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MARTINS, Flavia Linhares_Mar calmo, mar revolto-a experiência de mulheres que são mães de crianças com deficiência

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Michele Couto

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<p>PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS</p><p>Programa de Pós-Graduação em Psicologia</p><p>Linha de Pesquisa: Intervenções Clínicas e Sociais</p><p>Flávia Linhares Martins</p><p>MAR CALMO, MAR REVOLTO:</p><p>a experiência de mulheres que são mães de crianças com deficiências</p><p>Belo Horizonte - MG</p><p>2023</p><p>Flávia Linhares Martins</p><p>MAR CALMO, MAR REVOLTO:</p><p>a experiência de mulheres que são mães de crianças com deficiências</p><p>Dissertação apresentada à banca de defesa de</p><p>mestrado do Programa de Pós-Graduação em</p><p>Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de</p><p>Minas Gerais como requisito para obtenção do título</p><p>de mestre.</p><p>Orientadora: Profa. Dra. Luciana Kind do</p><p>Nascimento</p><p>Belo Horizonte - MG</p><p>2023</p><p>FOLHA DE APROVAÇÃO</p><p>Flávia Linhares Martins</p><p>MAR CALMO, MAR REVOLTO:</p><p>a experiência de mulheres que são mães de crianças com deficiências</p><p>Dissertação apresentada à banca de defesa de</p><p>mestrado do Programa de Pós-Graduação em</p><p>Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de</p><p>Minas Gerais como requisito para obtenção do título</p><p>de mestre.</p><p>Profa. Dra. Luciana Kind do Nascimento – PUC MINAS (orientadora)</p><p>Prof. Dr. Aluísio Ferreira de Lima – UFC (banca examinadora)</p><p>Profa. Dra. Cintia Bragheto Ferreira – UFTM (banca examinadora)</p><p>Profa. Dra. Olivia von der Weid – UFF (banca examinadora)</p><p>Belo Horizonte - MG</p><p>29 de março de 2023</p><p>Às mães dos meus pacientes,</p><p>que compartilharam suas histórias e me foram fonte de inspiração para essa pesquisa.</p><p>AGRADECIMENTOS</p><p>Agradeço primeiramente ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Minas</p><p>por me acolher, uma estranha no ninho. A cada um dos professores, meu muito obrigada! Vocês</p><p>não imaginam o quanto colaboraram para o meu crescimento profissional, e ainda mais pessoal.</p><p>Durante o tempo no programa construí e descontruí ideias e preconceitos, passei por</p><p>atravessamentos que me ajudaram a curar dores e me despeço com uma bagagem cheia e a alma</p><p>muito mais leve para seguir a vida.</p><p>Um agradecimento especial à minha orientadora, Profa. Luciana Kind. Lu, obrigada por</p><p>acreditar no meu deslocamento e pela paciência para que eu conseguisse alcançar cada etapa.</p><p>Obrigada pelas leituras cuidadosas e dicas valiosas para o engrandecimento desse trabalho. A</p><p>sua luz nos ilumina e nos inspira!</p><p>Aos colegas do mestrado, que mesmo não nos conhecendo pessoalmente, pelo apoio e</p><p>carinho. Um abraço especial aos que caminhamos mais de perto (os também orientados pela Lu</p><p>e às colegas que dividiram comigo a sala de videoconferência) pelas partilhas das angústias,</p><p>das alegrias e dos cafés nos bastidores.</p><p>À banca de qualificação, Carla e Olívia, pelas contribuições que tornaram esse trabalho</p><p>mais rico. À banda de defesa – Aluísio, Cíntia, Olívia e Cássia, pelo interesse e por</p><p>disponibilizarem seus tempos.</p><p>Aos profissionais das Unidades Básicas de Saúde por abraçarem esse projeto e por toda</p><p>a contribuição, essencial para a realização dessa pesquisa. À todas as participantes que abriram</p><p>seus corações, e assim também permitiram que eu pudesse abrir o meu para novas percepções.</p><p>À minha família por estarem sempre na torcida! Que privilégio poder caminhar junto a</p><p>vocês! À minha mãe: eu não sei o que você sentiu com o diagnóstico de deficiência de um filho,</p><p>mas sei que isso não interferiu no amor desprendido a cada um de um nós. Ao meu pai pelos</p><p>ensinamentos morais e à Lol pelo companheirismo. Ti, não posso mais te ver ou te tocar, mas</p><p>posso te sentir através de outros sentidos. Obrigada por sua sensibilidade, sua melodia e por nos</p><p>ensinar que a vida pode ser experenciada e muito bem vivida para além do visual. Sua história</p><p>é linda e tenho muito orgulho dela. Sentimos sua falta! Ao Ricardo, pela “troca de turno” para</p><p>que possamos crescer juntos e pelo apoio tecnológico. Ao meu filho Murilo, que quando o</p><p>“trabalho grande” terminar, vamos brincar muito. Me espera?</p><p>RESUMO</p><p>O objetivo desta pesquisa consistiu em direcionar um olhar para as experiências de</p><p>mulheres que são mães de crianças com deficiências, assim como para suas trajetórias de vida</p><p>para além da maternidade. Como objetivos específicos buscou-se compreender como são as</p><p>relações familiares, quais os fatores envolvidos na ressignificação de novas trajetórias de vida</p><p>e analisar a construção das relações de cuidado que se fazem na prática no cotidiano. As</p><p>participantes da pesquisa são mulheres que são mães biológicas e principais cuidadoras de</p><p>crianças de zero a doze anos de idade com o diagnóstico de deficiências. A produção da</p><p>pesquisa se deu por meio de entrevistas episódicas e, em um segundo momento, foi realizado o</p><p>acompanhamento no cotidiano de uma das participantes, com registros em diário de campo e</p><p>de fotografias captadas pela pesquisadora. A partir da perspectiva das experiências singulares</p><p>dessas mulheres, foi possível circular por entre áreas do campo teórico das ciências biomédicas,</p><p>humanas, sociais, dentre tantas outras. Ainda, o conhecimento prático vivenciado pelas famílias</p><p>difundiu-se em meio ao conhecimento técnico propagado. O comprometimento da saúde física</p><p>e emocional das mães transpassou a pesquisa e, muitas vezes, essas situações escapam aos</p><p>profissionais da saúde. Ainda, os percursos de vida dessas mulheres, como principais</p><p>cuidadoras, sofrem alterações em planos, rotinas e na estrutura familiar. Essas mulheres</p><p>abdicam em estar no mercado de trabalho para o cuidado da criança, este internalizado por uma</p><p>perspectiva moral e de obrigação da mãe e que deve ser enfrentado através do discurso da</p><p>resiliência e do heroísmo. Questões de gênero e de desvalorização ao se discutir o trabalho do</p><p>cuidado aparecem nos discursos. A rede de apoio não pode ser entendida apenas como o apoio</p><p>familiar e os apoios social, econômico e político precisam também ser garantidos nessa relação</p><p>mãe-filho com deficiência, sendo incluídos nas discussões dos direitos humanos e das políticas</p><p>públicas. As mulheres que cuidam também precisam ser vistas nessa teia político-relacional da</p><p>deficiência. Ainda, os trajetos da criança também foram debatidos, pois, é o corpo da mãe, como</p><p>extensão do corpo da criança, que ocupa os espaços e enfrenta as adversidades nas diversas</p><p>áreas, ampliando novas formas de ser e estar no mundo. Em tempo, o uso da fotografia na</p><p>pesquisa reforçou elementos e trouxe à luz discussões para além das narrativas orais e garantiu</p><p>a coprodução da pesquisa entre a pesquisadora e a participante. Questões sobre a multiplicidade</p><p>da deficiência e modos de vida, identidade, autoestima, interdependência com o corpo da mãe</p><p>e com as tecnologias tomaram forma e movimento com a série fotográfica.</p><p>Palavras-chave: cotidiano; crianças com deficiência; relações mãe-filho; fotografia.</p><p>ABSTRACT</p><p>The objective of this research was to examine the experiences of women who are</p><p>mothers of children with disabilities, as well as their life trajectories beyond motherhood.</p><p>Specific objectives included understanding family relationships, identifying factors involved in</p><p>the redefinition of new life trajectories, and analyzing the construction of caregiving</p><p>relationships in daily practice. Participants were biological mothers and primary caregivers of</p><p>children aged zero to twelve years with a diagnosis of disabilities. The research was conducted</p><p>through episodic interviews, and in a second phase, one of the participants was observed in</p><p>daily life, with field diary and photographs taken by the researcher. From the perspective of the</p><p>unique experiences of these women, it was possible to navigate through various</p><p>Entre estes, podemos destacar a importância da passagem de</p><p>informações claras pela equipe de Saúde, na figura de seu coordenador, quanto à</p><p>condição física e emocional da pessoa a ser cuidada e a definição de um interlocutor</p><p>familiar (BRASIL, 2013, p. 51).</p><p>32</p><p>Nas Diretrizes de Atenção à Pessoa com Paralisia Cerebral (BRASIL, 2013) é reforçado</p><p>que os aspectos identificados como relevantes pelos cuidadores, nos diferentes ambientes –</p><p>como o domicílio e escolas, devem também ser centrais na elaboração do plano terapêutico.</p><p>Nas Diretrizes de Atenção à reabilitação da Pessoa com Traumatismo Cranioencefálico</p><p>(BRASIL, 2015), responsabilidades destinadas ao cuidador também são descritas, como os</p><p>cuidados com traqueostomia, se for o caso, mudanças de decúbito como prevenção de úlceras,</p><p>atenção à higiene oral e um programa de reeducação intestinal. Adicionalmente, traz uma</p><p>reflexão com um tópico específico (“Capacitação do cuidador e empoderamento familiar”) para</p><p>discussão sobre o cuidador. Relata que o diagnóstico traz mudanças de grande impacto na vida</p><p>da pessoa e de sua família, de forma abrupta. Com a dependência para atividades cotidianas,</p><p>como alimentação, higiene, vestuário, trocas posturais, alguém da família se torna um prestador</p><p>dessa assistência, podendo ocorrer alto nível de estresse nessa relação. Dessa forma, enfatiza</p><p>como papel da equipe de Saúde a escuta, empatia, respeito, apoio, ações educativas e</p><p>treinamento prático, direcionados à promoção da qualidade de vida, tanto para a pessoa quanto</p><p>para o seu cuidador. Grupos para suporte psicológico, propiciando à família expor seus</p><p>sentimentos e estratégias de enfrentamento também contribuem para o desenvolvimento de</p><p>respostas mais adaptativas. Tais ações propiciam não apenas a recuperação da integridade</p><p>física, mas também a melhora na relação entre o cuidador e a pessoa a ser cuidada.</p><p>Nas Diretrizes de Atenção à Pessoa com Lesão Medular (BRASIL, 2013), há um tópico</p><p>sobre a forma ideal para desempenho de cuidados básicos pelo cuidador, com o fundamento de</p><p>que os esclarecimentos e o treinamento do cuidador permitem uma condução mais segura das</p><p>ações. Incluem como responsabilidade dos cuidadores diversos conhecimentos técnicos:</p><p>Ao cuidador cabe o conhecimento das características da lesão medular iniciando pelo</p><p>curso da patologia (incluindo a fase de choque medular), passando pelas alterações</p><p>sistêmicas, motoras e sensoriais e chegando às especificidades do procedimento</p><p>cirúrgico (se houver) e seus desdobramentos. Tais informações permitem uma</p><p>condução mais segura das ações que são de responsabilidade dos mesmos. O cuidador</p><p>deve ser informado e treinado na realização das técnicas de facilitação nas AVDs:</p><p>mudanças posturais, vestuário, higienização, autocuidado, transferências,</p><p>alimentação, condução da cadeira de rodas, etc. A utilização dos pontos chaves de</p><p>controle, de lençóis, alças, tábuas e cintas de transferências e de suportes disponíveis</p><p>na própria cama, podem ser encorajados, desde que sob supervisão do Terapeuta. [...]</p><p>Além das orientações descritas anteriormente, é importante que os cuidadores</p><p>aprendam a aplicar os princípios de conservação de energia, proteção articular e</p><p>vantagem biomecânica, durante as mudanças posturais, transferências e atividades</p><p>que demandem maior quantidade de força e sobrecarga articular. As posturas corretas,</p><p>o conceito de aproximação, o uso do peso corporal para facilitar os deslocamentos</p><p>com o paciente, são algumas das estratégias que podem ser treinadas junto aos</p><p>cuidadores e com participação do paciente, sempre que possível. [...] Devem ser</p><p>reforçados os treinamentos que foram oferecidos com especial atenção às estratégias</p><p>de prevenção de complicações (BRASIL, 2013, p. 49-50)</p><p>33</p><p>Igualmente, nas Diretrizes de Atenção à Pessoa com Síndrome de Down (BRASIL,</p><p>2013), os cuidadores aparecem no reforço do conhecimento por parte dos pais de consequências</p><p>biomédicas da síndrome, como o reconhecimento da apneia do sono e quanto às questões de</p><p>profilaxia de lesão cervical devido à subluxação atlantoaxial.</p><p>Nas Diretrizes de estimulação precoce: crianças de zero a 3 anos com atraso no</p><p>desenvolvimento neuropsicomotor (BRASIL, 2016), habilidades a serem desenvolvidas pelo</p><p>cuidador para atuar como coterapeuta no cuidado à criança também surgem e um programa de</p><p>treinamento para o mesmo é reforçado, visando melhores resultados no tratamento da criança:</p><p>As atividades de estimulação precoce devem ser realizadas diariamente e se possível</p><p>mais de uma vez ao dia. Porém, de nada adianta ir diariamente à sessão de terapia e</p><p>depois passar o resto do dia em situações que não favoreçam esta estimulação. É muito</p><p>mais vantajoso um bebê ir uma a duas vezes por semana na terapia onde a família e o</p><p>cuidador são devidamente orientados e participam do tratamento.</p><p>Ainda com o mesmo guia, é acrescido que “o trabalho dos profissionais que atuam em</p><p>Programas de Estimulação Precoce é bem mais abrangente do que, simplesmente, orientar os</p><p>pais sobre como proceder com o bebê e as crianças pequenas” (BRASIL, 2016, p. 168).</p><p>Empoderar a família com conhecimento é enriquecer os repertórios para atuação também em</p><p>outros contextos e interações, como uma forma de enfrentar os problemas com fortalecimento</p><p>e tranquilidade.</p><p>O termo “cuidador” também apareceu nas Diretrizes de Atenção à reabilitação da pessoa</p><p>com Transtornos do Espectro do Autismo (BRASIL, 2014), mas na exemplificação dos</p><p>comportamentos esperados por um bebê na relação cuidador-criança, dentro dos marcos de</p><p>desenvolvimento neuropsicomotor por faixa etária, assim como o termo “mãe” foi associado</p><p>nas Diretrizes de estimulação precoce: crianças de zero a 3 anos com atraso no desenvolvimento</p><p>neuropsicomotor (BRASIL, 2016) com a mesma ideia.</p><p>Assim, o termo “mãe” foi mais evidenciado nas Diretrizes direcionadas para a faixa</p><p>etária infantil. Nas Diretrizes de Atenção à Pessoa com Paralisia Cerebral (BRASIL, 2013),</p><p>assim como nas Diretrizes de Atenção à Pessoa com Síndrome de Down (BRASIL, 2013), a</p><p>palavra “mãe” aparece na sugestão de como comunicar o diagnóstico à família, e encontra-se</p><p>também no reforço da importância das trocas afetivas entre mãe e bebê para o desenvolvimento</p><p>neuropsicomotor da criança. O bom vínculo entre a díade mãe-bebê também aparece como</p><p>expectativa social nas Diretrizes de Atenção à reabilitação da pessoa com Transtornos do</p><p>Espectro do Autismo (BRASIL, 2014) e como um fator protetor para o desenvolvimento infantil</p><p>34</p><p>nas Diretrizes de estimulação precoce: crianças de zero a 3 anos com atraso no desenvolvimento</p><p>neuropsicomotor (BRASIL, 2016).</p><p>Para finalizar esse tópico, considerações provenientes de reunião técnico-política da</p><p>Coordenação-Geral de Saúde da Pessoa com Deficiência, presentes no documento Diálogo</p><p>(bio)político sobre alguns desafios da construção da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com</p><p>Deficiência do Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 2014) também serão descritas a</p><p>seguir. O propósito comum dos textos desse documento é colocar em análise dimensões</p><p>conceituais implicadas na formulação e na implementação da Rede de Cuidados à Saúde da</p><p>Pessoa com Deficiência.</p><p>O mesmo procedimento utilizado para os demais documentos foi aqui também realizado</p><p>para localizar trechos para encerramento dessa discussão. O termo “atendente”, conforme</p><p>sugerido pela Lei Brasileira de Inclusão não foi encontrado em nenhum trecho do documento,</p><p>assim como os termos “cuidador” ou “mãe”. A família aparece na discussão da criação de</p><p>serviços segregados para cada tipo de deficiência, em uma lógica de baixa capacidade de</p><p>cuidado à saúde, sem qualquer articulação com a perspectiva do cuidado integral:</p><p>Uma pessoa que tem mais de uma deficiência ou cuja deficiência produz sintomas</p><p>e/ou sequelas variadas, ficará pulando de serviço em serviço ao longo de muito tempo,</p><p>às vezes por</p><p>toda vida. Sempre falamos entre nós, no Ministério da Saúde, que essas</p><p>famílias e sujeitos estão “enroscados”: pela manhã vão ficar em um serviço, no turno</p><p>da tarde em outro; no dia seguinte em outro mais... Isso quando os serviços de que</p><p>precisam estão disponíveis e têm vagas. As famílias passam a vida peregrinando, mas,</p><p>se esse ônus fosse agregador de qualidade e cuidado, vá lá. A gente diria que há um</p><p>ganho secundário. Porém, em geral, não há ganho algum, essa segregação normativa</p><p>e programática não agrega qualidade: quem cuida de um problema não cuida do outro,</p><p>sequer conhece adequadamente as formas de vida, os problemas de saúde e as relações</p><p>que estes mantêm entre si. Repete-se a velha lógica da organização sanitária, que</p><p>temos combatido por dentro e a partir do SUS, na qual todo mundo, supostamente,</p><p>cuida de fragmentos de todo mundo, mas a responsabilidade pelas pessoas não é de</p><p>ninguém (BRASIL, 2014, p. 25-26).</p><p>A importância da participação da pessoa e da família na produção de um Projeto</p><p>Terapêutico Singular também ganha destaque no documento, assim como a interação</p><p>intersetorial, por exemplo, da saúde com a comunidade escolar.</p><p>Adicionalmente, o aspecto social da deficiência é revelado por essa passagem de texto</p><p>presente no documento, retirada de uma reportagem para argumentar sobre a autonomia da</p><p>pessoa com deficiência:</p><p>Ainda falta oportunidade para as pessoas com deficiência trabalharem. Quem está</p><p>em idade laboral hoje não teve uma educação inclusiva, mas o emprego formal exige</p><p>mais escolarização. Também falta estrutura nas próprias empresas para receber essas</p><p>35</p><p>pessoas. Como, muitas vezes, as famílias são de origem humilde, as pessoas com</p><p>deficiência acabam vendendo coxinha, pano de prato, salgadinhos, artesanato... E</p><p>normalmente para a vizinhança (BRASIL, 2014, p. 106).</p><p>Além disso, investimento contínuo no processo é discutido no documento como algo</p><p>essencial para se fazer políticas públicas para além de ações pontuais e como forma de não</p><p>negligenciar os direitos já conquistados pelas pessoas com deficiência e suas famílias. Desafios</p><p>são falados para transposição da lei ao campo da vida, para que realmente o direito ganhe “[...]</p><p>corpo, densidade, vida pulsando no real, no cotidiano dos serviços de saúde e das pessoas”, e</p><p>que é exigida a atuação dos coletivos: trabalhadores de saúde, gestores, sociedade civil</p><p>organizada, usuários, população em geral, para transpor essas dificuldades. “Produzir saúde é</p><p>estar em relação o tempo todo” (BRASIL, 2014, p. 49).</p><p>Por fim, a sociedade que estigmatiza e gera preconceito, discriminação e estranhamento</p><p>também é apresentada como um desafio. Dificuldades e sofrimento são experimentados pelas</p><p>pessoas com deficiência e seus familiares, para além das barreiras reais e das condições</p><p>singulares que cada tipo de deficiência traz. As representações de impedimento ou de limitação</p><p>ao pertencimento e à circulação social, nos campos dessas relações com a sociedade, também</p><p>são criadas e seguem como adversidades na construção dessa rede de atenção à pessoa com</p><p>deficiência (BRASIL, 2014).</p><p>Percebe-se, então, através dessa tentativa em localizar a mulher que cuida nas Políticas</p><p>Públicas de Saúde, que esse “é um debate que tem muito a avançar, considerando o seu caráter</p><p>multidimensional e também aos dilemas relacionados ao trânsito entre a responsabilidade do</p><p>cuidado entre o público e o privado” (MORAES, 2019, p. 328).</p><p>Portanto, segundo Diniz (2007, p. 11), “o ponto de partida das negociações políticas</p><p>deve ser o novo conceito de deficiência como instrumento de justiça social, e não somente como</p><p>questão familiar ou individual”.</p><p>2.3 O caminhar das mulheres que são mães de crianças com deficiências</p><p>A fim de aproximação das experiências dos familiares e de explorar o conhecimento</p><p>sobre as trajetórias das mulheres que são mães-cuidadoras de crianças com deficiências,</p><p>realizou-se uma revisão de literatura sobre a temática. As questões que delinearam a revisão</p><p>foram: como é construída a relação mãe-filho dentro do contexto da maternidade de uma</p><p>36</p><p>criança com deficiência? E quais os atravessamentos na vida cotidiana e nas relações ocorrem</p><p>nas trajetórias dessas mulheres?</p><p>Para responder à pergunta do estudo, a estratégia foi, primeiramente, fazer uma procura</p><p>de descritores no vocabulário controlado de termos em saúde (tesauro) da Biblioteca Virtual</p><p>em Saúde (BVS), relacionados à temática da questão. Foram encontrados os descritores</p><p>“Crianças com Deficiência” e “Relações Mãe-Filho”, que foram, então, utilizados em</p><p>combinação para a investigação.</p><p>Para tal, empreendeu-se uma busca bibliográfica nas bases de dados disponíveis no</p><p>Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior</p><p>(CAPES).</p><p>Relativamente à pesquisa, utilizando os descritores na língua portuguesa, abrangendo o</p><p>período entre 2012 e 2022, obteve-se apenas seis resultados. Foi realizada a leitura do título e</p><p>resumo e foram excluídos dois resultados, que representavam o mesmo artigo em diferente</p><p>idioma e que tratavam sobre a trajetória de adoção de uma criança.</p><p>A fim de ampliar os resultados, foi realizada uma nova pesquisa, utilizando apenas</p><p>palavra-chave “deficiência” associada ao descritor “Relações Mãe-Filho”. Foram encontrados</p><p>15 resultados, sendo seis coincidentes com a busca anterior. Foi realizada a leitura do título e</p><p>resumo dos demais nove artigos e foram excluídos três artigos que abordavam sobre a mãe</p><p>sendo a pessoa com deficiência e um artigo de revisão de literatura sobre os direitos do feto no</p><p>período gestacional. Mais cinco artigos foram, então, incluídos, totalizando nove estudos,</p><p>utilizando os termos de busca na língua portuguesa.</p><p>Os mesmos descritores, foram utilizados, em língua inglesa, em combinação, para uma</p><p>busca adicional: “Mother-Child Relations” e “Disabled Children”. Considerando o mesmo</p><p>intervalo de 2012 a 2022, foram encontrados 78 estudos. A fim de restringir a busca, alterou-se</p><p>para um intervalor menor, considerando os últimos cinco anos (2018 a 2022), sendo</p><p>encontrados 27 trabalhos. Após leitura do título e resumo, foram utilizados como critérios de</p><p>inclusão artigos que abordavam sobre a experiência de mulheres em serem mães de crianças</p><p>com deficiência. Foram excluídos artigos que não apresentavam correlação com essa temática,</p><p>o mesmo artigo em diferentes idiomas, artigos repetidos já selecionados na busca com os</p><p>descritores na língua portuguesa, artigos em outras línguas que não o inglês ou português e</p><p>artigos de jornal. Após essa primeira seleção, foram selecionados oito artigos nessa busca na</p><p>língua inglesa, realizados em diferentes países, para leitura na íntegra e composição dessa</p><p>revisão.</p><p>37</p><p>Considerando então, o total de 17 estudos selecionados, o primeiro movimento analítico</p><p>das fontes foi um tratamento descritivo, caracterizando a produção quanto ao título, autores,</p><p>ano de publicação, local em que foi realizado o estudo, o periódico de publicação e as bases de</p><p>dados fonte. Essas características podem ser observadas esquematicamente no Quadro 1.</p><p>Quadro 1 – Caracterização das fontes</p><p>Título Autor/ano da</p><p>publicação</p><p>País/Local do</p><p>estudo</p><p>Periódico Principais Bases de</p><p>Dados</p><p>Interfaces da relação entre o</p><p>médico e a dupla mãe-filho</p><p>em um hospital público</p><p>RESENDE;</p><p>MITRE, 2013</p><p>Rio de</p><p>Janeiro, Brasil</p><p>Revista</p><p>Brasileira de</p><p>Oftalmologia</p><p>DOAJ</p><p>From the dream to reality:</p><p>experience of mothers of</p><p>children with disabilities</p><p>GUERRA et al.,</p><p>2015</p><p>Pernambuco,</p><p>Brasil</p><p>Texto &</p><p>contexto</p><p>enfermagem</p><p>DOAJ,</p><p>SciELO Brazil</p><p>Análise da interação mãe e</p><p>criança cega</p><p>CANOSA;</p><p>POSTALLI,</p><p>2016</p><p>São Paulo,</p><p>Brasil</p><p>Estudos de</p><p>Psicologia</p><p>(Campinas)</p><p>DOAJ,</p><p>SciELO Brazil</p><p>O grupo operativo como</p><p>instrumento de</p><p>aprendizagem do cuidado</p><p>por mães de filhos com</p><p>deficiência</p><p>OLIVEIRA et</p><p>al., 2016</p><p>Minas Gerais,</p><p>Brasil</p><p>Escola Anna</p><p>Nery Revista de</p><p>Enfermagem</p><p>DOAJ,</p><p>SciELO Brazil</p><p>Mothers' Experiences of a</p><p>Women's Health and</p><p>Empowerment Program for</p><p>Mothers of a Child with a</p><p>Disability</p><p>BOURKE-</p><p>TAYLOR;</p><p>JANE, 2018</p><p>Austrália Journal of</p><p>autism and</p><p>developmental</p><p>disorders</p><p>PubMed,</p><p>Springer Online</p><p>Journals Complete</p><p>Parenting Stress and</p><p>Maternal Coherence:</p><p>Mothers With Deaf or Hard-</p><p>of-Hearing Children</p><p>JEAN et al.,</p><p>2018</p><p>Malásia American</p><p>journal of</p><p>audiology</p><p>Gale Academic</p><p>OneFile,</p><p>PubMed</p><p>Listening to the screaming</p><p>whisper: a voice of mother</p><p>caregivers of children with</p><p>autistic spectrum disorder</p><p>(ASD)</p><p>KIM et al., 2018 Estados</p><p>Unidos</p><p>International</p><p>journal of</p><p>qualitative</p><p>studies on</p><p>health and well-</p><p>being</p><p>DOAJ,</p><p>PubMed</p><p>Psychological</p><p>Characteristics of Mothers</p><p>Predict Parenting Stress? A</p><p>Cross-Sectional Study</p><p>among Mothers of Children</p><p>with Different Disabilities</p><p>NAJMI et al.,</p><p>2018</p><p>Irã Archives of</p><p>psychiatric</p><p>nursing</p><p>PubMed,</p><p>ScienceDirect Journals</p><p>Family resilience elements</p><p>alleviate the relationship</p><p>between maternal</p><p>psychological distress and</p><p>the severity of children’s</p><p>developmental disorders</p><p>SUZUKI et al.,</p><p>2018</p><p>Japão Research in</p><p>developmental</p><p>disabilities</p><p>PubMed,</p><p>ScienceDirect Journals</p><p>Child Challenging Behavior</p><p>Influences Maternal Mental</p><p>Health and Relationship</p><p>Quality Over Time in</p><p>Fragile X Syndrome.</p><p>FIELDING-</p><p>GEBHARD;</p><p>WARREN;</p><p>BRADY, 2020</p><p>Estados</p><p>Unidos</p><p>Journal of</p><p>Autism and</p><p>Developmental</p><p>Disorders</p><p>PubMed,</p><p>Springer Online</p><p>Journals Complete</p><p>38</p><p>Relationships among</p><p>parenting stress, health-</p><p>promoting behaviors, and</p><p>health-related quality of life</p><p>in Korean mothers of</p><p>children with cerebral palsy</p><p>LEE et al., 2020 Coréia do Sul Research in</p><p>nursing &</p><p>health</p><p>PubMed</p><p>“Very busy”: daily</p><p>reorganization of mothers to</p><p>care of children with</p><p>Congenital Zika Syndrome</p><p>VALE; ALVES;</p><p>CARVALHO,</p><p>2020</p><p>Bahia, Brasil Revista gaúcha</p><p>de enfermagem</p><p>DOAJ,</p><p>SciELO Brazil</p><p>Mothers´experience of</p><p>parenting a child with</p><p>chromosomal structural</p><p>abdnormalities: the Journey</p><p>to acceptance</p><p>KUTSUNUGI</p><p>et al., 2021</p><p>Japão Japan jornal of</p><p>nursing science</p><p>PubMed</p><p>Ser Mãe de Criança com</p><p>Microcefalia: Do Ideal ao</p><p>Real na Síndrome Congênita</p><p>do Zika Vírus (SCZV)</p><p>SANTOS;</p><p>FARIAS; 2021</p><p>Paraíba, Brasil Psicologia,</p><p>ciência e</p><p>profissão</p><p>DOAJ,</p><p>SciELO Brazil</p><p>Child-mothers with</p><p>congenital Zika syndrome:</p><p>daily rites for the prevention</p><p>of COVID-19</p><p>VALE et al.,</p><p>2021</p><p>Bahia, Brasil Revista Gaúcha</p><p>de Enfermagem</p><p>DOAJ,</p><p>SciELO Brazil</p><p>Narrativas no corpo:</p><p>cicatrizes e tatuagens na</p><p>experiência de adoecimento</p><p>crônico, raro e complexo</p><p>TANABE;</p><p>MOREIRA,</p><p>2022</p><p>Rio de</p><p>Janeiro, Brasil</p><p>Cadernos de</p><p>Saúde Pública</p><p>DOAJ,</p><p>SciELO Brazil</p><p>A rosácea do cuidado às</p><p>crianças com síndrome</p><p>congênita por Zika: atitudes</p><p>cuidativas dos familiares</p><p>VALE et al.,</p><p>2022</p><p>Bahia, Brasil Escola Anna</p><p>Nery Revista de</p><p>enfermagem</p><p>DOAJ,</p><p>SciELO Brazil</p><p>Fonte: elaborado pela autora</p><p>Em um segundo movimento analítico, realizou-se um mapeamento de aspectos e</p><p>dimensões destacados em cada estudo. A apresentação dos resultados será realizada de forma</p><p>descritiva, a seguir, divididos em três tópicos, a fim de responder às questões propostas para a</p><p>revisão.</p><p>2.3.1 As trajetórias: do diagnóstico à ressignificação</p><p>A construção da maternidade começa antes do nascimento do bebê, a partir de</p><p>expectativas através da história infantil dos pais, de seus conflitos inconscientes e da relação</p><p>com seus próprios pais. Assim sendo, o nascimento de um filho transforma definitivamente o</p><p>psiquismo de cada um dos pais. Esse contexto de transformações é potencializado quando a</p><p>criança apresenta alguma deficiência devido à frustração em relação ao filho idealizado. A mãe</p><p>vivencia uma desilusão devido ao luto desse imaginário, mas também devido ao enfrentamento</p><p>das sucessivas perdas reais e simbólicas durante todo o caminhar com a criança. Muitas vezes</p><p>39</p><p>as expectativas são em torno de um ideal de normalidade. A mãe é cercada por um sentimento</p><p>de medo de como a sociedade receberá seu filho e dos possíveis preconceitos que essa criança</p><p>poderá passar (SANTOS; FARIAS, 2021).</p><p>As dificuldades surgem já a partir da descoberta da deficiência do filho. A família, que</p><p>até determinado momento tinha segurança e sabia qual seu papel perante o nascimento de uma</p><p>criança, traz à tona uma série de complicações advindas de sentimento de culpa, rejeição,</p><p>negação ou desespero, modificando as relações familiares e a estrutura familiar. Lidar com a</p><p>morte do filho idealizado implica lidar com um sujeito que não se enquadra nos parâmetros de</p><p>normalidade preestabelecidos. O nascimento do diferente leva à estigmatização. A família da</p><p>pessoa com deficiência, algumas vezes, nega ou rejeita o filho (GUERRA et al., 2015).</p><p>A dificuldade em falar sobre o assunto é observada em momentos iniciais desse</p><p>processo. A falta de conhecimento sobre a deficiência propicia também a ansiedade e a</p><p>preocupação das mães, bem como não saberem como serão o seu futuro (SANTOS; FARIAS,</p><p>2021).</p><p>Então, inicia-se uma vivência marcada por anos de confusão, medo, culpa e incertezas,</p><p>com a sensação de inadequação ao ver seu filho, afastando-se cada vez mais do mundo</p><p>“normal”, que as mães gostariam tanto de lhes dar. As experiências dessas mulheres são</p><p>permeadas por situações de intenso sofrimento, conflitos emocionais e existenciais, pois elas se</p><p>sentem abandonadas e sem forças para enfrentar a situação. Desejam desistir da luta que, nesse</p><p>instante, sentem como demasiado dolorosa. Observa-se nessa fase uma ambiguidade dos</p><p>sentimentos, que revelam sofrimento diante das circunstâncias e o prazer de poder ajudar seus</p><p>filhos em detrimento do amor incondicional que permeia essa relação. Sentimentos conflitantes</p><p>são revelados em relação aos sentimentos emergidos nessa relação e a difícil e árdua tarefa de</p><p>cuidar e doar-se integralmente aos filhos (GUERRA et al., 2015).</p><p>Ultrapassada essa fase inicial, a mãe comumente transpõe os primeiros obstáculos</p><p>relacionados à experiência da maternidade de uma criança com deficiência, buscando restaurar</p><p>o equilíbrio emocional que lhe permita a criação desse filho na sociedade (OLIVEIRA et al.,</p><p>2016).</p><p>Assim, a partir dos momentos de dor e das dificuldades enfrentadas com seus filhos, as</p><p>mães aprendem a superar as barreiras e os preconceitos, amadurecendo e aprendendo a se</p><p>transformarem em pessoas fortes e credoras de um mundo melhor, bem como de uma sociedade</p><p>mais inclusiva e menos preconceituosa (GUERRA et al., 2015).</p><p>40</p><p>Através do amor, do cuidado da mãe e das várias formas de enfrentamento a criança</p><p>passa a ser desejada e se torna aceita pela mãe. Os sentimentos de medo e angústia são</p><p>superados pelo amor desenvolvido no cotidiano (SANTOS; FARIAS, 2021).</p><p>Para chegar ao estágio da superação, essas mães passaram por um processo de aceitação,</p><p>que é o mecanismo no qual os indivíduos já elaboraram os comportamentos associados aos</p><p>outros estágios, tais como a negação, tristeza, anulação e aceitação da perda, ou resignação a</p><p>ela. A aceitação expressa por essas mães é o caminho da construção de um vínculo mais</p><p>fortalecido entre mãe e filho que, até o momento, estava fragilizado devido ao processo de luto</p><p>que estavam vivenciando. (GUERRA et al., 2015).</p><p>Kutsunugi et al. (2021) evidenciam que as mães não se moviam de maneira direta na</p><p>busca de cuidado para seus filhos e para si desde o diagnóstico. Foi necessário primeiramente</p><p>o aprofundamento do vínculo nessa relação mãe-filho e a aceitação da criança como é antes de</p><p>seguirem em frente.</p><p>A partir da aceitação, a mãe e a família começam a incluir o filho na sociedade,</p><p>quebrando paradigmas e preconceitos que são impostos. Ele passa a ser visto com outros olhos.</p><p>Novas</p><p>formas de vencer os preconceitos são construídas, alicerçadas em confiança e autoestima</p><p>(GUERRA et al., 2015).</p><p>O sofrimento psicológico materno é diminuído com o desenvolvimento da resiliência.</p><p>A resiliência familiar é o processo pelo qual os membros da família resistem e se recuperam</p><p>das adversidades (SUZUKI et al., 2018). A palavra resiliência vem sendo usada em estudos no</p><p>campo da saúde, para ressaltar motivações que levam as pessoas a “superarem” traumas e</p><p>adversidades presentes na existência humana. Através do fortalecimento da resiliência, as mães</p><p>retomam a consciência de si e fortalecem a autoestima (GUERRA et al., 2015).</p><p>O apoio do marido e da família, a espiritualidade, e a psicoterapia de grupo e individual</p><p>são formas descritas como positivas ao enfrentamento, elaboração do luto e aceitação e o</p><p>renascer apesar das adversidades, adaptando-se ou superando tais experiências traumáticas ou</p><p>estressantes (GUERRA et al., 2015, SANTOS; FARIAS, 2021).</p><p>Kutsunugi et al. (2021) também reforçam que os grupos de mães em situações</p><p>semelhantes é essencial para as mulheres revisarem suas perspectivas em relação à padrões de</p><p>normalidade para seus filhos. Entretanto, mencionam como em algumas doenças raras esses</p><p>grupos podem ser escassos. Os autores salientam também a importância de que mais</p><p>conhecimento prático em relação à criação dos seus filhos precisa ser disponibilizado e</p><p>acessado por essas mães, a fim de melhoria da qualidade de vida para essas mulheres.</p><p>41</p><p>Os grupos de apoio a essas mulheres têm papel importante nessa ressignificação,</p><p>segundo Oliveira et al. (2016). Esses encontros auxiliam essas mães a se organizarem e a se</p><p>mobilizarem por meio do compartilhamento grupal de como cada participante interage a partir</p><p>de suas próprias necessidades. Os grupos assumem um papel importante de apoio mútuo para</p><p>o processo que possibilita a ressignificação da experiência de cuidar do filho com deficiência,</p><p>e não apenas com o resultado. O compartilhamento das mães constitui fio condutor para a</p><p>flexibilidade, o descentramento e a possibilidade de abertura para o novo. É importante que</p><p>esse processo seja pautado no diálogo entre o conhecimento científico e as experiências das</p><p>participantes, em uma construção coletiva, valorizando-se o grupo como uma forma de ensinar</p><p>e aprender.</p><p>Tanabe e Nunes (2022) trazem ainda sobre os testemunhos dessa experiência inscritos</p><p>diretamente no corpo materno:</p><p>As tatuagens e cicatrizes são compreendidas como marcas que apoiam a elaboração</p><p>das experiências de viver e cuidar de quem vive com deficiências, condições crônicas</p><p>de saúde raras e complexas. Embora não sejam marcas equivalentes, podem, pelo</p><p>setting em que se inscrevem e pelas narrativas que as conectam, ser interpretadas</p><p>como processos de narrativização. Constituem-se como suportes para narrativas sobre</p><p>construção de significado, luta, resiliência e afirmação identitária (TANABE;</p><p>NUNES, 2022, p. 2).</p><p>Apesar das dificuldades relacionadas às experiências, o cuidado às crianças reserva às</p><p>mães o acúmulo de conhecimento, a construção de novos saberes e práticas, bem como</p><p>ampliação das relações interpessoais entre grupos de mães que vivem as mesmas experiências</p><p>(VALE; ALVES; CARVALHO, 2020).</p><p>Portanto, é no enfrentamento das dificuldades que as pessoas produzem um saber</p><p>construtivo, formulando mecanismos de superação. Compreendemos que a resiliência esta</p><p>imbuída em todo ciclo da vida, pois ela é ativa, dinâmica e possibilita a reconstrução baseada</p><p>na capacidade de resistir e de crescer na adversidade, na medida em que estimula a autonomia</p><p>e fortalece os vínculos interpessoais (GUERRA et al., 2015).</p><p>2.3.2 O cotidiano</p><p>O diagnóstico de deficiência para uma criança prediz um acontecimento complexo e</p><p>imprevisível no contexto familiar. Os familiares passam, então, por um processo de</p><p>reconfiguração de suas vidas, em decorrência das necessidades de cuidado apresentadas pelo</p><p>filho. A partir do diagnóstico de uma criança com deficiência, é necessária uma reorganização</p><p>42</p><p>da vida prática. Sabe-se que a função de cuidar de pessoas com deficiência é expressivamente</p><p>exercida por um membro da família, geralmente a mãe, que assume a função de cuidador</p><p>principal, responsabilidade que implica com que esta criança necessite de um auxílio</p><p>diferenciado para a realização de atividades cotidianas, através da dedicação de tempo integral</p><p>da mãe (OLIVEIRA et al., 2016).</p><p>O tempo é descrito como um aspecto importante nesse cuidado. A rotina de atividades</p><p>– elencando as tarefas do ambiente doméstico, as trajetórias percorridas devido ao tratamento</p><p>e reabilitação da criança com deficiência, além dos afazeres com os outros filhos em alguns</p><p>casos, é relatada pelas mães como “bem corrida”. Um único dia é repleto de “elipses de</p><p>acontecimentos que precisam ser realizados dentro de 24 horas para o bem-estar de todos, sem</p><p>tempo para descanso dela” (VALE; ALVES; CARVALHO, 2020, p. 4).</p><p>Cuidar de uma criança com deficiência é mais exigente do que cuidar de uma criança</p><p>com desenvolvimento típico e requer tempo, atenção e autoeducação significativos. Há uma</p><p>disparidade significativa entre o estado de saúde física e mental das mães de crianças com e</p><p>sem deficiência. As mães, como principais cuidadores, têm uma experiência de vida</p><p>diferenciada, bem como estresse relacionado a uma gama de tarefas de cuidados adicionais,</p><p>incluindo cuidados médicos, gerenciamento de equipamentos, deslocamento entre os serviços,</p><p>além de assumirem papéis adicionais de coordenadora do cuidado, terapeuta e professora. A</p><p>prática centrada na família é essencial para apoiar não só a criança, mas também seus familiares</p><p>(BOURKE-TAYLOR; JANE, 2018).