><p>completa o indicado quadro global, e mostra que “mais de 10,35 mi-</p><p>lhões de pessoas estão detidas em estabelecimentos em todo o mundo,</p><p>seja em prisão preventiva ou condenadas. Adverte-se que faltam ser</p><p>contabilizados os presos detidos em algumas jurisdições que não estão</p><p>plenamente reconhecidas internacionalmente e os presos que estão em</p><p>instalações policiais e não estão incluídos no total publicado da popu-</p><p>lação nacional privada de liberdade. Os números totais são, portanto,</p><p>superiores a 10,35 milhões e podem muito bem ser superiores a 11</p><p>milhões (...). Desde o ano 2000, a população carcerária mundial total</p><p>cresceu quase 20%, um pouco maior do que o aumento estimado</p><p>de 18% na população geral do mundo durante o mesmo período.</p><p>Existem diferenças consideráveis entre os continentes, com variações</p><p>dentro deles. A população reclusa na Oceania aumentou em quase</p><p>60%, e nas Américas em mais de 40%; na Europa, por outro lado,</p><p>a população carcerária total diminuiu em 21%. O número europeu</p><p>reflete quedas na população penitenciária na Rússia e na Europa Cen-</p><p>tral e Oriental. Nas Américas, a população carcerária aumentou 14%</p><p>nos EUA, mais de 80% nos países da América Central e 145% nos</p><p>países da América do Sul.”30</p><p>De fato, no âmbito da América Latina, a situação parece ainda</p><p>mais grave como consequência do encarceramento em muitas unidades</p><p>não penitenciárias (senão policiais e militares), a consequente falta de</p><p>registros prisionais oficiais que permitam contabilizar o número total</p><p>29 As primeiras cinco edições do World Prison Population foram publicadas pela Direçãp de</p><p>Investigação e Estatística do Ministério do Interior do Reino Unido (Research and Statistics</p><p>Directorate of the United Kingdom Home Office); os cinco seguintes foram publicados pelo</p><p>International Centre for Prison Studies (ICPS). Após a fusão do ICPS com o Institute for</p><p>Criminal Policy Research (CIPR), em novembro de 2014, esta décima primeira edição é a</p><p>primeira publicada por CIPR.</p><p>30 World Prison Population List (eleventh edition). Institute for Criminal Policy Research.</p><p>www.prisonstudies.org www.icpr.org.uk</p><p>de pessoas presas e os elevadíssimos índices de presos sem sentenças</p><p>definitivas. Apesar disso, o citado relatório do ICPS também registrou</p><p>o número de presos na América Latina no final de 2012 em 1.470.000</p><p>(cifra oriunda do agrupamento de três subcontinentes: América do Sul</p><p>com quase 1.000.000, Caribe com 130.000 e América Central com</p><p>340.000). Esses números, por sua vez, são coincidentes com os forneci-</p><p>dos periodicamente pelo Instituto Latino-Americano das Nações Unidas</p><p>para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD).31</p><p>Este fenômeno vem sendo denominado como “encarceramento</p><p>em massa” (mass incarceration) e lhe foi atribuído uma série impor-</p><p>tante de consequências que, a partir do prisma da proteção efetiva</p><p>dos direitos humanos, apontam para danos muito graves e tendências</p><p>político penais perigosas. William G . Martin, do Departamento de</p><p>Sociologia da Universidade de Binghamton, indica que semelhante</p><p>encarceramento massivo se tornou uma característica definidora da</p><p>política criminal americana nas últimas três décadas do século XX,</p><p>período em que mais de sete milhões de pessoas estavam sob vários</p><p>tipos de supervisão criminal (2016). Alexandre (2010), a partir de um</p><p>ponto de vista qualitativo, afirma que, além disso, o alto componente</p><p>racial desenha uma “prisão negra” (2012), diretamente marcada pela</p><p>operação bélica da política de guerra contra às drogas que se demons-</p><p>trou cruel a milhares de jovens afro-americanos nas últimas décadas.</p><p>Em sentido semelhante, Wacquant falou da construção de “prisões</p><p>guetos” (2001) e Murakawa, em seu turno, definiu claramente os</p><p>contornos de um “Estado carcerário” nas direções que se vem citando</p><p>e com características que o vinculam aos grandes poderes, com a perda</p><p>de orientações anteriores, liberais e de traço reabilitador, com a res-</p><p>tauração de penas degradantes e com a reincorporação da penalidade</p><p>31 Sobre esses números e tendências, o Diretor do ILANUD assinalou recentemente que “a situ-</p><p>ação carcerária nos países da América Latina e do Caribe é muito grave. Há muita violência,</p><p>numerosas mortes e crimes que ocorrem dentro dos presídios, muitos deles cometidos no seu</p><p>intererior mas com efeitos em seu exterior, e gravíssimas violações aos direitos humanos de</p><p>pessoas privadas de liberdade e dos funcionários. A situação vem se deteriorando nas últimas</p><p>três décadas (1980-2010), e escapou ao controle dos países desde a década de 90, na maioria</p><p>dos casos “( Elías Carranza, “Situación penitenciaria en América Latina y el Caribe ¿qué</p><p>hacer?”, 2012, www.anuariocdh.uchile.cl).</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 5150 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>capital (2014).</p><p>Antes de examinar as consequências perniciosas causadas pelo</p><p>mass incarceration, é conveniente deter-se por um momento para</p><p>compreender o debate atual sobre o aumento e a diminuição de po-</p><p>pulações penitenciárias, considerando que não se consegue encontrar</p><p>uma resposta unívoca, senão contraditória, para os números das popu-</p><p>lações encarceradas, fundamentalmente com relação à última década.</p><p>Por um lado, há aqueles que afirmam que uma tendência clara</p><p>contra o encarceramento em massa já começou, podendo até mesmo</p><p>se falar de um decarceration que, inclusive, já teria começado a ser</p><p>acentuado. Entre muitos, cito o trabalho paradigmático de William</p><p>G . Martin entitulado Decarceration and the justice disinvestment. Este</p><p>autor começa por refutar a ideia de “auto-sustentabilidade” do encar-</p><p>ceramento em massa que se baseava na, para ele, falsa crença de que</p><p>o mesmo se assentava sobre o componente racial e de classe, elemen-</p><p>tos que assegurariam sua perpetuidade. William Martin diz que seu</p><p>trabalho “questiona essas conclusões com o argumento de que está</p><p>tomando força o desencarceramento, termo que precisa de uma aná-</p><p>lise longa e séria” (op cit.:.. 15). Utilizando como exemplo o estado de</p><p>Nova Iorque (com uma diminuição da população prisional em 21%</p><p>entre 1999 e 2011 e fechamento de várias penitenciárias), o citado</p><p>autor desenvolve a tese em seu ensaio de que o desencarceramento</p><p>está, sem dúvida ocorrendo. Em sequência (e também precedidos)</p><p>a isso, notam-se importantes mudanças na legislação sobre drogas,</p><p>queda da atenção da mídia sobre o problema da criminalidade e da in-</p><p>segurança nas ruas e uma consequente perda de atenção dos cidadãos</p><p>para essas questões como principais preocupações (ibidem). Baseado</p><p>em trabalhos anteriores de Harcourt (2001), entre outros, William</p><p>Martin conclui que “não há nenhuma evidência de um retorno como</p><p>nos séculos XIX e XX a um ciclo de reforma e reabilitação” (op cit:</p><p>15). De acordo com suas previsões, já começou um ciclo em que as</p><p>medidas com base na comunidade, o apoio do setor empresarial, âm-</p><p>bitos de polícias locais, emprego de novas tecnologias e especialmente</p><p>o trabalho de organizações sem fins lucrativos, já estão desenhando</p><p>os contornos de um novo “complexo industrial sem fins lucrativos”</p><p>(non-profite industrial complex, op.cit.: 14)</p><p>Pessoalmente, entendo que esse trabalho tem alguns proble-</p><p>mas. Nele é examinado fundamentalmente a experiência do Estado de</p><p>Nova Iorque, e essa é uma experiência parcial. Nova Iorque foi um dos</p><p>Estados (possivelmente apenas o segundo depois da Califórnia) em</p><p>que uma determinada política de diminuição da população prisional</p><p>foi realizada, incluindo a passagem de condenados a formas de con-</p><p>trole penal de caráter comunitário. Porém, outros Estados seguiram</p><p>caminhos muito diferentes, e, querer inferir a partir do que aconteceu</p><p>uma possível interpretação global para os Estados Unidos, parece uma</p><p>hipótese ao menos arriscada.</p><p>O modelo da chamada justice disinvestment sobre a qual parece</p><p>se assentar o que está sendo descrito é, no entanto, seriamente ques-</p><p>tionado. Em outro trabalho (After prisons? Freedom, decarcerations and</p><p>justice desinvestment) publicado pelo próprio William Martin junto</p><p>com Joshua M . Price (2016), ambos advertem que o fechamento de di-</p><p>versas prisões (por razões econômicas)</p><p>“causou uma concentração ainda</p><p>maior de presos em prisões que permanecem abertas, deteriorando-se,</p><p>assim, suas condições de vida. Eles também entendem que o chamado</p><p>“desinvestimento na justiça”, na realidade, traduz a transferência do</p><p>Estado de sua responsabilidade direta pela administração criminal da</p><p>justiça para o setor privado e sem fins lucrativos, ao mesmo tempo em</p><p>que estende seu alcance através de novas formas de supervisão, vigilância</p><p>e policiamento dos bairros pobres e populações negras.</p><p>Aderindo a este debate, pode ser citado o trabalho de Brandariz,</p><p>ainda a ser publicado, que faz uma comparação entre as populações</p><p>prisionais em alguns países europeus, mas se concentra principal-</p><p>mente no caso espanhol, e no dos Estados Unidos. Em ¿Historia de</p><p>dos continentes?. Comparación del reciente descenso de la población pe-</p><p>nitenciaria en EE.UU. y España, o mencionado autor ressalta que,</p><p>de acordo com dados da World Prison Population List, a população</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 5352 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>penitenciária na Europa caiu 21%, índice semelhante ao da Espanha.</p><p>Em relação à situação nos Estados Unidos, Brandariz indica que “é</p><p>especialmente relevante que essa tendência de queda também tenha</p><p>ocorrido no caso dos Estados Unidos. Depois de mais de três décadas</p><p>de crescimento exponencial das taxas de população prisional, o que</p><p>tornou o sistema penal americano no melhor exemplo do modelo de</p><p>encarceramento em massa, o aumento do número de presos desacele-</p><p>rou no início do século e tem finalmente caído desde 2008 (...), já que</p><p>o número total de reclusos caiu 3,6% entre 2008 e 2014 e a taxa da</p><p>população carcerária reduziu de 758 pessoas presas por 100.000 habi-</p><p>tantes em 2007 para 695 em 2014. No entanto, se levarmos em conta</p><p>a tendência anterior, a transcendência dessa evolução é indiscutível.</p><p>Em suma, a diminuição da população carcerária se tornou durante a</p><p>última década, uma tendência comum a uma pluralidade de países</p><p>do Norte Global” (2017). O ensaio examina para cada realidade um</p><p>conjunto de causas que serviriam para explicar esse fenômeno.</p><p>Em um sentido inverso a tais interpretações, a pesquisa de Peter</p><p>Wagner e Bernardette Raguy (em um ensaio recente intitulado The</p><p>whole pie), que explica a existência de mais de 2.300.000 pessoas priva-</p><p>das de liberdade em 2016 – com o cruzamento de numerosos dados de</p><p>pessoas privadas de liberdade nos Estados Unidos da América. Sua tese</p><p>refuta absolutamente a ideia de um declínio da população penitenciária</p><p>sustentado por outros autores como foi mencionado, fornecendo dados</p><p>substanciais que, a propósito, coincidem com os da World Population</p><p>List, e indicando, no máximo, uma estagnação nas alturas, uma espécie</p><p>de patamar nos gráficos da população reclusa nos Estados Unidos</p><p>Pessoalmente, penso que, independentemente das interpre-</p><p>tações que estão sendo citadas (entre uma literatura muito mais</p><p>ampla que se dedica ao assunto, tão cara à “tentação criminológica”</p><p>da qual ironicamente falava Pavarini), duas questões fundamentais</p><p>não podem ser esquecidas: i) não acredito na possibilidade científica</p><p>de fazer comparações entre países, sociedades, realidades e histórias</p><p>muito diferentes; ii) o que acredito mais: essas análises “quantitativas”,</p><p>das quais não nego sua importância, não penetram nas de natureza</p><p>“qualitativa”, isto é, no estudo das condições de vida das pessoas pri-</p><p>vadas de liberdade, as quais continuam a ser computadas, a propósito,</p><p>por taxas impressionantemente altas.32</p><p>Porque, e agora entrando nessa segunda questão, as consequên-</p><p>cias do fenômeno do encarceramento em massa são muito diversas,</p><p>causando mais dano social difuso e generalizado do que aquele que se</p><p>propõe a conter. Por um lado, sistemas prisionais em colapso com altos</p><p>níveis de superlotação colocam em questão os direitos fundamentais</p><p>das pessoas que os habitam e, em muitas ocasiões, representam claras</p><p>violações de tratados e recomendações internacionais que ordenam a</p><p>colocação de um recluso por cela (Regras Mínimas para o Tratamento</p><p>dos Reclusos, ONU, 1955 e 2015) ou proíbem a sujeição a trata-</p><p>mentos ou penas que possam ser cruéis, desumanas ou degradantes</p><p>(Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis,</p><p>Desumanos ou Degradantes, ONU 1984).</p><p>Por outro lado, os danos acima mencionados também são pro-</p><p>jetados em outro grupo de pessoas afetadas, especialmente sobre as</p><p>famílias e ambientes sociais das pessoas presas, não menos prejudica-</p><p>das que estas em uma série de questões essenciais de caráter pessoal,</p><p>afetivo, laboral, econômico, assistencial.33 E são muito especialmente</p><p>as mulheres que sofrem em suas vidas cotidianas a ausência de mari-</p><p>dos, filhos e pais em privação de liberdade, danos cujo exame requer</p><p>uma especial perspectiva de gênero em sua consideração.</p><p>Da mesma forma, os próprios trabalhadores penitenciários</p><p>(funcionários regimentais, de tratamento, de atenção à saúde e à edu-</p><p>cação e de gestão administrativa) internalizam e também sofrem os</p><p>efeitos negativos da segregação prisional em massa, com importantes</p><p>32 Por outro lado, e de acordo com os próprios dados fornecidos por Brandariz, adverte-se sobre</p><p>“anomalias” em certos casos relacionados aos países europeus. Por exemplo, a) na Grécia, a que-</p><p>da na população encarcerada é muito baixa; b) em Portugal, não há queda senão (leve) aumento</p><p>de presos; c) na Itália, o processo de diminuição é devido ao efeito particular provocado pela</p><p>Sentença Torregiani explicada neste volume e, como será visto, de natureza muito distinta.</p><p>33 Ver a pesquisa realizada pelo Observatorio del Sistema penal y los derechos humanos da Uni-</p><p>versidad de Barcelona sobre La cárcel en el entorno familiar. Barcelona: 2006 (OSPDH).</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 5554 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>índices de distúrbios emocionais, psicológicos, e de forte pressão la-</p><p>boral e institucional34.</p><p>Em uma distinta dimensão, mas que também fala dos danos</p><p>causados pelo encarceramento gigantesco, pode se constatar como a</p><p>própria sociedade é afetada pelo dano social gerado por opções pu-</p><p>nitivas de alto custo (econômico, político, social e cultural), porque</p><p>contribui para aumentar ainda mais a vulnerabilidade de muitos seto-</p><p>res sociais, como será descrito mais adiante35. O paradigma do social</p><p>harm representa hoje um importante modelo científico que evidencia</p><p>os danos, em um sentido amplo e de caráter difuso, que ocasiona o</p><p>gigantesco encarceramento mencionado36.</p><p>O que anos atrás era visto como o risco do panpenalismo, ou</p><p>direito penal máximo (Alessandro Baratta37, Luigi Ferrajoli38), agora</p><p>aumentou consideravelmente39. A crise econômica contemporânea con-</p><p>tribui para delinear os contornos de um Estado penal que cada vez mais</p><p>investe em tais políticas penais, em vez de apostar mais fortemente por</p><p>outras de ordem social dirigidas a buscar caminhos de alternatividade à</p><p>prisão com medidas restaurativas, comunitárias ou médico-assistenciais</p><p>(aquilo que há algumas décadas se conheceu como modelos de “prisão e</p><p>34 Especialmente, conforme a análise de Alessandro Baratta “Resocialización o control so-</p><p>cial. Por un concepto critico de ‘reintegración social’ del condenado”. Apresentação no</p><p>Seminario Criminología crítica y sistema penal, organizado pela Comisión Andina Juristas</p><p>e a Comisión Episcopal de Acción Social, em Lima (Perú), de 17 a 21 de Setembro de 1990.</p><p>35 Para conhecer mais sobre tais efeitos e custos diversos da expansão prisional, pode se socorrer</p><p>à investigação europeia denominada Crime, repression cost in context (CRCC) no marco do</p><p>6th FWP (Sixth Framework Programme).</p><p>36 Para uma visão exaustiva da perspectiva do “social harm”, pode ser consultado o número</p><p>monográfico da revista digital Crítica Penal y Poder (núm. 5) que publicamos por meio do</p><p>Observatorio</p><p>del Sistema penal y los derechos humanos da Universidad de Barcelona.</p><p>37 Il diritto penale minimo y Criminologia critica e critica del diritto penale. Roma: Il Mulino</p><p>(1983).</p><p>38 Diritto e Ragione, Teoria del garantismo penale. Roma: Ed. Laterza (1989).</p><p>39 Quando se pergunta “por que a população encarcerada aumentou tanto?” podemos adotar a</p><p>reflexão de Elías Carranza ao responder que “duas respostas clássicas foram dadas a essa</p><p>pergunta: i) Porque há mais delito. Esta resposta considera as taxas penitenciárias como indi-</p><p>cadores de criminalidade; e ii) Porque há políticas que promovem maior uso da justiça penal e</p><p>da prisão. Esta resposta inclui o resultado de pesquisas que verificam que nem sempre existe</p><p>correlação entre o aumento das taxas penitenciárias e as taxas de criminalidade, observando-</p><p>-se casos em que a população prisional aumenta paralelamente a taxas de criminalidade planas</p><p>ou mesmo decrescentes. No caso dos países da América Latina e do Caribe, o ILANUD veri-</p><p>ficou que (...) as políticas de maior uso e maior severidade da justiça criminal prevalecem na</p><p>maioria dos países “(op.cit.).</p><p>comunidade” ou “prisão e sociedade” ou “prisão e território”40, as quais</p><p>iniciavam com a manutenção dos infratores na comunidade-socieda-</p><p>de-território e, em última instância, na prisão, e hoje são modelos tão</p><p>abandonados que parecem desconhecidos para a própria comunidade</p><p>científica). Não se trata de continuar projetando supostos programas</p><p>alternativos à prisão para demonstrar que eles não a reduzem, e, sim,</p><p>aumentam as redes do controle penal, mas trabalhar com os afetados por</p><p>essa situação, como será proposto mais adiante.</p><p>Hoje em dia, em vez de ter prisões que realmente albergassem</p><p>as pessoas que cometeram os crimes mais graves e atentaram contra</p><p>outras pessoas ou contra toda a ordem socioeconômica, temos centros</p><p>onde tais infrações representam entre 10 e 15% do total da população</p><p>presa. Tanto na Europa como na América Latina, o restante 85-90%</p><p>é geralmente composto de jovens, de classes subalternas, com altos</p><p>índices de doenças, analfabetismo, falta de trabalho, estrangeiros e</p><p>mulheres com crianças pequenas sob seus cuidados (European Prison</p><p>Observatory 201441 e ILANUD 2013). Ao se tratar de populações</p><p>altamente vulneráveis, o dano causado por uma opção segregacionista</p><p>e massiva resulta muito difundido e diversificado: presos, membros</p><p>da família (especialmente mulheres), agentes penitenciários e seto-</p><p>res sociais são – em diferentes níveis e natureza – os receptores do</p><p>dano acima mencionado, em um processo que não parece poder ser</p><p>detido. Do que foi sucintamente apontado, geram-se algumas ques-</p><p>tões: 1) Quando, por que e em que condições surgiu um processo de</p><p>crescimento incontrolável e massivo? 2) Poderá existir um freio ao</p><p>aumento punitivo e de encarceramento em massa? 3) A prisão poderá</p><p>recuperar a dimensão reservada para a punição dos fatos mais graves</p><p>ou de ultima ratio conforme foi concebida alguma vez? 4) Podemos</p><p>pensar no desenvolvimento de um verdadeiro programa de “redução</p><p>40 Sobre tais iniciativas comunitárias, sociais e territoriais, ver Pavarini Castigar al enemigo.</p><p>Criminalidad, exclusión e inseguridad. Quito: Flacso 2009.</p><p>41 O European Prison Observatory opera en oito países (França, Reino Unido, Grécia, Itália,</p><p>Letônia, Polônia, Portugal e Espanha), a fim de monitorar os sistemas penitenciários e suas</p><p>condições. Através de análises quantitativas e qualitativas, o European Prison Observatory</p><p>também examina os sistemas alternativos ao encarceramento na Europa.</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 5756 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>de danos” que uma opção político criminal semelhante causa, apoian-</p><p>do decididamente numa transformação reducionista da prisão? 5)</p><p>Como trabalhar para reduzir os danos? Contextualizemos.</p><p>Após o fim da Segunda Guerra Mundial, tanto na Europa</p><p>como na América Latina, o movimento chamado “constituciona-</p><p>lismo social” marcou um curso entre os anos 1950 e 1960, que</p><p>foi seguido, pelo menos no nível das normas legais, pelas reformas</p><p>dos sistemas penitenciários iniciadas fundamentalmente a partir dos</p><p>anos 1970. De fato, em ambos os continentes, o chamado “refor-</p><p>mismo penitenciário” foi realizado sob o paradigma da “ideologia da</p><p>ressocialização”, herdeira da centenária instituição da pena terapêu-</p><p>tica indeterminada de raiz norte-americana e de tradição religiosa</p><p>(Pavarini 198042, Rivera43, Garland44).</p><p>Na verdade, essa ideologia apresentou o eixo fundamental do tra-</p><p>tamento reeducativo e readaptador como uma ferramenta para cumprir</p><p>com os fins da pena privativa de liberdade. Os exemplos das reformas</p><p>que, nesse sentido, ocorreram nos dois continentes, como veremos em</p><p>breve, durante o período indicado, são reveladores. No entanto, as mais</p><p>de três décadas desde então começaram a evidenciar o fracasso dessas</p><p>opções reformistas. Durante as últimas três décadas, tenho estudado,</p><p>embora de maneiras distintas, os processos de reformas penitenciárias</p><p>da Itália, Alemanha, Reino Unido, Portugal ou Espanha (Europa)45; e</p><p>42 Cárcel y fábrica. Los orígenes del sistema penitenciario (siglos XVI y XIX). Siglo XXI</p><p>editores (1980)</p><p>43 La cuestión carcelaria. Historia, epistemología, derecho y política penitenciaria. Vol. I</p><p>(2008) e II (2009). Buenos Aires: Editores del Puerto.</p><p>44 The culture of control. Crime and social order in contenporary society. Chicago: University</p><p>of Chicago Press (2001).</p><p>45 Através de alguns dos seguintes projetos de pesquisa em que trabalhamos a partir do Obser-</p><p>vatorio del Sistema Penal y los Derechos Humanos da Universitat de Barcelona.</p><p>Re-socialisation of offenders in the EU (RE-SOC) em conjunto com Josep María Gar-</p><p>cía-Borés Espí (IP); Alejandro Forero Cuéllar; María Celeste Tortosa (entre 01/02/2013 e</p><p>31/01/2015, ver Comissão Europeia http://www.ub.edu/ospdh/es/privacion-de-libertad-y-de-</p><p>rechos-humanos).</p><p>European Prison Observatory, Detention Conditions in the European Union (EPO) em conjunto</p><p>com Josep María García-Borés Espí (IP); Mónica Aranda (entre 15/01/2013 e 14/01/2014), ver</p><p>Comissão Europeia, http://www.ub.edu/ospdh/es/privacion-de-libertad-y-derechos-humanos.</p><p>Crime Repression Costs in Context (CRCC), em conjunto com Héctor Silveira Gorski; Gem-</p><p>ma Nicolás Lazo; Alejandro Forero Cuéllar (entre 01/05/2007 e 30/04/2009) no VI Programa</p><p>Marco, DG Justicia. Comissão Europeia http://www.ub.edu/ospdh/es/privacion-de-libertad-</p><p>da Argentina, Costa Rica e Colômbia na América Latina46. Com efeito,</p><p>o fracasso da finalidade ressocializadora através da prisão constitui hoje</p><p>um fato incontestável (a verdade é que, em alguns países, isso tem maior</p><p>presença do que em outros), e termina por desenhar um panorama</p><p>muito sombrio para o presente e muito preocupante para o futuro.</p><p>Embora nunca tenha sido demonstrada a ressocialização prisional, os</p><p>países referidos têm agora sistemas penais completamente colapsados,</p><p>com um alto custo econômico, mas também ineficazes ao cumprimento</p><p>das suas pretendidas funções, e altas taxas de presos doentes, impor-</p><p>tantes índices de presos pobres, estrangeiros e geralmente oriundos dos</p><p>estratos sociais mais desfavorecidos, constituindo-se em containers dos</p><p>excluídos dessas políticas e com a difusão de sistemas penais de caráter</p><p>mais gerencial em alguns lugares (Brandariz 2014, Forero e Jime-</p><p>nez Franco 2014, Jiménez Franco 2016), quando não decididamente</p><p>bélico em outros (Pavarini 2006 e 2009).</p><p>Agora, como se explica que, exatamente quando na década de</p><p>1970, as primeiras medidas alternativas à prisão foram introduzidas</p><p>na lei, por exemplo, em países europeus como Itália, Alemanha ou</p><p>Espanha, sua população prisional começou a aumentar? Bem, eu acho</p><p>que não se pode duvidar que no objetivo reformista penitenciário eu-</p><p>ropeu dos anos setenta acreditou-se (mais explicitamente em alguns</p><p>países do que em outros) que a introdução dos chamados “permis-</p><p>sões-prêmios”</p><p>ou “benefícios penitenciários” em sede executiva deveria</p><p>funcionar como mecanismos de liberação temporal – mais ou menos</p><p>permanentes – da permanência na prisão, sendo qualificados com maior</p><p>ou menor textualidade de “alternativas legais à privação de liberdade”</p><p>-y-derechos-humanos.</p><p>46 Fundamentalmente através das investigações que levaram à fundação da Red Euro-Latino-</p><p>americana para la Prevención de la Tortura y la Violencia Institucional. Cofundada pelo</p><p>OSPDH em dezembro de 2013, a RELAPT é formada por quarenta entidades públicas e da</p><p>sociedade civil na Europa e na América Latina. Está constituída por nove países da Amé-</p><p>rica Latina, além da Espanha e do apoio do Conselho da Europa, com várias instituições e</p><p>organizações internacionais atuando como membros observadores. Por meio de seus quatro</p><p>mandatos (político, capacitação, análise e comunicação), sua missão é conscientizar e infor-</p><p>mar os Estados sobre os problemas da tortura e da violência institucional. Atualmente, a Rede</p><p>concentra seu trabalho na criação e alimentação do Observatorio Latino Americano de la</p><p>Tortura (OLAT.) http://relapt.usantotomas.edu.co/index.php/en/</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 5958 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>(García Valdés, 1980). Essa aspiração, raramente advertida, foi mais</p><p>explícita na Itália do que na Espanha. No primeiro caso, a Lei Peni-</p><p>tenciária de 1975, claramente pretendeu configurar certos incidentes</p><p>de execução penal como modalidades alternativas ao encarceramento,</p><p>como se verá a seguir. No caso espanhol, mesmo que esse objetivo não</p><p>tenha sido tão explícito como na Itália, o principal inspirador da Lei</p><p>Penitenciária espanhola de 1979, Carlos Garcia Vales, assinalou muitas</p><p>vezes a aspiração de que os institutos tais como liberdade condicio-</p><p>nal e os regimes abertos de terceiro grau, operassem alternativamente</p><p>ao encarceramento. Assim, na introdução da sua obra Comentários a</p><p>la legislación penitenciaria, já apontava, no ano de aprovação da Lei</p><p>de 1979, que era o momento de buscar apaixonadamente substitutos</p><p>penais, citando os benefícios penitenciários, a probation, a suspensão da</p><p>decisão, a remissão condicional, a semiliberdade ... (cf. 1980: 20). Além</p><p>disso, ao tratar da dialética reforma-abolição da prisão, ele enaltecia a</p><p>primeira opção por estabelecer precisamente a possibilidade de introdu-</p><p>zir mecanismos “alternativos” através de benefícios penitenciários (ibid:</p><p>22), com citações posteriores de grandes estudiosos da alternatividade</p><p>ao aprisionamento que ele mesmo citava e se oferecia para propor como</p><p>fórmulas alternativas de prisão aberta (aludindo a Elías Neuman).</p><p>Então, o que terá falhado, repito, para que justo no momento</p><p>que começam a se regulamentar os chamados mecanismos alternativos</p><p>à prisão, sua população tenha começado a aumentar? Talvez a questão</p><p>deva ser formulada de maneira diferente, como é feito no próximo item.</p><p>6. ONDE SE SITUARAM AS (MAL) CHAMADAS MEDI-</p><p>DAS ALTERNATIVAS AO ENCARCERAMENTO?</p><p>Já assinalei que a realidade mencionada encoraja uma conclusão</p><p>muito perigosa, pois a mesma começou a ser usada como um muro</p><p>intransponível toda vez que surge o debate sobre essa assim chamada</p><p>“alternatividade”. Em outras palavras, esse debate se inverteu: toda vez</p><p>que começa supõe-se que não há alternativa possível. E isso ocorre</p><p>porque, como observado, se as últimas décadas mostraram o fracasso</p><p>na implementação de certas medidas substitutivas da prisão, tal fracas-</p><p>so demonstra a impossibilidade de que esta seja substituída, contida,</p><p>reduzida, etc. Como resultado, foi se instalando a percepção de que</p><p>não há sentido em perder tempo em debates e reflexões críticas seme-</p><p>lhantes. Esse é precisamente o perigo: quando o debate e a reflexão</p><p>crítica começam a ser abandonados (e isso é muito típico em tempos</p><p>de pensamento único), não é difícil imaginar o caminho escuro que</p><p>pode começar a ser percorrido.</p><p>É claro que tais opiniões não levaram em conta que, o que tem</p><p>sido (mal) chamado de “alternativas à prisão”, constitui um conjunto</p><p>de discursos (algumas opções legislativas e práticas implementadas)</p><p>que, mais do que projetar alternativas à prisão, estabeleceu formas al-</p><p>ternativas de cumprir uma pena que seguiu sendo privativa de liberdade.</p><p>Vamos analisar esse ponto por um momento.</p><p>Na realidade, se examinarmos, por exemplo, as legislações</p><p>penitenciárias italiana e espanhola (em suas primeiras formulações</p><p>reformistas da década de 1970 e suas reformas posteriores), veremos</p><p>que não foram buscadas verdadeiras alternativas para serem aplica-</p><p>das no lugar da prisão, mas que, no máximo, projetaram-se formas</p><p>alternativas junto com a prisão, com a qual sempre guardaram uma</p><p>relação de total funcionalidade e que continuou na posição central</p><p>das sanções punitivas47. Explico melhor.</p><p>De fato, dos três momentos punitivos que há décadas foram</p><p>assinalados – entre outros, por Roxin48, em sua conhecida teoria dialé-</p><p>tica da união – (o momento da cominação legal da pena, o relacionado</p><p>à sua determinação judicial e o próprio da execução penal), somente</p><p>neste último foram legislativamente elaboradas algumas medidas que,</p><p>após o cumprimento de um tempo de reclusão, poderiam ser conce-</p><p>didas, ou não, como um “prêmio” para a transição a uma modalidade</p><p>47 Para compreender todo esse processo, implementado na Europa a partir das décadas de 1960</p><p>e 1970, podem ser consultadas as obras de Baratta (1985 e 1986), Bergalli (1987 e 1992),</p><p>Pavarini (1992 e 1998), S. Cohen (1988), entre outras.</p><p>48 Roxin, Claus. Problemas Básicos del Derecho Penal. Traducción de Diego Manuel Luzón</p><p>Peña. Madrid: Reus (1976: 11).</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 6160 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>extramural. A lógica dos prêmios e castigos de semelhante ideologia</p><p>correcionalista não trouxe nenhuma alternatividade à pena carcerária</p><p>(cuja centralidade permaneceu inalterada). Pelo contrário, reafirmou a</p><p>mesma pena, permitindo, numa lógica de governo disciplinar da ins-</p><p>tituição, que sua quantidade e rigidez fosse modulada ao se conceder,</p><p>ou se denegar, o que na Itália foram chamadas de medidas alternati-</p><p>vas e na Espanha de benefícios penitenciários (em ambos os países,</p><p>participando de uma mesma ideologia correcional). E, ainda mais,</p><p>estas medidas, ditas alternativas à prisão, só podiam operar depois da</p><p>pessoa condenada passar pela prisão, necessitavam da prisão para poder</p><p>operar, sempre guardando com a prisão uma relação total de afirmação</p><p>da centralidade da mesma; elas nunca foram realmente alternativas.</p><p>Faz muito tempo que Pavarini (1992 e 1998) advertiu sobre isso</p><p>na Itália. Agora, recentemente, Ferrajoli voltou a lembrar. “Trata-se,</p><p>em suma, de levar ao momento de produção do direito – isto é, prever</p><p>legalmente a pena e o juiz determiná-la diretamente no momento da</p><p>sentença – as que na Itália são hoje chamadas de medidas alternativas,</p><p>determinadas de fato discricionariamente, no momento da execução</p><p>penal: como a vigilância especial, a semi-liberdade e a “confiança em</p><p>prova” (affidamento in prova) que apenas privam parcialmente a liber-</p><p>dade pessoal; ou a prisão domiciliar, ou a estância forçada (soggiorno</p><p>obligato) ou a proibição de residência (divieto di soggiorno), que privam</p><p>apenas a liberdade de circulação; ou as penas patrimoniais, como o</p><p>confisco dos meios do delito (confisca del mezzo del reato), como por</p><p>exemplo o veículo nos crimes de trânsito e circulação; ou, finalmente,</p><p>as penas de interdição (proibitivas) que deveriam se transformar de</p><p>penas acessórias em penas principais, as quais privam ou restringem</p><p>certas formas de capacidade da qual o réu tenha abusado (tais como a</p><p>retirada da carteira de habilitação para dirigir, a revogação de licenças</p><p>comerciais ou de qualificações profissionais), ou a interdição de cargos</p><p>públicos e similares” (op cit: 10).</p><p>7.</p><p>EXISTE UMA JURISDIÇÃO DE EXECUÇÃO PENAL?</p><p>O erro conceitual (ao situar as medidas “alternativas à” prisão</p><p>no momento executivo em vez do legislativo ou edditale) é muito</p><p>mais grave do que parece, pois atinge até mesmo a desnaturalização</p><p>do caráter jurisdicional da execução penitenciária. Também como</p><p>apontara Pavarini, na atualidade Ferrajoli é contundente. De fato,</p><p>para mais esforços que foram feitos para afirmar (ingenuamente) a</p><p>natureza jurisdicional da execução penitenciária, a esta falta sua nota</p><p>mais importante49. Ferrajoli é claro quando explica que a reforma</p><p>introduz as chamadas medidas alternativas à prisão – a semi-liberda-</p><p>de, a liberdade controlada, a prisão domiciliar, medida de confiança</p><p>à prova e a vigilância especial – cuja decisão foi atribuída ao Juiz de</p><p>Vigilância de forma análoga àquela prevista aos incidentes de exe-</p><p>cução. Além disso, os poderes dos Magistrados de Vigilância, pelo</p><p>artigo 69 da reforma de 1975, foram aumentados. Em comparação</p><p>às antigas funções do velho Juiz de Vigilância, agora mais investido</p><p>de poder para monitorar os institutos penitenciários e, acima de</p><p>tudo, a fim de poder determinar a modalidade de execução da pena</p><p>velando pelo respeito dos direitos do condenado. “A pergunta que</p><p>devemos fazer é se tal reforma produziu, como comumente se aceita,</p><p>uma jurisdicionalização da execução penal, pelo menos na medida em</p><p>que se refere à aplicação das medidas alternativas à prisão como obra</p><p>da Magistratura de Vigilância. Parece-me que, de qualquer modo, que</p><p>de jurisdição não se pode falar, nem sequer a propósito da aplicação</p><p>de tais medidas. Não basta, para verdadeiramente falar de “jurisdição”</p><p>da execução, o exercício por parte de um juiz dos poderes de decisão</p><p>em matéria de liberdade pessoal. Da jurisdição falta, na verdade, na</p><p>minha opinião, o traço constitutivo: o ius-dicere, isto é, a afirmação,</p><p>a comprovação e a qualificação jurídica de um fato – seja de um ato</p><p>ilícito ou um ato inválido ou não – por meio do princípio público</p><p>49 Na Itália, começa a se falar de um caráter jurisdicional da execução penal somente após a re-</p><p>forma do ordenamento penitenciário com a lei n. 354 de 26 de julho de 1975 e depois com a lei</p><p>n. 689 de 24 de novembro de 1981, ambas informadas pelos dois princípios estabelecidos no</p><p>art. 27, 3º da Constituição: a exclusão de “tratamentos contrários ao sentido de humanidade”</p><p>e a finalidade da “reeducação do condenado”.</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 6362 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>da contradição, como pressuposto necessário de qualquer pronun-</p><p>ciamento judicial50. O poder conferido aos órgãos de execução penal</p><p>é, pelo contrário, um poder altamente facultativo, ancorado não na</p><p>comprovação pública de fatos claramente predeterminados pelas leis</p><p>e pelos requisitos relativos à taxatividade, materialidade, ofensividade</p><p>e culpabilidade, senão nas valorações da personalidade do preso: um</p><p>poder, então, substancialmente arbitrário e anti-liberal que contradiz</p><p>o princípio fundante do garantismo penal o qual não se pode ser</p><p>punido por aquilo que se é, mas somente por aquilo que se fez”. (Ferra-</p><p>joli 2016: 1-351).</p><p>8. POR UM NOVO CONCEITO DE REINTEGRAÇÃO</p><p>SOCIAL DO CONDENADO</p><p>No contexto europeu, como está sendo visto, as reformas dos</p><p>sistemas penitenciários iniciadas principalmente a partir da década de</p><p>1970, foram feitas sob o paradigma da “ideologia da ressocialização”</p><p>(Garland 1990). Com efeito, tal ideologia estabeleceu como eixo</p><p>fundamental dessas novas perspectivas o tratamento reeducativo e</p><p>readaptador como instrumento para cumprir com os fins da pena</p><p>privativa de liberdade. Os exemplos das reformas que nesse sentido</p><p>ocorreram na Itália, Alemanha ou Espanha, durante o período indica-</p><p>do, são reveladores. No entanto, as mais de três décadas transcorridas</p><p>desde então começaram a mostrar os resultados nocivos produzidos</p><p>por estas “opções reformistas”, que utilizaram o espaço prisional com</p><p>50 Sobre esta questão de “jurisdição”, Ferrajoli volta à definição D12.19 que propôs em Princi-</p><p>pia iuris, Teoria del diritto e della democrazia, vol.I, Teoria del diritto, Laterza, Roma-Bari</p><p>2007, § 12.8, pp.879-885. “Argumentei melhor a negação do caráter jurisdicional da execu-</p><p>ção penal após a reforma penitenciária em Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale</p><p>(1989)”, Laterza, Bari, 1989, X ed. 2011, cap. VII, § 30, 4, pp. 406-407.</p><p>51 Pode ser lido ainda mais amplamente quando o mencionado autor apontou, em 1989, a (falsa)</p><p>natureza jurisdicional dos Juízes na execução penal que, por mais dotados de humanidade que</p><p>possam estar os Juízes de Vigilância penitenciária, é o objeto de suas decisões que torna sua</p><p>função muito mais administrativa do que jurisdicional. “A autoridade que dispensa ou nega</p><p>um benefício penal não verifica os fatos em um sistema de contradição e publicidade, mas</p><p>avalia e julga diretamente a interioridade das pessoas; não decide sobre a prática de um crime,</p><p>senão sobre a ausência de periculosidade de um homem, sua boa conduta ou sobre outras</p><p>avaliações análogas que não podem ser verificadas e são irrefutáveis por sua natureza. É esse</p><p>poder ilimitado que faz com que a prisão seja liberticida e total para a instituição prisional:</p><p>porque reduz a pessoa a coisa “(op.cit: 408-409).</p><p>aquelas pretendidas funções ideológicas, quando não de mero governo</p><p>disciplinar e administrativo da prisão (se atendidos os modelos de</p><p>gestão atuarial da suposta previsão de riscos)52.</p><p>A queda do mito da ressocialização “através” da prisão é hoje</p><p>um fato inquestionável. Junto a isso, a impossibilidade de conter o</p><p>aumento da população prisional (em alguns países mencionados,</p><p>durante o tempo indicado, o aumento de presenças penitenciárias</p><p>multiplicou por três a quatro vezes, ainda que tenha diminuído nos</p><p>últimos anos, de forma díspar, em certos países e em processos com-</p><p>plexos para analisar53) acabou desenhando um quadro sombrio. Os</p><p>países citados apresentam na atualidade sistemas prisionais desmesu-</p><p>rados, ineficazes para o cumprimento das suas pretendidas funções,</p><p>com elevadíssimas taxas de presos doentes, altíssimos índices de presos</p><p>estrangeiros e com clientelas penitenciárias que seguem sendo recruta-</p><p>das dos estratos sociais mais desfavorecidos. Agora não é o momento</p><p>de analisar detalhadamente os resultados dessas “opções reformistas”</p><p>(já que numerosas investigações já trataram disso), mas apenas traçar</p><p>as linhas centrais pelas quais esses processos discorreram54.</p><p>O surgimento do fenômeno da violência política (de uma</p><p>inicial identificação interna, há alguns anos, para sua localização inter-</p><p>nacional no presente), a reação do Estado frente a mesma, a definição</p><p>problemática de certos distúrbios sociais, sua difusão amplificada</p><p>52 Em relação à recepção contemporânea de modelos penitenciários atuariais de gestão de risco,</p><p>v. Rivera Beiras (2015) sobre sua adoção na Catalunha tanto na área penitenciária para adul-</p><p>tos quanto no campo da justiça penal juvenil</p><p>53 Por exemplo, sobre o declínio da população prisional espanhola nos últimos anos, ver Bran-</p><p>dariz 2015, Jiménez Franco 2015 e 2016.</p><p>54 A fim de conhecer plenamente os resultados das opções acima, pode-se recorrer a algumas</p><p>pesquisas desenvolvidas nos últimos anos. Assim, no caso da Espanha, para conhecer a estru-</p><p>tura social sobre a qual se nutrem as clientelas penitenciárias, pode ser consultada a pesquisa</p><p>elaborada por Ríos Martín e Cabrera Cabrera publicada sob o título “Mil voces presas”</p><p>(1998). No caso da Itália, para entender os resultados dos vinte e cinco anos de sua Lei Pe-</p><p>nitenciária, pode-se recorrer à obra de Pavarini intitulada “La miseria del reformismo peni-</p><p>tenciario” (1999) ou a elaborada pela associação Antigone “Il vaso di Pandora. Carcere e</p><p>pena dopo le riforme” (1998). Na França, para conhecer os estragos da prisão na saúde das</p><p>pessoas privadas de liberdade, pode-se consultar o trabalho de Gonin,</p><p>“La Santé incarcérée.</p><p>Médecine et conditions de vie en détention” (1993). Mais recentemente, ver a obra de Julián</p><p>C. Ríos Martín, Pedro José Cabrera y Manuel Gallego Díaz, Andar 1 km en línea recta:</p><p>La cárcel del siglo XXI que vive el preso (Biblioteca Comillas, 2010).</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 6564 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>pelos mass media, a construção de alarmes sociais e outros fenôme-</p><p>nos similares, provocaram nos últimos anos o início de verdadeiras</p><p>“contrarreformas” penais e penitenciárias. Alguns exemplos são sufi-</p><p>cientes para ilustrar essa nova tendência regressiva: a construção de</p><p>prisões de segurança máxima, a renúncia mais ou menos explícita do</p><p>ideal de reabilitação, a sofisticação dos regimes celulares de isolamento</p><p>carcerário, os debates em torno dos denominados “cumprimentos</p><p>integrais das penas”, as políticas penitenciárias de dispersão e outras</p><p>iniciativas similares, constituem elementos que ilustram o caminho</p><p>das “contrarreformas” indicadas. Assim, a partir de uma busca ini-</p><p>cial por funções incorporadas na chave da prevenção especial positiva</p><p>(reabilitação), foi-se gradativamente se encaminhando para chaves de</p><p>prevenção especial negativa (incapacitação), ambas convivendo com</p><p>trânsitos atuariais de mera gestão administrativa. É neste sentido que</p><p>falamos de uma “prisão díspar” com regimes diferenciados e de alta</p><p>discricionariedade (ver García Borés/Rivera Beiras 2016).</p><p>Apesar de tudo isso, como apontou há algum tempo Baratta</p><p>(1993), uma parte do discurso oficial demonstra que a teoria do trata-</p><p>mento não é totalmente abandonada e, então, frente à situação atual</p><p>deve ser possível inverter os conceitos centrais dessa filosofia punitiva a</p><p>partir de uma base profundamente “realista”. Disse claramente o autor</p><p>italiano: “o ponto de vista do qual enfrento o problema da ressociali-</p><p>zação deve manter como base realista o fato de que a prisão não pode</p><p>produzir efeitos úteis para a ressocialização do condenado (...). Apesar</p><p>disso, a finalidade de uma reintegração do condenado na sociedade</p><p>não deve ser abandonada, mas deve ser reinterpretada e reconstruída</p><p>sobre uma base distinta (...). A reintegração social do condenado não</p><p>pode ser perseguida através dela, mas deve ser perseguida apesar dela,</p><p>ou seja, buscando tornar menos negativas as condições que a vida na</p><p>prisão implica em relação a esse fim” (op cit. 3).</p><p>Nesse sentido, deve se evitar o triunfo de certas funções que a pena</p><p>privativa de liberdade acabou adotando. Deve se evitar a transição para</p><p>a prevenção especial negativa, escapando de pretensões incapacitantes</p><p>e neutralizadoras e também se evitando o triunfo da prevenção geral</p><p>(tanto positiva quanto negativa), que pretende utilizar a pena, apesar do</p><p>condenado, para que a mesma cumpra funções para o resto da sociedade</p><p>na direção indicada pelas campanhas de law and order.</p><p>9. PODE-SE PROPOR UMA ESTRATÉGIA DE TRANS-</p><p>FORMAÇÃO RADICAL E REDUCIONISTA DA OPÇÃO</p><p>SEGREGATIVA? POR UM “GARANTISMO RADICAL”</p><p>O presente trabalho, e por tudo que foi dito anteriormente,</p><p>pretende esboçar as linhas gerais que pode ter um Programa que ad-</p><p>vogue por uma redefinição do conceito de reintegração social dos</p><p>condenados a penas privativas de liberdade, a partir dos princípios</p><p>próprios do que aqui se define como “garantismo radical”, isto é,</p><p>de estrito respeito aos direitos fundamentais das pessoas privadas de</p><p>liberdade, aplicando uma orientação similar a toda uma série de si-</p><p>tuações específicas de encarceramento que serão abordadas em breve.</p><p>Mesmo na convicção da impossibilidade estrutural de que na prisão</p><p>os direitos fundamentais dos presos sejam respeitados, como já foi</p><p>dito, numa perspectiva política (que não jurídica) de “levar a sério”</p><p>o respeito aos direitos (Dworkin 1989), pode e deve configurar um</p><p>cenário de trabalho, de luta, de pesquisa e de estudo que leve para a</p><p>clássica postura garantista até a raiz que não admite nenhum desvio</p><p>algum e se orienta pelo princípio do Taking Rights Seriously55. Por</p><p>onde pode começar uma orientação similar?</p><p>Para a elaboração deste Programa – que é exposto de forma</p><p>necessariamente panorâmica e mais como um conjunto de princípios</p><p>para começar a pensar em outras políticas públicas para o desencar-</p><p>ceramento – utilizei diversos materiais, instrumentos e experiências</p><p>dos quais participei e dos quais tenho aprendido nos últimos trinta</p><p>55 A citada obra de Dworkin examina, particularmente no Capítulo 7, por que levar a sério os</p><p>direitos como única via para o respeito do Direito (conforme 276-303). Também será particu-</p><p>larmente importante refletir sobre este ponto relativo às considerações subseqüentes (Capítulo</p><p>8) sobre a desobediência civil quando aquele não é respeitado, em primeiro lugar, pelos ór-</p><p>gãos do Estado que deveriam velar pelo seu “sério” estabelecimento (conforme 304-326).</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 6766 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>anos. Em primeiro lugar, este trabalho utiliza o desenho elaborado</p><p>por Baratta no artigo já citado, intitulado “Resocialización o control</p><p>social. Por un concepto crítico de ‘reintegración social’ del condenado”.</p><p>Neste estudo, o autor descreveu uma série de pautas teóricas a partir</p><p>das quais é possível traçar as linhas gerais de uma pretensão como a</p><p>apresentada. Em segundo lugar, esta pesquisa é baseada no recente tra-</p><p>balho de Ferrajoli citado anteriormente (2016), ao entender a prisão</p><p>como uma “contradição institucional” que deve ser minimizada ao</p><p>extremo a fim de superá-la.