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MUSEUS, ARQUIVOS E PATRIMÔNIO HISTÓRICO INTRODUÇÃO Prezado aluno, O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Conceituar diferentes tipos de patrimônio. > Identificar as relações entre memória e patrimônio. > Reconhecer o papel dos museus, da escola e dos espaços de cultura na preservação do patrimônio histórico. Introdução O conceito de patrimônio se apresenta de diversas formas, inclusive relacionado aos processos históricos e à formação de memórias, individuais ou coletivas, nos quais o patrimônio surge. É importante destacar que o patrimônio é sempre um constructo intelectual que reflete aspirações e valores dos grupos sociais que o elaboram. O patrimônio de uma sociedade frequentemente tem a ver com as práticas de rememoração em relação ao seu passado. Nesse contexto, o patrimônio funciona como um “lugar de memória”, onde ritos podem ser realizados de modo a preservar no presente e para as gerações futuras o legado recebido do passado. Neste capítulo, você vai conhecer os diferentes tipos de patrimônio e aprender a identificar a sua relação com a memória. Você conhecerá também o papel de escolas, museus e outros espaços culturais na preservação do patrimônio. História, memória e patrimônio Eduardo Pacheco Freitas Tipos de patrimônio Determinar quais são os significados de patrimônio no campo da história e dos estudos culturais não é uma tarefa fácil. Isso ocorre porque são muitos os tipos de patrimônios e todos eles apresentam diferenças significativas entre si. Devido a essa peculiaridade, o historiador deve estar atento e dominar a tipologia do patrimônio, sabendo as suas singularidade e suas relações com o todo. Nesta seção, você verá os principais tipos de patrimônio da atualidade, que são: patrimônio cultural, patrimônio histórico, patrimônio material, patrimônio imaterial e patrimônio genético. Patrimônio cultural A palavra “patrimônio” deriva do latim e tem como significado literal “herança paterna”. Buscando o significado no passado, na Roma Antiga, o pai era o líder da família, sendo o detentor de bens, que, após a sua morte, eram herdados pelos filhos. Patrimônio tem a ver, portanto, com a preservação de algo preexistente e que foi recebido. Nesse contexto, ao falarmos em patrimônio cultural esta- mos nos referindo a aspectos da cultura que foram legados pelas sociedades pretéritas e nos dias de hoje devem ser protegidos e valorizados como herança. O historiador Vogt (2008, p. 14), quanto à definição de patrimônio cultural, afirma que: Entende-se por patrimônio cultural o conjunto de todos os bens materiais ou imateriais, que, pelo seu valor intrínseco, são considerados de interesse e de re- levância para a permanência e a identificação da cultura da humanidade, de uma nação, de um grupo étnico ou de um grupo social específico. A própria noção de patrimônio cultural pode ser subdividida em outras categorias, como as de patrimônio edificado e arquitetônico, arqueológico, artístico, religioso, natural, etc. No entanto, todos esses tipos patrimoniais podem ser classificados em dois grandes grupos, que, evidentemente, também remetem ao patrimônio cultural: são os patrimônios materiais e imateriais, dos quais veremos as definições mais adiante. É importante ressaltar que, ao longo do tempo, o patrimônio cultural, como conceito criado pelo ser humano, também sofreu transformações. Ou seja, as concepções acerca da sua proteção e preservação são históricas, relacionando-se intimamente com os valores e prioridades de uma sociedade bem determinada no espaço e no tempo. Sabemos ao certo que a construção da ideia de patrimônio cultural remete ao período de formação dos estados História, memória e patrimônio2 nacionais na Europa. A Revolução Francesa certamente corresponde ao ponto de origem das primeiras manifestações no sentido de preservação dos símbo- los culturais da nação emergente. No entanto, aquilo que começou como uma expressão política e revolucionária logo passou às mãos dos especialistas, como arquitetos, juristas, historiadores, antropólogos, sociólogos, literatos e artistas plásticos (VOGT, 2008). Dessa maneira, como esclarece Bourdieu (1998), criam-se valores simbó- licos em torno da seleção de objetos culturais que representarão os valores da cultura dominante (ou seja, da classe dominante), formando-se assim uma memória coletiva (atrelada ao patrimônio cultural que é estruturado por ela) que serve “[...] para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas [e] para a legitimação da ordem estabelecida [...]” (BOURDIEU, 1998, p. 10). Em síntese, pode-se dizer que a definição do que é e do que não é patrimônio cultural em uma sociedade também está relacionada à luta pelo poder. Patrimônio histórico A noção de patrimônio histórico está muito próxima à de patrimônio cultural. Afinal, todo patrimônio histórico é cultural, e todo patrimônio cultural é his- tórico. As primeiras ações visando à proteção e à restauração do patrimônio histórico remetem também à França revolucionária no fim do século XVIII e início do XIX. Naquele momento, diversas instituições de conservação foram estabelecidas e consolidadas, motivadas pelos ideais iluministas e tendo como missão salvaguardar do vandalismo monumentos e edificações que começavam a ser vistas como “históricas” (CHOAY, 2001). Entretanto, segundo Choay (2001), foi na Itália que ocorreram as primeiras iniciativas de proteção aos monumentos históricos. No começo do século XIX, houve um distanciamento crítico acerca das monumentais construções romanas. Ou seja, essas edificações passaram a ser objeto da ciência. Assim, surgiu uma preocupação de restauro e manutenção dos antigos prédios, aquedutos e outras manifestações da arquitetura romana. Houve um enorme desenvolvimento da arqueologia no período, que, ao realizar escavações sistemáticas, revelou ao mundo um passado esplendoroso que prontamente é assimilado pela inteligência italiana (CHOAY, 2001). Já na Inglaterra, surgiu, no século XIX, um movimento de restauração das antigas construções de monumentos religiosos que foram vandalizados no período da Reforma Protestante. A ideia de proteção desses patrimônios históricos está relacionada a uma concepção de que representavam a própria História, memória e patrimônio 3 alma nacional. Portanto, como se vê, há uma transposição da esfera religiosa para a esfera política e histórica de edificações que não foram planejadas com esse objetivo em seus contextos. Desse modo, o patrimônio histórico pode ser compreendido nas conexões que existem entre a rememoração e a contemporaneidade. A primeira relaciona-se com o passado e com a memória; a segunda liga-se ao presente. O patrimônio histórico, dessa forma, realiza a mediação entre passado e presente, tendo como perspectiva sempre a construção do futuro (CHOAY, 2001). Patrimônio material Como visto anteriormente, o conceito de patrimônio cultural podeser dividido em dois grandes grupos: patrimônio material e patrimônio imaterial. Essa distinção, além de útil, é verificada até mesmo em âmbito legal, nas legislações que versam sobre a salvaguarda dos patrimônios históricos e culturais. No Brasil, o órgão responsável por isso é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que tem como algumas de suas atribuições estudar, registrar e proteger tanto o patrimônio material quanto o imaterial do país. Deixemos este último para mais adiante e nos concentremos inicialmente nas definições de patrimônio material. O patrimônio material pode ser definido brevemente como aquele “[...] voltado para os testemunhos físicos do passado [...]” (DE PAOLI, 2012, p. 151). Isto é, o objeto patrimonial material sempre será algum bem cultural tangível, passando por edificações e monumentos, que remetam a aspectos históricos e culturais relevantes para uma determinada sociedade. É impor- tante lembrar que a noção atual de patrimônio é uma construção moderna, é uma elaboração intelectual que define, dentro de um contexto, o valor e as atitudes que deverão ser assumidos diante dos bens histórico-culturais materiais (DE PAOLI, 2012). Desde a queda do Império Romano, as ruínas romanas foram vistas, apropriadas e utilizadas de maneiras diferentes pelas sociedades que se seguiram. Enquanto na Idade Média essas construções serviram como abrigo para igrejas ou monastérios, a partir da modernidade elas passaram a ser encaradas como o legado de um passado que deveria ser reverenciado e servir como exemplo para as novas gerações. Como se vê, a forma como uma sociedade se relaciona com os patrimônios históricos materiais pode divergir enormemente. Enquanto no primeiro caso as edificações faziam parte História, memória e patrimônio4 do presente e do cotidiano prático, no segundo houve um distanciamento, que criou a ideia de que, além de meras construções, eram um patrimônio histórico material (DE PAOLI, 2012). Patrimônio imaterial O patrimônio imaterial, das diversas formas de patrimônio reconhecidas na atualidade, é a de definição mais difícil. Embora esse tipo de patrimônio apresente-se no cotidiano, ele se mostra como uma noção escorregadia, de apreensão mais complexa. Mesmo assim, é um fato que o patrimônio imate- rial faz parte de nossas vidas, presente em nossas memórias individuais ou coletivas. Contudo, devemos lembrar que, assim como as outras formas de patrimônio que estamos elencando aqui, o patrimônio imaterial também é fruto de escolhas e elaborações intelectuais que atendem em maior ou menor grau a interesses de grupos sociais bem definidos (CABRAL, 2018). Segundo a antropóloga Cabral (2018, p. 10), os patrimônios imateriais “[...] apenas podem ser verdadeiramente conhecidos nos momentos em que são executados ou, indireta e parcialmente, mediante a apreciação dos seus registros e produtos [...]”. Como forma de esclarecer a natureza do patrimônio imaterial e diferenciá-lo do patrimônio material, a autora afirma que “[...] no patrimônio material, o mais importante são as coisas; no patrimônio imaterial, o principal são as pessoas [...]” (CABRAL, 2018, p. 10). Ou seja, se no primeiro tratamos de bens culturais e históricos tangíveis, no segundo verificamos aqueles bens histórico-culturais intangíveis, como as formas de expressão, as celebrações religiosas, os saberes, etc. Nas últimas décadas o patrimônio imaterial se tornou objeto de inúmeros estudos em todo o mundo. Com esse interesse, e com a comprovação de sua relevância para a cultura e para a história humanas, iniciativas visando ao seu conhecimento e à sua preservação começaram a surgir. Em 2003, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) realizou em Paris a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. O objetivo desse encontro foi a criação de instrumentos multilaterais que pudessem resguardar os patrimônios imateriais em todo o mundo, promovendo a conscientização de sua importância e determinando diretrizes para a sua proteção. A UNESCO (2003, documento on-line) reconheceu “[...] a inestimável fun- ção que cumpre o patrimônio cultural imaterial como fator de aproximação, História, memória e patrimônio 5 intercâmbio e entendimento entre os seres humanos [...]”