</p><p>Cuidados habituais em crianças de um modo geral, como dar banho, trocar fralda e</p><p>alimentação, sofrem o acréscimo do brincar que incorpora o saber dos profissionais que as</p><p>orientam quanto à estimulação da criança, a fim de um desenvolvimento pleno de suas</p><p>capacidades motoras e cognitivas. O brincar simples faz referência a qualquer tipo de ação que</p><p>provoque o sorriso da criança. Mas o brincar para estimular refere-se às ações planejadas</p><p>conduzidas pelas mães através da qualificação que receberam nos serviços de saúde (VALE,</p><p>ALVES; CARVALHO, 2020).</p><p>A otimização do tempo é relatada como parte do planejamento diário dessas mulheres:</p><p>As mães buscam economizar com outras tarefas para dedicar-se mais às crianças, bem</p><p>como agilizam seus afazeres enquanto as crianças dormem ou quando dispõem do</p><p>auxílio de outro familiar. Algumas mães optam por cozinhar a uma só vez grande</p><p>quantidade de alimentos e congelar para posterior consumo. Ao organizar</p><p>previamente as refeições da família elas evitam despender várias horas diárias na</p><p>preparação da alimentação para ampliar o tempo de cuidar da criança (VALE;</p><p>ALVES; CARVALHO, 2020, p. 5).</p><p>43</p><p>Vale et al. (2021) trazem inclusive um certo alívio nessa rotina relatado pelas mães, com</p><p>a paralisação dos serviços na pandemia. Com a não obrigatoriedade no cumprimento dos</p><p>horários de fisioterapia, acordar sem horário predefinido propiciou mais tempo para prestar</p><p>atenção no desenvolvimento da criança. O tempo gasto com o deslocamento e idas de rotina</p><p>aos serviços de saúde, passa a ser aproveitado para gerar bem-estar em um cotidiano que parecia</p><p>trágico.</p><p>Com a nova rotina, as renúncias por parte das mães são muitas. Os papéis sociais de</p><p>esposa, de mulher e de profissional, entre outros se mostram bastante comprometidos</p><p>(SANTOS; FARIAS, 2021). Essa rotina é cumprida em meio às dificuldades financeiras,</p><p>rompimento de laços com o genitor da criança, inexistência de um projeto de vida pessoal e</p><p>enfrentamento de comentários preconceituosos nos espaços públicos (VALE et al., 2021).</p><p>O cenário vivido pelas mães favorece o desequilíbrio do seu processo saúde-doença. O</p><p>acúmulo de afazeres afeta a saúde física e mental</p><p>dessas mulheres, que adquirem a</p><p>responsabilidade de suporte e cuidar de seus filhos. Muitas vezes, a assistência prestada é</p><p>voltada unicamente à doença da criança, pois esta é vista como único problema existente, e isso</p><p>faz com que todo foco do cuidado gire em torno da melhora de um quadro clínico (GUERRA</p><p>et al., 2015).</p><p>A responsabilidade do cuidado familiar não privilegia a saúde da mãe, seu descanso ou</p><p>ampliação do tempo de sono e sim as melhores condições de saúde da criança. As mães cuidam</p><p>da criança e adoecem ao mesmo tempo (VALE; ALVES; CARVALHO, 2020).</p><p>Ainda,</p><p>[...] cuidadores são um grupo de indivíduos que estão comprometidos em fornecer</p><p>apoio físico, emocional e social para seus filhos com necessidades especiais de saúde</p><p>em uma extensão que muitas vezes excede o que normalmente seria esperado dos</p><p>pais. Esses pais mantêm a responsabilidade primária de fornecer necessidades básicas,</p><p>como proteção e nutrição. Eles também assumem responsabilidades adicionais</p><p>relacionadas à educação e saúde. Os pais cuidadores muitas vezes acomodam as</p><p>necessidades de seus filhos, limitando suas próprias oportunidades de vida</p><p>pessoal. Eles se concentram mais em seus filhos do que em si mesmos. Como</p><p>resultado, esses pais tendem a apresentar estresse psicológico e experimentar níveis</p><p>mais baixos de percepção de bem-estar e qualidade de vida (KIM et al., 2018, p. 1).</p><p>O aspecto psicológico da família, em especial da mãe, é negligenciado, ficando para ela</p><p>apenas a função de cuidadora e de executora das ordens dos profissionais. O papel da mãe no</p><p>contexto familiar é daquela que não mede esforços para proporcionar o melhor aos filhos.</p><p>Diante desse contexto, essas mulheres passam a sofrer uma imposição social para exercer esse</p><p>papel de forma imperiosa, muitas vezes, tendo que abdicar de sua própria vida pessoal, social</p><p>44</p><p>e profissional, a fim de contribuir da melhor maneira para o desenvolvimento saudável dos</p><p>filhos (GUERRA et al., 2015).</p><p>Jean et al. (2018) comentam como sendo fatores estressores adicionais para essas</p><p>mulheres a pressão por adquirir novos conhecimentos e habilidades, apreensão sobre o futuro</p><p>da criança e atitudes sociais discriminativas.</p><p>Mães de crianças com deficiência são vistas como um grupo vulnerável com resultados</p><p>de saúde comprometidos e restrições para seu próprio autocuidado, participação social,</p><p>econômica e de lazer (BOURKE-TAYLOR; JANE, 2018). Ainda, o acúmulo dos afazeres</p><p>domésticos somado à responsabilidade de frequentar rotineiramente os centros de reabilitação</p><p>da criança são apontados pelas mães como empecilhos para atividades de socialização, lazer e</p><p>de autocuidado (VALE; ALVES; CARVALHO, 2020).</p><p>A participação em atividades de lazer pode ser uma importante estratégia para reduzir o</p><p>estresse da vida, melhorar as relações familiares e aumentar a satisfação com a vida das mães</p><p>cuidadoras. No entanto, as mães de crianças com deficiência são muitas vezes privadas de</p><p>atividades de lazer pessoais. As restrições de lazer pessoais são atribuídas ao aumento da carga</p><p>financeira, fadiga física e emocional persistente, a atenção constante ao filho e a falta de tempo</p><p>para si mesma e a dificuldade em encontrar algum familiar ou ajudante para assumir o cuidado</p><p>com o filho. Além disso, a prevalência do estigma social em relação às pessoas com deficiência</p><p>no público em geral e a falta de apoio social para os familiares de crianças com deficiência são</p><p>tidos como barreiras à participação no lazer e desencorajam as mães a se envolverem nessas</p><p>atividades juntamente com seus filhos. Para alguns, a alternativa é engajar em atividades de</p><p>lazer com base nos interesses de seus filhos como novo padrão. Novas atividades foram</p><p>abraçadas como resultado dessa escolha. As atividades de lazer familiar são então as mais</p><p>adotadas (KIM et al., 2018).</p><p>Desconforto físico também é relatado pelas mães. Vale, Alves e Carvalho (2020, p. 5)</p><p>inclusive comentam que as mulheres “[...] muitas vezes solicitaram que o pesquisador lhes</p><p>ajudasse segurando a criança enquanto elas realizaram exercícios de alongamento do pescoço,</p><p>coluna, mãos, pés, membros inferiores e superiores enquanto eram entrevistadas”.</p><p>A partir de um espaço de encontro em grupos, a complexidade inscrita nas experiências</p><p>de ser mãe de uma criança com deficiência pode ser explorada, a partir do compartilhamento</p><p>dos afetos, sentimentos, conhecimentos e práticas no âmbito individual e coletivo. As</p><p>ressignificações geradas repercutem de modo expressivo na dimensão cuidadora da mãe, tanto</p><p>para com ela quanto para com o filho. A ação de cuidar do filho é reconstruída no cotidiano</p><p>dessas mulheres que, concomitantemente, resgatam a autoestima, potencializadora de um</p><p>45</p><p>autocuidado anteriormente secundarizado em função do cuidado com o filho (OLIVEIRA et</p><p>al., 2016).</p><p>Os apoios profissional e social também são relatados por Jean et al. (2018) como</p><p>redutores do estresse materno, além do progresso da criança.</p><p>Um olhar para as mães através da participação em oficinas direcionas a saúde da mulher</p><p>faz com que elas se sintam valorizadas e mudanças tanto para elas quanto para a família são</p><p>conquistadas (BOURKE-TAYLOR; JANE, 2018).</p><p>O papel mediador de vários comportamentos na qualidade de vida de mães de crianças</p><p>com deficiência foi avaliado por Lee et al. (2020). Comportamentos de promoção da saúde</p><p>demonstraram melhorar a qualidade de vida nessa população, por exemplo, com maior tempo</p><p>para cuidados pessoais, tempo de lazer e suporte social. Evidenciou-se a relevância da criação</p><p>de programas de promoção à saúde para essas mulheres, valorizando a responsabilidade pela</p><p>saúde, a atividade física, nutrição, gerenciamento do estresse, a importância da espiritualidade</p><p>e a promoção das relações interpessoais.</p><p>2.3.3 As relações</p><p>O nascimento de uma criança com deficiência desencadeia uma repercussão complexa</p><p>e imprevisível de eventos, afetando a estrutura familiar. A dificuldade com o impacto da notícia</p><p>revela marcas profundas nos familiares, principalmente no casal, pois eles se sentem culpados</p><p>pela perda de uma criança sonhada, idealizada e planejada (GUERRA et al., 2015).</p><p>O bom relacionamento com o parceiro e o apoio recebido por ele interferem também na</p><p>melhora do estresse das mães. A satisfação conjugal é um fator protetor na saúde mental das</p><p>mães de crianças com deficiência (NAJMI et al., 2018)</p><p>Santos e Farias (2021) realçam a importância do ajustamento familiar e da presença do</p><p>pai como apoio no contexto familiar. A quebra do silêncio entre os pais a respeito da deficiência</p><p>favorece a adaptação de todos dentro desse contexto. Mas muitas vezes o abandono por parte</p><p>do genitor acontece antes mesmo do nascimento da criança. A ruptura nessa relação entre os</p><p>pais gera a falta de apoio do genitor no cuidado com a criança e com a mãe, sobrecarregando</p><p>ainda mais essa mulher (SANTOS; FARIAS, 2021).</p><p>Visto que a família vive uma situação de desgaste, a qualidade do relacionamento mãe-</p><p>filho também pode estar comprometida. A falta de vínculo pode comprometer a capacidade da</p><p>mulher em cuidar do filho. É essencial o restabelecimento do afeto dessa relação, através da</p><p>confiança recíproca, respeito e compreensão (GUERRA et al., 2015).</p><p>46</p><p>A interação mãe-criança também é necessária como um fator importante na otimização</p><p>do desenvolvimento da criança. Para uma estimulação adequada, é necessário que a principal</p><p>cuidadora esteja sensível aos diferentes sinais comunicativos do filho. A definição dessa</p><p>interação é complexa, mas prioriza o enfoque no caráter recíproco da mesma (CANOSA;</p><p>POSTALLI, 2016).</p><p>A qualidade do relacionamento mãe-filho também pode ser afetada pela presença de</p><p>comportamentos desafiadores da criança, presentes por exemplo em algumas crianças com</p><p>Transtorno do Espectro Autista. Níveis elevados desses comportamentos impactam</p><p>negativamente a saúde mental materna, evidenciando</p><p>maiores índices de depressão e ansiedade,</p><p>e alterações no funcionamento familiar (FIELDING-GEBHARD; WARREN; BRADY, 2020).</p><p>Aditivamente, Canosa e Postalli (2016) salientam que no caso de crianças com</p><p>deficiência visual, por exemplo, a falta de pistas visuais para auxiliar no engajamento da</p><p>interação da criança com a cuidadora podem dar à mãe a impressão de que a criança não entende</p><p>ou não se expressa emocionalmente, gerando ansiedade ou ausência de reação por parte da mãe</p><p>por não saber o que fazer. Mas as autoras reforçam a importância do desenvolvimento de formas</p><p>alternativas de interação social entre o filho e a mãe, a fim de promoção de um saudável</p><p>desenvolvimento social. A orientação aos pais deve ser oferecida quanto à importância da</p><p>linguagem oral, a qual possibilita sustentar o contato com seus filhos, expressar e compartilhar</p><p>emoções, e quanto ao exercício de exploração ativa do ambiente, proporcionando experiências</p><p>de contato físico e tato e outras estimulações sensoriais como sons, cheiros, texturas e formas.</p><p>Aquelas mães que possuem outros filhos ainda se mobilizam para atender as</p><p>necessidades desses filhos antes de ir à escola e após seu retorno:</p><p>Elas preparam a alimentação a ser consumida antes, durante e após o período escolar,</p><p>limpam o fardamento, organizam os materiais escolares e acompanham as atividades</p><p>escolares realizadas em casa. Além disso, ao retornar da escola a criança pode exigir</p><p>da mãe atenção, diálogo e outros afazeres relacionados às tarefas escolares (VALE,</p><p>ALVES E CARVALHO, 2020, p.4).</p><p>Na maioria dos casos, a mãe é a única a oferecer os devidos cuidados à criança com</p><p>deficiência, o que pode levá-la a ficar sobrecarregada, com menos oportunidade de interagir</p><p>com os demais membros da família (SANTOS; FARIAS, 2021). A rede de apoio à mãe que</p><p>vivencia a experiência de ter um filho com deficiência é restrita, fazendo com que elas</p><p>caminhem nessa jornada solitariamente, somada, muitas vezes, à ausência de políticas que</p><p>priorizem assistência também à essas mulheres (OLIVEIRA et al., 2016). Vale, Alves e</p><p>Carvalho (2020) trazem a importância do compartilhamento de saberes e práticas pelas mães</p><p>47</p><p>com alguém de confiança que lhe possa substituir quando ausente, a fim de assegurar a</p><p>continuidade do cuidado. Entretanto, a mãe utiliza de estratégias de convencimento, orientação</p><p>e estímulo para que outra pessoa cuide exatamente como ela pensa que deve ser:</p><p>As ações planejadas pela mãe tendem a prevalecer mesmo que a criança esteja sob</p><p>cuidados de outro familiar. As mães acreditam que nenhum familiar conhece melhor</p><p>a criança que elas, portanto julgam os familiares segundo suas habilidades,</p><p>conhecimentos e experiências de cuidado, para posteriormente elencar a prática de</p><p>cuidado que cada um pode exercer. Este comportamento pode torná-las sozinhas para</p><p>o cuidado ou, ainda, o medo de expor a criança perante a sociedade pode isolá-las e</p><p>restringir o seu convívio ao ambiente doméstico, resultando em estresse e depressão.</p><p>Nesse sentido as mães necessitam de apoio familiar e dos profissionais para</p><p>construção do seu processo de empoderamento individual, exterminando a “cultura</p><p>do silêncio feminino” e responsabilizando outros membros familiares pelos cuidados</p><p>(VALE et al., 2022, p. 7).</p><p>O apoio familiar também é relatado como de relevância para o enfrentamento das</p><p>adversidades. Mas esse apoio é apresentado pelas mulheres mais no sentido da aceitação e do</p><p>acolhimento, do que no compartilhamento das tarefas de cuidado com a criança (SANTOS;</p><p>FARIAS, 2021).</p><p>Kim et al. (2018) reforçam a dificuldade das mães em encontrar um ajudante que lhes</p><p>dariam um tempo livre para desfrutar de tempo para si mesma. Embora os membros da família,</p><p>como cônjuges e outros parentes fossem normalmente uma fonte confiável para cuidar de seus</p><p>filhos, eles não estão disponíveis quando necessário. Experiência semelhante está relacionada</p><p>à dificuldade em encontrar por exemplo babás confiáveis e experientes para seus filhos, devido</p><p>à dificuldade em lidar com situações inesperadas e habilidades de comunicação deficientes.</p><p>As avós das crianças com deficiência exercem papel fundamental na rede de apoio à</p><p>essas mulheres, dando suporte emocional à família e estando presentes sempre que a mãe</p><p>necessite se ausentar. As avós muitas vezes também contribuem financeiramente com o cuidado</p><p>da criança, colaboram na compra de medicamentos e pagamento de aluguel da casa (VALE et</p><p>al., 2022). As mães do estudo de Kim et al. (2018) também comentam que apenas as avós era</p><p>cuidadoras confiáveis e experientes para seus filhos, quando elas estão ausentes.</p><p>Os encontros através de grupos de apoio exercem um papel importante de suporte à</p><p>essas mulheres. Através das trocas de experiências, o compartilhamento em grupos cria um</p><p>universo de compreensão mútua entre os profissionais e as demais mulheres e produz</p><p>ressignificações às experiências individuais, possibilitando um aprendizado mútuo que apoia</p><p>as mães em suas rotinas de cuidado para com o filho com deficiência. Os grupos também são</p><p>relatados pelas mães como um lugar de orientação ao cuidado destinado ao filho, em que a</p><p>superproteção e a vitimização geradas pela deficiência dão lugar ao olhar atento para as</p><p>48</p><p>potencialidades do filho, a fim de conduzi-lo a maior autonomia e independência.</p><p>Adicionalmente, essa oportunidade de encontro é vista pelas mães como um celeiro de cuidado.</p><p>O grupo permite a elas se perceberem como seres que carecem de ser cuidadas, estimulando</p><p>nestas mães o exercício do autocuidado. (OLIVEIRA et al., 2016, p. 4).</p><p>Vale, Alves e Carvalho (2020) também trazem que grupos de convivência para as mães</p><p>significam um espaço de ajuda mútua, aprendizagem e enfrentamento de dificuldades que elas</p><p>experienciam e esperam superar.</p><p>A busca de apoio social é altamente associada ao fortalecimento da resiliência. As redes</p><p>de mães de crianças na mesma situação, como parte da estratégia informal de compreensão da</p><p>situação vivenciada por essas mulheres e suas famílias, também representam um meio</p><p>potencializador de enfrentamento das adversidades (SANTOS; FARIAS, 2021).</p><p>Os encontros com os profissionais de saúde também trazem reflexões. Resende e Mitre</p><p>(2013) discutem sobre a relação entre o médico e o paciente. Reforçam que a natureza da</p><p>interação médico-paciente vem carregada de sentidos que cada um tem em relação ao outro,</p><p>além de sofrer a influência de fatores, como os aspectos psicossociais do paciente e do médico</p><p>(medos, expectativas, ansiedades, etc.), experiências anteriores, personalidade de cada um,</p><p>fatores psicológicos (estresse, frustração, etc.) e treinamento técnico do profissional. A forma</p><p>da comunicação de diagnósticos pode interferir tanto na relação do médico com o paciente e</p><p>sua família, como na relação que estes terão com a doença por toda a vida. No caso da</p><p>assistência à infância, esta situação pode ser potencializada, uma vez que há a expectativa social</p><p>de uma fase da vida de pleno desenvolvimento e que pode acarretar repercussões na vida da</p><p>criança, da família e na relação materno-infantil que se encontra atravessada pela condição</p><p>crônica.</p><p>A lacuna em perceber o significado do adoecer para o paciente e sua família e</p><p>compreender o sofrimento a partir da valorização das experiências, expectativas, valores e</p><p>necessidades da criança e da sua família, é levantada na formação tecnicista do profissional da</p><p>saúde. Vínculo é essencial nessa relação, e aspectos relatados como limitantes foram a</p><p>referência do paciente para uma instituição e não para um profissional específico, o que faz</p><p>com que o paciente seja atendido cada vez por um profissional diferente. Outros fatores que</p><p>podem comprometer a escuta e o diálogo são a presença de vários profissionais da saúde em</p><p>uma mesma sala, a falta de privacidade e interrupções frequentes à consulta. Faz-se necessário</p><p>haver uma sensibilidade</p><p>por parte do profissional para conhecer a realidade do paciente, ouvir</p><p>suas queixas e encontrar, junto com ele, estratégias que o auxiliem na adaptação ao estilo de</p><p>vida exigido pela condição crônica (RESENDE; MITRE, 2013).</p><p>49</p><p>Orientações e rotinas planejadas por profissionais e prescritas de forma assimétrica</p><p>tentam sobrepor os saberes profissionais aos familiares. O modo de reconhecer o mundo e a</p><p>dinâmica social das mulheres precisam ser legitimados em saberes e práticas: “somente o</p><p>convívio, o ‘pegar’ e o ‘sentir’ seus filhos asseguram o melhor cuidado à criança” (VALE;</p><p>ALVES; CARVALHO, 2020, p. 8).</p><p>Nesse sentido, autores argumentam a necessidade de um novo modelo de relação entre</p><p>os profissionais da saúde e o paciente e suas famílias, baseada no diálogo, na parceria e</p><p>colaboração do paciente e da família no tratamento, na escuta das percepções e representações</p><p>do paciente em relação à doença, numa junção do conhecimento científico com o campo das</p><p>vivências e o saber do senso comum. A colaboração e participação do paciente precisam ser</p><p>valorizados. Dois indivíduos somente estão dialogicamente ligados e voltados um para o outro,</p><p>se eles se reconhecerem como sendo mutuamente influenciados e se compreenderem</p><p>(RESENDE; MITRE, 2013).</p><p>Além do mais, os profissionais de saúde devem se adentrar no universo de exclusão e</p><p>preconceitos sofridos pelos pacientes, trabalhando em prol da inclusão desses indivíduos nessa</p><p>sociedade, mediante o cuidado voltado para suas necessidades e anseios e, acima de tudo,</p><p>ajudando as mães a aceitarem seus filhos com suas deficiências, e sobretudo, com suas</p><p>possibilidades (GUERRA et al., 2015).</p><p>50</p><p>3 DELINEAMENTO METODOLÓGICO</p><p>Tomar uma lupa é prestar atenção,</p><p>mas prestar atenção não será possuir uma lupa?</p><p>A atenção é por si só uma lente de aumento.</p><p>(Gaston Bachelard, A poética do espaço, 1979, p. 300)</p><p>3.1 Traçado da pesquisa</p><p>Caprara e Landim (2008) discursam sobre o aumento do interesse na Antropologia nas</p><p>pesquisas em saúde, especialmente a fim de valorizar a perspectiva dos usuários, dada a abertura</p><p>desses pontos de vistas nas políticas públicas. Dessa forma, para a produção de material</p><p>empírico, a pesquisadora se fundamentou na Antropologia. Na perspectiva antropológica, é</p><p>necessário o deslocamento do olhar sobre o corpo das ciências médicas para o olhar sobre a</p><p>construção social e relacional do corpo, com o foco na interação e nos múltiplos atores que</p><p>integram o cenário social. Ao mesmo tempo, a ênfase na perspectiva do ator social e em sua</p><p>capacidade de agenciamento aponta para o fato de que é a partir das pessoas ou de grupos</p><p>sociais que são construídas as articulações entre os diferentes conceitos e práticas (LANGDON,</p><p>2014).</p><p>Fleischer e Lima (2020, p. 31) relatam ainda que “a antropologia é uma área científica</p><p>que aposta nas histórias que as pessoas nos contam. É a partir dessas histórias que vamos</p><p>tentando entender o que e como as pessoas fazem suas escolhas, valorizam mais algumas do</p><p>que outras, organizam suas vidas de certa maneira”. O ato de contar histórias sobre si ou sobre</p><p>os outros pode revelar como essas mulheres agem diante da experiência de ser mãe de uma</p><p>criança com deficiência e pode propiciar conhecimento prático que auxilie outras famílias na</p><p>mesma situação. Ao explanar suas histórias, os sentimentos tomam forma e criam sentidos.</p><p>Esse processo atravessa a experiência em toda a linha do tempo da vida da pessoa, que tenta</p><p>localizar os eventos em sua própria história, colocando-os numa ordem que tenha significado,</p><p>articulando passado, presente e futuro, por meio do mecanismo reflexivo, terapêutico e</p><p>transformador. Assim, não só vivências passadas são apresentadas sob o olhar do presente, mas</p><p>projetos também podem ser criados para o futuro (GOOD, 2003). Ainda, ao narrar suas</p><p>histórias, as pessoas se modificam, e são capazes de criar outras trajetórias. Modificam também</p><p>a pesquisadora que ali se entrelaça e toda comunidade científica. (CLANDININ; CONNELLY,</p><p>2011).</p><p>51</p><p>Muylaert et al. (2014) acrescentam a esse ponto de vista, o poder de revelação de</p><p>fenômenos socioculturais das narrativas:</p><p>As narrativas combinam histórias de vida a contextos sócio–históricos, ao mesmo</p><p>tempo que as narrativas revelam experiências individuais e podem lançar luz sobre as</p><p>identidades dos indivíduos e as imagens que eles têm de si mesmo, são também</p><p>constitutivas de fenômenos sócio-históricos específicos nos quais as biografias se</p><p>enraízam. As narrações são mais propensas a reproduzir estruturas que orientam as</p><p>ações dos indivíduos que outros métodos que utilizam entrevistas. Dessa maneira, o</p><p>objetivo das entrevistas narrativas não é apenas reconstruir a história de vida do</p><p>informante, mas compreender os contextos em que essas biografias foram construídas</p><p>e os fatores que produzem mudanças e motivam as ações dos informantes.</p><p>(MUYLAERT et al., 2014, p. 196).</p><p>Assim sendo, frente aos objetivos da pesquisa, o estudo foi desenvolvido a partir de uma</p><p>abordagem qualitativa por meio da etnografia narrativa. A etnografia descreve um grupo</p><p>humano, seus comportamentos interpessoais, suas ações e suas crenças, e se ocupa em estudar</p><p>as vidas cotidianas rotineiras. Ela foi desenvolvida para abranger grupos de interesse, bem</p><p>definidos por dado contexto, dentro de sociedades mais amplas. É uma abordagem que evoca a</p><p>experiência vivida do grupo em estudo, conhecendo a perspectiva dos próprios participantes</p><p>sobre as questões, ao invés de apresentá-las da perspectiva externa da pesquisadora, através de</p><p>enquetes desenvolvidas a partir de literatura investigativa existente. A pesquisa etnográfica é</p><p>utilizada também para identificar participantes até então invisibilizados em uma rede da</p><p>interação social (ANGROSINO, 2011).</p><p>O método da etnografia narrativa, é capaz de descrever não apenas o que uma pessoa</p><p>pensa ou faz, mas também rastreia suas ações e suas relações com determinada experiência,</p><p>buscando identificar as dimensões mais amplas que podem influenciar nessas escolhas na</p><p>prática. Esse método tem como finalidade organizar os significados de uma experiência paras</p><p>as pessoas. Considerando que as pessoas têm várias experiências no curso de suas vidas e agem</p><p>de diferentes formas de acordo com as várias circunstâncias que surgem, essas ações formam</p><p>diferentes biografias e caminhos próprios (CRANG; COOK, 2007).</p><p>Ainda sobre a etnografia narrativa, Gubrium e Holstein (2008) sugerem que a pesquisa</p><p>combine variadas abordagens técnicas, a fim de identificar detalhes da experiência do indivíduo</p><p>sobre um evento, processo ou fenômeno da vida cotidiana. Os procedimentos podem variar</p><p>entre entrevistas, questionários, observação, conversação, construção da genealogia, estudo de</p><p>casos, fontes visuais, como vídeos ou fotografias, dentre outros (CRANG; COOK, 2007). A</p><p>narrativa é tipicamente oral, mas pode também tomar outras formas literárias ou artísticas a fim</p><p>de transmitir a história (MARCONI; PRESOTTO, 2019). Recomenda-se também o uso de</p><p>52</p><p>notas no diário de campo para que as informações não verbalizadas e o contexto observado não</p><p>se tornem esquecidos. Nele busca-se anotar observações, experiências, sentimentos e sensações</p><p>da pesquisadora dentro do contexto do investigado (CAPRARA; LANDIM, 2008). Assim</p><p>sendo, as notas de campo da pesquisadora serão apresentadas entremeadas no contexto dos</p><p>resultados da pesquisa.</p><p>Isso posto, a pesquisa foi realizada em duas etapas: 1) a produção de fontes orais, através</p><p>de entrevistas; 2) o acompanhamento do dia a dia de uma das participantes, com registros em</p><p>diário de campo e a construção de fontes visuais por meio de fotografias. A pesquisa foi</p><p>aprovada pelo Comitê de ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas</p><p>Gerais, sob o CAAE n.º 61113722.1.0000.5137 (Anexo</p><p>A).</p><p>3.2 Primeira etapa da pesquisa: as entrevistas</p><p>As participantes da primeira etapa foram mulheres, que são mães biológicas e principais</p><p>cuidadoras de crianças, de zero a doze anos de idade, com o diagnóstico de alguma deficiência,</p><p>que residem no município de Poços de Caldas. Como critérios de exclusão, situam-se mulheres</p><p>que não são as mães biológicas, visto que podem ter assumido voluntariamente o cuidado dessas</p><p>crianças. Excluiu-se também famílias que são assistidas no território de atuação da</p><p>pesquisadora, a fim de não embaralhar os papéis da investigação e da assistência à saúde.</p><p>Considerando a APS a porta de entrada e o centro articulador do acesso dos usuários ao</p><p>SUS, o convite a tais mulheres foi realizado e mediado através de indicação pelos profissionais</p><p>de Unidades Básica de Saúde (UBS), considerando as famílias adscritas no território de suas</p><p>atuações. Para tal, foi assinado o Termo de Anuência Institucional (Anexo B) pela Secretaria</p><p>Municipal de Saúde do Município de Poços de Caldas.</p><p>As negociações iniciaram-se por contato via WhatsApp com três enfermeiras que já</p><p>trabalhei conjuntamente na APS, mas que mudaram de área e que atuam hoje em unidades que</p><p>não presto assistência. Para essas três UBS que fiz contato, a entrada no campo se fez</p><p>semelhante: com um encontro inicial agendado onde foi explicado para as enfermeiras os</p><p>critérios de inclusão e exclusão para a indicação, assim como a negociação do uso de uma sala</p><p>no ambiente da UBS, para que a entrevista pudesse ser realizada de forma presencial e privativa.</p><p>Um documento breve explicativo e uma cópia do Termo de Anuência da Secretaria Municipal</p><p>de Saúde de Poços de Caldas foram entregues por escrito. A sugestão após essa conversa inicial</p><p>foi apresentar o projeto para os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), onde foram feitas</p><p>indicações também por esses profissionais das mulheres adscritas em suas respectivas</p><p>53</p><p>microáreas que preenchiam os critérios. O passo seguinte foi o convite, realizado pela própria</p><p>enfermeira e pelos próprios ACS, através do teleatendimento de cada microárea via WhatsApp,</p><p>e o agendamento da entrevista da mulher que aceitasse participar, em horário oportuno para a</p><p>participante.</p><p>Na primeira UBS que iniciei o estudo, uma das entrevistas foi agendada para o ambiente</p><p>da UBS, conforme previsto pela pesquisa. Já, para outra participante, após o contato, ela aceitou</p><p>participar, mas foi sugerido que a entrevista fosse realizada em seu domicílio, com a</p><p>justificativa da dificuldade em sair de casa devido às condições da criança. E assim foi pactuado</p><p>e agendado essa segunda entrevista dessa região. Na segunda UBS, duas entrevistas foram</p><p>realizadas no ambiente da UBS: uma por indicação do ACS e a outra participante era a própria</p><p>ACS que trabalhava na unidade e preenchia os critérios de inclusão do estudo e aceitou</p><p>participar. A terceira entrevista realizada nesse território aconteceu no domicílio da</p><p>participante. Devido à dificuldade de contato pelo teleatendimento, o ACS responsável por</p><p>determinada área me convidou para irmos até a casa de uma pessoa que ela indicou. Chegando</p><p>até lá, a mulher estava em casa, foi apresentada a pesquisa no portão e, caso ela aceitasse</p><p>participar do estudo, a ideia inicial era agendar um horário na UBS para a entrevista. A</p><p>participante aceitou e perguntou se poderia ser naquele momento e me convidou para entrar e</p><p>a entrevista foi realizada, então, em sua casa. Já na terceira UBS, duas entrevistas foram</p><p>realizadas no ambiente da própria UBS, conforme previsto pela pesquisa.</p><p>Mais uma entrevista foi realizada, no ambiente de uma quarta UBS, mas o convite foi</p><p>realizado por mim diretamente à participante, sem intermediação da enfermeira da UBS. Essa</p><p>participante é uma técnica de enfermagem que já trabalhamos juntas em uma UBS e que mora</p><p>em uma área diferente da que atuo, e que aceitou participar do estudo.</p><p>Nessa primeira fase, realizou-se, então, oito entrevistas, do tipo entrevista episódica.</p><p>Flick (2009) considera a entrevista episódica uma técnica que permite à pessoa entrevistada</p><p>decidir a forma da resposta, mas que é guiada por situações experienciadas por ela e que são</p><p>relevantes para o estudo. Dessa forma, nesse tipo de entrevista, há uma coalizão entre a lógica</p><p>da entrevista narrativa (com foco em percursos singulares) e uma configuração da entrevista</p><p>semiestruturada (visto que foi intuído que há situações que são vividas por todas as participantes</p><p>da pesquisa). À vista disso, o foco das questões gera narrativas de situações, o que favorece a</p><p>comparação de experiências semelhantes diante das situações relevantes para o contexto</p><p>temático da pesquisa, mas sem perder de vista a singularidade das trajetórias de cada</p><p>participante.</p><p>54</p><p>A participante, após leitura e o consentimento, assinou o Termo de Consentimento Livre</p><p>e Esclarecido (Apêndice A). Essa etapa foi gravada, com captação de áudio, através de gravador</p><p>de som portátil da marca Sony, modelo ICD-PX240. Foi explicado para as participantes,</p><p>inicialmente, como essa forma de entrevista seria conduzida, a fim de familiarizá-la e deixá-la</p><p>mais confortável: “Nesta entrevista, vou pedir, por várias vezes, que você relate situações nas</p><p>quais você teve determinadas experiências. Não há respostas certas ou erradas. Fique</p><p>totalmente à vontade para detalhar momentos de sua vida que você acha importantes”. Após</p><p>esse acolhimento inicial, foram explorados episódios relacionados à maternidade, às relações</p><p>familiares e à vida cotidiana, de acordo com os objetivos da pesquisa (Apêndice B).</p><p>Todas as entrevistas seguiram, assim, a seguinte ordem: foi apresentada a pesquisa e</p><p>perguntado se aceitavam participar. Após a concordância, o TCLE foi lido em voz alta</p><p>conjuntamente com a participante, e assinado em duas vias. As participantes também foram</p><p>esclarecidas de que as entrevistas seriam gravadas em aparelho de áudio e assinalaram essa</p><p>autorização no TCLE, e que suas identidades seriam preservadas na divulgação dos resultados.</p><p>3.3 Segunda etapa da pesquisa: o acompanhamento de um dia na vida de uma das</p><p>participantes</p><p>Além da entrevista, uma das participantes da primeira etapa foi convidada para o</p><p>segundo momento da pesquisa: um acompanhamento pela pesquisadora de um dia de sua vida,</p><p>negociado com a participante. A documentação dessa etapa foi através de registros de conversas</p><p>em diário de campo e de fotografias captadas pela própria pesquisadora. Informada das</p><p>intenções da utilização das imagens na pesquisa, a participante assinou o Termo de</p><p>Consentimento de Uso de Imagem (Apêndice C). Considerando que, ao realizar essa etapa, a</p><p>filha com deficiência da participante, de 11 anos, estava presente na casa e tem total capacidade</p><p>compreensiva para o entendimento da pesquisa, foi elaborado também o Termo de</p><p>Assentimento de Uso de Imagem, em linguagem acessível para a criança e foi solicitada</p><p>também a aprovação da adolescente para a realização dessa etapa da pesquisa (Apêndice D),</p><p>assim como de sua responsável (Apêndice E).</p><p>A abordagem etnográfica, segundo Caprara e Landim (2008), tem sido utilizada por</p><p>diversos autores na área da saúde, a fim de entender os significados e as experiências de certos</p><p>grupos e devido à dinamicidade em acrescentar novos elementos para construir o saber teórico,</p><p>à medida que a pesquisa vai sendo realizada. Entretanto, realizar um estudo etnográfico</p><p>pressupõe um prolongado período em contato direto com os participantes, nem sempre</p><p>55</p><p>disponível no tempo dedicado aos cursos de pós-graduação, assim como uma familiaridade da</p><p>pesquisadora com os textos clássicos da Antropologia e com a habilidade de leitura das fontes</p><p>produzidas. Assim sendo, como sugerem as autoras, realizou-se na segunda etapa dessa</p><p>pesquisa uma “observação de tipo etnográfica”, respeitando que “o elemento principal que</p><p>caracteriza ainda hoje a pesquisa etnográfica</p><p>fundamenta-se na observação cuidadosa das</p><p>práticas realizadas, em uma contínua tensão entre análise científica e experiência da vida</p><p>quotidiana” (CAPRARA; LANDIM, 2008, p. 372).</p><p>Para corroborar essa abordagem, Spink (2008) defende que o cotidiano é denso e</p><p>formado por muitos “micro lugares” construídos e continuamente refeitos, numa tarefa</p><p>permanente e sem fim. Em pequenas sequências de eventos, no contexto desses “micro-</p><p>lugares”, é que são evidenciados os vários processos sociais e identitários produzidos. Assim,</p><p>sugerem uma inserção horizontal da pesquisadora nesses fluxos de espaços, conversas,</p><p>encontros, pessoas e objetos das participantes.</p><p>Fleischer e Lima (2020) ainda adicionam que</p><p>A Antropologia é uma área científica que trabalha a partir de um olhar microscópico,</p><p>começar por uma abordagem microssociológica ou micro-histórica, e pretende</p><p>entender e descrever um microcosmo [...]. Em geral, nos concentramos em uma</p><p>realidade mais circunscrita, conhecemos e nos aprofundamos em uma casa, um bairro,</p><p>um evento para, então lançarmos análises maiores, mais abrangentes e arriscadas. [...]</p><p>É, justamente, na riqueza dos detalhes e das miudezas que apostamos encontrar</p><p>significados que vão também ressoar para outras mães, crianças, casas e cidades.</p><p>(FLEISCHER; LIMA, 2020, p. 31).</p><p>Logo, em sintonia com Barreto (2019, p. 314), pretende-se que esta proposição</p><p>metodológica, que articula entrevista, observação e fotografia, se apresente como “um</p><p>compromisso de abertura à complexidade, ao diferente e à exploração daquilo que se tenta</p><p>invisibilizar”, a fim de ampliar o olhar para além das paredes das UBS. A fotografia pode</p><p>revelar informações a respeito das experiências das participantes e complementar o que não</p><p>pode ser revelado apenas pela entrevista.</p><p>O foto-ensaio proposto por Rose (2012) foi a escolha metodológica para o uso da</p><p>imagem nessa segunda etapa da pesquisa. Pretendeu-se utilizar a fotografia, não como</p><p>ilustração, mas como um componente narrativo da pesquisa e como uma forma particular e</p><p>integrante da produção da pesquisa. O foto-ensaio, guiado pelo protagonismo das mulheres,</p><p>tem por objetivo produzir reflexões e despertar emoções e afetos adicionais à entrevista.</p><p>Segundo Rose (2012) as imagens podem codificar uma enorme quantidade de</p><p>informações, para além do que está representado. O foto-ensaio é comumente utilizado para</p><p>56</p><p>responder a questões de pesquisa que são difíceis de representar apenas com o texto. Além</p><p>disso, fotografias podem ser instrumentos valiosos por evocar uma ampla gama de respostas no</p><p>espectador do ensaio fotográfico.</p><p>As imagens foram captadas com câmera Canon modelo EOS 750D e lente 24 mm/2.8,</p><p>e receberam tratamento através do programa Lightroom Classic, como alteração em exposição,</p><p>contraste, cores, mas não sofreram manipulação do tipo adicionar ou retirar elementos,</p><p>preservando a originalidade do registro.</p><p>Em momento posterior, após a escolha de algumas imagens pela pesquisadora e</p><p>revelação em papel fotográfico, tamanho 10 x 15 cm, um encontro com a participante foi</p><p>agendado. Nessa primeira seleção pela pesquisadora só foram utilizadas imagens em que</p><p>apareceram apenas a participante, mas de forma que a mesma não fosse identificada – como</p><p>silhuetas, sombras, perfil, recortes sem mostrar o rosto da participante, objetos ou ambiente,</p><p>e/ou com as demais pessoas não identificáveis; e excluídas as fotografias que apareçam</p><p>claramente a participante ou sua filha.</p><p>O objetivo desse encontro de diálogo foi negociar com a participante quais as imagens</p><p>seriam incorporadas às publicações da pesquisa, como a dissertação e as possíveis produções</p><p>bibliográficas e técnicas, assim como um convite à participante para sugerir um título para cada</p><p>imagem e para instigar reflexões acerca dos registros visuais realizados. Enquanto ferramenta,</p><p>a arte possibilita o diálogo de assuntos difíceis e a produção de sentidos associados a</p><p>determinados fenômenos (FERREIRA, 2022). Essa conversação foi gravada em áudio, com</p><p>autorização da participante. Essa etapa teve inspiração na foto-elicitação, proposta por Rose</p><p>(2012), em que as imagens são mostradas à participante, como uma estratégia criativa para</p><p>auxiliar na expressão de percepções.