</p><p>Em terceiro lugar, usei muitas das reclamações que, surgidas a</p><p>partir dos próprios setores afetados pela prisão (e dos entornos sociais</p><p>e profissionais comprometidos nessa luta), vêm se constituindo nos</p><p>últimos anos, as verdadeiras plataformas reivindicativas que traduzem</p><p>autênticas “alternativas” que normalmente não são levadas em con-</p><p>sideração nos estudos acadêmicos sobre o assunto, nem nas reformas</p><p>empreendidas. Nesse caso, trata-se de retomar a tradição das lutas</p><p>protagonizadas pelos movimentos sociais na tarefa de alcançar maiores</p><p>cotas de reconhecimento de direitos. Em efeito, levando-se em conta</p><p>o “movimentismo social” (neste caso, aplicado à questão prisional) é</p><p>possível concluir, como não poderia ser de outra forma, que nenhum</p><p>processo de transformação radical e reducionista da realidade prisional</p><p>pode ser enfrentado se não atender às demandas dos reclamantes. Na</p><p>verdade, como já tratei muitas vezes56, todos os processos tradicionais</p><p>de reforma prisional possuem uma base comum: eles nunca levaram</p><p>seriamente em consideração a contribuição que vem daqueles que,</p><p>melhor do que ninguém, conhecem os problemas do encarceramen-</p><p>to. Trata-se, portanto, de inverter radicalmente a situação e começar</p><p>a projetar processos de redução do emprego da opção custodial com</p><p>base nas demandas das pessoas afetadas. De outro ponto de vista,</p><p>aprofundar a participação democrática dos setores excluídos das de-</p><p>cisões que os afetam deve constituir o ponto central de partida para</p><p>56 Ver Rivera Beiras, I. La cuestión carcelaria. Historia, epistemología,derecho y política</p><p>penitenciaria. Volumenes I e II (2008 y 2009).</p><p>enfrentar qualquer transformação. Isso é o que, modestamente, o pre-</p><p>sente trabalho pretende57.</p><p>Com efeito, o presente projeto se articula para propor um</p><p>Programa de pesquisa e de ação com base na afirmação de que a rein-</p><p>tegração social das pessoas presos não pode ser perseguida através da</p><p>prisão, mas que deve ser perseguida apesar dela. Pode-se propor uma</p><p>estratégia de transformação radical e reducionista da opção segrega-</p><p>tiva? Este Projeto-Programa pretende delinear as linhas gerais que</p><p>pode ter uma estratégia que advogue por uma redefinição do conceito</p><p>de reintegração social das pessoas privadas de liberdade nas prisões a</p><p>partir dos princípios que são o “garantismo</p><p>radical” e o paradigma</p><p>próprio do “dano social” em direção à sua redução. Portanto, esta</p><p>proposta não pretende com isso realizar outra reforma prisional, uma</p><p>vez que, tradicionalmente e desde as instituições oficiais, nunca se levou</p><p>verdadeiramente em conta as pessoas afetadas pela privação de liberdade.</p><p>Pode ser útil aqui retomar às contribuições da chamada “Con-</p><p>vict Criminology”, que, há pelo menos quinze anos, trabalha com as</p><p>pessoas afetadas pela prisão (e não se refere apenas aos presos) a partir</p><p>de uma perspectiva etnográfica e insider “para ajudar defensores, co-</p><p>munidades, legisladores e todas as partes interessadas para chegar a</p><p>uma compreensão mais completa das políticas e práticas sociais do</p><p>nosso sistema de justiça criminal, bem como ajudar a entender as</p><p>circunstâncias daqueles que têm experiência de vida na prisão, forne-</p><p>cendo acesso a publicações para sua revisão e aplicação. As publicações</p><p>estão projetadas para promover o avanço da justiça social através da</p><p>participação no trabalho de defesa de direitos que se concentra nos</p><p>desafios únicos enfrentados por muitas pessoas e suas famílias em face</p><p>das difíceis circunstâncias do encarceramento e da reintegração”58.</p><p>57 Nesse sentido, sabe-se, no âmbito dos estudos sociológicos aplicados à análise do surgimento</p><p>dos direitos humanos, a linha que vincula as lutas protagonizadas pelos movimentos sociais</p><p>com o surgimento de novas categorias ou cotas de direitos fundamentais (cf. Ferrari e Treves</p><p>1989, ou Rivera Beiras 1997). Isso inaugurou a linha frutífera que desenvolve a chamada</p><p>“fundamentação sociológica dos direitos humanos”.</p><p>58 Ver a respeito “Prison Research From the Inside: The Role of Convict Autoethnography”–</p><p>Greg Newbold, Jeffrey Ian Ross, Richard S. Jones, Stephen C. Richards and Michael Lenza;</p><p>Qualitative Inquiry 2014 20: 439. Esta nova escola foi desenvolvida especialmente por Ste-</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 6968 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>(www.convictcriminology.org). Desde a última década, por exemplo,</p><p>pesquisas foram realizadas na Inglaterra para descobrir a opinião dos</p><p>presos sobre suas condições de vida, um método que pode estabelecer</p><p>um precedente interessante para o que é proposto aqui59.</p><p>Por essa razão, com os sujeitos portadores de demandas (e de</p><p>soluções específicas) é necessário trabalhar unindo, ao mesmo tempo,</p><p>o capital social que vem desses setores aos órgãos da sociedade civil</p><p>comprometidos com sua situação.(Foucault, 196960). Propõe-se co-</p><p>nhecer, aprender, coletar e sistematizar um conhecimento que vem dos</p><p>afetados, ou seja, desde “baixo”, para oferecer alternativas e soluções para</p><p>“cima”, invertendo assim as práticas tradicionais que até agora são co-</p><p>nhecidas nesse campo.</p><p>Em outro trabalho de Baratta, perto do final de seus dias,</p><p>conseguiu capturar claramente a imagem projetada em um trabalho</p><p>coletivo e inclusivo como o que se propõe. Destacou que “A plu-</p><p>ralidade real dos homens e das culturas constitui apenas o ponto</p><p>de partida de uma análise que não se contenta com afirmações for-</p><p>malistas e que, no discurso sobre uma cultura diferente, também</p><p>considera ao mesmo tempo as categorias do próprio discurso (...).</p><p>Trata-se de tentar fundar um sistema de comunicação democrático</p><p>capaz de aprender com as experiências e necessidades dos outros, no</p><p>qual a referência a diferentes tradições garante, no final, o caráter</p><p>aberto do desenvolvimento social” (1998: 83).</p><p>Agora, antes de passar para o desenho do Programa, é necessário</p><p>destacar a consciência profunda sobre suas limitações. Sem prejuízo de</p><p>que, mais tarde, essa questão será especialmente desenvolvida, deve-se</p><p>dizer agora que uma opção semelhante deve partir desse conhecimen-</p><p>to. Em outras palavras, o “problema da prisão” não será resolvido</p><p>phen C. Richards, Department of Criminal Justice, University of Wisconsin Oshkosh, Critical</p><p>Criminology, Volume 21, No. 2, 2013.</p><p>59 Sobre esta iniciativa, pode-se ler o trabalho de Liebling, Alison (2011) “Being a Criminolo-</p><p>gist: Investigation as a Lifestyle and Living”. En: Bosworth, Mary y Hoyle, Carolyn (eds)</p><p>What is Criminology? Oxford: Oxford University Press, pp. 518-530.</p><p>60 La arqueología del saber. París: Gallimard, 1969.</p><p>“na” prisão, senão, em todo caso, no exterior da mesma, na própria</p><p>sociedade que cria, produz, alimenta e reproduz a prisão. Sem uma</p><p>profunda convicção disso, haveria o risco de cair, novamente, em</p><p>opções reformistas que acabam legitimando a instituição carcerária</p><p>e, assim, contribuem para sua perpetuidade. Nesse sentido, é óbvio</p><p>(ainda que talvez necessário) salientar que a melhor opção nunca pode</p><p>ser “melhorar” uma instituição tão selvagem e violenta como a prisão,</p><p>mas pensar em cada vez “menos prisão”, buscando verdadeiras estraté-</p><p>gias de contenção dos novos ingressos, primeiro, de redução, depois,</p><p>e de radical eliminação, finalmente.</p><p>Mas não escapa a ninguém que a tendência nas últimas décadas</p><p>é o inverso: aquela que se orienta ao crescimento cada vez maior de tal</p><p>instituição61. Então, e levando em conta essa tendência, é necessário</p><p>demonstrar que existem caminhos para reverter a situação; e que tais</p><p>caminhos podem ser explorados se houver uma vontade profunda</p><p>de reverter a imagem do presente. Novamente, Baratta disse com</p><p>extrema clareza: “qualquer passo que possa ser dado para tornar as</p><p>condições de vida na prisão menos dolorosas, mesmo que seja só</p><p>para um condenado, deve ser observado com respeito quando esteja</p><p>verdadeiramente inspirado no interesse pelos direitos e o destino das</p><p>pessoas presas, e provenha de uma vontade de mudança radical e</p><p>humanista e não de um reformismo tecnocrático cuja finalidade e</p><p>funções sejam as de legitimar através de qualquer melhoramento a</p><p>instituição prisional como um todo”. (op cit: 4).</p><p>O Programa que será explicado na sequência foi projetado</p><p>sobre tais parâmetros. Uma última precisão antes de avançar para o</p><p>seu desenvolvimento: de modo algum, o mesmo pretende constituir</p><p>um modelo único, fechado e indiscutível; muito pelo contrário. O</p><p>objetivo foi combinar as contribuições teóricas e as experiências</p><p>mais notáveis da práxis política e social que foram desenvolvidas</p><p>61 Ferrajoli novamente, no final de seu último trabalho: “a atual política em matéria penal,</p><p>lamentavelmente, está caminhando em uma direção exatamente oposta ao que delineei. Não</p><p>há dados que nos levem a ser otimistas. Mas, pelo menos, devemos assumir o conhecimento</p><p>da irracionalidade, desigualdade e ilegitimidade do atual sistema prisional “(2016: 12).</p><p>70 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>nos últimos anos (que, como já foi dito, estão circunscritas a certos</p><p>países europeus e latino-americanos, dentro do marco do garantismo</p><p>radical), para tentar traçar algumas diretrizes gerais que enfrentam</p><p>um verdadeiro processo de transformação profunda e reducionista</p><p>do emprego da prisão.</p><p>Como se verá, um programa como o pretendido combi-</p><p>na diferentes modalidades de ação social. Em primeiro lugar,</p><p>projetam-se estratégias que sejam realmente úteis para a efetiva</p><p>participação democrática dos afetados, tanto na fase inicial do Pro-</p><p>grama, como em seu desenvolvimento subsequente. Em segundo</p><p>lugar, indica-se o marco jurídico mínimo que um projeto inspirado</p><p>nos princípios de um “garantismo radical” exige (e isso sobre a</p><p>base de investir constantemente em todo um conjunto de práticas</p><p>as quais algumas devem ser reinterpretadas, e outras erradicadas).</p><p>Além disso, em outro momento, desenvolve-se um conjunto de</p><p>diretrizes para alcançar uma redefinição dos programas de atua-</p><p>ção tanto “penitenciária” quanto “extra penitenciária”. Por fim,</p><p>aborda-se o problema do uso de estratégias políticas e culturais</p><p>e da utilização de meios jornalísticos, para avançar numa efetiva</p><p>abertura da prisão para a sociedade, e vice-versa, a fim de produzir</p><p>gradualmente uma cultura</p><p>pode</p><p>iluminar uma nova dimensão: não pode a questão penitenciária seguir</p><p>sendo abordada sem seus principais protagonistas, não pode seguir</p><p>sendo examinada (somente) por “especialistas”. O conhecimento das</p><p>demandas dos afetados (fundamentalmente, mas não só, dos presos e</p><p>seus familiares ou entornos sociais) constitui um caminho quase nunca</p><p>explorado. O mesmo revela todo um conjunto de “saberes ocultos”</p><p>como já assinalou Foucault em determinado momento, que deve ser</p><p>escutado e deve ter canais efetivos de participação.</p><p>Em síntese, esta obra trata de recolher uma grande multipli-</p><p>cidade de propostas (mais de uma centena) procedentes de diversos</p><p>setores afetados pela prisão (múltiplos e diversos, como se verá) para</p><p>potencializar, através das ações da sociedade civil organizada, o empre-</p><p>go de numerosas estratégias legais e sociais, nacionais e internacionais,</p><p>e esboçar, assim, os traços do que poderia constituir um programa de</p><p>redução permanente da opção segregativa. O uso alternativo do direito</p><p>(nacional e especialmente internacional) pode contribuir para um</p><p>cenário que merece ser, ao menos, explorado.</p><p>8 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>SUMÁRIO</p><p>APRESENTAÇÃO E AGRADECIMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . 5</p><p>Iñaki Rivera Beiras</p><p>PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13</p><p>Luigi Ferrajoli</p><p>PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21</p><p>Maria Palma Wolff</p><p>UMA TRAJETÓRIA EM DEFESA DA DEMOCRACIA</p><p>E DOS DIREITOS HUMANOS: ALGUMAS PALAVRAS</p><p>SOBRE O AUTOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25</p><p>Bruno Rotta Almeida</p><p>PRIMEIRA PARTE</p><p>BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO . . 33</p><p>1. As diferentes formas de abordar os modelos penal-penitenciários . . .33</p><p>2. Aprender com diversas iniciativas sociais, comunitárias,</p><p>profissionais, acadêmicas e institucionais: o empoderamento. . . . . . .41</p><p>3. A prisão como contradição institucional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43</p><p>4. Pessimismo e desencanto acerca das alternativas ao emprego da</p><p>prisão (e suas consequências). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .46</p><p>5. O encarceramento em massa e a perspectiva do dano social. . . . . . . .47</p><p>6. Onde se situaram as (mal) chamadas medidas alternativas ao</p><p>encarceramento? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .58</p><p>7. Existe uma jurisdição de execução penal? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .61</p><p>8. Por um novo conceito de reintegração social do condenado . . . . . . .62</p><p>9. Pode-se propor uma estratégia de transformação radical e</p><p>reducionista da opção segregativa? Por um “garantismo radical” . . . .65</p><p>SEGUNDA PARTE</p><p>DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .71</p><p>1. Advertência preliminar: o des-encarceramento entre a des-</p><p>criminalização e a des-penalização. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .71</p><p>2. Criação de uma unidade institucional para o cumprimento das</p><p>recomendações internacionais no âmbito penitenciário . . . . . . . . . . .73</p><p>3. Constituição de uma mesa de trabalho e diálogo entre os atores</p><p>diretamente envolvidos com o encarceramento . . . . . . . . . . . . . . . . .83</p><p>4. Imprescindível desenvolvimento de uma investigação</p><p>sociológica da realidade penitenciária com expressão das</p><p>Antes de concluir esta Apresentação, quero agradecer a Ale-</p><p>jandro Forero, a Cristina Fernández Bessa e a José Ángel Brandariz</p><p>pelas diversas leituras desta obra, aportações, advertências, sugestões.</p><p>A Rachele Stroppa agradeço seu suporte na tradução dos textos de</p><p>Luigi Ferrajoli e Mauro Palma. Quero agradecer a estes dois mestres</p><p>italianos por participarem vivamente nesta pesquisa, muito especial-</p><p>mente pelas conversas que temos mantido tanto na Europa como</p><p>na América Latina ao longo dos últimos anos e por sua colaboração</p><p>com textos que sem dúvida a enriquecem. Aos/as companheiros/as do</p><p>Observatorio del Sistema Penal y los Derechos Humanos da Universidade</p><p>de Barcelona com quem temos desenvolvido grande parte do trabalho</p><p>que aquí se apresenta, em especial à Monica Aranda, após mais de</p><p>quinze anos de permanência e firmeza no trabalho e no compromen-</p><p>timento. A todos/as aqueles/as que compõem a Coordinadora para la</p><p>Prevención y la Denuncia de la tortura, referência permanente de rigor</p><p>e luta decidida na denuncia da violência institucional. Também agra-</p><p>deço aos companheiros da Red Euro Latinoamericana de Prevención</p><p>de la tortura, que tem enriquecido, desde diversos países da América</p><p>Latina, estudos, modelos e práticas desencarceradoras.</p><p>Aos que intergram o European Prison Observatory da União</p><p>Europeia agradeço as manifestações de solidariedade nos momentos</p><p>difíceis, quando a denúncia internacional de violações de direitos</p><p>humanos precisou de seu pronunciamento. A Juan Méndez, último</p><p>Relator sobre a Tortura da Organização das Nações Unidas, quero agra-</p><p>decer muito especialmente seu acompanhamento e apoio na criação</p><p>do Sistema de Registro y Comunicación de la violencia institucional</p><p>(SIRECOVI) que criamos na Universidade de Barcelona, o qual é</p><p>abordado neste livro. Também à editoral Tirant lo Blanch por sua con-</p><p>fiança na publicação deste ensaio. À minha filha Carla agradeço seu</p><p>trabalho na organização dos índices, sua leitura e correção. À Elena,</p><p>companheira de vida, que em momentos mais difíceis destes últimos</p><p>anos, sempre alentou e enriqueceu minha vida.</p><p>Barcelona, dezembro de 2016</p><p>10 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL SUMÁRIO 11</p><p>problemáticas mais acuciantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .84</p><p>4.1. A população encarcerada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .85</p><p>4.2. Os entornos familiares das pessoas presas . . . . . . . . . . . . . . . . .86</p><p>4.3. Os funcionários penitenciários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .86</p><p>4.4. Organizações sociais, municipais e instituições universitárias</p><p>que trabalham no e com o entorno penitenciário . . . . . . . . . . .87</p><p>5. Mínimo marco jurídico-garantista necessário durante o</p><p>desenvolvimento do Programa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .88</p><p>5.1. Princípios da legalidade e reserva de lei . . . . . . . . . . . . . . . . . .89</p><p>5.2. Por uma progressiva eliminação da prisão preventiva . . . . . . . .89</p><p>5.3. Reavaliação do estatuto jurídico das pessoas privadas</p><p>de liberdade: dos benefícios penitenciários aos direitos</p><p>subjetivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90</p><p>5.4. Modificação do âmbito de decisão dos incidentes de</p><p>execução penal: da prisão aos juízes de vigilância penitenciária 90</p><p>5.5. Frente a uma efetiva jurisdição em matéria penitenciária.</p><p>Direito processual em fase de execução penal? . . . . . . . . . . . . .92</p><p>5.6. O direito de defesa na execução penal . . . . . . . . . . . . . . . . . . .94</p><p>5.7. O trabalho na prisão: terminar com o falso caráter “progressivo” 96</p><p>6. Medidas urgentes para uma drástica redução, a curto prazo,</p><p>dos índices de encarceramento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .97</p><p>7. Liberação de presos enfermos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .99</p><p>8. Processo desencarcerador das mulheres presas com filhos nas prisões 108</p><p>9. Arquitetura penitenciária e metas reintegradoras . . . . . . . . . . . . . . .121</p><p>9.1. Os regimes de isolamento penitenciário . . . . . . . . . . . . . . . . .121</p><p>9.2 A construção e a localização das prisões . . . . . . . . . . . . . . . . .129</p><p>10. Transformação radical dos Programas e das Práticas de atuação</p><p>dos operadores penitenciários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .131</p><p>10.1. Rumo a um programa de serviços públicos para a</p><p>Reintegração</p><p>que provoque a liberação (social) da</p><p>necessidade da prisão.</p><p>Trata-se, portanto, como Mathiesen (1974) apontou há muitos</p><p>anos, de um processo por construir, inacabado e, é claro, sempre</p><p>aberto e sujeito às transformações de cada lugar e de cada tempo.</p><p>SEGUNDA PARTE</p><p>DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA</p><p>1. ADVERTÊNCIA PRELIMINAR: O DES-ENCARCERA-</p><p>MENTO ENTRE A DES-CRIMINALIZAÇÃO E A DES-PE-</p><p>NALIZAÇÃO</p><p>Antes de iniciar propriamente a exposição dos princípios para</p><p>o desenvolvimento de uma política pública de paulatina redução do</p><p>encarceramento, deve-se advertir acerca da necessária tomada de cons-</p><p>ciência das limitações desta opção programática. De fato, e buscando</p><p>uma clarificação do alcance das possibilidades de um conjunto de ali-</p><p>nhamentos, como o presente, é necessário prevenir de imediato sobre</p><p>o caráter reduzido e limitado de qualquer iniciativa semelhante, caso</p><p>esta não seja acompanhada de um processo mais amplo de profunda</p><p>transformação das políticas sociais e penais de um Estado.</p><p>Em consequência, e de modo paralelo ao desenvolvimento do</p><p>presente Programa, devem ser articulados mecanismos, debates, sis-</p><p>temas de interlocução entre poderes públicos e comissões de pessoas</p><p>implicadas, destinadas a influir em decisões políticas que necessaria-</p><p>mente devam buscar alternativas reais ao emprego da opção custodial.</p><p>Entendo que a influência e a pressão que se pretende exercer tenha</p><p>que buscar, preferencialmente, a produção de decisões políticas que</p><p>tenham, ao menos, duas direções muito claras no sentido de previsão</p><p>dos delitos e de penas. Primeiro, deverá enfrentar a imprescindível</p><p>tarefa descriminalizadora de numerosas condutas que não sejam tão</p><p>graves para merecer uma inclusão nas leis penais. Segundo, devem ser</p><p>introduzidas – no momento de criação do direito – outras fórmulas</p><p>de sanções, compensações, alternativas restauradoras, indenizações</p><p>etc., que erradiquem (salvo em situações verdadeiramente graves e</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 7372 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>excepcionais, como as representadas pelos delitos dos estados e dos</p><p>mercados, de imenso dano social) a possibilidade de que os juízes</p><p>castiguem os delitos com penas privativas de liberdade.</p><p>Novamente convém ressaltar, como indica Ferrajoli, que uma</p><p>política de desencarceramento deve “acontecer como efeito de uma</p><p>séria despenalização que confira credibilidade ao direito penal, res-</p><p>tituindo seu caráter de extrema ratio, reservado somente para ofensas</p><p>a direitos e a bens fundamentais. Nesta perspectiva, a reforma mais</p><p>importante, sobre a qual tantas vezes tenho insistido, é a refun-</p><p>dação da legalidade penal, através de sua introdução, se possível a</p><p>nível constitucional de uma “reserva de Código” contra intervenções</p><p>de exceção e de ocasião do legislador ordinário: uma metagarantia,</p><p>como poderíamos chamar, dirigida a colocar um freio na inflação</p><p>penal que fez retroceder o direito penal a uma situação substan-</p><p>cial de descodificação; isto é, a um direito jurisprudencial”62. Isto</p><p>não difere, acrescenta o autor, do pré moderno quando o acúmulo</p><p>das fontes e o predomínio das práticas haviam gerado na cultura</p><p>iluminista a exigência do Código como sistema claro, unitário e</p><p>coerente de proibições e punições contra a arbitrariedade dos juízes.</p><p>Conclui Ferrajoli esclarecendo que esta reserva de código deve sig-</p><p>nificar que todas as normas em matéria de delitos, de penas e de</p><p>processos devem estar contidas no código penal ou em um de caráter</p><p>62 Sobre o desenvolvimento atual de um direito penal jurisprudencial – gerando um enfraque-</p><p>cimento do princípio de legalidade penal e do princípio de sujeição dos juízos às leis, que</p><p>é um de seus corolários – remete Ferrajoli a toda linha de estudos seguintes: G. Contento,</p><p>Principio di legalità e diritto penale giurisprudenziale, en “Il Foro italiano”, 1988, cc. 484-494;</p><p>L. Stortoni (a cura di), Il diritto penale giurisprudenziale, en “Dei delitti e delle pene” 1989,</p><p>pp. 9-108; G. Fiandaca, Diritto penale giurisprudenziale e spunti di diritto comparato, en Id.</p><p>(a cura di), Sistema penale in transizione e ruolo del diritto giurisprudenziale, Cedam, Padova</p><p>1997, pp. 5, 6, 11 e 14; Id., Ermeneutica e applicazione giudiziale del diritto penale, en “Rivis-</p><p>ta italiana di diritto e procedura penale”, 2001, pp. 353-376, reproducida en Id., Il diritto pe-</p><p>nale tra legge e giudice, Cedam, Padova 2002, pp. 33-64; Id., Diritto penale giurisprudenziale</p><p>e ruolo della Cassazione, en E. Dolcini e C.E. Paliero (a cura di), Studi in onore di Giorgio</p><p>Marinucci, Giuffrè, Milano 2006, pp. 239-264; Id., Spunti problematici di riflessione sull’at-</p><p>tuale ruolo della scienza penalistica, en G. Insolera (a cura di), Riserva di legge e democrazia</p><p>penale: il ruolo della scienza penale, Monduzzi, Bologna 2005, pp. 41-52; Id, Il diritto penale</p><p>giurisprudenziale tra orientamenti e disorientamenti, Editoriale Scientifica, Napoli 2008; M.</p><p>Donini, Il volto attuale dell’illecito penale. La democrazia penale tra differenziazione e sussi-</p><p>diarietà, Giuffrè, Milano 2004, pp. 145-188; M. Vogliotti, Lo scandalo dell’ermeneutica per la</p><p>penalistica moderna, in “Quaderni fiorentini”, 44, 2015, pp. 131-181.</p><p>processual e que nenhuma reforma possa ser introduzida senão com</p><p>modificações que sejam aprovadas a partir de processos legislativos</p><p>claramente estabelecidos e delimitados. (2016: 11-12)</p><p>Estes esclarecimentos são necessários porque, como já foi</p><p>esboçado anteriormente, devemos ser conscientes de que o único</p><p>debate verdadeiramente superador da prisão é aquele que se situa</p><p>na fase de criação do direito, tirando da lei a possibilidade de seguir</p><p>castigando com privação de liberdade. Como se viu e é demonstra-</p><p>do pela recente história das (mal) chamadas “medidas alternativas à</p><p>prisão”, quando semelhantes medidas se introduziram no momento</p><p>da execução da pena, nunca constituíram verdadeiras alternativas</p><p>à prisão, mas, no melhor dos casos, modalidades alternativas de</p><p>cumprimento da pena que seguiu sendo privativa de liberdade e</p><p>sem a qual estas não poderiam ser implementadas, estabelecendo,</p><p>assim, um círculo de funcionalidade e retroalimentação da prisão,</p><p>que continuou no centro do sistema penal.</p><p>Onde pode ser encontrado um primeiro ponto de partida para</p><p>uma transformação radical da política penal e penitenciária? A seguir,</p><p>são desenvolvidos alguns pontos gerais sobre isso.</p><p>2. CRIAÇÃO DE UMA UNIDADE INSTITUCIONAL</p><p>PARA O CUMPRIMENTO DAS RECOMENDAÇÕES IN-</p><p>TERNACIONAIS NO ÂMBITO PENITENCIÁRIO</p><p>Começamos por pensar qual pode ser o mapa de orientação que</p><p>delimite outra política penal e que não esteja constantemente sub-</p><p>metido aos avatares e conjunturas políticas. O âmbito internacional,</p><p>o direito internacional dos direitos humanos e o verdadeiro cumpri-</p><p>mento e implementação das muitas recomendações internacionais,</p><p>desenham esse caminho. Como se verá, o caso italiano é paradigmá-</p><p>tico para se compreender os resultados alcançados nos últimos anos</p><p>com a vinculação do trabalho dos afetados pela prisão e seus entornos</p><p>comprometidos, quando estes operam desde o âmbito internacional</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 7574 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>frente ao Estado.</p><p>Em primeiro lugar cabe afirmar, em atenção ao desenvolvimen-</p><p>to de uma política em matéria penal que seja respeitosa da legalidade</p><p>e da proteção dos direitos fundamentais, que sua implementação deve</p><p>necessariamente se comprometer a cumprir com os ditames dos orga-</p><p>nismos internacionais de direitos humanos que emanam dos tratados</p><p>dos quais o país é signatário. Em matéria penitenciária, isso adquire</p><p>especial relevância e são muito numerosas as recomendações emitidas</p><p>por diversos órgãos, tanto da Europa como da América Latina.</p><p>Sem supor exaustividade, destaca-se que muito especialmente</p><p>no denominado sistema universal, a quantidade de orientações que</p><p>emanam, por exemplo,</p><p>do Comitê de Direitos Humanos (do Pacto</p><p>Internacional de Direitos Civis e Políticos), do Comitê Contra a Tor-</p><p>tura (da Convenção contra a Tortura de 1984, do Relator Especial</p><p>sobre Torturas e do Sub Comitê para a prevenção de Tortura (decor-</p><p>rente do Protocolo Facultativo à Convenção).</p><p>O roteiro definido pelos organismos internacionais para orien-</p><p>tar a política penal desde uma perspectiva que respeite os direitos</p><p>humanos é muito claro. A título de exemplo, tal e como Monica</p><p>Aranda sistematizou em seu trabalho para o último relatório sobre a</p><p>tortura, de 2016, cabe recordar que as Nações Unidas recentemente</p><p>voltaram a censurar a Espanha em matéria de Direitos Civis e Políticos</p><p>mediante as Observações Finais de seu Comitê de Direitos Huma-</p><p>nos que foram adotadas em 20 de julho de 2015. Estas Observações</p><p>correspondem à análise realizada pelo sexto Relatório Periódico da</p><p>Espanha sobre a aplicação do Pacto Internacional dos Direitos Civis</p><p>e Políticos. Este Comitê, formado por dezoito especialistas indepen-</p><p>dentes das cinco regiões do mundo constatou poucos progressos da</p><p>Espanha na aplicação das Recomendações que haviam sido formula-</p><p>das em 2008 por ocasião da avaliação do quinto Relatório Periódico</p><p>do País. Neste sentido, foram realizadas algumas considerações sobre</p><p>as Recomendações pertinentes, assinalando o artigo do pacto Inter-</p><p>nacional dos Direitos Civis e Políticos que foi atingido em cada um</p><p>dos casos. Entre outros pontos:</p><p>a) A aplicabilidade interna do pacto. O Comitê toma nota das</p><p>explicações realizadas pela delegação da Espanha e lamenta que,</p><p>apesar do disposto no artigo 10 da Constituição espanhola, não</p><p>seja assegurado a aplicação direta do Pacto no ordenamento</p><p>interno. O Comitê lamenta, ainda assim, a ausência de um</p><p>procedimento específico de implementação dos ditames ado-</p><p>tados pelo Comitê na aplicação do Protocolo Faculativo. É por</p><p>isso que o Comitê recomenda que a Espanha deve garantir o</p><p>pleno cumprimento na ordem jurídica nacional das obrigações</p><p>que o Pacto impõe. Desse modo, devem ser tomadas as medi-</p><p>das correspondentes, incluindo medidas legislativas, se forem</p><p>necessárias, para garantir a plena aplicação do pacto. Por outro</p><p>lado, o Comitê reitera sua recomendação anterior (CCPR/C/</p><p>ESP/CO/5 parágrafo 8) com a finalidade de dar seguimento aos</p><p>ditames emitidos pelo Comitê segundo o Protocolo Facultativo.</p><p>b) O Plano de Direitos Humanos. Neste âmbito o Comitê la-</p><p>menta que o (segundo) Plano de Direitos Humanos não se</p><p>encontre ainda aprovado (art.2). Desta circunstância se deriva</p><p>que o Comitê recomende na Espanha a necessidade de acelerar a</p><p>aprovação do segundo Plano de Direitos Humanos e que se asse-</p><p>gure que este Plano contemple de maneira adequada e efetiva as</p><p>questões relevantes apresentadas pela sociedade civil, o próprio</p><p>Comitê e outros mecanismos de Direitos Humanos. Recomen-</p><p>da, ainda assim, que a Espanha se assegure também de que,</p><p>uma vez aprovado o Plano, este se aplique efetivamente, dentre</p><p>outras formas mediante a designação de recursos humanos e</p><p>materiais suficientes, além do estabelecimento de mecanismos</p><p>de vigilância e de prestação de contas.</p><p>c) Condições da privação de liberdade. O Comitê lamenta os</p><p>relatórios que indicam as más condições em que se encontram</p><p>alguns Centros de Internamento de Estrangeiros (CIE) e que</p><p>estes não tenham condições de higiene adequadas (art 10).</p><p>Neste sentido, solicita à Espanha que vele para que dispo-</p><p>nha em todos os centros (incluindo os CIE) de instalações</p><p>sanitárias, segundo o que se encontra estabelecido no artigo</p><p>10 do pacto e das Regras Mínimas das Nações Unidas para o</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 7776 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>tratamento de presos.</p><p>d) Regime de isolamente dos presos. O Comitê destaca a iniciati-</p><p>va de reforma da Ley de Enjuiciamiento Criminal e a informação</p><p>proporcionada pelo Estado sobre a redução do uso do regime</p><p>de isolamento do preso, porém lamenta que esta reforma não</p><p>introduza a abolição do regime de isolamento e que não garanta</p><p>todos os direitos estabelecidos pelo artigo 14 do Pacto, parti-</p><p>cularmente o direito à assistência letrada (artigos 7,9,10 e 14).</p><p>Por este motivo, o Comitê reitera suas recomendações anteriores</p><p>(CCPR/C/ESP/CO/5, parágrafo 14) e reitera a recomendação</p><p>de que sejam tomadas as medidas legislativas necessárias para</p><p>eliminar a detenção em condições de isolamento e que se reco-</p><p>nheça a todos os detidos o direito a um médico e a livre escolha</p><p>de um advogado a que possa recorrer de forma plenamente</p><p>confidencial e que posso estar presente nos interrogatórios.</p><p>No que se refere ao Conselho da Europa, a jurisprudência em</p><p>matéria penitenciária editada nas últimas décadas pelo Tribunal Eu-</p><p>ropeu de Direitos Humanos (que definiu sentenças condenatórias,</p><p>por exemplo, por violação do artigo 3º–proibição de torturas e penas</p><p>degradantes – do Convênio Europeu de Direitos Humanos) constitui</p><p>uma fonte de primeira ordem neste sentido. A Espanha acumula até o</p><p>presente oito sentenças condenatórias ditadas pelo Tribunal Europeu</p><p>de Direitos Humanos do Conselho de Europa (a última de maio de</p><p>2016) por violação do artigo 3º do Convênio Europeu de Direitos</p><p>Humanos e Liberdades Fundamentais que obriga a investigar com</p><p>exaustividade as denúncias por torturas e de penas ou tratamentos</p><p>cruéis, desumanos ou degradantes. De fato, nos últimos anos foram</p><p>produzidas numerosas sententenças condenatórias contra a Espanha</p><p>por não ter sido realizada uma investigação mais efetiva em relação</p><p>às denúncias efetuadas por maltrato e/ou tortura em sede policial.</p><p>Ainda assim, os relatórios emitidos pelo Comitê para a Preven-</p><p>ção de Tortura do Conselho da Europa (CPT, criado pela Convenção</p><p>Europeia de 1987) indicam uma quantidade importantíssima de mo-</p><p>delos em matéria penitenciária que devem guiar as legislações e as</p><p>práticas neste sentido pelos estados membros. O trabalho de inspeção</p><p>da CPT se encontra no site www.cpt.coe.int.</p><p>No âmbito da União Européia, a Comissão de Liberdades Civis</p><p>e Justiça e Assuntos de Interior do Parlamento Europeu, em seu último</p><p>relatório relativo à situação dos direitos fundamentais da União Euro-</p><p>péia (2013-2014) (2014/2254 (INI)) de julho de 2016, recorda que:</p><p>a) o respeito e a promoção dos direitos humanos, as liberdades</p><p>fundamentais, a democracia e os valores e princípios consagra-</p><p>dos nos Tratados da UE e os instrumentos internacionais de</p><p>direitos humanos (Declaração Universal de Direitos Humanos,</p><p>CEDH, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Pacto</p><p>Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, etc.)</p><p>são obrigatórios para a UE e seus Estados membros e precisam</p><p>ser um elo de integração europeia;</p><p>b) deve-se garantir os direitos de todas as pessoas que vivem na UE,</p><p>inclusive em resposta aos abusos e atos de violência por parte</p><p>das autoridades de qualquer nível.</p><p>c) em conformidade com o artigo 2 do TUE, a União Europeia se</p><p>embasa nos valores de respeito da dignidade humana, liberdade,</p><p>democracia, igualdade, Estado de Direito e respeito aos direi-</p><p>tos humanos, incluídos os direitos das pessoas pertencentes a</p><p>minorias, valores comuns nos Estados membros que devem ser</p><p>respeitados tanto pela UE como por todos os Estados membros,</p><p>em todas suas políticas, tanto internas como externas; que, em</p><p>conformidade com o artigo 17 do TUE, a Comissão deve velar</p><p>pela aplicação dos Tratados.</p><p>E em especial, no que diz respeito às condições de detenção nas</p><p>prisões e outras instituições de privação de liberdade:</p><p>a) as autoridades nacionais devem garantir os direitos fundamen-</p><p>tais dos presos e das presas; lamenta as condições de detenção</p><p>nas prisões e em outras instituições de numerosos Estados mem-</p><p>bros, entre as quais figuram a superpopulação carcerária e maus</p><p>tratos aos presos/as; considera essencial a adoção pela UE de</p><p>um instrumento que garanta a aplicação das recomendações</p><p>do Comitê Europeu para a prevenção da Tortura</p><p>e outras penas</p><p>e tratamentos Degradantes (CPT) e das sentenças do TEDH;</p><p>b) o recurso excessivo de medidas de reclusão provoca</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 7978 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>superpopulação carcerária em toda a Europa, o que vulnera</p><p>direitos fundamentais das pessoas e rompe com a confian-</p><p>ça mútua necessária para sustentar a cooperação judicial na</p><p>Europa; reitera que os Estados membros devem cumprir os</p><p>compromissos assumidos nos foros internacionais e europeus</p><p>no sentido de recorrer com mais frequência a medidas de li-</p><p>berdade vigiada e a sanções que constituam uma alternativa ao</p><p>encarceramento, e de converter a reinserçao social no objetivo</p><p>principal de um período de detenção.</p><p>c) A Comissão solicita que sejam avaliadas as consequências das</p><p>políticas de detenção e os sistemas de justiça penal para ado-</p><p>lescentes, assinala que os direitos da criança e do adolescente</p><p>estão direitamente atingidos em toda a União Europeia no</p><p>caso de menores que vivem em centros de detenção com seus</p><p>pais; destaca que, segundo os dados, cerca de 800.000 crianças</p><p>são separadas a cada ano na UE de um dos seus progenitores</p><p>por estar encarcerado, o que repercute nos direitos das crianças</p><p>de múltiplas formas.</p><p>No âmbito da América Latina, deve-se destacar a tarefa de-</p><p>senvolvida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos</p><p>(CIDH), em especial sua relatoria para pessoas privadas de liberda-</p><p>de, na elaboração de numerosos relatórios com recomendações aos</p><p>Estados parte. Em especial, a CIDH em seu relatório de 2011 sobre</p><p>os direitos humanos das pessoas privados de liberdade nas Américas,</p><p>referiu haver constatado que a tortura a pessoas sob custódia do</p><p>Estado segue sendo um dos principais problemas de direitos hu-</p><p>manos na região. Assinalou que impunidade é uma das principais</p><p>causas da persistência das práticas de tortura, isto é, a falta de investi-</p><p>gação, persecução, captura, acusação, e condenação dos responsáveis</p><p>das violações de direitos humanos. Afirma-se que é preciso que os</p><p>atos de tortura sejam objeto de investigações efetivas que conduzam</p><p>ao indiciamento e a punição dos responsáveis. (pag.142)</p><p>Em consequência, a CIDH evocou a necessidade de adotar</p><p>medidas concretas de prevenção da tortura, efetuando uma série de</p><p>Recomendações. Também recomendou que sigam sistematicamente</p><p>as diretrizes do Protocolo de Istambul por parte das autoridades en-</p><p>carregadas de investigar, documentar e apresentar ditames relativos a</p><p>atos de tortura (pg. 198).</p><p>Certamente, junto a isso também deve ser destacado o impor-</p><p>tantíssimo papel desempenhado pelas organizações internacionais de</p><p>direitos humanos que atuam com notável presença, visitas, relatórios</p><p>e recomendações nessa mesma matéria, configurando um corpus que</p><p>contém uma valiosíssima informação totalmente independente dos</p><p>poderes públicos para o desenvolvimento de políticas penitenciárias</p><p>respeitosas da legalidade.</p><p>Uma decidida política de direitos humanos não pode seguir</p><p>dando as costas à semelhante conjunto de normativas do Direito In-</p><p>ternacional dos direitos humanos, que deve ser um autêntico guia</p><p>que oriente a produção normativa e as práticas institucionais. A falta</p><p>de compromisso com a execução das recomendações internacionais</p><p>que emanam das Organizações Internacionais, cuja competência tem</p><p>sido aceita pelos estados membros, constitui uma prova inconteste da</p><p>desobediência governamental à ordem jurídica internacional.</p><p>Nesta rápida exposição de um tema tão importante, cita-se</p><p>aqui duas iniciativas de ordem distinta. A primeira, o caso da Itália</p><p>com a criação da Commissione del Ministero della Giustizia italiano per</p><p>l’elaborazione degli interventi in materia penitenziaria (criada pelo Mi-</p><p>nistro della giustizia com o Decreto de 13 de junho de 2013, presidida</p><p>por Mauro Palma, como se poderá ler no Epílogo deste livro), para</p><p>a implementação tanto das recomendações do CPT do Conselho da</p><p>Europa quanto aos conteúdos das sentenças condenatórias ao Estado</p><p>italiano pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos.</p><p>A respeito do sucedido na Itália, digamos por agora (sem prejuí-</p><p>zo de seu tratamento exaustivo no Epílogo deste volume) que, como</p><p>consequência da condenação sofrida pelo estado no “caso Torreggia-</p><p>ni”, foi a partir de 2013 que se iniciaram verdadeiras transformações</p><p>penais e penitenciárias em contraste com os 15 anos anteriores. De</p><p>fato, na Itália, depois de ser ditada a sentença piloto “Torregiani contra</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 8180 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>Itália”, foi criada a referida Comissão específica para estudar a forma</p><p>de implantação das Recomendações Internacionais em matéria de pri-</p><p>vação de liberdade; foi uma Comissão criada por tempo determinado,</p><p>que concluiu seu trabalho quando o Comitê para execução da Sentença</p><p>da Corte de Estrasburgo reconheceu que a Itália estava cumprindo com</p><p>o requerido por ela. Como também veremos mais adiante, em seguida</p><p>foram constituídas dezoito mesas de trabalho sobre a execução penal63,</p><p>porque, uma vez resolvido o problema numérico, foi assumido o difí-</p><p>cil tema da qualidade de vida e, portanto, o modelo de execução penal</p><p>que se quer no presente e no futuro próximo.</p><p>De fato, essas reformas tem tido o objetivo não só de reduzir o</p><p>peso numérico da população detida e garantir a proteção dos direitos</p><p>fundamentais da pessoa privada de liberdade. Como a respeito indi-</p><p>cou Patrizio Gonnella, “foram questionadas práticas estabelecidas,</p><p>mas profundamente injustas. Um exemplo para todos: por fim, se</p><p>prevê que os encarcerados devam participar de atividades fora de suas</p><p>celas por pelo menos oito horas. Esta é a revolução da “normalidade”</p><p>depois de décadas de inatividade obrigada em nome da ideia dissimu-</p><p>lada de segurança. A retórica da reabilitação não socavou as bases de</p><p>um sistema incapaz de reformar-se. O contexto jurídico da dignidade</p><p>humana, em virtude de sua força e de sua indefinição, conseguiu dar</p><p>uma forte sacudida num sistema paralisado como o italiano. Não é ca-</p><p>sualidade que a sacudida chegou via os sistemas internacionais, como</p><p>a Corte Europeia de Direitos Humanos e o Comitê Europeu para a</p><p>Prevenção da Tortura, menos envolvidos nos debates internos e mais</p><p>em sintonia com a noção de dignidade. Tampouco é casualidade que</p><p>em nosso país, para fazer efetiva esta sacudida, colocou-se na primeira</p><p>fila quem é portador de uma cultura europeia centrada sobre o ser</p><p>humano, no lugar de quem tradicionalmente confiou nos argumentos</p><p>da doutrina sobre a função da pena”. (2016:14)</p><p>Nesse sentido, reporta-se a Mario Palma, quem, com efeito,</p><p>como logo se verá em detalhes, teve um papel chave, já que nestes anos</p><p>63 Stati Generali dell’ Esecuzione penale.</p><p>foi conselheiro do Ministério de Justiça para a reforma das prisões.</p><p>Esse processo de debate participativo com a sociedade civil chamado</p><p>Stati Generali dell’Esecuzione Penale supôs a constituição de dezoito</p><p>grupos de trabalho, cada um com menos de dez pessoas de diferentes</p><p>âmbitos culturais e profissionais, que discutiram durante vários meses</p><p>as questões correcionais (das medidas alternativas à justiça restaura-</p><p>tiva, da situação dos jovens aos estrangeiros, das problemáticas das</p><p>mulheres à sexualidade e outros). A conferência final, da qual parti-</p><p>cipou o Chefe de Estado Sérgio Mattarella, ocorreu nos dias 18 e 19</p><p>de abril de 2016 no presídio romano de Rebibbia Nuovo Complesso.</p><p>O outro exemplo, diferente, mas também nascido em um</p><p>plano internacional, para que a sociedade civil pressione os estados</p><p>para o cumprimento das recomendações e sentenças internacionais,</p><p>foi a constituição em dezembro de 2013 da Red Euro-Latinoame-</p><p>ricana para la prevención de la tortura y la violencia institucional</p><p>(RELAPT). Esta plataforma internacional que agrupa diversos par-</p><p>ceiros vem promovendo, entre outras questões, a criação do primeiro</p><p>Observatório</p><p>Latino-americano de la Tortura (OLAT) no qual são</p><p>registradas, precisamente, as sentenças e recomendações internacio-</p><p>nais referidas, que se constituem em um insumo muito importante</p><p>para a adoção de políticas públicas como as assinaladas. (http://</p><p>relapt.usantotomas.edu.co/index.php/en/).</p><p>A RELAPT é uma estrutura internacional de trabalho, ação</p><p>e difusão para a prevenção de tortura fundada em Bogotá em de-</p><p>zembro de 2013, a qual está integrada por inúmeras instituições e</p><p>organizações de nove países da América Latina: Argentina, Brasil,</p><p>Chile, Colombia Costa Rica, Guatemala, Honduras, Paraguai, Uru-</p><p>guai, além da Espanha e do apoio do Conselho Europeu. Oriundos</p><p>de vários destes países, integram a RELAPT representantes dos três</p><p>âmbitos que se consideram fundamentais: instituições públicas,</p><p>organizações de direitos humanos da sociedade civil e instituições</p><p>acadêmicas. Além disso, várias organizações internacionais vem</p><p>aderindo à Rede no caráter de Observadores, como o Centro pela</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 8382 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>Justiça e Direito Internacional (CEJIL) o Instituto Latinoamerica-</p><p>no das Nações Unidas para prevenção do Delito e Tratametno do</p><p>Delinquente (ILANUD), a United Nations Office on Drugs and</p><p>Crime (UNODC), a Asociación Latinoamericana de Derecho Penal</p><p>y Criminología (ALPEC) e a Asociación para la prevención de la</p><p>Tortura (APT).</p><p>Em seu último relatório sobre a tortura nos países da América</p><p>Latina, a RELAPT assinalou que a generalizada extensão de seme-</p><p>lhante violência institucional tem sido documentada por numerosas</p><p>instituições e organizações não governamentais como a Anistia In-</p><p>ternacional, Human Rights Watch ou a Associação para Prevenção da</p><p>Tortura64, o Subcomitê para a Prevenção da Tortura, o Comite de</p><p>Direitos Humanos, o Comitê sobre desaparecimentos forçadas da</p><p>ONU, o Relator especial sobre a tortura e outros tratamentos ou</p><p>penas cruéis, inumanos ou degradantes e o ILANUD65.</p><p>Com tudo o que foi dito, pode-se concluir afirmando a neces-</p><p>sidade de criar verdadeiras Unidades institucionais para o estudo e a</p><p>sistematização das Sentenças e das Recomendações internacionais que</p><p>servirão como marco geral para a estruturação de outra política penal</p><p>de acordo com o respeito e a legalidade internacional.</p><p>64 Veja-se o relatório 2014/2015 da Amnistía Internacional. La situación de los Derechos Hu-</p><p>manos en el mundo, 2015; Human Rights Watch, Relatório mundial 2016 em https://www.</p><p>hrw.org/es/world-report/2016; APT, Prevenir la Tortura – una responsabilidad compartida.</p><p>Foro Regional sobre el OPCAT en América Latina, 2014.</p><p>65 Veja-se CAT, Compilación de observaciones finales del Comité contra la Tortura sobre países</p><p>de América Latina y el Caribe (1988-2005), en http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/</p><p>CAT/CATLibro.pdf. A respeito do SPT veja-se o o relatório da visita da SPT ao México, 2010.</p><p>Ref: CAT/OP/MEX/1; Relatório da Visita del SPT a Paraguay, 2010. Ref: CAT/OP/PRY/1 e</p><p>relatório de 2011. Ref: CAT/OP/PRY/2; relatório da visita do SPT a Honduras, 2010. Ref:</p><p>CAT/OP/HND/1;Relatório da visita do SPT ao Brasil, 2012. Ref: CAT/OP/BRA/1; Relatório</p><p>da visita do SPT a Argentina, 2012. Ref: CAT/OP/ARG/1. O SPT também visitou a Bolivia</p><p>em 2010, Perú em 2013 y Nicaragua y Ecuador en 2014, poém os Estados não publicaram os</p><p>relatórios. O SPT vistou a Guatemala em 2015 e o Chile em 2016, porém os relatórios ainda</p><p>não foram emitidos. Do Relator especial sobre a tortura, veja-se entre otros o relatório do Re-</p><p>lator Especial sobre a tortura y otros tratos ou penas cruéis, inhumanos ou degradantes sobre</p><p>sua missão no Brasil, 2016. Ref. A/HRC/31/57/Add.4; o relatório do Relator Especial sobre la</p><p>tortura y otros tratamentos ou penas crueles, inhumanos ou degradantes sobre sua missão ao</p><p>México, 2014. Ref. A/HRC/28/68/Add.3</p><p>Ver também ILANUD (2013), “Los Sistemas penitenciarios latinoamericanos y los derechos</p><p>humanos. ¿Qué hacer?”; Elías Carranza “Situación penitenciaria na América Latina e el Ca-</p><p>ribe ¿Qué hacer?”, en Anuario de Derechos Humanos 2012, pp. 31-66, disponível em http://</p><p>www.anuariocdh.uchile.cl/.