. Devido a essa compreensão do patrimônio imaterial como uma espécie de tesouro da hu- manidade, a Convenção organizada pela UNESCO (2003, documento on-line) elaborou uma definição precisa de patrimônio imaterial: Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expres- sões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos, e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patri- mônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e ao desenvolvimento sustentável. Apesar de estar presente em atividades realizadas pelos seres humanos, devemos reconhecer que existem dificuldades inerentes ao exame desse objeto pelo historiador. Considerando que é um objeto sem materialidade, o patrimônio imaterial possui um nível particular de subjetividade, exigindo abordagens diferenciadas e que se valham de múltiplos instrumentos teóricos e metodológicos. Desse modo, é indispensável que o historiador aproveite os conhecimen- tos de outras áreas, como a história da arte, a antropologia, a sociologia. Assim, atuará interdisciplinarmente, como preconizado de forma pioneira pela escola dos Annales. Em função do caráter singular do objeto cultural imaterial, esse é um procedimento inescapável, pois a sua natureza única exige que perspectivas diferenciadas sejam mobilizadas para a sua devida compreensão. Uma das abordagens possíveis do patrimônio imaterial é a utilização do conceito de representação. O historiador deve se perguntar: quais representações da sociedade que produziram determinados bens imateriais estão presentes nesse objeto? Qual é a importância deles? Para um aprofundamento sobre representações sociais e coletivas, leia autores como Émile Durkheim, Pierre Bourdieu e Roger Chartier, que produziram obras analisando esses fenômenos. História, memória e patrimônio6 Patrimônio genético Dos tipos de patrimônio que vimos até aqui a noção de patrimônio genético é a mais recente. No Brasil, a legislação que protege o patrimônio genético é a Lei nº 13123/2015, que define o patrimônio genético como a “[...] informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos [...]” (BRASIL, 2015, documento on-line). Além disso, o reconhecimento da existência de um patrimônio genético que deve ser valorizado e protegido também está vinculada ao chamado “conhecimento tradicional associado”, que é descrito como a “[...] informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio genético [...]” (BRASIL, 2015, documento on-line). Como se vê, o patrimônio genético pode tratar tanto da riqueza natural da sociedade a qual pertence — e, desse modo, permitir a sua exploração de maneira sustentável e que reverta de maneira justa e igualitária seus benefícios paratoda a sociedade — quanto dos conhecimentos ancestrais produzidos por povos nativos (BERGER FILHO; SILVEIRA, 2020). No caso do Brasil, em função da grande biodiversidade e da existência de povos indígenas, o estudo e a preservação do patrimônio genético se tornam uma prioridade. Além de possuir a maior diversidade biológica do mundo, o Brasil também está entre os países que apresentam maior diversidade cultural, “[...] distin- tas populações indígenas (ao menos 206 sociedades indígenas, que falam 195 línguas, sendo cerca de 50 grupos arredios), além de comunidades não indígenas com fortes laços adaptativos com seus ecossistemas [...]” (BERGER FILHO; SILVEIRA, 2020, p. 268). Toda essa riqueza étnica e cultural compõe o patrimônio genético brasileiro. “Patrimônio genético” e “recurso genético” muitas vezes podem se confundir. Contudo, recurso genético se refere às plantas, a animais e a micro-organismos que compõe um determinado bioma; já o patrimônio genético se refere às “[...] relações ecológicas, sociais, culturais que o consti- tuem [o patrimônio genético] [...]” (BERGER FILHO; SILVEIRA, 2020, p. 288). Desse modo, enquanto o recurso genético apresenta um caráter utilitário, vinculado ao desenvolvimento econômico, o patrimônio genético tem feições históricas e culturais que são constitutivas da sociedade na qual se insere. História, memória e patrimônio 7 Relações entre memória e patrimônio A civilização ocidental e judaico-cristã organizou-se desde a Antiguidade em torno da memória. Quando Jesus, segundo os Evangelhos, ao repartir o pão na Santa Ceia diz “fazei isso em memória de mim”, inaugura uma tradição na qual rememorar o passado por meio de ritualizações se torna uma das formas mais importantes de preservação de legados históricos e, é claro, do patrimônio cultural. Não é à toa que Bloch (2002) afirma que o cristianismo é uma religião de historiadores. Ou então de memorialistas. Na Grécia Antiga, a memória era algo conectado ao sobrenatural, sendo considerada uma divindade: a deusa Mnemósine. Essa deusa teria nascido do amor da Eternidade (Cronos) e da Terra (Gea), tornando-se rainha de Eleutera, que era a terra da total liberdade. Mnemósine era considerada a deusa da justiça e da vingança que unia o passado e o presente e ligava o mundo real (Gea) ao mundo da representação (Cronos). Conta a mitologia, que, de sua ligação com Zeus, o deus do Olimpo, nasceu Clío, a deusa da história. Portanto, é desde a sabedoria dos antigos gregos que se percebe uma forte conexão entre memória e história (XAVIER et al., 2021). É preciso reconhecer as significativas relações entre história e memória que serão fundamentais para a nossa compreensão sobre as ligações entre memória e patrimônio. Um conceito central para esta análise é o de “lugar” ou “lugares de memória”, definido pelo historiador francês Nora (1993, p. 21–22) como: [...] lugares com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diferentes. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivo, só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio que parece um exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal é serve, periodicamente, para uma chamada concentrada da lembrança. Os três aspectos coexistem sempre. Como se vê, é possível estabelecermos que a relação entre a memória e o patrimônio pode ser entendida como uma articulação entre a imaginação, o simbólico e o ritual. Nem somente lugares físicos, tais como museus, me- moriais ou monumentos, devem ser considerados como lugares de resguardo e/ou evocação de memórias. Os bens culturais não tangíveis também são lugares privilegiados para a memoração e rememoração sociais, tendo em História, memória e patrimônio8 vista a relevância que os ritos, as práticas e os saberes possuem na seara do patrimônio histórico. A questão é que enquanto a história registra por escrito e transfere a memória para o exterior dos seres humanos, a memória é espontânea, é um “[...] fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente [...]” (NORA, 1993, p. 11). Ainda de acordo com Nora (1993, p. 9), a memória é: vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. Por outro lado, o motivo principal para que existam e sejam cultivados lugares de memória é revesti-la de alguma materialidade, fazendo-se com que o tempo pare, que o esquecimento seja evitado e, é claro, que ocorra a materialização do imaterial. Afinal, é na memória que ocorre o encontro entre a duração e o instante; é na memória também que a experiência vivida se torna real novamente no presente. O ato em si de memoração tem importante função social: Lembramos menos para conhecer do que para agir, sublinharam os autores mo- dernos [Paul Ricoeur e Pierre Nora]. Nessa perspectiva a memória é menos um entender o passado do que um agir; impossibilidade, portanto, de se cogitar uma memória desinteressada, voltada para o conhecimento puro e descompromissado do passado (SEIXAS, 2004, p. 53). Existem no Brasil muitas instituições que se dedicam a produzir conhecimento histórico tendo a memória como fonte. Nos acervos dessas instituições é possível encontrar uma vasta quantidade de entrevistas, realizadas sob a metodologia da história oral, que vão desde grandes personali- dades até pessoas comuns. Esse tipo de material registra a memória de pessoas de todos os tipos, idades, gêneros, profissões e condições socioeconômicas. Quem tiver interesse em pesquisar esse material deve procurar instituições como o Centro de Pesquisa de História Contemporânea do Brasil (RJ); Museu da Maré (RJ); Museu da Pessoa (SP); Museu da Imagem e do Som (SP); dentre outros. Este tipo de trabalho é um exemplo de como a memória pode ser elaborada como patrimônio histórico-cultural. De acordo com o historiador brasileiro Guimarães (2008), assim como a tarefa dos historiadores é produzir narrativas sobre o passado, o patrimônio também é uma forma de escrita da história. Evidentemente, a sua gramática História, memória e patrimônio 9 e a sua sintaxe, ainda de acordo com Guimarães (2008), apresentam as suas próprias particularidades. O próprio significado do termo patrimônio já nos remete a relações do presente com o passado, a algo que nos é legado e que acabamos por usu- fruir. No mesmo sentido, cabe salientar que essas relações entre o sujeito e o patrimônio sempre são mediadas, não só por objetos, mas também por subjetividades e pela memória. Assim é realizada uma operação que pode ser denominada como “patrimonialização”. Isto é, os sentidos que, individual ou coletivamente, atribuímos a determinados objetos do passado — e a outros não — que são reelaborados no presente e transformados em patrimônio. “É através deste trabalho de produzir sentido para a passagem do tempo que as sociedades humanas constroem suas noções de passado, presente e futuro, como formas históricas e sociais de dar sentido para o transcurso do tempo.” (GUIMARÃES, 2008, p. 19). Ainda segundo Guimarães (2008, p. 19): [...] esses objetos que acreditamos pertencer a um patrimônio de uma coletivi- dade, e hoje até mesmo da humanidade, estabelecem nexos de pertencimento, metaforizam relações imaginadas e que parecem adquirir materialidade a partir da presença desse conjunto de monumentos. O termo patrimônio supõe, portanto, uma relação com o tempo e com o seu transcurso. Em outras palavras, refletir sobre o patrimôniosignifica igualmente pensar nas formas sociais de culturalização do tempo, próprias a toda e qualquer sociedade humana. Na verdade, não é a simples permanência de um determinado objeto, ou qualquer outro vestígio do passado, que configura que estes se tornarão um patrimônio. A questão que discutimos aqui é que o patrimônio também é uma construção intelectual, muitas vezes acadêmica, noutras social e política, exercendo o registro da memória um importante papel nesse procedimento (GUIMARÃES, 2008). Desse modo, temos que o patrimônio resulta de um trabalho que tira o sentido original dos objetos e os transforma em algo novo, com funções diferentes daquelas que lhe foram destinadas originalmente. Logo, ao se definir determinado item como patrimônio histórico, além de ser um ato que lhe dá determinada qualidade, é também transformar a sua natureza. Do mesmo modo que um corpus documental só pode ser reelaborado como fonte histórica pelo ofício do historiador, os objetos, saberes, práticas, etc. só podem ser transformados em patrimônio histórico por meio de procedimentos que envolvem diversos níveis de produção de saberes e poderes, dentre eles a instrumentalização da memória (GUIMARÃES, 2008). História, memória e patrimônio10 O patrimônio histórico e seus espaços Para que possamos analisar as relações entre o patrimônio e os espaços onde este é preservado e objeto da educação, é preciso que trabalhemos com a noção de “educação patrimonial”, que possui a seguinte definição: Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centra- do no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da cultura , em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e sig- nificados, o trabalho da Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural [grifo dos autores] (HORTA; GRUMBERG; MONTEIRO, 1999, p. 3). Como visto, Horta, Grumberg e Monteiro (1999) mencionam “patrimônio cultural”, porém, devemos lembrar que as outras formas de patrimônio (ar- tístico, histórico, etc.) situam-se dentro deste conceito mais abrangente. Logo, a definição nos informa também sobre quais são os principais aspectos do patrimônio histórico. De acordo com a definição utilizada, torna-se evi- dente que o patrimônio histórico de uma sociedade sempre está conectado a processos educativos por meio dos já mencionados “lugares de memória” e/ou museus, memoriais, monumentos, etc. Há uma função eminentemente pedagógica nos diferentes tipos de patrimônio, que servem como uma fonte primária na qual os estudantes podem acessar o passado por meio de sua reelaboração consciente e crítica no presente. O patrimônio histórico acessado tanto em nível individual quanto social permite que se experimente o legado cultural e histórico de um povo. Assim, torna-se fundamental o papel de professores, guias, mediadores, museólogos e outros profissionais capacitados em promover que os estudantes, ou o público em geral, conheçam, se apropriem e valorizem a herança histórico- -cultural que lhes é apresentada e problematizada. Entretanto, a professora Scifoni (2017) alerta para alguns problemas exis- tentes na definição de Horta, Grumberg e Monteiro (1999). Para a pesqui- sadora, o problema maior está no fato de que a definição se resume a “[...] uma determinada metodologia [...] limitando, assim, as possibilidades de compreendê-la como aquilo que designa um campo de atuação e que pode, portanto, contemplar variadas e inúmeras metodologias [...]” (SCIFONI, 2017, p. 6). Essa ressalva é importante na medida em que constatamos que a edu- cação patrimonial não é promovida em apenas um único tipo de instituição, História, memória e patrimônio 11 e mesmo dentro de apenas uma modalidade de espaço de preservação do patrimônio, como os museus, por exemplo, iremos encontrar grande varie- dade: museus culturais, artísticos, biográficos, comunitários, arqueológicos, de ciência e tecnologia, etc. O Museu Nacional, situado no Rio de Janeiro, é o mais antigo do Brasil, criado em 1818, ainda no período colonial. Possui um vasto acervo que engloba diversas áreas do conhecimento, tais como a antropologia, a arqueologia, a geologia, a paleontologia, etc. Suas coleções são compostas por itens de todos os continentes, que vão desde meteoritos até múmias egípcias. No Brasil, as práticas educativas relacionadas ao patrimônio existem desde o século XIX. É digno de nota que os museus históricos apareceram no país antes mesmo das universidades. Entretanto, ainda hoje, a cons- trução de bases teóricas para a educação patrimonial precisa avançar no país, tendo em vista as suas inegáveis deficiências. O trabalho educativo nos museus evoluiu significativamente nas últimas décadas, mas devemos lembrar que não são todas as ações de educação patrimonial que ocorrem nesse tipo de instituição. A escola, os espaços de cultura, os órgãos de preservação, secretarias de estado e até mesmo empresas de consultoria arqueológica, dentre outros, são alguns dos locais privilegiados para essa prática (SCIFONI, 2017). A conexão entre patrimônio histórico e escola deve ser a mais estreita possível. Nos dias de hoje, a educação escolar dá valor cada vez maior à formação cidadã dos estudantes. Desse modo, já não é mais aceitável a ideia de que a escola deva fornecer conhecimentos que sejam destinados apenas à formação de mão de obra, o que seria apenas uma pedagogia utilitária. A formação de cidadãos, conscientes e críticos, deve ser o objetivo principal da escola. É dentro desse contexto que as escolas se tornam ambientes privilegiados para a educação patrimonial (CERQUEIRA, 2005). De acordo com o professor e historiador Cerqueira (2005, p. 92), as rela- ções entre escola e patrimônio implicam reconhecer “[...] o lugar da educa- ção patrimonial na formação de cidadãos; o lugar pedagógico da educação patrimonial entre as atividades curriculares e extracurriculares [...]”