</p><p>Ao narrar sobre o que ela vê na fotografia, a participante dá sentido às imagens e para</p><p>as vivências que elas evocam, e dessa forma</p><p>a fotografia recebe duplamente o papel de dar visibilidade: mostrar o fragmento do</p><p>mundo que seu autor escolheu para capturar e, por outro lado, fazer ´ver`, resgatar</p><p>memórias, construir sentidos para uma realidade que outrora era despercebida.</p><p>Mediado pelo pesquisador o contato com a fotografia impele os participantes a</p><p>perceber, refletir e significar (JUSTO; VASCONCELOS, 2009, p. 770-771).</p><p>Ainda com esses autores, a fotografia é um congelamento de um momento único,</p><p>estático, do passado. O encontro posterior com esse registro é capaz de abrir diálogos para a</p><p>expressão das participantes do seu modo de ver e compreender suas vivências. Através da</p><p>observação daquele fragmento, a participante pode narrar, comunicar e é incitada a completar</p><p>57</p><p>a imagem com palavras, para além de uma decodificação objetiva, construindo novos olhares.</p><p>“É um exercício cognitivo de criar e recriar mundos, do autor e também do leitor, constituindo</p><p>um processo comunicativo” (JUSTO; VASCONCELOS, 2009, p. 771).</p><p>Dessa maneira, e reforçando o protagonismo da participante em todas as etapas da</p><p>pesquisa, esse encontro de diálogo foi estruturado a partir das seguintes premissas: a) a imagem</p><p>é estática, convidar a participante a completar e expandir o que a pesquisadora viu; b) a</p><p>participante está diante de si mesma, estimular o diálogo e o reconstruir-se; c) abrir caminhos</p><p>para a expressão da participante e a evocação de memórias; d) quais as subjetividades reveladas</p><p>e os modos de ver e compreender as suas vivências; e) aguardar o tempo para perceber, refletir</p><p>e significar as imagens.</p><p>Através de inspiração no acrônimo “SHOWeD” (WANG et al., 1998), onde: S – see (o</p><p>que você vê aqui?), H – happening (o que realmente está acontecendo aqui?), O – our (Como</p><p>é que isso se relaciona com nossas vidas?), W – why (por que esse problema existe?) e D – do</p><p>(o que podemos fazer sobre isso?), utilizado geralmente em pesquisas que têm a Photovoice</p><p>como abordagem, as seguintes etapas foram esquematizadas e seguidas nessa pesquisa:</p><p>1 – Foram mostradas à participante, uma foto por vez, em ordem pré-escolhida pela</p><p>pesquisadora, de forma que uma narrativa visual foi construída, e perguntado o que ela via. Foi</p><p>aguardada a expressão das percepções, reflexões e significados despertados. Ao total, foram</p><p>escolhidas inicialmente pela pesquisadora 29 fotografias, que foram entregues para visualização</p><p>da participante, uma a uma;</p><p>2 – Perguntado à participante uma sugestão de título para cada imagem, após as</p><p>enunciações exteriorizadas por meio da fala. Solicitado a ela que anotasse no verso da</p><p>fotografia, com a sua letra, o título proposto (Fotografias 1 e 2);</p><p>3 – As fotografias apresentadas foram sendo expostas na mesa, após a anotação do título,</p><p>de forma que, aos poucos, a participante conseguia ir vendo a narrativa;</p><p>4 – Após o diálogo sobre essas 29 fotografias, foi perguntada à participante se gostaria</p><p>de retirar da pesquisa alguma fotografia pré-selecionada pela pesquisadora, pelo fato de o</p><p>registro não representar a vivência da participante ou por qualquer fator que a incomodasse. A</p><p>resposta foi negativa. Foi questionado, então, se alguma imagem despertava algum sentimento</p><p>ruim ou mais difícil de lidar, e foi apontada a Fotografia 12, com a expressão que ela</p><p>representava por “viver no medo”. E a escolha, dialogada com a participante, foi a de manter</p><p>essa fotografia na narrativa, pelo fato de “ser um dos dias mais difíceis que a gente passou” e</p><p>ser importante para a narrativa;</p><p>58</p><p>Fotografia 1 – Procedimentos da devolutiva</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2023.</p><p>Fotografia 2 – Os títulos das imagens</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2023.</p><p>5 – Outros registros realizados no dia do acompanhamento do cotidiano e selecionados</p><p>pela pesquisadora foram também revelados em papel fotográfico, mas não foram incluídos na</p><p>seleção inicial pela pesquisadora. Em um último momento do encontro, essas fotografias foram</p><p>59</p><p>entregues, em bloco, à participante e perguntado a ela se teria mais alguma imagem que ela</p><p>gostaria de incluir na pesquisa e, se sim, o que ela percebia. A participante incluiu mais três</p><p>fotografias. Uma delas ela nomeou como “Filha, vem aqui!” (Fotografia 21) e alegou que antes</p><p>do uso da cadeira de rodas motorizada, “isso não existia”, que com a “liberdade para ir e vir</p><p>com a cadeira”, agora ela pergunta: “Filha, onde você está? Filha, vem aqui!”. A segunda foto</p><p>(Fotografia 7) a participante nomeou como “Sempre Juntas”, e apesar de já ter uma foto na</p><p>narrativa do mesmo momento, a participante sugeriu adicionar e manter as duas – “acho que</p><p>essa daqui complementa muito, né? As duas”. A terceira foto incluída pela participante ela</p><p>nomeou como “O voo dos passarinhos” (Fotografia 23), a qual foi a escolha para a capa dessa</p><p>dissertação.</p><p>Alguns registros fotográficos, como retratos e fotos da participante com sua filha, foram</p><p>realizados pela pesquisadora durante o acompanhamento e fornecidos à participante no</p><p>encontro de devolutiva, como recordação e lembrança do seu momento com sua filha, mas não</p><p>serão utilizados nas publicações da pesquisa.</p><p>Assim como as fontes orais produzidas por entrevistas episódicas, as fotografias tiveram</p><p>a intenção de despertar um olhar para o cotidiano de mulheres que são mães de crianças com</p><p>deficiências. Aposta-se na linguagem fotográfica também como uma forma de comunicação</p><p>cientificamente orientada para essas experiências, com potencial de sensibilizar as próprias</p><p>participantes, profissionais de saúde e a sociedade em geral para tais experiências.</p><p>3.3.3 Reflexões teóricas sobre o uso da fotografia na pesquisa em ciências sociais</p><p>Na pesquisa em ciências sociais é de costume tomar a fala dos participantes como</p><p>instrumento metodológico. Entretanto, a imagem pode ser também uma ferramenta na leitura</p><p>dos fenômenos da sociedade (VELLOSO; GUIMARAES, 2013).</p><p>Ainda com esses autores, a sociologia e a antropologia têm como material não a</p><p>realidade, mas a interpretação da realidade pelas participantes da pesquisa, o que torna sua vida</p><p>acessível. Ao dar entrevistas à pesquisadora, as pessoas relatam fatos, interpretando-os. O que</p><p>os cientistas analisam é a interpretação que essa pessoa faz dos processos interativos que</p><p>vivencia, vinculados às referências estruturais e mesmo históricas que revelam e iluminam o</p><p>que é social. Os textos de campo, portanto, são interpretações de segunda e terceira ordem, na</p><p>medida em que somente o participante faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura. Os</p><p>textos antropológicos abordam algo construído pelos pesquisadores, a partir da interpretação</p><p>do acontecimento de falar, não o acontecimento como acontecimento. Ao escrever o discurso</p><p>60</p><p>social, pesquisadores transformam o relato de um acontecimento passado para uma informação</p><p>que pode ser consultada em momentos futuros (VELLOSO; GUIMARAES, 2013).</p><p>Logo, o que um antropólogo busca é imergir, mergulhar e entender as significações da</p><p>história, através do labirinto de memórias dos participantes. Nessa escavação e varredura</p><p>constantes, o pesquisador atua como um colecionador de momentos à procura de sentidos</p><p>(SAMAIN, 2003). A cultura é formada, então, por teias de significados em que as pessoas se</p><p>encontram emaranhadas. Procurar por significados em meio a essas teias, ou seja, tentar ler, no</p><p>sentido de construir uma leitura de um manuscrito estranho, é o trabalho do antropólogo.</p><p>Qualquer conclusão que a pesquisadora possa perceber emergirá da delicadeza de certas</p><p>distinções e não da amplidão das concepções. O objetivo do trabalho científico consiste em tirar</p><p>conclusões a partir de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados (VELLOSO;</p><p>GUIMARAES, 2013).</p><p>Para acessar os significados, é necessário que as participantes se expressem, e</p><p>geralmente essa comunicação é feita pela fala nas pesquisas qualitativas. Entretanto, a</p><p>mensagem transmitida e a interação entre a participante e a pesquisadora vão muito além de</p><p>palavras, uma vez que envolve outros fatores, como o tom de voz, postura, olhares e o contexto.</p><p>Na construção das significações, tudo aquilo que provoca impressões e desencadeia o processo</p><p>comunicativo deve ser valorizado. Dessa forma, é necessário repensar a expressão estritamente</p><p>pela fala e um campo amplo de possibilidades é aberto como forma de fornecer pistas sobre as</p><p>mensagens transmitidas pelos participantes (JUSTO; VASCONCELOS, 2009).</p><p>Alves et al. (2021) comentam sobre os métodos utilizados em pesquisas qualitativas em</p><p>saúde e como os recursos visuais adicionam detalhes ao entendimento do objeto de estudo e</p><p>aumentam a qualidade do conhecimento adquirido através da descoberta de camadas adicionais</p><p>e mais profundas de significado, através da experiência e das ações dos participantes. Os autores</p><p>adicionam ainda que</p><p>o pesquisador qualitativo realiza uma abordagem cuidadosamente dirigida a fim de</p><p>compreender, dar validade e confiança aos seus resultados; partindo sempre das</p><p>perspectivas dos sujeitos em estudo. Com o advento das tecnologias, bem como a</p><p>facilidade de acesso às mesmas, a pesquisa qualitativa vem trilhando novos caminhos</p><p>para se adaptar a uma realidade mais interativa e relacional. Assim, a coleta de dados</p><p>qualitativos busca acompanhar tal evolução, tanto no sentido de captar percepções a</p><p>partir de novas técnicas quanto na perspectiva de analisar o impacto dessas</p><p>tecnologias nas relações humanas e outros aspectos. Desse modo, o pesquisador</p><p>qualitativo passou a fazer uso de técnicas de coletas de dados mais diversificadas e/ou</p><p>combinadas, capazes de proporcionar um melhor entendimento de um determinado</p><p>fenômeno social (ALVES et al., 2021, p. 522).</p><p>61</p><p>Isso posto, a fotografia se oferece ao nosso olhar como sendo um campo possível de</p><p>estudo, mas a imagem não é o equivalente a escrita. O que interessa na fotografia é realmente</p><p>algo que provoca o imaginário e o que nela faz tocar ou afetar, oferecendo um pedaço do real</p><p>para interpretar. A fotografia permite e favorece esta confluência de significações e de</p><p>desdobramentos (SAMAIN, 2003).</p><p>Segundo Velloso e Guimarães (2013), a imagem pode ser explorada como uma</p><p>ferramenta metodológica na leitura dos acontecimentos e dos fenômenos da sociedade. Os</p><p>materiais visuais, como fotografias, antes de serem cópias da realidade, são como os textos,</p><p>constituem interpretações sobre o real e podem gerar um acúmulo de informações próprios.</p><p>Cada um deles funciona de forma diferente e constrói as interpretações cognitivas e afetivas de</p><p>forma singular e complementar.</p><p>Existem camadas de complexidade em cada uma dessas dimensões, texto ou imagem.</p><p>Os diversos elementos produzidos em campo se entrelaçam uns aos outros e podem construir</p><p>relatórios narrativos que ligam as histórias do passado, com o presente e possíveis usos futuros</p><p>(CLANDININ; CONELLY, 2011).</p><p>A fotografia aparece como recurso estratégico que se alia ao caderno de campo,</p><p>permitindo registrar as lacunas encontradas pelas palavras, seja pela densidade sensorial</p><p>daquilo que se é registrado, seja pelo aspecto mais sensível e afetivo (CAIUBY NOVAES,</p><p>2012).</p><p>Samain (2003) enfatiza que através de signos reais na fotografia, como cores, linhas,</p><p>volumes e formas, outras representações e imagens mentais não pertencidas na imagem estão</p><p>sendo oferecidas. Através não apenas da lógica visual, mas sensorial, outros sentidos</p><p>participam, em graus</p><p>areas of</p><p>theoretical fields, including biomedical, human, and social sciences. Additionally, the practical</p><p>knowledge experienced by families was disseminated alongside technical knowledge. The</p><p>physical and emotional health of the mothers went beyond the research, and often, these</p><p>situations are overlooked by healthcare professionals. Furthermore, the life trajectories of these</p><p>women as primary caregivers undergo changes in plans, routines, and family structure. These</p><p>women often sacrifice their careers to care for their child, internalizing a moral perspective and</p><p>obligation that must be addressed through the discourse of resilience and heroism. Gender</p><p>issues and undervaluation when discussing caregiving work are also apparent in the discourse.</p><p>The support network cannot be understood solely as family support, and social, economic, and</p><p>political support must also be guaranteed in the mother-child relationship with disabilities,</p><p>included in discussions of human rights and public policies. Caregiving women must also be</p><p>seen in this political-relational web of disability. Additionally, the child's trajectory was also</p><p>discussed, as the mother's body, as an extension of the child's body, occupies spaces and faces</p><p>adversity in various areas, expanding new ways of being and existing in the world. Moreover,</p><p>the use of photography in the research reinforced elements and brought discussions beyond oral</p><p>narratives, ensuring co-production of the research between the researcher and the participant.</p><p>Issues of disability multiplicity and modes of life, identity, self-esteem, interdependence with</p><p>the mother's body and technologies took shape and movement with the photographic series.</p><p>Keywords: daily life; disabled children; mother-child relations.</p><p>LISTA DE FOTOGRAFIAS</p><p>Fotografia 1 – Procedimentos da devolutiva ........................................................................... 64</p><p>Fotografia 2 – Os títulos das imagens ..................................................................................... 64</p><p>Fotografia 3 – Nosso cantinho .............................................................................................. 100</p><p>Fotografia 4 – Um sono tranquilo ......................................................................................... 100</p><p>Fotografia 5 – O início .......................................................................................................... 101</p><p>Fotografia 6 – Esperança ....................................................................................................... 101</p><p>Fotografia 7 – Sempre juntas ................................................................................................ 102</p><p>Fotografia 8 – O amanhecer .................................................................................................. 103</p><p>Fotografia 9 – Dia a dia ......................................................................................................... 103</p><p>Fotografia 10 – Nosso melhor lugar ..................................................................................... 104</p><p>Fotografia 11 – Proteção 1 .................................................................................................... 104</p><p>Fotografia 12 – Medo ............................................................................................................ 105</p><p>Fotografia 13 – Difícil ........................................................................................................... 106</p><p>Fotografia 14 – Melhora ....................................................................................................... 106</p><p>Fotografia 15 – Conquista ..................................................................................................... 107</p><p>Fotografia 16 – Infância ........................................................................................................ 108</p><p>Fotografia 17 – Parque de Diversões .................................................................................... 108</p><p>Fotografia 18 – Ser linda ...................................................................................................... 109</p><p>Fotografia 19 – Mágico ......................................................................................................... 109</p><p>Fotografia 20 – Liberdade ..................................................................................................... 110</p><p>Fotografia 21 – “Filha, vem aqui!” ....................................................................................... 110</p><p>Fotografia 22 – Sonhos ......................................................................................................... 111</p><p>Fotografia 23 – Voo dos passarinhos .................................................................................... 111</p><p>Fotografia 24 – Ir e vir .......................................................................................................... 112</p><p>Fotografia 25 – Proteção 2 .................................................................................................... 112</p><p>Fotografia 26 – Esporte ......................................................................................................... 113</p><p>Fotografia 27 – Conquistas ................................................................................................... 113</p><p>Fotografia 28 – Sonho realizado ........................................................................................... 114</p><p>Fotografia 29 – Desafio ........................................................................................................ 114</p><p>Fotografia 30 – Memórias ..................................................................................................... 115</p><p>Fotografia 31 – Linda do jeito que é ..................................................................................... 116</p><p>Fotografia 32 – Carinho ....................................................................................................... 116</p><p>Fotografia 33 – O apoio ........................................................................................................ 117</p><p>Fotografia 34 – Amor ........................................................................................................... 117</p><p>LISTA DE QUADROS</p><p>Quadro 1 – Caracterização das fontes ..................................................................................... 37</p><p>Quadro 2 – Estrutura criada para análise por meio da codificação temática .......................... 70</p><p>LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS</p><p>ACS Agente Comunitário de Saúde</p><p>APS Atenção Primária à Saúde</p><p>OMS Organização Mundial da Saúde</p><p>ONU Organização das Nações Unidas</p><p>SUS Sistema Único de Saúde</p><p>UBS Unidades Básica de Saúde</p><p>TEA Transtorno do Espectro Autista</p><p>SUMÁRIO</p><p>1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13</p><p>2 NOTAS TEÓRICAS SOBRE A DEFICIÊNCIA: UMA INTERSECÇÃO ENTRE O</p><p>MODELO BIOMÉDICO E O SOCIAL ............................................................................... 18</p><p>2.1 Os desafios em separar a deficiência da doença ............................................................ 23</p><p>2.2 Localizando a mulher que cuida em textos governamentais sobre pessoas com</p><p>deficiências ............................................................................................................................. 27</p><p>variáveis, das reelaborações cognitivas em relação à imagem. Conforme</p><p>Barthes (1984, p. 84), “no fundo – ou no limite – para ver bem uma foto mais vale erguer a</p><p>cabeça ou fechar os olhos”.</p><p>Enquanto ferramenta, a arte possibilita o diálogo de assuntos difíceis e a produção de</p><p>sentidos associados a determinados fenômenos (FERREIRA, 2022). A fotografia permite assim</p><p>uma ampliação do olhar e abertura à complexidade dos campos e subjetividades estudados:</p><p>A subjetividade absoluta só é atingida em um estado, um esforço de silêncio (fechar</p><p>os olhos é fazer a imagem falar no silêncio). A foto me toca se a retiro de seu blablablá</p><p>costumeiro: “Técnica”, “Realidade”, “Reportagem”, “Arte”, etc.: nada dizer, fechar</p><p>os olhos, deixar o detalhe remontar sozinho à consciência afetiva (BARTHES, 1984,</p><p>p. 84-85).</p><p>62</p><p>Desse modo, a fotografia é uma extensão da nossa capacidade de ouvir e ver. A imagem</p><p>não pretende reproduzir o real, mas falar sobre uma realidade. A linguagem fotográfica é uma</p><p>forma de se relacionar com o tema. E a justaposição de duas ou mais fotos diferentes, já é um</p><p>passo em direção à uma generalização mais científica (CAIUBY NOVAES, 2012).</p><p>Alves et al. (2021, p. 528), em sua revisão, analisam os benefícios e os desafios</p><p>encontrados por autores ao utilizar a fotografia como fonte primária da pesquisa. Dentre os</p><p>obstáculos encontrados, “destacam-se duas: as questões éticas sobre a divulgação das fotos e as</p><p>inquietações sobre a profundidade de análise do método fotográfico”. Comentam ainda sobre</p><p>uma demanda mais longa de tempo para a pesquisa, a exigência de investimentos financeiros e</p><p>a dificuldade em engajar um número maior de participantes na utilização dessa abordagem. À</p><p>vista disso, os autores sugerem um planejamento cuidadoso do traçado da pesquisa, mas</p><p>incentivam a realização de pesquisas utilizando fotografias para melhor conhecer a</p><p>aplicabilidade dessa técnica.</p><p>Ainda assim, o uso da fotografia como documento social envolve limitações, assim</p><p>como há embaraços quando se tomam a palavra falada, o depoimento ou a entrevista como</p><p>referência sociológica. A pesquisadora, ao entrar na realidade investigada, interage e, ao</p><p>interagir com ela, altera o conhecimento do senso comum referencial do participante. Essas</p><p>informações, veiculadas pela imagem, vão variar em conteúdo e forma segundo o fotógrafo, o</p><p>fotografado e o observador (VELLOSO; GUIMARAES, 2013).</p><p>Samain (2003) evidencia que</p><p>toda mensagem fotográfica é, por natureza e de antemão, plural. Múltipla em função</p><p>dos olhares que, nesta mensagem, se revezam e sucedem-se invariavelmente desde</p><p>sua construção até sua decodificação: 1) olhar e intencionalidade do operador; 2) olhar</p><p>frio mas nunca neutro deste dispositivo que chamamos, no entanto, de "objetiva"; 3)</p><p>olhares dos infinitos espectadores; 4) sem esquecer ainda essa recíproca e constitutiva</p><p>relação de olhares que armam entre si o sujeito/assunto da fotografia e seus</p><p>coprodutores humanos (operador e espectadores). Na sua essência, a fotografia não é</p><p>somente o lugar de uma produção de signos (um ato); ela é, sempre e antes de mais</p><p>nada, um signo de recepção. Mais ainda, a imagem fotográfica (e toda imagem) é um</p><p>advento/evento estruturado, um "fenômeno" (aparição, manifestação) estruturado,</p><p>uma estrutura que conecta um conjunto de elementos e de formas que se pensam entre</p><p>si: não existe imagem simples. Qualquer imagem, cotidiana, faz parte de um sistema,</p><p>vago e complicado, graça ao qual habito o mundo e graça ao qual o mundo me habita</p><p>(SAMAIN, 2003, p. 55-56).</p><p>Santos (2018) reforça que os dispositivos fazedores de imagens não são simplesmente</p><p>manipulados:</p><p>63</p><p>A imagem, ela mesma, age. Ela experimenta. Ela funciona ou não. Ela escolhe, mente.</p><p>Ela deixa pistas, rastros. E nós, deste outro lado, construímos com elas, junto a elas,</p><p>em seu canto mágico, nunca inocente, sempre em transformação (SANTOS, 2018, p.</p><p>447).</p><p>Ainda, ao se fotografar sem o consentimento do participante ou a consciência de estar</p><p>sendo fotografado, de fato a pesquisadora terá fotografado na pessoa do outro o que é sua</p><p>própria pessoa. Numa análise sociológica, essa violência visual é documento sobre a</p><p>mentalidade do fotógrafo, e não, fundamentalmente, documento da pessoa fotografada. A</p><p>pesquisadora terá um dado mutilado e desprovido da informação cultural se não conhecer o</p><p>olhar das populações que visita e estuda. Portanto, um material para a sociologia da imagem</p><p>poderá ser encontrado no que se interpreta a partir da visão do outro, e não simplesmente no</p><p>que se vê (VELLOSO; GUIMARAES, 2013).</p><p>A proposta de devolutiva e negociações com os participantes de quais imagens entrarão</p><p>na pesquisa, traz o protagonismo do participante como coprodutora do conhecimento, conforme</p><p>sugerido por Rose (2012). É preciso que a pesquisadora estabeleça relações de confiança entre</p><p>aquelas que pesquisa. Através desse vínculo e de uma sensibilidade treinada, saberá quando e</p><p>o que pode fotografar. A relação entre a pesquisadora e as pessoas que ela pesquisa é algo</p><p>fundamental em qualquer trabalho de campo em antropologia. Nas pesquisas que envolvem</p><p>imagens isso é ainda mais evidente. É esta relação dialógica que marca a qualidade dos</p><p>resultados da pesquisa (CAIUBY NOVAES, 2012).</p><p>Dessa maneira, a utilização da fotografia como documento social precisa estar</p><p>acompanhada da consciência de que a fotografia tem as limitações da invisibilidade de várias</p><p>dimensões da realidade social e que carrega a visão socialmente situada do fotógrafo. Há</p><p>momentos no trabalho de campo onde não é possível separar objeto pesquisado de sujeito</p><p>pesquisador, pois ambos são sujeitos. A proposta é que a pesquisadora se deixe afetar, durante</p><p>o seu trabalho de campo, para melhor apreender a subjetividade da cultura pesquisada,</p><p>colocando no centro das análises a comunicação não verbal e acionando todos os sentidos.</p><p>Afetos que não tem a definição de emoções, mas simplesmente daquilo que afeta, atinge,</p><p>modifica, aumentando ou diminuindo a potência da pessoa pesquisada. E ao retornar do campo,</p><p>a pesquisadora deve procurar se distanciar e apreender os significados da experiência</p><p>vivenciada para melhor entender a subjetividade dos participantes. A imagem traz ângulos para</p><p>novas discussões, complementarmente ao que foi apreendido pelo texto escrito (VELLOSO;</p><p>GUIMARAES, 2013).</p><p>64</p><p>Dessa forma, é necessário ter a percepção de que “em primeiro lugar, a neutralidade da</p><p>pesquisadora é deposta e, em segundo, busca-se dar vazão à subjetividade dos participantes”</p><p>(JUSTO; VASCONCELOS, 2009, p. 762). Cabe à pesquisadora ainda a lucidez de que, ao</p><p>selecionar quais fotografias a serem publicadas na pesquisa, suas imagens contribuirão</p><p>certamente para a imagem que se terá dos participantes (CAIUBY NOVAES, 2012).</p><p>Caiuby Novaes (2012) salientam adicionalmente que</p><p>poses e encenações estão sempre presentes, principalmente em frente a uma câmera.</p><p>Isso não diminui a “realidade” da cena ou das pessoas fotografadas. Poses, uma roupa</p><p>especial, arranjos de cabelo são índices importantes de como as pessoas querem que</p><p>sua imagem seja vista pelos outros. Correspondem a uma construção de autoimagem</p><p>que deveria ser de interesse ao pesquisador. Todo mundo quer “sair bem no filme!”.</p><p>Neste sentido, fotos posadas são igualmente documentais: elas documentam a imagem</p><p>que o fotografado quer exibir de si (CAIUBY NOVAES, 2012, p. 23)</p><p>As fotografias guardadas pelos próprios participantes também podem ser úteis em</p><p>pesquisas. Cada fotografia representa um momento especial na memória, da qual construímos</p><p>histórias. As caixas de memórias são coleções de itens que acionam significados de momentos</p><p>importantes. Todos esses itens podem ser desencadeados na nossa memória para recolher os</p><p>pequenos fragmentos, que não têm começo nem fim, e em torno dos quais contamos e</p><p>recontamos histórias (CLANDININ; CONELLY, 2011).</p><p>Ainda, as fotografias podem ser</p><p>desencadeadoras de conversas cruciais, como formas estratégicas de iniciar temas que</p><p>interessam à pesquisadora, a partir de memórias que as fotos suscitam nas pessoas (CAIUBY</p><p>NOVAES, 2012).</p><p>Assim sendo, imagens podem fazer intrigar e trazer questões a serem discutidas, não</p><p>apenas a partir da leitura da fotografia pela pesquisadora, com o apoio das anotações de um</p><p>diário de campo, mas também com o que foi evocado ao espectador em termos de seu</p><p>imaginário pessoal. Por possibilitar outras representações, realimenta o entendimento do outro</p><p>em um processo fluido e interminável de construção de novos olhares para determinada</p><p>realidade. Para quem olha para ela, nunca será apenas o que ela mostra (SAMAIN, 2003).</p><p>Assim,</p><p>O que é então que indica no mar visível, familiar, exposto à nossa frente, esse poder</p><p>inquietante do fundo – senão o jogo rítmico “que a onda traz” e a “maré que sobe”?</p><p>[...] A inelutável modalidade do visível terá portanto oferecido, em sua precisão, todos</p><p>os componentes teóricos que fazem de um simples plano ótico, que vemos, uma</p><p>potência visual que nos olha, na medida mesmo em que põe em ação o jogo</p><p>anadiômeno, rítmico, da superfície e do fundo, do fluxo e do refluxo, do avanço e do</p><p>recuo, do aparecimento e do desaparecimento (Didi-Huberman, 2010, p. 33).</p><p>65</p><p>Ainda com Samain (2013), o autor também destaca que</p><p>a fotografia não funciona sem a nossa participação. Mais: é ela que provoca, conduz</p><p>e dirige nossa participação. Ela é uma espécie de partição musical, de grande sinfonia,</p><p>cujas modulações e formas nos são dadas para serem lidas, decifradas e executadas.</p><p>Ignoramos, é verdade, que esta partição é sempre uma sinfonia inacabada. A</p><p>fotografia pode ser este instante parado nos ponteiros de um relógio, ela pode ser este</p><p>instantâneo, congelado, cravado para sempre no tempo e no espaço, resta que esta</p><p>superfície lustrada como um lago no inverno, petrificada, mumificada e lisa, apenas o</p><p>é parcialmente. Nosso olhar a desmantela e a reconstrói a cada captura. Nosso espírito</p><p>não sabendo geralmente por que lado prendê-la e, sobretudo, compreendê-la,</p><p>pulveriza-a a cada vez num mosaico de signos luminosos rolando sob os</p><p>prismas/espelhos de um caleidoscópio vivo: nosso olho, tanto olhar quanto</p><p>pensamento. A fotografia que, metaforicamente, é uma forma que pensa, gosta de</p><p>frequentar e de viajar nos corredores da mente humana, quando nossa memória gosta,</p><p>por sua vez, de caçar na escuridão dos seus signos (SAMAIN, 2013, p. 51).</p><p>Lima, Cunha e Sobreira (2022) também dialogam sobre essa relação entre a imagem e</p><p>o espectador. Não como um espelho, mas a fotografia traz novas perspectivas relacionais e</p><p>temporais, a medida que, a partir desse contato, produz novas imagens, narrativas e sentidos,</p><p>complementando o que foi capturado pelo caminhar na própria memória, acessando o passado,</p><p>o presente e fazendo projeções no futuro. Dessa forma, “o que vemos só vale – só vive – em</p><p>nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que</p><p>vemos daquilo que nos olha” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 29).</p><p>A fotografia pode abrir o olhar para o que é invisibilizado por conceitos dominantes. A</p><p>interpretação de determinada cultura envolve a interação de diferentes olhares e a imagem pode</p><p>propiciar um ângulo a mais na delicada tarefa de traduzir pessoas, valores, comportamentos,</p><p>coisas, arranjos sociais, crenças, dores e esperanças (VELLOSO; GUIMARAES, 2013). Ela</p><p>pode, ainda, ser uma ferramenta de resistência social e política e abrir possibilidades de</p><p>transformação social (FERREIRA, 2022). Ela pode também ser disparadora de alguma</p><p>percepção de si (CAIUBY NOVAES, 2012), podendo levar a mudanças em ações por atores</p><p>envolvidos nos trajetos da deficiência e outras temáticas de pesquisa em ciências sociais.</p><p>A fotografia pode ainda ser uma lupa ao olhar para o outro:</p><p>Como Spectator, eu só me interessava pela Fotografia por “sentimento”; eu queria</p><p>aprofundá-la, não como uma questão (um tema), mas como uma ferida: vejo, sinto,</p><p>portanto, noto, olho e penso (BARTHES, 1984, p. 39).</p><p>Nesse sentido, a fotografia não é um espelho que revela um mundo, mas pode auxiliar</p><p>na percepção do mundo do outro, valendo-se do seu potencial em instigar um olhar atento capaz</p><p>de despertar novas perspectivas (CAIUBY NOVAES, 2012).</p><p>66</p><p>Dessa maneira, a fotografia pode ser considerada, tanto como instrumento quanto como</p><p>complemento, em pesquisas qualitativas em Ciências Sociais (VELLOSO; GUIMARAES,</p><p>2013), e foram utilizadas nessa pesquisa como uma forma particular de transmitir os resultados</p><p>do estudo.</p><p>3.4 Reflexões sobre o encontro com o campo</p><p>Clandinin e Connely (2011, p. 100) declaram que ao trabalhar no campo de pesquisa,</p><p>“as histórias que trazemos como pesquisadores também estão marcadas pelas instituições onde</p><p>trabalhamos, pelas narrativas construídas no contexto social do qual fazemos parte e pela</p><p>paisagem na qual vivemos”.</p><p>Dessa forma, como a entrada no campo foi intermediada por profissionais a qual já</p><p>trabalhamos juntos em algum momento, trago a reflexão da forma como fui apresentada para a</p><p>maioria das participantes: “tem uma pediatra fazendo uma pesquisa”. Somada ao fato de a</p><p>entrevista ter sido realizada no ambiente da UBS, local que presta assistência à saúde, esse</p><p>conjunto pode lançar luz à forma como as participantes se comportaram nos momentos iniciais</p><p>do nosso encontro. Algumas mulheres já chegaram com uma pasta com resultado de exames e</p><p>laudos diagnósticos da criança, “caso eu tivesse interesse em olhar”. Outras participantes,</p><p>mesmo antes de ligar o gravador, me contaram sobre os acompanhamentos de saúde dos filhos</p><p>e uma delas me chamou de “Dra.” durante toda a entrevista. Acredito que, nesse primeiro</p><p>momento, ser identificada como um profissional de saúde pode ter influenciado em discursos</p><p>interligados aos fatores biomédicos e com foco na criança e deixado de lado os aspectos sociais</p><p>e o olhar voltado para a mulher, objetivos dessa pesquisa.</p><p>Entretanto, no decorrer do processo de entrevista e da exploração dos episódios, as</p><p>participantes se abriram e falaram de suas vidas pessoais e suas relações, fazendo a travessia da</p><p>suposição do interesse da pesquisa apenas nos aspectos biomédicos para conceitos mais</p><p>abrangentes. Assim, “uma vez realizado esse processo, o espaço da pesquisa narrativa se abre</p><p>em um movimento flexível através do tempo, considerando tanto aspectos subjetivos quanto</p><p>sociais” (CLANDININ; CONNELY, 2011, p. 103).</p><p>Ainda com Clandinin e Connely (2011), esses autores comentam sobre a complexidade</p><p>das negociações de relacionamentos, propósitos e modos de ser útil, que a pesquisadora</p><p>precisará realizar ao adentrar em seu campo de pesquisa.</p><p>Já em minha primeira visita em uma das UBS, uma das ACS me perguntou se eu poderia</p><p>fazer um relatório médico para uma das participantes que realizaria a entrevista, a respeito do</p><p>67</p><p>respirador da criança: “já que você já vai lá, né?”. Nesse primeiro encontro, uma das</p><p>enfermeiras da área, também me perguntou: “aproveitando que você é pediatra, me ajuda aqui.</p><p>Olha se preciso apavorar ou acalmar”, e me contou sobre uma situação do filho. Eu nem tinha</p><p>levado carimbo ou equipamentos para exame clínico nesse dia. Carregava comigo naquele</p><p>momento apenas os instrumentos referentes às ações que realizaria como pesquisadora: papéis,</p><p>termos, gravador, diário de campo. A minha primeira sensação foi de um embaraço em relação</p><p>à confusão de papéis entre a assistência e a pesquisa. Mas logo percebi “os modos de ser útil”</p><p>a negociar no campo, que Clandinin e Connely (2011) trazem como reflexão e tive o</p><p>entendimento de como “suas vidas não começam no dia em que chegamos, nem terminam</p><p>quando partimos” (CLANDININ; CONNELY, 2011, p. 99). A partir da segunda visita, carimbo</p><p>e equipamentos médicos também passaram a ser carregados</p><p>na minha mochila de pesquisadora.</p><p>E acabei, no decorrer dos encontros, preenchendo outros documentos, como o protocolo para</p><p>Concessão de Passe Livre Municipal (PREFEITURA MUNICIPAL DE POÇOS DE CALDAS,</p><p>2014), destinados às pessoas com deficiência, assim como um encaminhamento, para uma das</p><p>participantes com dores musculares, para a terapia com banhos termais, disponível no</p><p>munícipio não só para o turismo, mas vinculada à Secretaria Municipal de Saúde</p><p>(PREFEITURA MUNICIPAL DE POÇOS DE CALDAS, 2017).</p><p>Ponderando ainda sobre o encontro com o campo, “a paisagem em seu sentido mais</p><p>amplo, ensinaram-nos que também nesses espaços há histórias narrativas. Entramos no meio e</p><p>ao desenvolver a pesquisa encontramos histórias narrativas individuais” (CLANDININ;</p><p>CONNELY, 2011, p. 103). No diário de campo escrevi sobre diversas histórias a respeito dos</p><p>profissionais das UBS que tive a oportunidade de encontrar no campo. Uma delas, que acredito</p><p>ser relevante para o estudo, é que uma das ACS é avó materna de uma criança com diagnóstico</p><p>de Transtorno do Espectro Autista que é minha paciente. Não a conhecia e não conheço outra</p><p>pessoa da família dessa criança. Apenas a mãe da criança a levou para consultas. A enfermeira,</p><p>ao me apresentar para a equipe, comentou: “ela é a pediatra da [...]”, e citou o nome da neta.</p><p>A ACS ficou calada, pensativa e eu fiquei me perguntando sobre quais histórias se passavam</p><p>em seus pensamentos. No decorrer da pesquisa, o papel e apoio das avós maternas serão</p><p>discutidos em destaque como um resultado relevante encontrado e esse encontro também me</p><p>fez refletir sobre o lugar das avós no contexto das relações da deficiência.</p><p>Assim, a pesquisadora caminhará sempre por entre histórias individuais no campo,</p><p>relacionadas ou não à temática da pesquisa:</p><p>68</p><p>Enquanto trabalhamos no espaço tridimensional da pesquisa, aprendemos a olhar para</p><p>nós mesmos como sempre no entremeio – localizado em algum lugar ao longo das</p><p>dimensões do tempo, do espaço, do pessoal e do social. Mas nos encontramos no</p><p>entremeio também em outro sentido, isto é, encontramo-nos no meio de um conjunto</p><p>de histórias – as nossas e as de outras pessoas (CLANDININ; CONNELY, 2011, p.</p><p>99).