</p><p>3. CONSTITUIÇÃO DE UMA MESA DE TRABALHO E</p><p>DIÁLOGO ENTRE OS ATORES DIRETAMENTE ENVOL-</p><p>VIDOS COM O ENCARCERAMENTO</p><p>Como já foi mencionado, as reformas penitenciárias que tra-</p><p>dicionalmente têm sido empreendidas não têm ouvido as diferentes</p><p>reivindicações. É imprescindível, pois, para iniciar um processo de</p><p>verdadeira participação democrática na tomada de decisões, reverter</p><p>essa situação permitindo que sejam os próprios afetados pela prisão</p><p>que participem da construção de seus caminhos emancipatórios. Para</p><p>tanto, é imprescindível que, desde o início, o processo conte – como</p><p>verdadeiros interlocutores – com os sujeitos afetados pela realidade</p><p>carcerária (presos, familiares, operadores penitenciários, represen-</p><p>tantes da administração penitenciária e de caráter municipal bem</p><p>como de organizações de direitos humanos comprometidas com a</p><p>problemática penitenciária). Cada setor deveria designar comissões</p><p>representativas para participar de discussões posteriores com interlo-</p><p>cutores reconhecidos pelas distintas partes.</p><p>Tais comissões, uma vez constituídas, não só poderão debater</p><p>entre si, senão poderão se constituir como efetivos interlocutores</p><p>frente aos poderes públicos, as corporações profissionais (ordem</p><p>dos advogados, conselhos profissionais de médicos, psicólogos,</p><p>etc.) Universidades, etc. No próximo item se explicitará os possí-</p><p>veis setores mais diretamente envolvidos com as consequências da</p><p>prisão, visando delimitar as problemáticas específicas e necessida-</p><p>des de cada setor.</p><p>Da mesma forma, é muito relevante assinalar que tais comissões</p><p>– cuja tarefa inicial tem sido a de constituir uma mesa de diálogo e</p><p>de trabalho conjunto – devem nascer com vontade de permanência.</p><p>De fato, devem atuar não somente desde o início (desenvolvendo</p><p>uma investigação preliminar e participando na elaboração de uma</p><p>orientação e diagnóstico do que se fará referência no próximo item)</p><p>mas devem permanecer especialmente atentas para vigiar o posterior</p><p>desenvolvimento do processo transformador, controlando que este se</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 8584 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>desenvolva dentro dos parâmetros consensuais pelas partes. A efetiva</p><p>participação democrática dos atores exigirá, como consequência, a</p><p>manutenção dessas comissões.</p><p>Como exemplos do que se está sinalizando, entre outros, pode</p><p>ser observado, por um lado, o processo que está sendo desenvolvido</p><p>na Argentina para a constituição de uma “Mesa de estudo e análise</p><p>para a reforma do Serviço Penitenciário Federal”. A exigência de</p><p>numerosos coletivos da sociedade civil com previsão de participa-</p><p>ção de pessoas presas, seus familiares, organizações sociais, junto a</p><p>comunidade acadêmica e os poderes judicial e executivo, encaixa-se</p><p>na direção do que aqui se busca.66</p><p>O outro exemplo já foi mencionado antes. A propósito, o</p><p>exame exaustivo da recente constituição na Itália das dezoito mesas</p><p>de trabalho que constituíram o Stati generale dell’ Esecuzione penale é</p><p>realizado pelo próprio Mauro Palma no Epílogo deste trabalho.</p><p>4. IMPRESCINDÍVEL DESENVOLVIMENTO DE UMA</p><p>INVESTIGAÇÃO SOCIOLÓGICA DA REALIDADE PENI-</p><p>TENCIÁRIA COM EXPRESSÃO DAS PROBLEMÁTICAS</p><p>MAIS ACUCIANTES</p><p>É evidente que um Programa que aponte para uma transforma-</p><p>ção radical e reducionista da prisão seria absolutamente inviável se,</p><p>previamente, não não for realizado um profundo estudo da realidade</p><p>sobre a qual se pretende atuar. Em consequência, o primeiro passo que</p><p>deve ser abordado é o desenvolvimento de uma investigação socioló-</p><p>gica que possa concluir mostrando que prisão realmente existe, que</p><p>população possui, quais são os principais problemas e necessidades</p><p>66 Como assinalam os signatários do documento “Agenda para uma reforma penitenciária</p><p>respei-</p><p>tosa dos direitos humanos” “é necessario que n processo de revisão participe as pessoas privadas</p><p>de sua liberdade e seus familaires principalmente beneficiários da reforma e inclua a sociedade</p><p>civil principais beneficiários da reforma e inclua a sociedad civil permitindo e promovendo o</p><p>ingresso de associações civis, organizações sociais docentes e outros cidadãos , que proponham</p><p>e levem a cabo visitas, atividades culturais, esportivas, sociais e educativas nos estabelecimentos</p><p>carcerários sem mais restrições que a certificação de personería e objeto para as associações,</p><p>curriculo vitae para as pessoas físicas e as propostas ou projetos a implementar.</p><p>a considerar, já que é sobre esta realidade que se vai atuar. Por outro</p><p>lado, deve ficar claro desde o começo que um estudo desse tipo, ne-</p><p>cessariamente, deve levar em conta os atores principais: os presos, os</p><p>familiares destes, as associações de apoio, suas demandas e os opera-</p><p>dores penitenciários. O desenho de uma profunda investigação, no</p><p>marco da qual deveriam realizar-se visitas, encontros, questionários,</p><p>entrevistas e quantas ferramentas metodológicas sejam acordadas</p><p>entre as partes, tem de se constituir o primeiro ponto do Programa.</p><p>Como resultado da referida investigação, deve ser elaborado</p><p>um informe preliminar que os afetados possam organizar e discutir,</p><p>até obter finalmente um parecer consensuado sobre a situação pe-</p><p>nitenciária entre os diversos atores do processo; diagnóstico que só</p><p>constituiria um ponto de partida para o início do processo posterior.</p><p>Dos setores afetados pela prisão, podem, como se diz, distinguir-se</p><p>alguns atores precisos, com necessidades e reivindicações específicas.</p><p>A título de exemplo, pode-se assinalar os seguintes:</p><p>4.1. A população encarcerada</p><p>É necessário investigar as principais temáticas sobre as con-</p><p>dições de vida percebidas pelas pessoas privadas de liberdade,</p><p>prestando especial atenção às seguintes circunstâncias subjetivas e</p><p>socioculturais: a) a perspectiva de gênero na vida carcerária; b) a</p><p>diversidade sexual em âmbitos de reclusão (especial consideração</p><p>dos coletivos LGBT); c) a privação de liberdade e o direito à saúde;</p><p>d) as condições étnicas e de nacionalidade nos institutos penais; e)</p><p>a infância e a juventude nos estabelecimentos carcerários; f ) a expe-</p><p>riência do sofrimento carcerário e seus distintos níveis – incluindo</p><p>tanto casos de maltrato como de sofrimento intrínseco da experiên-</p><p>cia carcerária. Deverá ser estabelecida, para tanto, uma metodologia</p><p>de trabalho que possa combinar técnicas diversas como o desenho e</p><p>envio de questionários e a realização de entrevistas sobre conjuntos</p><p>previamente selecionados de pessoas privadas de liberdade que pode-</p><p>rão assim, desde o início, expressar suas necessidades a ser escutadas.</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 8786 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>4.2. Os entornos familiares das pessoas presas</p><p>Será particularmente relevante considerar a) o grau de relação/</p><p>parentesco com a pessoa presa; b) o nível de dependência econômica</p><p>com a pessoa privada de liberdade e as formas de sustento econômi-</p><p>co atual se a pessoa presa cumpria um importante papel de sustento</p><p>familiar; c) o possível incremento de gastos devido ao deslocamento</p><p>que os familiares passaram a ter para efetivar as visitas, ou se devem</p><p>cobrir as necessidades da pessoa encarcerada; d) a possível medição</p><p>de dor afetiva/emocional da situação vivida; e) a duração temporal da</p><p>carência subjetiva; f ) (se houver) o nível de auxílio e atenção pública</p><p>e privada que obtém a família afetada. Para este segundo grupo de</p><p>afetados também podem ser confeccionados questionários em uma</p><p>primeira fase e realizar entrevistas posteriormente, que foquem nas</p><p>principais vivências e danos ocasionados pelo encarceramento de um</p><p>membro do entorno sociofamiliar afetado.</p><p>4.3. Os funcionários penitenciários</p><p>Como já foi assinalado acima (e sem prejuízo do quanto corres-</p><p>ponde a este coletivo e suas problemáticas específicas se voltará mais</p><p>adiante), considera-se imprescindível abordar a problemática daqueles</p><p>que trabalham como profissionais nos institutos penitenciários. Será</p><p>especialmente importante conhecer nesse sentido as seguintes ques-</p><p>tões: a) suas condições materiais e salariais de trabalho; seus níveis de</p><p>formação e capacitação profissional e cultural; c) os diferentes impac-</p><p>tos subjetivos ocasionados pelo trabalho em privação de liberdade; d)</p><p>medir, tanto quanto for possível, os níveis de satisfação pessoal, de</p><p>stress, de depressão ou de ansiedade internalizadas em seu cotidiano</p><p>de profissional; e) conhecer (se existem) os mecanismos e sistemas de</p><p>rodízio de trabalho; f ) conhecer suas opiniões acerca dos programas e</p><p>práticas de atuação que como operadores penitenciários devem execu-</p><p>tar; g) expressar seus direitos e deveres, assim como o conhecimento de</p><p>regulações que os protegem e que protocolos sobre suas ações existem</p><p>em seus respectivos âmbitos.</p><p>O trabalho direto com os profissionais da execução penitenciá-</p><p>ria, por exemplo através da realização de grupos focais, pode constituir</p><p>uma experiência valiosíssima. O resultado esperado da mesma é a</p><p>possibilidade de expressar as problemáticas principais de seu trabalho</p><p>profissional, as consequências para sua saúde mental e subjetiva e ela-</p><p>borar um catálogo de opiniões alternativas que contribuam para uma</p><p>redução dos danos sofridos por seu desempenho de acordo com a sua</p><p>própria experiência, que deverão expressar sem pressões institucionais.</p><p>4.4. Organizações sociais, municipais e instituições</p><p>universitárias que trabalham no e com o entorno penitenciário</p><p>Este quarto grupo de afetados pela privação de liberdade, que</p><p>tradicionalmente não tem sido tomado como interlocutor de possíveis</p><p>medidas transformadoras de privação de liberdade, tem um enorme</p><p>capital social para aportar a um programa como o aqui esboçado.</p><p>Trata-se de conhecer em profundidade: a) o papel desempenhado</p><p>pelas organizações sociais que realizam atividades de apoio, visitas,</p><p>campanhas de solidariedade e similares; b) o grau de proximidade ou</p><p>distanciamento com as administrações penitenciárias (legitimidade e</p><p>legalidade de sua intervenção/participação); c) as ajudas ou os impe-</p><p>dimentos vividos em seu trabalho social; d) o papel das universidades</p><p>em relação à prisão (formação, investigação, monitoramento, asses-</p><p>soramento); e) o papel das administrações municipais e regionais em</p><p>relação à prisão e seus habitantes; f ) o papel dos meios de comunica-</p><p>ção e da divulgação cultural na vida carcerária.</p><p>O resultado esperado do trabalho deste amplo setor é a arti-</p><p>culação de um documento que dê conta da possibilidade de “abrir a</p><p>prisão” ao ser esta atravessada por outras instituições e organizações</p><p>da sociedade que não estão obrigadas à lógica de prêmios e castigos</p><p>que sempre condicionaram as instituições fechadas. O “ponto de vista</p><p>extremo” (extra sistêmico) a elas pode e deve cumprir um papel im-</p><p>portante como ferramenta de redução dos danos ocasionados pela</p><p>prisão. Mais adiante, este tema será abordado especificamente.</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 8988 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>5. MÍNIMO MARCO JURÍDICO-GARANTISTA NECESSÁ-</p><p>RIO DURANTE O DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA</p><p>É importante ressaltar que um programa para a paulatina</p><p>redução da prisão requer, durante sua execução, um marco jurídico</p><p>inspirado na tradição do “constitucionalismo social”. Com é sabido, a</p><p>forma Estado Social e Democrático de Direito do “constitucionalismo</p><p>social” se molda no continente europeu com o final da Segunda</p><p>Guerra Mundial e com o estabelecimento de uma série de princípios</p><p>que haveriam de orientar a conformação e o funcionamento do</p><p>sistema de justiça penal, jurisdicional e de execução e de propor-</p><p>cionalidade das penas: a abolição da pena de morte e da tortura, a</p><p>finalidade ressocializadora</p><p>atribuída às penas privativas de liberdade</p><p>e a consagração de uma amplo catálogo de direitos fundamentais e</p><p>garantias processuais para todos os cidadãos.</p><p>Esses são alguns exemplos dos mais modernos princípios de</p><p>atuação de um sistema penal próprio daquela forma-Estado. Teve</p><p>especial importância a constitucionalização do estatuto jurídico das</p><p>pessoas condenadas a penas privativas de liberdade. Não parece demais</p><p>referir que, apesar do plano prescritivo, no puramente descritivo a</p><p>realidade da prisão habita uma dimensão muito distante. A distância</p><p>entre a “prisão legal” e a “prisão real” é uma distância que qualifica</p><p>também a qualidade de um sistema democrático. Não obstante, isto</p><p>não impede a necessária reavaliação daqueles princípios como exigên-</p><p>cia precisamente da forma-Estado assinalada.</p><p>Considera-se imprescindível, como consequência, a adoção</p><p>(quando não exista) da manutenção (se a legislação já não prevê)</p><p>de um marco semelhante que, embasado nos princípios próprios do</p><p>denominado garantismo radical deve adequar-se, como mínimo, aos</p><p>postulados seguintes (muitos dos quais estão destinados a “inverter”</p><p>muitos conceitos – e práticas – hoje imperantes no mundo carcerário).</p><p>A título de exemplo, pode citar-se os seguintes:</p><p>5.1. Princípios da legalidade e reserva de lei</p><p>Em primeiro lugar, e para sustentar a vigência efetiva e não</p><p>somente formal do princípio de legalidade, a atual situação, presen-</p><p>te em muitos países da Europa e da América Latina, que permite</p><p>que a imensa maioria de incidentes da execução penal sejam disci-</p><p>plinados por normas regulamentais ou por circulares ministeriais,</p><p>deve acabar. De fato, a estrita observação da garantia de execução</p><p>(que deriva do princípio de legalidade na tradição do direito penal</p><p>liberal) ordena que a forma, o modo no qual se deve cumprir uma</p><p>pena privativa de liberdade, deve estar regulada em uma norma que</p><p>só pode ter condição legal. Em consequência, deve se abordar um</p><p>processo legislativo que regule toda uma série de questões de vida</p><p>carcerária, que, na realidade, estão reunidas em sua grande maioria</p><p>em normas jurídicas que carecem da condição necessária.67.</p><p>5.2. Por uma progressiva eliminação da prisão preventiva</p><p>Também, normas claras com característica de lei devem pro-</p><p>mover o caráter verdadeiramente excepcional do emprego da prisão</p><p>preventiva. Um programa para o desencarceramento embasado no</p><p>cumprimento radical dos direitos e garantias fundamentais deve res-</p><p>peitar ao máximo o direito e o princípio fundamental da presunção</p><p>de inocência, o qual não é compatível com o emprego da prisão pre-</p><p>ventiva, em especial para o tipo de população que normalmente é sua</p><p>destinatária, a qual costuma pertencer aos extratos sócio-econômicos</p><p>mais desfavorecidos da sociedade, em uma flagrante aplicação discri-</p><p>minatória das normas que afetam o direito à liberdade.</p><p>É importante comprovar que um instituto semelhante não tem</p><p>sido utilizado com maior profusão no campo da chamada “delin-</p><p>quência estatal corporativa” como forma de assegurar a obrigação de</p><p>devolução ou reparação do profundo dano social causado.</p><p>67 Como é o caso na Espanha, e por citar tão somente um exemplo entre tantos outros, da tipifi-</p><p>cação das ações que podem ser constitutivas de faltas disciplinares as quais são reguladas no</p><p>Reglamento penitenciario e não na Lei penitenciária.</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 9190 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>5.3. Reavaliação do estatuto jurídico das pessoas privadas de</p><p>liberdade: dos benefícios penitenciários aos direitos subjetivos</p><p>É imprescindível a exclusiva adoção de critérios “objetivos” na</p><p>determinação do nível disciplinar e da possível diminuição da pena</p><p>(v. Baratta 1990). Para inverter a atual situação, deve se erradicar –</p><p>tanto das normas quanto das práticas – a tendência de conceber ou</p><p>negar o acesso a toda uma série de institutos por critérios subjetivos</p><p>e/ou de periculosidade que traduzem os postulados mais ortodoxos</p><p>de um dispositivo criminológico que foi inundando as instituições</p><p>penitenciárias. Por exemplo: a atual legislação penitenciária espanhola</p><p>estabelece que os reclusos “poderão” desfrutar permissões de saída se</p><p>tiverem cumprido a quarta parte de sua condenação, estiverem classi-</p><p>ficados em segundo grau e não tiverem punições disciplinares. Ainda</p><p>assim, existe toda uma longa lista de variáveis “subjetivas” (periculosi-</p><p>dade, medição de supostos perfis de risco, pertencimento a ambientes</p><p>marginais, atitudes “anti sociais”, prisionização etc.) que podem im-</p><p>pedir que seja concedida saída a um recluso, ainda que cumpra com</p><p>os requisitos mencionados. Semelhante prática deve ser erradicada e</p><p>unicamente devem prevalecer critérios de caráter objetivo que não</p><p>esvaziem de conteúdo o princípio da segurança e certeza jurídica.</p><p>Orientar esses (mal) chamados “benefícios penitenciários” na</p><p>direção de sua transformação em direitos subjetivos deve se constituir</p><p>um princípio reitor desta matéria. De fato, para que efetivamente o</p><p>novo conceito de “reintegração social do condenado” não se esvazie de</p><p>conteúdo semelhante tarefa é imprescindível para os tramites de, por</p><p>exemplo, permissões de saída, liberdades condicionais etc. Não pode-</p><p>mos seguir admitindo um direito penal de autor na fase de execução</p><p>penal orientado por critérios subjetivos, como de periculosidade ou</p><p>de supostas medições de limiares de risco.</p><p>5.4. Modificação do âmbito de decisão dos incidentes de</p><p>execução penal: da prisão aos juízes de vigilância penitenciária</p><p>Em íntima relação com o que acaba de ser mencionado, e para</p><p>afiançar mais ainda o que foi ali enfatizado, é necessário que o âmbito</p><p>de decisão em matérias tais como disciplina, medidas de redução de</p><p>pena, comunicações, transferências, saídas e muitos incidentes pró-</p><p>prios da Execução Penal, seja dos Juízes de Vigilância Penitenciária</p><p>ou de Execução Penal (cfr. Baratta op.cit). Trata-se também agora de</p><p>inverter a atual situação caracterizada pelas “proposições” que realizam</p><p>as Equipes Técnicas a respeito de toda uma série de institutos peni-</p><p>tenciários que condicionam fortemente a resolução final dos Juízes</p><p>de Execução Penal ou de Vigilância Penitenciária, sem que os presos</p><p>estejam em condições efetiva de contradizer tais propostas. Ademais,</p><p>esses juízes de Vigilância Penitenciária devem comparecer pessoalmen-</p><p>te – obrigatoriamente – nas prisões, de modo frequente e sem prévio</p><p>aviso, para zelar pelos direitos dos presos.</p><p>De fato, e citando novamente o exemplo da Espanha, são as</p><p>denominadas Equipes de Observação e Tratamento que propõe</p><p>– favoravelmente ou desfavoravelmente – aos Juizes de Vigilância Pe-</p><p>nitenciária, as permissões de saída ou a possibilidade de progredir no</p><p>regime penitenciário ou o livramento condicional etc. Em uma situação</p><p>semelhante, não só a resolução judicial posterior está diretamente condi-</p><p>cionada pelos relatórios penitenciários elaborados dentro do paradigma</p><p>de premios e castigos que inspira a legislação penitenciária, quando não</p><p>remetem diretamente às necessidades de governo disciplinar da prisão</p><p>senão que impedem uma efetiva contradição por parte do preso. Isso</p><p>se agravou muito nos últimos anos, por exemplo na Catalunha, como</p><p>consequência da adoção de um paradigma atuarial. Este supõe a estan-</p><p>dartização do tratamento penitenciário através da adoção de diversos</p><p>checklists que medem um suposto umbral de risco de comportamento</p><p>dos presos através de variáveis pessoais, familiares, de comportamento,</p><p>isto é, a possibilidade de ser “julgado” pelo que se é e não pelo que fez.</p><p>Algo como um direito penal-penitenciário de autor deve ser erradicado</p><p>das práticas da execução penal, como insistentemente alguns autores</p><p>tem reivindicado. (entre otros, Pavarini 1999, Baratta 1990 y 1992,</p><p>Bergalli 1976 y 2003, Rivera Beiras 2008 y 2009).</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 9392 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO</p><p>RADICAL</p><p>5.5. Frente a uma efetiva jurisdição em matéria penitenciária.</p><p>Direito processual em fase de execução penal?</p><p>Já foi assinalado anteriormente, a propósito do trabalho de Fer-</p><p>rajoli (aludindo-se à publicação de 2016) o questionamento sobre a</p><p>natureza autenticamente jurisdicional da execução penal, ao menos</p><p>precisamente no que se refere à atuação da magistratura de Vigilân-</p><p>cia. Reitero a advertência do autor italiano quando este observa que</p><p>“não basta, para verdadeirametne falar em ‘jurisdição’ da execução</p><p>do exercício por parte de um juiz dos poderes de decisão em matéria</p><p>de liberdade pessoal. Da jurisdição falta, na realidade, ao meu ver,</p><p>o traço constitutivo: o jus-dicere, isto é, a afirmação, a comprovação</p><p>e a qualificação jurídica de um fato – seja um ato ilícito ou um ato</p><p>inválido ou não – através do princípio público da contradição, como</p><p>necessário pressuposto de todo o procedimento judicial. O poder</p><p>conferido aos órgãos de execução penal é, pelo contrário, um poder</p><p>altamente potestativo, afirmado não na comprovação pública de fatos</p><p>claramente predeterminados pelas leis e pelos requisitos relativos à</p><p>taxatividade, materialidade, ofensividade e culpabilidade, senão em</p><p>valorações da personalidade do preso” (op, cit 2). Por isso, os juízes</p><p>de Vigilância Penitenciária devem manter em seu âmbito de decisão</p><p>a autêntica competência de: a) velar pelos direitos fundamentais das</p><p>pessoas privadas de liberdade; b) pronunciar-se sobre critérios pura-</p><p>mente objetivos para a supervisão judicial do cumprimento de penas.</p><p>Ainda assim, os Juízes de Vigilância devem possuir uma especial</p><p>formação em matéria penitenciária e de execução penal, rompendo-se</p><p>com a atual tradição de inexistência de especialização e capacitação</p><p>na matéria. Para citar um só exemplo, numerosos Juízes de Vigilância</p><p>seguem desconhecendo – ou não aplicando – o Protocolo de Istambul</p><p>em matéria de averiguação de casos de maus tratos ou tortura em</p><p>pessoas privadas de liberdade, em que pese fazer mais de 15 anos de</p><p>sua adoção pelas Nações Unidas.</p><p>Outro aspecto decisivo para a construção de uma autêntica</p><p>jurisdição em matéria de execução penitenciária é aquele relativo</p><p>ao âmbito procesual. Deve ser regulado com normas de traço legal</p><p>um verdadeiro processo em sede executiva, presidido – efetivamen-</p><p>te – pelos princípios constitucionais de publicidade, celeridade,</p><p>oralidade e contraditório68. Afirmava já faz anos o então Juiz de</p><p>Vigilância Penitenciária de Barcelona, Gisbert, a própósito de ana-</p><p>lisar a normativa processual espanhola no momento da execução da</p><p>penas privativas de liberdade, que, nesta fase executiva, “tem uma</p><p>peculiaridade muito importante: que o poder judiciário necessita</p><p>de colaboração de um setor da administração do Estado, a admin-</p><p>sitração penitenciária, para fazê-la efetiva” (1992: 166)69. Portanto,</p><p>quando se fala de procedimento na fase de execução da pena pri-</p><p>vativa de liberdade, deve-se recordar que as normas que regulam o</p><p>procedimento administrativo formam parte do Direito penitenciário</p><p>(Gisbert 1992: 168). Esta nota constitui já uma das “especialidades”</p><p>da área aqui analizada. Em consequência, o denominado Direito</p><p>Penitenciário estaria integrado por normas de direito penal subs-</p><p>tantivo, por estipulações próprias do Direito processual penal e por</p><p>disposições que pertencem ao direito administrativo para proceder</p><p>a uma correta integração de normas tão dispersas e para poder falar,</p><p>portanto, de um direito processual penitenciário – que assegure a</p><p>presença da jurisdição no âmbito da execução penal – se faz neces-</p><p>sário contar com normas de ordenação do processo.</p><p>O exemplo espanhol de falta de adequação ao que se está indi-</p><p>cando é evidente. A Ley penitenciária, ao enumerar em seus artigos 76</p><p>e 77 as competências do juiz de Vigilância penitenciária, faz referência</p><p>68 .Remeto aqui para o tratamento exaustivo da discussão epistemológica acerca da natureza da</p><p>execução penal, amplamente a La cuestión carcelaria. Historia, epistemología, derecho y</p><p>política penitenciaria (2006, 1ª edición)),</p><p>69 Junto a isto destaca este autor que, antes da promulgação Constitución de 1978 e das normas</p><p>penitenciarias sancionadas posteriormente, “a intervenção do Poder Judiciário na execução ds</p><p>penas de privatização de liberdade foi praticamente inexistente. Sabe-se que as escassas dis-</p><p>posições contidas na Ley de Enjuiciamiento Criminal (...), foram na prática papel molhado”</p><p>(1992: 166). No mesmo sentido manifiesta-se Alonso de Escamilla, quando assinala que “o</p><p>principio de legalidade constitue um dos pilares básicos do Direito penal liberal e do Estado</p><p>de Direito. Das quatro garantías que compõe o referido principio e que são a criminal, a penal,</p><p>a jurisdiccional e a execução, somente as primerias tem sido mais ou menos respeitadas. Não</p><p>caontece assim a garantía de execução, já que quase ninguém se preocupa com o que ocorre</p><p>depois que uma sentença é proferida”. (1985: 157).</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 9594 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>aos aspectos processuais. Neste sentido o artigo 78 dispõe que: “no</p><p>que diz respeitos às questões orgânicas referentes aos juizes de Vigilân-</p><p>cia Penitenciária e aos procedimentos de sua atuação, estarão dispostas</p><p>em leis correspondentes”. Pois bem, depois de trinta e oito anos de ter</p><p>sido aprovada a Lei Penitenciária, estas leis ainda não foram editadas,</p><p>colocando de manifesto, com este vazio legal, o desinteresse em con-</p><p>verter a referida instituição judicial no que alguma vez pensamos que</p><p>sería. Já faz quase três décadas que o Pleno da Audiência Territorial de</p><p>Barcelona afirmou, em 20 de maio de 1988, a propósito de resolver</p><p>uma questão de competência, que “orgânica e processualmente o con-</p><p>trole jurisdiccional da administração penitenciária não tem recebido</p><p>igual tratamento legislativo e é desta fragilidade de onde emerge a</p><p>indecisão de uma norma tão clara como o artigo 76 da Lei Orgâni-</p><p>ca Geral Penitenciária. Penúria orgánica e de meios processuais, que</p><p>levou também a um setor doutrinal a colocar em dúvida, inclusive,</p><p>sua própria natureza jurisdicional”</p><p>É evidente que sem um devido processo em fase de execução</p><p>penal, é ilusória qualquer pretensão de segurança e certeza jurídicas.</p><p>Ainda assim deve ser estabelecida a obrigatória intervenção do Minis-</p><p>tério Público, não somente para evacuar trâmites processuais frente</p><p>aos Juizados de Vigilância Penitenciária (por via da emissão de meros</p><p>“informes”), mas também exigindo também sua presença obrigatória</p><p>no interior dos Centros Penitenciários para velar pelo estrito cumpri-</p><p>mento do princípio de legalidade (em sua garantia executiva).</p><p>Em síntese, a jurisdição de execução penal deve deixar de ser</p><p>um simulacro de jurisdição para erigir-se em um autêntico poder do</p><p>estado na execução penal.</p><p>5.6. O direito de defesa na execução penal</p><p>Remete-se aqui a um ponto medular que também põe em evi-</p><p>dência a nula atenção que a questão penitenciária tem merecido por</p><p>parte da classe política ao menos tomando como exemplo a Espanha,</p><p>porém também muitos outros países do âmbito europeu. Se alude ao</p><p>direito de defesa no âmbito da execução penal, pilar fundamental de</p><p>um Estado de direito cuja existência e funcionamento efetivo estão</p><p>distantes da realidade.</p><p>Com a finalidade de fortalecer a autêntica presença da juris-</p><p>dição no âmbito da execução penal e acabar de desenhar um devido</p><p>processo frente aos juizes de Vigilância Penitenciária com todas as</p><p>garantias, deve ser estabelecido, de forma obrigatória, o direito de</p><p>defesa e assistência jurídica gratuita em matérias próprias de direito</p><p>penitenciário, durante toda a fase executiva do processo penal.</p><p>Resulta sumamente decepcionante ter que afirmar, ainda na</p><p>atualidade, que na Espanha seguem também sem existir normas ju-</p><p>rídicas que, com força de lei, regulem – de forma imperativa – o</p><p>direito de defesa e assistência jurídica gratuita dos presos durante a</p><p>fase executiva do processo penal.</p><p>Há mais de vinte e seis anos, no âmbito do Colégio de Ad-</p><p>vogados de Barcelona, elaboramos o dossiê da Comissão de Defesa</p><p>sobre os Serviços de Orientação Juirídico Penitenciária (1990). Ali</p><p>dávamos conta de como (para suprir a falta de desenvolvimento</p><p>legislativo) foram sendo estabelecidos alguns convênios entre a Ad-</p><p>ministração penitenciária do Estado e os Colégios de Advogados no</p><p>Estado espanhol, com a finalidade de instaurar os chamados Serviços</p><p>de Orientação Jurídico-penitenciária. Ali se explicava então que tais</p><p>Serviços se traduzem na existência de Turnos de Ofício especializados</p><p>em direito penitenciário que haviam conseguido (em algumas partes</p><p>do Estado) constituir equipes de advogados que assessoram gratuita-</p><p>mente os reclusos sobre, por exemplo, como devem apresentar-se os</p><p>escritos, queixas, reclamações, recursos contra sanções disciplinares,</p><p>negações de permissões de saída etc. Com todo esse material, junto a</p><p>outros (muito poucos) profissionais de direito comprometidos com</p><p>esta problemática, criamos o primeiro turno de ofício penitenciário,</p><p>na referida corporação profissional de Barcelona. Este, assim como o</p><p>Serviço de Orientação, tem tido até o presente uma evolução díspar,</p><p>sendo muito desconhecido no interior das prisões pelos presos.</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 9796 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>Também, as leis que deveriam regular com rigor e certeza jurídica</p><p>este pilar do Estado de Direito, ainda não foram instituídas.</p><p>Finalmente, cabe ressaltar que deveriam ser conhecidas e apro-</p><p>veitadas as experiências que neste sentido vem sendo levadas a cabo</p><p>em instituições de Defensoria Pública em diversos países da América</p><p>Latina, nas quais existem unidades especializadas integradas por de-</p><p>fensores que participam durante todo o processo de execução de penas</p><p>privativas de liberdade70.</p><p>5.7. O trabalho na prisão: terminar com o falso caráter</p><p>“progressivo”</p><p>Na Espanha, em que pese sua própria Constituição indicar</p><p>(em seu artigo 25.2) que “os apenados, em todos os casos, terão</p><p>direito a um trabalho remunerado e aos benefícios derivados da</p><p>seguridade social”, o trabalho na prisão tem sido configurado pela</p><p>jurisprudência do Tribunal Constitucional como “um direito de</p><p>aplicação progressiva” (cf entre outros, o primeiro auto do TC</p><p>302/1988 de 14 de março), esvaziando assim de conteúdo a dispo-</p><p>sição que literalmente tem sido transcrita. Em efeito, em que pese a</p><p>clara disposição de fundamento constitucional do Alto Tribunal, ao</p><p>qualificar o direito ao trabalho penitenciário remunerado como um</p><p>direito “de aplicação progressiva”, indicou que se trata de um direito</p><p>cujo exercício não pode ser demandado de modo imediato senão</p><p>somente quando a adminsitração penitenciária se ache em condições</p><p>materiais, financeiras etc. de efetivá-lo. (Para um conhecimento mais</p><p>detalhado desta questão pode ver-se De La Cuesta Arzamendi 1987</p><p>ou Rivera Beiras 1997).</p><p>Uma evolução semelhante de um direito tão fundamental como</p><p>o de trabalhar de forma digna e remunerada requer uma inversão</p><p>70 Pode-se recorrer neste sentido, entre outras, às experiências da Defensoria Pública na Costa</p><p>Rica ou também da Defensoria Geral da Nação na Argentina. Ambas instituições criaram cor-</p><p>pos de defensores no âmbito da execução penal que representam os presos frente os juizados</p><p>de execução penal. Ainda assim, e para reforçar ainda mais esta institución, foram desenvidos</p><p>programas, seminários e oficinas com auxílio do programa EurosociAL de promoção do aces-</p><p>so à jstiça.</p><p>completa. Deve-se estabelecer, em uma norma que tenha fundamento</p><p>legal, a obrigatoriedade da remuneração do trabalho (tanto em sua</p><p>modalidade penitenciária quanto na extra-penitenciária) em igual-</p><p>dade absoluta com os trabalhos que são desenvolvidos no exterior,</p><p>de acordo com as categorias profissionais destes trabalhos. Trata-se,</p><p>também, como se vê, de inverter a atual situação caracterizada por</p><p>entender que o trabalho dos presos é um simples instrumento de</p><p>tratamento penitenciário, ou, quando muito, “direito de aplicação</p><p>progressiva”, categoria que contribui para a degradação do estatuto</p><p>jurídico das pessoas privadas de liberdade, que acabam sendo titula-</p><p>res de algo muito distinto de autênticos direitos constitucionalmente</p><p>reconhecidos, como neste caso.</p><p>O trabalho penitenciário deve ser oferecido como direito fun-</p><p>damental para a população presa, buscando uma efetiva capacitação</p><p>das pessoas que um dia recobrarão a liberdade, uma vez que propor-</p><p>cionando um meio de vida que supra de alguma maneira o efeito da</p><p>perda econômica, pessoal e familiar, como efeito do encarceramento.</p><p>Ainda assim, deve-se buscar a continuidade no posto de trabalho uma</p><p>vez alcançada a liberdade da pessoa recolhida.</p><p>6. MEDIDAS URGENTES PARA UMA DRÁSTICA RE-</p><p>DUÇÃO, A CURTO PRAZO, DOS ÍNDICES DE ENCARCE-</p><p>RAMENTO</p><p>Junto ao desenho de um mínimo quadro jurídico-garantista</p><p>efetuado como referido no intem anterior, deve ser implementada</p><p>toda uma série de medidas urgentes, as quais, aproveitando as estreitas</p><p>margens que as atuais legislações europeias possuem, provocariam um</p><p>importante efeito desencarcerador. Trata-se de trabalhar em âmbito</p><p>da execução penal com o auxílio da magistratura de Vigilância Peni-</p><p>tenciária e demais autoridades judiciais responsáveis por um conjunto</p><p>de medidas penais, efetuando uma revisão total das situações proces-</p><p>suais penitenciárias com o objetivo de realizar uma interpretação da</p><p>legislação penitenciária guiada pelo máximo respeito à proteção dos</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 9998 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade.</p><p>Novamente aqui, como se verá, o papel protagonista que podem</p><p>desempenhar as comissões representativas das vítimas na mesa de tra-</p><p>balho e diálogo deve ser especialmente levada em conta.</p><p>Com esta iniciativa faz-se alusão à potencialização de certos</p><p>institutos penal/penitenciários que podem contribuir à produção de</p><p>um importante esvaziamento quantitativo da população carcerária,</p><p>combinando técnicas das chamadas front door strategies com outras</p><p>conhecidas como back door strategies. Deve ficar claro que uma tarefa</p><p>semelhante deve ser cumprida no âmbito da jurisdição de vigilância</p><p>penitenciária, com o concurso de profissionais e vítimas. A título de</p><p>exemplos, podem ser citados os seguintes;</p><p>a) Implementação e concessão de todas as modalidades jurí-</p><p>dico-penais tendentes a evitar os ingressos penitenciários</p><p>(suspensão da execução da pena, penas alternativas, etc.)</p><p>b) Concessão de progressões nos graus de classificação penitenciária</p><p>(portanto em sentido oposto à tradicional prática de manuten-</p><p>ção ordinária no mesmo período ou grau de classificação).</p><p>c) Concessão de numerosos regimes abertos de cumprimento;</p><p>d) Potencialização de outras modalidades “abertas” de cumprimen-</p><p>to de penas privativas de liberdade (centros de cumprimento</p><p>abertos, centros de inserção social, comunidades terapêuticas,</p><p>locais de acolhida, etc., distintos aos tradicionais centros de ca-</p><p>ráter estritamente penitenciário);</p><p>e) Concessões de regimes de semiliberdade;</p><p>No sentido anteriormente apontado, as comissões represen-</p><p>tativas das vítimas da prisão devem fazer uma exaustiva pesquisa e</p><p>controle das situações pessoais desde o ponto de vista penal, proces-</p><p>sual, penitenciário e sanitário. Deve ser realizada uma revisão total</p><p>da problemática jurídico-penitenciária de todas as situações, com a</p><p>finalidade de conhecer aqueles que sejam suscetíveis de uma rápida</p><p>modificação de sua situação processual penitenciária. Isso poderia</p><p>realizar-se no marco da investigação sociológica sobre a prisão como</p><p>anteriormente sinalizada, e constitui um elemento imprescindível.</p><p>Semelhante diagnóstico pode trazer resultados surpreendentes acerca</p><p>dos efeitos que provocaria uma interpretação</p><p>distinta – radicalmente</p><p>garantista – da legislação penitenciária.</p><p>7. LIBERAÇÃO DE PRESOS ENFERMOS</p><p>Outro capítulo que deve ser abordado entre aqueles de urgente</p><p>consideração é o vinculado com a problemática sanitária da população</p><p>reclusa. Em íntima relação com o que vem sendo exposto, deve ser en-</p><p>frentada a dramática situação que, em relação com as problemáticas de</p><p>saúde dos presos, apresentam a totalidade dos sistemas penitenciários</p><p>do presente. O deterioro que a prisão produz na saúde de quem vive</p><p>privado de liberdade constitui hoje um dado inconteste.</p><p>De fato, numerosas investigações (e cada vez mais os relató-</p><p>rios procedentes de organismos internacionais de direitos humanos</p><p>de distintos âmbitos territoriais) demonstram, na atualidade, não só</p><p>o surgimento de novas patologias – cuja etiologia vem da permên-</p><p>cia prolongada de indivíduos nas penitenciárias –, senão também do</p><p>extraordinário fator patogênico que a prisão representa para pessoas</p><p>acometidas de enfermidades infecto-contagiosas, associadas ou não às</p><p>denomindas “enfermidades oportunistas” derivadas de infecções di-</p><p>versas (fundamentalmente HIV, Hepatite C, tuberculose e outras). Se</p><p>semelhante quadro volta a provocar que a pena privativa de liberdade</p><p>seja novamente entendida como “pena corporal”, é claro que este consti-</p><p>tui um tema sobre o qual se deve alcançar um consenso básico que passe</p><p>pela clara decisão de proceder ao desencarceramento dos indivíduos.</p><p>Gallo y Ruggiero descreveram este universo depois de uma</p><p>exaustiva investigação realizada sobre as doenças nas prisões italianas:</p><p>“Este livro não tratará dos abusos, das ilegalidades e das violências</p><p>que cotidianamente se verificam dentro dos muros da prisão. O ma-</p><p>terial que apresentamos se refere à ‘pena ordinária’ ainda que por si</p><p>só ‘extraordinária’, porque inflige sofrimentos e mutilações. Trata-</p><p>se da prisão infinitamente reformada enquanto irreformável, que</p><p>produz despersonalização, infantilização, expropriação do tempo e</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 101100 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>da comunicabilidade. A prisão é, desde sempre, um lugar de contágio,</p><p>de difusão de morbidade que, nas diversas contingências históricas,</p><p>agride os mais indefesos: pneumonias e escorbutos nas primeiras ga-</p><p>lerias; infecções de todo o tipo, loucura e promiscuidade na época do</p><p>Grande Encarceramento; drogas e AIDS na prisão contemporânea”</p><p>(Gallo y Ruggiero 1989:7).</p><p>Com estas palavras se inicia a apresentação da pesquisa reali-</p><p>zada pelos citados autores e que tem o sugestivo título de Il carcere</p><p>immateriale: la detenzione come fabbrica di handicap. A leitura deste</p><p>trabalho produz autênticos arrepios sobre a natureza corporal da pena</p><p>desenhada na Modernidade como resultado das aspirações humanistas</p><p>dos ‘reformadores’ do iluminismo e de daqueles que desenharam o</p><p>chamado direito penal liberal. Os citados autores italianos, a partir de</p><p>investigações realizadas, dentre outros, por Beckett (1987), Banister</p><p>(1973), Bucceri (1988), Gunn (1978), Verri (1988), Gonin (1989) e</p><p>Pancheri (1980), descrevem o “universo de síndromes” configurado a</p><p>partir de numerosos relatos de “enfermidades da sombra” que vão deta-</p><p>lhando. Não se trata apenas de investigar sobre os distúrbios mentais,</p><p>ou a tudo o que provocam os “rumores do silêncio” ou o “bloqueio de</p><p>comunicações” ou a “ritualização do mundo e das relações em geral”</p><p>(ibidem). Junto a tudo isso, que de algum modo é mais conhecido, as</p><p>revelações são no mínimo surpreendentes. De fato, citando as referi-</p><p>das investigações (realizadas em centros penitenciários tanto europeus</p><p>como norteamericanos), os autores expõem essas patologias:</p><p>• Claustrofobia: especialmente experimentada em regimes de</p><p>isolamento penitenciário, em forma de “compressão espa-</p><p>cial”, com perda gradativa de “sentido de realidade”.</p><p>• Irritabilidade permanente: que revela um constante sentimen-</p><p>to de raiva sem possibilidade ser expressada livremente e que</p><p>cala muito fundo, com o passar do tempo, no estado anímico</p><p>de quem é acometido.</p><p>• Depressões diversas: provocadas, entre outros fatores, pelos efei-</p><p>tos do auto-controle forçado e que pode chegar, em algumas</p><p>ocasiões, a liberar forças autodestrutivas que na prisão geral-</p><p>mente se expressam na forma de automutilações, suicídios etc.</p><p>• Sintomas alucinatórios: especialmente padecidos nos regimes</p><p>e/ou punições de isolamento (manchas nas paredes, criações</p><p>de espaços negros ou brancos luminosos) próprios de ambien-</p><p>tes visuais monótonos e prolongados.</p><p>• Abandono de hábitos de auto-cuidado: provocado como</p><p>efeito da patologia anteriormente mencionada. Não há</p><p>dúvida da especial gravidade deste tipo de comportamento,</p><p>especialmente nos casos muito numerosos de presos doentes</p><p>e para quem estas normas e hábitos deveriam ser especial-</p><p>mente cuidadosos.</p><p>• Apatia: também fruto do que foi abordado e expressado em</p><p>forma de incapacidade para concentração e debilitamento das</p><p>habilidades para focalizar a atenção em um objeto ou tarefa</p><p>determinada. Isto pode ir revelando um gradativo desinteres-</p><p>se no próprio mundo, tanto interior quanto exterior.</p><p>Assim, esses transtornos psico-somáticos acabariam produzin-</p><p>do consequências concretas na saúde física dos internados. E, para</p><p>conhecê-las, nada melhor que a leitura da investigação realizada por</p><p>Gonin, médico penitenciário francês que, em seu estudo intitulado</p><p>La Santé incarcérée. Médicine et conditions de vie en détention, revela,</p><p>em toda sua intensidade, os efeitos físicos do encarceramento. Pode</p><p>ser especialmente interesante – como exercício de franco sofrimento</p><p>para os leitores – ler os sintomas de transformação dos sentidos do</p><p>corpo prisioneiro. Ler na pele dos presos um autêntico “mapa da dor,</p><p>do sofrimento, das humilhações” constitui um exercício que Gonin</p><p>revela talvez como ninguém. As manchas, as feridas, as cicatrizes de</p><p>automutilações etc., impressas na pele dos condenados representam,</p><p>de fato, um claro e tremendo gráfico dos efeitos do encarceramento,</p><p>efeitos que, por certo, devem ser guardados pelos muros prisionais,</p><p>pois sua exibição pública talvez repugnaria hoje a sociedade, como o</p><p>espetáculo do carrasco, o sangue e os suplícios repugnaram finalmen-</p><p>te a sociedade no Antigo Regime já no alvorecer da Modernidade.</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 103102 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>Conforme assinalou Pavarini a respeito: “a história da prisão se ins-</p><p>creve, pois, na história mais ampla da hipocrisia: tem algo a ver com a</p><p>censura sobre as palavras obscenas e sobre os espetáculos inconvenien-</p><p>tes, com o ocultamento de sentimentos de decência das manifestações</p><p>da corporalidade humana” (1999:13). E, agrega o autor italiano, que</p><p>“resulta certamente indubitável que a pena de prisão triunfará sobre</p><p>toda outra penalidade porque parecerá mais humana à consciência e</p><p>à sensibilidade moderna” (ibidem).</p><p>A existência de uma prisão que apresenta elevadíssimas por-</p><p>centagens de pessoas doentes, infectadas com patologias terminais,</p><p>alojadas em alguma enfermaria penitenciária, cuja visão evoca as</p><p>mais tremendas imagens de um passado ainda presente nesta reali-</p><p>dade carcerária, constitui um quadro que não pode admitir reforma</p><p>nem melhora alguma: simplesmente, deve abolir-se um sistema cruel,</p><p>violento e que, como cada vez mais relatórios de organismos de direi-</p><p>tos humanos nacionais e internacionais assinalam, somente pode ser</p><p>qualificado de pena cruel, inumana e degradante. Neste sentido, de</p><p>nada serve afundar em sistemas que, como os atuais, no melhor dos</p><p>casos só conseguem permitir liberdades condicionais para evitar que</p><p>se contabilizem mortes no interior das prisões.</p><p>Um sistema semelhante, que modula a intensidade do so-</p><p>frimento em função da deteriorização física do paciente teminal</p><p>deve ser definitivamente erradicado; em seu lugar, deve-se buscar</p><p>um meio que jamais passe a</p><p>organizar a convivência penitenciária</p><p>em função de variáveis semelhantes. Numerosos relatórios de or-</p><p>ganismos internacionais vêm alertando sobre a qualificação como</p><p>tratamento ou pena inumana ou degradante de diversas situações</p><p>penitenciárias em que a saúde das pessoas recolhidas não pode ser</p><p>abordada de maneira minimamente digna no interior de muitas pe-</p><p>nitenciárias. A nova redação das Regras Mínimas (conhecidas como</p><p>Regras de Mandela) das Nações Unidas constitui um dado espe-</p><p>rançoso acerca dos estandares internacionais nesta problemática. 71.</p><p>71 Pode ser importante assinalar algumas alternativas já existentes em algumas legislações,</p><p>É fácilmente imaginável que uma opção libertária pode pro-</p><p>vocar resistências em diversos setores da sociedade. Novamente aqui</p><p>deve ser ressaltado o papel que devem desempenhar as comissões re-</p><p>presentativas dos afetados, que têm de atuar preponderantemente.</p><p>Em primeiro lugar, a alteração da linguagem neste caso deve</p><p>ser primordial: deixar de conceber a presos enfermos (binômio virtual</p><p>do qual prevalecem as condições penitenciárias sobre as sanitárias) e</p><p>começar a encarar seriamente o fato de que se está na presença de pes-</p><p>soas enfermas que, ademais, estão presas (fazendo prevalecer critérios</p><p>estritamente médicos sobre os de caráter regimental).</p><p>Em segundo lugar, convém aqui conhecer quais são as deman-</p><p>das dos enfermos-presos. E deve ser lembrado que simplesmente</p><p>desejam o mesmo que a toda pessoa enferma: ser tratada por pessoal</p><p>médico-assistencial (e não penitenciário) em hospitais da rede pú-</p><p>blica de saúde (e não nas enfermarias ou hospitais penitenciários);</p><p>poder ser atendida por sua família sem limites de horários nesse</p><p>momento de dor (e não em locais sob vigilância policial e com</p><p>horários extremamente reduzidos para as visitas e os cuidados da</p><p>famílias e entes queridos, que só adicionam mais dor e sofrimento</p><p>pelas situações muitas vezes extremas).