. Desse modo, evidencia-se o papel da educação patrimonial no campo pedagógico e na formação da cidadania. Para que o professor tenha sucesso ao desenvolver atividades e projetos sobre patrimônio histórico em suas aulas, é preciso, antes de tudo, o domínio História, memória e patrimônio12 sobre conceitos inerentes ao tema. Uma definição chave, embora não livre de discussão, é a de que o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (hoje comumente chamado de Patrimônio Cultural) consiste no: [...] conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (LEMOS, 1981, p. 43). À primeira vista, podemos destacar a limitação que se procede no texto ao condicionar a vinculação dos “bens móveis ou imóveis” a “fatos memoráveis” ocorridos durante a história do Brasil. Dessa forma, por exemplo, prédios que não estejam diretamente ligados a algum fato “marcante” da historiografia nacional serão preteridos no momento da necessidade de preservação. Em outras palavras, os excluídos, as minorias e os culturalmente esmagados pela cultura dominante perdem a chance de terem suas obras preservadas e sua história contada. Portanto, a definição pode ser adotada, porém interpretada criticamente. É nesse sentido que Possamai (2000, p. 17) faz o seguinte alerta: [...] é na atribuição de determinados valores – nacional, histórico, artístico, arqui- tetônico, paisagístico, afetivo, entre outros – que se opera a definição do que será considerado patrimônio, portanto digno de preservação, e o queserá relegado ao esquecimento. (...) Assim, o valor que é dado a determinado objeto arquite- tônico, por exemplo, não se encontra apenas nas suas características físicas e morfológicas, mas em tudo o que ele passará a representar, como a identidade de determinado grupo, cidade ou nação ou o período histórico ao qual pertenceu, entre inúmeros outros. Essa discussão em si pode ser levada à sala de aula. Os alunos podem ser apresentados às diferentes concepções de patrimônio histórico e como essas se associam às relações de poder e até aos apagamentos que determinados grupos sociais sofreram ao longo da história. Como visto anteriormente, a definição do que é e do que não é patrimônio é uma operação intelectual que pode ou não atender a interesses políticos e ideológicos. Um tipo de atividade muito utilizada por professores de história são os chamados roteiros histórico-culturais. Em síntese, se trata de uma atividade na qual os alunos são levados a percorrer determinado percurso na cidade, onde poderão conhecer, se apropriar e refletir sobre o patrimônio histórico da cidade na qual vivem, que pode tanto ser edificado ou intangível, como um determinado local de produção de saberes, por exemplo. A visita a esses História, memória e patrimônio 13 locais é um instrumento pedagógico bastante útil nas aulas de história, tendo em vista que “[...] os museus, os monumentos e demais bens patrimoniais possibilitam ao indivíduo uma experiência concreta de evocação do passado [...]” (HORTA, 2000, p. 17). Para finalizar, de acordo com as palavras do historiador francês Certeau (1994, p. 28): A história começa no nível do chão, com passos. São miríades, mas não compõem uma série. Não se pode contá-los porque cada unidade tem um caráter qualitativo: um estilo de apreensão táctil e apropriação quinestética. Sua massa fervilhante é uma coleção inumerável de singularidades. Suas trilhas entrelaçadas dão sua forma aos espaços. Eles tecem lugares em conjunto. A esse respeito, os movimentos pedestres formam um desses “sistemas reais cuja existência de fato constrói a cidade”. Não os localizamos, ou melhor, são eles que se espacializam. Assim, a história não é somente construída nas ruas das cidades, mas também pode e deve ser ensinada a partir dessas mesmas ruas, por meio da apreensão dos seus espaços culturais e do seu patrimônio histórico. Referências BERGER FILHO, A. G.; SILVEIRA, C. E. M. Patrimônio genético ou recursos genéticos? Tratamento conceitual face às normas de acesso e repartição de benefícios. Revista Direito Ambiental e Sociedade, Caxias do Sul, v. 10, n. 1, p. 265–291, 2020. Disponível em: http://ucs.br/etc/revistas/index.php/direitoambiental/article/viewFile/8604/4209. Acesso em: 17 fev. 2021. BLOCH, M. Apologia da história: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. BOURDIEU, P. O poder simbólico. 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Desde os seus primórdios, na Revolução Francesa, passando pelo pós-Segunda Guerra Mundial e chegando aos dias de hoje, há uma longa linha evolu- tiva no que concerne a definição do que é e do que não é patrimônio. Na atualidade, há um consenso entre os pesquisadores de que o patrimônio tem ligações muito próximas com o fenômeno da formação da identidade, seja ela individual, seja social. Como forma de compreender essas relações, é relevante que o estudioso do tema se debruce sobre os itens que são, na atualidade, reconhecidos como patri- mônio cultural. Ao determinar as motivações e o contexto no qual uma paisagem, um edifício ou uma prática social são escolhidos como patrimônio de determinado grupo social, de uma nação ou até mesmo do mundo inteiro, aquele que estuda o tema poderá traçar as linhas que conectam patrimônio cultural à identidade. Neste capítulo, você vai estudar a evolução do conceito de patrimônio cultural e ver quais são as contribuições desse conceito para a formação das identidades. Além disso, você vai ver exemplos de patrimônio cultural no Brasil e no mundo. Patrimônio cultural e identidade Eduardo Pacheco Freitas O que é patrimônio cultural? O conceito de patrimônio cultural ainda hoje é objeto de muita confusão, ao mesmo tempo em que é um conceito que se transformou ao longo do tempo. Se perguntarmos para qualquer pessoa qual o significado das expressões patrimônio histórico ou patrimônio cultural, teremos grandes chances de obter como resposta que se tratam de edificações ou monumentos que têm um valor singular e que precisam ser preservados e difundidos para a população. Esse conceito de patrimônio é o mais corrente na sociedade e, embora não esteja completamente incorreto, não dá conta da grande complexidade e variedade de patrimônios culturais existentes (LEMOS, 1981). A etimologia da palavra patrimônio demonstra sua origem na Roma Antiga. Naquela sociedade de cunho patriarcal, a propriedade era sempre do homem que, ao morrer, deixava-a como herança aos filhos e à esposa. O termo foi ressignificado, mas mantendo a ideia de que se trata de um bem herdado pelas novas gerações e que deve ser preservado. Essa definição mais comum de patrimônio é bastante restritiva sobre o que é ou o que não é um patrimônio cultural. Além de o conceito mudar durante a história, a ideia de patrimônio cultural — assim como qualquer outra ideia — não é isenta, surgindo em meio a disputas e conflitos que direcionaram o seu sentido. Por essas características, torna-se evidente que o patrimônio cultural pode privilegiar determinados bens culturais (tangíveis ou intangíveis) em detrimento de outros, promovendo assim significativas exclusões (LEMOS, 1981). O sociólogo francês Pierre Bourdieu entende que o patrimônio cul- tural, em determinadas condições, pode se relacionar à criação de valores simbólicos que são fruto da seleção consciente de objetos culturais que representarão os valores da cultura dominante (ou seja, da classe dominante). Desse modo é formada uma memória coletiva, atrelada ao patrimônio cultural que a estrutura e que é estruturado por ela, que serve “[...] para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto à desmobilização (falsa cons- ciência) das classes dominadas [e] para a legitimação da ordem estabelecida” (BOURDIEU, 1998, p. 10). Bourdieu pensa que a escolha do que é e do que não é patrimônio cultural passa pelos conflitos e contradições sociais, estando ele profundamente relacionado à luta pelo poder. Patrimônio cultural e identidade2 A história do conceito de patrimônio cultural remete à Revolução Francesa. Naquele período, que promoveu o fim do chamado Antigo Regime, a sociedade francesa entrou em um momento de grandes agitações. A queda da monar- quia absolutista e a ascensão da burguesia ao poder político, apoiada pelos trabalhadores, ensejou o desejo de destruição de tudo que resguardasse a memória dos reis franceses e da nobreza. Consequentemente, ocorreu um processo de vandalização de esculturas, monumentos e edificações relacio- nados com o passado absolutista (CHOAY, 2001). De maneira simultânea, o novo regime político pretendeu assumir seus próprios símbolos, que podiam ser criados ou então ressignificados a partir de patrimônios já existentes. É nesse contexto que literatos, historiadores, juristas e pensadores em geral formularam a ideia de patrimônio cultural, visando a salvaguardar da fúria revolucionária o legado monumental e ar- quitetônico francês. É devido a isso que a ideia de patrimônio se tornou profundamente vinculada aos patrimônios materiais (CHOAY, 2001). Outro momento importante na história do patrimônio é o contexto posterior à Segunda Guerra Mundial. Como se sabe, as ideologias políticas que estiveram por trás do trágico conflito foram o fascismo e o nazismo. O horror provocado por esses ideais, que são de caráter excludente, racista e genocida, estimulou, ao fim da guerra, a formação de órgãos como a Organização das Nações Uni- das (ONU) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que têm como uma de suas atribuições promover a união e o entendimento entre os povos. Dentro dessa missão, ONU e Unesco passaram a monopolizar o debate em torno das questões patrimoniais (CHOAY, 2001). Nesse movimento, a comunidade internacional começou a perceber que, nos países que formavam o então chamado “terceiro mundo” (países pobres e ex-colônias), havia uma série de manifestações culturais, especialmente entre populações indígenas ágrafas, que não se enquadravam na concepção de patrimônio cultural vigente. A cultura, os saberes e os fazeres desses povos tinham a mesma relevância que patrimônios materiais como o Coliseu, em Roma, e as pirâmides do Egito — embora não tivessem esse reconhecimento, justamente por se tratar de bens culturais intangíveis. Não havia ainda a noção de que um bem cultural imaterial fosse passível de preservação assim como os bens culturais materiais já eram preservados (CHOAY, 2001). Portanto, até a metade do século XX, o conceito de patrimônio cultu- ral corrente era o de que esse patrimônio deveria se tratar de edificações, monumentos, esculturas de caráter singular e engessado, um bem que não fazia parte da vida cotidiana. Havia uma separação muito concreta entre a população e o seu patrimônio (GRAMMONT, 2006). Ao mesmo tempo, consi- Patrimônio cultural e identidade 3 derava-se que esses bens deveriam ser preservados. Essa ideia está correta, porém, naquele contexto, ela funcionava quase como um “congelamento” do patrimônio no tempo, que assim se tornava um bem ainda mais descolado da realidade, como se estivesse acima e fora da sociedade. Desse modo, com a atualização do conceito de patrimônio cultural, O monumento histórico passou a ser analisado levando-se em conta a integração com seu entorno: começa a polêmica sobre monumentos percebidos isoladamente ou considerados no contexto do conjunto ambiental. A ideia de isolar ou destacar um monumento passa a ser percebida como uma mutilação. O entorno é visto como numa relação essencial com a edificação (GRAMMONT, 2006, documento on-line). Os ditos países do “terceiro mundo” conseguiram colocar no centro do debate a necessidade de uma revisão no conceito