</p><p>Ainda sobre as negociações, a intenção inicial da pesquisa era convidar todas as</p><p>participantes da primeira fase da pesquisa – a entrevista, para participar da segunda etapa, um</p><p>acompanhamento da pesquisadora no cotidiano. Entretanto, vários contornos atravessaram esse</p><p>intuito. O primeiro deles foi que apenas um encontro na UBS para a entrevista não foi o</p><p>suficiente para reduzir a distância e criar intimidade entre a pesquisadora e a participante, a</p><p>ponto de o convite para adentrar na casa e na rotina da mulher pudesse ter sido realizado nesse</p><p>momento. Uma das participantes, após a entrevista, me enviou um e-mail (contato deixado no</p><p>TCLE) que se iniciava com “não sei se falei o que precisava, mas [...]”, relatou mais alguns</p><p>episódios e finalizou com “se precisar saber de algo mais, esse é o meu número”. Continuamos</p><p>a conversa pela troca de mais alguns e-mails e deixo como testemunho de como mais encontros</p><p>possibilitariam mais elementos para a pesquisa e aproximação dessas mulheres. Entretanto,</p><p>outros encontros não foram oportunizados devido ao planejamento de tempo da pesquisa e esses</p><p>convites para a segunda etapa se diluíram. Assim, como aprendiz da etnografia, fica a reflexão</p><p>entre as tensões que permeiam as distâncias entre as relações na pesquisa:</p><p>Inevitavelmente, pesquisadores narrativos experimentam esta tensão, pois a pesquisa</p><p>narrativa é relacional. Eles devem tornar-se completamente envolvidos, devem</p><p>´apaixonar-se` por seus participantes, e devem também dar um passo para trás e olhar</p><p>suas próprias histórias na pesquisa, as histórias dos participantes, assim como a mais</p><p>ampla paisagem a qual todos eles vivenciam. [...] Essas distâncias são às vezes</p><p>elásticas, às vezes próximas e outras vezes mais distantes. [...] Os relacionamentos</p><p>pulsam a todo tempo, de como a negociação da relação entre os participantes são de</p><p>fato e de como a distância é mutuamente construída (CLANDININ; CONNELY,</p><p>2011, p. 121).</p><p>Outras situações relatadas nas entrevistas, como por exemplo a dificuldade das crianças</p><p>com Transtorno do Espectro Autista em receber pessoas estranhas em suas casas e a</p><p>possibilidade da presença da pesquisadora gerar situações constrangedoras às crianças e suas</p><p>famílias, também foram um empecilho para a segunda etapa da pesquisa. Outro contorno</p><p>enfrentado é sobre a negociação com demais pessoas e instituições dentro das trajetórias</p><p>percorridas diariamente por essas mulheres. Em seus cotidianos, os parceiros, outros filhos,</p><p>avós estavam sempre presentes nesses espaços, além dos múltiplos deslocamentos às</p><p>instituições de reabilitação nas quais eu não tinha anuência para estar, restringiram também as</p><p>oportunidades de convite para o acompanhamento do dia a dia das participantes.</p><p>69</p><p>De tal modo, uma das participantes com quem um vínculo maior já tinha sido criado</p><p>antes da entrevista, foi convidada para o segundo momento da pesquisa e aceitou o convite. No</p><p>dia escolhido para tal acompanhamento, apenas a participante e a filha estavam em casa. O</p><p>esposo saiu para trabalhar antes da minha chegada à casa deles e voltou após eu já ter ido</p><p>embora, mas ligou para a participante para “ter notícias de como estava sendo”. A filha, de 11</p><p>anos, também estava no diálogo com a mãe sobre a minha visita e comentou com a mãe no dia</p><p>anterior: “Ela vai chegar antes de eu acordar? Já vou dormir de maquiagem então!”. Aqui,</p><p>faz-se prudente a consideração da influência da pesquisadora nesses fluxos de espaços e rotinas.</p><p>Além do mais, como reforçam Spink et al. (2014):</p><p>Trata-se de pesquisar no cotidiano; no fluxo dos acontecimentos. E, nesse caso, a troca</p><p>do pronome (relativo a um substantivo presumido) pelo advérbio (relativo a um verbo,</p><p>uma ação) é fundamental. ‘Se pesquisarmos o cotidiano, estabeleceremos a clássica</p><p>separação entre pesquisador e seu objeto de pesquisa. Mas, se pesquisarmos no</p><p>cotidiano, seremos partícipes dessas ações que se desenrolam em espaços de</p><p>convivência mais ou menos públicos. Fazemos parte do fluxo de ações; somos parte</p><p>dessa comunidade e compartimos de normas e expectativas que nos permitem</p><p>pressupor uma compreensão compartilhada dessas interações` (SPINK et al., 2014, p.</p><p>21).</p><p>Ainda, a utilização da fotografia como uma ferramenta no pesquisar no cotidiano,</p><p>deslocou a pesquisadora de papéis já construídos, rompendo com o lugar de especialista, e a</p><p>posicionou para uma abertura ao desconhecido (FERREIRA, 2022).</p><p>E por fim, dramas também ocorrem não só nos inícios, mas também nos términos das</p><p>pesquisas e confesso minha dificuldade em me retirar do campo e me despeço “relutante”,</p><p>conforme termo utilizado por Clandinin e Connely, já que “bons relacionamentos de pesquisa</p><p>trazem consigo um sentimento melancólico, saudoso, advindo da constante lembrança do tempo</p><p>de duração desta” (CLANDININ; CONNELY, 2011, p. 109).</p><p>3.5 Os procedimentos utilizados na análise das entrevistas</p><p>Após as entrevistas, os arquivos em formato de áudio MP3 gerados foram transformados</p><p>em arquivos em formato MP4, através do programa Davinci Resolve. Com o arquivo nesse</p><p>novo formato, as entrevistas foram transcritas na íntegra, utilizando a plataforma YouTube, em</p><p>modo privado, com a geração de legenda em português que foram utilizadas para a construção</p><p>de um arquivo de texto. Seguindo a preparação do material para análise, as entrevistas foram</p><p>impressas em papel, o que possibilitou maior familiaridade da pesquisadora para a codificação.</p><p>Quanto aos procedimentos utilizados para análise, foram seguidos os seguintes estágios:</p><p>70</p><p>• Etapa 1: realizou-se primeiramente uma análise singular de cada caso único, com a</p><p>elaboração de uma breve descrição de cada participante,</p><p>assim como tópicos centrais</p><p>mencionados pela entrevistada em relação ao assunto da pesquisa;</p><p>• Etapa 2: foi elaborada uma estrutura temática inicial, com categorias associadas aos</p><p>episódios pré-definidos antes das entrevistas, como um guia inicial para a</p><p>codificação. Além no nome do código, notas sobre cada código foram adicionadas,</p><p>a fim de observar a natureza de um código e o raciocínio que está por trás dele,</p><p>explicando que tipos de texto ou imagens devem estar relacionados a ele. Essa</p><p>descrição do código também é uma forma de garantir que a codificação seja feita de</p><p>forma sistemática e confiável (GIBBS, 2009). O ponto de partida para a geração</p><p>dessas categorias fundamentou-se nos seguintes aspectos: condições (pano de</p><p>fundo, trajetórias), interação entre os atores que aparecem no relato, estratégias e</p><p>táticas (quais as formas de lidar com as situações, evitando-as ou adaptando-as) e as</p><p>consequências (o que mudou, resultados);</p><p>• Etapa 3: cada entrevista foi codificada na ordem temporal em que tinham sido</p><p>realizadas, através da identificação de passagens no texto que, de alguma forma,</p><p>exemplificassem a ideia de alguma categoria, com a respectiva anotação do código</p><p>na margem. Também foram desenvolvidas novas categorias, originadas de palavras</p><p>ou trechos das próprias entrevistas, à medida que aspectos novos foram surgindo.</p><p>Após a codificação de cada caso único, a estrutura temática previamente</p><p>desenvolvida foi revista e modificada com adição dessas novas categorias criadas, a</p><p>fim de ampliar a posterior comparabilidade. Alguns diferentes códigos</p><p>intercambiaram entre um mesmo trecho do texto, trazendo a ideia de como essas</p><p>categorias se relacionam. A estrutura temática final para análise está representada</p><p>no Quadro 2. Palavras ou trechos com termos incomuns, metáforas ou expressões</p><p>que se repetiram frequentemente nas entrevistas também foram destacadas com um</p><p>círculo nessa etapa de codificação;</p><p>• Etapa 4: após a análise de cada caso único, empreendeu-se para as comparações das</p><p>entrevistas, através do acesso aos trechos das entrevistas codificados com a mesma</p><p>categoria. Foi explorada como a categorização ou ideias temáticas representadas</p><p>pelos códigos assemelham-se entre os casos ou contextos, ou até mesmo dentro do</p><p>mesmo caso, e como a ideia temática pode mudar ou é afetada por determinados</p><p>fatores.</p><p>71</p><p>Quadro 2 – Estrutura criada para análise por meio da codificação temática</p><p>Código Notas</p><p>Gestação Vontade de ser mãe, gestação.</p><p>Diagnóstico Comunicação do diagnóstico, elaboração do luto.</p><p>Profissional da Saúde Situações vividas relacionadas à profissionais da saúde.</p><p>Tratamentos do filho Terapias e medicamentos.</p><p>Saúde da participante Bem-estar físico e mental.</p><p>Sociedade Barreiras encontradas e vivenciadas.</p><p>Expectativas sociais Ideias de como uma pessoa se comportará em uma determinada</p><p>circunstância.</p><p>Direitos/Inclusão Promoção do exercício dos direitos e das liberdades, visando à sua</p><p>inclusão social e cidadania.</p><p>Mobilidade Capacidade ou a incapacidade de chegar aos lugares necessários para a</p><p>vida social, como trabalho, escola, parques, comércio, tratamentos.</p><p>Preconceito Situações vividas em que um juízo foi formulado de forma antecipada.</p><p>Trabalho Relações laborais.</p><p>Dinheiro Dinheiro propriamente dito, meio de pagamento.</p><p>Escola Relacionamentos ou interação com a escola.</p><p>Rotina Atividades da vida cotidiana.</p><p>Práticas de cuidado Atividades destinadas para as participantes como principal cuidadora e a</p><p>construção das práticas de cuidado.</p><p>Interdependência Como aparece e seu significado nas entrevistas.</p><p>Tempo/Cuidados pessoais Cuidados básicos e práticas em busca de saúde/beleza.</p><p>Vida social/Lazer Vida social fora do convívio familiar; momentos de lazer dentro e fora</p><p>dos relacionamentos familiares.</p><p>Relações familiares Relacionamentos ou interação entre as pessoas do convívio familiar.</p><p>Rede de apoio Pessoas, grupos, instituições como suporte.</p><p>O tempo Como o tempo aparece</p><p>Medos Medos relatados pelas participantes.</p><p>Sentidos/significados “[...] os sentidos e as interpretações são partes importantes do que orienta</p><p>as ações das participantes. Que conceitos as participantes usam para</p><p>entender seu mundo? Quais normas, valores, regras e costumes orientam</p><p>suas ações? Quais são seus sentimentos?” (GIBBS, 2009, p. 69).</p><p>Religiosidade Influência da religiosidade nos valores e no modo de agir das</p><p>participantes.</p><p>Gênero Padrões histórico-culturais atribuídos para os homens e mulheres.</p><p>Atividades/estados interrompidos Condições que limitaram determinados comportamentos ou ações.</p><p>Ressignificação/Adaptação Envolvimento em um contexto ou adaptação/ajuste a ele. Novas ações ou</p><p>conhecimentos adquiridos.</p><p>Fonte: elaborado pela autora</p><p>Dessa maneira, os resultados obtidos a partir das entrevistas episódicas foram analisados</p><p>através do método da codificação temática, conforme sugerido por Flick (2009) para questões</p><p>de pesquisa que trazem perspectivas das participantes sobre um fenômeno ou processo. “Os</p><p>códigos formam um foco para pensar no texto e suas interpretações” (GIBBS, 2000, p. 62). A</p><p>comparabilidade, através da definição dessas categorias, foi realizada, mas também algumas</p><p>particularidades de cada caso foram enfatizadas, e os resultados serão apresentados no capítulo</p><p>a seguir.</p><p>4 A EXPERIÊNCIA DAS MULHERES QUE SÃO MÃES DE CRIANÇAS COM</p><p>DEFICIÊNCIAS</p><p>72</p><p>Nos dias quotidianos</p><p>É que se passam</p><p>Os anos.</p><p>(Millor Fernandes, Hai-Kais, 1997)</p><p>Os resultados apresentados nesse capítulo referem-se ao conhecimento produzido</p><p>através da primeira etapa da pesquisa – a entrevista episódica, assim como aos desdobramentos</p><p>gerados por esses encontros.</p><p>4.1 Quem são as mulheres que são mães de crianças com deficiências?</p><p>Foram realizadas entrevistas com oito mulheres. Os nomes são fictícios e foram criados</p><p>com inspiração em mulheres com deficiências que ressignificaram suas trajetórias de vida. A</p><p>descrição de cada participante, assim como tópicos centrais mencionados pela entrevistada em</p><p>relação ao assunto da pesquisa, estão expostos a seguir, na ordem temporal em que as</p><p>entrevistas foram realizadas:</p><p>• Laura, 33 anos. Tem dois filhos do mesmo companheiro. O seu primeiro filho,</p><p>Arthur, tem três anos, tem deficiências múltiplas e ostomias (gastrostomia e</p><p>traqueostomia). Davi, seu segundo filho, tem 8 meses de vida. Relata que sempre</p><p>quis ser mãe, e que planejou em sua vida ser mãe aos 30 anos. Nessa idade, fez</p><p>exames pré-concepcionais e parou de tomar o anticoncepcional, e após seis meses</p><p>engravidou. Em seu domicílio moram Laura, o esposo e os dois filhos. O esposo</p><p>trabalha de representante comercial, viajando por várias cidades e “sai de casa na</p><p>segunda cedo e volta na sexta à noite”;</p><p>• Helen, 32 anos. Tem três filhos do mesmo parceiro. O terceiro filho, Vitor, com 1</p><p>ano de idade, tem diagnóstico de deficiência visual. Helen conta que nunca se viu</p><p>como mãe antes de engravidar pela primeira vez. Relata que com o falecimento de</p><p>seu pai, ficou muito fragilizada. E foi nesse momento de sua vida que conheceu o</p><p>seu esposo e ele disse: “me dá um filho”. Relata que “foi amor à primeira vista”.</p><p>Em sua casa moram Helen, o esposo e os três filhos. Helen e o esposo já ficaram</p><p>separados por algumas vezes, mas atualmente estão juntos. Helen se apresenta em</p><p>vários momentos da entrevista como “Mãe barraqueira”, “meio grossa”, “que</p><p>sempre vai brigar pelo direito do filho”;</p><p>73</p><p>• Mara, 44 anos. Teve 3 gestações, mas teve um aborto na segunda gestação. Tem,</p><p>portanto, dois filhos do mesmo parceiro: Patrícia, de 14 anos e Lucas, de seis anos,</p><p>com Transtorno do Espectro Autista. Mara relata que sempre quis ser mãe pois “acha</p><p>sem graça um casal que não tem filho”. Em sua casa moram Mara, o esposo e os</p><p>filhos. Por diversas vezes durante a entrevista, Mara reproduz frases relativas à</p><p>expectativas sociais, como “filho</p><p>é uma benção na vida da gente”, “ter irmão é bom,</p><p>né? A gente não vai viver para sempre”, “a gente tem que ser forte, né?”.</p><p>• Dorina, 39 anos. Tem três filhos. O seu primeiro filho, atualmente com 22 anos é de</p><p>outro relacionamento. A segunda filha, Isabela, de 10 anos, e o terceiro filho,</p><p>Nicolas, de um ano, são do atual companheiro. Nicolas tem atraso de</p><p>desenvolvimento neuropsicomotor, com hipotonia muscular e atrasos motores, em</p><p>investigação de síndrome genética. Dorina relata que a gravidez de Nicolas não foi</p><p>planejada, que estava separada do marido, e quando voltaram engravidou. Em sua</p><p>casa moram Dorina, o esposo e os seus três filhos;</p><p>• Vanessa, 38 anos. Tem dois filhos de um mesmo relacionamento. Lívia, sua primeira</p><p>filha, tem 12 anos. Felipe, seu segundo filho, tem nove anos, e tem Transtorno do</p><p>Espectro Autista. Vanessa relata que sempre teve muita vontade de ser mãe, desde</p><p>que brincava de boneca na infância. Em sua casa moram Vanessa e os dois filhos.</p><p>Vanessa e o pai das crianças se separaram há menos de um ano, e Vanessa relata</p><p>que “ele já tem outra família”;</p><p>• Ana Rita, 39 anos. Tem uma filha, Isis, de 11 anos, com deficiência física devido à</p><p>diagnóstico de Atrofia Muscular Espinhal tipo II. Ana Rita relata que se via como</p><p>mãe, que após três anos de casados, ela e o esposo viram que “faltava um</p><p>pedacinho”. Em sua casa moram Ana Rita, o esposo e Isis. O esposo de Ana Rita já</p><p>teve um relacionamento anteriormente ao deles, e Isis tem um irmão de 16 anos por</p><p>parte do pai, que mora em outra casa, com quem mantém bom relacionamento;</p><p>• Jenny, 30 anos. Tem um filho de 10 anos, Rodrigo, com diagnóstico de deficiência</p><p>física, devido a síndrome da criança hipotônica, e tem ostomias (traqueostomia e</p><p>gastrostomia). Em sua casa moram Jenny, o esposo – que é pai do seu filho, Rodrigo</p><p>e o enteado de Jenny – filho mais velho do esposo de Jenny, de outro relacionamento</p><p>anterior ao deles. Jenny comenta que nunca teve o desejo de se tornar mãe, que a</p><p>gravidez foi um “descuido” e que não teve orientação de como usar corretamente</p><p>contraceptivos. Relata que na época “não sabia ainda se cuidar direito porque eu não</p><p>74</p><p>tenho a presença materna em minha vida”. Morava e foi criada por seu pai em outra</p><p>cidade e, ao engravidar, mudou-se para Poços de Caldas sem vontade. Relata que</p><p>teve depressão na gestação e ficava só dentro de casa durante toda a gravidez.</p><p>Comenta que não tem fotos da gravidez e era difícil até mesmo se olhar no espelho</p><p>e ver a “imagem do barrigão”. Relata que foi um período muito difícil e “a gente</p><p>ainda nem sabia que ele seria deficiente físico, nada disso”. Jenny comenta que o</p><p>relacionamento com o pai da criança é uma relação complicada, que “a relação</p><p>pessoal acaba sendo interferida pelas suas questões [da criança] e acaba ficando</p><p>desgastada, sabe”, mas continuam tentando ficar juntos;</p><p>• Raquel, 33 anos. Já teve quatro filhos do mesmo companheiro, e está gestante de</p><p>seu quinto filho no momento. O filho mais velho do casal, atualmente com 18 anos</p><p>de idade, e o terceiro filho, atualmente com 10 anos de idade, apresentam deficiência</p><p>intelectual. A segunda filha do casal, Cecília, tinha diagnóstico de microcefalia e</p><p>deficiências múltiplas, e faleceu no ano de 2022, com 11 anos de idade. O quarto</p><p>filho do casal está com dois anos de idade atualmente. Raquel relata que, quando ela</p><p>tinha 15 anos de idade já namorava com o seu atual parceiro, e a irmã dele teve um</p><p>bebê. Quando a cunhada retornou ao trabalho, pediu para Raquel cuidar do sobrinho.</p><p>E foi então que ela ficou também com vontade de ser mãe. Mas o esposo não queria</p><p>e “eu arrumei escondido dele o menino” e que “por ele mesmo não tinha arrumado</p><p>nenhum”, mas comenta que “a gente não faz as coisas direito, né? Aí acaba</p><p>arrumando”. Raquel comenta que a gravidez atual também não foi planejada, mas</p><p>que após a morte de sua filha está muito “nervosa”, emagreceu 25Kg desde então,</p><p>está com “os cabelos caindo” e acaba esquecendo de tomar o contraceptivo e “por</p><p>isso desregulou” e “quando vi estava grávida”. Em sua casa moram Raquel, o esposo</p><p>e os três filhos.</p><p>4.2 Articulação entre aspectos temáticos e as experiências das participantes</p><p>A partir dos episódios explorados nas entrevistas, realizou-se uma articulação entre</p><p>aspectos temáticos e as experiências vivenciadas pelas participantes.</p><p>O tempo é um fator presente em todas as fases e vivências experenciadas pelas mulheres.</p><p>O instante do diagnóstico, o período para elaboração do luto e aceitação, o transcurso da</p><p>ressignificação, o estar sempre presente nos cuidados da criança, os prazos e horários a cumprir,</p><p>as brechas na rotina para cuidar de si mesma e as preocupações e os projetos futuros.</p><p>75</p><p>Elementos do discurso biomédico, tanto em relação aos tratamentos da criança, quanto</p><p>em relação à própria saúde da participante, atravessaram todas as entrevistas, assim como</p><p>aspectos relacionados às barreiras sociais enfrentadas pelas famílias. As práticas de cuidado e</p><p>a interdependência geradas pela relação mãe-filho também perpassaram os relatos das</p><p>participantes.</p><p>Dessa forma, os resultados e discussão foram divididos em subtópicos que caminham</p><p>pelos conceitos e demandas da saúde, seguidos pelos atravessamentos com o modelo social da</p><p>deficiência e em relação às práticas de cuidado no cotidiano. Por fim, considerações em relação</p><p>ao corpo e identidades também foram situadas.</p><p>4.2.1 Os encontros com os profissionais de saúde: “procurar cabelo em ovo”.</p><p>Desde a notícia do diagnóstico até o processo de ressignificação, as participantes</p><p>relataram atravessar por questões relacionadas à saúde emocional e mental. As mulheres</p><p>relataram passar por estágios de luto com a descoberta da deficiência do filho:</p><p>A gente passa por uma fase de luto. Uma fase que você não quer aceitar. Você fica</p><p>assim: ah, não é possível. Mas aí a gente tem que ser forte e procurar ajuda, né? Fazer</p><p>o quê. (Mara).</p><p>Não sei te explicar como foi, porque a reação na hora ali... Eu recebi ela... Porque eu...</p><p>Sabe quando você tá ciente, porque você é mãe, você tá ali, você tá vendo. Então você</p><p>já tava assim... Só que, eu tomei um baque na hora que falou que ele ia ser uma criança</p><p>deficiente visual. (Helen).</p><p>Primeiramente, os sentimentos de negação e desespero surgem. Não apenas a mãe, mas</p><p>também o pai e outros integrantes da família atravessam esses sentimentos e se frustram em</p><p>relação à expectativa da criança idealizada:</p><p>Não foi fácil, né? Não foi fácil para a família toda. Porque até então antes do</p><p>diagnóstico, a gente imaginava: tá, é uma fraqueza, talvez toma um remedinho, faz</p><p>alguma coisinha e pronto. Era mais ou menos assim o que a gente pensava, né? (Ana</p><p>Rita).</p><p>Foi bem impactante. No começo meu esposo não aceitou. Foi uma coisa meio que na</p><p>família, todo mundo ficou muito recluso. Ninguém aceitava, achava que era coisa da</p><p>nossa cabeça. Que ele tinha tido um trauma na escola. Aí falei pra escola que o pai</p><p>não tinha aceitado muito bem e tal. E aí, a partir desse momento, que eu falei pra a</p><p>escola: não, vamos prestar mais atenção. Aí comecei a correr atrás, né? Mas sozinha,</p><p>por conta dessa reclusão, né, do pessoal. Todo mundo achava que não era. Que... A</p><p>gente até fez uma viagem antes dele ir pra creche, a gente fez uma viagem de avião.</p><p>E a maioria da minha família acha até hoje que ele tem um trauma: ou da creche, que</p><p>alguém fez alguma coisa pra ele, ou que ele traumatizou da viagem, sabe. Gente, é</p><p>diagnóstico de médico, eu não sei quê que eles pensam. (Vanessa).</p><p>76</p><p>Conforme comentam Santos e Farias (2021), o silêncio e a dificuldade em falar sobre o</p><p>assunto pode afetar todos os integrantes da família:</p><p>Meu marido eu evito muito de conversar com ele. Ele sabe, né? De tudo. Mas quando</p><p>você começa a conversar alguma coisa sobre, em relação aos médicos, essas coisas</p><p>do Nicolas, sabe, ele não gosta muito,</p><p>sabe. Então, com ele eu evito muito de falar.</p><p>Eu falo mais com a minha sogra, com a minha mãe, com as minhas irmãs. Mas com</p><p>ele, assim, muita coisa, eu evito de falar. (Dorina).</p><p>Sentimento de culpa e incertezas, iniciam-se mesmo antes do diagnóstico, com a</p><p>sensação de inadequação ao ver seu filho, afastando-se cada vez mais do mundo “normal”, que</p><p>as mães gostariam tanto de lhes dar (GUERRA et al., 2015). Ao levar uma desconfiança de que</p><p>algo não está dentro da “normalidade” para profissionais da saúde, a expressão “procurar cabelo</p><p>em ovo” apareceu em mais de uma narrativa em resposta dos profissionais de saúde à essas</p><p>percepções da mãe. A desvalorização do conhecimento das famílias, em apreço ao</p><p>conhecimento do profissional, atravessou a maioria das narrativas, já mesmo antes da notícia</p><p>do diagnóstico:</p><p>Na maternidade mesmo eu já notei que ele era diferente. Ele nasceu com uma cor</p><p>diferente, e muito magrinho. [...] Mas aí ela falou que era a cor dele mesmo, e viemos</p><p>para casa. [...] Aí comecei a vir aqui no posto e falava que ele é diferente. Eu vejo que</p><p>ele é diferente. Mas aí eles falavam: às vezes é porque engravidou um pouquinho mais</p><p>velha e é tudo diferente. Não é. Eu sei que não é. Eu sei que alguma coisa nele não tá</p><p>bem. [...] Eu sempre achei, sempre vi a diferença, né? Porque eu falo assim, que a</p><p>mãe, ela tem um instinto. Ela sabe, né? (Dorina).</p><p>Quando ele nasceu que eu questionei a doutora, a linda, ela falou que eu tava</p><p>procurando pelo em ovo. Tá bom, então, né? No momento que eu questionei dentro</p><p>de um hospital, não tive nem alta, ela usou o poder, né? (Helen).</p><p>Até então, o pessoal encaminhava era para fazer fisioterapia motora. Aí levei ela para</p><p>fazer e aí falaram que era falta de estímulo. E eu falei assim: não é não. A gente sempre</p><p>tentava estimular ela, né? (Ana Rita).</p><p>Uma vez eu levei ele lá no PSF, ele passou com uma profissional, não lembro se foi</p><p>T.O. (terapia ocupacional), e ela me garantiu. Ela falou assim: Oh mãe, você pode</p><p>ficar despreocupada, teu filho não tem autismo. Mas eu fiquei com a pulga atrás da</p><p>orelha. Falei: gente, se ele não tem autismo, então o que é que ele tem? Porque alguma</p><p>coisa ele tem. (Mara).</p><p>Sentimento de culpa também aparece por não terem tido nenhuma percepção em relação</p><p>ao diagnóstico da criança, e até mesmo sobre as expectativas em relação ao cuidado esperado</p><p>e aos tratamentos da criança. A expectativa social construída, de que essas seriam</p><p>responsabilidades da mãe, permeiam as falas:</p><p>77</p><p>Tem mães que descobrem bem logo, né? Tem mães que descobrem com um aninho</p><p>de idade. Menos de um ano. Agora eu, demorei para perceber. (Mara).</p><p>A gente não tinha reparado que ele ficava mais recluso, né? Em casa, ele brincava</p><p>normal com a irmã. Não tinha essa, né, de ficar afastado das crianças. (Vanessa).</p><p>Após sentimentos iniciais de negação, tristeza e resignação à perda do filho idealizado,</p><p>inicia-se um processo de aceitação da criança como ela é e a construção de um vínculo mais</p><p>profundo nessa relação mãe-filho (GUERRA et al., 2015). Só então, a partir desse momento, a</p><p>mãe é capaz de se mover e correr atrás dos tratamentos para o filho (KUTSUNUGI et al., 2021):</p><p>Depois que eu aceitei, a partir daqui, é só tratar, né? Ele é meu e aqui a gente continua.</p><p>(Vanessa).</p><p>Agora não adianta chorar, né? Agora é correr atrás e tentar ajudar ele. É o que eu faço</p><p>agora. Voltei a estudar pra mim poder ajudar ele. (Helen).</p><p>A espiritualidade, assim como defendidos por Guerra et al. (2015) e Santos e Farias</p><p>(2021), também aparece fortemente como meio para o enfrentamento das dificuldades:</p><p>Então, como a gente não... até então não sabia tudo, né, o que a gente ainda iria passar,</p><p>eu recebi a notícia e... Eu não sei nem explicar, porque assim: Deus conforta a gente</p><p>muito antes de tudo. Para mim. Não foi algo normal, né? Porque a gente sabe que a</p><p>gente ia ter uma batalha aí pra frente para seguir. Mas o meu amor de mãe por ela, do</p><p>meu esposo, sabe. (Ana Rita).</p><p>Aí vejo, tá tudo bem, vou dormir. Aí eu apago. Eu falo: Deus agora você toma conta</p><p>porque eu não dou conta. Graças a Deus, à noite muito difícil ter alguma intercorrência</p><p>com o Arthur. Ele dorme bem, a noite toda. (Laura).</p><p>Mas eu falo que ele foi um presentão. Que nessa vida ele que tá me ensinando. Não</p><p>sou eu que tô ensinando ele. Todos os dias eu agradeço. Eu falo assim, que Deus dá</p><p>filhos especiais para as pessoas especiais. Então eu agradeço o presente que ele me</p><p>deu. (Helen).</p><p>O amor incondicional, a reconstrução de valores e o desenvolvimento da resiliência,</p><p>através da capacidade de resistir e crescer na adversidade (SUZUKI et al., 2018), aparecem nas</p><p>narrativas como um elemento de fortalecimento dos vínculos:</p><p>É muito gratificante ver ele bem, sabe. E eu falo: Deus me deu essa missão, eu vou</p><p>até o fim. Não sei se vai durar um, dois, dez anos. (Laura).</p><p>É bem assim, é uma correria, mas é gostoso. (Vanessa).</p><p>Eu falo que com ele eu aprendi muita coisa. Muita. Tudo é no tempo certo. Eu era</p><p>muito apavorada. Gostava de tudo muito naquela hora. Agora não, agora eu tenho que</p><p>esperar tudo. (Dorina).</p><p>78</p><p>Hoje eu posso falar que eu me tornei uma pessoa melhor. Eu não era uma pessoa boa,</p><p>era bem ambiciosa, bem eu sei de tudo. Eu era assim, eu não aceitava. Ah fala: você</p><p>sabe, eu também sei. Hoje eu sei que não. A gente nunca sabe. A gente sempre aprende</p><p>algo diferente. Então, hoje eu só agradeço. (Helen).</p><p>Outros membros da família, também podem se beneficiar do desenvolvimento da</p><p>resiliência:</p><p>Olha, o Vitor veio pra ensinar, em relação a tudo. E... realmente, a nossa vida mudou</p><p>completamente. A gente... Eu mesma vejo, por fora, a gente ficou mais unido. Em</p><p>relação ao cuidado. Até mesmo em relação aos outros, a gente tem que saber tratar</p><p>bem as pessoas, seja ela diferente ou não. Tem que ter o respeito. Então, isso eu acho</p><p>legal porque eu trabalho com os outros dois. Eu explico pra eles: vocês gostariam que</p><p>alguém desfizesse do irmão de vocês. Então eu acho que trouxe mais amadurecimento</p><p>pra gente em relação a isso. Eu vejo que meus filhos vão ser uma pessoa mais amável,</p><p>realmente, sem nada em troca. Por eles mesmo. Porque a gente já tá tendo a</p><p>experiência dentro de casa. (Helen).</p><p>Solomon (2013, p. 17) reforça em como “a predisposição para o amor dos pais prevalece</p><p>na mais penosa das circunstâncias. Há mais imaginação no mundo do que se poderia pensar”.</p><p>Entretanto, o luto não é atravessado apenas na fase inicial, com o diagnóstico. Novos</p><p>acontecimentos que aparecem ao longo da vida da criança, como a necessidade de uso de</p><p>dispositivos – como a traqueostomia ou a cadeira de rodas, também recriam os sentimentos de</p><p>tristeza e desespero, assim como outras emoções e desafios. Ainda, um luto antecipatório é</p><p>despontado nas falas de algumas mulheres, ao se pensar na possibilidade de morte do filho:</p><p>Depois que ele fez a traqueo eu fiquei bem baqueada. Nossa, tem dia que eu olho</p><p>assim... Esse oxigênio acaba comigo. Fico muito triste. Porque não tem como fazer</p><p>nada. Você fica presa, não tem jeito de fazer nada. E uma coisa que eu ando bem</p><p>frustrada é que depois que o Arthur fez a traqueo, é que eu voltei a fumar. Eu fico</p><p>muito ansiosa, preocupada com ele, sabe, porque é um meio de contaminação ali. Mas,</p><p>foi preciso. E tem hora que bate aquelas deprezinha, né? Normal. A gente não é de</p><p>ferro, né? Tem dia que eu fico preocupada, fico pensando como que vai ser quando</p><p>ele morrer. Aí começa a me dar aquela angústia. Depois penso assim: não, para. A</p><p>hora que for, é isso mesmo. Fazer o quê, né? Vou fazer o meu melhor por ele enquanto</p><p>ele tá aqui. (Laura).</p><p>E quando a gente percebeu que realmente ela precisava de uma cadeira de roda, aí foi</p><p>o momento do baque. Porque a gente viu que ali seria o lugar onde ela ia precisar para</p><p>se locomover, né? Eu lembro certinho quando</p><p>a gente foi buscar a cadeira dela, eu</p><p>coloquei ela sentada na cadeira, aí ela ainda brincou com a gente... E a gente com o</p><p>coração na boca, né? Aí ela virou e falou assim: nossa, mãe. Eu estou me sentindo</p><p>num parque de diversões! Então, pra gente, nossa. Aquele momento mudou muita</p><p>coisa. Porque a gente viu que ali era o parque de diversões dela. (Choro). E hoje</p><p>continua sendo. É onde ela se sente bem, vai aonde ela quer ir. (Ana Rita).</p><p>Dentro dos trajetos vivenciados por essas mulheres, os tensionamentos nos encontros</p><p>com os profissionais de saúde são centrais nas narrativas. A formação profissional de</p><p>79</p><p>característica majoritariamente biomédica esbarra com outros aspectos relevantes nessas</p><p>relações e conforme Bonet:</p><p>A delimitação do profissional e do humano, ou do saber e do sentir, como dois</p><p>conjuntos de representações separadas, se manifesta em forma permanente nas</p><p>práticas cotidianas do serviço. A biomedicina, baseada na construção dualista que</p><p>derivou no que chamamos de tensão estruturante, para sua constituição como um</p><p>campo de saber científico dividiu três totalidades: o médico, o paciente e a relação</p><p>entre eles. Deslocou para o subconsciente aqueles aspectos dessas totalidades que não</p><p>se encaixavam nesse discurso criado sobre o processo de saúde-doença. Mas,</p><p>cotidianamente, isso que foi reprimido encontra uma brecha que possibilita sua</p><p>manifestação, fazendo sentir seus efeitos na prática biomédica cotidiana (BONET, p.</p><p>148).</p><p>Dessa forma, comunicação violenta, especialmente ao se comunicar notícias difíceis,</p><p>desponta nas narrativas:</p><p>Parecia que tinha um bicho dentro de mim. Eu falei: gente, tô com um bicho dentro</p><p>de mim, porque estranho, ninguém sabe falar de nada. [...] E assim, eu não tenho boas</p><p>recordações de lá. Porque em todos os meus ultrassons, que eu fazia toda semana. Eu</p><p>ia fazer, ele chamava aquele tanto de residente. O médico ia fazer o ultrassom e ficava</p><p>falando que podia ir a óbito, que era uma criança que não ia desenvolver. Que não ia</p><p>viver muito tempo e eu lá escutando. O meu marido, coitado. Ele ia junto. Nossa, ele</p><p>ficava super mal. Eles falavam pra mim que não era pra mim fazer a bolsa</p><p>maternidade. (Laura).</p><p>A doutora, que eu esqueci o nome dela, muitos anos já, ela pediu uns exames, umas</p><p>coisas. Que aí ela falou o que tinha mesmo e que nem sabia se ia andar assim ou se</p><p>não ia. Sabe, mas ela foi muuuito fria sabe. Ela não soube conversar, sabe. Falei, tá</p><p>bom, né. Vai fazer o quê, né? Não tem o que fazer, ué. Ainda mais quando o médico</p><p>não sabe conversar, né? Não sabe o que é dar uma notícia assim, né? Já foi falando já</p><p>o que tinha e o que não tinha e pronto. (Raquel).</p><p>Os medos e a insegurança das mães ao iniciar os cuidados com o filho, sozinhas em seus</p><p>lares, são intensificados por comunicação feitas de forma inadequada por parte dos profissionais</p><p>da saúde, pela falta de acolhimento às demandas e sentimentos das mães e pela inexistência de</p><p>um treinamento de habilidades práticas:</p><p>Ficamos 87 dias internado e quando foi a alta, nossa... Nem dormia à noite porque ele</p><p>já tava de alta, só que demorou uma semana mais ou menos para levar ele embora.</p><p>Até arrumar tudo, né? Que ele ia precisar, de oxigênio, aspirador. Aí eu tinha muito</p><p>medo. Nossa, muito medo. Apesar de ser da área, eu falava gente. O quê que eu vou</p><p>fazer com esse menino em casa. Tinha muito medo. [...] Aí, no dia da alta, uma</p><p>residente falou: Olha, teu filho, o diagnóstico dele é muito ruim e a gente não sabe</p><p>quanto tempo ele vai viver. A qualquer momento, ele pode morrer na sua mão. Aí eu</p><p>fiquei com isso na cabeça uns 20 dias sem dormir. Não dormia, aquela preocupação.</p><p>Ficava à noite inteira olhando, o dia inteiro olhando para ele. Não fazia nada. Não</p><p>comia. (Laura).</p><p>80</p><p>A comunicação eficaz é de extrema importância na área da saúde, através do</p><p>estabelecimento de um diálogo compreensível pelo paciente e familiares. Entretanto, a</p><p>comunicação não se limita aos atos de emissão e recebimento das notícias. O desafio está em</p><p>construir um relacionamento baseado no cuidado e no desenvolvimento de habilidades para</p><p>acolher as repercussões geradas naquele que recebe a notícia. As notícias difíceis são</p><p>geralmente disparadoras de reflexões acerca de diversos aspectos da vida, como os processos</p><p>de saúde e doença e da morte e do morrer, assim como de sensações desagradáveis e de</p><p>sentimentos de ansiedade em relação a um futuro desconhecido. (CALSAVARA;</p><p>SCORSOLINI-COMIN; CORSI, 2019).</p><p>Ainda com Calsavara, Scorsolini-Comin e Corsi (2019), os autores salientam sobre a</p><p>dificuldade dos profissionais de saúde em comunicar más notícias, com origem já na graduação</p><p>com a falta da abordagem dessa temática no ensino. Como forma de auxílio aos profissionais</p><p>da saúde e como meio de reduzir os impactos negativos gerados no paciente e seus familiares,</p><p>protocolos discutem em como tornar essa comunicação menos traumática, tanto para o médico,</p><p>mas sobretudo, para o paciente e seus familiares. A atitude e a capacidade de comunicação do</p><p>profissional oferecem elementos, por meio da empatia, para que a família se sinta protegida</p><p>diante da má notícia, de forma que, embora os familiares o quão difícil foi passar por este</p><p>momento, podem também se lembrarem do acolhimento recebido na ocasião.</p><p>Dessa forma,</p><p>o médico também precisa assumir ou ter consciência de seus sentimentos por vezes</p><p>negativos perante o paciente e à necessidade de comunicar notícias ruins, entrar em</p><p>contato com as suas emoções pessoais, suas dificuldades com determinadas</p><p>abordagens e assuntos, reconhecendo limitações que podem ser trabalhadas em</p><p>diferentes espaços, dentro e fora do seu setting profissional. A partir dessa leitura, não</p><p>podemos compreender que, para o médico, por exemplo, o ser autêntico é estritamente</p><p>fornecer a verdade para o paciente, não escondendo informações e, sobretudo,</p><p>deixando transparecer o “ser o que se é”. Ser autêntico pode ser estar junto do outro</p><p>oferecendo sua integração, aceitando as decisões que podem ou não ser compatíveis</p><p>com seu esquema de referência. [...] O processo de tornar-se autêntico/congruente</p><p>deve ser constante, convidando os profissionais de saúde para um trabalho de</p><p>desenvolvimento pessoal que tome por base esse contexto de atuação fortemente</p><p>estressor e potencializador de sentimentos por vezes de difícil manejo</p><p>(CALSAVARA; SCORSOLINI-COMIN; CORSI, 2019).</p><p>Assim, é importante refletir em como a comunicação e as ações dos profissionais de</p><p>saúde promovem impactos relevantes na vida dos pacientes e familiares. No caso de crianças,</p><p>particular atenção deve ser dada às relações estabelecidas com as famílias, geralmente</p><p>representadas pelas mães. A partir do momento que recebem o diagnóstico sobre a gravidade</p><p>81</p><p>(ou cronicidade) da condição do filho, as mães saem carregando nos ombros novas tarefas, que</p><p>irão desencadear mudanças de hábitos pessoais e familiares. (RESENDE; MITRE, 2013).</p><p>As diretrizes de saúde voltadas para as pessoas com deficiências, incluem como</p><p>responsabilidade dos cuidadores o desenvolvimento e conhecimento de habilidades técnicas,</p><p>como apontado no capítulo dois dessa dissertação, e Jean et al. (2018) reforçam como a pressão</p><p>por adquirir novos conhecimentos e habilidades pode ser mais um fator de estresse para essas</p><p>mulheres. Além dos cuidados habituais com crianças, de um modo geral – como alimentação,</p><p>higiene, tarefas relativas à escola; outros cuidados são adicionados à rotina dessas mulheres</p><p>(BOURKE-TAYLOR; JANE, 2018). O aprendizado sobre conhecimentos técnicos, e a família</p><p>como coterapeuta, transpassou a maioria das entrevistas:</p><p>É levantar cedo, é passar leite, dar banho, é observar se tá com secreção amarelada,</p><p>porque se tiver tem que correr pro hospital. (Jenny).</p><p>Terça e quinta tem uma fisioterapeuta que vem atender ele. É uma tarde. Aí eu ajudo</p><p>ela, a gente põe ele em</p><p>pé, tudo. [...]. E os dias que ela não vem, também pede para</p><p>fazer exercício nele. Tem a bola dele, tem as coisas, faço estímulo nele, no rostinho</p><p>dele para ver se ele consegue engolir e faço os exercícios. (Laura).</p><p>Eu tento brincar com ele, ensinar como que brinca. Aí ele fica nervoso comigo e pega</p><p>o carrinho da minha mão e guarda. Pega a bola que eu tô na mão e guarda. Aí eu... Eu</p><p>não sei. Porque eles falam que pra desenvolver, eles têm que brincar, né? A</p><p>brincadeira que desenvolve. Mas ele... ele não chama muita atenção brinquedo para</p><p>ele não. (Mara).</p><p>A gente faz tudo que tiver que fazer. A gente estimula, a gente brinca. Até quando a</p><p>gente recebeu o diagnóstico, eu já fui pra saber o que é que eu tinha que saber pra</p><p>mim estimular ele. Comecei a estudar, cegueira mesmo, tudo. Braille. Eu quero saber</p><p>todos os códigos penais que meu filho tem direito porque, eu vou bater de frente. É</p><p>onde eu torno a te falar de novo: Deus só dá crianças especiais para mães especiais. E</p><p>pode ver que a maioria é barraqueira, sempre vai brigar pelos direitos do filho.</p><p>(Helen).