</p><p>Em terceiro lugar, é conveniente expresar a importância da di-</p><p>vulgação pública destas problemáticas: o uso alternativo dos meios</p><p>de comunicação (ponto que será desenvolvido mais adiante) há de</p><p>se constituir em um instrumento decisivo para vencer as possíveis</p><p>resistências as quais aludimos. E, em último caso, e em que pese estes</p><p>possíveis alarmes sociais, as mesmas devem ser enfrentadas com uma</p><p>decisão séria e firme que não permita que as mesmas invertam uma</p><p>situação a qual não deve dar-se um só passo atrás. Este é, sem dúvida,</p><p>como é o caso da lei 26.472 da Argentina que estabelece que “o juiz de execução, o juiz</p><p>competente, poderá dispor o cumprimento da pena imposta em prisão domiciliar: a) ao preso</p><p>doente quando a privação de liberdade na prisão o impeça de se recuperar ou tratar adequa-</p><p>damente sua doença e seu alojamento não corresponda a um estabelecimento hospitalar; b)</p><p>ao interno padeça de uma doença incurável no período terminal; c) ao preso com deficiência</p><p>quando a privação de liberdade em estabelecimento prisional é inadequada para sua condição,</p><p>implicando um tratamento indigno, inumano e cruel”.</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 105104 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>um dos pilares fundamentais do chamado “garantismo radical” que</p><p>deve se revelar agora com suma firmeza.</p><p>Para alcançar os fins pretendidos, deve ser imperativamente</p><p>ordenada, por via legal, a liberdade a todas aquelas pessoas que</p><p>padeçam de sérias doenças, sem esperar um deterioro na saúde</p><p>dos presos que os converta em sujeitos que já não serão qualifi-</p><p>cados como “perigosos” de acordo com os tradicionais critérios</p><p>carcerários. Por isso, deverão pronunciar-se acerca do estado de</p><p>saúde dos presos doentes, não apenas os integrantes dos serviços</p><p>médicos internos, mas também de serviços extra-penitenciários</p><p>que avaliem (em igualdade de condições com os cidadãos que</p><p>vivem em liberdade) o estado de cada paciente. Deve ficar claro</p><p>que estas situações (e muitas outras que podem ser consideradas)</p><p>devem ser analisadas com critérios estritamente médico-sanitários,</p><p>sem admitir ingerências penitenciárias nem criminológicas, nem</p><p>perigosistas, nem de segurança e ordem.</p><p>Caberá também analisar se o destino dos egressos será a hospita-</p><p>lização (sempre da rede pública) ou, quando as situações permitirem,</p><p>continuar tratamentos assistenciais de tipo ambulatorial, permitindo</p><p>o alojamento dos doentes em seus domicílios ou em lugares espe-</p><p>cializados (é imprescindível, nesta situação, contar com o apoio e</p><p>assessoramento dos organismos, os públicos e de organizações não</p><p>governamentais dedicados ao tratamento de patologias como a AIDS,</p><p>hepatite C e tuberculose, dentre outras).</p><p>Buscando desenhar uma política pública que contemple o di-</p><p>reito à saúde nas prisões desde uma estrita perspectiva de direitos</p><p>humanos é possível consultar os trabalhos de Cristina Fernández</p><p>Bessa e Gemma Nicolás Lazo no marco do projeto europeu deno-</p><p>minado La mejora de las condiciones de encarcelamiento fortaleciendo</p><p>el control de las enfermedades contagiosas72 (https://www.hri.global/</p><p>72 Trata-se de um projeto cofinanciado pela União Européia, liderado por Harm Reduction In-</p><p>ternational no qual estão vinculadas as seguintes instituições : Harm Reduction International</p><p>(UK), Antigone Onlus Associazione (Italia), Praksis Association (Grecia), Latvian Centre</p><p>for Human Rights (Letonia), Helsinki Foundation for Human Rights (Polonia), University</p><p>prison-project).</p><p>As autoras indicam que, apesar de existirem mecanismos</p><p>internacionais, regionais e nacionais de direitos humanos para con-</p><p>trolar e inspecionar as condições da prisão, o Protocolo Opcional à</p><p>Convenção da ONU contra a Tortura (OPCAT) e seus Mecanismos</p><p>Nacionais de Prevenção (MNP) e o Comitê para a Prevenção da Tor-</p><p>tura do Conselho Europeu (CPT) – os assuntos relacionados com a</p><p>saúde e especificamente às enfermidades contagiosas atualmente não</p><p>são uma prioridade. Alguns dados que emanam da citada investigação</p><p>são eloquentes acerca da magnitude do problema que tratamos aqui</p><p>(dados oriundos do relatório elaborado por Gen Sanders: https://</p><p>www.hri.global/files/2016/02/10/HRI_PrisonProjectReport_FINAL.</p><p>pdf ). Em temos gerais, a investigação sustenta que:</p><p>• No marco do HIV, a prevalência em nível mundial é 50 vezes</p><p>mais elevada nas prisões do que na sociedade em geral.</p><p>• Em relação à hepatite C (VHC), 1 em cada 4 pessoas detidas</p><p>possui hepatite C (frente a 1 em cada 50 na Europa em geral);</p><p>• No caso da tuberculose, que atualmente é considerada como</p><p>a principal causa de mortalidade nas prisões de muitos países,</p><p>as taxas registram uma prevalência 81 vezes mais alta do que</p><p>na sociedade em geral.</p><p>Com estes dados, parece evidente que a prisão contemporâ-</p><p>nea continua sendo um entorno de risco para a transmissão dessas</p><p>doenças. O estudo destaca que, de fato, as prisões e outros lugares</p><p>de detenção são entornos de alto risco para a transmissão de doenças</p><p>infecciosas devido a :</p><p>• Um elevado encarceramento de coletivos vulneráveis e</p><p>desfavorecidos.</p><p>• Uma proporção muito elevada de pessoas com a saúde</p><p>muito delicada.</p><p>Institute of Lisbon (ISCTE-IUL) (Portugal), Observatori del Sistema Penal i els Drets Hu-</p><p>mans (UB) (España), Irish Penal Reform Trust .</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 107106 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>• A frequente criminalização dos usuários de drogas, e altos</p><p>níveis de drogas injetáveis.</p><p>• Superlotação e as precárias condições das prisões.</p><p>• Existência de uma inadequada atenção sanitária.</p><p>• Inexistência de serviços de redução de danos.</p><p>• Uma clara desigualdade no acesso aos serviços de saúde.</p><p>Por tudo isso, o estudo lembra e alerta sobre muitas Recoman-</p><p>dações Internacionais, dentre as quais destaco: segundo o Comitê “os</p><p>Estados têm a obrigação de respeitar o direitos à saúde, abstendo-se</p><p>de negar ou limitar o acesso aos serviços de saúde curativa e palia-</p><p>tiva... a todas as pessoas,</p><p>social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .131</p><p>10.2. A atenção necessária à situação laboral e à saúde mental dos</p><p>funcionários penitenciários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .137</p><p>11. Política de atenção integral após a liberação da prisão . . . . . . . . . . .141</p><p>12. A tarefa imprescindível de registrar, documentar e alertar</p><p>as violações de direitos fundamentais. Um “cenário de</p><p>representação do conflito” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .145</p><p>12. “Abrir a prisão”, atravessando-a com o “ingresso” de outras</p><p>instituições e setores da sociedade civil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .154</p><p>14. Difusão do universo carcerário no contexto social. Opinião</p><p>pública e opinião (nunca) publicada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .161</p><p>PARA IR CONCLUINDO</p><p>O DESENCARCERAMENTO É POSSÍVEL (ALÉM DE</p><p>IMPRESCINDÍVEL) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .165</p><p>EPÍLOGO</p><p>O CASO ITALIANO A PARTIR DE UMA SENTENÇA PILOTO . . .171</p><p>Mauro Palma</p><p>A bofetada: uma sentença desonrosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .171</p><p>O despertar: um Plano de Ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .178</p><p>Os veículos: o Tribunal e o Comitê. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .184</p><p>Os resultados: a realidade na prisão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .187</p><p>BIBLIOGRAFIA CITADA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191</p><p>ANEXO 1</p><p>ORGANIZAÇÕES SOCIAIS CITADAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .201</p><p>ANEXO 2</p><p>INSTITUIÇÕES PÚBLICAS CITADAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .203</p><p>ANEXO 3</p><p>CENTROS UNIVERSITÁRIOS E CORPORAÇÕES</p><p>PROFISSIONAIS CITADAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .205</p><p>PREFÁCIO</p><p>Luigi Ferrajoli1</p><p>Este livro é o ponto final de um longo e complexo caminho de</p><p>investigação.</p><p>A prisão e as condições de vida dos presos, de fato, sempre</p><p>foram o foco das pesquisas empíricas e das reflexões teóricas de Iñaki</p><p>Rivera Beiras. Seu grande volume La cuestión carcelaria. Historia, Epis-</p><p>temología, Derecho y Política penitenciaria, de 2008, de 1114 páginas,</p><p>sem dúvida se converteu em um clássico que, pela enorme riqueza de</p><p>dados compilados e por seu enfoque multidisciplinar – sociológico,</p><p>penal, historiográfico, filosófico, jurídico – hoje nenhum estudioso</p><p>do fenômeno penal pode ignorar.</p><p>Desencarceramento... formula um programa ambicioso: o de uma</p><p>progressiva e constante superação da prisão e, enquanto isto, o de uma</p><p>drástica redução da pena de privação de liberdade, embasando-se em</p><p>uma série de princípios e estratégias que deveriam inspirar uma polí-</p><p>tica penal racional e respeitosa dos direitos humanos estabelecidos por</p><p>nossas Constituições. Nas primeiras páginas do livro são analisados</p><p>os diferentes modelos e as diferentes concepções da prisão: o modelo</p><p>correcional ou terapêutico, o modelo da eficiência preventiva, o auto-</p><p>denominado modelo garantista, e, por último, o modelo orientado pela</p><p>lógica da guerra e do inimigo. De todos estes modelos, Rivera mostra o</p><p>caráter, por vezes ideológico e nocivo de acordo com as mesmas razões e</p><p>finalidades que segundo cada um deles justificam a detenção na prisão.</p><p>1 Universidade de Roma III</p><p>14 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL PREFÁCIO DE LUIGI FERRAJOLI 15</p><p>Não obstante o fracasso da prisão, o encarceramento das pes-</p><p>soas constitui um processo em constante aumento. Desde o ano 2000</p><p>até hoje o número de presos no mundo aumentou 20%, até alcançar,</p><p>em 2015, a impressionante cifra de 11.000.000 de pessoas. Nos Es-</p><p>tados Unidos em particular, onde os presos aumentaram sete vezes</p><p>nos últimos 40 anos, chegando a 2.400.000, estamos assistindo a um</p><p>encarceramento massivo da pobreza. E não é só isso. Somente 10 a</p><p>15% dos presos, revela Rivera, foram condenados ou imputados por</p><p>delitos graves que pudessem justificar a reclusão por razões de segu-</p><p>rança. Ao contrário, 85 a 90% ou foram por delitos menores ou de</p><p>bagatela. Por isso, para estes a prisão é duplamente inútil, ou ainda</p><p>pior, prejudicial, representando na maioria dos casos um poderoso</p><p>fator de deseducação e de dessocialização.</p><p>Sem dúvida, este livro não se insere no marco do abolicionismo</p><p>do direito penal, mas sim da superação da prisão. Inclusive contribuin-</p><p>do e em muitos aspectos enriquecendo e radicalizando as várias críticas</p><p>a nossos ordenamentos punitivos tal como propõem os maiores expoen-</p><p>tes do abolicionismo, o programa de desencarceramento proposto por</p><p>Rivera não é um programa de abolição da pena. É, antes, um programa</p><p>de refundação do sistema penal de acordo com o princípio que justifica</p><p>a pena dentro do que ele bem define como “garantismo radical” como</p><p>garantia da minimização da violência punitiva. Prisão e pena, de fato,</p><p>não são a mesma coisa, como pelo contrário sugeriria o imaginário po-</p><p>pular. O castigo é a reação ao delito que se justifica graças às garantias</p><p>penais e processuais pelas quais está rodeada, como alternativa a maiores</p><p>e mais injustas violências – a vingança ou as respostas informais do tipo</p><p>social ou policial – que se produziriam em sua ausência. Nesse senti-</p><p>do, a pena e o direito penal se configuram, em seu modelo mínimo e</p><p>garantista, como a lei do mais fraco, que no momento do delito é a do</p><p>sujeito violado, porém no momento do processo é a do imputado, e no</p><p>momento da execução penal é a do condenado.</p><p>Outra coisa muito diferente é a pena de prisão. Segundo seu</p><p>modelo teórico e normativo, esta deveria consistir em uma pena</p><p>igualitária, inteira e taxativamente determinada pela lei: na privação,</p><p>precisamente, da tão somente a liberdade pessoal, ou seja, de um</p><p>tempo abstrato, porém determinado, de liberdade, qualitativamen-</p><p>te igual ainda que quantitativamente diferenciado e graduável pelo</p><p>legislador, e, por consequência pelo juiz, na proporção da gravidade</p><p>do delito. Todos os demais direitos fundamentais – o direito à inte-</p><p>gridade física, o respeito à dignidade pessoal, à imunidade frente aos</p><p>maltratos, as liberdades fundamentais clássicas, desde a liberdade de</p><p>expressão, até a liberdade de reunião e de associação, e o direito à</p><p>saúde e à instrução – deveriam permanecer intactos, por serem direi-</p><p>tos universais de todos, sem nenhuma exceção, e igualmente alheios</p><p>à pena privativa de liberdade, que é a única determinada pela lei.</p><p>Foram estas características de seu modelo abstrato, não nos</p><p>esqueçamos, que fizeram da reclusão a pena “moderna”, teorizada</p><p>pelo pensamento iluminista como “mínima dentro das possibilida-</p><p>des, proporcional aos delitos, ditada pelas leis”, segundo as palavras</p><p>de Cesare Beccaria, como alternativa aos horrores indeterminados</p><p>e indetermináveis das penas corporais, dos açoites e dos tormentos</p><p>próprios dos ordenamentos punitivos pré-modernos.</p><p>As investigações de Iñaki Rivera nos convidam a perguntar se</p><p>esta função de minimização, civilização ou humanização das penas</p><p>recomendada para a reclusão é concretamente possível. Junto à ampla</p><p>literatura desenvolvida nestes anos sobre a distância abismal entre o</p><p>modelo teórico e a realidade concreta das prisões, a pesquisa desen-</p><p>volvida e amplamente documentada neste livro solicita nossa reflexão</p><p>sobre uma questão de fundo: se a pena de prisão é uma pena que</p><p>cumpre realmente com o modelo e os princípios teorizados pelo pen-</p><p>samento iluminista e ainda mais, se os pode cumprir; se é de verdade</p><p>uma minimização das reações informais ao delito que se produziriam</p><p>em sua ausência, ou se, pelo contrário, não é uma aflição ainda mais</p><p>grave e inumana; se é, efetivamente, e ainda mais, se poderia ser a pena</p><p>subordinada ao delito e qualitativamente igual por consistir somente</p><p>na privação de liberdade pessoal, segundo seu</p><p>incluindo pessoas encarceradas e detidas”.</p><p>Da mesma forma, a obrigação de “proporcionar assistência médica</p><p>aos detidos” foi incluída na normativa internacional sobre saúde nas</p><p>prisões como recorda o Relator Especial sobre a Tortura, Manfred</p><p>Nowak; não é menos importante lembrar a constante jurisprudência</p><p>do Tribunal Europeu de Direitos Humanos acerca de que a falta de</p><p>assistência e o tratamento inadequado de VIH, VHC ou TB supõe</p><p>o submetimento a tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes e</p><p>portanto se incorre na violação do artigo 3º da Convenção Européia</p><p>de Direitos Humanos.</p><p>No que se refere à prevalência, por exemplo, nas prisões catalãs,</p><p>em relação à população em geral, o estudo citado aporta alguns dados</p><p>muito importantes73:</p><p>• Hepatite C: 72 vezes mais do que na população em geral;</p><p>• Tuberculose: 10 vezes mais que a população em geral;</p><p>• HIV: 20-28 vezes mais que a população em geral;</p><p>• AIDS: 23 vezes mais que na população em geral;</p><p>73 Veja-se Fernández Bessa, C., Nicolás Lazo, G. Y Viader Sauret, G. (2015) “Improving Pri-</p><p>son Conditions by Strengthening the Monitoring of HIV, HCV, TB and Harm Reduction.</p><p>Mapping Report Catalonia (Spain), disponible en http://www.ub.edu/ospdh/sites/default/files/</p><p>documents/publicacions/improving_prison_conditions_ospdh_2016_report.pdf</p><p>Esta investigação elaborou um instrumento vinculado ao</p><p>monitoramento do HIV, VHC (Virus de la Hepatitis C) e TB (tuber-</p><p>culosis) que pode se ver em https://www.hri.global/files/2016/02/10/</p><p>HRI_MonitoringTool.pdf. O estudo explica claramente que este</p><p>instrumento está composto por indicadores, apresentados como per-</p><p>guntas diretas, derivadas de estandartes amplamente aceitos sobre</p><p>saúde pública e diretos humanos. Considerado de maneira global,</p><p>junto aos apêndices, o instrumento pretende ser exaustivo e para isso</p><p>examina os elementos principais de uma aproximação ao HIV, VHC</p><p>(Virus de la Hepatitis C) e TB (tuberculose) que pode ser visto em</p><p>https://www.hri.global/files/2016/02/10/HRI_MonitoringTool.pdf.</p><p>Também identifica os elementos principais de um sistema sanitário</p><p>forte e equitativo que seja propício para que as pessoas presas façam</p><p>efetivos seus direitos humanos, especialmente no contexto do HIV,</p><p>VHC e TB. Ainda que o conteúdo do instrumento possa parecer em</p><p>grande medida relacionado com a saúde, não é necessária nenhuma</p><p>formação médica nem experiência para sua utilização. Devido à sua</p><p>firme relação com os direitos humanos, o instrumento tem vários ob-</p><p>jetivos estritamente relacionados com estes. O primeiro é identificar</p><p>com qual frequência passam despercebidas situações e condicionantes</p><p>relacionadas com HIV, VHC, TB e redução de danos, que podem</p><p>conduzir a maus tratos e, deste modo, ajudar a prevenir violações de</p><p>direitos humanos antes que aconteçam. O segundo é monitorar e</p><p>identificar avanços e obstáculos na aplicação dos direitos humanos das</p><p>pessoas presas, e concretamente de seus direitos relacionados à saúde.</p><p>O uso constante deste instrumento poderia ajudar para que os orga-</p><p>nismos de monitoramento baseados nos direitos humanos possam</p><p>cumprir seus mandatos de prevenção, dando possibilidade para que</p><p>as pessoas presas experimentem melhorias na sua saúde, tratamento e</p><p>condições de privação de liberdade, assim como que potencializem o</p><p>usufruto de seus direitos humanos (a respeito e com maior exaustivi-</p><p>dade, pode buscar-se o trabalho elaborado pela Coordenadoria para a</p><p>prevenção da Tortura por Nicolás Lazo e Fermández Bessa, de 2016,</p><p>“Derecho a la salud en prisión, reducción de daños y prevención de</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 109108 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>malos tratos en el contexto de VIH, VHC y TB” , p.211-218).</p><p>O comentado trabalho de investigação parte da premissa de enten-</p><p>der que HIV, VHC e TB nas prisões são mais do que um problema de</p><p>saúde pública. As citadas autoras afirmam que também são uma questão</p><p>de direitos humanos. A prevenção, tratamento e atenção ao HIV, VHC</p><p>e TB em centros de privação de liberdade tem relação com a proteção de</p><p>vários direitos humanos, incluindo o direito a desfrutar do mais alto nível</p><p>possível de saúde física e mental (direito à saúde) e o direito a não sofrer</p><p>tramentos cruéis, inumanos ou degradantes (maus tratos).</p><p>Nesse sentido, convém novamente ler as autoras da investi-</p><p>gação comentada no que concerne aos organismos internacionais.</p><p>“Costuma-se considerar que o tratamento é cruel, inumano ou degra-</p><p>dante quando causa um sofrimento ou lesão física ou mental grave,</p><p>porém não intencional, ou quando viole a dignidade da pessoa. Os</p><p>organismos de supervisão de direitos humanos das Nações Unidas</p><p>e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos estão concluindo cada</p><p>vez com mais frequência que questões relativas ao HIV, ao VHC e</p><p>à tuberculose e a redução de danos durante a privação de liberdade</p><p>podem contribuir para criar, ou inclusive constituir, condições que se</p><p>situem no umbral de maus tratos. Estes podem incluir a prevenção, o</p><p>cuidado ou tratamento inadequado do HIV, VHC ou TB, a negação</p><p>de serviços de redução de danos, ou as condições que agravem ou</p><p>favoreçam a transmissão destas enfermidades” (op Cit: 4)</p><p>De fato, os dados são eloquentes, as necesidades são urgentes e</p><p>o entorno carcerário não pode ser próprio para a abordagem do direito</p><p>à saúde a partir de uma ótica de radical respeito aos direitos humanos</p><p>das pessoas privadas de liberdade. Como foi dito, é urgente enfrentar</p><p>com coragem o processo desencarcerador dos presos doentes.</p><p>8. PROCESSO DESENCARCERADOR DAS MULHERES</p><p>PRESAS COM FILHOS NAS PRISÕES</p><p>Se existe um tema pouco abordado dentro do universo</p><p>penitenciário, este é, sem dúvida, o que se vincula com a problemáti-</p><p>ca das mulheres encarceradas. E, se são por si só escassos os trabalhos</p><p>e investigações dedicados a esta questão, ainda são menos frequentes</p><p>os que se dedicam ao estudo da presença de mulheres com filhos no</p><p>interior das prisões. Constitui uma nova faceta que deve ser abordada</p><p>com prontidão, pelas razões que se verá a seguir:</p><p>Nos últimos 30 anos, na Europa, a população penitenciária</p><p>feminina cresceu aproximadamente 8 vezes, representando, hoje, na</p><p>Espanha, por exemplo, cerca de 8% da população presa, sendo que na</p><p>Europa se mantém em torno de 5%. De fato, apesar de que os índices</p><p>de delinquência sejam baixos, a Espanha é o país da União Européia</p><p>com maior taxa de mulheres na prisão;74.</p><p>No final de 2015, havia nas prisões espanholas 5.130 apenadas,</p><p>ou 7,81% da população total do país. Como assinala Ana Balleste-</p><p>ros – especialista da Rede Geispe, rede temática internacional sobre</p><p>Gênero e Sistema Penal – “em nosso país a política penitenciária tem</p><p>sido desenhada para o preso majoritário, que é o homem”. Somente</p><p>há quatro centros para mulheres em toda a Espanha. O resto das</p><p>presas são alojadas em módulos femininos dentro das prisões dos</p><p>homens. ”Nas prisões masculinas, as presas estão normalmente no</p><p>mesmo módulo, não há classificação penitenciária. Ademais, possuem</p><p>menos acesso aos recursos das prisões”.</p><p>Ainda assim, diversas investigações demonstram que as mulhe-</p><p>res presas, desde um ponto de vista socio-econômico, são mais pobres</p><p>que os homens presos e existe uma taxa maior de analfabetismo nas</p><p>prisões de mulheres do que nas de homens. Desde o ponto de vista</p><p>processual/penal, os resultados de certos estudos sociológicos das últi-</p><p>mas décadas ao menos acreditam que as condenações têm uma média</p><p>de duração mais elevada para as mulheres do que para os homens, e</p><p>que, em geral, suas condições de encarceramento são piores. 75.</p><p>74 cfr. Naredo 1999: 3, assim como conforme os dados da Associação de colaborados com as</p><p>mulheres presas, ACOPE 2014.</p><p>75 Ainda que não tenha havido na Espanha uma grande dedicação ao estudo deste tema, deve-se</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 111110 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>É importante lembrar</p><p>que, como assinala Pat Carlen, o “es-</p><p>tigma e a invisibilidade” desta problemática decorre do fato de que,</p><p>dentre outras razões, as mulheres que aparecem nos tribunais e são</p><p>enviadas à prisão têm sido tradicionalmente vistas como “duplamen-</p><p>te desviadas”. Ou seja, não só más cidadãs (pois infringiram a lei),</p><p>mas sim, também como “mulheres não naturais” que infringiram os</p><p>papéis tradicional e institucionalmente a elas destinados. “Presume-</p><p>se que carecem de feminilidade e são más esposas, más mães e más</p><p>filhas” (2012: 3) De fato, acrescenta a autora britânica, as mulheres</p><p>são enviadas à prisão por delitos menos graves que os homens e em</p><p>geral é provável que sejam mais pobres e que tenham saúde pior, além</p><p>de que em muitos casos terem sofrido muito mais como vítimas de</p><p>abuso sexual e de violencia que os homens. (2012: 3) 76. Estes fato-</p><p>res talvez expliquem, como aponta Anatasia Chaberlen, o elevado</p><p>índice de incidentes de autolesão no caso de mulheres encarceradas,</p><p>em comparação com o caso de homens reclusos e muito mais na so-</p><p>brerrepresentação do fenômeno da autolesão em contextos exteriores</p><p>à prisão (até 30 vezes mais). As experiências prévias de drogadição,</p><p>alcoolismo, abusos sexuais, prostituição, unidos ao sentimento de</p><p>“fracasso na expectativa do papel social da mulher” constituem algu-</p><p>nas das possíveis explicações que sugere a autora citada, na experiência</p><p>britânica por ela examinada. 77.</p><p>A autora expõe como, em um universo completamete mascu-</p><p>lino que é o penitenciário, as mulheres devem se adaptar de modo</p><p>admitir que, ao menos desde o final dos anos noventa, têm sido levados a cabo diferentes es-</p><p>tudos que têm posto de manifesto a situação de discriminação que vivem as mulheres presas.</p><p>Caberia citar ao menos as obras de: Equipo Barañí (2001); Almeda (2002, 2003, 2007); Man-</p><p>zanos e Balmaseda (2003); Miranda, Martín Palomo e Vegas (2003, 2005); Naredo (2004,</p><p>2007); Proyecto MIP (2005); Defensor del pueblo andaluz (2006); Yagüe (2006, 2007, 2011,</p><p>2012); Almeda e Bodelón (2007); Igareda (2007); Miranda y Martín (2007); Juliano (2011);</p><p>Francés e Serrano (2011); Del Val e Viedma (2012) e Mapelli et al. (2012).</p><p>76 Também sobre este ponto podemos ler, com Almeda Samaranch, que sem dúvida se está</p><p>tratando de um conjunto de mulheres que reconhecem sua responsabilidade nos âmbitos mais</p><p>complexos de sua história, no qual o sofrimento infringido a sua família e que arrastam o</p><p>sentimento de culpa por haver falhado, abandonado a sua prole a sua sorte, e pela ausência em</p><p>suas vidas justo nos momentos que mais necessitam (2003).</p><p>77 Ver Chamberlen, A. (2016), “Embodying prison pain: Women’s experiences of self injury in</p><p>prison and the emotions of punishment”.</p><p>forçado, lembrando não apenas das diferenças biológicas (menstrua-</p><p>ção, gravidez, parto, menopausa) senão também aquelas culturais:</p><p>“as mulheres são ainda as principais cuidadoras das crianças; os en-</p><p>tornos sociais das mulheres são muitas vezes deprimidos; as mulheres</p><p>que entram na prisão normalmente sofrem mais violência, inclusive</p><p>sexual, do que os homens; em muitos lugares se exigem normas com-</p><p>portamentais e inclusive de vestimenta fora da prisão mais rigorosas</p><p>para as mulheres do que para os homens; os estereótipos de gênero</p><p>das mulheres provavelmente resultam mais presentes na prisão em</p><p>relação aos regimes dos homens e com maior rigor disciplinar” (op</p><p>cit: 5). Por tudo isso, Pat Carlen advoga pela imprescindível ade-</p><p>quação da vida carcerária às especificidades e às necessidades das</p><p>mulheres encarceradas, muito especialmente quando devem cuidar</p><p>dos filhos na prisão. A adoção de um paradigma específico nesta</p><p>matéria constitui seguramente a reivindicação mais importante da</p><p>citada autora ao comentar a adoção das chamadas Regras de Bang-</p><p>kok com a finalidade de “diminuir a discriminação”.</p><p>De fato, estas investigações colocam em evidência que, do total</p><p>de mulheres presas, uma elevadíssima porcentagem está constituída</p><p>pelo binômio presa/mãe jovem. Devido à tradicional divisão social de</p><p>papéis sociais, é evidente que o peso do cuidado, alimentação, edu-</p><p>cação, etc. dos filhos pequenos, recai muito mais sobre a figura da</p><p>mãe do que do pai. Quando então as mães se encontram na prisão, o</p><p>problema começa a adquirir proporções especiais.</p><p>A grande maioria dos legisladores europeus – ainda que não</p><p>só estes – permitem que, até determinada idade, os filhos pequenos</p><p>possam permanecer no interior da prisão junto a suas mães, nas chama-</p><p>das “creches”, “unidades de mães, etc.78 Quando alcançam certa idade,</p><p>serão separados de suas mães, sendo que o destino dado a cada criança</p><p>78 As idades máximas em que é permitida a permanência dos filhos nas unidades penitenciárias</p><p>variam de acordo com as legislações. No caso europeu, por exemplo, Dinamarca, Grã Bretanha,</p><p>Suécia, Suíça e França chegaram a estabelecer os 18 meses como limite máximo; Grécia, Áus-</p><p>tria, Luxemburgo, Itália, Portugal e Espanha estabeleceram em 3 anos. Alguns países latino-a-</p><p>mericanos, como Costa Rica, Guatemala ou Colômbia, chegaram a estabelecer até os 6 anos</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 113112 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>é diverso: alguns podem permanecer com suas famílias (se estas es-</p><p>tiverem presentes e sejam julgadas estruturadas pelos serviços sociais</p><p>ou policiais); ou começará um processo de institucionalização que em</p><p>muitos casos acabará com a separação definitiva da criança de sua mãe</p><p>(internação em outros centros, processos de acolhida ou adoção, etc.)</p><p>Junto com todos os transtornos que, para as crianças, possam</p><p>ocasionar a sua vida durante alguns anos na prisão, existe ainda um sério</p><p>risco de deterioro psicossocial na personalidade das mães, que sofrerão o</p><p>castigo–somado à pena – de ser socialmente avaliada de forma negativa</p><p>como uma “má mãe” ou “mulher não apta para a maternidade” que</p><p>trazem uma dor e uma estigmatização superior à dos homens encarcera-</p><p>dos (cfr. Carlen 1990, ou Campelli, Faccioli, Giordano, Pitch 1992).</p><p>“O problema fundamental é que na prisão as questões de segurança são</p><p>preponderantes às questões de tratamento, o que não nos proporciona</p><p>um ambiente adequado para o desenvolvimento da criança,” afirma</p><p>Maria José Gea Fernández, membro da Red Geispe e da asociación</p><p>GSIA (Grupo de Sociología da Infancia e da Adolescencia). A especialista</p><p>assegura que nem as instalações nem os próprios funcionários da prisão</p><p>estão preparados para albergar e tratar as crianças.</p><p>Os filhos se convertem em algo secundário e puramente oca-</p><p>sional no sistema penitenciário: O espaço do módulo das mães é</p><p>arquitetonicamente igual ao resto da prisão, e por isso existem</p><p>elementos de segurança perigosos para as crianças (portas de fecha-</p><p>mento automático) ou elementos não pensados para a permanência</p><p>de crianças pequenas. Tampouco existe protocolo de atuação para o</p><p>funcionário na hora de tratar com eles. Constata-se a existência de</p><p>escolas dentro da prisão com professores preparados e prisões que</p><p>possuem convênios com colégios na proximidade. Porém, ainda que</p><p>representem alguma melhora nas condições assinaladas, isto não</p><p>impede a presença do elemento nuclear desta problemática: a prisão</p><p>não é um lugar para abrigar crianças, já que começam a experimentar</p><p>processos de institucionalização dos quais deveriam ser completamen-</p><p>te distantes. Talvez uma das facetas mais complexas da problemática</p><p>examinada é a forma como a própria maternidade é vivida na prisão.</p><p>Sobre isso, é interessante (e também inquietante) conhecer, entre</p><p>outros, os resultados do estudo de Ana Gabriela Mendes Braga e</p><p>Bruna Angotti, no qual, mesmo enfocando a problemática das pri-</p><p>sões no Brasil, algumas conlcusões, sem dúvida, projetam-se de um</p><p>modo geral ou estrutural. Convém ler as próprias autoras quando</p><p>destacam que “toda maternidade em situação de prisão é vulnerável e</p><p>de risco, seja por fatores sociais, físicos ou psíquicos [...]. Durante o</p><p>período de convivência</p><p>entre mães e bebês na unidade penitenciária</p><p>elas exercem a hipermaternidade estando impedidas de frequentar ati-</p><p>vidades e trabalhar ́ [...] A permanência ininterrupta com o filho ou a</p><p>filha é a regra geral durante o tempo de permanência permitido, estan-</p><p>do este período permeado pelo rigor disciplinar e a tutela do exercício</p><p>da maternidade [...]. Quando a convivência finda e a criança é retirada</p><p>ocorre a transição da hipermaternidade para a hipomaternidade, que</p><p>é a ruptura sem transição ou período de adaptação [...] e as marcas da</p><p>maternidade interrompida, da ausência advinda pela presença ante-</p><p>rior, seguem no corpo e na mente da presa”. (2015: 235-236).</p><p>Para minimizar estes e outros problemas que se originam da</p><p>permanência de mães presas com filhos na prisão, muitas legislações</p><p>têm adotado fórmulas para sua resolução que normalmente partem</p><p>de uma falácia, ou ao menos de um dado não verificado: a suposta</p><p>colisão de interesses entre crianças e suas mães. Sem dúvida, os re-</p><p>sultados que emergem do estudo das autoras citadas demonstram a</p><p>inconsistência de colocações semelhantes: como é possível falar de</p><p>interesses contrapostos entre ambos? Não seria que a única contra-</p><p>posição se dá pela permanência da mãe na prisão? Como indicou faz</p><p>tempo Naredo “a verdadeira colisão, e da qual ninguém fala, é a que</p><p>enfrenta os direitos das crianças e suas mães presas à vida familiar em</p><p>um entorno normalizado”. (op. cit.) 79.</p><p>79 Também sobre isto e em geral acerca das consequências do encarceramento nos entornos fa-</p><p>miliares, veja-se La cárcel en el entorno familiar, investigação desenvolvida por uma equipe</p><p>do Observatori del Sistema penal i els drets humans da Universitat de Barcelona (2006).</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 115114 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>Cabe mencionar como possível alternativa à situação das mu-</p><p>lheres presas com filhos sobre sua responsabilidade, a nova situação</p><p>contemplada pelo sistema penitenciário da Argentina, cuja Lei 26.472</p><p>estabelece que “o juiz de Execução, ou o juiz competente, poderá</p><p>dispor do cumprimento da pena em prisão domiciliar:</p><p>a) À mulher grávida</p><p>b) À mãe de um filho menor de cinco anos ou de uma pessoa com</p><p>deficiência, a seu encargo.”</p><p>Ainda assim, novamente convém atender às soluções alternati-</p><p>vas que, a partir dos grupos de defesa dos direitos das mulheres presas,</p><p>tem-se tentado desenvolver. Como possíveis soluções para a proble-</p><p>mática das mulheres encarceradas com filhos, foram implementadas</p><p>algumas das seguintes alternativas:</p><p>a) Exigência de uma verdadeira busca de alternativas ao encarcera-</p><p>mento de mães com filhos pequenos a seu encargo, entendendo</p><p>semelhante medida como um “direito das crianças” e não como</p><p>um privilégio para a mãe, de quem se exigirá, em consequên-</p><p>cia, um processo de profunda responsabilização por atenção,</p><p>cuidado, educação, etc. do filho; (Conclusões da Alliance of</p><p>Non-Gubernamental Organizations on Crime Prevention and</p><p>Criminal Justice 1987 e ACOPE 201480. Também na Argenti-</p><p>na, com a Lei 24.660).</p><p>b) Sobre esta busca, numerosos organismos internacionais se pro-</p><p>nunciaram, como por exemplo a Relatoria de Pessoas Privadas</p><p>de Liberdade da Comissão Interamericana de Direitos Huma-</p><p>nos, mencionando a adoção por diversos países de fórmulas</p><p>mais abertas, tanto no momento processual do decreto de</p><p>prisões preventivas, quanto sobre a possibilidade de substituir</p><p>80 A investigadora Ana Ballesteros, a advogada Margarita Aguilera e a ex-diretora de prisões</p><p>Mercedes Gallizo coincidem na receita para reduzir a alta taxa de encarceramento de mulhe-</p><p>res na Espanha. Mais políticas sociais e alternativas penais. “Si falham e as pessoas não têm</p><p>alternativas ou centros de reabilitacão é mais fácul que continuem delinquindo”. E apostam</p><p>por favorecer as medidas de regime aberto. Na Espanha, perdura uma cultura contrária às</p><p>medidas alternativas. “A sociedade interpreta que não se está cumprindo uma pena se os cul-</p><p>pados no estão encerrados en celas”, lamenta Gallizo, “porém seria bom que aquela pessoa</p><p>que tenha cometido um pequeno delito, que tem a família desatendida, possa estar na sua casa,</p><p>no trabalho e cumprir a condenação por exemplo nos finais de semana”.</p><p>penas privativas de liberdade por outras modalidades. 81.</p><p>c) Em um recente relatório, destaca a CIDH depois de uma visita</p><p>à Costa Rica que “considerando o elevado número de presas na</p><p>Costa Rica por introduzir drogas nos centros penais – que de</p><p>acordo com estudos da Defensoria Pública, não eram somente</p><p>mães solteiras, mas também as únicas que respondiam por suas</p><p>filhas e filhos – a Comissão Interamericana destaca a promul-</p><p>gação, em julho de 2013, da Lei 9.161, que incorporou uma</p><p>perspectiva de gênero na modificação do artigo 77 da lei sobre</p><p>estupefacientes, substâncias psicotrópicas, drogas de uso autori-</p><p>zado, atividades conexas, legitimação de capitais e financiamento</p><p>ao terrorismo (Lei 8204)”. Com esta reforma, foi incorporada a</p><p>aplicação de medidas alternativas à prisão de mulheres que pela</p><p>primeira vez cometem delitos de drogas em recintos penais, e</p><p>que tenham algumas das condições de vulnerabilidade que a lei</p><p>assinala; da mesma forma, com esta normativa se reduzem as</p><p>penas para sancionar esta conduta ilícita.</p><p>d) Um sentido muito similar teve a Resolução do Parlamento Eu-</p><p>ropeu de 26 de maio de 1989 (D.O.C.E. 26-6-89), relativa a</p><p>mulheres e filhos encarcerados. Nela se chamou atenção especial-</p><p>mente sobre a necessidade de alertar “os Estados membros acerca</p><p>dos efeitos nocivos da prisão sobre as pessoas em geral e em par-</p><p>ticular sobre os menores”. Mais adiante, a citada Resolução volta</p><p>a instar os Estados “que, com caráter de urgência, investiguem e</p><p>apliquem medidas de substituição da pena de prisão”</p><p>e) Possibilidade de não cumprir a condenação em caso de mu-</p><p>lheres grávidas ou em período de lactação (caso da Noruega,</p><p>por exemplo).</p><p>f ) Viabilidade do cumprimento da pena privativa de liberdade</p><p>em residências especiais para mães, organizadas em contex-</p><p>tos normalizados, possibilitando às crianças uma vida mais</p><p>parecida a uma casa (Alliance of Non-Gubernamental Organi-</p><p>zations on Crime Prevention and Criminal Justice 1987). Em</p><p>especial cabe recomendar aqui a leitura do trabalho do Grupo</p><p>81 Em particular, a CIDH valoriza a liderança da Defensa Pública e do Instituto Nacional de</p><p>las Mujeres, na articulação de uma rede de derivação interinstitucional que atenda de forma</p><p>prioritária e integral nas necesidades das mulheres e de seus familiares ou dependentes, prin-</p><p>cipalmente no momento de ingressar na prisão.</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 117116 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>interuniversitario Copolis Bienestar, Comunidad y Control</p><p>Social, da Universidade de Barcelona, La realidad familiar</p><p>de las mujeres encarceladas en el sistema penitenciario español</p><p>de Anna Morero Beltran, Ana Ballesteros Pena e Elisabet</p><p>Almeda i Samaranch.</p><p>g) Introdução de prisão domiciliar para mulheres com filhos</p><p>pequenos que foram condenadas, para manter tanto quanto</p><p>possível a estrutura familiar. (cfr. a respeito Pitch op. cit.).</p><p>Pat Carlen conclui que de tudo o que se falou sobre a proble-</p><p>mática específica das mulheres encarceradas, a razão principal pela</p><p>qual era necessário para as Nações Unidas adotar regras especiais</p><p>para a prisão de mulheres é o fato de que elas são diferentes dos</p><p>homens, tanto biológica como culturalmente, sofrem de manei-</p><p>ra desproporcional quando são levadas a prisões idealizadas para</p><p>homens e que em consequência não foram levadas em conta as di-</p><p>ferenças entre ambos. Ainda assim, destaca Carlen, já que homens</p><p>e mulheres cumprem papéis distintos na sociedade e na família e</p><p>os delitos delas são geralmente menos graves que os dos homens, a</p><p>recomendação geral deve passar porque as mulheres não deveriam</p><p>ser condenads a penas privativas de liberdade, mas sim com medidas</p><p>diversas de custódia.</p><p>Novamente convém recorrer às recomendações internacionais</p><p>que mostram um caminho a seguir nestas situações. Assim, as pro-</p><p>postas de resolução do Parlamento Europeu sobre a situação especial</p><p>das mulheres nos centros penitenciários e as repercussões da prisão</p><p>dos pais sobre a vida social e familiar (2007; 2116 INI) estabelecia</p><p>uma verdadeira “rota de fuga”, lembrando o “caráter específico” das</p><p>prisões de mulheres e instando a criação de estruturas de segurança</p><p>e reinserção concebidas para as mulheres, que convém transcrever</p><p>quase literalmente aqui, pois, em que pese a sua extensão, configura</p><p>um autêntico guia de insumos e propostas para outra política pública.</p><p>Concretamente, é solicitado aos Estados membros que incorporem</p><p>a dimensão de gênero em suas políticas penitenciárias e em seus cen-</p><p>tros penitenciários, assim como que concedam uma maior atenção às</p><p>características específicas ligadas ao gênero e ao passado que frequen-</p><p>temente traumatizam as mulhers presas, em particular mediante a</p><p>sensibilização e à formação adequada do pessoal médico e carcerário</p><p>e a reeducação das mulheres em matéria de valores fundamentais:</p><p>a) integrando a dimensão de gênero na coleta de dados em todos</p><p>os âmbitos possíveis, a fim de tornar visíveis as problemáticas e</p><p>necessidades das mulheres;</p><p>b) criando em cada Estado uma comissão de estudo de sistemas</p><p>de medição permanente para um controle efetivo das condições</p><p>de internamento que permitam assinalar e corrigir os fatores</p><p>de discriminação que ainda afetam as mulheres no sistema</p><p>penitenciário.</p><p>c) trazendo aos debates locais, regionais e nacionais as necessi-</p><p>dades das mulheres presas e encarceradas para impulsionar</p><p>medidas positivas em relação aos recursos sociais, à moradia,</p><p>à formação etc.</p><p>Ainda assim, os Estados membros são instados a garantir às</p><p>mulheres o acesso em pé de igualdade aos serviços sanitários de toda</p><p>natureza, que devem ter uma qualidade equivalente aos de que disfru-</p><p>ta o resto da população com vistas à prevenção e ao tratamento eficaz</p><p>das doenças especificamente femininas.</p><p>Destaca-se, ainda, a necessidade de adotar medidas para que</p><p>seja levado mais em conta as necessidades específicas das mulheres</p><p>detidas em matéria de higiene em relação com as infraestruturas pe-</p><p>nitenciárias e em relação aos recursos higiênicos necessários.</p><p>A proposta comentada pede aos Estados membros que adotem</p><p>uma política penitenciária em matéria de saúde, de caráter global</p><p>que defina e trate, desde o momento da prisão, os problemas físicos e</p><p>mentais e que ofereça uma assistência médica e psicológica a todas as</p><p>pessoas presas, tanto homens como mulheres, que sofrem problemas</p><p>de dependência, respeitando ao mesmo tempo as características espe-</p><p>cíficas das mulheres. Solicita, também, que adotem todas as medidas</p><p>necessárias para oferecer auxílio psicológico a todas as mulheres presas,</p><p>e em particular às que foram vítimas de violência ou maus tratos</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 119118 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>e às mães que criam sozinhas seus filhos, assim como às infratoras</p><p>menores de idade, com objetivo de assegurar-lhes maior proteção e</p><p>lhes permitir, desse modo, manter e melhorar sus relações familiares</p><p>e sociais e, em consequência, suas possibilidades de reinserção; reco-</p><p>menda formar e sensibilizar os trabalhadores penitenciários sobre a</p><p>vulnerabilidade específica dessas presas.</p><p>Propõe também que a detenção das mulheres grávidas e das</p><p>mães que tenham sob sua responsabilidade um ou vários filhos de</p><p>pouca idade não seja mais do que um recurso de última instância e</p><p>que, nesse caso extremo, possam dispor de uma cela mais espaçosa, e,</p><p>se possível, individual, e lhes conceda atenção especial, em particular</p><p>quanto à alimentação e à higiene. Considera, por outra parte, que as</p><p>mulheres grávidas devem poder se beneficiar antes e depois do parto,</p><p>assim como de um curso de educação parental, semelhantes aos ofe-</p><p>recidos fora do âmbito penitenciário.</p><p>Chama-se claramente a atenção ao fato de que, em um parto</p><p>sem problemas na prisão, a mãe é normalmente obrigada, entre vinte</p><p>e quatro e setenta e duas horas após sua relização, a se separar de seu</p><p>filho; pede a Comissão aos Estados membros a busca de soluções</p><p>alternativas. Também é assinalada a necessidade de que o sistema ju-</p><p>dicial vele pelo respeito aos direitos humanos da criança ao examinar</p><p>as questões relacionadas com o encarceramento da mãe.</p><p>Da mesma forma, recomenda que se recorra em maior medida</p><p>à substituição das penas de reclusão, como as alternativas sociais, em</p><p>particular para as mães, naqueles casos em que as penas impostas</p><p>e o risco para a segurança pública sejam reduzidos, na medida em</p><p>que o encarceramento possa gerar perturbações graves à vida familiar,</p><p>em particular naqueles casos em que sejam chefes de famílias mono-</p><p>parentais ou tenham filhos de pouca idade ou que recaiam nelas a</p><p>responsabilidade de atenção e cuidado sobre pessoas dependentes ou</p><p>com deficiência. Recorda que as autoridades judiciais deveriam levar</p><p>em conta estes elementos ao escolher a pena e, em particular, o su-</p><p>perior interesse da criança e recomenda da mesma forma contemplar</p><p>a possibilidade de que os presos homens que possuam filhos peque-</p><p>nos sob seu cuidado e responsabilidade direta ou que tenham outros</p><p>encargos familiares, possam disfrutar de medidas similares às estabe-</p><p>lecidas para as mães.</p><p>Destaca-se que as repercussões do isolamento e o desamparo na</p><p>saúde das mulheres presas grávidas podem ter efeitos prejudiciais, e</p><p>inclusive perigosos, para a criança, e que isto deve ser levado em conta</p><p>na hora de tomar uma decisão sobre o encarceramento.</p><p>Por outra parte, insiste-se na necessidade de que a adminis-</p><p>tração judicial se informe sobre a existência de filhos antes de tomar</p><p>uma decisão sobre a prisão preventiva ou antes de pronunciar a</p><p>condenação e que vele pela adoção de medidas que garantam a</p><p>totalidade de seus direitos.</p><p>Pede também aos Estados membros que garantam a criação</p><p>de centros penitenciários para mulheres e que as distribuam melhor</p><p>em seu território, de forma que seja facilitada a manutenção dos</p><p>laços familiares das mulheres presas e que estas possam participar</p><p>de atividades religiosas.</p><p>Recomenda-se, por outro lado, aos Estados que estimulem as</p><p>instituições penitenciárias a adotar normas flexíveis em relação às</p><p>modalidades, à frequência, à duração e aos horários das visitas que se</p><p>deveriam permitir aos membros da família, amigos e outras pessoas,</p><p>e assim se solicita que seja facilitado o reagrupamento familiar e, em</p><p>particular, as relações dos pais presos com seus filhos, a menos que</p><p>isto seja contrário aos interesses das crianças mediante a criação de</p><p>estruturas de acolhida cuja atmosfera seja diferente a do ambiente</p><p>carcerário e que permitam atividades comuns, assim como um con-</p><p>tato efetivo apropriado.</p><p>Insiste-se que os Estados membros respeitem suas obrigações</p><p>contraídas no âmbito internacional e que garantam a igualdade de</p><p>direitos e de tratamento às crianças e adolescentes que vivam com um</p><p>progenitor preso, assim como que criem condições de vida adaptadas</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 121120 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>a suas necessidades em unidades plenamente independentes e dis-</p><p>tantes, na medida do possível, do entorno carcerário, mediante sua</p><p>integração com as creches ou recursos escolares da comunidade e de</p><p>um regime de saída flexível e generoso com a família extensa, ou a</p><p>cargo do pessoal de associações de proteção à infância que permi-</p><p>tam um desenvolvimento físico, mental, moral e social adequado.</p><p>Recomenda, ainda, facilitar o acesso dos filhos menores à prisão, a</p><p>possibilidade de que o outro progenitor responsável exerça os direitos</p><p>inerentes ao poder familiar.</p><p>Enfim, constata com pesar que muitas das mulheres presas são</p><p>mães solteiras</p><p>que perderam o contato com seus filhos, as vezes para</p><p>sempre, e pede para a Comissão e aos Estados membros que desenhem</p><p>e apliquem políticas alternativas para evitar esta total separação.