de patrimônio que fosse ampliado para além do chamado patrimôniode “pedra e cal”. Assim, em 1982, ocorreu no México uma conferência na qual foi realizada uma nova conceituação de patrimônio, incorporando também o conceito de patrimônio imaterial, que é então inserido nas Cartas Patrimoniais da Unesco. Dentro dessa nova concepção, além dos patrimônios relacionados aos saberes e fazeres das comunidades tradicionais, também entra o patrimônio genético, que diz respeito ao patrimônio natural de determinado povo, como a fauna, a flora e os povos indígenas (BERGER FILHO; SILVEIRA, 2020). As Carta Patrimoniais são documentos elaborados por especialistas, em especial de organismos internacionais, cujo objetivo principal é promover a uniformização das práticas de salvaguarda do patrimônio cultural, bem como orientá-las. Se quiser saber mais a esse respeito, busque na internet e leia o artigo “Cartas Patrimoniais e a preservação do patrimônio cultural de ciência e tecnologia”, de Granato, Ribeiro e Araújo (2018). No Brasil, desde o advento da Constituição Federal de 1988, o patrimônio imaterial é reconhecido como uma importante forma de patrimônio cultural, devendo ser protegido e valorizado na forma da lei. A definição de patrimônio imaterial dada pela Unesco (2003, documento on-line) é a seguinte: Entende-se por ‘patrimônio cultural imaterial’ as práticas, representações, expres- sões, conhecimentos e técnicas — junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados — que as comunidades, os grupos, e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patri- mônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função Patrimônio cultural e identidade4 de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e ao desenvolvimento sustentável. Das formas de patrimônio cultural, talvez o patrimônio imaterial seja aquela mais relevante para a formação da identidade de um povo. É o patri- mônio imaterial que traduz as sociabilidades de determinada comunidade, nas quais estão representadas as suas aspirações e anseios, a sua mitologia e os seus temores, as suas histórias e memórias, as suas práticas e os seus conhecimentos, enfim, a forma como os seres humanos interagem com o mundo individualmente e enquanto sociedade. Por fim, resta cunhar uma definição bastante precisa de patrimônio cul- tural. Para isso, acompanhe as palavras do historiador Olgário Paulo Vogt (2008, documento on-line): Entende-se por patrimônio cultural o conjunto de todos os bens materiais ou imateriais que, pelo seu valor intrínseco, são considerados de interesse e de re- levância para a permanência e a identificação da cultura da humanidade, de uma nação, de um grupo étnico ou de um grupo social específico. Como se vê, o patrimônio cultural é visto, na atualidade, como uma tota- lidade que engloba tanto os bens culturas tangíveis quanto os intangíveis. Desse modo, podemos caracterizar como patrimônios culturais do Brasil tanto a estátua do Cristo Redentor (RJ) quanto as formas de se preparar o chimarrão no Rio Grande do Sul (SILVA, 2012). O primeiro, como se sabe, é um monumento, tendo materialidade; já o segundo pode ser caracterizado como uma “prática [...] que se transmite de geração em geração, é constantemente recriad[a] pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de iden- tidade e continuidade” (UNESCO, 2003, documento on-line). Patrimônio cultural e a formação da identidade O patrimônio cultural, como visto na seção anterior, pode se manifestar em formas materiais ou imateriais. Você vai ver agora a relação que esses bens tangíveis ou intangíveis estabelecem com a identidade e a memória de um Patrimônio cultural e identidade 5 grupo, de um povo ou de uma sociedade. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 216, define o que é patrimônio cultural e enfatiza essas relações: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referên- cia à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 1988, documento on-line). A questão da identidade é uma das mais importantes para a noção de patrimônio cultural, tendo em vista que, junto à memória e às práticas sociais, é a identidade que forma e que dá coesão aos inúmeros grupos que formam o Brasil como povo e nação. Desse modo, é necessário que o patrimônio cultural seja protegido e divulgado, na condição de elemento constitutivo das sociedades que o produzem. No Brasil, para a proteção do patrimônio cultural, foram desenvolvidas algumas ferramentas específicas, como o tombamento e o registro. O tombamento é um instrumento para dar proteção aos bens culturais materiais que constituem patrimônio cultural brasileiro. O registro desempenha o mesmo papel, porém, com bens imateriais. O órgão responsável pelo tombamento e pelo registro é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Se quiser ler uma discussão sobre tombamento e registro, pesquise na internet o artigo “Patrimônio cultural material e imaterial — dico- tomia e reflexos na aplicação do tombamento e do registro”, de Telles (2010). Para entendermos as contribuições do patrimônio cultural para a formação da identidade, primeiro precisamos conceituar identidade. Segundo a historia- dora Maria Amélia Jundurian Corá (2014, p. 80), “[...] as identidades individuais e sociais são importantes para a construção de relações de vínculos que jus- tifiquem a construção de grupos que permitam sentimentos de interação e reconhecimento social”. A identidade é fundamental para a legitimação de um grupo, “[...] mas para isso algo deve nortear essa identidade, como, por exemplo, nacionalidade, regionalidade, etnia, religião, time de futebol ou práticas sociais” (CORÁ, 2014, p. 80). Esses pontos em comum, que também estão passíveis de serem patrimônios culturais, são imprescindíveis para que a identidade exista. O patrimônio cultural contribui com a formação da identidade, pois a cultura é fundamental para a similaridade interna de um povo. Mesmo com valores que se alteram nas manifestações culturais, que são referenciais para todas as etnias e povos que constituem o povo brasileiro, é fundamental que se invista na preservação e na valorização desse patrimônio. Trata-se de uma Patrimônio cultural e identidade6 [...] medida eficaz para garantir que a sociedade tenha a oportunidade de conhe- cer sua própria história e de outros, por meio do patrimônio material, imaterial, arquitetônico ou edificado, arqueológico, artístico, religioso e da humanidade. Pois, através da materialidade, o indivíduo consegue se realizar e afirmar sua identidade cultural, podendo também reconstruir seu passado histórico (ROCHA, 2012, documento on-line). A identidade cultural pode ser classificada em quatro aspectos principais, acompanhe (CORÁ, 2014): � Identidade cultural objetiva: forma identitária que se vincula a valores, crenças, hábitos, costumes, tradições, formas de viver, pensamentos e comportamentos de certa comunidade —estilos de viver e de estar presente em um grupo social. � Identidade cultural subjetiva: refere-se ao “[...] sentimento de pertencer a uma sociedade, na qual cada um tem o sentido de ser ator de sua própria história” (CORÁ, 2014, p. 90). � Identidade cultural externa: está relacionada a um ponto central decerta cultura, que se volta ao passado para obter referenciais que deem sentido ao presente e às ações realizadas neste. Pelo fato de o passado ser “externo” ao indivíduo ou à sociedade, a identidade cultural externa é formada pelos sinais vindos dele de forma que haja uma continuidade histórica e identitária. � Identidade cultural interna: sentimentos que se manifestam no in- divíduo que se reconhece como parte de uma cultura e deseja estar vinculado a ela, afirmando assim as suas raízes. Em todos esses aspectos você pode encontrar o patrimônio cultural agindo. É em torno dele que a identidade e a memória de um povo se constituem e se fortalecem, sendo transmitidas de geração em geração. Daí a importância de o patrimônio ser salvaguardado, para que traços identitários de determinados grupos não desapareçam. A identidade é o sentimento coletivo de pertencimento. É o sentimento de pertencer a determinado grupo ou determinada comunidade. É o senti- mento de vínculo coletivo que permite a identificação da parte com o todo, do indivíduo com a comunidade. A identidade é feita a partir da diferença, isto é, é feita a partir de relações de alteridade, que colocam o indivíduo ou a sociedade frente a frente com o outro, com aquele que é diferente. A identidade é assim delimitada não só pelo que se é, mas, de maneira muito significativa, por aquilo que não se é. Patrimônio cultural e identidade 7 É assim que certo grupo, comunidade ou sociedade se identificam, con- siderando que outro grupo, comunidade ou sociedade não se identificam com eles. O patrimônio cultural e a memória operam para a formação desse vínculo coletivo identitário, afinal, cada grupo, comunidade ou sociedade terá as suas próprias memórias, a sua própria história, o seu próprio patrimônio, que é singular e, logo, diferente daqueles que pertencem e dão identidade a outros grupos (SOUZA, 2017). A memória é a preservação, a evocação e a atualização de alguma informa- ção do passado, bem como a afirmação de uma lembrança. Ela dá presença a algo ausente, fenômeno que pode ser percebido nos chamados lugares de memória, nos quais ritos são realizados visando a preservar no presente e para as gerações futuras o legado recebido do passado. Portanto memória, identidade e patrimônio cultural são elementos profundamente conectados. São lugares de memória, por exemplo, os memoriais, espaços nos quais as pessoas são convidadas a refletir sobre o passado, sobre determinados acontecimentos que fazem parte da memória coletiva e que assim contribuem para a formação da identidade de determinado povo (NORA, 1993). A definição canônica de lugar de memória foi cunhada pelo histo- riador francês Pierre Nora (1993, documento on-line): São lugares com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diferentes. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivo, só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio que parece um exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada da lembrança. Os três aspectos coexistem sempre. Patrimônio cultural e identidade8 Contudo a seleção das memórias a serem preservadas e dos patrimônios a serem cultuados não é neutra. Por trás dos recortes temáticos e temporais sempre haverá interesses de determinados grupos sociais. O processo pode ser de reelaboração do passado e até mesmo de inversão de sentidos. Um caso clássico no Brasil de reelaboração do passado é o culto à me- mória dos bandeirantes, que é muito forte especialmente no estado de São Paulo. Os bandeirantes, hoje é sabido, cometeram muitas atrocidades contra as populações indígenas no interior do Brasil, matando e escravizando uma grande quantidade de índios ao longo dos séculos, contribuindo assim para a dizimação das populações nativas do país. No entanto, entre 1890 e 1930, portanto no período da Primeira República, houve a construção de uma mitologia em torno desses “caçadores de índios”, na qual eles são retratados como heróis nacionais. Essa elaboração atendeu à necessidade do novo regime político republicano em eleger e celebrar mitos pátrios. É um exemplo prático de como a reelaboração da memória histórica e a construção de patrimônios culturais, que impactam diretamente na identidade de um povo, podem ter um elevado grau de artificialidade e de revisionismo histórico (SOUZA, 2007). Exemplos brasileiros e mundiais de patrimônio cultural O Estado brasileiro registra e cria ações de preservação do nosso patrimônio cultural por meio do Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (IPHAN). Em nível estadual também podem ser encontrados órgãos que iden- tificam e preservam os mais variados tipos de patrimônio cultural. Segundo o IPHAN, existem três grandes grupos de patrimônio no país: patrimônio material, patrimônio imaterial e patrimônio arqueológico. Nesta seção, você vai conhecer as características de alguns dos patrimônios inseridos nesses três grupos. Além disso, vai ver exemplos de patrimônios culturais brasileiros que também são considerados patrimônios da humanidade. Patrimônio cultural e identidade 9 Patrimônio cultural material Em 19 de setembro de 2018, foi estabelecida pela Portaria nº 375 a Política de Patrimônio Cultural Material (PPCM), que serve, atualmente, como guia para: […] ações e processos de identificação, reconhecimento, proteção, normatização, autorização, licenciamento, fiscalização, monitoramento, conservação, interpreta- ção, promoção, difusão e educação patrimonial relacionados à dimensão material do Patrimônio Cultural Brasileiro (BRASIL, 2014a, documento on-line). Portanto o patrimônio cultural material brasileiro tem hoje uma sólida legis- lação, que visa não somente a sua proteção, mas a uma