</p><p>Ana Rita, durante a reunião de diálogo para devolutiva dos registros fotográficos,</p><p>comentou, ao ver a Fotografia 14 (p. 106), o quanto sua profissão de técnica de enfermagem a</p><p>preparou para algumas tarefas que que necessita realizar em relação aos cuidados com a filha:</p><p>Eu falo que Deus prepara tudo porque eu sou técnica de enfermagem e muitas das</p><p>vezes eu penso assim: se eu não fosse, né? Ia ser mais difícil ainda o caminho. Porque</p><p>igual o curativo que ela tá fazendo, eu sei, né? Todos os cuidados que precisam ser</p><p>feitos. Então, Deus já me preparou para receber. Falta só a fisioterapia agora (risadas)</p><p>(Ana Rita).</p><p>Mas nem sempre, esse aprendizado e a adaptação à novas rotinas e aspectos técnicos é</p><p>alcançado pelas famílias. Raquel comenta sobre as dificuldades em relação ao uso de sonda</p><p>nasoentérica para alimentação pela filha, especialmente tendo um outro filho bebê em casa:</p><p>82</p><p>Aí colocou aquela do nariz. Nosso aquilo lá é muito difícil. No primeiro dia o irmão</p><p>já arrancou a sonda, uma puxada já... Ficou nem meia hora com a sonda. Aí vamos</p><p>nós. Vai lá e põe aquilo de novo. Só pra passar aquilo lá é uma tristeza, né? Muito</p><p>sofrido, credo. Ainda mais porque ela gostava de ficar com o irmão. Aí, de certo ela</p><p>já percebeu que não ia ter mais como. (Raquel).</p><p>A humanização na assistência à saúde e a preocupação para além dos aspectos</p><p>biomédicos, pode auxiliar essas mulheres nos desafios emocionais:</p><p>Aí ele falou: ele tem essa má-formação realmente. Só que o restante, o coração dele</p><p>tá bom, ele tá evoluindo bem, tá crescendo. Aqui a mãozinha, pezinho. Porque até</p><p>então eu nem tava preocupando. Eu nunca tinha visto. Aí ele foi mostrando. Aí</p><p>escutamos o coraçãozinho, que até então não tinha escutado e foi bem legal, sabe. Aí</p><p>eu fiquei mais calma. (Laura).</p><p>Dores emocionais e, também dores físicas (devido à sobrecarga de tarefas), estão</p><p>presentes na vida dessas mulheres. Depressão, estresse e ansiedade foram relatados pelas</p><p>participantes:</p><p>Eu já tive uma tentativa de suicídio [...] pela exaustão, pelo cansaço que eu tinha.</p><p>Porque assim: eu não dormia, eu não conseguia comer, eu não conseguia tomar banho.</p><p>Porque eu não tinha rede de apoio. O pai trabalhava e o pai na época trabalhava</p><p>rodando turno. Não tinha horário para ele tá em casa. Ele até tentava, se esforçava</p><p>para ajudar [...]. Então assim, a tentativa de suicídio que eu tive eu não sei te dizer se</p><p>foi se eu queria me matar ou se eu estava só cansada e eu queria descansar, eu queria</p><p>deitar na cama e ter uma noite de sono. (Jenny).</p><p>Tanto é que agora já tô com problema de pressão alta. Eu não tinha não. [...] Eu não</p><p>sei se pode ser de estresse também, que acaba dando esse tipo de coisa na gente. Mas</p><p>é estresse, porque você não tem um momento de lazer, de sossego, sabe. É 24 horas</p><p>em cima dele. (Mara).</p><p>Ainda, as dores emocionais, devido à morte da filha há cerca de nove meses, são</p><p>relatadas por Raquel e como os afetos em sua saúde mental com o luto afetam o corpo físico:</p><p>Depois do falecimento da Cecília [...] aí eu fiquei muito nervosa. Eu tava com 75 Kg.</p><p>Emagreci 25 Kg, olha aqui. Meus cabelos andou caindo, tem hora que sai de tufo</p><p>depois dela. (Raquel).</p><p>Uma assistência centrada na família, com um olhar também para o cuidador é sugerida</p><p>pelas participantes, assim como um espaço dedicado às mães, “a sala das mães”, em que suas</p><p>demandas podem ser assistidas:</p><p>Eu vejo que talvez... Falta sim, sabe, um olhar pra gente. Que nem eu tava comentando</p><p>com o meu esposo: nossa, eu não tô aguentando de dor nas costas. E igual eu levo a</p><p>Isis lá na fisioterapia. Aí naquele momento, tipo assim: nossa, eu precisava daquele</p><p>83</p><p>alongamento! A gente não tem, né? Então, precisa sim ter um olhar pra gente. A gente</p><p>que é mãe, eu falo, a gente tá disposto, eu tô disposta a ela 24 horas do meu dia. Então,</p><p>há momentos que a gente fala assim: nossa, eu precisava fazer isso e não tem como.</p><p>[...] Acaba que eu vejo tudo por ela. Eu não vou tirar um dinheiro e vou falar: não, eu</p><p>vou pagar, e vou fazer uma fisioterapia pra mim. Não, eu não penso assim, sabe. Eu</p><p>penso nela primeiro. Então, falta sim. Sabe, às vezes eu olho na sala por exemplo e</p><p>fico pensando assim: nossa, já pensou se tem uma sala... Ah peraí... Aqui é a sala das</p><p>mães. A gente vai fazer um projeto para as mães. Aqui a gente faz uma fisioterapia</p><p>nas mães, sabe. Então, eu vejo que falta sim. E a gente luta, a gente briga tudo por</p><p>eles. A gente tá sempre em segundo plano. Ela tá sempre em primeiro lugar. Então, a</p><p>gente vai se torcendo (risadas), o esposo vai fazendo massagem nas costas (risadas).</p><p>[...] Eu comento da parte da fisioterapia, porque assim, a Isis depende que a gente</p><p>pegue ela, né? Então para pegar ela para ir ao banheiro, para pegar ela para colocar na</p><p>cadeira. Então, por isso eu citei a parte motora nossa, porque é só.. é só o que me afeta</p><p>(risadas). O restante, o restante é só Deus mesmo. (Ana Rita).</p><p>A responsabilidade do cuidado familiar não privilegia a saúde da mãe, seu descanso ou</p><p>ampliação do tempo de sono e sim as melhores condições de saúde da criança. As mães cuidam</p><p>da criança e adoecem ao mesmo tempo (VALE; ALVES; CARVALHO, 2020).</p><p>Ainda, a desvalorização dos saberes dos pacientes e das famílias aparece nas falas das</p><p>participantes:</p><p>Se o profissional ficar na dúvida, procura, vamos tirar segunda opções. Não falar</p><p>assim: ah, tá certo. [...] Porque um dia eu falei pra ela, aí ela: mas eu me formei. Hoje,</p><p>é o que eu te falei: eu aprendo todos os dias com o meu filho, e olha que o meu filho</p><p>não é formado. Ele me ensina. Então, acho que é ser grato com uma pessoa que te dá</p><p>uma informação, porque isso vai te ajudar lá na frente. Porque todos os dias a gente</p><p>aprende. E o ser humano não gosta de escutar. Isso eu aprendi. [...] Eu falo que as</p><p>pessoas têm que escutar mais. Não é porque você é formada, que você sabe de algo,</p><p>que você não vai aprender. (Helen).</p><p>Só que as pessoas não tão ali pra saber. Que é você que cuida, que é o jeito ali. A</p><p>gente conhece o filho da gente, por mais problema que tem ou não tem. [...] Então</p><p>acho que nem médico às vezes não sabe ao certo das coisas. Então, a gente que é mãe</p><p>não souber, quem vai saber? Mas a gente é obrigado, né? Então tem que fazer né?</p><p>(Raquel).</p><p>Um novo modelo de relação entre os profissionais da saúde baseado no diálogo e na</p><p>parceria e colaboração da pessoa e da família no tratamento, na escuta das percepções e</p><p>representações do paciente em relação à doença, numa junção do conhecimento científico com</p><p>o campo das vivências e o saber do senso comum, precisa ser estabelecido. É preciso articular</p><p>procedimentos técnicos com compromisso emocional para compreender as experiências da</p><p>pessoa, suas expectativas, limitações e potencialidades (RESENDE;</p><p>MITRE, 2013).</p><p>Para além das instituições formais de saúde, os grupos de mães têm também papel</p><p>importante nessa ressignificação, segundo Oliveira et al. (2016). Esses encontros auxiliam essas</p><p>mães a se organizarem e a se mobilizarem por meio do compartilhamento grupal de como cada</p><p>participante age a partir de suas próprias necessidades:</p><p>84</p><p>Eu acho que isso seria legal para você ver que você não é primeira e nem a última. E</p><p>a gente trocando os diálogos, você aprende e ensina o que você aprendeu. (Helen).</p><p>Durante o acompanhamento no cotidiano de Ana Rita, a participante me mostrou</p><p>também sobre a importância do compartilhamento de informações em grupos no aplicativo</p><p>WhatsApp. Ela participa de dois grupos relacionados à patologia da filha, a nível nacional. Esse</p><p>dado não foi informado em sua entrevista.</p><p>Em suma, as mulheres que são mães de crianças com deficiências, apresentam</p><p>demandas de saúde, emocionais e físicas, em consequência de suas atividades como cuidadoras.</p><p>A sobrecarga de tarefas, que perfazem os cuidados habituais de crianças sem situações crônicas</p><p>de saúde, é tida como o principal motivo para o estresse. As dores físicas, como dores</p><p>musculares, estiveram mais associadas a crianças com deficiência física ou múltipla. É urgente</p><p>uma melhor assistência à saúde à essas mulheres, desde a APS, até um olhar voltado a elas em</p><p>centros de reabilitação, por exemplo, com a criação de uma “sala das mães”, com atendimento</p><p>e grupos mediados por diversas áreas profissionais.</p><p>Ainda, é importante reforçar, em como a saúde pode ser promovida para além das</p><p>instituições formais, por exemplo, através da prática de esportes, citada por mais de uma das</p><p>participantes, e da participação em grupos de mães e famílias nas mesmas condições, onde</p><p>através de diálogos, sentimentos e práticas podem ser compartilhados e reelaborados.</p><p>Além disso, além do olhar para as demandas da cuidadora, os relatos das participantes</p><p>também atravessaram as demandas de saúde e as tensões encontradas nos itinerários</p><p>terapêuticos da criança, muitas vezes se misturando, ou sendo consequência uma das outras,</p><p>mas não se igualando.</p><p>É necessário depreender também, que a abertura para incorporar o campo das vivências</p><p>e o saber das práticas diárias ao conhecimento científico é indispensável às práticas atuais dos</p><p>profissionais de saúde. A desvalorização do conhecimento adquirido pelas famílias perpassou</p><p>a maioria das entrevistas, em detrimento da falta de escuta e de um enaltecimento do saber</p><p>biomédico.</p><p>Assim, conforme Seikkula e Arnkil (2020, p. 36), “atravessar as fronteiras é necessário</p><p>dentro do sistema profissional e entre profissionais e não profissionais. Essas dimensões se</p><p>fundem. [...] Seu conhecimento especializado não evapora por causa da travessia das</p><p>fronteiras”.</p><p>4.2.2 A sociedade e as barreiras: “passou despercebido”.</p><p>85</p><p>A partir da aceitação, a mãe e a família começam a incluir o filho na sociedade,</p><p>quebrando paradigmas e preconceitos que são impostos. Ele passa a ser visto com outros olhos.</p><p>Novas formas de vencer os preconceitos são construídas, alicerçadas em confiança e autoestima</p><p>(GUERRA et al., 2015).</p><p>Entretanto, a prevalência do estigma social em relação às pessoas com deficiências no</p><p>público em geral e a falta de apoio social para os familiares de crianças com deficiência são</p><p>tidos como barreiras à participação social (KIM et al., 2018). Condições clínicas da criança,</p><p>por exemplo, uso de oxigenioterapia, ou comportamentais, como crises, também desencorajam</p><p>as mães a se envolverem em atividades sociais juntamente com seus filhos:</p><p>Às vezes tem alguma coisa assim, alguma reunião de família, eu não vou. Ainda mais</p><p>agora com oxigênio. Eu fico meio apreensiva. Eu falo assim, que com o Arthur, eu</p><p>saio com ele, mas eu tenho aquele receio porque ele já ficou muito tempo internado,</p><p>e assim as interações judiam muito dele, ele regride muito, né? Então eu fico com</p><p>medo. [...] A gente tem que abrir mão de muita coisa, né? Igual, nós dois sempre</p><p>gostamos de sair muito, ir para festa. Hoje em dia, não tem jeito. E agora é dois, né?</p><p>Não é mais um. Fazer churrasco, passear. A gente nunca gostou de ficar muito em</p><p>casa. Agora a gente se adaptou já em casa. Acho que é isso. Muda tudo! Uma criança</p><p>normal já é difícil, especial é pior. Muda tudo a rotina. Muda a vida (Laura).</p><p>Ontem mesmo que eu tava vindo da terapia com ele. Ele tava dormindo dentro do</p><p>ônibus. Chegou no centro, eu fui tirar ele. Eu não sei se... A terapeuta falou que foi</p><p>crise que deu nele. Porque eu achava que crise de autismo era de ficar fazendo flapping</p><p>com a mão, aqueles negócio ou chorando. Ela falou: não, o morder o gato pode ser</p><p>uma crise, muitas outras coisas. Mas você ver o tanto que ele ficou nervoso lá no</p><p>centro. Ele desceu, e ele corria para lá e pra cá. E eu tentava segurar ele, ele me mordia.</p><p>Ele ia nas pessoas que não conhece e mordia, batia. Tinha uma senhora que tava de</p><p>costas assim, ele bateu bem forte nas costas dela. Aí eu tive que ficar pedindo</p><p>desculpa. Falando que ele é autista. Mas, aquele transtorno pra rua, sabe. Aí às vezes</p><p>cai pro chão. Aí os outros fica olhando para mim. Acho que fica pensando que eu não</p><p>tô sabendo por limite nele ou fica achando que ele tá passando mal e quer chamar o</p><p>SAMU (risada). Porque tem autista que não é agitado, né? Tem uns que é mais calmo.</p><p>Agora ele? Ele é bem agitadinho. (Mara)</p><p>Eu procuro sair com elas, de vez em quando, tomar um café da tarde. Às vezes na</p><p>minha própria casa. Eu falo: gente, vamos lá pra casa. Porque essa questão de não sair.</p><p>Porque aí eu fico em paz. Mas pra sair é difícil. Tem que ser ou quando ele tá</p><p>dormindo, ou quando ele tá com o pai. (Vanessa).</p><p>Acrescenta-se ainda vivências junto a seus filhos de falta de acessibilidade, preconceito</p><p>e exclusão em ambientes sociais (MOXOTÓ; MALAGRIS, 2015). A falta de conhecimento</p><p>das pessoas em geral, sobre o fenômeno da deficiência é tida como a causa para muitas barreiras</p><p>encontradas:</p><p>Teve uma vez que a Isis foi brincar num projeto que tem aqui. E aí, a gente. As</p><p>crianças todas na fila. Nós estávamos na fila também. E na hora que eu fui colocar ela</p><p>no brinquedo, naqueles brinquedos de pula-pula. Aí a moça.. Hum... Não é orientada,</p><p>86</p><p>né? Infelizmente muitas pessoas não orientadas. Na hora que eu fui colocar Isis, ela</p><p>comentou comigo: você não pode entrar. Comentou pra mim, que eu não poderia</p><p>entrar. Aí eu comentei com ela: mas se eu não entrar, como é que ela vai brincar?</p><p>Você vai poder entrar com ela. Aí ela: eu não posso porque eu tenho que ficar aqui</p><p>fora. Aí eu falei, então você me dá licença que eu vou entrar, porque ela não vai deixar</p><p>de brincar. (Ana Rita).</p><p>Eu não fiquei contando para os outros o que ele tinha, não. Até mesmo para minhas</p><p>tias, elas ficaram sabendo tudo depois. Aí quando o Arthur nasceu, eu já esperava,</p><p>porque assim, é muito complicado. As pessoas têm muito preconceito porque não</p><p>conhecem, não sabem, né? (Laura).</p><p>Porque, é complicado, viu, amiga! Vou falar pra você. Não em questão de criar. Mas,</p><p>mais a questão do preconceito. Não adianta você falar que não tem porque tem. Só</p><p>pode falar que existe o preconceito quem passa. E hoje eu vejo. Que tem muito</p><p>preconceito. Em relação a tudo. (Helen).</p><p>Momentos de lazer, especialmente em família, são possíveis aos finais de semana,</p><p>quando a correria dos dias de semana para cumprir horários não é necessária. A alternativa é</p><p>engajar em atividades de lazer com base nos interesses de seus filhos como novo padrão. A</p><p>participação em atividades de lazer pode ser uma importante estratégia para reduzir o estresse</p><p>da vida, melhorar as relações familiares e aumentar a satisfação com a vida das mães cuidadoras</p><p>(KIM et al., 2018):</p><p>Final de semana, dá pra fazer algumas coisas fora de casa. Eu gosto muito de ir pra</p><p>roça com ele, ir para o sítio do meu cunhado.</p><p>Ele gosta de brincar com as crianças lá.</p><p>É uma coisa que ele gosta de fazer. [...] Levo ele para o Parque Municipal, ele gosta.</p><p>Gosta de caminhar. Ele não gosta muito de ficar ali entre os brinquedos, não. Ele gosta</p><p>de fazer caminhada comigo (risadas). Precisa ver, que engraçado. Você puxou pra</p><p>mim, aí ele ri. Muda. Porque eu consigo dar mais atenção, né Final de semana a gente</p><p>almoça todo mundo junto. No outros dias também, mas aí vai um ou outro da minha</p><p>família, né? Então. Tá dando certo. (Vanessa).</p><p>Aos finais de semana, a gente vai num parque, a gente vai para a chácara. A gente</p><p>tenta colocar o Vitor no convívio social, né? Para ele escutar. Então se passa uma</p><p>moto, eu: oh esse barulho é a moto. Se passa um carro, eu sempre converso com ele:</p><p>oh, esse é um carro. (Helen).</p><p>Pra gente mãe que tem criança especial, uma das frases que a gente mais escuta é:</p><p>“desculpa, passou despercebido”. Porque infelizmente as pessoas que não passam o</p><p>que a gente passa, não tem a visão que a gente tem. Às vezes é um buraquinho na rua,</p><p>é igual eu citei do brinquedo, né? Porque as crianças que têm alguma necessidade</p><p>especial também brincam, precisam sair de casa. [...] Mas uma das frases que a gente</p><p>mais escuta é “Nossa, passou despercebido”. Então, as pessoas precisam saber olhar</p><p>e enxergar de um outro lado. (Ana Rita).</p><p>A escola também representa um espaço social de compartilhamento dos cuidados e</p><p>responsabilidade com a criança:</p><p>Ai final de semana... o que muda é que a gente fica mais tempo com ele, né? Para</p><p>olhar. Não tem creche. (Mara).</p><p>87</p><p>E quando a escola cumpre os seus papéis e realmente inclui a criança, ela funciona como</p><p>um espaço de socialização para a criança e como apoio social às famílias:</p><p>Ele adora ir para escola. Ele fala: a escola! Então, eu me sinto muito bem de levá-lo</p><p>pra lá. Porque se ele não gosta, ele não vai, de jeito nenhum, ele chora muito. Então,</p><p>lá eu sei que é um lugar que ele é muito bem-vindo. As crianças gostam dele e ele</p><p>gosta de brincar. Eu fico muito confortável. Eu deixo, eu não me preocupo. Dentro da</p><p>escola, ele se comporta bem, ele vai ao banheiro, ele come, ele bebe água. Normal,</p><p>né, assim dentro do mundinho dele, das competências dele, ele faz, nossa, faz super</p><p>bem. E isso me faz muito bem, porque eu tô vendo que tá fazendo a diferença, que ele</p><p>tá tendo mais autonomia. (Vanessa).</p><p>Assim como é importante uma relação dialógica com os profissionais da saúde, um novo</p><p>modelo de relação entre as famílias e a escola precisa ser construído, através da valorização dos</p><p>saberes e práticas dos familiares:</p><p>Antes de iniciar o ano, eles me chamaram lá um dia antes, sabe. Por um lado, eu achei</p><p>muito legal. Porque assim. Foram todos os professores e auxiliares. Estavam tudo</p><p>junto. E aí perguntaram para mim. Para passar as experiências com a Isis e tudo mais.</p><p>Eu achei muito interessante. E muitos deles, sabe assim: “não, eu vou passar a</p><p>atividade assim então, vou fazer assim, vou tirar o xerox assim, a gente vai fazer no</p><p>tempinho dela”, e foi indo assim. [...] Aí eu falei assim, nós ainda levantamos,</p><p>mexemos. Você tá sentado na cadeira, se arruma um pouquinho. Ela não consegue se</p><p>arrumar. Então, do jeito que ela ficar ali, ela vai ficar, a não ser que a cuidadora dela</p><p>erga ela um pouquinho, mexe um pouquinho. Ao contrário ela vai ficar ali. Aí eu falei</p><p>assim, a gente não tem ideia porque não estamos no lugar deles mas assim, para sair</p><p>de casa e ir para a escola, o esforço que ela faz para estar ali, para escrever, para ficar</p><p>sentada, para mexer na mãozinha a hora que precisa. Não só ela, mas os outros</p><p>também, né? Imagina um autista que tá ali. (Ana Rita).</p><p>Entretanto, os tensionamentos com a escola também apareceram nas narrativas. O</p><p>ambiente escolar também pode ser um lugar onde a criança, que juntamente com a sua mãe,</p><p>sofre estigmas e recebe comparações em relação ao esperado para outras crianças:</p><p>As tia da creche quando vê eu ou a Patrícia chegando com ele (risadas), elas ficam até</p><p>meio assim, meio triste. Acho que elas pensam: achei que ele não ia vim hoje (risada).</p><p>Ah tadinho. Mas se Deus quiser é uma fase, né? Eu acho assim, conforme eles vão</p><p>crescendo eles vão sabendo lidar melhor comas emoções. Acho que eles vão</p><p>acalmando, né? Eu não queria precisar dar remédio pra ele, mas. (Mara).</p><p>Foi difícil. Foi na creche. [...] Pra mim, foi muito triste porque aí a psicopedagoga me</p><p>chamou, fez uma reunião comigo. Ela explicou o que estava acontecendo, perguntou</p><p>como ele era em casa. Ela fez uma liiista de coisas que ele não fazia, que outras</p><p>crianças faziam na idade dele. E aí que eu fui atentar mais o que tava acontecendo.</p><p>(Vanessa).</p><p>Quando eu fui levar ele pra escola... Quando eu tive o diagnóstico dele, eu já</p><p>matriculei ele na creche. Eu falei, ih ele vai ter inclusão social, vai ter convívio. Até</p><p>as outras crianças mesmo, a professora fala: “oh, isso está sendo legal para as outras</p><p>também”. E você vê, que o preconceito não é a criança. É os pais. Até, no dia que eu</p><p>fui levar ele, teve uma senhora que falou: nossa, ele é cego? Aí eu falei: não, cego é a</p><p>88</p><p>senhora. Ele é deficiente visual. Coisa mais feia. Você saber perguntar, é legal. O ser</p><p>humano é curioso. Outra mãe já olhou. Aí ela falou: nossa, mas você vai por ele na</p><p>creche. Você não tem dó? Tadinho, ele não enxerga. Eu disse dó por quê? Você teve</p><p>dó de pôr os seus filhos na creche? Não tô entendendo. Tadinho por quê? Ele é doente?</p><p>Não tô entendendo? Ele é uma criança normal, ele só tem uma limitação. Então, eu</p><p>sou meia grossa nesse ponto. (Helen).</p><p>A falta de mediador escolar, um direito da criança, foi mencionada em algumas</p><p>narrativas como uma barreira para frequentar a escola. Mara relatou que o filho, com Transtorno</p><p>do Espectro Autista, só frequenta a creche pelo período da manhã, que é quando tem o mediador</p><p>escolar disponível. Ela comentou que a escola argumentou ser melhor para a criança para que</p><p>“ele não fique muito cansado”. No mesmo dia, quando estava caminhando até a casa de Mara,</p><p>passei em frente à creche do bairro e a ACS comentou que as famílias estavam reclamando,</p><p>pois a disponibilidade para o mediador escolar para cada criança era de apenas meio período.</p><p>Na entrevista de diálogo, Ana Rita também comentou sobre o assunto:</p><p>Eu vejo que a escola tá caminhando, sabe. Acho que assim, preparada não tá não. O</p><p>que me revolta mais é isso, sabe. Porque 200 crianças passam do portão pra dentro da</p><p>escola, e uma única criança não entrar? Isso tá errado! Uma única não entra e 200</p><p>entram! Por que aquele ser pequeninho tem que voltar pra casa? Isso tá errado. Eu vi.</p><p>Eu até tirei um print: “mães reclamam que falta auxiliar inclusiva nas escolas”. E teve</p><p>um menininho também de cinco anos, autista, que foi e teve que voltar embora. Aí eu</p><p>tava lendo a reportagem. Gente, ainda continua! Por que eles têm que voltar embora?</p><p>[...] Eu falo assim, que eu, hoje, com tudo que a gente já passou, sinceramente, se eu</p><p>chegar na porta da escola e falarem pra mim que ela não vai poder entrar porque a</p><p>escola não tem o auxiliar. Eu falo: não, eu entro, eu fico com ela. Mas ela vai! Ela vai</p><p>entrar! (Ana Rita).</p><p>Dessa forma, como parte da rotina dessas mulheres, elas também atravessam a luta pelos</p><p>direitos do filho e relatam mais uma vez a relação com o tempo e falta de uma rede de apoio</p><p>social:</p><p>Que nem eu falo, que a gente é muito leiga. Então, como eu te falei, eu aprendo todo</p><p>dia. E a gente não tem um amparo, falo assim, de um profissional. Se você não for</p><p>atrás, ele não vai te falar assim: olha, você tem direito a isso. Então, eu acho que quem</p><p>passa, ela tem que buscar, ela tem que dar os primeiros passos para o filho. (Helen).</p><p>Muitas pessoas acham que a gente por ter criança especial, que a gente tem muita</p><p>ajuda da parte do Governo, por parte da prefeitura, de benefícios. E a gente não tem</p><p>ajuda nenhuma</p><p>2.3 O caminhar das mulheres que são mães de crianças com deficiências ........................ 35</p><p>2.3.1 As trajetórias: do diagnóstico à ressignificação ............................................................. 38</p><p>2.3.2 O cotidiano ...................................................................................................................... 41</p><p>2.3.3 As relações ...................................................................................................................... 45</p><p>3 DELINEAMENTO METODOLÓGICO ......................................................................... 50</p><p>3.1 Traçado da pesquisa ....................................................................................................... 50</p><p>3.2 Primeira etapa da pesquisa: as entrevistas ................................................................... 52</p><p>3.3 Segunda etapa da pesquisa: o acompanhamento de um dia na vida de uma das</p><p>participantes ........................................................................................................................... 54</p><p>3.3.3 Reflexões teóricas sobre o uso da fotografia na pesquisa em ciências sociais .............. 59</p><p>3.4 Reflexões sobre o encontro com o campo ...................................................................... 66</p><p>3.5 Os procedimentos utilizados na análise das entrevistas ................................................ 69</p><p>4 A EXPERIÊNCIA DAS MULHERES QUE SÃO MÃES DE CRIANÇAS COM</p><p>DEFICIÊNCIAS .................................................................................................................... 72</p><p>4.1 Quem são as mulheres que são mães de crianças com deficiências? ............................ 72</p><p>4.2 Articulação entre aspectos temáticos e as experiências das participantes .................. 74</p><p>4.2.1 Os encontros com os profissionais de saúde: “procurar cabelo em ovo” ...................... 75</p><p>4.2.2 A sociedade e as barreiras: “passou despercebido” ...................................................... 84</p><p>4.2.3 As práticas de cuidado no cotidiano: “a gente não é forte, a gente não é guerreira” ... 92</p><p>5 MAR CALMO, MAR REVOLTO: UMA SÉRIE FOTOGRÁFICA ............................. 99</p><p>5.1 A série fotográfica ........................................................................................................... 99</p><p>5.2 Impressões sobre o encontro de diálogo e sobre o uso da fotografia na pesquisa ... 118</p><p>6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 128</p><p>REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 130</p><p>APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido .................................... 138</p><p>APÊNDICE B – Tópicos Episódicos ................................................................................ 140</p><p>APÊNDICE C – Termo de Consentimento de Uso de Imagem ...................................... 141</p><p>APÊNDICE D – Termo de Assentimento de Uso de Imagem ........................................ 143</p><p>APÊNDICE E – Termo de Consentimento dos Responsáveis de Uso de Imagem ....... 145</p><p>APÊNDICE F – Termo de Compromisso de Utilização de Dados ............................... 147</p><p>ANEXO A – Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa (versão 1) ............................... 148</p><p>ANEXO B – Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa (versão 2) ............................... 152</p><p>ANEXO C – Termo de Anuência Institucional................................................................ 156</p><p>13</p><p>1 INTRODUÇÃO</p><p>Devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete,</p><p>nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui.</p><p>(Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, 2010, p.31)</p><p>No Relatório Mundial sobre a Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU)</p><p>(2012), estimou-se que 15,3% da população mundial possuíam algum tipo de deficiência.</p><p>Dentre as crianças, com faixa etária entre zero e 14 anos, a estimativa foi de 5,1%, o que</p><p>representou treze milhões de crianças em todo o mundo enfrentando algum tipo de deficiência,</p><p>considerando a população de 2004. Quando da publicação da Política Nacional de Saúde da</p><p>Pessoa Portadora de Deficiência (BRASIL, 2008), foram identificadas 24,5 milhões de pessoas</p><p>com algum tipo de deficiência, o equivalente a 14,5% da população brasileira.</p><p>Os familiares de uma pessoa com deficiência são afetados de maneiras diferentes em</p><p>relação ao reconhecimento da deficiência, bem como à dor e à ansiedade de se imaginar quais</p><p>serão as implicações futuras (KUNST; MACHADO; RIBEIRO, 2010). Considerando a</p><p>concepção social e cultural da nossa sociedade, que destina a função do cuidar ao gênero</p><p>feminino, as mães geralmente passam a ser as principais, e muitas vezes as únicas, cuidadoras</p><p>de seus filhos com deficiência. Um novo conjunto de demandas surge juntamente com a</p><p>deficiência. Além do luto do filho imaginado, a sobrecarga de tarefas afeta a saúde física e</p><p>mental dessas mulheres e várias esferas de suas vidas. Segundo Soares e Carvalho (2017, p. 3),</p><p>“tais mulheres são duplamente afetadas, seja pelos impactos que geram em suas vidas, seja pela</p><p>condição de deficiência, [...] que interferem na vida social, profissional e econômica dessas</p><p>mães”. Relacionamentos dificultados com os cônjuges e demais filhos, aumento no número de</p><p>divórcios, prejuízos financeiros e laborativos, estresse excessivo e transtornos de ansiedade são</p><p>alguns desses danos. Acrescenta-se, ainda, vivências junto a seus filhos de falta de</p><p>acessibilidade, preconceito e exclusão na escola e em ambientes sociais (MOXOTÓ;</p><p>MALAGRIS, 2015).</p><p>Essas mulheres se tornam, então, cuidadoras familiares e realizam em ambiente</p><p>doméstico a gestão do cuidado em longas jornadas, tendo como objetivo principal o bem-estar</p><p>do outro e a atenção às suas demandas. A experiência do cuidar se expressa em uma atitude de</p><p>responsabilidade e envolvimento com o outro e através da reprodução de comportamentos</p><p>socialmente aprendidos (RENK; BUZIQUIA; BORDINI, 2022). O filho e suas necessidades</p><p>passam a tomar conta da vida dessa mulher e suas próprias vidas ficam paralisadas. As mães de</p><p>14</p><p>crianças com deficiências deixam, então, de serem reconhecidas como parte da sociedade,</p><p>calam-se e tendem ao distanciamento social (SOARES; CARVALHO, 2017).</p><p>Assim, conviver com a deficiência do filho pode promover uma experiência disruptiva</p><p>na vida cotidiana e nos demais papéis sociais dentro da trajetória de vida de mulheres que são</p><p>mães de crianças com deficiências, em consonância com Bury (2011). De outro modo, apesar</p><p>da sobrecarga de trabalho e do abalo emocional, essas mulheres também podem experenciar</p><p>uma adaptação ou uma ressignificação frente às circunstâncias cotidianas e reconstruir</p><p>caminhos e novas relações, através de escolhas, ao tentar reorganizar suas vidas frente à</p><p>experiência da deficiência do filho.</p><p>Entretanto, Annemarie Mol (2008), ao declarar que a escolha e a reorganização da vida</p><p>não são simplesmente direcionadas por decisões racionais e individuais – especialmente em</p><p>situações complexas e transversais como as práticas de cuidado e a deficiência, contribui que</p><p>há muitas camadas envolvidas por detrás do ato de tomar escolhas.</p><p>Diante do exposto, indagou-se: como o diagnóstico de deficiência de um filho e as novas</p><p>demandas a ele relacionadas mudam a rotina, as relações sociais e as trajetórias de vida de</p><p>mulheres que são mães e principais cuidadoras de crianças com deficiências?</p><p>A partir do ponto de referência da mãe, o objetivo geral da pesquisa consistiu em</p><p>direcionar um olhar para as experiências de mulheres que são mães de crianças com</p><p>deficiências, assim como para suas trajetórias de vida para além da maternidade.</p><p>Os objetivos específicos foram:</p><p>• observar como são as relações familiares</p><p>nessa parte. Sabe, tudo que a gente precisa tem que correr atrás e tem</p><p>que correr muito, porque senão passa despercebido (Ana Rita).</p><p>Aí encaminhou pra APAE e para um neurologista. [...] Aí eu fiquei esperando um</p><p>tempão. Para ter os direitos demora, né? (Vanessa).</p><p>Já em relação ao trabalho formal, seis participantes deixaram os seus empregos devido</p><p>aos cuidados com o filho. Uma das participantes relata que nunca teve trabalho formal, que</p><p>89</p><p>sempre foi a escolha do casal que ela cuidasse dos filhos e não “trabalhasse fora”. A única</p><p>participante que se manteve em seu emprego, que é o mesmo desde antes da gravidez do filho</p><p>com deficiência, tem o apoio de sua mãe, a avó materna da criança, para o cuidado com a</p><p>criança no período de contraturno escolar. Para levar nas terapias em alguns dias da semana, o</p><p>pai da criança se disponibiliza, e quando ele não está disponível, negociações são realizadas no</p><p>trabalho da participante:</p><p>Por enquanto eu tive que parar de trabalhar, né? Porque tem que ficar levando ele nas</p><p>terapia... A creche ele não fica o dia todo... Aí eu parei minha vida para socorrer...</p><p>Assim, aí tem hora que eu sinto falta de trabalhar. Sorte que eu tô fazendo academia.</p><p>Sabe quando você fica... tem horas que você fica meio depressivo assim... Que você</p><p>quer trabalhar e não tem jeito. [...] Eu mexia com minhas venda, atrapalhou também.</p><p>Eu vendia lingerie, vendia produtos do Boticário. (Mara)</p><p>Eu sinto muita falta. Eu formei e eu tava na melhor fase da minha vida. Eu dava aula</p><p>na parte da manhã e plantão à noite. E aí eu abandonar tudo, deixar tudo assim. Eu já</p><p>tinha meu dinheiro, né? Tinha minhas coisas. Abandonar tudo pra cuidar dele foi bem</p><p>difícil. (Laura)</p><p>Eu parei de trabalhar, né? Que agora eu fico com ele, vai para médico. Parei com tudo.</p><p>[...] Não trabalho, não tenho nenhuma renda. Às vezes nem dinheiro para pegar um</p><p>ônibus. Mas corro atrás de tudo que for preciso para o bem-estar dele. [..] De vez em</p><p>quando eu ainda pego uma faxina, quando minha mãe olha. (Dorina).</p><p>Eu sempre fui muito independente. [...] Eu comecei a trabalhar com 17 anos, né? Com</p><p>o Rodrigo eu perdi a independência que eu tinha, infelizmente. (Jenny).</p><p>A rotina corrida com os afazeres, consultas e as terapias é a principal justificativa para</p><p>o abandono ao trabalho. E as negociações no trabalho, quando necessárias, nem sempre são</p><p>harmoniosas:</p><p>Para mim seria muito difícil, né? Para poder levar ela na fisioterapia. Seria muito</p><p>difícil e seria muito cansativo. Para ela também. Que aí ela teria que correr junto</p><p>comigo e adequar aos meus horários mais a escola mais a fisioterapia. Então na parte</p><p>profissional minha, eu abri mão de não poder trabalhar. (Ana Rita).</p><p>Briguei até o fim para eles me mandarem embora. Eles não queriam. Elas queriam</p><p>que eu pedisse conta ou fizesse acordo. Foi bem desgastante. Umas três, quatro vezes</p><p>tive que ir lá conversar. Eu falei: gente, é uma falta de respeito isso. E aí me mandaram</p><p>embora, mas pensa. Foi uma humilhação. Falei: gente, eu tô precisando. Eu não tô</p><p>saindo porque eu quero, é por necessidade. Aí no dia que eles me mandaram embora,</p><p>eu chorei. Eu olhava para trás, eu falei: nossa, deixei meu sonho para trás. Fazer o</p><p>quê. Mas compensa. Por um filho, a gente faz tudo. (Laura).</p><p>Por enquanto eu parei de trabalhar e vivo exclusivo para ele. Agora, como eu te falei,</p><p>ele faz tratamento fora, faz as terapias e eu que tenho que levar e trabalhando não dá</p><p>certo. Não dá certo porque patrão não aceita. Então mesmo sabendo que a gente tem</p><p>direito disso, mas patrão não aceita. (Helen).</p><p>90</p><p>Pelas falas, parar de trabalhar em um trabalho formal não parece ser algo definitivo em</p><p>suas vidas. Mas demonstram receio e medos quando retornarem ao mercado de trabalho:</p><p>Até hoje às vezes eu falo... Nossa, me dá uma saudade de voltar a trabalhar. Mas acho</p><p>que eu nem sei mais. Faz três anos que eu tô parada. (Laura).</p><p>Eu tenho vontade de fazer alguns cursos. Sabe o que eu fico com medo. Eu fico com</p><p>medo a hora que eu for trabalhar de novo eu não tenho mais mercado para trabalhar.</p><p>Não sei quando que ele vai melhorar, sabe... Desenvolver... A gente fica com essa</p><p>dúvida, né? Tenho vontade de fazer uns cursos profissionalizantes... (Mara).</p><p>A possibilidade de dar continuidade aos estudos e aquisição de novos conhecimentos,</p><p>especialmente de forma online, aparece como um fator que potencializa a reconstrução de novas</p><p>trajetórias de vida para algumas mulheres. Os cursos online, adicionalmente, também aparecem</p><p>como uma forma de interação social:</p><p>Será que dá tempo ainda de estudar? Sempre morri de vontade. Mas como lá no ensino</p><p>médio eu não tive a oportunidade, era muito caro. Nem era aqui. Era longe, né? E era</p><p>tudo pago. Eu não tinha condição, né? Aí agora eu tive assim bastante oportunidade e</p><p>ainda mais de fazer em casa. Então, nossa... Foi perfeito! Era tudo que eu precisava</p><p>para realizar o meu sonho, né? Entrei de cabeça. (Vanessa).</p><p>Agora eu tô com planos novos aí. Tô entrando no mercado digital. Comprei um curso</p><p>online. Agora tô investindo, sabe. Eu acho que até que eu tô bem animada. Porque eu</p><p>não tava fazendo nada pra mim. É um curso online para ter renda com o próprio</p><p>celular. Aí eles explicam, você cadastra nas plataformas, né? E aí você vende os</p><p>produtos que você quiser que você ganha comissão em cima disso. Aí tá bem legal.</p><p>Que assim, toda hora tem gente chamando, perguntando. Então parece que eu me sinto</p><p>mais útil porque esse negócio de dona de casa a gente parece que não tem utilidade.</p><p>É uma rotina. Aí agora tô confiante. Acho que vai dar certo. (Laura).</p><p>Para uma das participantes, apesar de ter buscado dar continuidade à faculdade de forma</p><p>online, as tarefas com o cuidado a impossibilitaram de retomar:</p><p>Eu parei de fazer Engenharia porque não tinha como conciliar tudo [...]. Ano retrasado</p><p>eu tentei voltar, mas troquei o curso para pegar um curso mais leve e que desse para</p><p>ser à distância. Eu fiz dois meses de curso e tive que parar porque eu não dei conta de</p><p>conciliar com a rotina do Rodrigo e fazer a faculdade que eu tava fazendo no EAD,</p><p>né? A gente tava na pandemia ainda. Tava todo mundo fazendo online. Aí eu falei</p><p>assim: agora é a hora. Mas não consegui conciliar tudo. (Jenny).</p><p>Os conhecimentos adquiridos com as práticas no cotidiano também motivam a busca</p><p>por novos projetos e a vontade de aperfeiçoamento desses novos saberes:</p><p>Algo que mudou na minha vida hoje é que eu não pensava em voltar a estudar. Fiz o</p><p>terceiro, aí falei pra mim: tá bom. Só que não. Por conta do Vitor, eu falei: eu posso</p><p>ajudar outras mães porque se você for ver, a deficiência visual é muito fechada. Não</p><p>é todo mundo que expõe. [...] E o Vitor a gente faz tudo que tiver que fazer. A gente</p><p>estimula, a gente brinca. Quando eu recebi o diagnóstico, eu já fui atrás para mim</p><p>saber o quê que eu tinha que fazer para mim estimular ele. Comecei a estudar cegueira</p><p>91</p><p>mesmo. [...] Agora eu tô fazendo o curso de Inclusão Social e o Braille. [...] O que eu</p><p>mais desejo é poder ensinar meu filho. (Helen).</p><p>O que eu estudo, na Educação Infantil, eu gosto da educação infantil. Então, meu TCC</p><p>está sendo assim em prol da educação infantil especializada. Porque eu quero trabalhar</p><p>com a psicomotricidade. [...] Aí, com o tempo que eu fui descobrindo as atividades</p><p>nesse campo, aí eu fui gostando ainda mais, né, da psicomotricidade para eles, né?</p><p>Todas as crianças precisam, né? Mas eles têm ali que precisam a mais, para que eles</p><p>prestem atenção, para que tenha um pouco de foco. Eu vejo que a professora dele da</p><p>escola, ela sabe dessa parte. Porque ela consegue segurar ele na atividade. E aí, eu fico</p><p>muito feliz em ver que ele tá sendo incluso nas atividades. É gostoso ver. Então, assim,</p><p>que eu possa também fazer isso para outras crianças, né? (Vanessa).