</p><p>A proposta também é enfática em instar os Estados membros</p><p>a que garantam assistência jurídica gratuita centrada na orientação</p><p>penitenciária para todas as pessoas presas, que no caso das mulheres</p><p>reclusas deverá estar especializada em direito de família, a fim de dar</p><p>resposta a casos de acolhimentos, adoções, separação legal, violência</p><p>de gênero, etc.</p><p>Por outro lado, recomenda o desenvolvimento de campanhas</p><p>de difusão e orientação sobre serviços sociais comunitários, assim</p><p>como procedimentos permanentes de atualização da documentação</p><p>administrativa pessoal, familiar e sanitária, com a finalidade de que as</p><p>mulheres presas possam exercer plenamente seus direitos de cidadania.</p><p>Finalmente, pede aos Estados membros que apliquem me-</p><p>didas de acompanhamento psicossocial com vistas a preparar da</p><p>melhor forma possível a separação do filho e sua mãe presa e reduzir</p><p>seu impacto negativo.</p><p>Como pode ser constatado, recomendações e alternativas não</p><p>faltam. Mais além de selhantes medidas, que podem ser implemen-</p><p>tadas em muitos casos com reformas legislativas, a sociedade civil</p><p>também oferece soluções. De fato, diversos grupos e associações de</p><p>apoio a presas advogam pela criação e manutenção de grupos de</p><p>auto-ajuda que possam se encarregar do cuidado de crianças se eles</p><p>não puderem permanecer com suas mães e/ou com suas famílias,</p><p>para evitar, em todo o caso, o início de qualquer processo de ins-</p><p>titucionalização (iniciativas de Dona i Presó, por exemplo). Nesta</p><p>última direção, novamente se trata de manter um diálogo constante</p><p>com as possíveis comissões de afetados por essa situação para tratar</p><p>de encontrar, o mais consensualmente possível, caminhos alternati-</p><p>vos que iniciem um processo des-carceratório das mães presas com</p><p>filhos pequenos a seu encargo.</p><p>9. ARQUITETURA PENITENCIÁRIA E METAS REINTE-</p><p>GRADORAS</p><p>Para avançar em um novo conceito de reintegração social do</p><p>condenado, agora de outro ponto de vista, apesar de manter uma</p><p>estreita relação com o afirmado nas seções anteriores, também é es-</p><p>sencial adotar certas decisões de política criminal e prisional, que</p><p>mantêm uma relação direta com determinados regimes penitenciários</p><p>cujo desenho se pretende eliminar.</p><p>9.1. Os regimes de isolamento penitenciário</p><p>Nesse sentido, deve-se proceder à abolição de qualquer regime</p><p>fechado e/ou de isolamento penitenciário, seja como modalidade</p><p>de tratamento ou próprio do sistema de progressividade, ou como</p><p>sanção disciplinar. A exclusiva finalidade incapacitadora e/ou neu-</p><p>tralizadora de todo sistema prisional celular está suficientemente</p><p>comprovada. Também são conhecidos os efeitos perniciosos do iso-</p><p>lamento penitenciário, sua produção de transtornos e sua oposição</p><p>frontal a qualquer aspiração de reabilitação.</p><p>O chamado “isolamento penitenciário” pode ser aplicado</p><p>atualmente em várias situações e/ou modalidades. Tomando o</p><p>exemplo da Espanha, verifica-se que o isolamento pode ser uma</p><p>consequência de algumas das seguintes situações: a) como sanção</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 123122 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>disciplinar pela prática de uma falta (reguladas, estas últimas, em</p><p>normas regulamentadoras e, portanto, carentes de alcance legal); b)</p><p>como consequência de uma regressão na progressividade do regime</p><p>e tratamento prisional (o chamado, na Espanha, “primeiro grau de</p><p>classificação” ou “regime fechado”; e, c) pela inclusão do preso no</p><p>chamado “Fichero de Internos de Especial Seguimiento” (FIES), modali-</p><p>dade do regime fechado que carece de regulação jurídica, e somente</p><p>está prevista em em regulamentos ministeriais encaminhadas aos</p><p>Diretores dos Centros Penitenciários82.</p><p>No âmbito da Catalunha, única Comunidade Autônoma</p><p>da Espanha que assumiu competências de execução da legislação</p><p>penitenciária, os denominados Departamentos Especiales de Régimen</p><p>Cerrado (DERT)83 representam a modalidade catalã do indicado</p><p>anteriormente. Esta modalidade de vida tem sido constantemente</p><p>criticada por organizações de defesa dos direitos humanos, e, recen-</p><p>temente, suas objeções máximas foram apontadas em um estudo</p><p>da Coordinadora catalana per a la prevenció i denuncia de la tortu-</p><p>ra (CPDT), cujo trabalho e principais aspectos serão analisados a</p><p>seguir. Esta pesquisa dividiu o exame em cinco categorias precisas: i)</p><p>regulações e resoluções de caráter internacional (âmbito das Nações</p><p>Unidas e do Conselho da Europa); ii) também a normativa e sen-</p><p>tenças relevantes no contexto do Estado espanhol e os índices de</p><p>aplicação de medidas de isolamento penitenciário na Catalunha;</p><p>iii) os principais danos de ordem psicossocial que as mesmas produ-</p><p>zem nos internos sujeitos ao isolamento; iv) uma lista de expoentes</p><p>das graves violações dos direitos humanos que tenham sofrido nos</p><p>82 Este último sistema tem sido constantemente denunciado por organizações de apoio a presos,</p><p>em razão de suas características (23 horas de isolamento e 1 hora de pátio, violação sistemá-</p><p>tica de correspondência, impossibilidade do preso de ter seus próprios pertences, roupas etc.,</p><p>limitação drástica em todo tipo de comunicações, maus tratos etc.). Apesar dessas denúncias,</p><p>as quais revelam que tal sistema se limita à tortura e a tratamentos cruéis, desumanos ou de-</p><p>gradantes, o Tribunal Constitucional não paralisou até hoje a aplicação desse “regime de vida”</p><p>(para um conhecimento direto, através dos presos que sofreram as consequências desse regi-</p><p>me, pode ser consultada a Revista Panóptico, editada pela Coordinadora de Solidaridad</p><p>con las Personas Presas (1997) ou a obra de Tarrío “Huye hombre, huye”, que se constitui</p><p>em uma autobiografia de um “preso FIES”, 1997).</p><p>83 Em catalão: Departements Especials de Règim Tancat.</p><p>últimos anos; v) um conjunto de conclusões e recomendações que</p><p>o CPDT apresenta à sociedade em geral e às instituições públicas,</p><p>especialmente para superar as deficiências e os danos detectados</p><p>(pode ser consultado em www.prevenciontortura.org).</p><p>A CPDT conclui, mais uma vez, afirmando a necessidade</p><p>de cumprir as recomendações internacionais em matéria prisional,</p><p>especialmente as oriundas do Comitê contra a Tortura e do Relator</p><p>sobre a Tortura (das Nações Unidas), bem como do Comitê Euro-</p><p>peu para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa. As novas</p><p>Regras Penitenciárias (conhecidas como “Regras de Mandela”) bem</p><p>como as possibilidades que seriam abertas pela utilização decidida e</p><p>sistemática do Protocolo de Istambul (ambos instrumentos ainda ex-</p><p>tremamente desconhecidos entre os próprios operadores do sistema</p><p>penal), constituem um elemento esperançoso na luta para alcançar</p><p>maiores parcelas de respeito dos direitos fundamentais daqueles que</p><p>vivem punitivamente privados de sua liberdade. A Coordinadora ca-</p><p>talana para la prevención y denuncia de la tortura lembra pontos-chave</p><p>em sua investigação. Em primeiro lugar, e como diretriz que deve</p><p>orientar as políticas públicas “a partir de uma perspectiva de direitos</p><p>humanos”, cita a normativa e recomendações internacionais sobre</p><p>o assunto que vale transcrever aqui.</p><p>As Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos</p><p>Reclusos de 2015 (também conhecidas como Regras de Mandela)</p><p>destacam questões importantes:</p><p>• A Regra 38 menciona a necessidade de a administração</p><p>penitenciária mitigar os possíveis efeitos prejudiciais que o</p><p>isolamento tem sobre as pessoas.</p><p>• A Regra 43 faz referência explícita à proibição do isolamen-</p><p>to indefinido ou prolongado, o confinamento em uma cela</p><p>escura ou permanentemente iluminada ou a proibição de</p><p>contato do interno com a família.</p><p>• A Regra 44 define o isolamento como o confinamento de</p><p>uma pessoa sem contato humano por um mínimo de 22</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 125124 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE</p><p>REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>horas por dia. Da mesma forma, indica também que deve</p><p>ser considerado como confinamento prolongado aquele que</p><p>se estende por um período superior a 15 dias consecutivos.</p><p>No que se refere às Regras Penitenciárias Europeias, adotadas</p><p>pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa em 11 de janeiro</p><p>de 2006, a Regra 60.5 estabelece que o isolamento só pode ser im-</p><p>posto em casos excepcionais e por um período de tempo definido</p><p>e tão curto quanto possível. Além disso, a Regra 102.2 lembra que</p><p>a privação de liberdade é em si mesma uma punição para o preso e</p><p>que, portanto, o regime penitenciário não deve agravar o sofrimento</p><p>causado pelo encarceramento.</p><p>O referido relatório da CPDT também examina a jurispru-</p><p>dência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH).</p><p>Entre outros, pode ser importante lembrar dois casos considerados</p><p>nesse relatório:</p><p>• Caso Polônia 2012: “Não é razoável por parte das autoridades</p><p>considerar que para garantir a segurança da prisão se apli-</p><p>quem controles intrusivos e se monitore permanentemente os</p><p>movimentos, restringindo suas comunicações com o mundo</p><p>exterior e segregando-os da relação com os demais internos”.</p><p>• O Tribunal também condenou a Turquia por ter submetido</p><p>a regime de isolamento uma pessoa que havia sido asse-</p><p>diada dentro do centro penitenciário por sua condição de</p><p>homossexual, e, portanto, a medida, que durou oito meses,</p><p>foi justificada por sua própria segurança pessoal. No caso</p><p>em apreço, o Tribunal entendeu que esta situação causou</p><p>sofrimento físico e mental ao detido, o que constituiu um</p><p>tratamento desumano e degradante.</p><p>Ao se referir às Recomendações do Comitê contra a Tortura das</p><p>Nações Unidas, a CPDT lembra que:</p><p>• O CAT instou várias vezes o Estado Espanhol a abolir ou</p><p>reduzir, tanto quanto possível, os períodos de isolamento</p><p>aplicados aos internos, bem como a melhoria das condições</p><p>de vida deste regime.</p><p>• Em maio de 2015, o CAT reiterou no parágrafo 17, que “uma</p><p>aplicação excessiva do regime de isolamento constitui um tra-</p><p>tamento ou pena cruel, desumana ou degradante, e até tortura</p><p>em alguns casos”. Recorda ao Estado Espanhol que um período</p><p>de isolamento superior a 15 dias está absolutamente proibido, e</p><p>que esta medida só pode ser considerada como última instância</p><p>e com supervisão e controle judicial rigorosos.</p><p>O relatório mencionado também reitera as Recomendações do</p><p>Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura 2011 (CPT). Alguns</p><p>parágrafos destas Recomendações Internacionais devem ser citados</p><p>textualmente:</p><p>• Em seu informe ao Governo Espanhol sobre a visita à Espanha</p><p>em 2011, o CPT na seção 75 recorda que “O regime de iso-</p><p>lamento pode ter um efeito muito negativo na saúde mental,</p><p>física e no bem-estar social das pessoas afetadas pela medida”.</p><p>[...] tal sanção deve ser imposta apenas em casos excepcionais,</p><p>como último recurso e pelo menor período de tempo possí-</p><p>vel. [...] um período de 42 dias consecutivos em isolamento</p><p>constitui uma punição absolutamente excessiva. O Comitê</p><p>recomenda a adoção imediata de medidas para assegurar que</p><p>nenhum recluso seja colocado em regime de isolamento por</p><p>mais de 14 dias. No caso de comissão de duas ou mais infra-</p><p>ções, deveria prever-se a interrupção do isolamento durante</p><p>certo tempo ao se cumprir os 14 dias.”</p><p>• O CPT mais uma vez insiste em não prolongar o regime de</p><p>isolamento para os internos por mais de 14 dias consecutivos,</p><p>questionando diretamente as autoridades catalãs. Na seção</p><p>149 do informe, recomenda-se também “reduzir o máximo</p><p>possível o período de isolamento, como forma de punição,</p><p>para faltas disciplinares específicas”.</p><p>• “Nas quatro penitenciárias visitadas, a delegação recebeu de-</p><p>núncias de presos por maus tratos físicos por parte de alguns</p><p>funcionários. As acusações se referiam principalmente a socos</p><p>e chutes no corpo e em muitos casos ocorreram durante a</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 127126 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>transferência dos presos para o estabelecimento DERT ou</p><p>durante sua permanência nessas unidades”.</p><p>• “No informe referente à visita de 2007, o CPT expressou</p><p>grande preocupação com o uso da fixação nos Centros Peniten-</p><p>ciários da Catalunha. Lamentavelmente, à luz dos resultados da</p><p>visita de 2011, persistem os receios do Comitê relativamente</p><p>aos motivos que justificam o recurso à imobilização, sua dura-</p><p>ção, os métodos utilizados, a falta de supervisão e de registro</p><p>adequado da medida”.</p><p>Para o âmbito estritamente da Catalunha, o Informe da CPDT</p><p>também relembra as Recomendações do Sindic de Greuges no infor-</p><p>me de 2015:</p><p>• “O recurso ao primeiro grau deve ser restringido e, em qual-</p><p>quer caso, suavizar o rigor das condições de cumprimento</p><p>e aumentar as horas dedicadas ao tratamento individual e</p><p>personalizado”.</p><p>• “O isolamento deve sempre ter um caráter excepcional, levan-</p><p>do em conta o caráter aflitivo e dessocializador que ele supõe.</p><p>Além disso, deve ser suspenso quando os relatórios médicos,</p><p>psicológicos e sociais indicarem que é contraproducente ou</p><p>que não produz os resultados esperados em função da finali-</p><p>dade última da pena”.</p><p>Após toda a pesquisa realizada, a Coordinadora catalana para la</p><p>prevención y denuncia de la tortura estabelece as seguintes conclusões:</p><p>• A normativa internacional sobre o isolamento penitenciário</p><p>estabelece que este deve ser aplicado de forma excepcional e</p><p>não prolongado e que em todos os casos a administração deve</p><p>garantir a integridade física e psíquica das pessoas.</p><p>• O regime fechado é regulado em nível nacional na LOGP,</p><p>bem como no RP; mas, em ambos os casos, de forma clara-</p><p>mente insuficiente e não muito detalhada, levando em conta,</p><p>acima de tudo, que é um regime especialmente rígido.</p><p>• As administrações penitenciárias estabeleceram normativas</p><p>internas – Instruções e Circulares – que de alguma forma</p><p>pretendem “ordenar” o tratamento em regime de primeiro</p><p>grau. A CPDT entende que o regime de isolamento pro-</p><p>longado não pode ser considerado como um tratamento,</p><p>considerando que este, finalmente, está sendo usado com</p><p>rigor excessivo e que as condições de cumprimento podem</p><p>ser incompatíveis com o respeito mínimo dos direitos huma-</p><p>nos e com a orientação para a reinserção que todas as penas</p><p>deveriam ter.</p><p>• O regime de isolamento do DERT pode gerar danos psico-</p><p>lógicos e psicossociais profundos nas pessoas. O detrimento</p><p>da saúde mental dos reclusos/as em regime de isolamento e</p><p>seus efeitos a longo prazo, em alguns casos, podem dificultar</p><p>a posterior reinserção social e a reabilitação na sociedade. A</p><p>documentação existente, a experiência no sistema penitenciário</p><p>e o trabalho terapêutico subsequente, bem como os depoimen-</p><p>tos coletados para este relatório, constatam isso. O isolamento</p><p>prolongado gera situações que podem ser consideradas como</p><p>tratamentos ou penas cruéis, desumanas e degradantes.</p><p>• O índice de denúncias de maus-tratos ou tortura nos módu-</p><p>los de isolamento das prisões catalãs é maior do que o dos</p><p>módulos ordinários. Isto é confirmado tanto pelo Comitê</p><p>Europeu para a Prevenção da Tortura, o Sindic de Greuges,</p><p>quanto pelos informes da Coordinadora para la Prevención y</p><p>Denuncia de la Tortura.</p><p>• Houve casos de morte no DERT relacionados às condições</p><p>especiais que esse tipo de regime de vida gera.</p><p>• Finalmente, a CPDT indica um conjunto de Recomendações</p><p>que emergem da sociedade civil para os poderes públicos.</p><p>Trata-se do seguinte:</p><p>• “Para proteger os direitos humanos, é necessário abrir um</p><p>profundo debate público e parlamentar sobre o uso do</p><p>isolamento e suas consequências no século XXI, sob uma</p><p>perspectiva de respeito aos direitos humanos. Depois de</p><p>muitos anos, chegou a hora de questionar seu funcionamen-</p><p>to, utilidade e até mesmo a necessidade da existência desse</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 129128 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>tipo</p><p>de departamento. Também é urgente limitar imedia-</p><p>tamente seu uso e os tempos de permanência. Embora não</p><p>existam competências legislativas na Catalunha, existe sim</p><p>um marco de interpretação para decidir se deve ou não ser</p><p>aplicado, e, de qualquer forma, sua limitação.</p><p>• O Regulamento Penitenciário estabelece a obrigatoriedade de</p><p>realizar uma visita médica diária a pessoas privadas de liber-</p><p>dade que se encontrem em situação de isolamento provisório.</p><p>Com a subsequente emergência do Protocolo de Istambul,</p><p>que fornece os padrões mínimos para a documentação e in-</p><p>vestigação efetiva em casos de tortura e maus-tratos, e dado</p><p>que o regime de isolamento penitenciário pode constituir</p><p>em si mesmo uma pena ou tratamento cruel, desumano ou</p><p>degradante, a visita médica deve ser ajustada aos padrões es-</p><p>tabelecidos pelo referido Protocolo e deve ser desenvolvida</p><p>por profissionais claramente preparados para sua aplicação.</p><p>• O respeito pelos direitos humanos das pessoas privadas de li-</p><p>berdade é um elemento compartilhado pela Administração,</p><p>organizações internacionais, tribunais de vigilância peniten-</p><p>ciária, o Sindic de Greuges e as organizações de proteção</p><p>dos direitos humanos integradas na Coordinadora para la</p><p>Prevención y Denuncia de la Tortura. O trabalho conjunto,</p><p>com a necessária distribuição de papéis nessa proteção, é</p><p>essencial para assegurar que situações como as descritas não</p><p>sejam repetidas e que, em qualquer caso, possam ser inves-</p><p>tigadas de maneira eficaz. É por isso que se deve permitir o</p><p>acesso de tais organizações aos centros penitenciários para</p><p>realizar seu trabalho, modificando a atual política restritiva</p><p>contra as mesmas.</p><p>• Identificamos os efeitos psicológicos relacionados ao in-</p><p>ternamento no DERT, descritos no presente informe, e,</p><p>expressando nossas preocupações sobre suas consequências</p><p>nas pessoas que foram detidas no mecanismo do DERT,</p><p>recomendamos que sejam realizadas investigações, e se co-</p><p>labore com iniciativas desta Coordinadora orientadas para</p><p>a identificação e visibilidade dos efeitos psicológicos e</p><p>psicossociais, com o objetivo de prevenir e mitigar os danos</p><p>nas pessoas.</p><p>Em julho de 2016, dois representantes da CPDT tiveram</p><p>a oportunidade de apresentar esta investigação no Parlamento da</p><p>Catalunha e perante uma comissão da qual participaram deputa-</p><p>dos de todos os grupos parlamentares. Posteriormente, o Parlament</p><p>concordou com a constituição de um “grupo de trabalho” sobre o</p><p>problema dos Departaments Especials de Régimen Tancat, o qual ini-</p><p>ciou suas tarefas recentemente. A possibilidade de que, pela primeira</p><p>vez as pessoas atingidas - presos e familiares puderam se manifestar</p><p>perante os deputados do Parlamento da Catalunha as pessoas a partir</p><p>do qual será realizado no futuro.</p><p>Acredito que, após o examinado, e como resultado das investi-</p><p>gações acima mencionadas, bem como das recomendações dos órgãos</p><p>nacionais e internacionais que foram citadas, a partir de uma visão</p><p>centrada no respeito aos direitos fundamentais das pessoas privadas</p><p>de liberdade, a abolição deste tipo de regime penitenciário deve cons-</p><p>tituir um objetivo prioritário.</p><p>9.2 A construção e a localização das prisões</p><p>Sob o ponto de vista do garantismo radical de que este trabalho</p><p>parte, a oposição à construção das chamadas “prisões de segurança</p><p>máxima” deve ser mostrada, já que, o abandono de qualquer ideal</p><p>reintegrador é negado também partir do projeto arquitetônico das</p><p>prisões. Para isso, o desenvolvimento de campanhas de conscientiza-</p><p>ção pública (ver mais adiante a seção dedicada ao uso dos meios de</p><p>comunicação) pode ser importante para erradicar essa tendência de-</p><p>sastrosa que se instalou na Europa e nas Américas nas últimas décadas.</p><p>No mesmo sentido, tais campanhas devem ser úteis para mos-</p><p>trar a rejeição à tendência de construir as chamadas “macro-prisões”</p><p>(unidades penitenciárias para abrigar um grande número de presos).</p><p>E, também, semelhantes iniciativas devem incluir a oposição à ten-</p><p>dência de construir prisões fora das cidades, longe dos centros de</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 131130 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>trabalho e das residências dos reclusos e de seus familiares, severa-</p><p>mente prejudicados por tudo o que envolve (a partir do ponto de</p><p>vista econômico, de disponibilidade de tempo, entre outros prejuí-</p><p>zos) o deslocamento para visitar um membro da família privado de</p><p>liberdade. Considera-se igualmente nefasta a prática de “esconder”</p><p>o problema prisional longe da visão dos cidadãos: a cidade deve</p><p>testemunhar, deve assumir e questionar a existência de uma prisão</p><p>e de prisioneiros produzidos pela mesma sociedade.</p><p>Para tanto, é também conhecida a falácia representada pelos</p><p>discursos que indicam que, quando novas prisões são construídas, há</p><p>um esvaziamento de outras prisões superlotadas: as prisões que são</p><p>construídas acabam se enchendo sem que tal iniciativa cause a dimi-</p><p>nuição da massificação de outras. É necessário romper drasticamente</p><p>com tal tendência. Um “ponto final” na construção penitenciária deve</p><p>ser encarado com total responsabilidade. Somente através do estabe-</p><p>lecimento de uma “moratória arquitetônica” poderá, seriamente, ser</p><p>iniciado o caminho e o debate para a substituição do uso da privação</p><p>de liberdade por outros mecanismos. As (escassas) iniciativas desen-</p><p>volvidas em alguns países europeus a esse respeito demonstraram que,</p><p>sem uma medida semelhante, a pretensão de uma redução gradual,</p><p>mas contínua, da opção custodial é simplesmente ilusória (ver Chris-</p><p>tie, 1993 e Ulla Bondeson, 2002) 84.</p><p>Uma iniciativa como a descrita no ponto anterior permitiria</p><p>84 No caso dos Países Escandinavos, por exemplo, Bergalli (1983) apontou que foi provavel-</p><p>mente neles que, pela primeira vez, começaram a ser formuladas propostas concretas e alter-</p><p>nativas ao pensamento criminal tradicional. Para explicar em que contexto foram formuladas</p><p>algumas dessas propostas e, especificamente, aqueles que se dedicaram ao âmbito da prisão,</p><p>o mesmo autor indica que “é justo dizer que o Instituto de Criminologia da Universidade de</p><p>Oslo (Noruega), desde sua fundação em 1954 por John Andenaes no âmbito da Faculdade de</p><p>Direito, mas muito mais desde que Nils Christie é seu diretor, trabalha com uma inclinação</p><p>diferente. Seus primeiros trabalhos são pouco conhecidos porque seu alcance era limitado</p><p>àqueles que conheciam as línguas escandinavas. Porém, a medida em que vão sendo publi-</p><p>cados os Scandinavian Studies in Criminology (obviamente em inglês), são disseminadas</p><p>as orientações alternativas que emergem deles (...). O mais famoso até agora de todos os</p><p>trabalhos publicados é o que difunde a obra de Thomas Mathiesen, The Politics of Abolition.</p><p>Nesse trabalho, analisa-se os movimentos e agrupamentos de detentos em estabelecimentos</p><p>penitenciários escandinavos, os quais atuam em favor da reivindicação de seus direitos hu-</p><p>manos e pelo reconhecimento da possibilidade de formação de sindicatos com capacidade de</p><p>lutar pela vigilância de tais direitos” (1983: 231-232).</p><p>também proceder a uma redefinição dos programas para paralisar a</p><p>construção penitenciária. De fato, seria imprescindível, neste ponto,</p><p>o desenvolvimento de uma investigação que demonstre, em termos</p><p>econômicos, as economias orçamentárias que poderiam ser obtidas</p><p>e, consequentemente, a destinação desses recursos para outras opções</p><p>de caráter não segregativo.</p><p>Mais uma vez, a recente experiência italiana da articulação</p><p>da Stati Generali della’ Esecuzione Penale pode ser útil para verificar</p><p>o destino – inclusive arquitetônico – que foi dado à alternativa</p><p>relativa à construção de novas prisões. Coordenado por Luca Zevi</p><p>(Arquiteto), a Mesa de Trabalho número 1, chamada de “El espa-</p><p>cio de la pena: arquitectura y cárcel”, indica o propósito da mesma:</p><p>“A Mesa propõe localizar intervenções arquitetônicas em institutos</p><p>existentes e desenvolver novas configurações dos espaços da pena</p><p>para torná-la funcional</p><p>a um modelo detentivo baseado no desen-</p><p>volvimento da vida cotidiana em áreas comuns, e na possibilidade</p><p>também de cuidar dos aspectos afetivos em lugares abertos e dedi-</p><p>cados a encontros íntimos. Também para o desenvolvimento em</p><p>espaços adequados das atividades de trabalho e outras atividades de</p><p>tratamento”. O epílogo deste volume dá conta do processo iniciado,</p><p>narrado pelo próprio Mauro Palma.</p><p>10. TRANSFORMAÇÃO RADICAL DOS PROGRAMAS E</p><p>DAS PRÁTICAS DE ATUAÇÃO DOS OPERADORES PE-</p><p>NITENCIÁRIOS</p><p>10.1. Rumo a um Programa de Serviços Públicos para a</p><p>Reintegração social</p><p>Constitui um fato em contraste o enfoque puramente positi-</p><p>vista que os programas de atuação das administrações penitenciárias</p><p>estão implementando para intervir nas prisões. Tais programas – cujo</p><p>desenho reflete os princípios dos quais se nutre a “ideologia correcional</p><p>e de tratamento”- propuseram objetivos que se referem aos postulados</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 133132 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>mais elementares de um “direito penal do autor”, tentando a modifica-</p><p>ção do comportamento e da escala de valores dos apenados, embora</p><p>tenham acabado por cumprir outras funções materiais de governo</p><p>disciplinar da instituição carcerária (ver, a esse respeito, os textos clás-</p><p>sicos da penologia crítica, como os de Bergalli 1992c, Baratta op.cit.,</p><p>García Borés 1992, García Borés e Rivera Beiras 2016).</p><p>Com relação aos programas penitenciários implementados</p><p>na Espanha, e sem a intenção de citações exaustivas, é possível, por</p><p>exemplo, mencionar os Programas para a “Avaliação do clima social</p><p>na prisão”; de “Animação Sociocultural”; “Educacional”; de “Preven-</p><p>ção e Atenção aos Viciados em Drogas”; de “Cultura e Esporte” e os</p><p>específicos de “Tratamento”, bem como “atenção à violência”. Pode</p><p>ser interessante, nesse sentido, analisar quais são os “fundamentos</p><p>teóricos” dessas formas de intervenção. Seus próprios defensores re-</p><p>conhecem que o tratamento penitenciário consiste em uma “ação</p><p>individual de caráter médico-biológica, psiquiátrica, psicológica, pe-</p><p>dagógica ou social, que tem como objetivo evitar a reincidência do</p><p>sujeito e conseguir sua readaptação social” (López Tajuelo 1986, p.</p><p>73). Este autor acrescenta que “o conteúdo paradigmático do conceito</p><p>emerge em termos como perigosidade individual, correção quase-sa-</p><p>natorial etc.” (ibid.). E, para concluir, o mesmo autor, ao comentar as</p><p>tarefas das equipes de tratamento, afirma que estas “utilizaram, através</p><p>da influência do Centro de Observação, os esquemas operacionais da</p><p>criminologia clínica de Pinatel” (op cit.: 16). Não há necessidade,</p><p>penso eu, de argumentar demasiadamente para mostrar que tal forma</p><p>de intervenção prisional permanece ancorada nos postulados do posi-</p><p>tivismo criminológico do século XIX e corresponde a um paradigma</p><p>etiológico da criminalidade.</p><p>Nas últimas décadas, a Espanha tem sido receptora (parti-</p><p>cularmente a Administração Penitenciária da Catalunha) de uma</p><p>orientação claramente “atuarial” para o governo de sua penalidade</p><p>carcerária. Como já expliquei em outro trabalho (ver Rivera Beiras</p><p>2016), a adoção de determinados checklist de procedência canadense,</p><p>norte-americana e britânica, já é uma realidade em muitas prisões para</p><p>medir a perigosidade (agora chamada de risco) de pessoas presas. No</p><p>caso mencionado, o referido dispositivo está composto por dois ques-</p><p>tionários de avaliação de risco. Sua versão limitada, o RISCANVI-S</p><p>(screening), possui os dados do interno, sua idade, gênero, estado civil,</p><p>situação procesual-penitenciária, regime de vida penitenciária, tipo de</p><p>crime e relação com a vítima. Posteriormente, aparecem 10 itens: 1)</p><p>idade do primeiro incidente violento ou início do comportamento</p><p>violento; 2) violência anterior (ao delito principal); 3) comportamen-</p><p>to penitenciário anterior (faltas graves ou muito graves); 4) evasões,</p><p>fugas, descumprimento de sentença; 5) problemas com o consumo</p><p>de álcool ou outras drogas; 6) problemas de saúde mental anteriores</p><p>(diagnósticos prévios de distúrbios, raiva, instabilidade emocional,</p><p>impulsividade); 7) tentativas ou comportamentos anteriores de au-</p><p>tolesão; 8) falta de apoio familiar e social, falta de rede relacional; 9)</p><p>problemas de natureza laboral; 10) ausência de planos futuros. Esses</p><p>itens visam “medir” a violência auto-dirigida, a violência intra-insti-</p><p>tucional, a reincidência violenta e o descumprimento de sentenças.</p><p>Como pode ser visto, sete dos dez itens são de natureza “está-</p><p>tica” e não podem ser modificados porque pertencem à biografia da</p><p>pessoa avaliada. Após examinados e relacionados tais fatores, é realiza-</p><p>do um cálculo do risco que resultará no nível alto ou baixo do mesmo.</p><p>Se o resultado for baixo, o instrumento será usado novamente após</p><p>seis meses. Se, pelo contrário, o risco for avaliado como alto, o preso</p><p>será submetido a outro instrumento que contém 43 itens e terminará</p><p>com uma avaliação tripartida do risco (que será classificado como</p><p>alto, médio ou baixo). Este outro instrumento é chamado de Riscanvi</p><p>complet (Riscanvi-C). Aplica-se a prisioneiros com um provável risco</p><p>alto (de acordo com o instrumento anterior, o Riscanvi-S)85.</p><p>85 Para saber mais sobre algumas das obras dos defensores desse modelo atuarial na penologia</p><p>contemporânea, ver os trabalhos de Andrés-Pueyo, A./López, S. (2005), S.A.R.A. Manual</p><p>para la valoración del riesgo de violencia contra la pareja. Barcelona. Universitat de Bar-</p><p>celona; Andrés-Pueyo, A./Hilterman, E. (2005), SVR-20, Manual de valoración del riesgo</p><p>de violencia sexual. Barcelona. Universitat de Barcelona; Andrés-Pueyo, A./Hilterman, E.</p><p>(2005), HCR-20, Guía para la valoración del riesgo de comportamientos violentos. Barce-</p><p>lona. Universitat de Barcelona; Andrews, D.A. (1989), “La reincidencia es predecible y puede</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 135134 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>Essa forte irrupção do behaviorismo psicológico no terreno da</p><p>execução das penas privativas de liberdade causou uma redução muito</p><p>importante de garantias jurídicas nos direitos fundamentais dos reclu-</p><p>sos, direitos que agora deixam de ser tais garantias desvalorizando-se</p><p>na categoria de simples benefícios penitenciários. É fácil notar, então,</p><p>que se as principais questões da respectiva execução penal – permis-</p><p>sões de saída, progressões, liberdades condicionais, etc. – passarem</p><p>a integrar a categoria de benefícios penitenciários, o estatuto jurídico</p><p>das pessoas privadas de liberdade continua a ser reduzido cada vez</p><p>mais. Desse modo, os objetivos de ordem e governo disciplinar da</p><p>prisão estão se tornando os pilares sobre os quais vai se articulando a</p><p>maioria das atividades pretendidamente “terapêuticas”. Que os direitos</p><p>fundamentais das pessoas presas, suas possíveis reduções do tempo</p><p>de cumprimento de pena, a antecipação da liberdade condicional e</p><p>outras situações similares, dependam de valorações sobre um risco</p><p>hipotético que se acredita avaliável através de tais questionários, cons-</p><p>titui um retrocesso insustentável no âmbito de uma execução penal</p><p>orientada por critérios jurídicos e garantistas. É evidente, então, que</p><p>semelhante quadro deve ser radicalmente modificado.</p><p>Para isso, a adoção de certas medidas é imprescindível. Em pri-</p><p>meiro lugar, constata-se a necessidade de que os programas – não de</p><p>“ressocialização”, mas de “reintegração” – dirijam-se tanto aos detidos</p><p>(para o qual o trabalho terá de ser feito no interior da prisão), quanto</p><p>às suas famílias e/ou entornos sociais (o que significa um trabalho no</p><p>exterior da prisão). Em vez de medir os supostos perfis de risco das</p><p>pessoas internadas, os programas de reintegração devem se orientar a</p><p>reduzir as condições de vulnerabilidade das pessoas privadas de liber-</p><p>dade e de suas famílias. É necessário prestar atenção especial nestas</p><p>intervenções, as quais devem servir para melhorar as condições</p><p>sociais,</p><p>econômicas, habitacionais, de saúde, de trabalho, de escolaridade das</p><p>crianças, etc., dos familiares dos internos, isso porque é onde, na</p><p>ser influenciada: el uso de la evaluación de riesgo para disminuir la reincidencia”. En Foro</p><p>sobre la investigación correccional, vol. I, núm. 2 (11-18), Correctional Service Canada.</p><p>maioria dos casos, o condenado será reintegrado. Portanto, é neces-</p><p>sária uma mudança radical no trabalho dos operadores penitenciários</p><p>e extra penitenciários, uma mudança que deve ter como meta funda-</p><p>mental a melhora das condições de vida sem pretensões ideológicas</p><p>de nenhuma espécie.</p><p>E isso pode ser alcançado se os programas e serviços forem</p><p>independentes do contexto punitivo-disciplinar, isto é, não absor-</p><p>vidos pela lógica punitiva premial que permeia a vida na prisão,</p><p>e, portanto, poderiam perfeitamente ser desenvolvidos no exterior</p><p>da prisão. Neste sentido, indicava Baratta, “os presos poderão ser</p><p>admitidos oportunamente nos serviços ambulatoriais e em outros</p><p>programas fora da prisão, o que permitirá uma concentração mais</p><p>racional e facilitará ao mesmo tempo a passagem da pessoa detida da</p><p>prisão para a vida e assistência pós-penitenciária (...). A continuida-</p><p>de estrutural dos programas nas duas fases é, por sua vez, um fator</p><p>integrador de abertura e interação recíproca entre prisão e sociedade,</p><p>superando rígidas barreiras estruturais entre os papéis. Em suma, é</p><p>um momento de mediação entre as duas dimensões da reintegração</p><p>social: uma, voltada aos presos e ex-presos; outra, dirigida ao meio</p><p>ambiente e à estrutura social.” (op.cit.).</p><p>Nessa direção, como afirma Maria Palma Wolff, todos os</p><p>presos devem ser considerados “pré-liberados” no sentido de preparar</p><p>a vida em liberdade muito antes que a mesma aconteça. Isso requer a</p><p>articulação de um programa realizado tanto por operadores peniten-</p><p>ciários como por serviços sociais não pertencentes à prisão (com um</p><p>papel preponderante do âmbito municipal) e que aborda claramente</p><p>os fatores de vulnerabilidade dos reclusos e seus ambientes sócio fami-</p><p>liares do exterior: promoção do acesso a recursos de educação, saúde,</p><p>habitação e trabalho, fundamentalmente (2016: 56 e 60).</p><p>Quanto ao possível papel que os municípios podem desempe-</p><p>nhar nessa colaboração extra penitenciária, tanto durante o período</p><p>de encarceramento das pessoas como, e, muito especialmente, após</p><p>a soltura e retorno à sociedade, pode ser muito importante conhecer</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 137136 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>o trabalho desenvolvido pela associação Antigone, per i diritti e le</p><p>garanzie nel sistema penale, a qual criou unidades importantes nas</p><p>últimas décadas, primeiro em Roma e depois em outras cidades ita-</p><p>lianas. Com efeito, a aparição do primeiro gabinete do Garante dei</p><p>detenutti del Comune di Roma envolveu a articulação de um programa</p><p>abrangente de atenção aos presos e suas famílias. Essa experiencia</p><p>será comentada mais adiante.</p><p>Além do comentado e para poder desenvolver a transformação</p><p>dos programas referidos nesta seção, também é necessária uma mu-</p><p>dança no processo de formação de operadores sociais penitenciários</p><p>e extra-penitenciários. Uma formação que avance muito além dos</p><p>ensinamentos criminológicos ancorados em um paradigma etiológico</p><p>da criminalidade. Neste sentido, a colaboração da Universidade nesse</p><p>processo deve ser um elemento-chave, que pode ser útil para fornecer</p><p>conhecimentos indepentendes, críticos e, ademais, não vinculado aos</p><p>centros de formação das administrações penitenciárias.</p><p>Ainda, recordando Baratta (op. cit.), todos os programas e</p><p>práticas de intervenção – tanto em âmbito prisional como no seu</p><p>exterior – devem partir de “uma presunção de normalidade” da</p><p>pessoa privada de liberdade. De fato, para reverter a situação atual,</p><p>esses programas e práticas “devem ser elaborados com base no orça-</p><p>mento teórico de que não há características específicas dos presos”</p><p>(Baratta, ibidem)86. Para esse autor, a única anomalia específica</p><p>que caracteriza toda a população carcerária é a condição de preso:</p><p>“ela deve ser levada em conta nos programas e serviços que têm, em</p><p>parte, o objetivo de reduzir os danos” (ibidem). Consequentemente,</p><p>os programas e práticas têm de ser reconvertidos em uma múltipla</p><p>oferta de serviços públicos, elaborados e realizados sem qualquer</p><p>interferência no contexto disciplinar da pena.</p><p>Em um contexto similar, os novos Programas de Serviços Públi-</p><p>cos para a Reintegração Social dos condenados podem superar a falsa</p><p>86 O autor mencionado acrescenta que, fundamentalmente, o preso não é tal porque é diferente,</p><p>senão que é diferente porque é preso. (Baratta op.cit.).</p><p>incompatibilidade tradicional e atual de impedir que a população</p><p>prisional “preventiva” acesse esses programas (ver Baratta op.cit.).</p><p>De fato, conforme o autor supracitado, para inverter a situação atual,</p><p>deve-se partir do princípio da não interferência entre pena-disciplina</p><p>e a reintegração social: “se o tratamento for redefinido em termos de</p><p>serviço e de livre exercício dos direitos, então não haverá razão para</p><p>continuar excluindo o segundo grupo (os presos “preventivos”) da</p><p>possibilidade de seu gozo “(ibidem).</p><p>10.2. A atenção necessária à situação laboral e à saúde mental</p><p>dos funcionários penitenciários</p><p>Da mesma forma, deve ser particularmente importante prestar</p><p>muita atenção à rotatividade laboral dos operadores penitenciários</p><p>(ver Baratta op. cit.). Sabe-se que a saúde mental dos operadores</p><p>penitenciários não está menos ameaçada que a dos presos, “devido à</p><p>alienação geral que caracteriza as relações entre as pessoas e entre os</p><p>papéis do mundo prisional” (ibidem).</p><p>Em 2015, a Revista Española de Sanidad Penitenciaria publicou</p><p>um estudo intitulado “A influência da síndrome de burnout na saúde</p><p>dos trabalhadores penitenciários” após a realização de uma importante</p><p>investigação com mais de 200 profissionais de dez prisões espanholas.</p><p>O estudo destaca que a pesquisa foi feita comparando a situação de</p><p>trabalho e suas consequências em funcionários que trabalham em</p><p>módulos comuns com outros que trabalham nos chamados “módulos</p><p>de respeito”87. Os autores da pesquisa publicada, C . Bringas Mollega</p><p>87 A pesquisa está enquadrada em estudos quantitativos; trata-se de um estudo exploratório,</p><p>descritivo e interpretativo no contexto institucional dos Estabelecimentos Penitenciários. A</p><p>amostra foi selecionada por meio de amostragem não probabilística, sendo sua participação</p><p>voluntária nos mais de 10 centros onde os questionários foram enviados, formada por um</p><p>total de 222 profissionais. A amostra é dividida em 2 grupos: 101 trabalhadores do módulo</p><p>terapêutico, que representam 45,5%, e 121 que trabalham em módulos tradicionais, que cons-</p><p>tituem 54,5% do total. Primeiramente, por meio de um questionário ad hoc, que coleta dados</p><p>pessoais dos participantes, como idade, sexo, estado civil, nível de estudos e renda mensal,</p><p>categoria profissional, percepção de classe social, experiência no ambiente de trabalho... Em</p><p>seguida, foi completado o Questionário de Saúde Geral (GHQ-28), de Goldberg e Hillier.</p><p>Este consiste em 28 itens que se referem à saúde física e psicológica, divididos em quatro</p><p>fatores. As respostas são determinadas de acordo com o estado de saúde da pessoa percebido</p><p>no último mês. Para isso, existem quatro respostas possíveis que indicam um maior ou menor</p><p>grau de saúde, com quatro alternativas de resposta orientadas para um maior ou menor grau</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 139138 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>e A . Fernández Muñiz, ressaltam que é um fato constadado que o</p><p>trabalho em certas circunstâncias gera estresse nas pessoas, o que pode</p><p>levar a sérios problemas de saúde, sendo os mais comuns a depres-</p><p>são, transtornos de ansiedade, transtornos de humor e transtornos de</p><p>personalidade, entre outros.</p><p>“Isso, por sua vez, relaciona-se à insônia,</p><p>descontrole emocional, problemas alimentares, deterioração física,</p><p>deficiência de habilidades e em hábitos de trabalho e da vida cotidia-</p><p>na. Um dos âmbitos propensos ao desenvolvimento de problemas de</p><p>saúde mental pelos profissionais é o penitenciário” (2015: 9).</p><p>Nas conclusões da pesquisa citada, pode-se perceber que existe</p><p>uma “estreita correlação entre sintomas graves de burnout com a</p><p>percepção de um clima negativo ou positivo. A maior incidência de</p><p>burnout nos módulos tradicionais pode dever-se ao maior esgotamen-</p><p>to e estresse no trabalho, onde predomina a perda de interesse pelo</p><p>trabalho e o aparecimento de atitudes e comportamentos negativos</p><p>em relação às pessoas sobre as quais recaem suas funções (...), resul-</p><p>tados que coincidem com os descritos por Hernández e outros, que</p><p>encontraram altos níveis de exaustão e despersonalização nos funcio-</p><p>nários e uma baixa realização pessoal com diminuídas expectativas</p><p>de sucesso” (ibidem). A chamada “depressão grave” é ainda verificada</p><p>como “alta” nos próprios módulos de respeito. Segundo a amostra, os</p><p>funcionários submetidos aos testes realizados mostraram muitas dúvi-</p><p>das sobre o seu trabalho, além de possibilidades e sucesso do mesmo,</p><p>com não poucos questionamentos de índole ética (cf. 13-15).</p><p>de saúde. Os fatores que dividem o presente instrumento, assim como o coeficiente de alfa</p><p>obtido nesse estudo de cada um deles, são: Sintomas somáticos (.898), Ansiedade/insônia</p><p>(.916), Disfunção social (.764) e Depressão grave (.948). A consistência interna da escala em</p><p>sua totalidade é .932. Ao mesmo tempo, esses quatro fatores podem ser classificados em dois:</p><p>Saúde, com uma consistência interna de .786, e enfermidade de .920. Por último, foi facilitado</p><p>a eles o Inventário de Burnout, Maslach e Jackson, e adaptado por Seisdedos, que mede o</p><p>esgotamento profissional através de 22 itens que refletem as atitudes dos participantes sobre</p><p>o seu trabalho, respondendo de 0 (Nunca) a 6 (Todos os dias). Da mesma forma, esses 22</p><p>itens são classificados em três fatores, todos com um adequado índice de confiabilidade nesse</p><p>estudo: Cansaço Emocional–fadiga e esgotamento emocional produzidos pelo desempenho</p><p>profissional (.875) -; Despersonalização–atitudes negativas, bem como respostas passivas aos</p><p>beneficiários os quais eles dedicam seu trabalho (.656) -; e Realização Pessoal–satisfação e</p><p>competência no desempenho do trabalho (.853) -. O coeficiente alfa do teste global foi de</p><p>.882. O último fator (Realização Pessoal) reflete uma atitude positiva e, portanto, correlaciona</p><p>negativamente com Fadiga Emocional e a Despersonalização, fatores que ocorrem em um</p><p>nível alto, e refletem da mesma forma um grau de Burnout.</p><p>A esse respeito, pode ser importante prestar atenção à ex-</p><p>periência desenvolvida na Itália, anos atrás, com os sindicatos de</p><p>funciónários penitenciários que se vincularam a âmbitos universitários</p><p>para a reflexão crítica sobre seus papéis profissionais. Essa experiên-</p><p>cia envolveu o contato entre os operadores penitenciários e âmbitos</p><p>acadêmicos próximos à Universidade de Bolonha, o que resultou em</p><p>numerosos seminários, discussões, etc., nos quais foi feita uma tenta-</p><p>tiva de desenvolver uma reflexão crítica sobre as próprias intervenções</p><p>dos psicólogos e educadores nas prisões italianas. O questionamento</p><p>de formas semelhantes de intervenção deu origem à constituição de</p><p>um verdadeiro “movimento” de operadores sociais penitenciários que</p><p>enfrentou a administração penitenciária italiana, buscando questionar</p><p>“a quem reeducamos?”, “para que educamos?” etc. Certas medidas</p><p>sancionatórias no âmbito laboral dos funcionários foram gradualmen-</p><p>te desmanteladas. Apesar disso, essa iniciativa demonstrou até onde</p><p>se poderia chegar por meio desse canal de autêntica reflexão e crítica</p><p>em relação aos próprios papéis profissionais88. A alta recomendação</p><p>de rotação nos postos de trabalho, a comprovação de um efeito de</p><p>“prisionização” (ver Clemmer 1958) não só nos presos, mas também</p><p>nos próprios funcionários penitenciários, também mostra a substân-</p><p>cia patogênica da prisão, e a necessidade de trabalhar com todos os</p><p>setores afetados por ela, como dito antes. Na experiência comentada,</p><p>não foram poucos os transtornos sofridos pelos trabalhadores peni-</p><p>tenciários, dentre os quais se destacam os seguintes:</p><p>• Bloqueio emocional;</p><p>• Prejuízo das capacidades intelectuais (como escrever e argu-</p><p>mentar com mais fluência);</p><p>• Reprodução de comportamentos dos presos entre colegas</p><p>de trabalho;</p><p>• Sensação rotineira de fracasso nos objetivos de trabalho;</p><p>88 Para um conhecimento mais detalhado da iniciativa acima mencionada, ver os trabalhos apre-</p><p>sentados no “Primer Congreso Nacional de Operadores Penitenciarios”, celebrado em Mi-</p><p>lão (Itália), em 16 de maio de 1992.</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 141140 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>• Maior constatação de licença médica por motivos de saúde</p><p>mental do que em outros grupos profissionais;</p><p>• Negação de fatos que realmente aconteceram;</p><p>• Dificuldade em manter relacionamentos afetivos estáveis,</p><p>tanto familiar quanto social;</p><p>• Índice importante de vícios (especialmente tabaco e álcool,</p><p>mas também outras substâncias não legais);</p><p>• Sensação de profunda liberação e alívio quando são transfe-</p><p>ridos de um “ambiente fechado” para um ambiente “aberto”;</p><p>• Dificuldades importantes para retornar ao trabalho em</p><p>“ambiente fechado”, uma vez experimentada a aludida</p><p>transferência.</p><p>A pesquisa comentada acima, publicada em 2015 pela Revista</p><p>Española de Sanidad Penitenciaria, é extremamente conclusiva em seus</p><p>comentários finais quando afirma que “Conforme expusemos ao longo</p><p>da análise dos nossos resultados, as variáveis que compõem a síndrome</p><p>de burnout aparecem como consequência das condições de trabalho em</p><p>que alguém se encontra, e das exigências e implicações que acarretam.</p><p>Também sabemos que o contexto de trabalho penitenciário parece ser</p><p>um dos mais propensos a desenvolver essa síndrome em seus trabalha-</p><p>dores. Além disso, nossa pesquisa também quis incorporar a variável</p><p>saúde e aprofundar se os fatores que compõem o burnout afetam signi-</p><p>ficativamente a deterioração da saúde” (op cit: 13).