enormidade de ações que esclarecem os procedimentos estatais que devem estar em sua base. O patrimônio material pode ser descrito sumariamente como aquele “voltado para os testemunhos físicos do passado” (DE PAOLI, 2012, p. 151). Quer dizer, o objeto patrimonial material sempre se apresentará como bens culturais tangíveis, que vão desde edificações até monumentos e museus, patrimônios que remetam a aspectos históricos e culturais relevantes para determinada sociedade. Um dos aspectos mais importantes das modernas diretrizes sobre o pa- trimônio cultural material no Brasil é o reconhecimento de que ele não pode ser dissociado da sua comunidade. Isto é, o patrimônio material não é mais visto como algo estanque e separado da realidade cotidiana. Pelo contrário, há esforços no sentido de integrá-lo à paisagem natural e humana, de forma que faça sentido para a sociedade que o comporta (BRASIL, 2014a). Para isso, existem instrumentos e perspectivas que são adotados para uma abordagem racional e produtiva do patrimônio. Um deles é a Declaração de Lugares de Memória, que tem por objetivo promover o reconhecimento de bens culturais que, mesmo tendo perdido sua completa materialidade, ainda assim são valorizados simbolicamente. Mas, como lugar de memória, também podem ser reconhecidos patrimônios materiais que sejam de percepção e apreensão direta mais complexa quando pensados em seu todo. É o caso do plano urbanístico de Boa Vista, capital de Roraima (RAMALHO, 2012). Outro importante instrumento de preservação utilizado pelo IPHAN é o cha- mado tombamento. Este é o instrumento de proteção do patrimônio histórico- -cultural usado há mais tempo pelo IPHAN. Instituído em 1937, o tombamento faz com que os bens patrimoniais tombados tenham de seguir uma série de regras colocadas pelo instituto. Em primeiro lugar, eles não podem ser derrubados.Além disso, qualquer modificação na estrutura deve ser supervisionada pelo IPHAN. Os patrimônios culturais materiais podem ser inscritos em quatro tipos de livros do tombo: Livro do Tombo Histórico; Livro do Tombo das Belas Artes; e Livro do Tombo das Artes Aplicadas. Veja mais sobre cada um deles (BRASIL, 2014b): Patrimônio cultural e identidade10 � Livro do Tombo Histórico: nele são inscritos os patrimônios culturais materiais que têm destacado valor histórico. Desse modo, ele é formado pela totalidade dos bens móveis e imóveis os quais sejam do interesse da coletividade a sua conservação. Nesse livro podem ser inscritos bens como edificações, chafarizes, centros históricos, quadros, xilogravuras etc. Atualmente, existem milhares de bens tombados e registrados no Livro do Tombo Histórico; talvez o mais conhecido deles seja o Cristo Redentor, estátua erigida no Penhasco do Corcovado, no Rio de Janeiro, em 1931. O seu tombamento ocorreu em setembro de 2008. � Livro do Tombo das Belas Artes: reúne os bens patrimoniais artísticos. A expressão belas-artes se refere ao tipo de arte que não é utilitária, como são as artes aplicadas e decorativas. Assim, nesse livro são registrados quadros, esculturas e estilos arquitetônicos, por exemplo. � Livro do Tombo das Artes Aplicadas: nele são inscritos os bens culturais de valor artístico associado à função utilitária. Exemplos são o Cais do Porto: pórtico central e armazéns, em Porto Alegre, tombado em 1983, e a Estação da Luz, em São Paulo, importante estação rodoviária construída no século XIX e tombada em 1996. O bem patrimonial, devido às suas características, pode ser inscrito em mais de um livro, como as ruínas do Engenho São Miguel e Almas: casa e capela, localizadas na cidade de São Francisco do Conde (BA), que estão registradas no livro histórico e no de belas artes desde 1944. Outro exemplo é o conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico de Cuiabá (MT), que está inscrito em três livros: os dois mencionados e também o Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico (BRASIL, 2014b). O Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico congrega os bens rela- cionados aos vestígios humanos pré-históricos ou então aqueles que têm valor etnográfico para determinados grupos sociais. Além disso, são reunidos nesse livro o patrimônio natural e paisagístico, como jardins e conjuntos arquitetônicos que estejam integrados à natureza. São exemplos o Centro Histórico de Antonina, cidade paranaense situada em uma das primeiras páreas exploradas pelos portugueses no sul do Brasil, que teve em seu ambiente natural um fator determinante para a sua fundação; e a Serra da Barriga (AL), patrimônio natural tombado em 1986. Patrimônio cultural e identidade 11 Diversos patrimônios culturais brasileiros também foram registrados como patrimônios culturais da humanidade. Atualmente, já são mais de 20, que se encontram divididos entre as categorias que você acabou de ver. Alguns exemplos estão listados a seguir (BRASIL, 2014c, documento on-line): � Cais do Valongo (RJ): o mais importante porto de entrada de escravos africanos no Brasil, situado na cidade do Rio de Janeiro. Estima-se que mais de 1 milhão de escravos desembarcaram no Cais do Valongo. A preservação de suas ruínas e o reconhecimento como patrimônio da humanidade são extremamente importantes para a história e a memória da escravidão. � Paisagem do Rio de Janeiro: tombada em 2012 pela Unesco, a paisagem carioca entre o mar e os morros foi reconhecida como uma beleza paisagística singular, contendo em seu complexo também o Parque Nacional da Tijuca, o Jardim Botânico, o Corcovado e a Estátua do Cristo Redentor. � Brasília (Distrito Federal): por ser considerada uma obra-prima da arquitetura moderna, passou a fazer parte da lista dos bens culturais patrimoniais da humanidade. Brasília foi a primeira cidade moderna a entrar na lista. Patrimônio cultural imaterial O patrimônio cultural imaterial é aquele que não pode ser tocado, mas que faz parte da vida de uma comunidade ou nação na forma de manifestações artísticas, saberes, práticas e festividades. No Brasil, o IPHAN também desen- volve ações no sentido de salvaguardar esse tipo particular de patrimônio. Enquanto o patrimônio material é tombado, o patrimônio imaterial é registrado em quatro tipos de livros: Livro de Registro dos Saberes, Livro de Registro das Celebrações, Livro de Registro das Formas de Expressão e Livro de Registro dos Lugares. Acompanhe (BRASIL, 2014d, documento on-line): � Livro de Registro dos Saberes: nele são registrados os bens imateriais que reúnem conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidade. Desse modo, o IPHAN cataloga os conhecimentos tradicionais de comunidades em todo o Brasil. São modos de conhecer o mundo muito associados a uma cultura local, a uma identidade es- pecífica e à memória de certos grupos sociais. Atualmente, há dezenas de patrimônios culturais imateriais registrados nesse livro. Patrimônio cultural e identidade12 Um exemplo bastante ilustrativo de um saber tradicional é o ofício dos mestres de capoeira, registrado pelo IPHAN em 2008. Os mestres são os responsáveis por resguardar e transmitir os conhecimentos sobre a arte da capoeira (que também é registrada como patrimônio imaterial, mas em outro livro). Por ser uma importante manifestação cultural afro-brasileira, todos os aspectos em torno da capoeira devem ser preservados e valorizados, sendo um dos mais importantes deles justamente o ofício desses mestres. Outros exemplos de saberes registrados são o ofício de sineiro (MG), o ofício das baianas de acarajé (BA) e o sistema agrícola tradicional do Rio Negro (AM). � Livro de Registro das Celebrações: agrega as festividades e os rituais relacionados às vivências coletivas em campos como a religião e o entretenimento. Logo, são preservadas celebrações que formam vín- culos de memória, identidade e cultura em determinada comunidade. O círio de Nossa Senhora de Nazaré, com sua origem em Belém (PA), é uma das celebrações mais importantes do Brasil, sendo reconhecida também pela Unesco como patrimônio da humanidade. A festa religiosa em torno da santa católica que representa a mãe de Jesus acontece desde 1793 e reúne, a cada mês de outubro, milhares de peregrinos e turistas, do Brasil e do exterior, nos diversos municípios paraenses nos quais ocorre a celebração. Algumas das muitas outras celebrações registradas são o ritual yaokwa do povo indígena enawenê-nawê (MT), complexo cultural do bumba meu boi , do Maranhão, e o bembé do mercado (BA). � Livro de Registro das Formas de Expressão: como o nome já indica, nesse livro você encontra formas populares de expressão artística. As formas de expressão são entendidas também como formas de comunicação típicas de uma comunidade ou região, que se apresentam como literatura, música, artes plásticas ou cênicas etc. A capoeira em si, como forma de expressão e arte, está registrada no Livro de Registro das Formas de Expressão, mas não somente nele. A roda de capoeira é considerada pela Unesco um patrimônio cultural imaterial da humanidade. Outras formas de expressão registradas pelo IPHAN são o maracatu (nação e de baque solto) (PE), o samba de roda do recôncavo baiano, o frevo (PE) e a arte kusiwa — pintura corporal e arte gráfica oiampi. Esta última também é patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Unesco desde 2003. Patrimônio cultural e identidade 13 � Livro de Registro dos Lugares: nele são inscritos santuários, feiras, mercados e paisagens que se relacionam a práticas culturais de certa coletividade. Como exemplos de lugares registrados nesses livros podemos apontar a feira de Caruaru (PE), a cachoeira de Iauaretê — lugar sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri (AM), a feira de Campina Grande (PB) e a Tava, lugar de referência para o povo guarani (RS). Esta última fica no mesmo local onde situam-seas ruínas de São Miguel das Missões, patrimônio da humanidade e patrimônio arqueológico brasileiro. Patrimônio arqueológico Atualmente, o Brasil conta com 18 patrimônios arqueológicos tombados pelo IPHAN. Desses, 11 são sítios arqueológicos e sete são coleções arqueológicas que se encontram em museus. Os bens arqueológicos são reconhecidos como um importante registro da história e da identidade de um povo. No Brasil, o patrimônio arqueológico é protegido por lei desde 1937. Em 1961 as leis foram aprimoradas, tornando a sua proteção ainda mais específica, ideia reforçada pela Constituição Federal de 1988. Portanto qualquer tipo de ataque ao patrimônio arqueológico brasileiro poderá ser punido por lei. O patrimônio arqueológico brasileiro está localizado em 12 estados: Ala- goas, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Piauí, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Dos 18 patrimônios arqueológicos brasileiros, três são também patrimônios culturais da huma- nidade, acompanhe (BRASIL, 2014c, documento on-line): � Parque Nacional Serra da Capivara (PI): criado em 1979, tem como objetivo preservar os vestígios arqueológicos da mais antiga ocupação humana já descoberta na América do Sul. Está registrado na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco desde 1991. Tem uma área de 130 mil hectares, na qual estão distribuídos 400 sítios arqueológicos que, em grande parte, têm painéis com pinturas e gravuras rupestres. � Missões Jesuíticas Guaranis (RS): localizado na cidade de São Miguel das Missões, esse patrimônio é constituído pelas ruínas de uma grande igreja e de outras edificações das missões jesuíticas estabelecidas no local entre os séculos XVII e XVIII. Além disso, no interior do sítio arqueológico há o Museu das Missões, no qual são preservadas di- versas estátuas de Jesus e de santos que ficavam na igreja. Tornou-se patrimônio mundial em 1983. Patrimônio cultural e identidade14 � Cais do Valongo (RJ): já mencionado, o Cais do Valongo, lugar de memória extremamente importante para a história da escravidão africana, foi inscrito como patrimônio mundial em 2017. Como visto, a Unesco se dedica a inscrever patrimônios culturais de todo o mundo. Na lista encontram-se desde paisagens naturais, como as Montanhas Rochosas (Canadá), os Lagos de Plitvice (Croácia) e o Monte Fuji (Japão), até localidades inteiras, como a Ilha de Páscoa (Chile), a cidade de São Peters- burgo (Rússia) e a Cidade Proibida (China). Edificações monumentais também fazem parte da lista, como o Taj Mahal (Índia), as Pirâmides de Gizé (Egito), a Muralha da China, o Palácio de Versalhes (França) e a Acrópole de Atenas (Grécia) (UNESCO, 2021). Os centros históricos de muitas cidades ao redor do mundo estão inscritos na lista: Roma (Itália), Tallinn (Estônia), Florença (Itália), Viena (Áustria), Bruges (Bélgica), Praga (República Tcheca), Varsóvia (Polônia), Quebec (Canadá), Macau (China) e diversos outros. Os monumentos também são contemplados com a honraria de fazerem parte do patrimônio cultural da humanidade: Grande Buda de Leshan (China), Estátua da Liberdade (EUA), Stonehenge (Inglaterra) e outros (UNESCO, 2021). Referências BERGER FILHO, A. G. B. F.; SILVEIRA, C. E. M. Patrimônio genético ou recursos genéticos? Tratamento conceitual face às normas de acesso e repartição de benefícios. Revista Direito Ambiental e Sociedade, v. 10, n. 1, p. 265–291, 2020. Disponível em: http://ucs. br/etc/revistas/index.php/direitoambiental/article/viewFile/8604/4209. Acesso em: 18 fev. 2021. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 fev. 2021. BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Brasília: IPHAN, 2014c. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/. Acesso em: 18 fev. 2021. BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Livros de registro. Brasília: IPHAN, 2014d. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/122. Acesso em: 18 fev. 2021. BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Livros do tombo. Brasília: IPHAN, 2014b. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/608. Acesso em: 18 fev. 2021. BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Para entender o contexto de elaboração da Política de Patrimônio Material. Brasília: IPHAN, 2014a. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1633. Acesso em: 18 fev. 2021. Patrimônio cultural e identidade 15 CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Editora UNESP, 2001. CORÁ, M. A. M. J. Do material ao imaterial: patrimônios culturais do Brasil. São Paulo: Fapesp, 2014. DE PAOLI, P. S. Patrimônio material, patrimônio imaterial: dois momentos da construção da noção de patrimônio histórico no Brasil. In: CHUVA, M.; NOGUEIRA, A. G. R. (org.). Patrimônio cultural: políticas e perspectivas de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2012. GRAMMONT, A. M. 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Patrimônio cultural e identidade16 Leituras recomendadas KÜHL, B. M. Notas sobre a Carta de Veneza. Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 18, n. 2, p. 287–320, dez. 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/anaismp/ article/view/5539/7069. Acesso em: 18 fev. 2021. POSSAMAI, Z. R. O patrimônio em construção e o conhecimento histórico. Ciências & Letras, n. 27, p. 13–24, jan./jun. 2000. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Patrimônio cultural e identidade 17 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Descrever o conceito de preservação aplicado ao patrimônio histórico e cultural. > Apresentar diferentes órgãos internacionais voltados à preservação do patrimônio. > Identificar diferentes políticas internacionais de memória e preservação do patrimônio. Introdução Todo patrimônio histórico e cultural é resultado de escolhas que podem ser feitas por governos, especialistas ou movimentos organizados da sociedade. Isso significa que não há uma existência concreta de um patrimônio até ele ser pensado e elaborado como objeto visando a atingir determinados fins. Esses fins sempre estarão conectados à ideia de preservação. Nenhum patrimônio histórico e cultural é construído intelectualmente se o objetivo final não for, além da sua preservação como bem cultural em si, a salvaguarda da memória e da identidade de um grupo social. Na segunda metade do século XX, a questão da preservação do patrimônio histórico e cultural esteve no centro dos debates de órgãos multilaterais e de abrangência mundial, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, Preservação do patrimônio histórico e cultural Eduardo Pacheco Freitas a Ciência e a Cultura (Unesco), que, por meio de diversas convenções, definiu as características desse tipo de patrimônio. Além disso, a Unesco também estabeleceu as diretrizes para a salvaguarda desses patrimônios, visando, assim, à solidariedade entre as nações em torno da preservação de bens culturais que carregam valores comuns a toda a humanidade. Neste capítulo, você poderá refletir sobre o conceito de preservação quando aplicado ao patrimônio histórico-cultural, relacionando-o com outros conceitos importantes, como “lugar de memória”, “presentificação” e “patrimonialização”. Além disso, você conhecerá também os órgãos internacionais responsáveis por implementar políticas de preservação patrimonial, bem como as características dessas políticas. Patrimônio e preservação Quando tratamos do conceito de “preservação” dentro do campo do patrimô- nio histórico e cultural, devemos pensar a questão a partir de outro conceito fundamental, o de “lugar de memória”, conforme utilizado pelo historiador francês Pierre Nora. Em busca de apreendermos os usos e a importância de determinados espaços que acabam sendo considerados lugares de memória, devemos compreender que o conceito abarca a ideia de que existem espaços e temporalidades que passam por um processo de sacralização, processo este realizado por um grupo social específico e, em geral, no espaço urbano. Logo, já podemos inferir que há uma estreita relação entre o lugar de memória e as iniciativas de preservação patrimonial (PESAVENTO, 2002). Os lugares de memória ganham significativa importância nas sociedades nas quais estão inseridos a partir do momento em que se tornam parte da memória coletiva, da memória do passado e das origens em comum. É nesse processo que ocorre a formação da identidade social e cultural de um deter- minado grupo, povo ou nação. Essa identidade faz com que as pessoas que vivem nessas sociedades desenvolvam um sentimento de pertencimento, sentindo-se parte daquele lugar ao mesmo tempo que sentem que aquele lugar faz parte delas. É nesse sentido também que se forma uma relação muito próxima entre patrimônio histórico-cultural, identidade e memória. Sobre esta última, a historiadora Sandra Jatahy Pesavento (2002, p. 26) des- taca que se trata da “[...] presentificação de uma ausência no tempo, que só se dá pela força do pensamento — capaz de trazer de volta aquilo que teve lugar no passado”. Preservação do patrimônio histórico e cultural2 Essa “presentificação” nada mais é do que tornar presente aquilo que está ausente por meio de sua representação, seja na forma de um objeto, um local, uma edificação, um monumento, seja na forma de um rito, um saber, uma prática, etc. É a evocação e a atualização do passado em forma de memória, que consequentemente se cristaliza como patrimônio. E aí está o ponto-chave para a necessidade da preservação deste. Preservar o patrimônio é preservar a identidade e a memória (Figura 1). É celebrar as origens e a história de uma determinada comunidade, salvaguardando no presente, sem deixar de mirar o futuro, o legado cultural herdado do passado. Figura 1. Ouro Preto, em Minas Gerais, é praticamente um museu a céu aberto. Patrimônio cultural brasileiro e da humanidade, é um símbolo da preservação patrimonial, em que uma vasta área urbana é preservada como memória do passado colonial, tornando-se palco de intensas atividades culturais todos os anos. Fonte: Silva (2014, documento on-line). Quando contemplamos um local histórico, experimentamos as lembranças do passado que esse espaço evoca. Assim, somos levados a experimentar sensações e sentimentos que nos conduzem pelos labirintos do tempo até o momento no qual os acontecimentos que se desenrolaram em tal espaço ocorreram. Desse modo, vivenciamos no presente as memórias de um passado mais ou menos longínquo que dialogam com o momento atual e, mais do que isso, parecem refletir como aqueles eventos pretéritos fundamentam, em grau maior ou menor, a realidade vivida no presente. Preservação do patrimônio histórico e cultural 3 Essa rememoração pode ser desencadeada por lugares materiais, tais como monumentos, praças e edificações, que, em sua materialidade, têm a capacidade de nos fornecer um vislumbre de como era a vida das pessoas do passado que os utilizaram. Logo, cada patrimônio preservado carrega consigo não somente os tijolos e outros materiais com os quais é edificado, mas so- bretudo os sentidos e a própria vida que existiu ali no passado (TOMAZ, 2010). Pela patrimonialização desses locais é que se forma uma memória coletiva, bem como uma representação coletiva do que significa o passado em comum. As memórias coletivas podem ser assim designadas quando correspondem a memórias circunscritas a um certo grupo, tendo como função, de acordo com Pollak (1989, p. 7), “[...] manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua comple- mentaridade”. Com isso em vista, torna-se mais fácil ver como o conceito de memória está atrelado ao conceito de preservação do patrimônio histórico e cultural. Ainda, segundo o mesmo autor, a memória também é uma: [...] operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, integra-se [...] em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações, etc. (POLLAK, 1989, p. 7, grifo nosso). Os patrimônios culturais e históricos não são patrimônios em si. Pelo contrário, são fruto de sofisticadas elaborações intelectuais que lhes atribuem sentidos que eles não tinham originalmente. É a essa operação, comumente descrita como a ativação dopatrimônio cultural (ou histórico), que damos o nome de “patrimonialização”. Esse processo de ativação está vinculado aos esforços de preservação de um determinado bem cultural, tangível ou intangível, por parte de antropólogos, historiadores, museólogos, etc. São esses especialistas que vão construir o patrimônio, atribuindo-lhe novos usos e significados e revestindo-lhe de legitimidade como lugar de memória, cultura e história. Por exemplo, um matadouro do século XIX, originalmente edificado para o abate de gado, no século XXI, se patrimonializado, poderá se tornar um museu ou outro tipo de espaço cultural, assumindo nesse processo novos valores, significados e usos. Logo, o momento inicial da preservação de qualquer patrimônio histórico-cultural é a sua patrimonialização. Preservação do patrimônio histórico e cultural4 Para conhecer uma discussão sobre o conceito de patrimonialização, sugerimos a leitura do artigo “Patrimonialização e transformação das identidades culturais” (2003), de autoria do antropólogo Xerardo Pereiro Pérez. Uma das finalidades da preservação de patrimônios históricos e culturais deve ser a conservação de elementos que traduzam a vida cotidiana da sociedade que produziu aquele bem que se torna objeto de salvaguarda. O tombamento e/ou o registro de bens culturais materiais e imateriais deve ter como um dos seus propósitos anotar para as novas e futuras gerações o estilo de vida de um grupo ou sociedade. Sendo assim, há a tendência de que sejam objeto de preservação os patrimônios que tenham significados para a coletividade que vive nos seus arredores. Desse modo, o procedimento de pre- servação do patrimônio material ou imaterial se entrelaça com a preservação da memória em si da cultura que o criou — desde culturas muito específicas, como, por exemplo, aquela que criou algum tipo de dança ritual praticada no interior do Brasil, até culturas mais abrangentes, como a afro-brasileira, que tem inscritos como patrimônios da humanidade o Cais do Valongo, o samba de roda do Recôncavo Baiano e a roda de capoeira. Órgãos internacionais de preservação O principal órgão mundial que incentiva e promove a preservação de bens considerados significativos para a humanidade é a Unesco. Criada em 1945, pela Organização das Nações Unidas (ONU), e com sede em Paris, a instituição tem entre suas especialidades a salvaguarda dos patrimônios culturais da humanidade, visando a contribuir: “[...] para a manutenção da paz e da segurança ao estreitar, pela educação, pela ciência e pela cultura, a colaboração entre as Nações, a fim de assegurar o res- peito universal pela justiça, pela lei, pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais” (UNESCO, 1980 apud PRIMO, 1999, p. 5). Desse modo, podemos afirmar que a Unesco vê também na preservação dos mais diversos patrimônios históricos e culturais em todo o mundo uma iniciativa que ajuda a promover a união entre os povos. Preservação do patrimônio histórico e cultural 5 Um dos momentos mais relevantes para a formatação da atual compreensão de patrimônio cultural e de como ele deve ser preservado ocorreu em 1972, quando a Unesco realizou a Convenção do Patrimônio Mundial. Nesse encontro, surge o entendimento sobre a necessidade de incentivos para a preservação de bens culturais tidos como fundamentais para a humanidade, ficando definido que os países signatários da convenção poderiam “[...] indicar bens a serem ins- critos na Lista do Patrimônio Mundial” (MENEZES, 2010, p. 64). Esse foi o primeiro passo para que despertasse, em todo o mundo, uma consciência patrimonial. No entanto, por bastante tempo a atenção se voltou exclusivamente para o patrimônio material. Foi apenas no ano de 1985, em uma conferência ocorrida no México, que o conceito de patrimônio foi repensado, quando se incorporou ao escopo da preservação também o patrimônio imaterial, que foi formalizado por meio das chamadas “cartas patrimoniais” da Unesco e da Declaração do México. No interior dessa nova concepção, além dos patrimônios relacionados aos saberes e fazeres das comunidades tradicionais, também foi reconhecido o patrimônio genético, que diz respeito ao patrimônio natural de um determinado povo, como a fauna, a flora e os povos indígenas (BERGER FILHO; SILVEIRA, 2020). De acordo com Kühl (2010, p. 287), as cartas patrimoniais são: [...] documentos — em especial aquelas derivadas de organismos internacionais — cujo caráter é indicativo ou, no máximo, prescritivo. Constituem base deontológica para as várias profissões envolvidas na preservação, mas não são receituário de simples aplicação. Assim sendo, as cartas patrimoniais têm como um dos seus principais objetivos uniformizar as práticas de salvaguarda do patrimônio cultural, bem como orientá-las (GRAMMONT, 2006). No ano de 2003, uma nova convenção foi realizada pela Unesco, em Paris: a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial. Dessa vez, o objetivo foi criar mecanismos multilaterais que permitissem proteger os patrimônios imateriais da humanidade, ajudando a criar uma cultura de conscientização sobre a sua importância e, ao mesmo tempo, estabelecendo as diretrizes para a sua salvaguarda. Nesse encontro, que reuniu especialistas de todo o mundo, a Unesco reafirmou “[...] a inestimável função que cumpre o patrimônio cultural imaterial como fator de aproximação, intercâmbio e entendimento entre os seres humanos” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, 2003, p. 2). Em conformidade com essa compreensão da natureza do patrimônio imaterial como um tipo de tesouro da humanidade, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial definiu “patrimônio cultural imaterial” como: Preservação do patrimônio histórico e cultural6 [...