</p><p>Isto posto, percebe-se como a mãe</p><p>enfrenta juntamente com a criança os obstáculos</p><p>representados pelas barreiras da sociedade. Um simples circular por espaços públicos ou</p><p>transportes coletivos pode significar momentos de estresse e tensão para as famílias. As</p><p>atividades de lazer são limitadas pela falta de acessibilidade e de conhecimento dos serviços</p><p>em oferecer atividades inclusivas. Ainda, algumas condições de saúde, como o uso contínuo de</p><p>oxigenioterapia, podem também limitar essas atividades.</p><p>A escola representa uma instituição importante para o desenvolvimento de habilidades</p><p>pedagógicas e sociais para a criança, e acaba sendo um espaço social de compartilhamento de</p><p>responsabilidades com a família, e consequentemente de tempo para as mães dedicado a outros</p><p>compromissos pessoais. Ainda assim, as famílias encontram muitos conflitos nesse espaço,</p><p>relativos à falta de mediador escolar, a preparação da escola para lidar com particularidades das</p><p>pessoas com deficiências e preconceitos de outras famílias. A produção de saberes, a partir da</p><p>agregação do conhecimento das práticas das famílias ao conhecimento dos profissionais da</p><p>educação, também é um caminho a ser percorrido, assim como nos saberes dos profissionais de</p><p>saúde.</p><p>Ainda, a aquisição dos conhecimentos adquiridos com as práticas e a vontade de</p><p>compartilhamento desses saberes foram um despertar para a busca de novos projetos de vida.</p><p>Os cursos online foram uma possibilidade para a ampliação e aperfeiçoamento desses</p><p>conhecimentos para algumas mulheres, ou mesmo para dar continuidade à outros projetos de</p><p>vida.</p><p>Em relação ao trabalho formal, o vínculo empregatício dessas mulheres foi claramente</p><p>prejudicado, devido ao tempo dedicado aos cuidados com a criança e a falta de flexibilidade e</p><p>sensibilidade das empresas. Apesar de esta ser uma temática muito discutida nos estudos sobre</p><p>as práticas de cuidado e que será ampliada no próximo tópico, optou-se por manter também</p><p>nesse tópico essa discussão, devido às barreiras encontradas pelas mulheres ao se depararem</p><p>com as negociações com os empregadores. Assim como os cursos online apareceram nas</p><p>92</p><p>narrativas como uma possibilidade de dar continuidade aos estudos, flexibilizações pelos</p><p>empregadores em relação à trabalho em regime remoto e por metas, e não pelo cumprimento</p><p>de carga horária fixa, pode ser uma opção para que essas mulheres continuem no mercado de</p><p>trabalho.</p><p>4.2.3 As práticas de cuidado no cotidiano: “a gente não é forte, a gente não é guerreira”.</p><p>O dia já começa logo cedo. E as tarefas seguem planejadas, e em horários pré-definidos.</p><p>Geralmente, a mãe acorda antes dos filhos para já ir organizando tudo:</p><p>É corrido. É muito corrido. Eu acordo cinco horas da manhã. Aí eu levanto, né? Vou</p><p>fazer minhas coisas. Aí eu vou arrumar o café. Porque eles vão pra creche. Aí eu já</p><p>tenho que deixar tudo prontinho para ir trocando eles. Aí eu vou fazendo tudo. Só que</p><p>o outro estuda a atarde. Então eu já tô fazendo o almoço. Aí eu paro pra levar ele na</p><p>escola, e já buscar o mais velho. Volto pra casa, aí tem as atividades da escola do mais</p><p>velho. Aí eu já volto e busco o Vitor e o irmão. Chego da rua, dou o cafezinho deles.</p><p>E depois dou o banho, janta e dorme. Todos os dias assim. (Helen).</p><p>É bem assim... É uma correria. Mas é gostoso, sabe. A gente colocando as coisas nos</p><p>horários... Senão, eu fico ansiosa porque se eu ficar muito atrasada pra alguma coisa,</p><p>eu fico ansiosa. Mas tem dado certo. (Vanessa).</p><p>As necessidades do filho com deficiência passam a ser exclusividade na vida das mães</p><p>(KUNST; MACHADO; RIBEIRO, 2010). Quando interrogadas pelo tempo para si mesmas,</p><p>para algumas mulheres, o cuidado de si ainda está capturado pelos cuidados exigidos pela</p><p>criança:</p><p>Não tem... (risadas). Não tem, de jeito nenhum, não tem. Minha mãe não fica, né? E</p><p>o pai dele também... [...] Até pro banho, eu coloco ele no carrinho, pra ficar comigo</p><p>pra tomar banho. Muda muito, nossa. Mudou muito, mas muito mesmo. Pra mim</p><p>mesma, não tem tempo pra mais nada. É descabelada, né? (Dorina).</p><p>Não tem mais, né? Por enquanto não tem. Agora ele já começou a andar com apoio,</p><p>então, agora você não pode deixar sozinho mesmo. Ele dá cabeçada. É perigoso.</p><p>Então, por enquanto, não tem cuidado a mim, assim. Como eu sempre fiz musculação,</p><p>gostava de cuidar, hoje eu abri mão por conta do meu filho. (Helen).</p><p>A gente deixa de fazer tudo, né? A gente deixa de trabalhar, deixa de viver a vida,</p><p>deixa de fazer unha, deixa de fazer pé, cabelo, sobrancelha. Faz mais nada. Porque</p><p>também você pensa, fazer pra quê? Vou aonde? (Raquel).</p><p>A autoestima da gente muda. A gente para de se cuidar e a gente começa a cuidar só</p><p>da criança, né? Eu tô com problema de saúde. Esses tempos atrás eu tava vindo aqui</p><p>no PSF para tomar ferro porque eu tava com anemia. Comecei a sentir mal em casa e</p><p>não sabia o que que estava acontecendo. E fui arrastando, arrastando, arrastando, até</p><p>que um dia que eu passei muito mal eu tive no médico e ele fez os exames básicos e</p><p>eu tava super anêmica. Então, assim, a gente coloca todas as nossas energias na</p><p>criança e a gente para de se cuidar, né? [...] Assim, não tenho um tempo que é voltado</p><p>93</p><p>pra mim ou para alguma necessidade minha. Tudo é voltado para o Rodrigo, 100% da</p><p>minha rotina. (Jenny).</p><p>A hora do banho foi citada como uma hora de respiro do dia e a única hora do dia de</p><p>tempo para si mesma:</p><p>Na hora que eu vou tomar banho, e só (risadas). (Ana Rita).</p><p>Momento de banho, principalmente. Nossa, banho, eu gosto demais. Eu sempre falo</p><p>pra ele: oh, eu vou tomar banho, você vai lá ficar com a sua irmã, vai assistir televisão,</p><p>porque eu vou tomar banho. E fecho a porta. Porque teve tempo da gente nem</p><p>conseguir tomar banho direito. De coisa assim, dele ficar berrando, esguelhando. Mas</p><p>com o tempo a gente foi conversando, modulando. Falo assim: a mamãe também tem</p><p>que ter o tempo da mamãe. (Vanessa).</p><p>As famílias com pessoas com deficiência sofrem um impacto importante na rotina que</p><p>irão determinar o significado da experiência e das vivências dos familiares (FIAMENGHI JR;</p><p>MESSA, 2007):</p><p>Tirou a nossa paz, sabe. Assim... Você não fica mais em um ambiente tranquilo.</p><p>Porque tem dia... semana que ele tá bonzinho. Autista... eu acho que é igual o mar.</p><p>Tem época que tá uma calmaria, e depois vem aquele revolto. É muito agitado. E</p><p>acaba agitando nós também. (Mara).</p><p>Na reconstrução das trajetórias de vida, Bury (2011) propõe a análise das respostas</p><p>pessoais para a reorganização da vida prática que deem um novo sentido para as vidas e para a</p><p>reestruturação das relações sociais da pessoa, incluindo novas relações e atividades. Essas</p><p>adaptações e continuidade biográfica aparecem na narrativa de algumas mulheres:</p><p>O dia que eu levo ele na terapia, ou o dia que eu levo ele na natação, eu consigo dar</p><p>uma corrida no bairro, então, assim, a gente... dá pra fazer algumas coisas que a gente</p><p>gosta. Só ter um pouquinho de paciência, né? Porque às vezes não é o local mais</p><p>adequado que você vai fazer uma atividade, mas dá pra fazer. (Vanessa).</p><p>Tem uma moça que vem e eu continuo fazendo minha unha. Faço cabelo em casa.</p><p>Tudo em casa. E ela vem de 15 em 15 dias. Aí corta meu cabelo, faço a unha, tudo.</p><p>Ela passa o dia aqui comigo. Então, eu tento levar da melhor forma, né? (Laura)</p><p>A academia agora eu voltei. Eu preciso porque dois cardiologista falou que eu preciso</p><p>fazer atividade física e por conta da minha pressão alta. Eu tô dormindo melhor. Eu</p><p>tô me sentindo melhor. (Mara).</p><p>Aos finais de semana, a rotina com a criança com deficiência pode ser aliviada pela</p><p>presença do parceiro, mas como uma ajuda nas tarefas que foram designadas como</p><p>responsabilidade da mãe:</p><p>94</p><p>Aos finais de semana, não muda nada. Com o Arthur, a rotina é rotina todo dia. [...] E</p><p>final de semana, aí meu marido tá em casa e melhora um pouco. Aí ele cuida do</p><p>Arthur, dá banho e me ajuda. (Laura).</p><p>As narrativas produzidas sobre essas mulheres enaltecem uma perspectiva de superação</p><p>e vitória (BARROS, 2021). Entretanto, muitas vezes a rotina é tida como cansativa e estressante</p><p>para muitas mulheres, e esse lugar de mãe heroína é questionado por algumas participantes:</p><p>Às vezes choro no banho pra não demonstrar o meu cansaço. (Dorina).</p><p>Sem querer a gente acaba ficando nervosa. Tá falando, parece que eles não estão</p><p>entendendo. Nossa, é muito difícil. Tipo assim, o povo fala que é pra ter paciência,</p><p>mas não fica 24 horas, sabe? Não tá na pele. Tem hora que você acaba perdendo a</p><p>paciência. (Mara).</p><p>Então, assim, o termo mãe guerreira, forte, esse tipo de coisa, chega a ser ofensivo às</p><p>vezes. Porque a gente não é forte, a gente não é guerreira. Às vezes a gente só não tem</p><p>opção, a gente tem que ir e fazer o que tem que ser feito. (Jenny).</p><p>As questões de gênero também aparecem fortemente nas práticas de cuidado. As mães</p><p>se sentem com uma obrigatoriedade moral na responsabilidade do cuidado com a criança. Os</p><p>pais não são cobrados pela sociedade patriarcal pela divisão de tarefas com o filho:</p><p>A gente abre mão de tudo por ele, né? Igual, meu marido não precisou de parar de</p><p>trabalhar, tudo mais... Eu precisei abrir mão do meu emprego, abrir mão de tudo por</p><p>ele. (Laura).</p><p>A vida da mãe muda muito, né? Do pai não muda em nada, mas da mãe. A Mãe</p><p>sobrecarrega demais, tudo... É tudo muito pra gente. Eu falo pra eles que são homem,</p><p>é muito mais fácil. O jeito de viver, o sentimento, né? O pai dele é muito sossegadão</p><p>nessa parte. (Dorina).</p><p>Porque mesmo quando a gente tava junto, quando eu tava casada com ele ainda, não</p><p>tinha assim... essa coisa de ficar com ele para eu poder ir. Ficava mais pra mim</p><p>mesmo. (Vanessa).</p><p>Os avôs das crianças com deficiência exercem papel fundamental na rede de apoio à</p><p>essas mulheres (VALE et al., 2022), assumindo o cuidado da criança quando a mãe se ausenta,</p><p>por exemplo, por motivos de trabalho, lazer ou para resolverem algo relativo ao tratamento da</p><p>criança. Ana Rita comenta o quanto Isis é apegada ao avô materno: “ela é um xodozinho dele”.</p><p>As mães do estudo de Kim et al. (2018) comentam que apenas as avós eram cuidadoras</p><p>confiáveis e experientes para seus filhos, quando elas estão ausentes. Vanessa tem sua mãe</p><p>como grande apoio no cuidado com o filho: “Depois da escola, no caso, ele fica com a minha</p><p>mãe, sempre ficou com a minha mãe”.</p><p>A figura da avó materna da criança, assumindo o cuidado, aparece também como</p><p>apoiadora de momentos de lazer para essas mulheres:</p><p>95</p><p>Eu faço mais atividades é junto com eles mesmo. Soziiinha, mesmo, às vezes eu saio</p><p>com uma amiga. E é depois que ele dorme. Aí eu falo assim, vou sair um pouco hoje.</p><p>Aí a gente vai, senta em um barzinho, a gente conversa. Porque eu acho importante a</p><p>gente fazer isso, né? Não é muito que eu faço. Porque eu não gosto de deixar com a</p><p>minha mãe. Porque muitas mulheres fazem isso, né? Mas eu não gosto. Eu acho que</p><p>já fico muito pra ela. Ela quer descansar, dormir. Aí o dia que ela fala sexta-feira: ah</p><p>vai, vai sair um pouco. Aí ela me dá um pouco de força também. Porque também se</p><p>eu ficar só em casa, ela percebe que eu não fico muito bem. Mãe percebe isso da gente.</p><p>(Vanessa).</p><p>A rede de apoio e a aceitação da família também representam um fator importante no</p><p>enfrentamento das dificuldades que as mulheres atravessam no cotidiano (NAJMI et al., 2018):</p><p>Minha família nossa... me apoia demais. Minha mãe, minhas irmãs. Minha mãe,</p><p>nossa, é apaixonada nele também. Através do amor, nossa, da minha mãe, das minhas</p><p>irmãs, nós venceu muita coisa... Nossa... (Dorina).</p><p>Eu tenho mais elo com a família do meu esposo. Sempre que eu precisei eles sempre</p><p>estavam a prontidão a mim. [...] É um ponto que você tem um apoio, você sabe que</p><p>não vai ficar desamparada. [...] Então, eu acho que isso é legal. Você ter um amparo</p><p>familiar. É bem legal. (Helen).</p><p>Entretanto, para outras mulheres o caminhar é solitário. A rede de apoio à mãe que</p><p>vivencia a experiência de ter um filho com deficiência é restrita (OLIVEIRA et al., 2016):</p><p>O meu caminhar com o Nicolas é só eu e ele sempre. (Dorina).</p><p>Da minha família eu não tive muita ajuda, praticamente nada. Tanto que a minha tia</p><p>liga pra mim até hoje e pergunta se o Arthur não vai comer pela boca, por que que ele</p><p>não come pela boca. Elas não entendem. Só que assim, é tudo idosa, mal estudou,</p><p>então dou um desconto. (Laura).</p><p>O apoio da família descrito por algumas mulheres é muitas vezes mais no sentido da</p><p>aceitação e do acolhimento, do que no compartilhamento das tarefas de cuidado com a criança</p><p>(SANTOS; FARIAS, 2021):</p><p>Mas ele é muito agitado e minha mãe tem um problema no braço, tem problema de</p><p>coluna. Então, assim, é muito difícil ela ficar com ele. Então para ela ficar com ele,</p><p>ou tem que ter minha irmã ou um dos meus sobrinhos para ajudar. (Dorina).</p><p>Hoje as minhas tias aceitam mais o Arthur. Não olha pra ele com cara de... Porque eu</p><p>não gosto que olha pra ele com dó, e fala que judiação. Gosto que fala: olha que</p><p>menino bonito, olha as pernas dele que gordura. E antes não era assim não. Porque eu</p><p>dei um chega pra lá nelas. Falei: não, se for pra vocês virem aqui em casa e ficar</p><p>falando ai que dó, que dó, que dó, melhor nem vim. (Laura).</p><p>Na maioria dos casos, a mãe é a única a oferecer os devidos cuidados à criança com</p><p>deficiência, o que pode levá-la a ficar sobrecarregada, com menos oportunidade de interagir</p><p>96</p><p>com os demais membros da família (SANTOS; FARIAS, 2021), afetando inclusive a relação</p><p>do casal:</p><p>A partir de quando a gente soube, eu senti uma... Eu senti que meu marido se afastou.</p><p>Tanto é que esse ano a gente separou. Por questões envolvidas com ele, né? Então</p><p>assim. Creio que... Essa parte foi muito difícil, pra ele como pai aceitar. Até hoje é</p><p>um pouco recluso dele. Então... Assim, mudou totalmente depois. Acabou que... eu</p><p>fiquei mais próxima dele. Não porque eu quis, mas porque ele precisava de mim.</p><p>Sempre precisou. Pra ir à terapia, pra fazer as atividades diárias, pra fazer os deveres</p><p>da escola. Então ele requer mais atenção do que a irmã. (Vanessa).</p><p>O meu marido não aceita muito não, sabe. Ele não aceita eu correr atrás de médico.</p><p>Ele não aceita que eu vou pra BH. Só que aí eu falei pra ele: não, eu vou sim, eu quero</p><p>saber o que ele realmente tem, o que deve ser feito. E agora eu comecei, né? Porque</p><p>através de eu ir correr atrás, de eu querer saber, né? Agora não posso parar, né? Por</p><p>ele a gente não ia não. Nós chegamos quase a separar por causa disso. Ele falava que</p><p>eu tava procurando cabelo em ovo. (Dorina).</p><p>Os irmãos das crianças com deficiência também sofrem com a sobrecarga da mulher. O</p><p>tempo disponível para os outros filhos é roubado pelas tarefas a serem realizadas:</p><p>Não que eu não amo os outros. Amo. Só que os outros já têm autonomia, já sabem</p><p>como vai funcionar. Ele ainda depende muito de mim. (Helen).</p><p>Não que ela não tenha atenção minha. Claro que tem. Mas ele requer mais. Então...</p><p>Uma coisa que eu já expliquei pra ela, porque ela... eu até chorei nesse dia que ela</p><p>falou assim: mamãe, por que você dá tanta atenção pra ele e não dá pra mim? Aí eu</p><p>respondi porque ele é especial. Aí ela falou assim: então, eu não sou especial para</p><p>você? Nossa... eu fiquei muito triste. Mas aí a gente vai tentando adaptar em família,</p><p>né? (Vanessa).</p><p>Agora tem ele também, né? Antes era só o Arthur, era mais tranquilo. Agora tem ele...</p><p>Aí agora eu surto (risadas). Umas sete e meia que ele acorda para mamar, mas aí dá</p><p>tempo. Mas assim, ele é tão bonzinho, acho que ele entende. Que às vezes eu tô</p><p>cuidando do Arthur, ele fica quietinho no berço. (Laura).</p><p>Tem muita coisa assim, que ele aprendeu a fazer sozinho. Porque não tem como. O</p><p>pai está trabalhando, né? De segunda a sexta. Eu não</p><p>tenho como fazer tudo. Então,</p><p>por exemplo, ele, que é o mais velho, aprendeu desde muito cedo a andar na rua</p><p>sozinho, na calçada não conversar com ninguém, porque nem sempre eu posso levar</p><p>ele no futebol, porque eu tenho que estar com o irmão dele, ir em alguma terapia.</p><p>Então, assim, as atenções maiores são voltadas para o Rodrigo e ele aprendeu a lidar</p><p>com isso, graças a Deus. A gente leva ele na psicóloga, ele não tem nenhum trauma</p><p>em relação a isso, porque ele acaba não sendo tanto priorizado, mas ele consegue</p><p>entender a situação. (Jenny).</p><p>Adicionalmente, os irmãos são também alocados para as tarefas, mesmo em idades</p><p>precoces. Mas nem sempre é uma tarefa realizada com leveza e resiliência pelos irmãos:</p><p>Ele (o irmão) ajuda muito, sabe. Já vai lavando a louça e ajuda a passar pano. Ele já</p><p>vai ajudando, sabe. (Raquel).</p><p>97</p><p>Enquanto eu faço o almoço, a Patrícia já tá saindo aqui da escola, aí ela já busca ele</p><p>lá pra mim. Aí chega aqui o almoço já tá pronto ou já tá praticamente pronto. Aí vamos</p><p>supor, ontem que foi dia de terapia. Aí eu com ele almoça correndo e já tem que pegar</p><p>o ônibus, já tem que descer pra terapia. Na quinta é pior ainda porque tem que tá lá</p><p>uma e quinze. Aí a Patrícia fala: mãe, que transtorno. Às vezes saio da creche já umas</p><p>cinco pra meio-dia. E ele fica voltando pra trás. Tipo, já passou aquele percurso, eu</p><p>não sei o que dá na cabecinha dele que eles voltam tudo pra trás. Na hora que vai ver</p><p>já tá lá dentro da creche de novo. E precisando correr pra pegar o ônibus, porque se</p><p>não, vai chegar atrasado. (Mara).</p><p>A Patrícia não dá conta de olhar ele. [..] Aí, eu tava deixando ele com a Patrícia. Mas</p><p>aí a Patrícia: oh, mãe, eu não tô aguentando ele mais. Ele tá demais. E quebra as coisas,</p><p>sabe. Ele não sabe ouvir a palavra não. Se ele ouvir não, ele já fica nervosinho e quer</p><p>sair quebrando as coisas. (Mara).</p><p>Vale, Alves e Carvalho (2020) trazem a importância do compartilhamento de saberes e</p><p>práticas pelas mães com alguém de confiança que lhe possa substituir quando ausente, a fim de</p><p>assegurar a continuidade do cuidado. Entretanto, as mães se sentem inseguras devido a</p><p>situações traumáticas já vivenciadas com o filho. Até mesmo o pai da criança, é visto na mesma</p><p>dimensão que um estranho ou alguém de fora da família, no cuidado com o filho.</p><p>Assim, a gente já passou alguns sustos com a Isis, sabe. Dela não conseguir tossir,</p><p>dela não conseguir colocar a saliva pra fora. Então, assim. Depois desses sustos, eu</p><p>gosto de ficar próximo dela. Então, assim, tento o máximo possível de estar o mais</p><p>perto possível se acaso ela precisar de mim. (Ana Rita).</p><p>Para sair eu mesma fico com medo de deixar ele. Eu tenho medo de deixar ele com o</p><p>pai dele. Agora não, porque ele não engasga mais. Mas antes ele engasgava muito,</p><p>perdia o fôlego. (Dorina).</p><p>As mães subestimam também outras pessoas quanto às suas habilidades, conhecimentos</p><p>e compromisso com o cuidado. Este comportamento pode torná-las sozinhas para o cuidado</p><p>(VALE et al., 2022):</p><p>Eu tenho medo de deixar ele com outras pessoas, sabe. Medo de judiar, de não cuidar</p><p>direito. Porque ele é assim: se você deixar ele ali, ele fica até amanhã daquele jeito,</p><p>sem trocar, sem comer. Ele não pede, ele não chora, ele não grita. Então, eu tenho</p><p>muito medo. [...] Quando ele fica internado eu quase morro. Aí eu arrumo gente para</p><p>me ajudar lá porque eu não consigo ficar o dia inteiro e à noite, né? Mas eu fico ligando</p><p>para as meninas: aqui, tá tudo bem? Me manda mensagem, me manda foto dele. Você</p><p>virou ele de lado? Você trocou ele? Você deu o leite? “Já demos”. Aí passa meia hora:</p><p>tá tudo bem, aí? (risadas). (Laura).</p><p>Mudanças estruturais no ambiente domiciliar são citadas por Ana Rita, com o objetivo</p><p>de facilitar a vida cotidiana e melhora da autonomia da criança. Essas adaptações também foram</p><p>reforçadas pela participante no acompanhamento no cotidiano, e podem ser vistas na Fotografia</p><p>25 (p. 112):</p><p>98</p><p>A gente graças a Deus conseguiu modificar algumas coisas, sabe. Para dar uma</p><p>qualidade melhor pra ela, né? Então, assim, o meu banheiro a gente mudou a pia para</p><p>ela poder chegar com a cadeira e lavar a mãozinha. Até a forma dela tomar banho</p><p>também, que ela tem uma banheira dela. Então, assim, a gente precisou tirar o box do</p><p>banheiro, sabe. E em casa é um mínimo possível de degrau, de barreiras, a gente tirou</p><p>para poder adequar. Na minha mãe também, o que ela pode fazer também, ela faz para</p><p>poder dar essa liberdade dela ir e vir na cadeira. Porque lá, né? É o parque de diversões</p><p>dela. (Ana Rita).</p><p>Em suma, mudanças na rotina cotidiana são vividas por todos os familiares de crianças</p><p>com deficiências. Especialmente à rotina da mãe, tarefas como terapias, intercorrências médicas</p><p>e o desenvolvimento de habilidades técnicas, são adicionadas à uma maternidade comum e o</p><p>dia é tido como corrido e exaustivo. Muitas vezes, um olhar para si mesmas – para a saúde,</p><p>trabalho, lazer, esporte ou beleza, está obscurecido pela sobrecarga das tarefas do dia a dia.</p><p>Adicionalmente o tempo para o relacionamento com o parceiro ou dedicado aos outros filhos</p><p>está capturado pelas ocupações diárias com a criança com deficiência.</p><p>Adaptações estruturais nos domicílios e mudanças de casa, também foram necessárias,</p><p>a fim de otimizar as tarefas de vida prática e propiciarem mais autonomia às crianças com</p><p>deficiências.</p><p>Uma rede de apoio a essas mães, como por exemplo com a importante figura de suas</p><p>mães, as avós maternas das crianças, no compartilhamento dos cuidados diários a serem feitos,</p><p>propicia uma melhora na qualidade de vida dessas mulheres. Entretanto, além da escola, essa</p><p>rede de apoio aparece nas entrevistas apenas como uma rede familiar. É necessário romper com</p><p>o familismo quando se é discutido o direito ao cuidado e pensar em novas alternativas que</p><p>envolvam outros setores:</p><p>Os elementos necessários para estruturar uma nova ética em torno do cuidado e a</p><p>urgência de abordá-lo como uma questão pública, que implique em responsabilidades</p><p>para o conjunto da sociedade (Estado, mercado e terceiro setor, além da família) e não</p><p>restritas às mulheres no espaço familiar (MORAES, 2019, p. 330).</p><p>Assim como discutido no tópico anterior, essas mulheres abriram mão de estarem no</p><p>mercado de trabalho, muitas vezes por falta de opção no compartilhamento das</p><p>responsabilidades, que a sociedade ainda julga serem delas.</p><p>Dessa forma, essas mulheres, como mães e principais cuidadoras de crianças com</p><p>deficiências, multiagenciadas e sobrecarregadas, necessitam não apenas de uma melhoria na</p><p>assistência biomédica e apoio psicológico e de saúde mental, mas também de uma rede de apoio</p><p>social, política e direitos econômicos destinados aos cuidadores de pessoas com condições</p><p>crônicas. Romper com o familismo, quando se trata das práticas de cuidado, é urgente!</p><p>99</p><p>5 MAR CALMO, MAR REVOLTO: UMA SÉRIE FOTOGRÁFICA</p><p>O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas não é necessariamente</p><p>conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto,</p><p>conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes</p><p>de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente.</p><p>(Gilberto Velho, Observando o familiar, 1987, p. 126)</p><p>A reunião de diálogo com Ana Rita, para devolutiva dos registros realizados, aconteceu</p><p>no ambiente da UBS, e teve duração de aproximadamente duas horas. O objetivo desse encontro</p><p>foi a negociação com a participante de quais imagens fariam parte da pesquisa, a sugestão de</p><p>títulos para as fotografias baseada nas percepções da participante e um convite à ampliação de</p><p>sentidos ao momento congelado na imagem, através da evocação de memórias e significações.</p><p>Conforme Velloso e Guimarães (2013), apenas com o olhar do fotógrafo, apenas com o que se</p><p>viu, o dado pode estar mutilado e desprovido de informações a respeito</p><p>da vivência da pessoa</p><p>fotografada. Assim, o compromisso da pesquisa em fortalecer o ponto de vista da participante</p><p>como coprodutora manteve-se também nessa etapa. O título das fotografias foram todos</p><p>escolhidos por Ana Rita.</p><p>Ademais, reflexões a respeito de uma comparação do que foi registrado e percebido pela</p><p>pesquisadora e quais títulos a pesquisadora daria para cada imagem, em contrapartida ao que</p><p>realmente fez significado para a participante, será pautado ao final desse capítulo, a fim de</p><p>examinar a validação dos procedimentos realizados.</p><p>Ainda, convido você, leitor/a, a partir da posição de espectador/a, a também participar</p><p>desse processo de significação, com todos os seus sentidos, ao direcionar-se para a série</p><p>fotográfica “Mar Calmo, Mar Revolto” a seguir. Conforme Samain (2003), a fotografia não</p><p>funciona sem a sua participação, caro/a leitor/a. Para quem a olha, a imagem nunca é apenas o</p><p>que está representado no momento congelado e dentro do recorte escolhido pela pesquisadora.</p><p>A imagem realimenta o entendimento do outro, através de suas experiências e imaginário</p><p>pessoais, possibilitando uma interminável construção de novos olhares, caminhando não apenas</p><p>pelos olhos, mas pelos pensamentos e despertares de outros sentidos. Assim, te proponho a essa</p><p>ampliação do olhar e abertura à complexidade dos campos e subjetividades estudados, através</p><p>da busca em seu próprio mar de profundezas.</p><p>5.1 A série fotográfica</p><p>100</p><p>Fotografia 3 – Nosso cantinho</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 4 – Um sono tranquilo</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>101</p><p>Fotografia 5 – O início</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 6 – Esperança</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>102</p><p>Fotografia 7 – Sempre juntas</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>103</p><p>Fotografia 8 – O amanhecer</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 9 – Dia a dia</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>104</p><p>Fotografia 10 – Nosso melhor lugar</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 11 – Proteção 1</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>105</p><p>Fotografia 12 – Medo</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>106</p><p>Fotografia 13 – Difícil</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 14 – Melhora</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>107</p><p>Fotografia 15 – Conquista</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>108</p><p>Fotografia 16 – Infância</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 17 – Parque de diversões</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>109</p><p>Fotografia 18 – Ser linda</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 19 – Mágico</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>110</p><p>Fotografia 20 – Liberdade</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 21 – “Filha, vem aqui!”</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>111</p><p>Fotografia 22 – Sonhos</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 23 – Voo dos passarinhos</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>112</p><p>Fotografia 24 – Ir e vir</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 25 – Proteção 2</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>113</p><p>Fotografia 26 – Esporte</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 27 – Conquistas</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>114</p><p>Fotografia 28 – Sonho realizado</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 29 – Desafio</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>115</p><p>Fotografia 30 – Memórias</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>116</p><p>Fotografia 31 – Linda do jeito que é</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 32 – Carinho</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>117</p><p>Fotografia 33 – O apoio</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>Fotografia 34 – Amor</p><p>Fonte: imagem captada pela pesquisadora, 2022.</p><p>118</p><p>5.2 Impressões sobre o encontro de diálogo e sobre o uso da fotografia na pesquisa</p><p>Inicio esse tópico com a reflexão do quão importante é preceder o acompanhamento no</p><p>cotidiano com encontros iniciais e entrevistas, a fim de conhecer o ponto-de-vista das</p><p>participantes. Só assim é possível realizar os registros visuais direcionados às percepções das</p><p>participantes:</p><p>O pesquisador narrativo dificilmente sabe o que fazer com tais registros sem conhecer</p><p>as narrativas que se interrelacionam no campo de pesquisa. Essas teias narrativas são</p><p>complexas e difíceis de serem desembaraçadas. [...] O óbvio nunca é esgotado e</p><p>mistérios estão sempre ligados também ao que nos parece óbvio” (CLANDININ;</p><p>CONNELY, 2011, p. 116-117).</p><p>Ademais, a observação do tipo etnográfica e a experimentação fotográfica realizadas</p><p>nessa pesquisa, localizaram a pesquisadora a uma certa distância de concepções pré-</p><p>estabelecidas, na medida em que permitiram uma abertura para fora da zona de conforto da</p><p>pesquisadora – aqui representada pelas entrevistas no ambiente de uma sala de uma UBS, local</p><p>que lhe é corriqueiro.</p><p>Ainda, pesquisar no cotidiano pressupõe uma interferência da pesquisadora no ritmo e</p><p>ações dos “micro lugares”. Apenas a presença da pesquisadora na casa da participante já mudou</p><p>os fluxos de um dia comum àquela família, e os sentidos, que se enredaram:</p><p>Entendemos a observação no cotidiano, do ponto de vista da linguagem em ação,</p><p>como coconstrução do/a pesquisador/a e das pessoas que participam com ele/a de</p><p>cenas cotidianas, requerendo do uso de variadas formas de registro que deem conta</p><p>da fluidez e complexidade de descrições situadas, mais ou menos participantes, todas</p><p>elas contribuindo para a compreensão dos sentidos produzidos – pelas pessoas às suas</p><p>vidas (CARDONA; CORDEIRO; BRASILINO, 2014, p. 129).</p><p>Desse modo, um entrelaço entre as perspectivas da participante e da pesquisadora</p><p>acontece, desde as etapas dos registros realizados, primeira seleção das imagens a serem</p><p>reveladas em papel até a ordem da série a ser apresentada à participante. Conforme reforçam</p><p>Cordeiro et al. (2014), a tentativa em controlar o ponto de vista da pesquisadora é falha no fazer</p><p>científico:</p><p>A produção de conhecimento ocorre na fluidez das relações sociais – e não podemos</p><p>nos esquecer que como os(as) pesquisadores(as) diferem entre si as relações que</p><p>eles(as) estabelecem tendem também a ser distintas. Afinal, eles(as) possuem</p><p>diferentes experiências de vida, trabalham com conceitos diversos e, muitas vezes,</p><p>lidam com um mesmo fenômeno de modos distintos. Podemos dizer até mesmo que</p><p>119</p><p>a singularidade do(a) pesquisador(a) está presente em cada etapa do processo de</p><p>pesquisa, afinal, suas vivências interferem na escolha da temática estudada, no uso de</p><p>recursos teóricos, nas estratégias de produção e análise de informações, nos recursos</p><p>utilizados para a comunicação dos resultados etc. Não existe, portanto, neutralidade</p><p>no fazer científico (CORDEIRO et al., 2014, p. 46).</p><p>Posto isto, antes da reunião de diálogo com Ana Rita, ponderações foram feitas pela</p><p>pesquisadora a respeito de cada momento capturado – como: a motivação para tal registro,</p><p>sugestão de título para a imagem e os significados que a imagem despertava. Ana Rita não teve</p><p>acesso à tais interpretações da pesquisadora. Para muitos dos registros, as percepções da</p><p>pesquisadora estavam em conformidade com as perspectivas da participante, e alguns desses</p><p>entrelaçamentos serão discutidos a seguir. Alguns poucos trechos de entrevistas de outras</p><p>participantes, que não de Ana Rita, também foram resgatados em alguns tópicos dessa</p><p>discussão, pois foram também fonte da apreensão da pesquisadora na análise das imagens.</p><p>A série fotográfica inicia-se</p><p>pelas Fotografias 3 e 4 (p. 100), pelo “quarto dos três” –</p><p>nome dado pela pesquisadora para esse cômodo da casa. Inicialmente, um sentimento de</p><p>surpresa é o que tomou a pesquisadora, pois ao chegar na casa de Ana Rita, Isis ainda estava</p><p>dormindo e a participante foi acordá-la. Isis dorme em sua cama, que fica ao lado da cama dos</p><p>pais, no “quarto dos três”. A criança tem outro quarto, o seu quarto, mas ele não tem cama (tem</p><p>o guarda-roupa com seus pertences e brinquedos) – assim, Isis pode circular, virar e</p><p>movimentar-se livremente com a cadeira de rodas. A pesquisadora, assim, deparou-se com algo</p><p>inesperado da vida prática de Ana Rita, que nunca tinha refletido a respeito. Ainda, no “quarto</p><p>dos três” tem objetos e fotografias, habituais a outros quartos, e a medalha que Isis ganhou de</p><p>sua avó materna, mesmo antes de nascer, também dada igualmente pela avó para outros netos</p><p>(Fotografia 11, p. 104). Ana Rita nomeou esse ambiente como o “Nosso cantinho”. Ainda, a</p><p>adolescência permeia os objetos do “quarto dos três” e do quarto de Isis, assunto esse que</p><p>também foi imprevisível para a pesquisadora e gerou reflexões que serão discutidas em</p><p>parágrafo dedicado a esse pensamento. Além dos objetos ordinários, no quarto tem o BiPAP</p><p>(Bilevel Positive Airway Pressure), dispositivo que a criança necessita para dormir. Ana Rita o</p><p>coloca em Isis todas as noites e o retira pela manhã. A participante ampliou o recorte fotográfico</p><p>realizado rememorando alguns sentimentos desconfortáveis e o luto vivido quando da</p><p>necessidade de a criança iniciar o uso do aparelho, e como as sensações foram mudando com o</p><p>tempo:</p><p>No começo foi muito difícil porque eu olhava e ficava pensando: nossa, ela vai</p><p>precisar dormir com isso? Até quando? E até para ela não foi muito confortável. Só</p><p>que hoje eu vejo que ela gosta muito, que faz bem pra ela, né? No começo a gente fica</p><p>120</p><p>com aquele coração apertado e ver dormindo assim. Mas hoje vejo que fez muito bem</p><p>pra ela. Então, essa pode-se dizer que é um sono tranquilo. (Ana Rita).</p><p>Já as próximas fotografias da série (Fotografias 5, 6, 7, 8 e 9), dizem respeito ao tempo</p><p>despendido durante o dia com alimentação, mas também sobre autonomia. Ana Rita comentou</p><p>nas conversas no cotidiano que Isis precisa de um “tempo maior” para se alimentar, que tem</p><p>dias que chega a precisar de duas horas para almoçar. Comenta ainda que antes a apressava e</p><p>“ela acabava se engasgando”, trazendo complicações. Que hoje, é melhor assim, vai no ritmo</p><p>que a criança precisar:</p><p>Tudo tem o tempinho dela, né? O café da manhã pra ela é uma refeição que se inicia</p><p>o dia e que para ela demora um pouquinho mais, né? Como todas as outras. Mas o</p><p>jeitinho dela segurar as coisinhas, ela conseguir levar até a boca, né? Isso pra gente é</p><p>gratificante demais. (Ana Rita).</p><p>Ana Rita dá o suporte necessário na hora da alimentação, mas o que a criança consegue</p><p>fazer sozinha, como levar o alimento até a boca, é Isis quem faz. Durante o decorrer do</p><p>acompanhamento no cotidiano, Ana Rita também comentou em outras situações sobre</p><p>autonomia, e mostrou adaptações de vida prática, por exemplo a lixeira do banheiro que abre</p><p>através de sensor de movimento das mãos, dentre outras situações. Dessa forma, a pesquisadora</p><p>tenta trazer com esses recortes a convergência entre a alimentação, o tempo e a autonomia.</p><p>Além das horas gastas com a alimentação e apoio à criança, em meio aos afazeres domésticos</p><p>e telefonemas “resolvendo as coisas”, Ana Rita toma o seu café e faz as suas refeições. Ainda,</p><p>nessa relação tempo-alimentação, o medicamento que a criança começou a utilizar</p><p>recentemente, “que foi algo que [eles] esperaram durante 11 anos”, deve ser mantido</p><p>refrigerado e do lado de fora na porta da geladeira tem um termômetro onde Ana Rita controla</p><p>a temperatura adequada. Se abre a geladeira e a temperatura sobe, Ana Rita precisa aguardar</p><p>um tempo para a temperatura regularizar, antes de abrir a geladeira novamente.</p><p>Já as fotografias 12 (p. 105), 13 e 14 (p. 106) fizeram a pesquisadora lançar associação</p><p>ao estudo de Tanabe e Moreira (2022), que compõe a revisão bibliográfica do capítulo dois</p><p>dessa dissertação. As autoras discutem sobre as marcas corporais (secundárias à acoplamento</p><p>de dispositivos tecnológicos ao corpo, como traqueostomia ou gastrostomia, ou relativas às</p><p>cicatrizes decorrentes de cirurgias corretivas para recomposição funcional de sistemas ou</p><p>órgãos) como testemunho das experiências de adoecimento crônico e como disparadoras de</p><p>narrativas sobre essas vivências e construção de significados:</p><p>121</p><p>Essa localização da experiência na primeira ou na segunda pessoa nas relações com o</p><p>adoecimento foram exploradas por outros autores. A importância dessa perspectiva é</p><p>lançar o olhar sobre as marcas, ressaltando o corpo como lugar de memória. Por suas</p><p>inscrições, as experiências de adoecimento crônico, raro, complexo e com a</p><p>deficiência podem ser narrativizadas como expressões de escolhas, no caso das</p><p>tatuagens; ou como imposições, vinculadas a intervenções produtoras de cicatrizes.</p><p>(TANABE; MOREIRA, 2022, p. 2-3).</p><p>À vista desse pensamento, “a gaveta de laudos e exames” (nome dado pela pesquisadora</p><p>para a Fotografia 12, p. 105) que foi acessada algumas vezes durante o acompanhamento no</p><p>cotidiano, a imagem da radiografia representando as próteses inseridas na criança e as cicatrizes</p><p>no corpo da filha foram disparadoras de narrativas dos “dias mais difíceis que a gente passou”.</p><p>E para além das histórias de medo e superação despertadas pela imagem, mais uma vez as</p><p>tensões com os profissionais de saúde foram relatadas:</p><p>É muito fácil as pessoas falarem as coisas, né? E principalmente, assim, muitos</p><p>médicos falam porque é a rotina deles de todos os dias. Para eles é simples. Mas para</p><p>nós, mães, ouvir que teu filho vai fazer uma cirurgia de escoliose, é um medo muito</p><p>grande, né? É uma preocupação imensa. E aí, foi a frase que ela falou pra gente, né?</p><p>Que era mais um medo que a gente ia precisar passar. (Ana Rita).