</p><p>Em outra ordem, deveria investigar-se profundamente a busca de</p><p>“simetrias nas relações entre os papéis do usuário e do operador”, para</p><p>aprofundar os caminhos da democratização autêntica da organização</p><p>da vida cotidiana nas prisões. Muitas iniciativas podem ser desenvolvi-</p><p>das em tal direção, as quais visam quebrar as estruturas hierárquicas e</p><p>verticais estritamente consolidadas no interior do universo prisional sob</p><p>o uso da questionada “teoria da relação de sujeição especial”89. A título</p><p>89 Refere-se à antiga categorização da relação entre presos e Administração penitenciária como</p><p>uma relação desigual, de “sujeição” entre si. Essa teoria, nascida no campo do Direito adminis-</p><p>trativo alemão do final do século XIX, motivou a argumentação da desigualdade entre os presos</p><p>exemplificativo, caberia mencionar alguns dos seguintes:</p><p>a) Transformação da interação entre os atores nas funções ins-</p><p>titucionais que possam ser úteis para tentar vias de autêntica</p><p>comunicação e aprendizagem recíproca (aproveitamento re-</p><p>cíproco das habilidades, conhecimentos, ofícios, etc., dos</p><p>diferentes atores).</p><p>b) Sistemas de rotação de papéis entre os diferentes atores, abrindo</p><p>as estruturas hierárquicas de organização e suas competências,</p><p>para a construção conjunta dos programas e serviços de reinte-</p><p>gração, já referidos nos pontos anteriores.</p><p>c) Regimes de co-participação na organização da vida cotidiana</p><p>na prisão (organização dos serviços, dos destinos de trabalho</p><p>dos presos, etc.). Isso envolveria o estabelecimento de canais</p><p>de participação democrática nas prisões, confiando mais na</p><p>possibilidade de ouvir as reivindicações e propostas de solução</p><p>que vêm das próprias pessoas afetadas, as quais</p><p>modelo teórico, ou</p><p>16 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>não é, ao contrário, por sua natureza, uma pena incompatível com o</p><p>respeito da pessoa e sua dignidade pessoal. Se, enfim, pode cumprir</p><p>com a condição elementar de legitimidade consistente, como requer,</p><p>por exemplo, o artigo 27 da Constituição italiana, em um tratamento</p><p>não contrário ao sentido de humanidade, capaz de deseducar e desso-</p><p>cializar muito mais que reeducar e ressocializar o condenado.</p><p>A resposta de Rivera é firme: não se pode reformar a pena de</p><p>prisão, já que não é possível fazê-la compatível com os princípios de</p><p>igualdade, de legalidade e de dignidadae da pessoa que constituem o</p><p>Estado constitucional de direito. Como mostra a realidade de todas as</p><p>prisões do mundo essa não é – porque não poderia ser – uma simples</p><p>limitação da liberdade pessoal, como os princípios de legalidade e de</p><p>taxatividade pretenderiam. Sendo uma instituição total, ela acarre-</p><p>ta também outros mil danos, dependendo inevitavelmente da cada</p><p>prisão, de cada preso e, sobretudo, daqueles que não são previsíveis</p><p>nem preveníveis legalmente como pretenderia seu modelo ideal. Tam-</p><p>pouco se pode afirmar que o reformismo carcerário destas últimas</p><p>décadas tenha melhorado as condições de vida de seus reclusos: um</p><p>atroz testemunho nesse sentido é representado pelo aumento nestes</p><p>anos do número de suicídios na prisão, que na Itália, por exemplo,</p><p>foi triplicado em comparação com os anos 1970.</p><p>Sem dúvida isto não quer dizer, segundo opina Rivera, que não</p><p>seja possível transformar radicalmente o sistema de penas. Rivera re-</p><p>chaça o pessimismo e a decepção mostrada por muitos criminólogos e</p><p>penalistas que criticam os aspectos mais odiosos e constitucionalmente</p><p>ilegítimos da detenção carcerária, porém sem propor alguma solução ou</p><p>alternativa. Este pessimismo se fundamenta em uma espécie de falácia</p><p>realista e determinista, hoje em dia muito comum entre juristas e soció-</p><p>logos: a naturalização das instituições que já existem, neste caso a prisão,</p><p>como se fossem fenômenos naturais ou que não tivessem sido criadas</p><p>por seres humanos e que delas os seres humanos – legisladores e juristas,</p><p>a política e a cultura jurídica – não fossem responsáveis. Como se, em</p><p>síntese, não existissem alternativas possíveis para a pena de prisão e não</p><p>fossem possíveis reformas diferentes das que já foram feitas. Pense-se,</p><p>por exemplo, nas medidas alternativas à prisão, como a prisão domici-</p><p>liar, a proibição ou a permissão de residir em determinados lugares, a</p><p>semi-liberdade, a vigilância especial e similares. O boom penitenciário</p><p>nos Estados Unidos e, ainda que menor, na Europa, ocorreu com sua</p><p>introdução enquanto medidas que se impõem durante a execução penal</p><p>conforme a evolução discricionária das progressões do preso no processo</p><p>de reeducação. Teria sido suficiente, para que estas medidas fossem um</p><p>fator de deflação da pena privativa de liberdade que os legisladores, e</p><p>ainda antes os juristas, as tivessem concebido e definido como penas</p><p>principais em lugar da pena de reclusão, diretamente requeridas pela</p><p>lei pela maioria dos delitos como penas atribuídas no momento da</p><p>produção do direito (momento edittali) e por isto, impostas pelo juiz</p><p>no momento da condenação.</p><p>O que tem impedido esta banal alternativa tem sido somente</p><p>o populismo penal que guia desde muitos anos os legisladores e os</p><p>juízes no endurecimento das penas, que se embasam para isto no</p><p>medo propagado pela mídia. Por outro lado, há também uma atitude</p><p>contemplativa da doutrina penalista, que ignora, e, assim, de fato,</p><p>justifica a degradação do próprio objeto de investigação em nome</p><p>de uma suposta “neutralidade científica” sem caráter valorativo. O</p><p>mesmo vale para a função reeducativa da pena privativa de liberdade,</p><p>tão aclamada como princípio, quanto convertida em seu contrário</p><p>pela superlotação carecerária, pela degradação das condições de vida</p><p>dos presos e por muitas contrarreformas demagógicas adotadas como</p><p>prisões especiais e tratamentos punitivos diferenciados.</p><p>O programa de desencarceramento elaborado por Rivera –</p><p>não fechado, mas aberto às diversas integrações procedentes da</p><p>reflexão teórica das práticas sociais mais avançadas na defesa dos</p><p>direitos dos presos – origina-se sobre dois pressupostos: primei-</p><p>ramente sobre uma séria consideração dos direitos fundamentais</p><p>de todos e, portanto, também dos presos, e, consequentemente,</p><p>o rechaço de suas violações que na prisão infelizmente são regra e</p><p>PREFÁCIO DE LUIGI FERRAJOLI 17</p><p>18 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>não exceção. Em segundo lugar, sobre uma redefinição do projeto</p><p>de reintegração social da pessoa submetida à pena, formulado por</p><p>quase todas as Constituições e compartilhado por toda a doutrina</p><p>penal, e, sem dúvida, irrealizável se a reinserção social segue sendo</p><p>buscada “através da prisão” e não “apesar da prisão”.</p><p>“O problema da prisão”, escreve Iñaki Rivera, “não vai se re-</p><p>solver na prisão, mas em seu exterior, na própria sociedade que cria,</p><p>que produz, que alimenta e que reproduz a prisão”. O objetivo então</p><p>não deve ser uma “prisão melhor”, questão impossível, mas “menos</p><p>prisão”, através de estratégias de clara e real contenção dos ingressos</p><p>e da duração da pena de reclusão. Em uma perspectiva de mais longo</p><p>alcance, projeta uma verdadeira superação da prisão, conjuntamente</p><p>com o desenvolvimento de políticas sociais dirigidas para uma redu-</p><p>ção das causas materiais do desvio punível.</p><p>A estratégia de redução da prisão formulada por Rivera na se-</p><p>gunda parte do livro se articula, portanto, em múltiplas indicações,</p><p>todas possíveis e absolutamente razoáveis. A primeira indicação é de</p><p>uma radical des-penalização, que só pode proceder da revogação de</p><p>todas as penas especiais e através do reforço da reserva de lei mediante</p><p>sua conversão em uma reserva de código, em virtude da qual todas as</p><p>normas sobre delitos e penas deveriam ser formuladas somente pelo</p><p>código penal. A segunda indicação é a de um massivo desencarcera-</p><p>mento, através da substituição da pena privativa de liberdade, para a</p><p>maioria dos delitos, com penas alternativas à prisão como aquelas já</p><p>mencionadas das prisões domiciliares, a semi-liberdade, a prova de</p><p>confiança e similares; por outro lado, por meio da redução massiva</p><p>tanto dos pressupostos quanto da duração do instituto, contrário a</p><p>todas as garantias penais e procedimentais, como é a prisão preventiva.</p><p>A terceira indicação se embasa na expansão das premissas de diferen-</p><p>tes institutos, por um lado já existentes, e, por outro, por introduzir:</p><p>como a suspensão da pena, o cumprimento da pena em centros de</p><p>reinserção social ou em comunidades terapêuticas, os regimes de se-</p><p>mi-liberdade e assemelhados.</p><p>Depois há uma segunda categoría de estratégias que Iñaki</p><p>Rivera recomenda para conseguir a redução da pena de prisão: a libe-</p><p>ração e a substituição da prisão para duas categorias de presos, como</p><p>garantia de outros direitos fundamentais. Antes de tudo, a liberação</p><p>dos presos enfermos. Rivera enumera as numerosas doenças e pato-</p><p>logias de que padecem os presos, não poucas contraídas na prisão,</p><p>sendo esta em si mesma um agravante por sua natureza insalubre</p><p>e patogênica; ademais das doenças, por assim dizer algo comum, a</p><p>despersonalização, o infantilismo, a claustrofobia, as variadas formas</p><p>de depressão e apatia, o abatimento.</p><p>Ou seja, todas essas doenças justificam o desencarceramento por</p><p>duas razões: em primeiro lugar porque normalmente são causadas pela</p><p>condição carcerária e representam, portanto, um dano e um suplício</p><p>que certamente é provocado somente pela privação de liberdade pessoal,</p><p>por isto devem parar. Em segundo lugar, para salvaguardar a saúde dos</p><p>presos, que é um direito fundamental indevidamente afetado pela con-</p><p>dição carcerária, e que, como tal, decide Rivera, só impõe como única</p><p>e necessária garantia, sua liberdade. A outra categoria</p><p>deveriam ter</p><p>a possibilidade efetiva de nomear delegados representantes da</p><p>população privada de liberdade.</p><p>Por fim, vale ressaltar novamente o papel que as comissões re-</p><p>presentativas das pessoas afetadas pelo encarceramento devem poder</p><p>desempenhar na redefinição do Programa.</p><p>11. POLÍTICA DE ATENÇÃO INTEGRAL APÓS A LIBE-</p><p>RAÇÃO DA PRISÃO</p><p>As consequências da permanência na prisão constituem um</p><p>tema estudado e verificado por muitas fontes diferentes. O programa</p><p>aqui apresentado, como já foi dito, visa abordar a reintegração dos</p><p>sujeitos nas condições de menor deterioração possível. Autores como</p><p>Valverde Molina (1997) e Zaffaroni (1986) têm repetidamente in-</p><p>dicado os sinais de deterioração a que se alude, e os itens anteriores</p><p>deste ensaio relataram o mesmo. Portanto, deve ser especialmente</p><p>considerado o momento de saída da prisão.</p><p>e a direção da prisão, e foi usada para fundamentar o poder disciplinar na prisão e, acima de tudo,</p><p>para desvalorizar os direitos fundamentais de pessoas encarceradas. Para um exame a fundo, ver,</p><p>Lasagabaster 1994, Mapelli Caffarena 1993, Rivera Beiras 2008 y 2009.</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 143142 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>Maria Palma Wolff (2016), no trabalho para o desenho de</p><p>uma postulados, princípios e diretrizes para a política de atenção à</p><p>pessoa egressa do sistema prisional brasileiro,90, dá amostras claras dos</p><p>referidos efeitos. A deterioração e, em muitas ocasiões, a quebra dos</p><p>laços sociais e familiares, o distanciamento temporal dos entornos</p><p>prévios que a pessoa presa tinha e frequentava, dos núcleos familiares</p><p>e sociais em geral, a falta de acesso no momento da liberação a serviços</p><p>de atenção à saúde, a falta de trabalho ou de educação constituem uma</p><p>constante dessas experiências pós-penitenciárias. A permanência na</p><p>prisão é um verdadeiro tempo de suspensão do tempo exterior.</p><p>Assim como em seções anteriores, foi feita referência a mo-</p><p>mentos tão importantes, seja para evitar os ingressos penitenciários,</p><p>seja para atender integralmente aqueles que ocorrem; uma política</p><p>de reintegração após a prisão deve dar atenção muito especialmente a</p><p>esse relevante momento que a liberação de uma pessoa presa ocasiona.</p><p>Portanto, deve-se indicar, no momento em que a pessoa seja liberada,</p><p>um verdadeiro programa de atenção integral. Tal programa, para ser</p><p>verdadeiramente integral, deve prever um trabalho conjunto de ins-</p><p>tituições públicas, organizações da sociedade civil, junto aos próprios</p><p>presos e suas famílias. Mas, na verdade, não se pode esperar que esse</p><p>momento ocorra para que o que está sendo indicado seja atendi-</p><p>do. Como Wolff afirma, “todos os presos devem ser considerados</p><p>como ‘pré-egressos’, e devem ter assegurado um programa específico</p><p>de preparação para a liberdade” realizado nos últimos meses do en-</p><p>carceramento (op cit.: 60). Como viu-se na seção anterior, de fato, a</p><p>transformação dos programas penitenciários deve antecipar a prepa-</p><p>ração daquele momento, trabalhando materialmente na promoção e</p><p>no efetivo acesso a recursos, entre outros, de educação, saúde, moradia</p><p>e trabalho.” (Wolff op.cit.: 56).</p><p>A autora citada indica com extrema precisão os “marcadores</p><p>90 Faz-se referência ao trabalho realizado pela referida autora no âmbito da Consultoria Nacio-</p><p>nal Especializada para a produção de subsídios destinados ao fortalecimento da política de</p><p>atenção às pessoas egressas do sistema penitenciário (Departamento Penitenciário Nacional,</p><p>DEPEN, e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, PNUD, Brasília 2016).</p><p>da condição da pessoa que egressa” da prisão (op cit.: 34 e ss.). Cada</p><p>um deles deve dar origem a uma política integral de atenção a eles</p><p>mesmos, que a autora detalha:</p><p>• As dificuldades na mobilidade de muitas pessoas liberadas</p><p>diante do translado para uma cidade diferente de onde</p><p>egressa, e também diante do deslocamento em direção ao</p><p>seu próprio lar.</p><p>• A carência de documentação experimentada não poucas vezes</p><p>pelas pessoas liberadas. Alude-se tanto a documentos de iden-</p><p>tidade, carteiras de trabalho e de acesso a serviços médicos,</p><p>cartões de residência para estrangeiros e similares.</p><p>• A fragilidade dos vínculos familiares ou comunitários, afirma</p><p>a autora citada, constituem o continuum da permanência</p><p>na prisão.</p><p>• A falta de trabalho especialmente experimentado pelas pessoas</p><p>que saem da prisão com o estigma de ex-presidiário.</p><p>• A perda de uma família e, às vezes, de um lar que identificam</p><p>o processo de solidão experimentado pelas pessoas presas,</p><p>especialmente após longos períodos de encarceramento.</p><p>• A carga que supõem os antecedentes criminais e as dificuldades</p><p>na reabilitação que impedem ou dificultam a realização de</p><p>um trabalho e, em geral, uma aceitação social normalizada.</p><p>• Inúmeras dificuldades cognitivas e de incompatibilidade de</p><p>informações causadas pela desorientação sofrida por muitas</p><p>pessoas após a saída da prisão, tanto do ponto de vista escolar</p><p>quanto do acesso aos serviços de saúde, formação profissional</p><p>e serviços sociais em geral.</p><p>• Dificuldades também no acesso à justiça, independentemente</p><p>da situação e condição da pessoa liberada ou que ainda se</p><p>encontra em regime aberto, uma vez que necessitam constan-</p><p>temente de assessoramento e orientação sobre os processos e</p><p>sobre os direitos e deveres no âmbito da justiça penal.</p><p>• Problemas de saúde, que após a liberdade devem continuar</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 145144 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>a ser abordados com o peso de muitas sequelas do período</p><p>de prisão (doenças infectocontagiosas e doenças derivadas</p><p>do consumo de drogas em condições muito precárias). Um</p><p>capítulo separado merece atenção no que diz respeito à saúde</p><p>mental das pessoas liberadas que, como vimos na seção cor-</p><p>respondente a este tópico, arrastam situações de depressão,</p><p>estresse, desorientação, apatia, etc.</p><p>• Vinculação a ambientes próprios do “mundo delitivo”. Assinala</p><p>Wolff, no trabalho comentado, que as histórias de vida de</p><p>muitas pessoas liberadas demonstram não apenas uma pro-</p><p>ximidade tais ambientes, senão que, às vezes, esses são os</p><p>únicos grupos em que, na ausência de uma política integral</p><p>de atenção, o preso liberado encontra um apoio e meio de</p><p>vida que normalmente terminará na reincidência criminal.</p><p>Por tudo o que está sendo visto, é evidente a necessidade de</p><p>promover uma atenção integral a esse delicado momento de extre-</p><p>ma vulnerabilidade. Décadas atrás, Zaffaroni advertia que uma das</p><p>questões mais negligenciadas da legislação penal e penitenciária é</p><p>a relacionada com a assistência pós-penitenciária. O referido autor</p><p>acrescenta que esta orfandade normativa “corresponde a um panora-</p><p>ma fático inquietante definido pela desproteção do ex-apenado diante</p><p>de uma sociedade hostil e um aparato repressivo frequentemente ultra</p><p>reativo a seu respeito que tende a acelerar a produção do assim cha-</p><p>mado desvio secundário” (1986: 234).</p><p>Para a devida articulação de um programa de atenção integral,</p><p>como definido aqui, é preciso o concurso conjunto de vários atores,</p><p>instituições públicas, organizações sociais, presos e familiares. Deve</p><p>também se insistir em um ponto que continua sendo muito esquecido</p><p>e que Wolff também aponta: a necessária descentralização dos serviços</p><p>sociais, especialmente permitindo a atenção municipal aos egressos das</p><p>prisões, como administração mais próxima e menor, a qual seus servi-</p><p>ços sociais devem assumir de uma vez por todas a necessária atenção</p><p>específica das pessoas que retornam às suas cidades.</p><p>A autora afirma claramente: “a democracia será concretamente</p><p>efetivada na vida cotidiana pública quando, na esfera municipal,</p><p>forem construídas maiores possibilidades de transparência e controle</p><p>da gestão das políticas públicas e também de superação da cultura</p><p>centralizadora, permeada de autoritarismo” (op.cit.: 44). Da mesma</p><p>forma, insiste,</p><p>a municipalização das políticas sociais pode permitir o</p><p>desenvolvimento das maiores possibilidades de transparência e con-</p><p>trole da gestão das políticas públicas. Por isso, ela acrescenta que “em</p><p>cada município onde uma unidade prisional está instalada, deveria</p><p>ser implantado um estabelecimento público de atenção aos liberados</p><p>e a seus familiares (...). Esses estabelecimentos devem ser dotados de</p><p>equipes multidisciplinares, para garantir a oferta de assistência social,</p><p>material, psicológica e jurídica”.</p><p>Naturalmente, um programa integral também requer a partici-</p><p>pação ativa da sociedade civil. Portanto, o papel desempenhado pelas</p><p>organizações sociais e pelas comissões de pessoas afetadas referidas neste</p><p>estudo desempenha aquí um papel especial. E isso não deve ser enten-</p><p>dido apenas em um plano puramente assistencialista, mas também pelo</p><p>controle da efetividade da atenção integral que é reivindicada.</p><p>Também um elemento esperançoso nesta questão é dado, a</p><p>nível internacional, pela adoção das novas Regras Mínimas Nelson</p><p>Mandela, já indicadas acima. A regra 90 claramente afirma que o</p><p>compromisso da sociedade não se esgota na liberação das pessoas</p><p>presas, mas continua na atenção imprescindível para aliviar e reduzir</p><p>os prejuízos causados pelo encarceramento.</p><p>12. A TAREFA IMPRESCINDÍVEL DE REGISTRAR, DO-</p><p>CUMENTAR E ALERTAR AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS</p><p>FUNDAMENTAIS. UM “CENÁRIO DE REPRESENTAÇÃO</p><p>DO CONFLITO”</p><p>A tarefa de garantir o respeito – efetivo – dos direitos funda-</p><p>mentais das pessoas presas precisa ser uma preocupação permanente</p><p>que deve ser mantida “em alerta” de maneira constante. Não pode</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 147146 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>existir nenhum processo de transformação radical e de redução do</p><p>emprego da prisão se este importantíssimo ponto não for desenvolvi-</p><p>do e controlado permanentemente. A “luta pelos direitos” (Ferrajoli,</p><p>1990) é um dos pilares fundamentais do garantismo radical e deve</p><p>ser uma luta constante. Por outro lado, isso não significa mais (nem</p><p>menos) do que recuperar um dos instrumentos de luta tradicional</p><p>dos movimentos sociais históricos em sua estratégia de alcançar maior</p><p>participação dos direitos fundamentais. Nessa direção, então, a com-</p><p>preensão segue o que se verá na sequência.</p><p>Antes de continuar, é relevante esclarecer que este tópico está</p><p>ligado a várias arestas que, do ponto de vista histórico, político e epis-</p><p>temológico, é conveniente mencionar e agrupar em cinco argumentos:</p><p>i) Em primeiro lugar, recuperar as tradicionais (e novas) formas</p><p>de luta dos históricos (e também dos chamados “novos”) movi-</p><p>mentos sociais; obriga, mais uma vez, insistir na necessidade de</p><p>manutenção das comissões de afetados, que foram referidas nas</p><p>seções anteriores, a fim de criar e manter uma ampla mesa de</p><p>trabalho e diálogo. Serão eles, então, que terão de permanecer</p><p>especialmente vigilantes para ter capacidade de conhecimento</p><p>e de ação, por ocasião da necessidade de denunciar situações</p><p>que atentem contra os direitos fundamentais dos presos e seus</p><p>entornos familiares e sociais.</p><p>ii) Em segundo lugar, deve-se notar que isso também assume a</p><p>tradição do direito à resistência (à opressão, em suas formulações</p><p>históricas; à desobediência civil, em suas manifestações mais</p><p>modernas, e entendida como ação coletiva, em suas expressões</p><p>sociológicas contemporâneas) 91.</p><p>iii) Em terceiro lugar, o que está sendo indicado também busca</p><p>recuperar e aproveitar o que se conhece, dentro dos princípios</p><p>e práticas inspiradoras do garantismo penal, com a expressão</p><p>referente ao “uso alternativo do direito” (cf. Barcelona 1973)</p><p>com o fim de promover uma jurisprudência alternativa baseada</p><p>91 Sobre a relação entre direito e “cultura de resistência”, especialmente como uma estratégia</p><p>para defender os direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade, refiro-me ao Epí-</p><p>logo de La cuestión carcelaria. Historia, epistemología, derecho y política penitenciaria</p><p>(2006: págs.. 1045 y ss.).</p><p>no respeito máximo pelos direitos fundamentais das pessoas</p><p>privadas de liberdade.</p><p>iv) Em quarto lugar, também é necessário salientar que tal perspec-</p><p>tiva se apoia na chamada “construção social dos direitos humanos”,</p><p>ou seja, naquela tradição que pressupõe que a fundamentação</p><p>dos direitos humanos está nas lutas realizadas pelos sujeitos his-</p><p>tóricos portadores de reclamos. Consequentemente, existe uma</p><p>estreita relação entre as lutas empreendidas pelos movimentos</p><p>sociais e o reconhecimento de maiores parcelas dos direitos fun-</p><p>damentais (ver Treves e Ferrari, 1989).</p><p>v) Finalmente, pode-se concluir afirmando que é absolutamente</p><p>legítimo que surja um direito à resistência (nos presos) que,</p><p>utilizando os canais legais e constitucionais do Estado Social e</p><p>Democrático de Direito e, como foi e ainda será visto, do Direi-</p><p>to Internacional dos direitos humanos, canalize a busca por uma</p><p>efetiva proteção legal de seus direitos fundamentais e promova</p><p>vías reais e eficazes voltadas para essa promoção. É nesse senti-</p><p>do que cabe situar de modo dinâmico os princípios do que foi</p><p>definido como “constitucionalismo social” (Ferrajoli op. Cit.).</p><p>Para efetivar essas premissas, nos últimos anos surgiram algu-</p><p>mas experiências coletivas de trabalho (algumas de caráter nacional,</p><p>outras de caráter internacional) articuladas aos organismos criados</p><p>pelo direito internacional já mencionado (tanto em sua dimensão de</p><p>hard como de soft law). Algumas podem ser citadas.</p><p>Quando se trata do contexto espanhol, vale a pena mencionar</p><p>o trabalho que a Coordinadora para la Prevención y Denuncia de la</p><p>Tortura (www.prevenciontortura.org) vem realizando há doze anos em</p><p>todo o Estado espanhol. Atualmente, essa plataforma (CPDT) agrupa</p><p>mais de quarenta e cinco organizações da sociedade civil, algumas uni-</p><p>versidades e corporações profissionais, entre outras atividades, como</p><p>as de atendimento às denúncias de violência institucional, elaboração</p><p>de relatórios e pesquisas, participação em reuniões internacionais e em</p><p>diversos fóruns, realização de jornadas de estudo e cursos de capacita-</p><p>ção em matéria de torturas e maus-tratos). A plataforma elabora um</p><p>autêntico banco de dados sobre denúncias de tortura nos últimos onze</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 149148 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>anos, cumprindo assim com a tarefa de mostrar e tornar visível o fe-</p><p>nômeno da tortura e da violência institucional no âmbito da privação</p><p>de liberdade. Até agora, conseguiu documentar mais de 7.500 casos de</p><p>denúncias relativas a tal violência. Embora sistematicamente negadas</p><p>pelas autoridades estatais, já se constitui em um fato inevitável, e a</p><p>Coordinadora é, hoje, uma interlocutora confiável de organizações</p><p>internacionais, especialmente o Comitê para a Prevenção da Tortura</p><p>do Conselho da Europa.</p><p>A CPDT atua no âmbito da definição contida no artigo 1º</p><p>da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas</p><p>Cruéis, Desumanos ou Degradantes, ou seja: “o termo ‘tortura’ de-</p><p>signa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos</p><p>ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de</p><p>obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões;</p><p>de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido</p><p>ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa</p><p>ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discrimi-</p><p>nação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são</p><p>infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício</p><p>de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consenti-</p><p>mento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores</p><p>ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções le-</p><p>gítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”</p><p>Também deve-se citar o trabalho realizado na Espanha pela</p><p>Fundación</p><p>Abogacía Española (FAE). Esta Fundação desenvolveu o</p><p>“Guia Prático para a advocacia. Atuação contra a tortura e os maus-</p><p>-tratos, desumanos ou degradantes”. O guia explica e analisa as</p><p>dificuldades que, atualmente, o advogado pode encontrar desde o</p><p>início até o final do processo judicial, bem como as ferramentas que</p><p>podem ser úteis para atuar diante delas. A consideração especial da</p><p>desorientação inicial que as vítimas de violência institucional podem</p><p>sofrer, bem como a necessidade de atendê-las imediatamente, tanto</p><p>do ponto de vista jurídico quanto médico, o papel das administrações</p><p>e do Ministério Público, e, em especial, do Mecanismo Nacional de</p><p>Prevenção da Tortura e os recursos para possível utilização no direito</p><p>nacional e no internacional constituem os pilares do citado guia.</p><p>No contexto internacional, vale destacar o trabalho da Red</p><p>Euro Latino Americana para la Prevención de la Tortura (RELAPT),</p><p>integrada por três pilares fundamentais: as instituições públicas dos</p><p>países que a integram, as organizações independentes de direitos hu-</p><p>manos da sociedade civil e as instituições acadêmicas. Cada uma pode</p><p>(e deve) cumprir alguns mandatos que, orientados conjuntamente,</p><p>podem produzir resultados extremamente positivos e inovadores,</p><p>como pretende-se demonstrar. Sobre isso, é aconselhável conhecer</p><p>um pouco mais sobre as atividades desenvolvidas pela RELAPT.</p><p>Com efeito: a) As instituições públicas nacionais têm man-</p><p>datos legais para lidar com a luta contra a violência institucional</p><p>(para sua prevenção, investigação rigorosa, sanção dos culpados e</p><p>proteção das vítimas, bem como para combater sua impunidade).</p><p>b) As organizações sociais comprometidas com a defesa dos direi-</p><p>tos humanos (que normalmente trabalham com recursos escassos</p><p>e importantes obstáculos em sua tarefa de promoção dos direitos</p><p>humanos nos contextos prisionais) assumem o papel que apenas</p><p>a independência, o compromisso e a constante reivindicação de</p><p>cumprimento da legalidade constituem a razão de ser delas como</p><p>portadoras das reivindicações dos afetados. c) Finalmente, as ins-</p><p>tituições acadêmicas devem cumprir com as suas próprias tarefas,</p><p>tais como capacitar, formar, pesquisar e analisar criticamente o fun-</p><p>cionamento dos sistemas penais nacionais. Estes são os eixos e, ao</p><p>mesmo tempo, a conformação tripartite da RELAPT: instituições</p><p>públicas de monitoramento de centros de privação de liberdade;</p><p>organizações sociais que representam e defendem as vítimas de tal</p><p>violência estatal e universidades que buscam a promoção pedagógi-</p><p>ca, a pesquisa e a construção de novas ferramentas que executem os</p><p>mandatos e princípios do tratado universal das Nações Unidas sobre</p><p>a tortura, de 1984. A RELAPT pretende colocar-se decididamente</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 151150 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>junto ao princípio de proteção das vítimas da violência institucional.</p><p>Tanto a nível nacional como internacional, a CPDT e a</p><p>RELAPT estão alcançando um importante impacto no terreno po-</p><p>lítico através de iniciativas que serão comentadas no final da presente</p><p>investigação.</p><p>Com base nas experiências citadas, o trabalho coletivo e a</p><p>aprendizagem que tudo isso acarreta, a partir do Observatório do</p><p>Sistema Penal e dos Direitos Humanos da Universidade de Barcelona,</p><p>insistimos na necessidade de trabalhar alguns pontos particularmente</p><p>expressivos nessa questão, destacando-se, agora, três:</p><p>i) A necessidade de documentar rigorosamente a violência institu-</p><p>cional. Portanto, a formação, a difusão e o emprego das ferramentas</p><p>do Protocolo de Istambul constituem aquí um ponto decisivo. De</p><p>fato, a utilização desse manual, que nasceu como um guia da vocação</p><p>universal, pretende, em primeiro lugar, contribuir para sua própria</p><p>difusão (pois continua sendo bastante desconhecido pelas agências</p><p>do próprio sistema penal).</p><p>As organizações nacionais e internacionais citadas acima (CPDT e</p><p>RELAPT) já desenvolvem cursos de capacitação específicos sobre</p><p>o Protocolo de Istambul, a fim de lidar com muitos dos seus princi-</p><p>pais aspectos de documentação da tortura. Desde os pressupostos</p><p>jurídicos aos de natureza médica e ética, com o intuito de trabalhar</p><p>em direção à necessária documentação. Porém, com o cuidado de</p><p>não re-traumatizar as vítimas nas entrevistas e nos relatos sobre sua</p><p>experiência dolorosa.</p><p>A necessária adoção do Protocolo de Istambul como uma autêntica</p><p>política pública em materia de proteção dos direitos humanos em</p><p>contextos de privação de liberdade deve promover uma decidida</p><p>transformação na cultura jurídica e médica nesse campo. O papel</p><p>crucial que os operadores do sistema penal devem cumprir (médicos</p><p>forenses, especialmente durante a realização dos laudos periciais com</p><p>os presos, mas também advogados, defensores, juízes e promotores)</p><p>constitui um ponto de atenção permanente na tarefa de documentar</p><p>rigorosamente a existência de tortura, como se tem dito.</p><p>ii) O necessário estabelecimento de Registros de casos de violên-</p><p>cia institucional e de acompanhamento judicial dos mesmos</p><p>que os tornem visíveis, rompendo com a nefasta tradição de ocultar</p><p>tal violência do sistema penal. Diversas iniciativas também mere-</p><p>cem ser citadas aqui. No primeiro caso, a publicação anual (por</p><p>doze anos) do Relatório da Coordinadora para la Prevención y De-</p><p>nuncia de la Tortura, que, como já foi dito, documentou mais de</p><p>7.500 pessoas afetadas por esse problema, bem como 616 casos de</p><p>mortes sob custódia92.</p><p>No âmbito internacional, o Observatório Latino-americano da</p><p>Tortura (OLAT), criado pela RELAPT em 2014, é também uma</p><p>importante fonte de conhecimento, especialmente projetada para</p><p>a América Latina, ainda modesta nessa área, e na necessidade de</p><p>apoio para sua expansão e, acima de tudo, para a sua manutenção</p><p>e atualização constante a fim de continuar documentando essa</p><p>forma de violência</p><p>Só assim, registrando a existência dessas formas de violência institu-</p><p>cional, pode tornar-se efetivo o paradigma anamnético para trabalhar</p><p>com categorias da memória, não só do passado, mas também com a</p><p>memória do presente, para documentar o que está acontecendo hoje</p><p>e evitar que não se esqueça nem se repita no futuro. Esse é o nosso</p><p>dever ético com as vítimas e essa é a nossa obrigação como juristas.</p><p>Além disso, isso significa cumprir com as recomendações dos or-</p><p>ganismos internacionais (em especial, do Relator Especial sobre</p><p>a Tortura, do Comitê contra a Tortura e do Comitê de Direi-</p><p>tos Humanos, todos da ONU), bem como a documentação e as</p><p>audiências temáticas da Comissão Interamericana de Direitos Hu-</p><p>manos (especialmente a Relatoria de pessoas privadas de liberdade)</p><p>e os relatórios do Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura</p><p>(do Conselho da Europa), a necessidade de estabelecer registros</p><p>que visualizem a dimensão dessa forma de violência institucional</p><p>torna-se uma tarefa imprescindível.</p><p>iii) A articulação de um Sistema de Registro, Alerta e Comunica-</p><p>ção da violência institucional que está sendo atualmente projetado</p><p>92 De acordo com os dados contidos na Coordinadora para la Prevención y Denuncia de la</p><p>Tortura (CPDT), de 1º de janeiro de 2001 a 31 de dezembro de 2015, “tivemos evidências</p><p>diretas de 616 mortes nessas circunstâncias e, apesar de estarmos cientes de que muitas delas</p><p>não merecem reprimenda criminal e mesmo que algumas delas respondam a acidentes “inevi-</p><p>táveis”, acreditamos que as outras respondem a negligência, falhas na salvaguarda do direito à</p><p>saúde e integridade física das pessoas sob custódia ou às condições sanitárias e higiênicas da</p><p>mesma, razões que nos levam a perguntar quando e como esta situação terminará” (Informe</p><p>sobre La tortura en el estado español em 2015).</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 153152 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>e já está em funcionamento na Catalunha, sob o nome de SIRE-</p><p>COVI, visa construir um dispositivo</p><p>útil para canalizar e enviar as</p><p>notícias sobre torturas e tratamentos degradantes em âmbitos de</p><p>privação de liberdade que, conhecidas pelo Observatório do Sistema</p><p>Penal e Direitos Humanos da Universidade de Barcelona, e devida-</p><p>mente contrastadas, podem ser encaminhadas para as autoridades</p><p>nacionais e internacionais com competência na matéria.</p><p>Nesse sentido, o SIRECOVI deve ser considerado como um siste-</p><p>ma que pretende ajudar e colaborar com as autoridades nacionais e</p><p>internacionais (e com as organizações sociais) para fortalecer uma</p><p>cultura de respeito aos direitos das pessoas privadas de liberdade e</p><p>contribuir para a proteção das vítimas de violência institucional.</p><p>Esse sistema foi criado a partir do Observatório do Sistema Penal</p><p>e Direitos Humanos da Universidade de Barcelona, e está definido</p><p>nos seguintes objetivos:</p><p>* Fortalecer os esforços institucionais voltados à proteção e reabilitação das</p><p>vítimas de violência institucional.</p><p>* Melhorar a cooperação e a articulação entre organizações de direitos huma-</p><p>nos em relação à prevenção da tortura, aumentando seu potencial.</p><p>* Formular recomendações para a tomada de decisões de políticas públi-</p><p>cas e promover reformas democráticas com base em informação atualizada,</p><p>confiável e sistematizada sobre as situações de risco que geram maior vulne-</p><p>rabilidade em pessoas presas.</p><p>* Construir conhecimento comparado sobre a conceituação e extensão da</p><p>tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos e degradantes.</p><p>O funcionamento efetivo do SIRECOVI se direciona ao de-</p><p>senvolvimento das seguintes ferramentas diferenciadas que, em seu</p><p>conjunto, permitirão:</p><p>• obter um diagnóstico da situação de violência institucional</p><p>no contexto em que são aplicadas,</p><p>• desenvolver um sistema de comunicação com organizações</p><p>nacionais e internacionais de acordo com o mandato e as</p><p>competências de cada uma,</p><p>• cartografar as situações detectadas através de um mapeamento</p><p>gratuito de consulta93.</p><p>Finalmente, junto a tudo que foi assinalado, e em relação à</p><p>importância da luta jurídica, deve-se advertir que a mesma é muitas</p><p>vezes insuficiente para alcançar um efetivo reconhecimento e tutela</p><p>dos direitos fundamentais, neste caso, dos presos. Porém, é preci-</p><p>samente a partir de uma convicção semelhante, isto é, do “caráter</p><p>cético” dessas iniciativas (as quais têm que fugir de toda ingenuidade),</p><p>que elas podem ser úteis para que a luta pelos direitos construa ver-</p><p>dadeiro “cenário de representação” do conflito subjacente a toda essa</p><p>problemática.</p><p>Foi Pavarini quem, com grande clareza, colocou esse ceticis-</p><p>mo como um alerta contra a ingenuidade de reduzir o problema</p><p>prisional a uma questão de índole jurídica (2006). Um “cenário” se-</p><p>melhante pode ser capaz de alcançar vários propósitos que deveriam</p><p>ser “o norte” dessas estratégias: i) divulgar, no interior e no exterior</p><p>da prisão, quantas violações de direitos se constatam; ii) contribuir</p><p>para promover uma dinamização da jurisdição em direção à busca e</p><p>ao aprofundamento de uma autêntica cultura judicial democrática e</p><p>garantista, e não na manutenção de um simulacro de jurisdição, como</p><p>já foi assinalado anteriormente; iii) fortalecer os grupos, as associações</p><p>e os movimentos de apoio aos presos (provocando uma clarificação</p><p>ideológica interna, buscando novos recursos, aprendendo e amadu-</p><p>recendo em seu processo de ação social).</p><p>Por tudo isso, debe-se insistir mais uma vez na necessária</p><p>vigilância e controle que, nesse proceso, devem ser exercidos pelas</p><p>comissões representativas dos afetados, as quais devem ter seus</p><p>canais de comunicação com o exterior sempre nas melhores con-</p><p>dições possíveis para a atuação. Isso se baseia na convicção de que,</p><p>no interior da prisão, as ações empreendidas podem estar fadadas</p><p>ao fracasso se não houver apoio externo (por essa e outras razões já</p><p>93 Para um maior conhecimento dessas ferramentas, ver o artigo publicado no número 10 da</p><p>revista Crítica penal y poder (2016: 123-133) como “Sistema de registro y comunicación de</p><p>la violencia institucional” (SIRECOVI).</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 155154 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>mencionadas, as comissões acima mencionadas devem permanecer</p><p>constituídas). Somente a partir de tais postulados pode-se avançar</p><p>na formação de uma verdadeira “cultura de resistência” no sentido</p><p>em que se pretendeu dar a essa expressão.</p><p>Então, as administrações penitenciárias devem abrir a efetiva</p><p>possibilidade para as organizações da sociedade civil entrarem nas</p><p>prisões e monitorarem a situação de respeito aos direitos fundamentais</p><p>dos presos. O Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura,</p><p>das Nações Unidas, abre uma via adequada para isso, sem pretender</p><p>substituir os chamados Mecanismos Nacionais para a Prevenção da</p><p>Tortura ou outras instituições. Tal autorização refletiria uma autên-</p><p>tica transparência na inspeção de instituições caracterizadas por um</p><p>alto grau de opacidade. Este ponto decisivo merece um tratamento</p><p>separado, o qual é realizado na sequência.</p><p>13. “ABRIR A PRISÃO”, ATRAVESSANDO-A COM O “IN-</p><p>GRESSO” DE OUTRAS INSTITUIÇÕES E SETORES DA</p><p>SOCIEDADE CIVIL</p><p>Já foi dito antes que é necessário fugir de qualquer ideia que</p><p>busque resolver o problema da prisão “na própria prisão”. Sua con-</p><p>sideração complexa, bem como a busca de alternativas, constituem</p><p>situações problemáticas que precisam ser abordadas no espaço social.</p><p>Como Baratta, Pavarini e Bergalli indicaram tantas vezes, devemos</p><p>evitar qualquer pretensão de tornar o problema prisional um problema</p><p>técnico, um problema jurídico. Com efeito, não há pedagogia pior do</p><p>que seguir um caminho semelhante. É a sociedade que cria, mantém e</p><p>reproduz a prisão – e os presos – que temos. Por conseguinte, deve ser</p><p>essa mesma sociedade que deve buscar fórmulas para sua superação.</p><p>Existem inúmeras iniciativas que poderiam ser abordadas com</p><p>o objetivo de “abrir a prisão à sociedade”, e, ao mesmo tempo, “abrir</p><p>a sociedade à prisão”. Trata-se de desenvolver a ideia de atravessar</p><p>a prisão com a entrada de novas instituições e setores sociais. Podem</p><p>ser citadas, apenas como exemplo, algumas das possíveis iniciativas</p><p>conhecidas nos últimos anos e que tentaram, ainda que de maneira</p><p>muito diferente, superar a opacidade sempre característica do universo</p><p>carcerário. Uma iniciativa é o caso da interseção entre universidade e</p><p>prisão; outra é o serviço prestado pelos ámbitos municipais por meio</p><p>da atuação da sociedade civil. Veremos alguns exemplos.</p><p>No que diz respeito a outras instituições públicas e corpora-</p><p>ções profissionais, pode ser especialmente importante, por exemplo,</p><p>conseguir o contato e introdução da universidade na prisão. Há</p><p>também várias experiências que demonstram os resultados posi-</p><p>tivos desta “interseção de instituições”: capacitação da população</p><p>prisional, permitindo a diversificação na divisão do acesso à cultura;</p><p>construção física (com seu significado simbólico) de espaços “livres”</p><p>dentro da prisão, onde pode ser reproduzida a dinâmica universitária</p><p>(binômio professor/estudante-preso) sem a presença de funcionários</p><p>penitenciários; possibilidade de permitir a saída dos presos para a</p><p>presença nas salas de aula das universidades, junto aos outros estu-</p><p>dantes; finalmente, o aproveitamento real do tempo morto carcerário</p><p>para o desenvolvimento de atividades que não devem ser absorvidas</p><p>pela lógica punitivo-premial dos clássicos modelos correcionalistas.</p><p>De fato, existem várias experiências que se desenvolveram nos</p><p>últimos anos nesse sentido. Na América Latina, vale a pena mencionar</p><p>o caso da experiência realizada pela Universidade de Buenos Aires (Ar-</p><p>gentina), que desde a recuperação da democracia chegou a um acordo</p><p>com o Serviço Penitenciário Federal para a implementação de várias</p><p>carreiras universitárias em algumas prisões da cidade de Buenos Aires</p><p>(para conhecer esta experiência, seus problemas, êxitos e limitações,</p><p>podem ser vistos os primeiros trabalhos</p><p>do Centro de Informática</p><p>Aplicada ou do Centro Universitario Devoto 1992, ou de Daro-</p><p>qui 1997, ou de Pegoraro 1996). A consolidação de um projeto</p><p>como esse não foi fácil. Como salientou Daroqui a esse respeito, a</p><p>diferença essencial e provavelmente inconciliável entre as instituições</p><p>universitária e prisional está vinculada ao objetivo e à orientação do</p><p>programa que buscava a introdução da primeira: “garantir aos presos</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 157156 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>o exercício do direito de estudar, construindo um espaço de liberdade</p><p>no interior da prisão, apoiado pelos princípios básicos da universi-</p><p>dade pública que tem entre seus pilares fundamentais a participação</p><p>democrática, o respeito ao dissenso, a igualdade de oportunidades e</p><p>a liberdade de expressão; enquanto o objetivo explícito da política</p><p>penitenciária é considerar a educação como um instrumento de cor-</p><p>reção e moralização. Por um lado, a educação como direito a exercer;</p><p>por outro lado, a educação como ferramenta correccional no quadro</p><p>da governabilidade penitenciária” (2009: 20)94. Nas três décadas de</p><p>funcionamento desses programas, o número de estudantes das peni-</p><p>tenciárias que conseguiu terminar suas carreiras universitárias–não “à</p><p>distância” como em outras experiências mais familiares, mas com “a</p><p>presença física” da Universidade na prisão–já é uma referência nesta</p><p>área pouco conhecida acerca dos efeitos positivos que essa interseção</p><p>institucional pode causar.</p><p>No contexto europeu, pode-se mencionar a articulação em</p><p>Barcelona do projeto “Abrir a prisão”, elaborado por um grupo de</p><p>professores e estudantes universitários da Universidade de Barcelo-</p><p>na, membros das associações Espai de Treball Universitari e Asociación</p><p>contra la Cultura Punitiva y de Exclusión Social, aprovado pela pri-</p><p>meira vez pela Administração Penitenciária da Catalunha para o</p><p>desenvolvimento de uma série de seminários durante o ano aca-</p><p>dêmico de 1999-2000, mas depois interrompida por essa mesma</p><p>Administração, a qual cedeu às pressões negativas de setores liga-</p><p>dos aos funcionários penitenciários, tendo conseguido paralisar o</p><p>projeto. Ou, mais recentemente, a experiência promovida pela Clí-</p><p>nica Jurídica da Universidade Rovira i Virgili de Tarragona (com a</p><p>prisão da mesma província), ou o projeto “dret al Dret” da Facul-</p><p>dade de Direito da Universidade de Barcelona. Este último projeto</p><p>94 O Programa UBA XXII depende institucionalmente da Secretaria Acadêmica da Universidade</p><p>de Buenos Aires e foi formalmente criado em 1991, por meio do Convênio assinado entre a</p><p>Universidade de Buenos Aires e o Ministério da Justiça da Argentina. Mas o “ingresso” da Uni-</p><p>versidade na prisão se materializou em 1985 com as primeiras aulas do Ciclo Básico Comum</p><p>para os primeiros alunos da prisão de Devoto na cidade de Buenos Aires. “Em outras palavras,</p><p>o convênio legitimou uma experiência que vinha ocorrendo há seis anos e que foi consolidada</p><p>pelo impulso e pelo trabalho dos primeiros estudantes e professores” (Daroqui 2009: 2-23).</p><p>contém duas aspirações particularmente importantes: a) de um lado,</p><p>contribuir a uma formação especializada dos alunos; b) de outro,</p><p>cumprir com a função social que, como serviço público, é esperada</p><p>da Universidade.</p><p>Como apontou Mónica Aranda (professora da Universidade</p><p>de Barcelona e uma das promotoras do projeto “Abrir a prisão” e</p><p>da Clínica Jurídica “Dret al dret”), esse projeto teve como objetivo</p><p>elaborar e publicar um Guia de Recursos Sociais e Jurídicos para</p><p>pessoas privadas de liberdade. “Elaborar e publicar o primeiro guia</p><p>catalão em matéria de recursos sociais e jurídicos para as pessoas</p><p>privadas de liberdade constitui, então, uma importantíssima ferra-</p><p>menta para a assistência e defesa de uma infinidade de necessidades</p><p>que a detenção e/ou o encarceramento de qualquer pessoa provoca</p><p>para estas e também para sua família e entornos mais próximos.