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas — junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados — que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e ao desenvolvimento sustentável (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, 2003, p. 3). Importa salientar que a Unesco não se ocupa exclusivamente da preserva- ção dessa modalidade de patrimônio. Inúmeros patrimônios materiais foram inscritos pelo órgão ao longo de sua existência, como a Muralha da China, as Pirâmides de Gizé, o monumento pré-histórico de Stonehenge, entre outros. Porém, nas últimas décadas, com o reconhecimento do patrimônio imaterial, este tem sido objeto de preocupações especiais por parte da Unesco e de especialistas ao redor do globo. Desde a sua fundação, a Unesco já realizou dezenas de convenções tratando sobre questões pertinentes à preservação dos patrimônios da humanidade. Para conhecer detalhes das deliberações e ratificações de cada uma dessas convenções, sugerimos a leitura do material “As Convenções da Unesco e o patrimônio: elementos para uma abordagem integrada”, elaborado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em seu campo de atuação, a Unesco recebe a contribuição de outros órgãos não governamentais que auxiliam nas questões museológicas e de patrimônio, como o Conselho Internacional de Museus (Icom), o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) e o Conselho da Europa.O Icom, “[...] com sede em Paris, foi criado em 1946 para promover os inte- resses da museologia e de outras disciplinas relacionadas com a gestão e as atividades dos museus” (PRIMO, 1999, p. 6). Segundo seu estatuto, aprovado em 1995, o Icom tem como objetivos: a) encorajar e apoiar a criação, o desenvolvimento e a gestão profissional dos museus de todas as categorias; b) dar melhor a conhecer e a compreender a natureza, as funções e o papel dos museus ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento; c) organizar a cooperação e a entreajuda entre os museus e os Preservação do patrimônio histórico e cultural 7 membros da profissão museológica nos diferentes países; d) representar, defender e promover os interesses de todos os profissionais de museu sem exceção; e) fazer progredir e difundir o conhecimento no âmbito da museologia e outras disciplinas relacionadas com a gestão e as atividades do museu (ESTATUTOS DO ICOM, 1995 apud PRIMO, 1999, p. 6). Desse modo, o Icom pode ser caracterizado como um órgão que trabalha a questão da preservação patrimonial a partir de uma perspectiva museológica. Apesar de não ser uma entidade pertencente à Unesco, o Icom atua em âmbito transnacional, contando com mais de 40 mil membros em mais de 140 países, e executa parte do programa da Unesco para a valorização e a proteção dos museus (CONSELHO INTERNACIONAL DE MUSEUS, c2021). Outro órgão internacional que integra a lista de entidades internacionais que trabalham pela preservação do patrimônio histórico-cultural é o Icomos, fruto das recomendações oriundas da Carta de Veneza. O Icomos desempenha uma enorme importância junto à Unesco, executando o papel de consultor para a elaboração de listas de patrimônio cultural. Assim como o Icom, o Icomos também conta com milhares de membros, que estão distribuídos em mais de 150 países (CONSELHO INTERNACIONAL DE MUSEUS, c2021). Já o Conselho da Europa, sediado em Estrasburgo, “[...] foi criado em 1949 e tem como objetivo propor a adoção de ações conjuntas no que se refere aos aspectos sociais, econômicos, administrativos, culturais, científicos e jurídicos, contribuindo assim para estreitar os laços da União Europeia” (PRIMO, 1999, p. 10). Esse órgão foi um dos responsáveis, a partir da década de 1970, pela renovação da noção de patrimônio, propondo que esta abrangesse também elementos naturais, humanos, técnicos, industriais, referentes à arquitetura contemporânea, etc. (PRIMO, 1999). A Carta de Veneza foi o documento final elaborado pelo II Congresso de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, ocorrido em 1964, na Itália. Também conhecido como Carta Internacional para a Conservação e o Restauro de Monumentos, o documento deu origem ao Icomos e estabeleceu diretrizes para a preservação de monumentos históricos em âmbito mundial. Atualizando a Carta de Atenas (1931), que já abria discussões em torno do tema, a Carta de Veneza foi adotada tanto pela Unesco quanto pelo Icomos. Essas e outras Cartas Patrimoniais estão disponíveis para download no site do Iphan, na seção “Acervos e Publicações”. Preservação do patrimônio histórico e cultural8 Políticas internacionais de preservação do patrimônio Os patrimônios culturais e históricos existentes em todo o mundo são im- portantes não apenas para as nações que os abrigam. Pelo contrário, esses patrimônios carregam de uma forma ou de outra aspectos culturais que dizem respeito a toda a trajetória humana ao longo do tempo. Desse modo, tornam-se evidentes a sua importância e a consequente necessidade de inserção do tema da preservação do patrimônio histórico-cultural em esferas como a do Direito Internacional Público, o que ocorre a partir das já citadas convenções realizadas pela Unesco e pelos outros órgãos internacionais que se debruçam sobre a causa. Nesse contexto, a Unesco ocupa papel central, já que é por meio das suas recomendações e convenções que os patrimônios ameaçados recebem projetos de preservação (MOURA, 2012). Um aspecto que deve ser salientado é que a preservação dos bens culturais, sejam eles materiais ou imateriais, está vinculada à preservação da cultura de um povo em si, visto que a degradação e a eventual extinção do seu pa- trimônio podem implicar a sua própria extinção, ao extinguir a sua memória, a sua história e a sua identidade. De fato, esse cenário indica, além da perda específica e local, uma perda mais abrangente, de caráter universal, tendo em vista que tratamos aqui de uma expressão da cultura humana (MOURA, 2012). A perda de um patrimônio histórico corresponde à quebra dos vínculos do presente com o passado que o engendrou. Sendo assim, um patrimônio que deixa de ser protegido expõe a humanidade a riscos que envolvem a sua própria identidade, bem como suas tradições, seus saberes, seus fazeres, etc. Daí a relevância de políticas internacionais para a preservação do patrimônio que visam a uma padronização mundial de preservação patrimonial (MOURA, 2012). Como se vê, o patrimônio histórico-cultural, mesmo quando circunscrito a grupos, comunidades ou nações bem determinados, carrega em seu bojo elementos que dizem respeito a toda a humanidade. Porém, cumpre lembrar que, embora existam esforços dos órgãos internacionais, como a Unesco, no sentido de salvaguarda do patrimônio em todos os países, são estes que, em última análise, conservarão ou não os seus próprios bens culturais, tendo em vista a questão da soberania nacional. Preservação do patrimônio histórico e cultural 9 Para um bem ser inscrito na lista do patrimônio universal da Unesco, precisa ocorrer a solicitação dos países membros de um tratado internacional, denominado Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, aprovado pela Unesco no ano de 1972. Os também denominados Estados-parte podem apontar bens ligados ao patrimônio cultural ou natural. Depois de indicado o bem, o Centro do Patrimônio Mundial verifica se os dados estão completos; o Icomos ou o IUCN, organizações não go- vernamentais voltadas à preservação do patrimônio, avalia a solicitação; o Bureau do Patrimônio Mundial examina a indicação, recomenda ou não sua inscrição, e o remete ao Comitê do Patrimônio Mundial, que toma a decisão final (GHIRARDELLO; SPISSO, 2008, p. 20). As primeiras noções de patrimônio histórico-cultural surgem no contexto da Revolução Francesa, quando se buscou, por um lado, preservar as edifica- ções e os monumentos do Antigo Regime e, por outro, criar lugares de memória que contribuíssem para o triunfo da revolução. Desse modo, essa ideia ainda rudimentar de patrimônio restringia-se ao patrimônio edificado, ou, como é muitas vezes chamado, “patrimônio de pedra e cal”. Após a Segunda Guerra Mundial, a concepção de patrimônio é alargada, sendo incorporada, aliás, a noção de patrimônio ambiental como patrimônio cultural. É esse o período em que surgem a ONU e a Unesco (MOURA, 2012). Esses dois órgãos promoveram, então, a primeira referência a um patri- mônio histórico-cultural que fosse comum a toda a humanidade. O contexto era o de promoção da união entre os povos como modo de evitar a repetição dos horrores da Segunda Guerra Mundial. Assim, a proteção do patrimônio mundial, atribuindo-lhe um caráter universal, objetivava também dar impulso à solidariedade entre as nações. No próprio documento constitutivo da ONU, já há uma breve menção à ideia de patrimônio da humanidade. Como bem lembra o professor de Direito Internacional Fernando Fernandes Silva: Especialmente a partir das décadas de 50 e 60, proliferam na ordem jurídica inter- nacional convenções multilaterais e resoluções consagradoras de um patrimônio comum da humanidade nos mais diversos âmbitos: a Antártida, o espectro das frequências radioelétricas, o espaço extra-atmosférico e os corpos celestes, os elementos da biosfera, os fundos marinhos e seu subsolo e o patrimônio natural e cultural (SILVA, 2003, p. 35). Preservação do patrimônio histórico e cultural10Como visto, a noção de patrimônio foi ampliada significativamente, abrindo todo um novo horizonte de políticas e legislações gerais e específicas para a salvaguarda patrimonial e da memória dos povos. A ONU e a Unesco, bem como outros órgãos, como o Icom e o Icomos, foram os grandes responsáveis pela divulgação dessa nova visão e pela sua implementação. No contexto de promoção da paz entre os povos por meio da proteção do patrimônio cultural da humanidade, a Unesco patrocinou, no âmbito da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972), a aprovação de quatro tratados que estabeleceram políticas de preservação do patrimônio cultural humano. O grande diferencial dessa convenção e de seus documentos é o reconhecimento de que as condições contemporâneas de trabalho e produção podem danificar irreversivelmente os mais variados tipos de patrimônio cultural. Dessa forma, os bens culturais devem ser pro- tegidos não somente da degradação natural, mas também em função do “[...] desenvolvimento social e econômico agravado por fenômenos de alteração ou de destruição” (SILVA, 2003, p. 24). Em 1972, a Unesco realizou, em Paris, a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, tendo em vista que àquela altura o órgão já havia constatado que “[...] a degradação ou o desaparecimento de um bem do patrimônio cultural e natural constitui um empobrecimento efetivo do patrimônio de todos os povos do mundo” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, 1999, p. 123 on-line). O documento elaborado como conclusão das discussões da Convenção está disponível na íntegra no site da Unesco. As políticas de preservação procuram incutir na cultura política e ad- ministrativa das