</p><p>As fotografias seguintes da série, Fotografias de 16 a 22 (p. 108-111), trazem as</p><p>percepções da pesquisadora em relação à infância, e, no caso de Isis, esta já ficando para trás e</p><p>dando lugar à adolescência. E o quarto da criança foi o local que mais surpreendeu a</p><p>pesquisadora com assuntos inesperados. Um deles foi sobre a boneca na cadeira de rodas e a</p><p>construção de identidade, e Ana Rita percebeu esse impacto na pesquisadora ao ver o registro:</p><p>É difícil a gente ver, né, brinquedos que tenha a cadeira de rodas. Hoje em dia está</p><p>melhorando. Mas há um tempo atrás, não existia um brinquedo, em que a boneca,</p><p>Barbie por exemplo, estaria sentada numa cadeira de rodas, né? Como tem outros</p><p>brinquedos agora que tem as características de alguns deficientes físicos. E essa daqui</p><p>eu lembro certinho porque foi a Isis que me pediu. Eu não fui e comprei, sabe. Ela</p><p>que falou pra mim assim: “Nossa mãe, eu vou querer aquela boneca. Olha a cadeira,</p><p>parece com a minha”. Então, assim, eu me esforcei e fui lá. Assim que chegou a</p><p>boneca na loja eu fui lá e comprei pra ela. Então, tá ali no quarto. Porque é uma</p><p>fantasia, né? É um brincar que acaba que eu acho que é o que a Isis também sente</p><p>quando ela está na cadeira de rodas dela, né? Que é o parque de diversões dela, né?</p><p>[...] E até então só tinha a loira. Aí agora tem a morena, tem a Barbie loira e a Barbie</p><p>morena na cadeira. Então, assim, é bem... É diferente da gente ver, né? Algo assim.</p><p>Mas que mostra para as crianças, né? Que até uma boneca pode estar sentada na</p><p>cadeira de rodas. (Ana Rita).</p><p>Ainda, no quarto da criança, as bonecas se misturam aos pôsteres de grupos musicais</p><p>para adolescentes e um mapa-múndi, afixados nas paredes. Nas conversas no cotidiano, o</p><p>assunto “adolescência” surgiu e Ana Rita comentou: “não estou preparada para essa conversa”.</p><p>122</p><p>E, para além dos desafios</p><p>encontrados pelas mulheres nessa pesquisa, ao ter suas vidas</p><p>transpostas pela maternidade de uma criança com deficiência, ficam as perguntas: como é ser</p><p>mãe de um adolescente ou um adulto com deficiências? Quais os novos desafios essas mulheres</p><p>atravessarão?</p><p>No quarto de Isis também tem um espelho grande. Durante o acompanhamento no</p><p>cotidiano de Ana Rita, a primeira ação que Isis fez quando a mãe a colocou na cadeira de rodas</p><p>foi a de se olhar no espelho. Por ali, ela se demorou por algum tempo. A fotografia do espelho</p><p>(Fotografia 18, p. 109), a pesquisadora nomeou em “Como me olham, como eu me olho”, pelo</p><p>fato de ter impulsionado a argumentação de que a forma como os familiares olham para o filho,</p><p>interfere na autoestima e na construção da identidade da criança. No encontro de diálogo, ao</p><p>olhar a Fotografia 18, Ana Rita suspirou e disse: “Ah, o espelho”. E ficou por ali, na imagem,</p><p>e se demorou. Após um certo tempo, ela comentou:</p><p>Eu não sei o quê que passa pela cabeça dela quando ela olha no espelho, mas ela gosta</p><p>do que vê. Porque ela ama um espelho. Todas as vezes, na fisioterapia dela que tinha</p><p>uma parede assim com espelho, nos dias que ela fazia balé, que ela ia no ensaio do</p><p>balé que tinha uma parede imensa de espelho, o primeiro lugar que ela ia era lá nessa</p><p>parede de espelho para poder ficar olhando ela. E aí agora ela tá numa fase que você</p><p>fala para ela assim, às vezes de eu trocar ela, arrumar o cabelo, algo assim, eu falo:</p><p>nossa filha, você tá tão linda. Ela fala: “oh mãe, eu sou linda!”. Então assim, ela tá</p><p>numa fase que ela é linda, eu sou assim... Então ela ama um espelho. Ela ama se ver</p><p>no espelho. (Ana Rita).</p><p>Guerra et al. (2015) comentam em como as percepções em relação à criança e às</p><p>situações vivenciadas, baseadas na confiança e autoestima, são capazes de aliviar os desafios.</p><p>Assim, como percepção do acompanhamento no cotidiano, o olhar dos familiares influencia na</p><p>visão da pessoa com deficiência para si mesmo. Ainda, Solomon reforça a importância da</p><p>partilha desse olhar dos familiares para a intimidade com a diferença por toda a sociedade:</p><p>As experiências de quem tem esses filhos são fundamentais para nossa maior</p><p>compreensão da diferença. As primeiras reações e interações dos pais com uma</p><p>criança determinam como ela verá a si mesma. Esses pais também sofrem mudanças</p><p>profundas causadas por suas experiências. Se você tem um filho com deficiência, será</p><p>para sempre o pai de um filho com deficiência; é um dos fatos básicos a seu respeito,</p><p>fundamental para a maneira como as outras pessoas o percebem e decifram. Esses pais</p><p>tendem a ver a aberração como doença até que o hábito e o amor lhes permitam lidar</p><p>com sua nova realidade estranha – muitas vezes introduzindo a linguagem da</p><p>identidade. A intimidade com a diferença promove a reconciliação (SOLOMON,</p><p>2013, p. 17).</p><p>Apoiada nessa perspectiva, o modo como as participantes enxergam seus filhos,</p><p>despertam uma discussão sobre identidades e modos de vida:</p><p>123</p><p>Eu não consigo dizer... Que eu não imagino, tipo, tá: se eu tivesse uma criança normal,</p><p>que andasse, o que seria de diferente. Não sei te explicar, porque graças a Deus a Isis</p><p>faz tudo que ela quer e para a gente com ela não tem barreira. [...] Ela sempre que quer</p><p>fazer, ela pede, a gente dá um jeito, e ela faz. Então para ela, graças a Deus, ela tem</p><p>uma vida normal. Tem os seus dias que ela tem que deixar de brincar no momento de</p><p>fazer as fisioterapias, porque ela faz a fisioterapia motora, a fisioterapia respiratória.</p><p>Então assim, mas tirando essa parte, graças a Deus, ela tem uma vida normal. Não é</p><p>fácil, não. É corrido. É cansativo. Mas não tem limite. (Ana Rita).</p><p>Ele é uma criança normal, ele só tem uma limitação. (Helen).</p><p>Ainda, o afeto empreendido por essas mulheres coloca no mundo pessoas com</p><p>deficiências com mais autoestima e com amor e respeito pelos próprios corpos.</p><p>E no que tange as discussões sobre o corpo, adicionalmente algumas outras óticas foram</p><p>observadas nessa pesquisa. Ao corpo das crianças com deficiências, alguns dispositivos que são</p><p>acoplados, por necessidades ou prescrições médicas, como o balão de oxigênio com peso</p><p>excessivo relatado por Laura, pode ser um fator limitador para atividades de vida social. Outros,</p><p>como dispositivos para alimentação, como a sonda nasoentérica, podem trazer frustrações à</p><p>família com sentimentos de incapacidade para alimentar a criança, e também dificuldades de</p><p>vida prática, como a manipulação dos mesmos ou acidentes pelo convívio com crianças</p><p>menores, como relatado por Raquel.</p><p>Entretanto, outros acoplamentos expandem as possibilidades. A cadeira de rodas de Isis</p><p>a permite brincar e correr pela casa. Na Fotografia 19 (p. 109), Ana Rita estava dando uma</p><p>ordem para a criança: “não é para correr dentro de casa. Deixa na velocidade dois”. E com um</p><p>sorriso no rosto, a criança começou a correr na velocidade máxima e girar infinitas vezes e</p><p>sorrir para a mãe e atropelar a casa. A sensação da pesquisadora, ao fechar os olhos, foi a de</p><p>um sentimento bom no peito, ao ver uma criança, como todas as outras, sapeca, cheia de energia,</p><p>correndo pela casa com vivacidade, a seu modo de viver. Ali, nesse momento, também veio o</p><p>entendimento da “Proteção” da casa (Fotografia 25, p. 112), assim como as “cicatrizes”</p><p>visualizadas na cadeira de rodas (Fotografia 24, p. 112). O título Proteção se repetiu entre duas</p><p>imagens, mas em uma delas a proteção se referia à espiritualidade e proteção da criança, e em</p><p>outra à preservação material da casa.</p><p>E nesse entremeio das discussões sobre o corpo, como uma potência dilatadora das</p><p>possibilidades de vivência de sua filha, o corpo da mãe também se encontra interligado ao corpo</p><p>da criança. E um modo próprio de estar no mundo é gerado:</p><p>Olha, minha relação com o Rodrigo, que é meu filho, foi construída, né? Não posso</p><p>dizer que assim... Como te falei, não é uma gravidez planejada. Então, assim, o</p><p>primeiro ano dele a gente morou no hospital. Então, a minha relação com ele... Eu fui</p><p>124</p><p>me aproximando, eu fui entendendo como cuidar dele, eu fui entendendo que ele era</p><p>meu filho. Então hoje, eu e ele, a gente é como se fosse um só, né? (Jenny).</p><p>Às vezes eu saio de perto dela, na hora que eu volto eu falo... Eu não consigo ir longe</p><p>porque eu vejo que o tempo todo ela tem que estar comigo e quando eu tô... Que às</p><p>vezes eu preciso resolver alguma coisa que ela não vai, me falta uma parte porque ela</p><p>tá comigo o tempo todo. (Ana Rita).</p><p>Cuidar de uma criança assim é muita experiência, né? Tudo, né? Quando vai embora</p><p>[a morte da filha] é a mesma coisa que arrancar um pedaço da gente, né? Não importa,</p><p>né? Ainda mais ela, que eu vivia pra ela. (Raquel).</p><p>Durante o acompanhamento no cotidiano, essa percepção do corpo da mãe e filha</p><p>conectados pode ser ampliada. Em vários momentos do dia, o corpo de Ana Rita foi requerido</p><p>pela criança. Alguns desses momentos foram registrados em imagem e apresentados à</p><p>participante na reunião de diálogo. A Fotografia 32 (p. 116), por exemplo, inicialmente o que</p><p>me chamou atenção ao registrar o momento foi a frase que a precedeu: “Mãe, me coça”. E as</p><p>percepções de Ana Rita, ao olhar para a imagem, permitiu que ela completasse o momento</p><p>congelado, passado, através da evocação das memórias, da revelação das subjetividades</p><p>envolvidas e evidenciou a conexão entre os corpos da mãe e filha:</p><p>Você passa a mão na barriga, ela fala: “mãe, tem uma bolinha coçando ali”. Eu penso,</p><p>eu até comento com meu esposo, é um jeitinho que ela percebe, ela é muito inteligente,</p><p>e aí ela percebe que, às vezes eu vou sair e deixar ela ali. Aí ela: “não, eu acho que eu</p><p>quero minha mãe mais um pouquinho aqui”. Aí ela: “mãe, coça aqui”. Aí ela sabe que</p><p>eu vou parar para coçar (risadas). É um dengo. [...] E todas as vezes ela agradece!</p><p>Todas as vezes! Por isso que eu falo, é o meu coração fora.</p><p>[...] É igual eu penso assim,</p><p>ela tá na escola, mas o meu celular está o tempo todo do meu lado porque eu não sei</p><p>de repente ela vai precisar de mim lá. Então, eu tenho que estar ao lado dela o tempo</p><p>todo, e coçando ela o tempo todo. (Ana Rita).</p><p>Já a Fotografia 33, “o colo, os laços e os abraços”, além do afeto propriamente dito,</p><p>representa o colo da mãe sendo um alongamento das possibilidades para a filha, a qual foi a</p><p>motivação da pesquisadora para a realização do registro. Ana Rita comentou não apenas nessa</p><p>foto, mas também em outras, ao rememorar momentos em que apenas a cadeira de rodas não</p><p>permitiria que sua filha vivesse toda a experiência da situação. Que o seu colo foi elementar em</p><p>algumas situações:</p><p>Para mim, essa tem um significado... Eu segurando a Isis no colo. Porque eu falo pra</p><p>ela que ela vai aonde ela quer ir, ela faz o que ela quer fazer e eu sempre vou estar</p><p>carregando ela, em todos os momentos que ela precisar, eu vou estar assim, desse</p><p>jeitinho, segurando ela. É um apoio. (Ana Rita).</p><p>É bem assim. Igual agora a gente foi no show que ela tanto queria ir. Nossa, a hora</p><p>que começou o show, no cinema, tava todo mundo sentadinho. Na metade da música</p><p>já levantou todo mundo e ela desse jeito: “mãe, me pega, me pega, que eu tenho que</p><p>cantar essa música, eu tenho que dançar essa música, me pega. Aí peguei. Aí nós</p><p>fomos lá, dançamos as músicas. Aí tinha um momento que eu falava: Isis, agora</p><p>125</p><p>vamos sentar filha, vamos sentar só nessa pra gente descansar. “Não mãe, nessa eu</p><p>não posso, essa eu tenho que dançar”. Então assim, foi o show todo com ela no meu</p><p>colo e nós duas dançando porque ela queria dançar o tempo todo, ela não queria ficar</p><p>sentada na cadeira, ela queria dançar o tempo todo. Então, assim, foi o show que ela</p><p>quis e dançou tudo que ela quis, cantou tudo que ela quis cantar. Então, a cadeira leva</p><p>ela onde ela quer, mas é o que eu comentei na foto, né. Os meus braços, é o carregar,</p><p>é o apoio que eu sempre vou estar fazendo por ela. (Ana Rita).</p><p>Durante a entrevista, Ana Rita da mesma forma comentou sobre utilizar o seu corpo de</p><p>mãe para que a criança pudesse entrar no brinquedo inflável para se divertir em uma festa</p><p>pública na praça da cidade. Dessa forma, é o corpo da mãe e criança, como extensão um do</p><p>outro, em direção a ocupação de espaços, ampliando novas formas de ser e estar no mundo, à</p><p>luz de Merleau-Ponty (1999).</p><p>Outra ponderação, que fez com que a pesquisadora ficasse pensativa durante todo o</p><p>tempo decorrido entre o acompanhamento no cotidiano e a reunião de diálogo, foi se existia</p><p>alguma conexão entre as rodas da bicicleta de Ana Rita e as rodas da cadeira de Isis. Ana Rita</p><p>e o seu esposo têm bicicleta (Fotografia, p. 113). No dia do acompanhamento no cotidiano, o</p><p>esposo de Ana Rita tinha ido trabalhar de bicicleta. Ana Rita, como atividades de lazer e como</p><p>esporte, pratica ciclismo e participa de um grupo de mulheres que fazem trilhas a pé e de</p><p>bicicleta., juntamente com sua mãe e sua irmã. Ana Rita já ganhou várias medalhas nos passeios</p><p>e corridas, a pé e de bicicleta, e elas estão expostas na sala de sua casa (Fotografia 27, p. 113).</p><p>Assim como as conquistas da filha, como o sentar (Fotografia 15, p. 107), e os sonhos da criança</p><p>(Fotografia 22, p.111 e Fotografia 28, p. 114) avivados com entusiasmo, as conquistas da mãe</p><p>também são comemoradas. Ana Rita comenta que o andar de bicicleta não é uma fuga da rotina,</p><p>mas uma atividade de lazer e esporte:</p><p>Essa é a minha bicicleta. Eu não... Eu escuto muitas pessoas falando que: “ah, mas</p><p>chega fim de semana eu preciso sair de casa, eu preciso ir andar de bicicleta, eu preciso</p><p>caminhar, eu preciso descansar a cabeça”. Eu não consigo ver por essa parte, sabe?</p><p>Eu vejo que... É o que eu comento com meu esposo, aonde eu tô eu quero que minha</p><p>filha esteja, quero que ele esteja. Então é mais um esporte, um lazer, sabe. Não é algo</p><p>que eu olho e falo: nossa, eu vou andar de bicicleta pra descansar a cabeça. Não. Ao</p><p>contrário. Eu descanso quando eu tô perto dela, quando eu tô longe eu não descanso.</p><p>Eu falo que o meu coração tá com ela em todos os momentos. Então eu tenho que</p><p>estar perto porque senão ele não bate da forma que precisa bater, não. Então, é só um</p><p>esporte. (Ana Rita).</p><p>E ao perguntar a ela, durante o acompanhamento no cotidiano, como a bicicleta entrou</p><p>em sua vida, Ana Rita comentou que foi quando Isis entrou na escola. Ela disse que foi um</p><p>momento de separação difícil. E que ficava imaginando, se a filha necessitasse dela na escola,</p><p>de carro ela demoraria um certo tempo para fazer os retornos nas ruas e avenidas e estacionar</p><p>126</p><p>se a escola ligasse e gastaria mais tempo para chegar na escola do que se fosse de bicicleta,</p><p>onde poderia se deslocar pela contramão dos carros, poderia simplesmente largar a bicicleta no</p><p>passeio e chegar mais rápido. Então, comprou a bicicleta! E relata que precisou utilizar a</p><p>bicicleta para esse fim e chegar rápido na escola em uma situação de engasgo da criança nesse</p><p>ambiente. Durante o acompanhamento no cotidiano também, Ana Rita narrou várias memórias</p><p>despertadas à medida que mostrava fotografias de seu próprio celular, dentre elas passeios no</p><p>parque, com Ana Rita de bicicleta e Isis de cadeira de rodas motorizada. Comentou, inclusive,</p><p>enquanto mostrava o capturado pela Fotografia 29 (p. 114), sobre as dificuldades de acesso e</p><p>as lutas que enfrenta juntamente com a filha:</p><p>Essa são as dificuldades, né? Porque... A gente infelizmente, se colocar no lugar das</p><p>pessoas ou estar no lugar das pessoas é bem diferente, né? Do que somente passar,</p><p>despercebido, sem notar, sem pensar nos outros, né? Aqui é a entrada do parque e nos</p><p>primeiros dias que a gente foi, a gente viu muita dificuldade para entrar, mas muita</p><p>mesmo. Porque eram esses blocos no chão, de cimento. E não passa. Cadeira não</p><p>passa. A pessoa que depende de uma bengala não anda ali. As pessoas que têm</p><p>dificuldade no caminhar também não conseguem entrar. Então, eu fui conversar com</p><p>o prefeito. Conversei com alguns vereadores. Que o parque... É como a porta de</p><p>entrada da casa da gente: não adianta por fora ali estar do jeito que está e dentro ser</p><p>lindo, né? Então, tem que começar por fora, com tudo que está ali fora. Para você</p><p>passar para dentro, tem que estar perfeito, né? E aí, foi o que conversei com eles,</p><p>mostrei fotos, que não tinha como entrar. E a Isis gosta muito do parque e não tinha</p><p>como ela passar ali com a cadeira. Muitas das vezes a gente tinha que empinar a</p><p>cadeira, andar só com as rodas de trás para passar nesses blocos aqui. E aí, é sempre</p><p>a resposta que a gente escuta, né? “Ah, eu não tinha percebido, pra mim tava bom, eu</p><p>não tinha notado ou eu não tinha visto por esse lado”. Então, nós que dependemos de</p><p>um piso melhor, de uma entrada melhor, de uma adequação melhor, a gente vê tudo</p><p>isso. É um galho, uma pedra que tá na frente, que pode impedir de entrar. Mas para A</p><p>Isis não impede, não. [risadas]. Para nós não impede, porque se tiver que empinar a</p><p>cadeira, a gente empina. Mas é o que eu falo, a gente não pode pensar só em nós, né?</p><p>E as outras pessoas que têm a curiosidade de conhecer lá dentro e que por causa da</p><p>entrada não entrava. Agora está arrumado! São os desafios que a gente tem no</p><p>caminho, né? Mas que graças a Deus a gente passa por eles. (Ana Rita).</p><p>Ana Rita comenta que os passeios de bicicleta e cadeira são “diversão”. Inclusive, estão</p><p>planejando em adaptar a cadeira de rodas da criança à uma bicicleta, onde a mãe pedala atrás e</p><p>a criança vai na frente, e, com as fotos na mesa, a participante comentou sobre esse projeto que</p><p>um amigo irá executar, e grudou duas fotografias ao fazer a explicação, para clarear a ideia da</p><p>fusão (Fotografia 24, p. 112 e Fotografia 26, p. 113). A participante elucidou que a cadeira de</p><p>rodas ocupará o lugar da roda da frente da bicicleta. A pesquisadora aproveitou</p><p>esse momento</p><p>e perguntou se a participante via alguma relação entre a bicicleta e a cadeira de rodas e a</p><p>resposta foi positiva, mas em relação à essa assimilação para a filha: “para ela, para ela”. Ana</p><p>Rita comenta que é uma forma de Isis estar presente, a seu modo, nos eventos que ela participa:</p><p>127</p><p>Ela gosta, né? A cadeira de rodas é só um parque de diversões pra ela. Ela usa da</p><p>melhor maneira possível. Ela quer ir em todos os lugares que ela pode estar indo. Igual</p><p>agora a gente tem um passeio para estar fazendo no domingo. Aí eu comentei com ela</p><p>assim: filha, mamãe tá pensando em ir. Ela: “ah, eu vou também. Mas eu não vou de</p><p>carro, não, vou de bicicleta”. Então, ela não vê limite, ela não vê empecilhos que</p><p>falam: não, não dá pra ir. Ela nunca viu isso. E eu desejo e peço a Deus que ela nunca</p><p>veja, porque ela vai aonde ela quer. (Ana Rita).</p><p>E, como capturado pela Fotografia 30 (p. 115), em todos os lugares e passeios que elas</p><p>vão, Isis procura e guarda uma pedra “perfeita”, desde a primeira ida para a praia, quando a</p><p>coleção se iniciou. Mas não como “as pedras do caminho”, como nomeado anteriormente pela</p><p>pesquisadora, onde essas “pedras nunca vão nos impedir de passar por elas” – como comenta</p><p>Ana Rita. As pedras representam as “memórias”, as boas memórias e como “algo que não se</p><p>desmancha, vai estar para sempre ali”.</p><p>Assim sendo, a fotografia foi entendida como uma forma particular de ampliar a</p><p>capacidade de perceber a experiência do outro, para além do que pode ser apreendido com as</p><p>entrevistas. Através do discernimento da pesquisadora em respeitar as perspectivas da</p><p>participante como coprodutora da pesquisa, foi possível fazer a leitura dos resultados a partir</p><p>da visão do outro, e não de suas próprias convicções. Conforme Bachelard (1979, p. 298),</p><p>através da lupa, “o minúsculo, porta estreita, abre um mundo. O detalhe de uma coisa pode ser</p><p>o sinal de um mundo novo, de um mundo que, como todos os outros, contém atributos de</p><p>grandeza”.</p><p>128</p><p>6 CONSIDERAÇÕE FINAIS</p><p>Ao ser “objeto” do que se prescreveu para disciplinar seu corpo, gera outros saberes</p><p>e práticas que irão influenciar de forma substantiva esse universo de referências, já que se</p><p>amplia a percepção da técnica para além de um procedimento mensurável, a ser</p><p>compreendida também em sua dimensão ética, estética e afetiva.</p><p>(SILVA-JUNIOR et al., 2016, p. 108)</p><p>Direcionar um olhar para as experiências singulares de mulheres que são mães de</p><p>crianças com deficiências, permitiu circular por entre áreas do campo teórico das ciências</p><p>biomédicas, humanas, sociais, dentre tantas outras. Ainda, o conhecimento prático vivenciado</p><p>pelas famílias difundiu-se em meio ao conhecimento técnico propagado. Dessa forma, os</p><p>resultados da pesquisa nos convidam a uma abertura para a convivência desses saberes na</p><p>complexidade do fenômeno da deficiência, criando laços entre campos tradicionalmente</p><p>apartados.</p><p>O objetivo inicial do estudo foi lançar luz apenas nessas mulheres, até então</p><p>invisibilizadas pelas demandas de saúde de seus filhos. Mas, tensionamentos surgiram nas</p><p>narrativas das participantes nos itinerários terapêuticos de saúde de crianças com deficiências</p><p>(com falta de acolhimento e escuta, comunicações violentas e a não valorização do</p><p>conhecimento prático das famílias), assim como desconfortos na relação em outros ambientes,</p><p>como a escola e os espaços de lazer e circulação. Dessa forma, considerando que essas</p><p>informações podem trazer discussões a respeito da melhor assistência integral à saúde dessas</p><p>crianças, assim como clarear práticas em outras áreas, como a da educação, temáticas</p><p>resultantes desses encontros foram debatidas na pesquisa. Ainda, foi importante dar foco</p><p>também nos trajetos da criança, pois, é o corpo da mãe, como extensão do corpo da criança,</p><p>que ocupa os espaços e enfrenta as adversidades nesses encontros nas diversas áreas (saúde,</p><p>educação, jurídico, social, político), ampliando novas formas de ser e estar no mundo. São as</p><p>mães que se defrontam juntamente a seus filhos com as vivências e lutas relacionadas à</p><p>deficiência.</p><p>Em relação às mulheres, elementos do discurso biomédico, social e de práticas de</p><p>cuidado foram evidenciados. O comprometimento da saúde física e emocional dessas mulheres</p><p>transpassou a pesquisa e, muitas vezes, essas situações escapam aos profissionais da saúde. O</p><p>dia a dia dessas mulheres é sobrecarregado com tarefas habituais de cuidado à uma criança,</p><p>acrescidos da agenda de consultas, terapias, auxílio em atividades de vida diária, de acordo com</p><p>129</p><p>as limitações de cada criança, e o tempo gasto com trajetos e processos judiciais. Assim, para</p><p>além da criança, um olhar para essa mulher, mãe, cuidadora, também precisa ser lançado. Os</p><p>percursos de vida dessas mulheres, que são mães de crianças com deficiência e principais</p><p>cuidadoras, a partir do evento do diagnóstico de deficiência do filho, sofrem alterações em</p><p>planos, rotinas, na estrutura familiar e nos sonhos. Essas mulheres abdicam de estar no mercado</p><p>de trabalho, muitas vezes por falta de opção no compartilhamento das responsabilidades com a</p><p>criança; cuidado este internalizado por uma perspectiva moral e de obrigação da mãe, e que</p><p>deve ser enfrentado através do discurso da resiliência e do heroísmo, com o apoio da</p><p>espiritualidade e dentro da esfera privada. Consequentemente, a presença e o apoio da família,</p><p>em especial da avó materna, são alívio na rotina dessas mulheres e suporte para o cuidado de si</p><p>mesmas. A figura do pai entra no contexto como um ajudante e que não é cobrado pelo cuidado,</p><p>intensificando as questões de gênero e desvalorização e invisibilidade ao se discutir o trabalho</p><p>do cuidado. Entretanto, apenas o familismo não dá conta de se responsabilizar pelas práticas de</p><p>cuidado. A rede de apoio não pode ser entendida apenas como o apoio familiar ou de pessoas</p><p>próximas. Os apoios social, econômico e político precisam também ser garantidos nessa relação</p><p>mãe-filho com deficiência e pensados como problema coletivo e não individual, sendo incluídos</p><p>nas discussões dos direitos humanos e das políticas públicas. As mulheres que cuidam também</p><p>precisam ser vistas nessa teia político-relacional da deficiência.</p><p>Em tempo, a inclusão da observação etnográfica e da produção imagética produzidas no</p><p>cotidiano de uma das participantes permitiram a ampliação da apreensão do mundo e das</p><p>experiências do outro, para além do possível pelas entrevistas no ambiente da UBS. A fotografia</p><p>reforçou elementos e trouxe à luz discussões para além das narrativas orais e foi capaz de</p><p>absorver subjetividades e significados, garantindo a coprodução da pesquisa entre a</p><p>pesquisadora e a participante. Questões sobre a multiplicidade da deficiência e modos de vida,</p><p>identidade, autoestima, interdependência com o corpo da mãe e com as tecnologias tomaram</p><p>forma e movimento com a série fotográfica. Por conseguinte, para além dos muros do familiar,</p><p>do individual, o recurso imagético evoca para a responsabilidade coletiva dos assuntos</p><p>manifestos.</p><p>Por conseguinte, a partir do posicionamento tendo como ponto de olhar as perspectivas</p><p>das mães cuidadoras de crianças com deficiências foi possível trazer reflexões dentro do</p><p>contexto da deficiência, na confluência de áreas do conhecimento e dos saberes práticas das</p><p>famílias, e fez-se observar a mulher cuidadora por trás das infâncias com deficiências.</p><p>130</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>AFONSO, S. B. C.; GOMES, R.; MITRE, R. M. A. Narratives of the parents’ experience of</p><p>children with cystic fibrosis. Interface, Botucatu, v. 19, n. 55, p. 1077-1088, 2015.</p><p>ALVES, P. C. 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Institui a Lei Brasileira de Inclusão da</p><p>Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União:</p><p>seção, Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em:</p><p>http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 05</p><p>nov. 2022.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde da Pessoa com Deficiência. Brasília, 2021.</p><p>Disponível em https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/saude-da-pessoa-</p><p>com- deficiencia. Acesso em: 01 nov. 2022.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações</p><p>http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-</p><p>http://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/saude-da-pessoa-com-</p><p>http://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/saude-da-pessoa-com-</p><p>131</p><p>Programáticas Estratégicas. Diretrizes de atenção à pessoa amputada. Brasília: Ministério</p><p>da Saúde, 2013.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações</p><p>Programáticas Estratégicas. Diretrizes de Atenção à Pessoa com Lesão Medular. Brasília:</p><p>Ministério da Saúde, 2013.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações</p><p>Programáticas Estratégicas. Diretrizes de atenção à pessoa com Síndrome de Down</p><p>Brasília: Ministério da Saúde, 2013.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações</p><p>Programáticas Estratégicas. Diretrizes de atenção à pessoa com paralisia cerebral.</p><p>Brasília: Ministério da Saúde, 2013.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações</p><p>Programáticas Estratégicas. Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com</p><p>Transtornos do Espectro do Autismo (TEA). Brasília: Ministério da Saúde, 2014.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações</p><p>Programáticas Estratégicas. Diretrizes de Atenção à Saúde Ocular na Infância: detecção e</p><p>intervenção precoce para prevenção de deficiências visuais. Brasília: Ministério da Saúde,</p><p>2013.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes de atenção à</p><p>reabilitação da pessoa com traumatismo cranioencefálico. Brasília: Ministério da Saúde,</p><p>2015.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações</p><p>Programáticas Estratégicas. Diretrizes de Atenção da Triagem Auditiva Neonatal.</p><p>Brasília: Ministério da Saúde, 2012.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes de estimulação</p><p>precoce: crianças de zero a 3 anos com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor.</p><p>Brasília: Ministério da Saúde, 2016.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações</p><p>Programáticas Estratégicas. Diretrizes de atenção à reabilitação da pessoa com acidente</p><p>vascular cerebral. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de ações</p><p>Programáticas Estratégicas. Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com</p><p>Síndrome Pós-Poliomielite e Co-morbidades. Brasília: Ministério da Saúde, 2016.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações</p><p>Programáticas Estratégicas. Diálogo (bio)político sobre alguns desafios da construção da</p><p>Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência do SUS. Brasília: Ministério da</p><p>Saúde, 2014.</p><p>132</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Saúde</p><p>da Pessoa Portadora de Deficiência. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008. 72 p.</p><p>BRASIL. 2012. Portaria nº 793, de 24 de abril de 2012. Institui a Rede de Cuidados à Pessoa</p><p>com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União.</p><p>BRASIL. Portaria de Consolidação n° 3/GM/MS, de 28 de setembro de 2017.</p><p>Diário Oficial da União. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-</p><p>a-a-z/s/saude-da-pessoa-com-deficiencia/rede-de-cuidados-a-pessoa-com-deficiencia.</p><p>BURY, M. Doença crônica como ruptura biográfica. Tempus – Actas de Saúde Coletiva,</p><p>Brasília, v. 5, n. 2, p. 41-55, jun. 2011.</p><p>CAPRARA, A; LANDIM, L. Etnografia: uso, potencialidades e limites na pesquisa em</p><p>saúde. Interface, Botucatu, v. 12, n. 25, p. 363-76, abr. 2008.</p><p>CAIUBY NOVAES, S. A construção de imagens na pesquisa de campo em Antropologia.</p><p>Iluminuras, Porto Alegre, v. 13, n. 31, p. 11-29, jul./dez. 2012.</p><p>CALSAVARA, V. J. SCORSOLINI-COMIN, F.; CORSI, C. A. C. A comunicação de más</p><p>notícias em saúde: aproximações com a abordagem centrada na pessoa. 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Pediatra, atuante na Atenção Primária à Saúde (APS) no município de Poços de</p><p>Caldas, diariamente atende famílias que narram suas histórias. Dentre tantas particularidades</p><p>da assistência à infância, uma delas é de que a criança tem sempre um interlocutor. O aumento</p><p>do envolvimento paterno durante consultas de pediatria vem aumentando, entretanto,</p><p>majoritariamente esse acompanhante é a mãe. E no contexto da deficiência essa diferença se</p><p>15</p><p>acentua. Ali, durante as consultas das crianças, as mulheres, que experienciam a maternidade</p><p>no contexto da deficiência, revelam as situações vividas em seus trajetos rotineiros, encontros</p><p>e relacionamentos. Os relatos realçam uma vida solitária, sem acolhimento e resolutividade para</p><p>as suas próprias questões e na marginal do tratamento de seus filhos.</p><p>Apesar da suposição dos benefícios do acolhimento a essas mulheres e suas demandas,</p><p>poucos são os espaços destinados à escuta e resolução de suas situações. A mãe, muitas vezes,</p><p>está presente apenas em entrevista inicial nos centros de reabilitação e em consulta de</p><p>orientação subsequente, e aguardam em sala de espera durante as sessões de tratamento, sem</p><p>qualquer abordagem de suas demandas ou frustações. É relevante os profissionais estarem</p><p>capacitados para assistirem tanto a criança com deficiências quanto suas famílias (MORO;</p><p>SOUZA, 2012). Ao refletir sobre a atuação de profissionais da saúde, não há como prestar</p><p>assistência às crianças com deficiências, sem assistir também suas cuidadoras. “As pessoas</p><p>vivem em relações sociais, mesmo quando os profissionais as abordam individualmente”</p><p>(SEIKKULA; ARNKIL, 2020, p. 36).</p><p>A elaboração e partilha de sentimentos das cuidadoras podem melhorar a qualidade de</p><p>vida dessas mulheres e de todo o núcleo familiar. A aceitação do filho real pode mudar as</p><p>atitudes e propiciar meios para que a família passe a olhar a criança como um ser na sociedade.</p><p>O fortalecimento emocional dessas mulheres as encoraja para que suas vozes sejam ouvidas e</p><p>seus direitos e de seus filhos sejam assegurados (SOARES; CARVALHO, 2017).</p><p>Além das dores emocionais, Pellosi et al. (2017) reforçam também a presença de dor</p><p>física em cuidadores de pessoas com deficiência. Esses autores corroboram que a maioria das</p><p>cuidadoras são mulheres, com maior prevalência sendo as mães, e que dedicam tempo integral</p><p>aos cuidados com o filho e em todos os dias da semana. Em função das atividades contínuas e</p><p>intensas do dia a dia, como a transferência de posturas durante o dia, participantes relataram</p><p>sentir dor em mais de um local do corpo. Os autores ainda acrescentam que, muitas vezes, essas</p><p>cuidadoras abdicam de estarem no mercado de trabalho ou de aprimorar seus estudos, de</p><p>atividades de lazer e autocuidado, o que repercute negativamente na saúde, bem-estar e</p><p>convívio social dessas cuidadoras, com consequente desgaste físico e emocional. Essa</p><p>sobrecarga de quem cuida pode afetar a qualidade dos cuidados prestados ao filho e até mesmo</p><p>trazer comprometimento também à saúde da pessoa que recebe os cuidados.</p><p>Pensar a relação de cuidado na maternidade de crianças com deficiências é necessário.</p><p>A construção de caminhos sobre as trajetórias vividas pode ressignificar formas de agir e levar</p><p>mulheres que são mães de crianças com deficiência saírem do isolamento e serem potência e</p><p>protagonistas de suas próprias vidas e de seus filhos. Conforme Soares e Carvalho (2017, p. 1),</p><p>16</p><p>“a emergência dos movimentos de luta e participação social dessas mães é determinante no</p><p>processo de ruptura com a condição de invisibilidade social.”</p><p>E para além de um olhar biomédico para a cuidadora, a ampliação da visão, através de</p><p>uma imersão também nas discussões do modelo social da deficiência, é urgente. Atravessar</p><p>fronteiras multiprofissionais e não profissionais, é agregar conhecimento prático ao</p><p>conhecimento científico, valorizando as ações realizadas dentro desses contextos e</p><p>disponibilizando materiais a fim de preparar profissionais para situações complexas e com</p><p>múltiplas partes interessadas (SEIKKULA; ARNKIL, 2020).</p><p>Solomon reforça ainda a importância da partilha da experiência prática de pais para a</p><p>desconstrução de valores concebidos e para a intimidade com a diversidade de modos de vida:</p><p>Divulgar a felicidade aprendida por esses pais é vital para sustentar identidades que</p><p>hoje estão vulneráveis à erradicação. Suas histórias apontam para todos nós um</p><p>caminho para expandir nossas definições de família humana. É importante saber como</p><p>pessoas autistas se sentem em relação ao autismo, ou anãs em relação ao nanismo. A</p><p>aceitação de si mesmo faz parte do ideal, mas sem aceitação familiar e social ela não</p><p>pode amenizar as injustiças implacáveis a que muitos grupos de identidade horizontal</p><p>estão sujeitos, e não provocará uma reforma adequada. [...] Apesar dessa crise de</p><p>empatia, a compaixão prospera em casa, e o amor da maioria dos pais dos quais fiz o</p><p>perfil atravessa linhas divisórias. Entender como eles chegaram a pensar bem de seus</p><p>próprios filhos pode dar a nós motivo e discernimento para fazer o mesmo</p><p>(SOLOMON, 2013, p. 17).</p><p>Alves (2016, p. 126) reforça que “a preocupação em compreender e descrever as ‘as</p><p>experiências humanas` em sua riqueza tem levantado, nos estudos socioantropológicos sobre</p><p>adoecimento e tratamento, um conjunto de importantes considerações teórico-metodológicas”.</p><p>Assim sendo, justifica-se a importância da realização de estudos que avaliem não só a</p><p>saúde física e emocional de cuidadores de pessoas com deficiências, mas também que tragam</p><p>novos conhecimentos práticos para o meio acadêmico e político sobre diversos modos de vida.</p><p>Entendimentos advindos das narrativas de mães de crianças em situações crônicas de saúde</p><p>podem trazer reflexões e produzir ações pelos profissionais de saúde, além de um</p><p>aperfeiçoamento das linhas de cuidados a partir da experiência das cuidadoras de crianças com</p><p>deficiências.</p><p>Após essas notas iniciais, essa dissertação estrutura-se em mais cinco capítulos. No</p><p>próximo capítulo discussões teóricas são apresentadas subdivididas em tópicos: primeiramente</p><p>um debate sobre os modelos da deficiência, seguido por um caminho teórico para justificar a</p><p>localização nessa pesquisa da deficiência como uma condição crônica. Ainda, nessa segunda</p><p>sessão, um olhar foi voltado para as mulheres que são mães e principais cuidadoras de crianças</p><p>17</p><p>com deficiências ao tentar localizá-las nas políticas públicas de saúde e em seguida ao situar a</p><p>experiência dessas mulheres através de uma revisão bibliográfica.</p><p>No terceiro capítulo, o delineamento metodológico está exposto, assim como reflexões</p><p>sobre as práticas em campo. Notas teóricas sobre a utilização da imagem, como fonte primária</p><p>em pesquisas, também foram tecidas, já que essa será uma ferramenta experimentada nesse</p><p>trabalho.</p><p>Já o quarto capítulo, constitui-se da articulação entre os resultados das entrevistas</p><p>realizadas e as impressões registradas em diário de campo.</p><p>Os resultados produzidos em um segundo momento da pesquisa – um acompanhamento</p><p>no dia a dia de uma das participantes com registros de imagens e de conversas no cotidiano,</p><p>receberam um capítulo específico através da construção de uma série fotográfica e de reflexões</p><p>a respeito do uso desse recurso na pesquisa.</p><p>E, por fim, considerações</p><p>https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/saude-da-pessoa-com-deficiencia/rede-de-cuidados-a-pessoa-com-deficiencia</p><p>133</p><p>CORIOLANO-MARINUS, et al. Comunicação nas práticas em saúde: revisão integrativa da</p><p>literatura. Saúde Soc. 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Muitas condições são tanto</p><p>doença como identidade, mas só podemos ver uma se obscurecermos a outra.</p><p>A política da identidade refuta a ideia de doença, enquanto</p><p>a medicina ludibria a identidade. Ambas saem diminuídas com essa estreiteza</p><p>(Andrew Solomon, Longe da árvore, 2013, p. 15-16).</p><p>Os estudos sobre deficiência emergiram nos anos 1970, nos Estados Unidos e Reino</p><p>Unido, de caráter político-acadêmico, através de ativistas com deficiência. As discussões</p><p>surgiram como crítica ao modelo biomédico da deficiência – que tem o foco na cura ou</p><p>medicalização do corpo com deficiência, com ações voltadas para a reabilitação e de tendência</p><p>assistencialista. A proposta em progresso defendia vida independente e direitos civis para as</p><p>pessoas com deficiência e deu origem ao modelo social da deficiência (MELLO;</p><p>NUERNBERG; BLOCK, 2014).