</p><p>Entre essas necessidades e situações estão aquelas de natureza estrita-</p><p>mente jurídico-penal e penitenciária, tais como: a informação sobre</p><p>os direitos da pessoa presa, a solicitação de advogado (particular ou</p><p>de ofício), o pedido para ser visitado por um médico, a localiza-</p><p>ção em um centro penitenciário, ou de menores, ou de imigrantes</p><p>estrangeiros, as normas de conhecimento desses centros, o regime</p><p>disciplinar dos mesmos, as classificações penitenciárias em níveis, os</p><p>chamados benefícios penitenciários, as diversas formas de acesso aos</p><p>órgãos administrativos e jurisdicionais etc. Mas, além de questões</p><p>jurídicas estritas, a privação de liberdade pode levar a muitos pro-</p><p>blemas diferentes ao que está previsto na confecção desse guia; por</p><p>exemplo, a canalização dessas necessidades (para as administrações</p><p>competentes e as organizações sociais) pode ser compreendida nos</p><p>termos a seguir: problemáticas trabalhistas e previdenciárias (con-</p><p>tratos, demissões, benefícios, etc.), conflitos habitacionais (despejos</p><p>e outros), problemas de transporte (frequentemente causados pelas</p><p>distâncias a recorrer até os centros onde a pessoa está reclusa), ques-</p><p>tões relacionadas com a educação das crianças da família da pessoa</p><p>presa, bolsas escolares, etc. O guia proposto pode, nesse sentido,</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 159158 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>converter-se em uma ferramenta de trabalho, defesa e atenção às</p><p>necessidades não apenas da pessoa privada de liberdade. Também</p><p>será particularmente útil para a sua família, e, também para toda a</p><p>rede de operadores jurídicos e sociais comprometidos com a situa-</p><p>ção: advogados de defesa (particulares e de ofício), trabalhadores</p><p>e assistentes sociais, educadores, juristas criminólogos, psicólogos,</p><p>membros de equipes técnicas diversas etc. Desse modo, a atenção</p><p>à proteção dos direitos civis em seu sentido mais amplo constitui</p><p>a aspiração central dessa primeira produção elaborada a partir da</p><p>Clínica Jurídico Penitenciária citada” (2010)95.</p><p>Do ponto de vista das instituições públicas, especialmente</p><p>aquelas com alcance municipal, deve-se tentar uma aproximação</p><p>à prisão daquelas administrações que estão em contato mais próxi-</p><p>mo com os cidadãos. Por exemplo, os conselhos Municipais e suas</p><p>delegações de bairro. Há experiências que mostraram que, quando</p><p>essas administrações locais se comprometeram a ajudar seus presos,</p><p>foram alcançados resultados notáveis. E não apenas com seus presos,</p><p>mas também com suas famílias: a ajuda dos meios de transporte foi</p><p>canalizada para facilitar as comunicações entre famílias e detidos;</p><p>as ajudas socioeconômicas têm sido promovidas para as famílias</p><p>(entorno social ao qual retornará o preso quando deixar a prisão)</p><p>em questões como moradia, bolsas escolares, roupas, iniciativas</p><p>de fomento do trabalho autônomo; tem sido possível divulgar no</p><p>entorno social dos afetados (o bairro, por exemplo) as reais necessi-</p><p>dades daqueles (fugindo de preconceitos ou conhecimentos vulgares</p><p>e estereotipados), a ponto de, inclusive, arrecadar fundos para ajudar</p><p>as famílias. Em suma, essas possíveis ações são inumeráveis, e ob-</p><p>viamente dependem das circunstâncias; mas todas elas mostram os</p><p>resultados positivos que poderiam ser alcançados se se “aproxima a</p><p>prisão” da sociedade e, esta, por sua vez, adentra naquela.</p><p>95 Sobre esse tipo de guias também cabe lembrar também as elaboradas pela Associação Sa-</p><p>lhaketa do País Vasco e pelo professor Julián Carlos Ríos Martín que, sob a denominação</p><p>“Defenderse de la cárcel”, têm sido importantes instrumentos de (auto) defesa dos direitos</p><p>fundamentos das pessoas presas na Espanha.</p><p>Um exemplo do que está sendo dito é o caso da associação Anti-</p><p>gone, per i diritti e le garanzie nel sistema penale, na Itália. Com relação</p><p>à sua progressiva implementação e monitoramento nas prisões italia-</p><p>nas, Patrizio Gonnella refere que Antigone é uma associação fundada</p><p>nos anos oitenta</p><p>da homônima revista contra a emergência das prisões</p><p>italianas, promovida, entre outros, por Massimo Cacciari96, Stefano</p><p>Rodotà97, Mauro Palma98 e Rossana Rossanda99. Há mais de uma</p><p>década, Antigone promoveu a criação, primeiro no Município de Roma</p><p>e depois em outras cidades e regiões da Itália, a figura do “Garante</p><p>dos direitos das pessoas privadas de liberdade”, demonstrando uma</p><p>ampliação dos poderes municipais para a atenção das pessoas presas</p><p>no respectivo território. Pode-se observar na primeira normativa quais</p><p>foram as principais finalidades e atribuições do “garante...”.</p><p>“(...) Como parte da cidade, Roma estabeleceu o garante dos</p><p>direitos das pessoas privadas de liberdade pessoal, doravante denomi-</p><p>nado “garante”, com as tarefas previstas na presente resolução.</p><p>O prefeito designa, com sua ordem, o garante, dentre as pessoas</p><p>que residem na cidade de Roma, de prestígio indiscutível e renomada</p><p>reputação no campo das ciências jurídicas, dos direitos humanos, ou</p><p>atividades sociais na prevenção e punição, e nos Institutos e centros</p><p>de serviço social. O garante exercerá o cargo por cinco anos. O com-</p><p>promisso poderá ser renovado mais de uma vez.</p><p>(...) O garante promove, com funções de observação e su-</p><p>pervisão indireta, o exercício de direitos e oportunidades para a</p><p>participação na vida civil e o uso de serviços municipais de pessoas</p><p>privadas de liberdade pessoal e domiciliadas, ou residentes, ou com</p><p>96 Massimo Cacciari é um filósofo e político italiano. Entre suas publicações, ele editou em</p><p>2007, por Einaudi, a Antígona de Sófocles.</p><p>97 Stefano Rodotà é um jurista e político italiano. Foi chefe da Autoridad Nacional de Super-</p><p>visión em materia de Proteção de Dados. Sua publicação mais recente é Diritto di Amare</p><p>(Laterza, 2015).</p><p>98 Mauro Palma foi o fundador da Antigone e Presidente do Comitê Europeu para a Prevenção</p><p>da Tortura. Agora ele é o Garante Nacional dos Direitos dos Presos na Itália.</p><p>99 Rossana Rossanda foi fundadora e diretora do diário Il Manifesto. Nos anos 1984 e 1985, a</p><p>revista Antigone era uma inserção do periódico.</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 161160 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>habitação no território da cidade de Roma, com especial referência</p><p>aos direitos fundamentais, trabalho, educação, cultura, proteção da</p><p>saúde, desporte, como competência dentro das funções e faculdades</p><p>do próprio município;</p><p>(...) com relação às possíveis notícias que chegam ao seu co-</p><p>nhecimento, mesmo que informalmente, sobre violações de direitos,</p><p>garantias e prerrogativas das pessoas privadas de liberdade, as infor-</p><p>mações do Garante serão de interesse para as autoridades competentes</p><p>para qualquer informação adicional. (...); em relação às condições</p><p>dos locais de reclusão, com especial atenção ao exercício dos direitos</p><p>reconhecidos”100.</p><p>Além disso, como indica Gonnella, “em particular, desde 1998,</p><p>Antigone está autorizada a entrar em todas as prisões italianas. Cerca de</p><p>60 observadores, divididos por regiões, podem visitar as prisões da Itália</p><p>e informar ao público sobre o que acontece nelas. Todas as informações</p><p>estão incluídas em um relatório publicado anualmente sobre as condi-</p><p>ções de detenção. Nos últimos três anos, também estamos autorizados</p><p>a entrar com câmeras. Há alguns anos, publicamos um webdoc, insi-</p><p>decarceri.com, que conta a vida da prisão através de imagens e histórias</p><p>(superlotação, violência, saúde, trabalho...). Os vídeos tiveram mais de</p><p>um milhão de visualizações” (2016: 1-2). Ainda, Antigone lida com a</p><p>preparação de projetos de lei e a definição de possíveis linhas de propos-</p><p>tas que alterem as leis aprovadas; promove campanhas de informação</p><p>e sensibilização sobre os direitos humanos e a luta contra a tortura,</p><p>inclusive por meio da publicação da revista semestral Antigone101.</p><p>A associação é uma referência nacional do Comitê para a Pre-</p><p>venção da Tortura (CPT) e desenvolve seu trabalho continuamente</p><p>confrontando as realidades de outros países europeus. Em colaboração</p><p>com algumas universidades, ativou serviços de informação legal nas</p><p>100 Para mais informações sobre essa instituição tanto a nível local, regional e nacional, pode-se</p><p>consultar o site da Associação L’Altro Diritto (www.altrodiritto.unifi.it)</p><p>101 A revista Antigone retomou suas publicações em 2006. Atualmente é dirigida por Claudio Sar-</p><p>zotti, professor de sociologia na Universidade de Turim e publicada pelo Editoriale Scientifica.</p><p>prisões. Desde 2007, o Defensor Cívico dos presos está ativo. “Acom-</p><p>panhamos casos de violência em toda a Itália, realizamos ações civis</p><p>em alguns julgamentos criminais, processamos solicitações ao Tribunal</p><p>Europeu de Direitos Humanos em Estrasburgo. Em 2013, também</p><p>graças aos 1500 recursos impetrados, o Tribunal condenou a Itália no</p><p>caso de Torreggiani pelas condições de superlotação que ameaçavam a</p><p>dignidade dos encarcerados. Em 2013, havia 68.000 detidos em prisões</p><p>italianas. Hoje, existem 53.500 graças a uma série de reformas que se</p><p>seguiram após aquele período dramático. Porém, o risco do populismo</p><p>penal está sempre atrás da porta “(Gonnella op cit: 2). Por último, há</p><p>menos de um ano, Antigone se relaciona com o resto das organizações</p><p>não-governamentais italianas que lidam com os direitos dos imigrantes,</p><p>homossexuais, mulheres e crianças, manifestando a convicção de que</p><p>os direitos humanos são interdependentes e indivisíveis. Assim nasceu</p><p>a Coalizão Italiana das Liberdades e dos Direitos Civis.</p><p>Nesse sentido, a sociedade civil, através de organizações de</p><p>defesa dos direitos humanos comprometidas com a problemática</p><p>prisional, deve ser capaz de exercer a tarefa de monitorar as institui-</p><p>ções penitenciárias. As experiências de caráter municipal que foram</p><p>mencionadas deveriam ser especialmente promovidas, dada sua pro-</p><p>ximidade com os vizinhos e, como já foi dito, pela atenção de “seus”</p><p>presos e de “seus” familiares. Ademais, como já mencionado acima,</p><p>as administrações penitenciárias não devem impedir uma demanda</p><p>similar se ela realmente pretende promover uma política de transpa-</p><p>rência no governo da instituição carcerária.</p><p>Com tais exemplos, e muitos outros que poderiam ser relatados,</p><p>pretende-se a interseção institucional e social entre a prisão e a so-</p><p>ciedade. Todas as iniciativas nesse sentido, educacionais, políticas, de</p><p>luta pelos direitos etc., que passam pela “entrada na prisão” de vários</p><p>setores sociais e profissionais, podem contribuir, em última análise,</p><p>para modificar possivelmente a percepção de afastamento e alienação</p><p>com a qual, quase sempre, essa realidade é transmitida.</p><p>SEGUNDA PARTE - DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA 163162 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>14. DIFUSÃO DO UNIVERSO CARCERÁRIO NO CON-</p><p>TEXTO SOCIAL. OPINIÃO PÚBLICA E OPINIÃO (NUN-</p><p>CA) PUBLICADA</p><p>Como último ponto, e voltando agora a certas considerações</p><p>já delineadas, é necessário concluir reafirmando a necessidade de</p><p>entender que a consideração do problema da prisão deve ser per-</p><p>seguida, discutida e construída na sociedade. Para isso, é essencial</p><p>realizar quantas atividades (além de todas as já mencionadas) forem</p><p>necessárias para provocar o efeito de disseminar o universo carcerá-</p><p>rio na sociedade. Este pode ser um meio idôneo para alcançar certas</p><p>metas que devem ser tentadas, se realmente se deseja produzir uma</p><p>transformação radical que advogue pela redução do emprego da</p><p>opção segregativa.</p><p>Dessa forma, é extremamente importante considerar o uso</p><p>dos meios jornalísticos e, em geral, todas as novas tecnologias da</p><p>comunicação que possam provocar o efeito de tornar visível na so-</p><p>ciedade uma quantidade imensa de vivências, sucessos e iniciativas,</p><p>que, normalmente, vivem (também) “encerradas” no isolamento da</p><p>prisão. A sociedade desconhece absolutamente o que acontece no</p><p>seu interior, e, é impressionante, para dar apenas um exemplo, o</p><p>desconhecimento da proibição geral de que os presos</p><p>possam usar</p><p>as atuais tecnologias de comunicação universal que inundam a vida</p><p>contemporânea, mas cuja existência e emprego são geralmente proi-</p><p>bidos para a população prisional. Como já discutido, isso pode ser</p><p>muito útil para comunicar o que está ocorrendo dentro da prisão,</p><p>entretanto, também mais perto da opinião pública, para tentar re-</p><p>duzir a sua imagem de afastamento e alienação e, em suma, para</p><p>provocar uma consciência social relacionada a uma realidade que</p><p>não pode ser ignorada.</p><p>Além disso, a utilização de todos esses meios para difundir o</p><p>universo prisional na sociedade deve tentar contrabalançar o trata-</p><p>mento informativo tradicionalmente praticado em relação à questão</p><p>carcerária, tratamento que, quase sempre, e salvo exceções, só ocorre</p><p>quando é dedicado a um comentário mórbido ou sensacionalista de</p><p>certos eventos.</p><p>Mais uma vez: os afetados devem ser aqueles que têm a pos-</p><p>sibilidade de expor – agora com o uso dos meios de comunicação,</p><p>“para a sociedade”– suas próprias demandas e estratégias de solu-</p><p>ção. Que as suas vozes sejam ouvidas pode constituir um caminho</p><p>válido para a sociedade escutar uma opinião nunca publicada, e sirva</p><p>para modificar atitudes preconceituosas e estereotipadas que, con-</p><p>sequentemente, traduzem uma percepção dos problemas prisionais</p><p>muito distantes da realidade. Se realmente se almeja que a sociedade</p><p>mude suas atitudes em relação a esse problema, isso necessariamente</p><p>exigirá uma (prévia) tarefa de informação real, verdadeira, sobre o</p><p>que acontece em tal parcela da mesma sociedade. Sem informação</p><p>prévia, ninguém pode modificar substancialmente os seus pré-jul-</p><p>gamentos adquiridos.</p><p>Nessa tarefa, finalmente, também fica claro que os mass media</p><p>podem e devem constituir um veículo válido como órgãos de difu-</p><p>são das tarefas sociais, jurídicas e políticas anteriormente indicadas,</p><p>que podem ser empreendidos por todos os atores desse processo de</p><p>transformação. Várias experiências mostram o efeito notável que</p><p>ocorre quando são publicadas notícias referentes aos incidentes</p><p>prisionais que demonstram a irracionalidade de tais sistemas puni-</p><p>tivos. O processo comunicacional que as sociedades contemporâneas</p><p>experimentam e exercem não pode continuar estranho às institui-</p><p>ções penais e às unidades de detenção. “Abrir a prisão”, em síntese,</p><p>também requer dessas estratégias de difusão que provoquem, ao</p><p>mesmo tempo, o efeito de “abrir a sociedade” para a prisão.</p><p>PARA IR CONCLUINDO</p><p>O DESENCARCERAMENTO É POSSÍVEL (ALÉM</p><p>DE IMPRESCINDÍVEL)</p><p>O que foi dito constitui, como foi anunciado, apenas um progra-</p><p>ma de atuação mínimo, aberto e, é claro, sujeito a tantas modificações</p><p>quantas forem necessárias, se houver, verdadeiramente, a vontade de</p><p>enfrentar um processo de transformação radical e reducionista no</p><p>emprego da opção segregatória. Como também foi assinalado, este</p><p>conjunto de princípios partiu fundamentalmente do aproveitamento</p><p>e enumeração de muitas experiências dispersas que nos últimos anos</p><p>foram verificadas, de modo a evitar que, tanto quanto possível, acabe</p><p>constituindo um novo processo de reforma penitenciária traduzido,</p><p>como visto, em uma tradição equivocada, porque sempre acabou por</p><p>melhorar a prisão, contribuindo assim com a sua perpetuidade. O</p><p>objetivo aqui deve ficar claro: não se pode, não faz sentido, “melho-</p><p>rar” uma instituição semelhante: é preciso trabalhar para sua redução</p><p>constante como finalidade política e cultural.</p><p>O que foi explorado nesta pesquisa é, fundamentalmente, as</p><p>possibilidades de uma estratégia político-cultural: aquela que busca</p><p>a conjunção da ação de uma sociedade civil organizada que assume as</p><p>demandas dos portadores de reivindicações, com o escopo de um direito</p><p>internacional dos direitos humanos na busca de pressão em direção ao</p><p>interior dos Estados.</p><p>Durante os dias de finalização desta obra, duas medidas relacio-</p><p>nadas com as ações que foram analisadas nas páginas anteriores foram</p><p>anunciadas. A primeira se refere, no campo nacional, à aprovação pelo</p><p>Parlamento da Catalunha da criação de um “Grupo de Trabalho” que</p><p>PARA IR CONCLUINDO - O DESENCARCERAMENTO é POSSíVEL (ALéM DE IMPRESCINDíVEL) 167166 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>examinará por seis meses (de janeiro a junho de 2017) as condições</p><p>materiais e de vida dos chamados Departaments de Régimen Tancat</p><p>(ou isolamento prisional). Isso aconteceu como resultado da pressão</p><p>exercida pela Coordinadora para la Prevención y Denuncia de la Tortu-</p><p>ra após a apresentação da pesquisa que revelou graves violações dos</p><p>direitos humanos, consequências psicossociais de isolamento, casos</p><p>de maus tratos e suicídios. Propuseram-se a comparecer perante aos</p><p>Deputados da Comissão de Justiça, uma dúzia de especialistas (nacio-</p><p>nais e internacionais), funcionários penitenciários e, pela primeira vez,</p><p>alguns presos e suas famílias para que, todos, prestem conta de seus</p><p>conhecimentos e experiências102. Teremos que esperar pelos resulta-</p><p>dos e pelas conclusões. Tudo o que for realizado será publicado pelo</p><p>Canal Parlament para que a sociedade possa ter acesso aos debates e</p><p>audiências que são realizados.</p><p>A segunda está vinculada ao âmbito internacional no chamado</p><p>sistema americano de proteção dos direitos humanos. A proposta da</p><p>Red Euro Latinoamerica de Prevención de la Tortura (RELAPT) acaba</p><p>de ser aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos</p><p>(CIDH), assegurando uma “Audiência temática” para considerar o</p><p>relatório sobre a Tortura apresentado pela citada rede, a situação de</p><p>impunidade da mesma e a inexistência de registros sobre a violência</p><p>institucional na América Latina. Anunciaram sua participação insti-</p><p>tuições e organizações como a Procuración Penitenciaria de Argentina</p><p>(PPN), a Defensa Pública de Costa Rica (DP), o coletivo Artesana de</p><p>Guatemala, o Centro por la Justicia y el Derecho Internacional (CEJIL),</p><p>e os co-diretores da própria RELAPT. Da mesma forma, teremos</p><p>que esperar para ver os resultados dessa iniciativa, que também pode</p><p>102 Foram aceitos para comparecer perante os deputados, Juan Méndez, último Relator sobre a</p><p>tortura da ONU; Mauro Palma, como ex-presidente do Comitê para a Prevenção da Tortura do</p><p>Conselho da Europa; Julián Carlos Ríos Martín, Gemma Calvet, Lluís Domingo, Andrés García</p><p>Berrio e Iñaki Rivera Beiras, como juristas especialistas em direitos humanos; Pau Pérez, como</p><p>especialista no âmbito da saúde mental e afetações psicossociais da violência institucional, dois</p><p>presos em isolamento penitenciário, dois familiares de outros presos também sujeitos a tal regi-</p><p>me; Rafael Ribó como Sindic de Greuges de Cataluña; Olga Casado, como médica especialista</p><p>no Protocolo de Istambul e integrante da equipe consultiva do Mecanismo Catalão para a Pre-</p><p>venção da Tortura; Remei Bona, ex-juíza de Vigilância Penitenciária de Barcelona.</p><p>ser consultada através dos canais de retransmissão à disposição da</p><p>CIDH pela internet103.</p><p>Essas breves menções, juntamente com o amplo relato apre-</p><p>sentado no epílogo deste trabalho, constituem exemplos recentes das</p><p>possibilidades de transformação que podem ter no campo da luta</p><p>pelos direitos no âmbito da privação da liberdade. Evidentemente, elas</p><p>também destacarão os limites e as deficiências das mesmas em uma</p><p>direção, como já foi dito, de aprendizado constante nessa matéria.</p><p>Esta obra tem como objetivo apontar a existência de um cami-</p><p>nho possível – e acredito, além disso, imprescindível – na produção</p><p>de políticas diferentes diante da cultura de emergência e da excep-</p><p>cionalidade político-criminal que estamos presenciando. Mais de</p><p>uma centena de propostas, recomendações e alternativas têm sido</p><p>apontadas para uma política pública orientada em uma perspectiva</p><p>desencarceradora. Recomendações internacionais de organizações e</p><p>instituições; Sentenças de Tribunais internacionais; Conclusões de</p><p>inúmeros projetos de pesquisa e Manifestos de reconhecidas platafor-</p><p>mas de entidades de direitos humanos, representam</p><p>hoje um corpus</p><p>de trabalho de valor incalculável. E, ademais, tudo isso foi apresenta-</p><p>do em assuntos muito específicos para: a criação de unidades para a</p><p>implementação de recomendações internacionais, a constituição de</p><p>mesas de trabalho e diálogo com os afetados, para outra consideração</p><p>em matéria de direito à saúde, isolamento penitenciário, mulheres</p><p>presas (e com filhos dependentes), egressos, superlotação prisional,</p><p>103 Por ocasião de sua última reunião de trabalho na Costa Rica, em fevereiro de 2017, a RE-</p><p>LAPT apresentou seu primeiro relatório sobre a situação da tortura e da violência institucional</p><p>na América Latina, construindo um diagnóstico regional sobre o assunto, e que pretende ser</p><p>apresentado no âmbito da audiência temática, como parte de uma primeira oportunidade de</p><p>acesso à Ilustre Comissão. A Audiência temática tem como objetivo apresentar o diagnósti-</p><p>co da RELAPT para, desta forma, tornar visíveis a sistematicidade das práticas de tortura e</p><p>violência institucional contra as pessoas privadas de liberdade, e a ausência de investigações</p><p>eficazes para garantir a proteção das vítimas. Da mesma forma, pretende-se encaminhar para</p><p>a Ilustre Comissão algumas medidas que serviriam para combater esta situação na América</p><p>Latina, a fim de que ela possa instar os Estados a cumpri-las e, assim, garantir e proteger os</p><p>direitos das pessoas privadas de liberdade. O objetivo é mostrar que, embora tenham sido</p><p>criados registros para sistematizar informações sobre casos específicos de tortura e violência</p><p>institucional, os mesmos não incluem todos os casos que ocorrem, isso porque existe um</p><p>amplo sub-registro, somando-se aos obstáculos impostos para acessar aos reais mecanismos</p><p>de queixas e denúncias por parte dos presos.</p><p>PARA IR CONCLUINDO - O DESENCARCERAMENTO é POSSíVEL (ALéM DE IMPRESCINDíVEL) 169168 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>medidas alternativas de cumprimento... e muitas outras.</p><p>Às vezes, não somos conscientes da barbárie político criminal</p><p>que o cenário internacional coloca a cada dia em evidência com uma</p><p>vertiginosidade impossível de assimilar. As medidas de intolerância,</p><p>de cortes drásticos de liberdades e, em geral, o uso do sistema penal</p><p>que recorre a institutos como a deportação e a contenção de mi-</p><p>lhões de seres humanos, o uso renovado do deslocamento, a tortura,</p><p>a construção de muros e alambrados diversos, desenha hoje (outro)</p><p>universo concentracional que destrói o imperativo categórico negativo</p><p>que Adorno formulou após a Segunda Guerra Mundial. É urgente</p><p>trabalhar o máximo possível na direção oposta. Aquela “organização</p><p>do pessimismo”, da qual Walter Benjamin deu conta ao anunciar o</p><p>fogo que se aproximava, assume hoje uma nova e renovada dimensão,</p><p>porque também, atualmente, “ficam posições a defender”.</p><p>Afirmei na apresentação deste trabalho que a mesma se des-</p><p>tinava a ser colocada nas dobras da dialética entre garantismo e</p><p>abolicionismo no particular universo carcerário, como paradigmas</p><p>contra o panpenalismo que invade a cena contemporânea. No diálogo</p><p>entre os dois modelos, apostou-se aqui por um “garantismo radical”,</p><p>no sentido de levar a sério os direitos fundamentais das pessoas privadas</p><p>de liberdade e, a partir disso, e, aprendendo com tantas iniciativas</p><p>já apontadas, traçar um programa de desencarceramento constante.</p><p>Apesar de tanto que se tem escrito sobre os modelos mencio-</p><p>nados, essa dialética não distinguiu suficientemente, salvo alguns</p><p>trabalhos, algumas dimensões de cada um deles. Por exemplo, a di-</p><p>mensão garantista deve ser clara na articulação de garantias no campo</p><p>processual penal daquelas que são específicas no âmbito da execução</p><p>penal. Tampouco no caso do abolicionismo, foi feita uma distinção</p><p>clara entre a abolição do sistema penal, ou a abolição das penas como</p><p>um todo, ou a abolição da prisão, empregando-se muitas vezes de</p><p>modo impreciso o termo referido, sem mais concretizações.</p><p>Há muitos anos, com Roberto Bergalli, chamamos a atenção</p><p>para isso na obra dedicada precisamente a Louk Hulsman, ¿qué queda</p><p>de los abolicionismos? Do ponto de vista do exclusivo respeito aos</p><p>direitos humanos, a instituição carcerária não é admissível se formos</p><p>considera seriamente tais direitos. No entanto, e indo agora até a</p><p>base da dialética indicada, muito poucas vezes nos atrevemos a for-</p><p>mular certas perguntas das quais devemos reconhecer que não temos</p><p>respostas simples. Por exemplo, a partir de um olhar abolicionista</p><p>(inclusive da prisão), como não se perguntar sobre de qual substância</p><p>se alimenta nossa própria indignação diante da constatação da facili-</p><p>dade em contornar a prisão daqueles que cometeram os mais graves</p><p>danos sociais a partir do poder, do Estado e dos grupos econômicos</p><p>financeiros (nos casos de state corporate crimes), ou a partir de uma</p><p>posição patriarcal (nos casos de violência machista) ou a partir do</p><p>próprio terrorismo de Estado (tanto em épocas ditatoriais quanto de-</p><p>mocráticos)? Podemos/devemos renunciar ao emprego da segregação</p><p>punitiva em tais casos ou a mesma poderia chegar a operar como uma</p><p>espécie de garantia e ameaça para o cumprimento da devolução do</p><p>que saquearam da assimetria representada por tais posições de poder?</p><p>É claro que não há respostas simples para tais questões, e, é por isso</p><p>que o diálogo dialético, anteriormente levantado, ainda precisa de</p><p>muito mais desenvolvimento.</p><p>Entretanto, é urgente, e imperativo, produzir um esvaziamento</p><p>daqueles contentores de miséria, doenças, pobreza e exclusão, que</p><p>são a demonstração clara da acumulação selvagem de um sistema de-</p><p>senfreado e que, salvo certos estudos, não mereceu a devida atenção.</p><p>Porque depois de tantas coisas serem ditas, será possível recordar a</p><p>prisão que – de verdade – temos diante de nós, a qual Bergalli disse</p><p>com toda a clareza, esta é a prisão que temos, mas que não queremos! Por</p><p>isso, o trabalho e a necessidade de redução constante e esvaziamento</p><p>sustentado dos institutos penais, através de programas e ações concre-</p><p>tas, devem hoje constituir o caminho sempre inacabado e inacabável</p><p>(unfinished, como sempre mostrou Mathiesen).</p><p>Estou plenamente consciente de que este programa pode</p><p>170 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>receber muitas objeções, de natureza muito variada, e espero que as</p><p>mesmas, pelo menos, reflitam que o problema da prisão se coloca</p><p>em debate. Com este trabalho, pretendeu-se projetar uma verdadeira</p><p>estratégia alternativa que aproveite as demandas das pessoas afetadas</p><p>e implique progressivamente uma redução gradual no emprego da</p><p>opção segregativa. Uma nova imaginação deve ser exigida para al-</p><p>cançar uma autêntica construção de caminhos emancipatórios que</p><p>devem ser percorridos pelos afetados por um problema social como</p><p>o prisional. Até que se entenda que a prisão como instituição cons-</p><p>titui, em si mesma, um problema, não se avançará nessa direção. E</p><p>reitero que, quando uso a palavra “afetados” pela prisão, estou me</p><p>referindo a vários setores sociais e profissionais (os presos, suas famí-</p><p>lias, os trabalhadores penitenciários, os setores sociais e profissionais</p><p>convocados por aquele sistema e, em outra ordem, a sociedade como</p><p>um todo), uma vez que o diálogo e o trabalho conjunto entre esses</p><p>atores serão necessários.</p><p>Retomar as iniciativas empreendidas durante anos, pretende,</p><p>em suma, recuperar aquela via cultural e política que alguma vez</p><p>entendeu que a sociedade poderá e terá que “se libertar da necessida-</p><p>de da prisão” (ver Mauro Palma, 2001 e 2002). A este semelhante</p><p>objetivo, o presente trabalho tentou, modestamente, contribuir. A</p><p>experiência italiana que é apresentada na sequência, como epílogo</p><p>a este trabalho, em boa forma explica a existência de um caminho</p><p>possível, entre outros, o qual convergiu a ação de movimentos sociais</p><p>comprometidos com a situação carcerária no ámbito de atuação do</p><p>direito internacional, de modo que ambas as dimensões penetrem</p><p>no campo interno. As possibilidades que o chamado litígio estratégico</p><p>pode abrir podem resultar insuspeitas quando acompanhadas por uma</p><p>batalha político-cultural.</p><p>EPÍLOGO</p><p>O CASO ITALIANO A PARTIR DE UMA</p><p>SENTENÇA PILOTO</p><p>Mauro Palma104</p><p>Como Epílogo à obra que aqui apresentou o colega Iñaki</p><p>Rivera Beiras, a qual abordou tantos problemas estruturais da</p><p>prisão a partir da ótica dos afetados por essa instituição, será exposto</p><p>a seguir a experiência de desencarceramento desenvolvida na Itália</p><p>nos últimos três anos.</p><p>Tal experiência evidencia os resultados que foram produzi-</p><p>dos pela vinculação do trabalho de diversos setores comprometidos</p><p>com a situação da privação de liberdade, quando estes começaram a</p><p>operar claramente a partir de um âmbito internacional, pressionando</p><p>o Estado italiano para o cumprimento da legalidade e das recomen-</p><p>dações internacionais.</p><p>A BOFETADA: UMA SENTENÇA DESONROSA</p><p>A sentença de 16 de julho de 2009, com a qual o Tribunal Eu-</p><p>ropeu de Dirietos Humanos estabelecia que a situação de superlotação</p><p>durante a detenção do senhor Izet Sulejmanoviç constituía uma vio-</p><p>lação do artigo 3º do Convênio Europeu de Direitos Humanos e das</p><p>liberdades fundamentais, que proíbe ademais da tortura, os tratamentos</p><p>e as penas inumanas e degradantes, não havia impressionado muito</p><p>a opinião pública e tampouco a administração da justiça. Por conse-</p><p>guinte, o Tribunal condenou a Itália a indenizá-lo a uma cifra mínima</p><p>de 1.000 euros105, ainda pouca coisa para chamar a atenção da política</p><p>104 Tradução para o castelhano realizada por Rachele Stroppa, revisada por Iñaki Rivera Beiras.</p><p>105 TEDHm seção II, sentença de 16 de julho de 2009. Caso Sulejmanoviç c Italia (22635/03)</p><p>EPíLOGO - O CASO ITALIANO A PARTIR DE UMA SENTENÇA PILOTO 173172 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>sobre o tema. Sem dúvida a sentença continha um princípio geral,</p><p>porque – afirmava o Tribunal – a conotação de “tratamento inumano”</p><p>configurava a execução da pena do demandante nas condições onde</p><p>essa tinha de fato se concretizado em uma cela abarrotada na qual cada</p><p>recluso dispunha de um espaço vital inferior a três metros quadrados:</p><p>limite mínimo, segundo o qual não tem sentido considerar outros ele-</p><p>mentos que possam atenuar a difícil situação, como o número de horas</p><p>fora da cela, luz do entorno, atividades oferecidas e outros.</p><p>O Tribunal, apesar de seu critério casuístico de não utilizar</p><p>parâmetros automáticos para cada situação, havia definido um limite</p><p>segundo o qual não podia continuar; se a situação tivesse se perpe-</p><p>tuado durante um número significativo de dias, isto levaria a uma</p><p>condenação. Então, as autoridades responsáveis em diferentes níveis</p><p>pela execução da pena privativa de liberdade, diante de tudo, deveriam</p><p>ter estabelecido qual era a situação, sendo perfeitamente conscientes</p><p>da superlotação das celas de muitos centros penitenciários, e que cada</p><p>pessoa passava muitos dias e um grande número de horas dentro delas.</p><p>Porém esta atenção não foi despertada. Nem tão pouco foi re-</p><p>clamada pelo fato de que uma sentença de violação do artigo 3º do</p><p>Convênio é “infamante” para o Estado que a recebe, por ser este artigo</p><p>um dos poucos – há quatro somente – que impõem uma proibição</p><p>absoluta e um conseguinte direito absoluto a não sofrer o que proíbe,</p><p>não suscetível de suspensão em qualquer circunstância, tampouco em</p><p>situações de emergência ou de alarme. Assim, sua violação se ajusta</p><p>diretamente à capacidade do Estado de dar efetividade e concretização</p><p>às declarações e aos princípios que fundamentam sua base democrática.</p><p>De fato, a partir do funcionamento do Tribunal Europeu de Direi-</p><p>tos Humanos (aqui indicado como TEDH) e até 2008, a Itália quase</p><p>nunca106 havia sido condenada por violação desse artigo, ainda que</p><p>106 Somente em uma ocasião a Itália esteve perto de uma condenação pela violação do artigo 3º</p><p>do Convênio – e isto justifica o “quase” – porque havia sido condenada por não ter investigado</p><p>adequadamente uma denúncia de maus trataos, ainda que não tenha sido condenada porque</p><p>o caso não se esclareceu totalmente. Tratava-se da sentença do caso Labita c. Itália , com</p><p>sentença de 6 de abril de 2000 (26772/95).</p><p>houvesse recebido várias condenações por outras violações107. Seria es-</p><p>perado então, no mínimo, alguns comentários por parte do mundo da</p><p>cultura jurídica. Porém, tudo isto não ocorreu. O número de presos e</p><p>das relativas vagas disponíveis se distanciaram notavelmente e, apesar</p><p>da diminuição de delitos, constatou-se um número cada vez maior de</p><p>presos, sendo que tudo estava fora da percepção da sociedade. De forma</p><p>progressiva se alcançou a cifra de 67.000 presos (durante o período de</p><p>luta armada era em torno de 48.000 pessoas) e somente 16.000 pessoas</p><p>tinham podido cumprir parte das penas com uma medida alternativa,</p><p>sendo que existiam cerca de 40.000 vagas.</p><p>Sem dúvida, este processo de bulimia penal foi, e segue sendo,</p><p>o resultado de uma miopia política que sempre esteve orientada para</p><p>a frenética busca de consenso por parte da sociedade, que, insegu-</p><p>ra a nível social, projeta seus medos sobre potenciais agressores e</p><p>pede mais penas, mais cárcere, encerrando suas contradições detrás</p><p>de uma parede intransponível. O resultado concreto é a drástica</p><p>redução de direitos até a exclusão social dos indivíduos mais proble-</p><p>máticos ou percebidos como perturbadores; seu resultado cultural</p><p>é a afirmação de uma lógica binária tipo “amigo/inimigo” como</p><p>analgésico para não ver os problemas complexos que requereriam</p><p>enfoques multidisciplinares. Seu resultado concreto no âmbito penal</p><p>é a mudança da função mesma do direito penal, o qual passa a ser</p><p>uma ferramenta de intervenção subsidiária destinada a recosturar,</p><p>ainda que mediante castigo – a dilaceração social produzida pela</p><p>prática de um delito –, convertendo-se em uma ferramenta de con-</p><p>trole territorial que contempla a expulsão progressiva do contexto</p><p>social. E o faz com grandes números, debaixo de um aparente acordo</p><p>social: com razão se pode usar a expressão “populismo penal” para</p><p>descrever o fenômeno que existe também em outros países europeus.</p><p>E não foi até a sentença ditada quatro anos depois com o caso</p><p>107 Depois de 2008 a Itália foi condenada várias vezes pela violação do artigo 3º do Convênio,</p><p>não só pelas condições de reclusão, mas também pelo comportamento da polícia, com parti-</p><p>cular relação com os fatos ocorridos em Gênova na ocasião do summit G8, e também pelas</p><p>devoluções a outros países sem as garantias efetivas.</p><p>EPíLOGO - O CASO ITALIANO A PARTIR DE UMA SENTENÇA PILOTO 175174 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>Torreggiani e altri contra Itália108, quando chamou a atenção. O caso</p><p>era sobre sete presos, três da prisão de Busto Arsizio e quatro do</p><p>centro penitenciário de Piacenza, cada um privado de liberdade por</p><p>longos períodos em celas cujo espaço vital era inferior a três metros</p><p>quadrados. O tribunal declarou a violação do artigo 3º e condenou</p><p>a Itália a indenizar os demandantes pelo tratamento sofrido, com</p><p>cifras que juntas alcançaram 90.000 euros.</p><p>Entretanto, não foi somente essa cifra que despertou a atenção</p><p>sobre o assunto. De fato, a sentença havia sido emitida seguindo um</p><p>peculiar procedimento que a identifica como uma sentença “piloto”.</p><p>É uma das possibilidades contempladas no regulamento do TEDH</p><p>quando o Tribunal se depara com um número muito alto de demandas</p><p>do mesmo tipo109. De fato, é sobretudo alto o número que indica que</p><p>não se trata de uma situação contingente, relativa somente ao caso evi-</p><p>denciado pelo demandante, senão que se trata de uma falha estrutural</p><p>que depende do próprio sistema. Nestes casos, o Tribunal propõe uma</p><p>sentença “discursiva” aonde indica as soluções que se deve adotar, e, de</p><p>certo modo, guia o Estado para sair da situação de falta sistemática, da</p><p>qual muitas demandas são indicativas. Nestes casos, o Tribunal concede</p><p>um</p><p>tempo ao Estado para seguir o caminho indicado e para resolver</p><p>a situação, pedindo um “plano de ação” sobre as medidas que pensa</p><p>adotar e, durante este período, suspende a análise de casos pendentes,</p><p>prometendo examiná-los ao final do período concedido, baseando-se</p><p>na idoneidade do plano de ação e em sua concreta execução. Quando se</p><p>segue esta via, é requerido o consentimento prévio do Estado110, sendo</p><p>108 Sentença de 8 de janeiro de 2013. Caso Torreggiani e altri c. Italia (43519/09. 46882/09m</p><p>55400/09 r outros). A sentença passou a ser definitiva, depois da declaração de inadmissibili-</p><p>dade do recurso para a Grande Sala proposto pelo Estado Italiano, em 27 de maio de 2013.</p><p>109 A sentença “piloto” está prevista pelo artigo 61 do Regimento do TEDH, no texto em vigor</p><p>desde 1º de abril de 2011. De acordo com esse artigo, o Tribunal pode iniciar um julgamento</p><p>“piloto”quando os fatos que emergem pelo recurso sugerirem que o Estado esteja diante de um</p><p>problema estrutural ou sistemático ou a disfuncionalidade que possa determinar outros recur-</p><p>sos similares. O procedimento “piloto” pode ser decidido pelo Tribunal ou pode ser requerido</p><p>por uma ou ambas as partes, ainda que sempre se deve escutar a opinião das partes antes do</p><p>começo do mesmo procedimento.</p><p>110 Em 5 de junho de 2012, o Tribunal informou às partes que considerava oportuno aplicar o</p><p>procedimento “sentença piloto”. Esta informação se deu na aplicação do artigo 46/1 do Con-</p><p>vênio. O governo e os demandantes depositaram as opservações escritas sobre a oportunidade</p><p>concedido seis meses para apresentação do plano que pensa levar a cabo.</p><p>No momento da sentença Torreggiani e altri c. Italia, o Tribunal</p><p>tinha quase 4.000 casos sobre o mesmo problema e também muitos</p><p>outros eram previstos graças à presença ativa, positiva e de assessora-</p><p>mento jurídico de proteção de direitos humanos de muitas associações</p><p>que trabalham com a questão penitenciária. O cálculo do fator mul-</p><p>tiplicativo que levava a predizer o risco de indenizações milionárias</p><p>era fácil; não tanto em relação aos casos já apresentados ao Tribunal,</p><p>senão aos que supostamente seriam propostos se não se eliminassem</p><p>as causas que haviam determinado aquela situação.</p><p>Por outra parte, na sentença, o TEDH proporciona indicações</p><p>bastante detalhadas sobre o que se deve fazer. Antes de tudo, lembra</p><p>algumas Recomendações do Conselho de Europa que constituem o</p><p>eixo do enfoque do Conselho no tema das penas e da execução de</p><p>sentenças; em particular, a Recomendação de 1999 sobre as estraté-</p><p>gias para abordar a superlotação na prisão111 e os aparatos relativos às</p><p>“Medidas aplicativas anteriores ao juízo penal”, enfocadas sobretudo</p><p>na redução do recurso à prisão preventiva e na introdução de medidas</p><p>de prevenção para evitar a ação penal (Medidas a serem aplicadas para</p><p>além do procedimento penal). Logo, cita as Regras Penitenciárias</p><p>Europeias”112 e os estandartes do Comitê para a Prevenção de Tortura</p><p>e Tratamentos Inumanos ou Degradantes (CPT), especialmente o</p><p>segundo e o sétimo Relatório Geral anual do Comitê113.</p><p>O Tribunal reitera também a necessidade de definir um siste-</p><p>ma interno de soluções para evitar os recursos ao Tribunal como se</p><p>fossem uma espécie de substituto à inadequação das ferramentas do</p><p>de aplicar este tipo de procedimento. A Itália, ainda que assinalando os esforços feitos para</p><p>diminuir a distância entre a capacidade de recepção e os comparecimentos, não se opôs à</p><p>aplicação da “sentença piloto” . Igualmente fizeram os demandantes, com exceção de um.</p><p>111 Recomendação R (99) 22 sobre a superpopulação carcerária. No ano de 2015 foi instituído um</p><p>grupo de trabalho para elaborar um Livro Branco sobre as estratégias para uma efetiva imple-</p><p>mentação desta Recomendação, depois de dezessete anos de sua aprovação. O Livro Branco foi</p><p>aprovado pelo Comite de Ministros do Conselho da Europa em 12 de outubro de 2016.</p><p>112 Recomendação do Comitê de Minstros do Conselho da Europa REC (2006)2.</p><p>113 As relações anuais do CPT podem ser consultadas na seção “documentos” na página do Co-</p><p>mitê: www.cpt.coe. Int</p><p>EPíLOGO - O CASO ITALIANO A PARTIR DE UMA SENTENÇA PILOTO 177176 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>direito interno. Cada Estado tem que adotar um sistema de soluções e</p><p>remédios, tanto preventivos como compensatórios, que possa intervir</p><p>antes, ou seja, quando o risco de violação estiver concretizando, e,</p><p>também, depois, quando quem sofreu a violação deve ser indenizado,</p><p>a título de compensação pelo ocorrido. De fato, lê-se na sentença que</p><p>“no que se refere aos recursos internos devem ser tomadas providên-</p><p>cias para resolver o problema sistemático, reconhecido no presente</p><p>caso; o Tribunal recorda que, no âmbito das condições de encarce-</p><p>ramento, os remédios “preventivos” e aqueles tipo “compensatórios”</p><p>devem coexistir de uma maneira complementar. Assim que, quando a</p><p>pessoa estiver presa em condições contrárias ao artigo 3º do Convênio,</p><p>a melhor solução é a interrupção imediata da violação do direito de</p><p>não sofrer tratamentos inumanos e degradantes. Ademais, cada pessoa</p><p>que tenha sofrido uma reclusão que ofenda a sua dignidade deve ter</p><p>possibilidade de obter uma reparação pela violência sofrida”.</p><p>A questão se coloca na indicação da Corte Constitucional ita-</p><p>liana para a “jurisdicionalização” do instituto do reclamo114, quando se</p><p>trata de salvaguardar os direitos e não os simples interesses legítimos.</p><p>Obviamente, não é uma tarefa do Tribunal indicar como modificar os</p><p>recursos existentes para que sejam realmente efetivos; corresponde ao</p><p>Estado, sob o controle do Comitê de Ministros, garantir que o recurso</p><p>ou os recursos implementados respeitem, na teoria e na prática, as ne-</p><p>cessidades do Convênio e que estes assegurem realmente uma efetiva</p><p>reparação das violações produzidas pela superlotação prisional na Itália.</p><p>Então, ademais de proporcionar orientações sobre como di-</p><p>minuir a pressão determinada pela elevada densidade de reclusão,</p><p>através de medidas penais e penitenciárias, o Tribunal indica o cami-</p><p>nho – daqui vem a sentença piloto – para conseguir uma configuração</p><p>diferente da incidência do sistema penal e para construir um sistema</p><p>interno de intervenção preventiva e compensatória que interrompa</p><p>as incidências mais graves e críticas. E acrescenta: “enquanto se espera</p><p>que as autoridades internas adotem as medidas necessárias a nível</p><p>114 Corte Constitucional n. 26 de 1999.</p><p>nacional, o exame das demandas não comunicadas, que tenham como</p><p>objeto único a superlotação carcerária, terão o prazo de um ano, data</p><p>a partir da qual a presente sentença será definitiva”.</p><p>O ponto de partida para modificar, com urgência, a defini-</p><p>ção de medidas de redução da reclusão, ainda que assegurando ao</p><p>mesmo tempo e de uma maneira escrupulosa a segurança, e sua</p><p>percepção, definiu-se nestes termos. E não apenas isto: por fim, a</p><p>percepção da gravidade da situação chegou aos lugares da política:</p><p>é grave a comprovada falta de proteção da dignidade dos presos; é</p><p>grave o risco de ter que pagar quantias significativas a pessoas presas</p><p>como consequência de não ter sido capaz de investir cifras, prova-</p><p>velmente inferiores, para construir um sistema penal democrático e</p><p>respeitoso; é grave a tendência adotada pelo sistema penal nos anos</p><p>imediatamente anteriores à sentença e deve ser corrigida decidida-</p><p>mente; é grave a distância que separa a orientação dos princípios</p><p>e das normas que governam o sistema de execução penal, com a</p><p>realidade de sua atuação concreta; é grave que uma situação que</p><p>anos antes havia manifestado os primeiros sinais de crise no caso</p><p>Sulejmanovič contra Italia, tenha se degenerado até uma situação</p><p>crítica e estrutural.</p><p>Este aspecto está evidenciado por uma coincidência: a Presiden-</p><p>ta115 da seção do Tribunal que emitiu por unanimidade a sentença do</p><p>caso Torreggiani e altri havia anteriormente expressado, no ano de 2009,</p><p>uma opinião dissidente com respeito à condenação</p><p>de presos para a</p><p>qual se justifica a liberação e talvez fosse necessária a prisão domiciliar</p><p>é das mulheres grávidas ou com filhos pequenos: para proteger, outra</p><p>vez, o direito à saúde, que neste caso se trata mais da saúde dos filhos,</p><p>obviamente inocentes. Ou seja, de um direito cuja garantia não pode</p><p>estar nunca sujeita a exceções, enquanto não é aceitável também que</p><p>os filhos sejam privados de sua relação com a própria mãe, condição</p><p>essencial nos primeiros anos de desenvolvimento psíquico e físico, nem</p><p>que estejam privados de liberdade como suas mães.</p><p>A reintegração social e a proibição de tratamentos inumanos</p><p>fazem inaceitáveis também, escreve Rivera, qualquer forma de iso-</p><p>lamento penitenciário. As razões de segurança que normalmente</p><p>justificam “a prisão dentro da prisão” poderiam inclusive cumprir-se</p><p>de outra maneira, penso eu: acentuando a vigilância, controlando</p><p>com mais atenção as relações com o exterior, porém, sem dúvida, sem</p><p>impor aquela medida extrema que, depois de um número limitado de</p><p>PREFÁCIO DE LUIGI FERRAJOLI 19</p><p>20 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>dias, constitui uma verdadeira, e cada vez maior, tortura. Igualmente</p><p>intoleráveis são as prisões de segurança máxima que se fundam, por</p><p>um lado, sobre a renúncia de buscar qualquer finalidade de reinserção</p><p>social, e, por outro, sobre a lesão da dignidade e dos direitos do preso.</p><p>Finalmente, Rivera se enfrenta com as dificuldades de reinte-</p><p>gração social no momento da liberação: a desorientação do ex-preso</p><p>nas novas condições de vida, o deterioro ou o rompimento das re-</p><p>lações familiares e da maioria das antigas relações sociais, a falta de</p><p>trabalho, o peso estigmatizador da nova vida depois de liberar-se da</p><p>condição de presidiário. Estamos falando de graves fatores de mar-</p><p>ginalização social que requerem, como é evidente, políticas públicas</p><p>de assistência, voluntariado, associativismo solidário e, sobretudo,</p><p>uma luta cultural e política em apoio aos valores de igualdade e</p><p>dignidade da pessoa como tal.