</p><p>Os teóricos da primeira geração desse modelo argumentam que um corpo com lesões</p><p>(expressão da biologia médica) não justifica a desigualdade sofrida pelas pessoas com</p><p>deficiência. O modelo social da deficiência separa, então, lesão de deficiência. Deficiência é</p><p>um fenômeno social, e não determinado pelo campo da natureza, individual, como uma tragédia</p><p>pessoal. Apoiados nas análises dos estudos de gênero, em que as justificativas morais e a força</p><p>das estruturas sociais agem para a opressão, esses primeiros teóricos do modelo social trazem</p><p>as barreiras da sociedade como o que limita a expressão das capacidades e dos direitos das</p><p>pessoas com deficiência. Assim, retiram a deficiência do campo individual e a transferem para</p><p>a sociedade, com implicações políticas importantes. Com os arranjos sociais pouco sensíveis à</p><p>diversidade, a solução para a independência não estaria centrada no tratamento médico, mas em</p><p>ações políticas. Essa mudança de perspectiva não significava que o modelo social contrapunha</p><p>aos tratamentos médicos para melhoria do bem-estar das pessoas com deficiência.</p><p>Complementarmente, por ser um fenômeno sociológico, investimentos também deveriam ser</p><p>empenhados em modificar as estruturas que intensificavam as desvantagens vivenciadas pelas</p><p>pessoas com deficiência (DINIZ, 2003).</p><p>Através da difusão desses conhecimentos, o paradigma da inclusão social, onde a</p><p>sociedade se adapta para prover acessibilidade às pessoas com deficiência, é levantado como</p><p>bandeira de luta. A deficiência passa a ser um modo de vida e essa discussão vem à tona no</p><p>19</p><p>meio econômico, sociocultural e de direitos humanos (MELLO; NUERNBERG; BLOCK,</p><p>2014).</p><p>A reviravolta nesses conceitos trouxe desdobramentos no meio acadêmico e social. De</p><p>um campo circunscrito aos saberes biomédicos, a deficiência é redefinida em termos</p><p>sociológicos. Ela passa a ser descrita também em termos políticos, e não mais limitada ao</p><p>diagnóstico, com a aproximação dos estudos sobre deficiência a outros saberes. Deficiência</p><p>passa a ter um conceito complexo, que assume o corpo com lesão e reconhece a diversidade</p><p>corporal humana, mas que adicionalmente revela estruturas sociais que o oprimem e o</p><p>segregam. A argumentação teórica dos modelos sociais implicou, e ainda hoje influencia, nas</p><p>decisões de organismos internacionais de políticas em saúde, como é o caso da Organização</p><p>Mundial da Saúde (OMS) (DINIZ, 2007). Desde então, “ao ser chamado de modelo, essa</p><p>compressão da deficiência passou a ser incorporada como um referencial teórico, ultrapassando</p><p>o caráter pragmático de sua formulação inicial” (LOPES, 2019, p. 75).</p><p>Por décadas, a ideia dos primeiros teóricos dos modelos sociais, especialmente em</p><p>relação às premissas de independência, não sofreu críticas. Foram nos anos de 1990 e 2000 que</p><p>abordagens pós-modernas e de teóricas feministas trouxeram novas contribuições para o debate</p><p>a respeito da deficiência. Essa segunda geração de teóricos do modelo social introduziu à</p><p>agenda de discussão novos tópicos – como o cuidado, a dor, o sofrimento, a experiência de</p><p>viver em um corpo com lesão, a dependência e interdependência como tema central à vida.</p><p>Abre-se também um olhar para as pessoas com deficiências mais vulneráveis, que, ainda que</p><p>ajustes arquitetônicos ou de transporte sejam feitos, não atingirão independência ou capacidade</p><p>plena de produção e trabalho. Dessa forma, o modelo social expandiu-se através dessas</p><p>propostas de revigoramento. O cuidado e a interdependência, como um princípio adequado para</p><p>todas as pessoas, com ou sem deficiências, é levantado como questão de justiça social. Aqui,</p><p>novos atores, para além da experiência de opressão em um corpo com deficiência, falavam com</p><p>propriedade: a experiência e o papel em ser mulher cuidadora de uma criança ou adulto com</p><p>deficiência aparecem fortemente nos discursos. A entrada de mulheres sem deficiência, porém</p><p>com vivência sobre a deficiência como cuidadoras, despertou a crítica de alguns pressupostos</p><p>do campo e trouxe também a figura da cuidadora para o centro do debate. Outras variáveis</p><p>convergentes de desigualdade, como raça, gênero, orientação sexual e a infância, também</p><p>emergiram no meio acadêmico e no enfrentamento político da questão com essa geração</p><p>(DINIZ, 2007).</p><p>20</p><p>O posicionamento da nova geração do modelo social vem sendo incorporado de</p><p>diferentes maneiras nos estudos sobre deficiência. Uma das tendências é o reconhecimento da</p><p>diversidade e a culturalização da diferença corporal (LOPES, 2019).</p><p>Dessa forma, os estudos sobre deficiência vêm florescendo como um campo acadêmico</p><p>promissor, com interfaces interdisciplinares e uma tendência em buscar integrar, apesar de</p><p>desafiador, ideias dos modelos biomédico e das gerações dos modelos sociais da deficiência,</p><p>numa perspectiva biopsicossocial. Os modelos sociais da deficiência somam-se ao modelo</p><p>biomédico e a deficiência não fica circunscrita ao corpo, mas é deslocada para o contexto das</p><p>interações pessoais, ambientais e sociais (MELLO; NUERNBERG; BLOCK, 2014).</p><p>A deficiência, portanto, apresenta um aspecto de multiplicidade, necessitando de um</p><p>modelo multifatorial para estudo, que envolva a conexão entre os aspectos biológicos, sociais,</p><p>psicológicos, culturais, tecnológicos e políticos (MARTINS; BORGES, 2012).</p><p>Andrew Solomon (2013) sugere que</p><p>Temos de examinar doença e identidade, compreender que a observação acontece</p><p>geralmente em um domínio ou no outro e chegar a uma mecânica sincrética.</p><p>Precisamos de um vocabulário em que os dois conceitos não sejam opostos, mas</p><p>aspectos compatíveis de uma condição. Temos de mudar o modo como avaliamos o</p><p>valor dos indivíduos e das vidas, para alcançar uma visão mais ecumênica sobre a</p><p>saúde. Ludwig Wittgestein disse: ´Tudo o que sei é o que tenho palavras para</p><p>descrever`. A ausência de palavras é a ausência de intimidade; essas experiências</p><p>estão sedentas de linguagem (SOLOMON, 2013, p. 16).</p><p>Ao investigar o fenômeno da deficiência, autores sugerem, portanto, um mergulho mais</p><p>profundo nos fundamentos epistemológicos do campo dos estudos sobre deficiência, através</p><p>também das noções em torno da corporalidade, da interdependência, da transversalidade, a fim</p><p>de complementar a visão do processo constitutivo e determinante do fenômeno da deficiência</p><p>(MELLO; NUERNBERG; BLOCK, 2014).</p><p>E é nesse contexto de tensão entre as disciplinas que essa pesquisa está posta. Inserida</p><p>em um cenário em que a perspectiva biomédica circula hegemonicamente, não é objetivo da</p><p>pesquisadora opor-se aos recursos de saúde disponíveis para proporcionar melhor bem-estar às</p><p>crianças com deficiências e às suas cuidadoras, mas sim transitar</p><p>na intersecção desses</p><p>conceitos, a fim de ampliar o olhar para a complexidade do fenômeno da deficiência. Assim</p><p>como Alves (2016) propõe:</p><p>Ultrapassando as tradicionais fronteiras disciplinares, a teoria social contemporânea</p><p>se expande em novos campos de pesquisas. Estamos em período rico de reflexões</p><p>sobre multidisciplinaridade e interdisciplinaridade. Nessa perspectiva, é marcante o</p><p>21</p><p>diálogo íntimo desenvolvido entre as ciências sociais, a filosofia, a história, a</p><p>psicologia, a linguística, a biologia e as artes de modo geral (ALVES, 2016, p. 125).</p><p>Através do estudo no cotidiano elementos teórico-práticos envolvidos no cuidado –</p><p>sobretudo simbólicos, sociais e culturais, e que frequentemente não são considerados nas linhas</p><p>de cuidado em saúde, podem ser evidenciados. O diálogo entre as áreas pode mostrar</p><p>peculiaridades passíveis de escapar aos profissionais de saúde, sugerindo que estes podem ser</p><p>sensibilizados para além das questões biomédicas (GERHARDT et al., 2016).</p><p>Ainda, através de narrativas de personagens que compõem o tecido de relações no</p><p>contexto da deficiência, distintas realidades que determinam comportamentos, escolhas e ações</p><p>são visibilizadas. O conhecimento a respeito da interdependência de fatores e suas</p><p>interferências sobre a experiência da deficiência atenuam desgastes e fortalecem vínculos em</p><p>busca de acordos, tanto nas relações familiares como nas relações sociais e políticas</p><p>(CASTELLANOS, et al., 2015).</p><p>Por muito tempo, as narrativas sobre as subjetividades de viver em um corpo com lesão</p><p>ou ser cuidadora de uma pessoa com deficiência ficaram privadas à esfera doméstica e a</p><p>consequência desse silêncio foi a separação entre o público e o privado. A exposição dessas</p><p>experiências foi vista como uma ameaça às conquistas de que a deficiência estava na sociedade</p><p>e não no corpo com lesão (DINIZ, 2007). O compromisso sobre o cuidado às pessoas com</p><p>deficiência situou-se, portanto, como uma questão familiar (GESSER; ZIRBEL; LUIZ, 2022).</p><p>Ainda hoje, o cuidado é considerado um valor feminino e, por isso, pouco valorizado (DINIZ,</p><p>2003).</p><p>Apesar de a deficiência e suas repercussões serem um compromisso de todos, é</p><p>principalmente a família que se encarrega das responsabilidades:</p><p>O nascimento de uma criança ‘anormal’ é um desses acontecimentos inesperados que</p><p>põe à prova cada um de nós, pais, mães, irmãos, avós, tios, amigos, professores,</p><p>profissionais da saúde, pesquisadores, gestores da saúde e da educação. Convida-nos</p><p>a buscar soluções e a entender que o desafio é de todos. No entanto, a família é o</p><p>primeiro núcleo social a ser intensamente ‘perturbado’ por ele, o primeiro a buscar</p><p>respostas nos diversos setores da sociedade e o último a lidar com as consequências</p><p>para toda a vida. (CAVALCANTE, 2001, p. 126).</p><p>As necessidades da criança com deficiência passam a ser exclusividade na vida das mães</p><p>como principais cuidadoras. Ocorre uma priorização do filho com deficiência em suas vidas.</p><p>Sem tempo para refletir ou mudar, uma relação de dependência recíproca é gerada. As mães se</p><p>tornam também dependentes de seus filhos. E silenciadas pela sobrecarga de tarefas, essas</p><p>22</p><p>mulheres passam a ser invisíveis para a sociedade (KUNST; MACHADO; RIBEIRO, 2010;</p><p>MORO; SOUZA, 2012).</p><p>Dentro dessas trajetórias das cuidadoras, Alves e Fleischer (2018) discutem sobre a</p><p>relação do tempo na maternidade de uma criança com deficiência:</p><p>Há uma sensação de corrida contra o tempo. O tempo em suas diferentes dimensões.</p><p>Primeiro, há de se ter tempo para cuidar dos filhos. Por um lado, essas mulheres</p><p>abriram mão de trabalho remunerado, por exemplo, para ter mais tempo disponível.</p><p>Mas, como consequência, precisa fazer mais esforços para equilibrar o orçamento</p><p>doméstico, agora ainda mais impactado pelas altas despesas exigidas. Segundo, há de</p><p>se ter tempo para se deslocar, nas difíceis condições de transporte público, para os</p><p>serviços oferecidos. Terceiro, há que se entender o tempo da criança, que não</p><p>necessariamente segue o mesmo ritmo de aprendizado e desenvoltura de suas</p><p>contemporâneas ou mesmo do ritmo esperado pelos profissionais de saúde para uma</p><p>criança com deficiências. Esse tempo se relacionou diretamente com a ideia de</p><p>‘estimulação precoce’, [...] fez com que tudo se acelerasse para aproveitar a</p><p>‘plasticidade’ do cérebro. Por fim, há o tempo pessoal, subjetivo, ‘para si mesma’,</p><p>bastante dependente de todos esses aspectos anteriores, mas em geral bastante</p><p>capturado e diminuído pelo tempo da criança, dos serviços e dos cuidados (ALVES;</p><p>FLEISCHER, 2018, p. 9-10).</p><p>Manter o cuidado no âmbito privado, como uma responsabilidade predominantemente</p><p>da mãe, reafirma as histórias de desigualdades de gênero. No contexto patriarcal, ser apenas a</p><p>família incumbida pelo bem-estar de seus membros traz uma carga desproporcional de</p><p>atividades de cuidado para as mulheres. As famílias acabam assumindo funções, onde deveria</p><p>ser o Estado o agente corresponsável como promotor do cuidado e da proteção social. Para as</p><p>pessoas com deficiência complexa, a restrição do cuidado à família traz ainda mais</p><p>vulnerabilidade (GESSER; ZIRBEL; LUIZ, 2022).</p><p>Moraes (2019) reforça esse ponto-de-vista:</p><p>Os estudos contemporâneos, além de questionar o caráter privado e de gênero dessas</p><p>atividades (majoritariamente realizadas no espaço privado da família e por mulheres),</p><p>como já fazem as feministas desde a década de 1960, propõem alterar as dinâmicas</p><p>das instituições e políticas públicas possibilitando a alteração de paradigmas nesse</p><p>campo e, também, a redução das desigualdades de gênero que estão colocadas na</p><p>sociedade (MORAES, 2019, p. 329).</p><p>As mulheres acabam “expostas a altos riscos de estresse e depressão, pois exercem o</p><p>cuidado com significação emocional e de obrigação, como elemento central de sua identidade”</p><p>(RENK; BUZIQUIA; BORDINI, 2022, p. 6).</p><p>Alves e Fleischer (2018) contam que</p><p>A carga de tarefas direcionadas a essas mulheres é monumental. Elas são responsáveis</p><p>pelos cuidados diários dessa criança: enfrentam os árduos trajetos nos itinerários</p><p>23</p><p>terapêuticos; precisam aprender todo um novo léxico, tanto biomédico, quanto</p><p>burocrático; negociam a presença dos genitores, seja na forma de prestação de</p><p>cuidados, pagamentos de pensões, oferta de planos de saúde etc.; vivenciam a</p><p>discriminação de uma sociedade pouco preparada a lidar com a deficiência (ALVES;</p><p>FLEISCHER, 2018, p. 9).</p><p>Seikkula e Arnkil (2020) acrescentam em como cada integrante da família ocupa um</p><p>ponto de vista de onde olhar no espaço social. E cada pessoa nessa relação tem suas próprias</p><p>questões. As demandas da vida podem estar interligadas e entrelaçadas, e até mesmo serem</p><p>causadas ou afetar umas às outras, mas há tantos problemas quantos são os integrantes dessa</p><p>família. É preciso posicionar-se a partir de um ponto de referência para avaliação de um todo.</p><p>“A vista aérea panorâmica não está disponível, mas existe a oportunidade de formar visões mais</p><p>ricas” (SEIKKULA; ARNKIL, 2020, p. 76).</p><p>Posicionar-se tendo como ponto de referência as perspectivas das mães cuidadoras de</p><p>crianças com deficiências é abrir o olhar para a experiência dessas mulheres, para além da</p><p>gestão do cuidado. E é a partir desse ponto de olhar que esse estudo está orientado.</p><p>2.1 Os desafios em separar a deficiência da doença</p><p>A Sociologia da Saúde no Brasil, subárea reconhecida pelas agências nacionais e</p><p>estaduais de fomento à pesquisa científica, tem uma longa tradição no Brasil. A ampliação do</p><p>conceito de saúde difundido pela OMS anuncia a relevância das ciências sociais na produção</p><p>de pesquisas e de práticas em saúde. Entretanto, apesar do longo tempo de estabelecimento,</p><p>nem sempre o diálogo é harmonioso entre essas áreas (GRISOTTI; CASTRO SANTOS, 2018).</p><p>No campo da deficiência, a Sociologia da Saúde não faz uma distinção clara entre</p><p>deficiência e doença.</p><p>Dessa forma, as pessoas com deficiência ficam circulando entre um estado</p><p>permanente entre saúde e doença. Consequentemente, por essa complexidade em separar a</p><p>deficiência da doença, os estudos brasileiros se enredam nas duas abordagens do fenômeno da</p><p>deficiência – a primeira, que enfatiza a perspectiva do tratamento médico e da deficiência como</p><p>uma tragédia pessoal, e a segunda com uma perspectiva da deficiência como singular à</p><p>diversidade. Não há uma total ruptura com o modelo biomédico em meio à produção científica</p><p>e muitos estudos trazem o corpo com deficiência como tendo uma desvantagem inerente às</p><p>condições da natureza, muita foça biomédica e poucas análises sociais (MELLO;</p><p>NUERNBERG; BLOCK, 2014).</p><p>Dentro dos desafios dessa separação, a deficiência é então classificada como uma</p><p>condição crônica para a saúde. No Relatório Mundial sobre os Cuidados Inovadores para</p><p>24</p><p>Condições Crônicas da ONU (2003), as deficiências são constituídas como condições crônicas</p><p>de saúde pois exigem mudanças no estilo de vida e gerenciamento da saúde, e a demanda dos</p><p>pacientes, famílias e do sistema público de saúde são similares à outras condições crônicas,</p><p>com impactos pessoais, sociais e econômicos.</p><p>Entende-se como uma condição crônica de saúde, agravos à saúde de longa duração,</p><p>que impõem limites ao corpo biológico de uma pessoa e que implicam em consequências e</p><p>significados nas atividades diárias de vida. Por consequências, entende-se como a</p><p>reorganização da vida – tanto direcionada ao cuidado e às intervenções de saúde, quanto pelas</p><p>estratégias de adaptação que procuram responder aos limites corporais e mentais impostos pela</p><p>condição crônica através da mudança de trajetórias das pessoas cronicamente adoecidas, mas</p><p>também dos seus familiares. Por significados, entende-se como um conjunto mais profundo de</p><p>implicações da condição crônica para o plano simbólico que afeta e é afetado por essa condição,</p><p>que atua como um elemento de mediação das relações sociais, provocando processos de</p><p>negociação da própria identidade (CASTELLANOS et al., 2015).</p><p>A partir desse panorama transdisciplinar, a visão de Bury (2011) é adicionada para a</p><p>discussão dessa pesquisa. O autor afirma que uma condição crônica de saúde traz consigo um</p><p>tipo particular de experiência disruptiva e deve ser tomada como uma circunstância crítica na</p><p>vida de uma pessoa. Essa ruptura, denominada pelo autor de ruptura biográfica, representa uma</p><p>descontinuidade na vida da pessoa e nas suas interações sociais, provocando, por um lado,</p><p>mudanças no seu comportamento, e por outro, respostas e mudanças de planejamento que</p><p>trazem um novo olhar para a vida.</p><p>Ainda com Bury (2011), o autor distingue três fases da experiência ao tratar do conceito</p><p>de condição crônica, procurando entender as relações entre a condição e a sociedade. O primeiro</p><p>aspecto é a ruptura biográfica propriamente dita e as tentativas iniciais em lidar com a incerteza</p><p>que ela traz. Nessa primeira fase, há uma quebra das crenças e comportamentos cotidianos e</p><p>decisões sobre a procura por ajuda. As rupturas da biografia são, ao mesmo tempo, rupturas das</p><p>relações sociais e da habilidade de mobilizar recursos. O mundo da vida cotidiana, que</p><p>anteriormente não causava preocupações, torna-se um fardo de ações deliberadas. Um simples</p><p>passeio torna-se uma ocasião que precisa ser planejada ao extremo. Assim, o isolamento social</p><p>e a dependência que fluem a partir dessas rupturas no intercurso social não se originam</p><p>simplesmente da habilidade ou inabilidade de realizar tarefas e atividades. Os indivíduos</p><p>começam a restringir seu território a locais familiares onde há pouca probabilidade de serem</p><p>expostos aos olhares e às perguntas de conhecidos e estranhos. A desistência em manter</p><p>relacionamentos sociais e o isolamento social cada vez maior são evidências importantes dos</p><p>25</p><p>agravos crônicos. A ruptura da reciprocidade com a sociedade, os problemas na legitimação da</p><p>mudança de comportamento e os efeitos gerais do estigma associados à uma condição crônica</p><p>afetam a habilidade do indivíduo de mobilizar recursos favoravelmente. Adicionalmente, a</p><p>presença ou ausência de uma rede social de apoio pode fazer uma diferença significativa nesse</p><p>processo. O segundo é o impacto dessa experiência na vida cotidiana. E a terceira fase é a</p><p>resposta a essa ruptura e gerenciamento de recursos aos quais são empreendidos pelas pessoas</p><p>ao responder à situação e ao tentar reconstruir suas vidas. A possibilidade de mudança de</p><p>comportamento de uma pessoa através das circunstâncias de uma situação crônica é</p><p>determinada por fatores, como o cotidiano das famílias e em locais de trabalho, assim como em</p><p>grupos e outros cenários sociais. Além disso, o indivíduo e seus familiares são inevitavelmente</p><p>levados a rearranjar seus envolvimentos pessoais e comunitários mais amplos. A integração do</p><p>conhecimento médico e do conhecimento leigo entram nessa fase. A descontinuidade</p><p>biográfica, então, não é algo definitivo na vida das pessoas ou familiares com alguma condição</p><p>crônica, pois eles podem fazer adaptações em suas vidas e utilizarem novas estratégias frente</p><p>às circunstâncias na tentativa de retomar suas vidas cotidianas.</p><p>Fiamenghi Jr e Messa (2007) ratificam que os significados da experiência de famílias</p><p>com filhos com deficiência não surgem como resultado direto da deficiência, mas irão depender</p><p>das possibilidades oferecidas e disponíveis à família para adaptar-se ou não à situação. Bury</p><p>(2011), então, propõe a análise das ações para a reorganização da vida prática que deem um</p><p>novo sentido para as vidas e para a reestruturação das relações sociais das pessoas com uma</p><p>condição crônica, como também o estudo da sobrecarga dos cuidadores e dos apoiadores dentro</p><p>do círculo social da pessoa.</p><p>Através dessa discussão, a observação no cotidiano abre o olhar também para a</p><p>dimensão social da condição crônica e realça os recursos disponíveis às pessoas e suas famílias</p><p>e como eles são utilizados na prática (CASTELLANOS, et al. 2015). Não obstante, mais do</p><p>que traçar a trajetória de vida de mulheres que experienciam a deficiência em seu cotidiano</p><p>como mãe e cuidadora, através das escolhas possíveis dentro desse contexto, visões adicionais</p><p>à de Bury (2011) são acrescidas para a discussão dessa pesquisa. Spink (2015), em uma análise</p><p>sobre estudos que têm o cotidiano como foco de pesquisa, apoia e reitera o diálogo</p><p>interdisciplinar. José Ortega y Gasset afirma ainda que não faz sentido ver a nós mesmos</p><p>separados do mundo: estamos sempre imersos em circunstâncias particulares, muitas vezes</p><p>opressivas e limitadoras. É necessário refletir sobre a natureza dessas circunstâncias que regem</p><p>as ações e as suprimem. Tais entraves para as práticas nas trajetórias não são apenas do ambiente</p><p>físico, mas também dos pensamentos e do comportamento, influenciados pelas crenças,</p><p>26</p><p>preconceitos e hábitos construídos. Assim, o autor reconhece que, apesar dessa autonomia do</p><p>existir, as circunstâncias sempre limitarão as ações planejadas, não importando o quanto a</p><p>pessoa esteja livre para imaginar novos futuros. As possibilidades do mundo são oferecidas</p><p>para que decisões sejam tomadas, mas essas oportunidades também são restritivas. A realidade</p><p>sempre colide com os planos. O autor sugere, então, perspicácia e criatividade para desafiar e</p><p>avançar contra as circunstâncias limitadoras, tanto a nível pessoal, quanto político e moral</p><p>(GASSET, 2019).</p><p>Adicionalmente, Annemarie Mol (2008) argumenta em como é preciso reconhecer a</p><p>importância da autonomia da pessoa para tomar decisões e escolher sua trajetória de vida, mas</p><p>adverte em como há inúmeras camadas onde essas decisões são tomadas. A lógica da escolha</p><p>individual e responsabilização pelas decisões tomadas falham na interpretação em alguns</p><p>contextos, como o da práticas de cuidado e da deficiência, onde as redes de relações, com suas</p><p>tensões e negociações, e as situações em que as escolhas foram realizadas são deixadas de lado.</p><p>Fietz e Mello (2018, p. 136) também enfatizam “o quanto a sobreposição de atores sociais,</p><p>desejos, bens a serem protegidos e versões de bem-estar tornam complexa a tarefa cotidiana de</p><p>cuidar e, principalmente, de ser cuidado”.</p><p>Assim, ainda com Annemarie Mol (2008), a autora sugere, como forma de estar atenta</p><p>às camadas envolvidas nas decisões, refletir o cuidado nessas relações como uma prática que</p><p>se constrói com o tempo. Pensar o cuidado por esse ângulo é concentrar-se nas ações realmente</p><p>feitas no curso dessas relações, através de uma construção cotidiana. O cuidado vai se</p><p>constituindo, através de interações e experimentações, em um fluxo contínuo, não definitivo,</p><p>sem suposições do tipo de cuidado mais adequado em cada situação. Por exemplo, a partir do</p><p>contingente de demandas que enfrentam, as mulheres podem apenas não estar escolhendo não</p><p>seguir tratamentos ou regras da vida impostas pela situação, mas sim estarem falhando em dar</p><p>conta de tudo e não conseguirem reorganizar suas vidas cotidianas. Dessa forma, a</p><p>multiplicidade de performances do cuidado dentro do fenômeno da deficiência é considerada e</p><p>é oferecido um espaço que é do outro nessa análise.</p><p>Além do mais, pensar em como essas relações mãe-filho no contexto da deficiência são</p><p>construídas na prática, é oportunizar direcionar um olhar também para quem cuida:</p><p>Pensar a deficiência a partir de uma ética de cuidado, ou melhor, das relações e</p><p>práticas de cuidado que a conformam e que são por ela conformadas, significa atentar-</p><p>se justamente para as associações mais invisibilizadas dessas redes e trazer à tona</p><p>atores sociais que são muitas vezes desconsiderados, tanto por pesquisadores quanto</p><p>por ativistas. Ao fazermos isso, acreditamos que evitamos agir como mais um agente</p><p>moralizador na trajetória desses sujeitos, e contribuímos para pensar criticamente</p><p>27</p><p>sobre quais vozes e corpos são sistematicamente silenciados nessas relações de</p><p>cuidado e dependência (FIETZ; MELLO, 2018, p. 135).</p><p>Ainda, pelo ponto de vista do cuidado como uma prática, quem dá e quem recebe o</p><p>cuidado tem um papel ativo dentro da relação. O cuidado tem por objetivo maior levar para</p><p>quem o recebe o bem-estar. Nessa relação, não quer dizer que quem é cuidado é submisso ou</p><p>oprimido pela outra parte. É pensar em um cuidado relacional que valoriza as capacidades de</p><p>reação às circunstâncias e de estar atento às necessidades do outro, por ambas as partes. Com</p><p>esse propósito, portanto, apenas a intenção de cuidado não é suficiente, mas sim as repercussões</p><p>que essas práticas trazem. A partir dessa posição, um debate mais amplo sobre os ideais de</p><p>autonomia e não estigmatização das relações de dependência pode ser ponderado (KITTAY,</p><p>2011).</p><p>E ao se pensar essa relação de dependência, ou melhor, de interdependência,</p><p>contribuições de Merleau-Ponty (1999) também serão brevemente pontuadas na discussão</p><p>dessa pesquisa. À semelhança da bengala como corpo estendido do cego, o corpo da mãe, como</p><p>anexo e fundido ao corpo da criança, dilata as possibilidades do modo de ser no mundo,</p><p>enquanto mãe e filho se intersubjetivam por seus corpos. Alves (2016) comentam em como</p><p>enfatizar práticas implica em entender o corpo como um lugar de inscrição e afeto das várias</p><p>dimensões da vida:</p><p>O corpo é o pivô de toda a experiência. Em vez de considerar o corpo como entidade</p><p>fechada ou separada do seu entorno por limites bem definidos, ele é visto como algo</p><p>que se estende para fora, abre-se aos lugares e sintoniza-se às coisas e pessoas que</p><p>constantemente lhe solicitam. É o corpo que fornece a perspectiva pela qual nos</p><p>colocamos no espaço e manipulamos os objetos; pela qual os objetos e o próprio</p><p>espaço ganham sentido para nós. Em suma, é por ter um corpo – ou ser um corpo –</p><p>que estamos situados, que somos irremediavelmente “seres em situação”. E não</p><p>apenas “em situação”, mas seres continuamente voltados para ultrapassá-la, rumo a</p><p>novos estados ou modos de ser (Alves, 2016, p. 130).</p><p>Assim sendo, nessa transversalidade de conceitos e experimentações, é que essa</p><p>pesquisa está inserida. Alves (2016) reforça que só será possível entender, como pesquisadora,</p><p>os sentidos das experiências para as participantes, apoiada nos processos de idealização e signos</p><p>construídos por elas, libertando-se de conceitos fixos e homogêneos.</p><p>2.2 Localizando a mulher que cuida em textos governamentais sobre pessoas com</p><p>deficiências</p><p>28</p><p>A Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência foi instituída pelo Ministério da Saúde</p><p>em 2012 (BRASIL, 2012), e consolidada em 2017 (BRASIL, 2017), com o objetivo de ampliar</p><p>o acesso dessa população ao Sistema Único de Saúde e está pautada na organização dos serviços</p><p>de forma integrada e com estabelecimento de ações para garantir a integralidade do cuidado.</p><p>Outro propósito da Rede é a educação permanente. A produção de cadernos, cartilhas e manuais</p><p>com orientações direcionadas para profissionais da saúde fazem parte dessa estratégia:</p><p>[...] As Diretrizes de Atenção à Saúde da Pessoa com Deficiência são documentos</p><p>orientadores do cuidado em saúde, e têm como objetivo oferecer orientações às</p><p>equipes multiprofissionais para o cuidado, bem como estratégias para o manejo e o</p><p>cuidado de forma qualificada e segura na lógica da integralidade e da humanização de</p><p>acordo com padrões estabelecidos por evidências científicas, nos diferentes pontos de</p><p>atenção da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2021)</p><p>A preocupação com a saúde do cuidador vem sendo discutida na avaliação integral das</p><p>pessoas com condições crônicas de saúde, visto que a presença de um cuidador tem sido cada</p><p>vez mais frequente nos lares brasileiros com o envelhecimento. Nesse sentido, os serviços de</p><p>saúde ressignificar suas concepções e romper com práticas fragmentadas e verticalizadas. É</p><p>relevante aproximar-se das experiências dos familiares cuidadores e abordar também suas</p><p>demandas como parte da elaboração de um olhar singular para as pessoas com deficiência e</p><p>para um acompanhamento com integralidade e resolutividade (CASTELLANOS et al., 2015).</p><p>Na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015) está instituído</p><p>que os serviços de saúde pública destinados à pessoa com deficiência devem assegurar</p><p>atendimento psicológico para os familiares e cuidadores. Desse modo, a fim de entender onde</p><p>estão localizados os cuidadores, por meio de uma exploração documental, realizou-se uma</p><p>varredura nas publicações da Coordenação-Geral de Saúde da Pessoa com Deficiência,</p><p>disponíveis no site do Ministério da Saúde (BRASIL, 2021), através da utilização da ferramenta</p><p>“localizar texto”. Foram empregadas as palavras “cuidador” ou “família” ou “mãe”. Utilizou-</p><p>se também a busca da palavra “atendente”, devido ao termo “atendente pessoal” ser utilizado</p><p>na Lei Brasileira de Inclusão (BRASIL, 2015) para representar o cuidador, porém o termo</p><p>“atendente” não foi encontrado em nenhuma das publicações:</p><p>Atendente pessoal: pessoa, membro ou não da família, que, com ou sem remuneração,</p><p>assiste ou presta cuidados básicos e essenciais à pessoa com deficiência no exercício</p><p>de suas atividades diárias, excluídas as técnicas ou os procedimentos identificados</p><p>com profissões legalmente estabelecidas (BRASIL, 2015).</p><p>29</p><p>O maior número de segmentos de texto foi encontrado ao se utilizar o termo “família”.</p><p>Alguns desses trechos encontrados referiam-se às responsabilidades das Equipes de Saúde da</p><p>Família. Outros fragmentos referiam-se à história familiar, em aspectos biomédicos, como parte</p><p>da anamnese, como nas Diretrizes de Atenção da Triagem Auditiva Neonatal (BRASIL, 2012),</p><p>nas Diretrizes de Atenção à Saúde Ocular na Infância: detecção e intervenção precoce para a</p><p>prevenção de deficiências visuais (BRASIL, 2013) e nas Diretrizes de Atenção</p><p>à reabilitação</p><p>da pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo (TEA) (BRASIL, 2014).</p><p>Nas Diretrizes de Atenção à Pessoa Amputada (BRASIL, 2013, p. 22-23), breve tópico</p><p>fala sobre a comunicação da notícia da necessidade de uma amputação, reforçando “uma</p><p>postura humana e ética, que garanta acolhida e informação adequada ao paciente e à família”.</p><p>A influência da notícia do diagnóstico e o impacto desse momento na futura adesão da família</p><p>ao tratamento é também discutido nas Diretrizes de Atenção à reabilitação da pessoa com</p><p>Transtornos do Espectro do Autismo (BRASIL, 2014).</p><p>Ainda nas Diretrizes de Atenção à Pessoa Amputada (BRASIL, 2013, p. 22), ressalta-</p><p>se que “é função da equipe multiprofissional informar os direitos dos pacientes com</p><p>deficiência”. Sugere-se ainda proporcionar ao paciente e sua família o encontro com outras</p><p>pessoas com amputação para troca de experiências de formas de superação das dificuldades.</p><p>Nas Diretrizes de Atenção à Pessoa com Lesão Medular (BRASIL, 2013), os trechos</p><p>encontrados abordavam sobre o papel fundamental da família na elaboração pelo paciente das</p><p>fases do luto pelos impactos da perda física. Na fase de negação, “a família deve estar bem</p><p>integrada sobre a lesão e o prognóstico do paciente, para auxiliá-lo com dados de realidade,</p><p>para que ele possa aderir mais às orientações”. Na fase de reconhecimento, “a família é de</p><p>extrema importância, para estimular o paciente em sua possível superação, a família tem nos</p><p>profissionais da saúde, seu porto seguro por esse motivo temos de ser claros e transparentes”.</p><p>Em adição, o luto dos familiares também é comentado: “há também a negação da família, pois</p><p>é muito traumático e angustiante, ver um membro que era ativo e produtivo, ´paralisado`”, e</p><p>acrescentam também a dinâmica familiar como um dos fatores para adaptação para a nova vida.</p><p>O termo “família” também é encontrado nesse guia no traçado das metas de reabilitação,</p><p>reforçando a importância da participação da pessoa e seus familiares nessa construção. O</p><p>investimento na capacidade da família em buscar soluções respeitando a liberdade individual</p><p>também é considerado:</p><p>A interdisciplinaridade, neste contexto, pressupõe aos profissionais de saúde a</p><p>possibilidade da prática de um profissional se reconstruir na prática do outro,</p><p>transformando ambas na intervenção do contexto em que estão inseridas. Assim, para</p><p>30</p><p>lidar com a dinâmica da vida social das famílias destes usuários e da própria</p><p>comunidade, além de procedimentos tecnológicos específicos da área da saúde, a</p><p>valorização dos diversos saberes e práticas da equipe contribui para uma abordagem</p><p>mais integral e resolutiva (BRASIL, 2013, p. 58).</p><p>A coconstrução dos saberes é igualmente reforçada nas Diretrizes de Atenção à</p><p>reabilitação da Pessoa com Traumatismo Cranioencefálico, de forma que “cada categoria</p><p>profissional tem a sua forma de contribuir no processo de reabilitação, sendo a troca de</p><p>informações entre a equipe, o paciente e a família, atividade essencial e a forma mais efetiva de</p><p>alcançar resultados.” (BRASIL, 2015, p. 44). A integração da família à equipe interdisciplinar</p><p>é ressaltada em razão de que o desenvolvimento humano é mediado pelo contexto sociocultural,</p><p>e a família é o primeiro contexto de socialização. A família traz consigo conhecimentos sobre</p><p>a pessoa – seja ela criança, adolescente, adulto ou idoso, e o conhecimento sobre as práticas do</p><p>dia a dia é essencial às tomadas de decisão. Assim, juntos, caminhos são encontrados a fim de</p><p>facilitar os processos específicos de cuidado e reabilitação, tomando como base motivações,</p><p>capacidades e interesses individuais dentro de contexto familiar e sociocultural.</p><p>Os desafios sucessivos encontrados nas atividades cotidianas e sociais, não apenas pelas</p><p>condições físicas, mas também pelas barreiras que a sociedade impõe às pessoas com</p><p>deficiência e mobilidade reduzida, também são explorados nas Diretrizes de Atenção à</p><p>Reabilitação da Pessoa com Síndrome pós-Poliomielite e comorbidades (BRASIL, 2016).</p><p>Nas Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Acidente Vascular Cerebral</p><p>(BRASIL, 2013), também é reforçado o trabalho em parceria com a família e/ou cuidadores. É</p><p>destacada também a individualidade de cada pessoa e seus familiares, e o olhar para além do</p><p>biomédico: “o enfoque não deve estar somente nas incapacidades do sujeito, mas em toda a</p><p>dinâmica que o envolve, levando em consideração o meio sociofamiliar em que está inserido e</p><p>o impacto de ter um membro da família acometido por lesão cerebral com importantes sequelas”</p><p>(BRASIL, 2013, p. 49). O apoio emocional aos familiares também é citado como forma de</p><p>motivação e envolvimento da família no tratamento, principalmente no sentido de favorecer</p><p>comportamentos que estimulem resiliência.</p><p>Nas Diretrizes de Atenção à Pessoa com Paralisia Cerebral (BRASIL, 2013), fortalece-</p><p>se que “o apoio familiar deve estar contemplado no cuidado integral a esta criança” e esse</p><p>direito deve estar garantido. A escuta às necessidades da família em diferentes contextos</p><p>(atividades de vida diária, autocuidado, o brincar, avaliação de adaptação e utensílios de suporte</p><p>etc.) como parte da construção conjunta do plano terapêutico também é abordada. Ademais, um</p><p>olhar para os sentimentos da família também é abordado ao se falar que a colocação de tubos</p><p>31</p><p>ou ostomias, como por exemplo, gastrostomia, pode gerar um sinal de insucesso nos familiares</p><p>em suas habilidades em alimentar a criança.</p><p>Contribuição semelhante está presente nas Diretrizes de Atenção à reabilitação da</p><p>pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo (BRASIL, 2014). Um tópico específico é</p><p>dedicado nessa publicação para a família: “Apoio e acolhimento da família da pessoa com</p><p>TEA”. Reforça-se que a atenção à pessoa e sua família se amplia para além de sua condição</p><p>diagnóstica; que os aspectos psíquicos, no que tange aos sentimentos, pensamentos e formas de</p><p>se relacionar com as pessoas e o ambiente também precisam ser contemplados. Mas assim como</p><p>as singularidades da família devem ser ouvidas como parte do projeto terapêutico, implicações</p><p>como a corresponsabilidade no processo de cuidado à saúde também são discutidas.</p><p>Repercussões na vida dos familiares são ponderadas nesse guia e a reflexão sobre a necessidade</p><p>de tratamentos também para a família surge:</p><p>O cuidado à pessoa com TEA exige da família extensos e permanentes períodos de</p><p>dedicação, provocando, em muitos casos, a diminuição das atividades de trabalho,</p><p>lazer e até de negligência aos cuidados à saúde dos membros da família. Isto significa</p><p>que estamos diante da necessidade de ofertar, também aos pais e cuidadores, espaços</p><p>de escuta e acolhimento, de orientação e até de cuidados terapêuticos específicos</p><p>(BRASIL, 2014, p. 67).</p><p>A organização de serviços com foco na família, de caráter interdisciplinar, a fim do</p><p>desenvolvimento da resiliência, como uma forma de enfrentamento ao contexto estressante da</p><p>convivência no cotidiano de uma criança com TEA, é sugerido também nas Diretrizes de</p><p>Atenção à reabilitação da pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo (BRASIL, 2014).</p><p>O termo “cuidador” foi o segundo que mais evidenciou trechos nos textos. Nas</p><p>Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Acidente Vascular Cerebral (BRASIL,</p><p>2013), é sinalizada como a parceria entre as equipes de Saúde, as famílias e os cuidadores em</p><p>torno da atenção à pessoa a ser cuidada. Da mesma forma em que responsabiliza o cuidador,</p><p>esse guia lembra também sobre os impactos nessas relações doente-cuidador:</p><p>É importante lembrar que o cuidador informal, não remunerado é, em geral, membro</p><p>da família ou amigo e nem sempre está apto a exercer essa função, o que pode tornar</p><p>a relação com a pessoa com deficiência conflituosa. Não existe fórmula para se reduzir</p><p>o estresse dessas relações, mas alguns cuidados podem minimizar situações de</p><p>desconforto.</p>

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