</p><p>Por certo, o programa de redução e, em perspectiva, da supera-</p><p>ção da prisão que é formulado neste livro equivale a uma proposta de</p><p>luta sobre os direitos que não pode ser uma luta somente dos presos,</p><p>porém que também não pode ser feita sem eles, como adverte a obra.</p><p>Porém, é precisamente um programa que se encontra em total opo-</p><p>sição às políticas de hoje em dia em âmbito penal, e que, portanto,</p><p>exige um compromisso de todos, começando pela cultura jurídica</p><p>e a informação. De fato, a prisão funda sua intacta sobrevivência,</p><p>justamente na impunidade das violações dos direitos que ocorrem</p><p>dentro de seus muros, e na indiferença da opinião pública e dos meios</p><p>de comunicação. Não é somente uma instituição segregadora, mas</p><p>também uma instituição segregada, ou seja, marginalizada pelo in-</p><p>teresse, visibilidade e atenção do mundo exterior. Sem dúvida este é</p><p>o lugar onde se comprova a efetividade dos direitos. Como escreveu</p><p>Montesquieu, a civilização de uma sociedade se mede pela suavida-</p><p>de das penas. Portanto, a redução, a mitigação e, em perspectiva, a</p><p>superação da pena privativa de liberdade proposta nesta obra são os</p><p>desafios dos quais depende a medida de nossa própria civilização.</p><p>Roma, novembro de 2016</p><p>PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA</p><p>Maria Palma Wolff</p><p>O livro “Desencarceramento: por uma política de redução da</p><p>prisão a partir de um garantismo radical”, de Iñaki Rivera Beiras,</p><p>ao abordar a necessidade de elaboração de políticas de desencar-</p><p>ceramento no contexto espanhol, parece feito sob medida para a</p><p>realidade brasileira. Ao longo dos últimos anos, temos visto os ín-</p><p>dices de encarceramento em franco crescimento, ao mesmo tempo</p><p>em que cresce a precariedade de recursos – físicos, humanos e ma-</p><p>teriais – das prisões. A existência da seletividade penal desde a fase</p><p>processual, as precárias condições de cumprimento da pena, que</p><p>envolvem deficiências ou a inexistência de respeito a procedimen-</p><p>tos legais ou aos direitos estabelecidos, assim como a ausência de</p><p>programas de atendimento ao egresso, são regra em nossas prisões.</p><p>No entanto, a seletividade penal e as misérias da prisão – longe de</p><p>constituir novidade – estão profundamente entranhadas na triste</p><p>história das práticas penais do nosso país. As raízes escravistas, a pre-</p><p>sença inconteste do racismo, que se manifesta de diferentes formas e</p><p>intensidades, a “opção preferencial” pelos pobres, são presenças con-</p><p>tínuas e constitutivas da violência de todo o sistema de justiça penal.</p><p>E seguimos assim, presos aos muitos interesses econômicos e</p><p>políticos; o Estado, cada vez mais ausente das políticas sociais, se</p><p>impõe através da repressão e o sistema penal passa a ser a expressão</p><p>dos conflitos sociais e da desigualdade presente na realidade brasileira.</p><p>Os “sujeitos da prisão” são parte da construção que define, segundo</p><p>diferentes interesses, os grupos considerados “perigosos”, e que devem,</p><p>22 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE MARIA PALMA WOLFF 23</p><p>portanto, ser submetidos ao controle do sistema penal: jovens, pretos e</p><p>pobres são alvos da prisão contemporânea. São eles que dão a “cara ao</p><p>sistema punitivo” – para usar uma expressão de Raul Zaffaroni – e que</p><p>são alvos do controle penal, como comprovam os dados estatísticos</p><p>oficiais e as muitas pesquisas empíricas desenvolvidas.</p><p>A definição de classes perigosas legitima desigualdades, abusos de</p><p>poder, exposição midiática daqueles que não são considerados cidadãos</p><p>ou sujeitos a qualquer que seja o direito. Assim esquecemos, ou justifi-</p><p>camos, as condições de vida enfrentadas por grande parte da população</p><p>brasileira, a não implementação de direitos básicos, as deficiências de</p><p>políticas sociais. Temos um campo fértil para justificar as infrações do</p><p>próprio Estado, para negar e reforçar as ignomínias que acontecem não</p><p>só “atrás das grades”, mas durante todo o processo criminal.</p><p>As contradições vinculadas à relação existente entre o ideal de</p><p>ressocialização proposto para a pena de prisão e o que encontramos</p><p>na realidade por si só indicam a dificuldade de preparar alguém para</p><p>a vida em liberdade a partir de seu confinamento e da imposição de</p><p>experiências e vivências extremamente prejudiciais e que impõe danos</p><p>físicos, sociais e emocionais irreparáveis. Destaca-se que estas vivências</p><p>contínuas de negação de direitos se dão sob a responsabilidade do</p><p>Estado, que engendra a prisão daqueles que infringiram a lei, para</p><p>mostrar, com seu próprio descumprimento da lei, as consequências da</p><p>prática de crimes. Talvez essa dinâmica ajude a explicar as condições</p><p>degradantes dos cárceres brasileiros, em cujos interiores a insalubrida-</p><p>de, a superlotação e a ausência completa dos mais comezinhos direitos</p><p>do ser humano parecem não encontrar limites.</p><p>Todos estes aspectos deletérios e nocivos do uso indiscriminado</p><p>da prisão são abordados e aprofundados na primeira parte do livro.</p><p>Iñaki estabelece com precisão as “bases teóricas para um efetivo desen-</p><p>carceramento”, cujas argumentações e fundamentos não deixam dúvida</p><p>sobre a necessidade e a viabilidade de seguirmos no caminho do desen-</p><p>carceramento a partir do que ele denomina de “garantismo radical”.</p><p>A segunda parte do texto traz os principais elementos para o</p><p>desenho e a implementação de práticas com tal comprometimento: a</p><p>importância da investigação e da pesquisa, da articulação da sociedade,</p><p>a questão da arquitetura prisional. Aborda também o reconhecimento</p><p>das diferentes especificidades das mulheres presas, do(a)s doentes, das</p><p>pessoas egressas e o papel dos operadores do sistema prisional e do</p><p>sistema jurídico penal.</p><p>Cabe destacar a presença marcante no texto da perspectiva dos</p><p>direitos humanos, seja como fundamento das ações propostas, seja</p><p>como instrumentalidade, através do reconhecimento do papel – ainda</p><p>que as vezes contraditório – das agências locais e internacionais para</p><p>no caso Sulejma-</p><p>novic116, e considerou, então, importante adjuntar na sentença uma</p><p>“opinião concorrente” para explicar porque o voto negativo de então se</p><p>converteu em voto positivo depois. Em sua “opinião” adjunta, explica</p><p>que o problema já foi transformado em algo estrutural e que é impossí-</p><p>vel referi-lo a uma situação limitada, e que a necessidade de elaborar um</p><p>plano de ação pode ajudar as autoridades italianas a sair de uma situação</p><p>115 Danute Jociene, Presidenta da Seção II do TEDH em 2013.</p><p>116 Caso Sulejmanovič c. Italia, 16 de julho de 2009 (definitiva em 6 de novembro de 2009).</p><p>Opinião dissidente do Juiz Vladimiro Zagrebelsky, a qual a juíza Jociene adere.</p><p>EPíLOGO - O CASO ITALIANO A PARTIR DE UMA SENTENÇA PILOTO 179178 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>onde a superlotação se traduz, inevitavelmente, em condições de vida</p><p>contrárias à dignidade das pessoas privadas de liberdade.</p><p>O DESPERTAR: UM PLANO DE AÇÃO</p><p>Que uma sentença do TEDH possa não somente ser a cer-</p><p>tificação de um erro, mas também o começo de um processo de</p><p>mudança, pode justamente estar provado pela experiência italiana</p><p>depois de janeiro de 2013. De fato, uma “sentença piloto” indica</p><p>uma via obrigatória, traça um caminho a percorrer de acordo com os</p><p>prazos do período de suspensão, que o Tribunal possibilitou para os</p><p>casos pendentes relativos ao tema em exame. Então, indica linhas e</p><p>tempos e estabelece que tudo tem que ser feito com a supervisão do</p><p>Comitê para a execução das sentenças do Tribunal, órgão do Comitê</p><p>de Ministros do Conselho de Europa, que tem a tarefa de decidir se</p><p>um Estado deu plena execução à sentença em questão.</p><p>Desde aí, a indicação de elaborar o plano de ação, de apresen-</p><p>tá-lo seis meses depois da sentença e, com sua aprovação, dar forma</p><p>às pautas ali contidas. Para a Itália, a data limite foi fixada em 27 de</p><p>novembro de 2013, sendo a sentença definitiva do caso Torreggiani e</p><p>altri contra Italia, de 27 de maio de 2013117.</p><p>Com o tempo, a experiência de requerer um plano de ação se de-</p><p>monstrou eficaz no seguimento das indicações adotadas por cada país</p><p>para resolver as graves situações assinaladas pelo Tribunal. Recentemen-</p><p>te, planos similares foram requeridos pelo problema da superlotação</p><p>carcerária para Bulgária, Federação Russa e também Ucrânia.</p><p>Em 13 de junho de 2013 o Ministério da Justiça nomeou uma</p><p>comissão ad hoc118 para a elaboração do plano, e, em geral, para:</p><p>a) proceder ao reconhecimento da atual situação de funcionamento</p><p>117 A sentença passou a ser apresentada nesta data porque a Itália apresentou a solicitação de</p><p>recorrer à Grande Sala. Esta solicitação foi declarada inadmissível, porque anteriormente a</p><p>Itália declarou não opor-se ao procedimento de acordo com o artigo 61 do regimento do</p><p>Tribunal (procedimento para a “sentença piloto”. A inadmissibilidade foi declarada em 27 de</p><p>maio de 2013,</p><p>118 Decreto do Ministério da Justiça de 13 junho de 2013 assinado por Annamaria Cancellieri,</p><p>Ministro de Justiça. Foi nomeado presidente da Comissão o autor deste texto.</p><p>do sistema penitenciário afetado pelo problema da superlo-</p><p>tação e por outras graves situações estruturais que têm sido</p><p>relevadas pelo TEDH, especialmente nos pronunciamentos de</p><p>08.01.2013 no caso Torreggiani e altri contra Italia.</p><p>b) elaborar novos modelos operativos para a gestão dos recursos</p><p>materiais e humanos, com o objetivo de aperfeiçoar e otimizar</p><p>as políticas de tratamento para que sejam mais coerentes com</p><p>as diferentes tipologias de presos, conciliando as exigências de</p><p>segurança com a finalidade reeducativa da pena; e</p><p>c) verificar o impacto sobre a situação de superlotação que po-</p><p>deria se derivar da finalização do chamado “Piano Carceri”119,</p><p>e, da mesma forma, sobre a oportunidade de proceder a uma</p><p>remodelação na perspectiva de uma melhora geral e de uma</p><p>diferenciação da oferta de tratamento.</p><p>As linhas de ação elaboradas pela Comissão120 se desenvol-</p><p>veram sobre algumas pautas. Antes de tudo, o Plano se origina ao</p><p>comprovar que a grave e crítica situação do sistema de reclusão</p><p>italiano que se produziu em anos recentes foi denunciada em nível</p><p>institucional mais elevado do Estado. Porém, destaca que este ponto</p><p>crítico não se evidencia somente através do aspecto numérico da</p><p>quantidade de pessoas detidas em relação à capacidade dos cen-</p><p>tros, que tem levado a uma das taxas de superlotação mais altas da</p><p>Europa, senão também, através do aspecto geral do sistema enquan-</p><p>to ao tratamento, à gestão dos recursos e à construção de programas</p><p>de reinserção social que reduzam o risco de reincidência.</p><p>“A fisionomia do sistema – escreve a Comissão – não corres-</p><p>ponde mais, exceto em algumas destacadas situações, à finalidade</p><p>que a Constituição outorga à pena (que segundo o artigo 27.3 da</p><p>119 O chamado “Piano Carceri” nasce com a Resolução do Conselho de Ministros em 19 de</p><p>março de 2010, nº 3861 com o título “Dispo sizioni urgenti di protezione civile dirette a</p><p>fronteggiare la situazione di emergenza conseguente all’eccessivo affollamento degli istiuti</p><p>penitenziari presenti sul territorio nazionale”. A eficácia do “plano” se revelou ilusória e</p><p>sobretudo orientada para o aumento de recurso à prisão com base em um populismo carcerário</p><p>que deveria gestionar de outra maneira.</p><p>120 O documento final da Comissão intitulado Relazione al Ministro di Giustizia sugli interventi</p><p>in atto e gli interventi da programmare a bre ve e medio termine foi entregue em 25 de</p><p>novembro de 2013. O Plano de Ação foi entrgue um dia depois aos Organismos Europeus, e</p><p>publicado na página web do Comitê para a execução das sentenças do Tribunal.</p><p>EPíLOGO - O CASO ITALIANO A PARTIR DE UMA SENTENÇA PILOTO 181180 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>Constituição deve buscar a reeducação da pessoa condenada), nem</p><p>tampouco à absoluta proteção da dignidade de cada pessoa privada</p><p>de liberdade, seguidamente afirmada em nosso texto Constitucional</p><p>(artigos 2, 3, 13), ou à proteção absoluta de tratamentos ou penas</p><p>inumanas ou degradantes, imposta pela CEDH (art 3) e pela Carta</p><p>de Direitos Humanos Fundamentais da União Europeia. (art 4)”.</p><p>A necessidade de eliminar com urgência as condições de reclu-</p><p>são, que o Tribunal de Estrasburgo tem considerado como violações ao</p><p>artigo 3º do Convênio, então inumanas e degradantes, tem sido expres-</p><p>sa pelo Presidente da República italiana, que enviou uma mensagem</p><p>ao Parlamento para convidar o Legislador a considerar sem demora a</p><p>“dramática questão carcerária” e “o assunto de excepcional importância,</p><p>conforme o pronunciamento do TEDH”. O Presidente lembrou que</p><p>“o dever urgente de acabar com a superlotação carcerária” e também</p><p>“de predispor um recurso interno apto para oferecer uma compensação</p><p>pelas condições de superlotação já padecidas pelo recluso”.121</p><p>As linhas de atuação para mudar as condições atuais e, ao mesmo</p><p>tempo, introduzir um modelo de reclusão conforme as Regras Peni-</p><p>tenciárias Europeias, desenvolveram-se sobre as seguintes diretrizes:</p><p>a) a imposição de sanções que não sejam privativas de liberdade,</p><p>como prevê a Rec (1999) 22.122</p><p>b) a redução da prisão preventiva como recomenda a Rec</p><p>(2006) 13; 123</p><p>c) a expansão das oportunidades de acesso às medidas alternativas,</p><p>segundo a Rec (2000) 22.124</p><p>d) o incremento das possibilidades de contatos entre reclusos e a</p><p>adoção de regimes o mais possível abertos conforme as Regras</p><p>Penitenciárias Europeias (Rec (2006) 2).</p><p>Com base nestas indicações, o Plano indica as modalidades</p><p>121 Carta do Presidente da República ao Parlamento, de 18 de maio de 2013. É a única carta en-</p><p>viada com base no artigo 87.2 da Constituição, durante seus dois mandatos como Presidente.</p><p>122 É a já citada Recomendação sobre a superlotação carcerária.</p><p>123 Recomendação do Comitê de Ministros sobre a prisão preventiva, as relativas condições e a</p><p>previsão de ferramentas contra o abuso desta medida.</p><p>124 Recomendação</p><p>sua proteção e defesa. Nesse sentido, o epílogo de Mauro Palma, ao</p><p>detalhar o processo italiano a partir de denúncias de violações nas</p><p>prisões daquele país ao tribunal europeu, ao mesmo tempo imprime</p><p>materialidade à proposta e implica o leitor na construção de novas</p><p>possibilidades para a solução dos conflitos penais.</p><p>Na relação que se estabelece entre o significado da prisão como</p><p>pena e os determinantes históricos e sociais do sistema punitivo brasi-</p><p>leiro, temos a peremptória impossibilidade de que o cumprimento da</p><p>pena leve à ressocialização, já que existe uma anulação do sentido de</p><p>ser “humano” e “cidadão”. Tal condição não deve, no entanto, minar</p><p>as forças da resistência a este estado de coisas e nem ferir de morte</p><p>nossas esperanças de erradicação da prisão, tão funcional à lógica que</p><p>aprimora desigualdades históricas e impõe novas formas de exclusão.</p><p>Nesse sentido, o livro de Iñaki Rivera Beiras, apesar de ancora-</p><p>do na experiência europeia, é material essencial para nos encorajarmos</p><p>nesta cruzada, que em tempos de ultra-liberalismo e de elogio a po-</p><p>liticas repressoras e autoritárias, aponta para a possibilidade de nos</p><p>movimentarmos na contramão, agregando forças para esta que será</p><p>uma longa jornada: a da compreensão da inoperância, das iniquidades</p><p>e por isto da necessidade de redução drástica da prisão.</p><p>UMA TRAJETÓRIA EM DEFESA DA</p><p>DEMOCRACIA E DOS DIREITOS HUMANOS:</p><p>ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O AUTOR</p><p>Bruno Rotta Almeida</p><p>A trajetória do Professor Iñaki Rivera Beiras testemunha o po-</p><p>tente equilíbrio entre a academia e a militância na defesa dos direitos</p><p>humanos das pessoas privadas de liberdade e suas famílias. Quatro</p><p>anos após encerrar os estudos em Direito, em 1985, na Universidade</p><p>de Barcelona, o autor concluiu com sobressalência o Máster Oficial</p><p>pelo Common Study Programme on Criminal Justice and Critical Crimi-</p><p>nology, com estâncias em Middlesex (Inglaterra), Erasmus (Holanda),</p><p>Ghent (Bélgica), Bolonha (Itália), Saarbrucken (Alemanha). O dou-</p><p>toramento foi alcançado em 1994, no Programa de Doutorado em</p><p>Direito da Universidade de Barcelona, com a tese La devaluación de</p><p>los derechos fundamentales de los reclusos. La Cárcel, los movimientos so-</p><p>ciales y una cultura de la resistência, sob a direção do Professor Roberto</p><p>Bergalli Russo. A tese foi qualificada como sobresaliente cum laude.</p><p>O autor possui diversos livros, artigos e capítulos de livros pu-</p><p>blicados. A tese de doutorado, abreviada e transformada, resultou na</p><p>versão publicada, em 1997, pelo Editorial Jose Maria Bosch (Espa-</p><p>nha), denominada: La devaluación de los derechos fundamentales de los</p><p>reclusos. La construcción jurídica de un ciudadano de segunda categoría.1</p><p>Também vale ressaltar os dois tomos de La cuestión carcelaria. Historia,</p><p>epistemología, Derecho y Política Penitenciaria,2 publicados por Editores</p><p>1 RIVERA BEIRAS, Iñaki. La devaluación de los derechos fundamentales de los reclusos.</p><p>La construcción jurídica de un ciudadano de segunda categoría. Barcelona: Bosch, 1997.</p><p>2 RIVERA BEIRAS, Iñaki. La cuestión carcelaria. Historia, epistemología, derecho y política</p><p>penitenciara. (Tomos I e II). Buenos Aires: Del Puerto, 2009.</p><p>26 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O AUTOR - BRUNO ROTTA ALMEIDA 27</p><p>del Puerto (Argentina), em 2009 (2ª edição). São obras importantís-</p><p>simas para o estudo a respeito do sistema penal e penitenciário.</p><p>Entre as diversas publicações do autor, verificam-se com contun-</p><p>dência problemáticas em torno da questão criminal, tais como: privação</p><p>de liberdade, direitos humanos e violência institucional3; contribuição</p><p>da história do presente para pensar as mitologias e os discursos sobre</p><p>a punição4; papel da memória como categoria epistemológica para a</p><p>abordagem da história e das ciências criminais5; aportes sobre poder</p><p>acadêmico, educação legal e o ensino da criminologia6; análise dos de-</p><p>litos dos Estados e dos Mercados a partir da perspectiva do dano social e</p><p>da criminologia crítica global7; importância dos movimentos sociais na</p><p>luta pela defesa dos direitos das pessoas presas8; recepção do atuarialismo</p><p>penitenciário na Espanha9; debates epistemológicos, constitucionalismo</p><p>social e política criminal10; entre outros tantos enfrentamentos.</p><p>Acerca da sua biografia, Iñaki Rivera Beiras é professor</p><p>3 Ver, por exemplo: Observatorio del Sistema Penal y los Derechos Humanos de la Universidad</p><p>de Barcelona (coord.). Privación de libertad y derechos humanos. La tortura y otras formas</p><p>de violencia institucional. Barcelona: Icaria, 2008.</p><p>4 Ver: RIVERA BEIRAS, Iñaki (coord.). Mitologías y discursos sobre el castigo. Historias del</p><p>presente y posibles escenarios. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; Barcelona: OSPDH.</p><p>Universitat de Barcelona, 2004.</p><p>5 Ver: RIVERA BEIRAS, Iñaki. La memoria. Categoría epistemológica para el abordaje de la</p><p>historia y las ciencias penales. Revista Crítica Penal y Poder, nº 1, Observatorio del Sistema</p><p>Penal y los Derechos Humanos, Universidad de Barcelona, 2011; também: RIVERA BEIRAS,</p><p>Iñaki. La memoria: categoria epistemológica para el abordaje de la historia. In: BERGALLI,</p><p>Roberto; RIVERA BEIRAS, Iñaki (Coords.). Memoria colectiva como deber social. Rubí</p><p>(Barcelona): Anthropos Editorial; Observatori del Sistema Penal i els Drets Humans, 2010.</p><p>6 Ver: RIVERA BEIRAS, Iñaki. Algunos recorridos a propósito de la enseñanza de la crimi-</p><p>nología. In: RIVERA BEIRAS, Iñaki; BERGALLI, Roberto (coordinadores.). Poder acadé-</p><p>mico y educación legal. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; Barcelona: Observatori del</p><p>Sistema Penal i els Drets Humans, Universitat de Barcelona, 2008.</p><p>7 Ver: RIVERA BEIRAS, Iñaki (coord.). Delitos de los estados, de los mercados y daño</p><p>social. Debates en criminología crítica y sociología jurídico-penal. Barcelona: Anthropos Edi-</p><p>torial; Observatori del Sistema Penal i els Drets Humans, Universitat de Barcelona, 2014.</p><p>8 Ver: RIVERA BEIRAS, Iñaki. ¿Abolir o transformar? Historia de las acciones sociales</p><p>colectivas en las cárceles europeas (1960-2010). Movimientos, luchas iniciales y transforma-</p><p>ciones posteriores. Buenos Aires: Del Puerto, 2010.</p><p>9 Ver: RIVERA BEIRAS, Iñaki. Actuarialismo penitenciário. Su recepción em España. In:</p><p>ESPÍ, Josep García-Borés; RIVERA BEIRAS, Iñaki. La cárcel díspar. Retóricas de legiti-</p><p>mación y mecanismos externos para la defensa de los derechos humanos em el ámbito peni-</p><p>tenciario. Barcelona: Bellaterra, 2016.</p><p>10 Ver: RIVERA BEIRAS, Iñaki (coord.). Política criminal y sistema penal: viejas y nuevas ra-</p><p>cionalidades punitivas. Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; Observatori del Sistema Penal</p><p>i els Drets Humans, 2005.</p><p>titular da Universidade de Barcelona, Espanha, onde atua como</p><p>Diretor Científico do Máster oficial em Criminología, Política Cri-</p><p>minal y Sociología jurídico penal, e Coordenador da Especialidade</p><p>em Sociología jurídico penal do Doutorado em Derecho y Ciencia</p><p>Política da mesma Instituição.</p><p>O autor exerce, há quase duas décadas, a direção do Observatori</p><p>del Sistema Penal i Drets Humans. O Observatório do Sistema Penal</p><p>e dos Direitos Humanos (OSPDH)11 da Universidade de Barcelona</p><p>é composto por professore/as, profissionais, estudantes, graduados,</p><p>pós-graduados; O Observatório realiza atividades de pesquisa, ensino</p><p>e de observação das instituições do sistema de justiça criminal a partir</p><p>da cultura de defesa dos direitos humanos e do fortalecimento dos</p><p>princípios e valores do Estado democrático de direito.</p><p>Os principais temas de atuação do OSPDH são: extensão do</p><p>sistema prisional; aumento das penas privativas de liberdade; maus-</p><p>tratos e tortura; detenção e expulsão de estrangeiros; violência de</p><p>gênero; normas e regras de vigilância e ordem pública; cultura do</p><p>medo; aprisionamento de jovens e crianças; políticas de “tolerância</p><p>zero”; fragmentação do sistema penal em subsistemas administrativos;</p><p>políticas de emergência; criação de prisões secretas e ilegais; desen-</p><p>volvimento</p><p>das culturas de insegurança e do inimigo nas instituições</p><p>do Estado de direito; medidas alternativas para resolver conflitos so-</p><p>ciais; papel desempenhado pela jurisdição dentro do sistema penal;</p><p>consolidação das culturas de punição, controle e exclusão dentro das</p><p>instituições do Estado, especialmente o sistema penal.</p><p>Dentre os objetivos do OSPDH, destacam-se: observar, analisar</p><p>e relatar o funcionamento das instituições do sistema penal (prisões,</p><p>centros de detenção, inclusive para estrangeiros, juízes, forças de segu-</p><p>rança); contribuir para a defesa dos direitos humanos, cada vez mais</p><p>ameaçados pelas políticas de segurança, vigilância e controle; garantir</p><p>o cumprimento da estrita legalidade no sistema penal e trabalhar para</p><p>promover sua transparência; fornecer ferramentas para que as pessoas</p><p>11 Mais informações sobre o OSPDH em: http://www.ub.edu/ospdh/</p><p>28 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>e organizações sociais tenham mais poder e possuam os mecanismos</p><p>necessários em sua luta por direitos, liberdade, democracia e justiça. As</p><p>funções e competências do OSPDH envolvem: emissão e divulgação</p><p>de relatórios e publicações científicas; divulgação de pesquisa, ensino</p><p>e transferência de conhecimento; estabelecimento de um espaço de</p><p>referência no estudo e análise de suas áreas de atuação; promoção da</p><p>colaboração com instituições e organizações sociais que defendem os</p><p>direitos humanos; organização de cursos, conferências, seminários e</p><p>congressos; e fornecimento de aconselhamento científico e técnico.</p><p>A Revista Crítica Penal y Poder12, publicação do OSPDH, é uma</p><p>revista eletrônica composta por trabalhos dedicados ao estudo da ques-</p><p>tão criminal, do fenômeno delitivo, dos processos de criminalização e</p><p>castigo e de suas formas, instituições, discursos e práticas, da dimensão</p><p>do poder num sentido amplo de dominação política, econômica e</p><p>cultural, a partir de uma perspectiva crítica e multidisciplinar – direito</p><p>penal, filosofia do direito, ciência política, criminologia, psicologia,</p><p>sociologia, antropologia e história.</p><p>Também verifica-se a edição de várias coleções, com coorde-</p><p>nação de Iñaki Rivera Beiras e Roberto Bergalli: Utopías del control y</p><p>control de las utopias, projeto editorial em colaboração entre o OSPDH</p><p>e Anthropos Editorial; Desafío(s), publicação periódica do OSPDH</p><p>em colaboração com Anthropos Editorial. Por fim, a redação de dos-</p><p>siês sobre diferentes temas relacionados à prisão, na Revista Panóptico</p><p>(Nueva época), projeto editorial entre o OSPDH e Virus (Barcelona).</p><p>Junto ao OSPDH, foram realizadas traduções de importantes obras</p><p>do pensamento criminológico global, como, por exemplo: Doing Time:</p><p>An Introduction to the Sociology of Imprisonment, de Roger Matthews13; e</p><p>Criminology, Civilisation and the New World Order, de Wayne Morrison14.</p><p>12 Mais informações em: http://revistes.ub.edu/index.php/CriticaPenalPoder/</p><p>13 MATTHEWS, Roger. Pagando tiempo. Una introducción a la sociología del encarcelamien-</p><p>to. Trad. Alejandro Piombo. Ed. Iñaki Rivera Beiras. Barcelona: Bellaterra, 2003.</p><p>14 MORRISON, Wayne. Criminología, civilización y nuevo orden mundial. Trad. Alejandro</p><p>Piombo. Ed. Camilo Bernal, Sebastián Cabezas, Alejandro Forero, Iñaki Rivera Beiras, Iván</p><p>Vidal, Fidel Amat. Barcelona: Anthropos; Observatori del Sistema Penal i Drets Humans de</p><p>la Universitat de Barcelona, 2012.</p><p>Em suma, as memórias15 do OSPDH registram um trabalho</p><p>comprometido com a defesa dos direitos humanos. A atuação do</p><p>OSPDH expõe o papel social que a Universidade deve cumprir na</p><p>visibilização das invisibilidades sociais, especialmente dos grupos vul-</p><p>nerabilizados e desfavorecidos da sociedade.</p><p>O autor está envolvido em diversas redes nacionais e interna-</p><p>cionais sobre sistema penal e direitos humanos. No plano espanhol,</p><p>a Coordinadora para la Prevención y la Denuncia de la tortura é uma</p><p>destacada plataforma integrada por várias organizações de luta contra</p><p>a tortura e em defesa dos direitos humanos, cujo objetivo é seguir os</p><p>mecanismos internacionais de prevenção da tortura no Estado espa-</p><p>nhol (em observação ao Protocolo Facultativo à Convenção contra a</p><p>Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degra-</p><p>dantes das Nações Unidas). A Coordinodora publica anualmente um</p><p>informe sobre denúncias de tortura, violência institucional e maus-</p><p>tratos, e penas desumanas, cruéis e degradantes nesse mesmo país.16</p><p>No contexto europeu, destaca-se o European Prison Observa-</p><p>tory, projeto coordenado pela Antigone – Associazione per i Diritti e le</p><p>Garanzie nel Sistema Penale, e desenvolvido com o apoio financeiro</p><p>do Programa de Justiça Criminal da União Europeia. O Observató-</p><p>rio Europeu estuda, por meio de análise quantitativa e qualitativa,</p><p>a condição dos sistemas prisionais nacionais, buscando alternativas</p><p>à prisão de acordo com normas e padrões internacionais relevan-</p><p>tes para a proteção dos direitos fundamentais das pessoas privadas</p><p>de liberdade. O Observatório salienta as boas práticas dos peritos e</p><p>profissionais europeus existentes nos diferentes países, tanto para a</p><p>gestão das prisões como para a proteção dos direitos das pessoas presas.</p><p>Ademais, promove, como referência fundamental para as atividades</p><p>dos órgãos nacionais de monitoramento, a adoção das normas do</p><p>Comitê para a Prevenção da Tortura (Conselho de Europa) e dos</p><p>15 Ver: Observatorio del Sistema Penal y los Derechos Humanos. Memoria 2001-07, Universitat</p><p>de Barcelona, 2008; e: Observatorio del Sistema Penal y los Derechos Humanos. Memoria de</p><p>trabajo del Observatorio del Sistema Penal y los Derechos Humanos de la Universidad de</p><p>Barcelona. 15 años observando el sistema penal (2001-2016). Universitat de Barcelona, 2016.</p><p>16 Mais informações em: http://www.prevenciontortura.org/</p><p>ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O AUTOR - BRUNO ROTTA ALMEIDA 29</p><p>30 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>outros instrumentos jurídicos internacionais sobre prisão.17</p><p>Ainda em nível internacional, a Red EuroLatinoamericana de</p><p>Prevención de la Tortura y la Violencia Institucional (RELAPT), funda-</p><p>da em dezembro de 2013, em Bogotá (Colômbia), é uma rede que visa</p><p>sensibilizar e informar os Estados latino-americanos sobre os proble-</p><p>mas da tortura e da violência institucional. Almeja-se a criação de um</p><p>Comitê para a Prevenção da Tortura na América Latina (CPT- AL), um</p><p>mecanismo de prevenção regional semelhante ao Comitê Europeu para</p><p>a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa. Uma importante apre-</p><p>sentação da RELAPT foi o Observatório Latino-Americano de Tortura</p><p>(OLAT), cuja missão é coletar e informar sobre a existência de tortura</p><p>em locais de privação de liberdade na América Latina, para construir</p><p>um diagnóstico anual da situação, a fim de fazer recomendações para</p><p>os países e promover a adoção de políticas e práticas que contribuam</p><p>para a eliminação da tortura nos centros de privação de liberdade.18</p><p>A atuação do autor como professor convidado de diversas insti-</p><p>tuições de ensino de vários países também abriu espaço para a parceria</p><p>entre o OSPDH e a Universidad para la Cooperación Internacional de</p><p>Costa Rica. O Posgrado en Ejecución Penal y Derecho Penitenciario e a</p><p>Maestría en Sociología Jurídico Penal são dois cursos ministrados através</p><p>de um convênio de cooperação acadêmica entre as citadas Instituições.</p><p>As duas carreiras, patrocinadas pelo Instituto Interamericano de Dere-</p><p>chos Humanos (IIDH), o Instituto Latinoamericano de Naciones Unidas</p><p>para la Prevención del Delito y Tratamiento del Delincuente (ILANUD)</p><p>e o Colegio de Abogados y Abogadas de Costa Rica, visam a formação de</p><p>profissionais a partir de perspectivas atuais e críticas, e em superação à</p><p>educação tradicional. O Master internacional en Criminología y Sociolo-</p><p>gía Jurídico-Penal19, em parceria com a Universidad Nacional de Mar del</p><p>Plata, Argentina, também é um produto desses potentes intercâmbios.</p><p>Salienta-se, ademais, o papel do</p><p>Sistema de Registro e</p><p>17 Mais informações em: http://www.prisonobservatory.org/</p><p>18 Mais informações em: http://relapt.usta.edu.co/</p><p>19 Mais informações em: http://www.pensamientopenal.org/master-internacional-criminologia-</p><p>-y-sociologia-juridico-penal-universidad-nacional-de-mar-del-plata/</p><p>Comunicação da Violência Institucional (SIRECOVI),20 criado pelo</p><p>OSPDH. Trata-se de um sistema de registro e comunicação para a pro-</p><p>teção de vítimas de violência institucional. Conforme afirmam o próprio</p><p>autor e os demais integrantes do OSPDH,21 ao longo das suas quase duas</p><p>décadas de trabalho e investigação do funcionamento das instituições do</p><p>sistema penal e na promoção dos direitos humanos, foi possível iden-</p><p>tificar grave ineficiência nas respostas concretas e imediatas sobre casos</p><p>de violência institucional e de tortura, como também as dificuldades</p><p>para obter informação completa e atualizada sobre as dimensões reais</p><p>do fenômeno. A fim de afastar ditas deficiências, a Unidade de Projetos</p><p>de Inovação da Área de Privação de Liberdade e Direitos Humanos do</p><p>OSPDH desenvolveu um sistema que, de forma integrada, pretende</p><p>incidir sobre os pontos críticos identificados para, através da sistematiza-</p><p>ção, acompanhamento e comunicação das situações detectadas, prevenir</p><p>revitimizações das pessoas já afetadas e a ocorrência de novos casos.</p><p>O sistema prevê como objetivos-metas: fortalecer os esfor-</p><p>ços institucionais dirigidos à proteção e reabilitação das vítimas da</p><p>violência institucional; melhorar a cooperação e articulação entre</p><p>organizações de direitos humanos em relação à prevenção da tortu-</p><p>ra; formular recomendações para a tomada de decisões de políticas</p><p>públicas e promover reformas democráticas baseadas em informações</p><p>atualizadas, confiáveis e sistematizadas sobre as situações de risco que</p><p>geram maior vulnerabilidade em pessoas privadas de liberdade; cons-</p><p>truir conhecimento comparado sobre a conceituação e extensão da</p><p>tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.</p><p>Em novembro de 2018, o OSPDH publicou o primeiro informe</p><p>do SIRECOVI sobre a violência institucional na Catalunha, fazendo</p><p>referência a casos de violência policial registrados e gerenciados pelo</p><p>sistema, isolamento penitenciário, acesso à saúde nas prisões e a situação</p><p>20 Mais informações em: https://sirecovi.ub.edu/</p><p>21 RIVERA BEIRAS, Iñaki [et. al.]. Sistema de registro e comunicação da violência institucio-</p><p>nal (SIRECOVI). Dossiê Punição e Controle Social: degradações carcerárias em América</p><p>Latina e Europa. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de</p><p>Pelotas (UFPel), V. 02, N. 2, Jul.-Dez., 2016.</p><p>ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O AUTOR - BRUNO ROTTA ALMEIDA 31</p><p>32 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>da assistência e defesa jurídica nos processos de execução criminal.22</p><p>Em 2017, o SIRECOVI apresentou o relatório denominado</p><p>Violencia Policial en Cataluña el 1 de octubre de 2017,23 decorrente dos</p><p>acontecimentos ocorridos em 1º de outubro de 2017 na Catalunha,</p><p>durante o Referendo sobre a Independência da Catalunha. O material</p><p>foi organizado pela Generalitat da Catalunha, o Observatório do Sis-</p><p>tema Penal e dos Direitos Humanos, através do Sistema de Registro</p><p>e Comunicação da Violência institucional (SIRECOVI), e recebeu</p><p>numerosas comunicações de testemunhas das intervenções policiais</p><p>que fecharam muitos dos colégios eleitorais no dia da votação.</p><p>Nesse contexto de conflito político entre Catalunha e Espanha</p><p>e de excepcionalidade punitiva,24 a defesa da democracia passa pela</p><p>compreensão clara sobre o próprio conceito de presos políticos,25 e pelo</p><p>respeito aos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade.26</p><p>A trajetória do autor, sua biografia e os enfrentamentos no</p><p>âmbito da academia e da militância compõem este extraordinário livro,</p><p>que passa a integrar um relevante conjunto de publicações traduzidas</p><p>ao português sobre direitos humanos e sistema penal e penitenciário.</p><p>Pelotas/RS, novembro de 2018.</p><p>22 Observatori del Sistema Penal i Drets Humans. La violència institucional a catalunya. Pri-</p><p>mer informe – Sistema de Registre i Comunicació de la Violència Institucional SIRECOVI,</p><p>Novembre, 2018. Disponível em: http://www.ub.edu/ospdh/en/node/537 Também em: http://</p><p>revistes.ub.edu/index.php/CriticaPenalPoder/article/view/27046/28102</p><p>23 Mais informações em: http://www.ub.edu/ospdh/sites/default/files/documents/publicacions/</p><p>informe_sirecovi_1-o_cast.pdf</p><p>24 Ver: RIVERA BEIRAS, Iñaki. La guerra política, judicial y económica (contra Cataluña).</p><p>El Diario, 08 out. 2018. Disponível em: https://www.eldiario.es/contrapoder/guerra-politica-</p><p>judicial-economica-Cataluna_6_822827710.html; Também: RIVERA BEIRAS, Iñaki. Tres</p><p>graves anomalías de las Instituciones Penitenciarias (y el desprecio por el envilecimiento pú-</p><p>blico). El Diario, 08 out. 2018. Disponível em: https://www.eldiario.es/contrapoder/Ministe-</p><p>rio-Interior_6_779782041.html</p><p>25 RIVERA BEIRAS, Iñaki. Sobre el concepto y la existencia de presos políticos. Revista Crí-</p><p>tica Penal y Poder, n. 15, Out., 2018.</p><p>26 Ver: RIVERA BEIRAS, Iñaki. Personas privadas de libertad y familiares, las consecuencias</p><p>del alejamiento penitenciario. El Diario, 26 nov. 2018. Disponível em: https://www.eldiario.</p><p>es/contrapoder/Personas-familiares-consecuencias-alejamiento-penitenciario_6_839976006.</p><p>html; RIVERA BEIRAS, Iñaki. De traslados carcelarios. El Diario, 05 nov. 2018. Disponível</p><p>em: https://www.eldiario.es/contrapoder/traslados-carcelarios_6_832626753.html; e RIVE-</p><p>RA BEIRAS, Iñaki. Derecho a estar en una prisión cercana al lugar de residencia familiar. El</p><p>Diario, 25 abr. 2018. Disponível em: https://www.eldiario.es/contrapoder/Derecho-prision-</p><p>-cercana-residencia-familiar_6_764733530.html</p><p>PRIMEIRA PARTE</p><p>BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO</p><p>DESENCARCERAMENTO</p><p>1. AS DIFERENTES FORMAS DE ABORDAR OS MO-</p><p>DELOS PENAL-PENITENCIÁRIOS</p><p>Pensar na redução do emprego da prisão, em um horizonte de</p><p>drástico recorte da proeminência ainda central que ocupa nos siste-</p><p>mas penais contemporâneos, constitui um exercício que seguramente</p><p>requer uma prévia exposição do paradigma no qual se situam aqueles</p><p>que propõem estratégias nesta direção. Acredito que este exercício</p><p>pode e deve ser feito com a finalidade de esclarecer desde o início em</p><p>que marco teórico e político se situa um horizonte semelhante .</p><p>Como já assinalamos há alguns anos com Roberto Bergalli,</p><p>se nos situarmos idealmente em um plano analítico, poderíamos</p><p>“fragmentar” a punição e extrair daí alguns modelos para sua gestão</p><p>e governabilidade, com a finalidade de projetar a maior ou menor</p><p>vigência de cada um. Poderíamos assim distinguir – breve e panora-</p><p>micamente – os seguintes modelos.</p><p>O modelo de prisão terapêutica . Este paradigma carcerário</p><p>finca suas raízes na ideologia positivista e correcionalista tanto euro-</p><p>peia (scuola positiva) como norte-americana (New penology, emenda do</p><p>famoso Congresso de Cincinnati de onde emergiu o Elmira System).</p><p>Ainda que, na verdade, seus antecedentes se encontrem na ideia religiosa</p><p>da “pena medicinal” na pretensão de punitur ne peccetur e nos caridosos</p><p>ideais de quáqueros, católicos e demais seguidores da ideia da penitên-</p><p>cia. É certo, portanto, que com o desenvolvimento das ciências penais e</p><p>de uma primeira concepção da criminologia, a ideologia do tratamento,</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 3534 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>a correção dos desviados, a progressividade do regime e a retórica da</p><p>reabilitação através da pena privativa de liberdade constituíram seus</p><p>pilares mais importantes. (Bergalli 2003, Pavarini 2009, Rivera Beiras</p><p>2008). Da mesma forma, quando o penalismo a batizou com o nome</p><p>de “prevenção especial positiva” se apresentou então ideologicamente</p><p>como uma (nova) justificação daquela pena, a qual agora teria um rosto</p><p>amável, servindo para a cura, correção</p><p>e reabilitação de enfermos, des-</p><p>viados, etc. (Foucault 1986). Uma retórica – nunca cientificamente</p><p>demonstrada, notoriamente – que cumpriu por séculos a função de se</p><p>apresentar no discurso jurídico (inclusive no âmbito constitucional)</p><p>como doutrina de justificação da reclusão punitiva.</p><p>Não obstante essa pretensão, um grande catálogo de objeções</p><p>sempre colocou de manifesto a falácia central em que se assentou: ensinar</p><p>a viver em liberdade, estando os seus destinatários dela privados. Toda</p><p>pedagogia séria tem sinalizado com clareza os pilares de um processo</p><p>educativo que choca frontalmente com a aludida aporia da segregação.</p><p>Ainda que sejam conhecidos, convém recordar alguns. Em primeiro</p><p>lugar, o fato de que qualquer processo educativo comporta a promoção</p><p>da autonomia da pessoa frente a maiores cotas de responsabilização de</p><p>seus atos. Destaca-se também que reivindicar a liberdade como forma</p><p>de crescimento pessoal supõe a redução do controle sobre as pessoas e</p><p>a potencialização de maiores espaços de privacidade. Somente assim</p><p>poderá existir alguma possibilidade de desenvolvimento da autoestima</p><p>e da autoconfiança. Diversos pedagogos destacaram a necessidade de</p><p>que os processos educativos não suponham o julgamento de formas</p><p>de ser e de personalidades, e sim de atos concretos, evitando o etique-</p><p>tamento das pessoas com base na ilusão de predizer riscos. Também</p><p>diversos estudiosos desses processos educativos tem demonstrado seu</p><p>rechaço ao uso de questionários estandardizados que pretendem medir</p><p>personalidades, mas que se opõem à consideração da singularidade das</p><p>pessoas. Isso pode ser “útil” para a gestão disciplinar de uma instituição</p><p>(educativa ou de segregação), e poderá “trazer os resultados esperados”</p><p>de corte estatístico com numerosos dados que promovem sensação de</p><p>administração prisional bem sucedida. Tampouco esses métodos con-</p><p>tribuem para a construção de um princípio de alteridade baseado na</p><p>autodeterminação da pessoa. Como é facilmente compreensível com</p><p>uma aproximação mínima do universo penitenciário, nenhum desses</p><p>princípios pode ser verificado nesse âmbito.</p><p>Estas e outras razões, tantas vezes abordadas e já explicadas em</p><p>outros textos (v. Rivera Beiras 2009), foram adubando o terreno para</p><p>o abandono da tese de uma prisão terapêutica, no próprio âmbito de</p><p>onde tinham surgido, o da cultura penal norte-americana na primei-</p><p>ra metade dos anos de 1970 (justo quando na Itália, Alemanha ou</p><p>Espanha... essa finalidade era adotada por suas primeiras leis peniten-</p><p>ciárias de 1975, 1976 e1979 respectivamente). Creio que pouco foi</p><p>reparado neste movimento – no sentido inverso – ao que acabo de</p><p>referir. Naquele âmbito cultural, a crise fiscal do Estado (que James</p><p>O’ Connor anunciou en 1973) foi promovendo a morte da Ley de</p><p>sentencia indeterminada (de tradição centenária). O informe do No-</p><p>thing Works, as propostas do Justice Model ou o início das Mandatory</p><p>penalties, entre outros acontecimentos, marcaram o fim da pretensão</p><p>reabilitadora da pena. (v. Zysman 2012) E, ainda que certa retórica</p><p>reabilitadora possa ter continuado inclusive até o presente, o certo é</p><p>que, como finalidade e doutrina de justificação da pena de prisão, a</p><p>mesma ficou, digamos assim, sentenciada.</p><p>Em que pese o discurso político que hoje pretende sustentá-la</p><p>(por certo, cada vez por menos adeptos) cabe pensar: com realismo,</p><p>que sentido e que possibilidades possui uma proposta semelhante em</p><p>contexto e tempos de crise econômica profunda em que se reclama</p><p>para a prisão uma função neutralizadora?</p><p>O modelo de prisão eficiente . Como sempre acontece com</p><p>a prisão, quando e quanto mais entram em crise algumas de suas</p><p>funções, outras as substituem e, se inclusive a prisão não obtém legi-</p><p>timação externa, então uma simples operação – intrassistêmica – surge</p><p>em seu apoio. É o caso do chamado managerealismo (que denomi-</p><p>nação!), ou melhor, gestão eficiente do sistema penitenciário e seus</p><p>PRIMEIRA PARTE - BASES TEÓRICAS PARA UM EFETIVO DESENCARCERAMENTO 3736 DESENCARCERAMENTO: POR UMA POLÍTICA DE REDUÇÃO DA PRISÃO A PARTIR DE UM GARANTISMO RADICAL</p><p>estabelecimentos. Trata-se, na verdade, de um modelo que só busca</p><p>o “bom” funcionamento (e gestão) da instituição penitenciária, des-</p><p>provida de um discurso de legitimação externa.</p><p>Este discurso tem a “vantagem” de empregar o sentido comum</p><p>populista: a prisão persiste porque faz bem à única coisa que sabe</p><p>fazer, isto é, guardar pessoas e segregá-las; não tem que se buscar</p><p>outras finalidades. Associada às modernas tendências tecnocráticas das</p><p>políticas de gestão dos riscos (risk management) tem sido vinculada</p><p>à denominada Criminologia administrativa ou “atuarial”. Portanto,</p><p>pode (ainda que não necessariamente deve) incluir a aposta pela pri-</p><p>vatização das prisões que também foi ensaiada para o “bom governo”</p><p>da instituição que deve albergar “clientes” nos sistemas norteamerica-</p><p>nos, ou em âmbito de centros de menores da Espanha e outros países</p><p>(veja-se o movimento de Law and Economics e as já antigas propostas</p><p>de Gary Becker, entre os primeiros discursos que o sustentaram).</p><p>Um novo coletivo – diferente do antigo dos clássicos operadores</p><p>– acode em auxílio da prisão eficiente agora remoçada: economistas,</p><p>consultores, empresas de construção de prisões, criminólogos tecno-</p><p>cratas, trabalhadores das companhias de seguros que calculam riscos e</p><p>demais protagonistas do chamado “atuarismo penitenciário”. Inclusive</p><p>foram acrescentadas novas funções à prisão, antes desconhecidas, como</p><p>afirmar que os estabelecimentos localizados em cidades do interior pro-</p><p>moveriam uma reativação dos setores econômicos pela “dinamização”</p><p>que a nova construção, seus novos habitantes, trabalhadores, visitantes,</p><p>etc., favoreceriam. Ademais, como sempre, toda operação requer novas</p><p>linguagens: nesta visão as palavras chaves serão construir “equipamentos</p><p>para usuários”, no lugar de cárceres para presos.</p><p>Um modelo de prisão garantista? Pavarini (2009: 27) já</p><p>advertia que “viciada por um déficit teórico está a estratégia que acre-</p><p>ditou, e ainda acredita, poder afirmar a tutela dos direitos do preso.</p><p>Lembrando a antiga categoria da “supremacia especial”, adverte que</p><p>“inclusive quando o reconhecimento formal de um direito é pleno, de</p><p>fato está subordinado à natureza da punição mesma. Eu não vejo um</p><p>só direito que não seja o que contingentemente possa sobreviver às</p><p>necessidades materiais e funcionais que sustentam a execução da pena</p><p>propriamente dita. Então, honestamente, não entendo como pode</p><p>falar-se de ‘direitos’ em sentido próprio. Por certo, com essa postura o</p><p>autor italiano argumenta que “em trinta e cinco anos de reflexão sobre</p><p>a prisão nunca me interessei pelos direitos do preso. […] Evitei este</p><p>tópico com muita prudência e de maneira consciente” (op. cit.: 127),</p><p>pois entende finalmente que o “déficit teórico” do qual padece este</p><p>paradigma pode provocar um efeito “paralisante” (op. cit.: 134) Em</p><p>consequência, somente admite que um modelo como o comentado</p><p>poderia, afinal, ter uma utilidade política, toda vez que se objetivar</p><p>alcançar algo impossível. Finaliza sua argumentação indicando que</p><p>apesar de admitir-se que os processos de multiplicação e especificação</p><p>dos direitos são os que estão na base do nascimento dos direitos hu-</p><p>manos, “à diferença do que acontece em outros espaços, no sistema de</p><p>execução de penas, o conteúdo e sentido do castigo legal se constroem</p><p>como negação de direito. Superar esta posição significa renunciar a</p><p>punir. Poderá certamente avançar, porém nunca além do umbral que</p><p>nos permitirá afirmar que, finalmente, também os condenados pos-</p><p>suem direitos”. (op. cit: 136)</p><p>Essas reflexões constituem uma lúcida e séria advertência frente</p><p>a um planejamento ingênuo e talvez inocentemente crédulo acerca das</p><p>possibilidades de luta jurídica no terreno do garantismo penal, quando</p><p>o mesmo se aplica em relação à prisão. Creio que para começar este</p><p>paradigma somente pode se formular como se tem feito, isto é, ques-</p><p>tionando-o.</p>

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