nações participantes da ONU a responsabilidade de pre- servação dos patrimônios nacionais. Assim, todos os bens considerados patrimônios da humanidade “[...] passam a ter uma preservação obrigatória pelo Estado-membro, que se compromete a preservá-los perante os demais Estados-membros da Unesco” (SOUZA FILHO, 1997, p. 107). Nesse sentido, a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural ainda é o documento mais importante a nortear as políticas de preservação. De acordo com a professora de Relações Internacionais Ângela Acosta Giovanni de Moura, Preservação do patrimônio histórico e cultural 11 [...] a proteção dos bens culturais pela Unesco manifesta-se em duas vertentes: a adoção, pela comunidade internacional, de convenções e recomendações inter- nacionais e a organização de movimentos de solidariedade internacional, espe- cialmente as campanhas internacionais para a salvaguarda dos monumentos, a exemplo dos templos da Núbia (1960–1980) e das cidades de Veneza e Florença (1966). Neste contexto, a ordem jurídica internacional busca cercar-se de instru- mentos jurídicos instituídos exclusivamente para a proteção dos bens culturais. [...] a Unesco é responsável, atualmente, por uma considerável lista de bens inscritos como patrimônio da humanidade (MOURA, 2012, p. 96). As convenções são os instrumentos mais relevantes e eficazes para a definição de diretrizes mundiais de preservação do patrimônio, pois têm a competência de criar medidas efetivas e de alcance transnacional. Isso ocorre porque as convenções são o local privilegiado para a elaboração de tratados multilaterais que são investidos do poder de inserir a pauta da preservação patrimonial no direito público internacional. Além da já vista Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, até hoje a Unesco já adotou outras quatro convenções que tratam de diferentes aspectos do patrimônio cultural e histórico da humanidade, apresentadas a seguir, de acordo com Moura (2012). � Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado: criada pelo Decreto-Legislativo nº 32, de 14 de agosto de 1956, tem como objetivo viabilizar mecanismos que atuem durante guerras ou outros tipos de conflitos no sentido de proteger da destruição bens culturais móveis e imóveis. � Convenção sobre Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedade Ilícita de Bens Culturais: entrou em vigor pelo Decreto nº 72.312, de 31 de maio de 1973, e visa a coibir o tráfico internacional de bens culturais e sua expropriação indevida das nações que os possuem por órgãos privados ou de outra natureza. � Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial: es- tabelecida pelo Decreto nº 5.753, de 12 de abril de 2006, alarga a com- preensão de patrimônio da humanidade, que passa a abranger, além do patrimônio material, o patrimônio imaterial. � Convenção sobre a Diversidade Cultural: adotada pela Unesco em 20 de outubro de 2005, tem o intuito de preservar as identidades culturais de grupos sociais que estejam ameaçadas pela crescente homogeneização cultural advinda da globalização. Preservação do patrimônio histórico e cultural12 Neste capítulo, vimos que são muitos os temas relacionados à preservação do patrimônio histórico e cultural. O próprio conceito de patrimônio, que surge no contexto da Revolução Francesa, foi transformado ao longo do tempo. De uma concepção que valorizava exclusivamente os patrimônios monumentais e edificados, chegamos nos dias de hoje à noção de que o patrimônio se manifesta também em formas imateriais. Para a salvaguarda de todos os tipos de patrimônio (tangíveis ou intangíveis), existem organizações como a Unesco, o Icom e o Icomos, órgãos de caráter multilateral e internacional que propõem e executam as políticas preservacionistas. Referências BERGER FILHO, A. G.; SILVEIRA, C. E. M. Patrimônio genético ou recursos genéticos? tratamento conceitual face às normas de acesso e repartição de benefícios. Revista Direito Ambiental e Sociedade, v. 10, n. 1, p. 265–291, jan./abr. 2020. 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Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Preservação do patrimônio histórico e cultural 15 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Analisar as relações entre patrimônio histórico, memória e história local. > Relacionar a formação das políticas e órgãos de preservação do patrimônio no Brasil. > Explicar a evolução das políticas de preservação patrimonial no Brasil. Introdução Em escala global, desde meados da década de 1970, circula uma narrativa sobre a importância do patrimônio, a necessidade de sua proteção e as iniciativas para sua preservação. Esse movimento está diretamente relacionado com um processo de revalorização da memória após as experiências de autoritarismo ao longo do século XX. No Brasil, embora a primeira legislação relativa ao “patrimônio histórico” seja do período estadonovista, vinculado aos debates sobre a identidade na- cional brasileira e a um nacionalismo autoritário, foi a partir da promulgação da Constituição de 1988 que a noção de “patrimônio cultural” passa a ser associada aos direitos civis e sociais e que se desenvolveram iniciativas para fomentar a diversidade patrimonial brasileira e sua preservação. Neste capítulo, você conhecerá mais sobre as ligações entre o patrimônio e a memória e de que forma a história local pode ser utilizada como uma forma O patrimônio histórico e cultural no Brasil Caroline Silveira Bauer de fomento para a preservação do patrimônio material e imaterial. Você verá as noções de conservação, preservação e promoção do patrimônio como iniciativas oriundas do Estado. Por fim, conhecerá um pouco mais sobre as políticas de preservação do patrimônio adotadas pelo Brasil. Patrimônio histórico, memória e história local Antes de estabelecermos uma relação entre o patrimônio e a memória e analisarmos de que forma a história local pode contribuir para a educação patrimonial, é importante que apresentemos uma definição de patrimônio e seus qualitativos “cultural” e “histórico”. Para Chagas (2002, p. 36), patrimônio é: [...] um conjunto determinado de bens tangíveis, intangíveis e naturais, envolvendo saberes e práticas sociais, a que se atribui determinados valores e desejos de par- tilha (perspectiva sincrônica) entre contemporâneos e de transmissão (perspectiva diacrônica) de uma geração para outra geração [...]. Nessa definição, “patrimônio” permanece vinculado a sua raiz etimológica de pater — herança ou propriedade (CHOAY, 2011). Choay (2011) afirma que, desde meados dos anos 1960, “patrimônio” tem sido um termo utilizado para substituir a expressão “monumento histórico”, ressaltando a importância e a valoração que determinada sociedade confere a certo bem (material ou imaterial) na elaboração de uma narrativa sobre sua história, sua identidade e sua memória. Portanto, o adjetivo “histórico” vincularia o patrimônio a uma leitura da realidade pautada pelas grandes narrativas nacionais, à história da pátria, e possuiria uma série de limitações. “Patrimônio histórico [...]” seria “[...] elemento unificador [...]” (LOPIS, 2017, p. 11), um conjunto de bens conservados como evidência de um determinado passado considerado parte constitutiva da história, da identidade e da memória de uma sociedade, que contribuiria para narrar elementos desse passado às gerações atuais e às gerações futuras, como uma ideia de “legado” e “trans- missão”. O patrimônio histórico, nas palavras de Hartog (2003 apud LOPIS, 2017, p. 11), seria uma característica dos estados nacionais, que configura um “[...] inventários dos lugares por onde a história se encarnou [...]”. Diferentes áreas têm preferido o uso do termo “patrimônio cultural”, que permite uma visão mais ampliada de patrimônio para além dessas narrativas nacionalistas e pátrias, abarcando outras expressões artísticas e culturais que não seriam incorporadas nessa “história oficial”. Assim, mais especificamente, O patrimônio histórico e cultural no Brasil2 Nestor Canclini (1994) nos apresenta uma definição de “patrimônio cultural” como uma “cultura própria” que uma sociedade possui e que sustenta sua identidade, diferenciando-a de outros grupos, abarcando não somente os monumentos históricos, o desenho urbanístico e outros bens físicos, mas também a linguagem, os conhecimentos, as tradições imateriais, os modos de usar os bens e os patrimônios físicos. A noção de patrimônio cultural também seria mais interessante do que a de patrimônio histórico porque explicitaria o caráter de transformação ao longo do tempo a que esses bens estão sujeitos, de acordo com as diferentes conjunturas, enquanto a noção de histórico revela um desejo de “estagnar” certo passado: O elemento patrimonial cultural deve estar atrelado ao seu contexto de um passado histórico e social, não como um artefato isolado, como vem sendo praticado por algumas sociedades que isolam o bem histórico de seu contexto, para “preservá-lo” em um museu ou instituição. Atualmente entendemos que os artefatos mudam de função ao longo do tempo (LOPIS, 2017, p. 11). Lopis (2017, p. 12) pontua o seguintesobre patrimônio. O patrimônio é o símbolo de uma vivência que é temporária, mas que se torna eterna através de seus bens/monumentos, traz em si um elemento identitário muito forte, construindo um conjunto de imaginários que nos diz quem somos, de onde viemos e para onde queremos ir. Faz-se necessário perceber que o patrimônio não é só um bem em si, mas também o uso que aquele bem tem para a perpetuação da memória de uma coletividade, pois o patrimônio histórico não é algo concreto somente, é algo também subjetivo, cheio de significado. Feitas essas digressões conceituais, é necessário que estabeleçamos a relação existente entre o patrimônio e a memória. É por meio da conservação e da promoção desses bens que o passado se materializa e se torna presente, atualizando-se. Essa proteção não é isenta de interesses particulares ou políticos, pois a difusão de determinada memória em uma narrativa sobre o passado é fundamental para a conformação de identidades no presente. O patrimônio, assim, trabalha e mobiliza a memória, conforme Lopis (2017, p. 13): [...] pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. Mas esse passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade. O patrimônio histórico e cultural no Brasil 3 A perspectiva de valorização patrimonial passou por diferentes períodos históricos e atuou de forma diversa em sociedades distintas. Após a Segunda Guerra, veio a preocupação em salvaguardar bens culturais e identitários, pois estes eram sinônimo de vínculo social, de uma herança deixada por seu povo, contribuindo para a construção de uma identidade nacional. A nação torna-se a encarnação por excelência da patrimonialidade, absorvendo, por assim dizer, no seu princípio, toda a recepção dos objetos culturais do passado. A apropriação se dá na forma de uma comunidade imaginária, e a proteção do patri- mônio é geralmente acompanhada da crença em um progresso [...] (LOPIS, 2017, p. 13). Vimos que uma característica dessa acepção do patrimônio é sua instru- mentalização para a elaboração de narrativas da história pátria, de iden- tidades nacionais e memórias sociais que reforcem certos nacionalismos. Essas narrativas costumam ser generalistas e homogeneizantes, não incorpo- rando as diferentes experiências e as diversidades existentes nos territórios. Portanto, a história local se apresenta como uma grande possibilidade de valorização da multiplicidade de experiências envolvendo o patrimônio. Conheçamos um pouco mais sobre a história local. A história local A história local pode ser compreendida como uma modalidade de estudos e pesquisas históricas que problematizam as fronteiras políticas como espaços ou regiões “naturalizadas”. De acordo com Donner (2012, p. 223): As pesquisas em história local, municipal, genealógica são uma prática antiga no Ocidente. Iniciaram com a história das famílias, dos feudos, passando para as províncias, paróquias, condados. É possível encontrar monografias e livros sobre praticamente todos os lugares da Europa e também na América. [...] O alcance dos livros de história dos municípios, das regiões é significativo. Este material é utilizado nas escolas como um “manual”, é relembrado nas festas e datas comemorativas da região e é ali que muitos dos mitos de fundação da cidade e do povoado estão escritos. Os autores destes trabalhos podem ser historiadores amadores ou profis- sionais, mas, em geral, são pessoas vinculadas com comunidade pesquisada. Pelo seu apelo junto à comunidade, este material torna-se um espaço para formação de identidades e memórias coletivas. É a partir das mudanças historiográficas promovidas pelas reflexões dos historiadores que publicavam na revista Annales que a história local produzida pela historiografia científica passará a refletir problematizações O patrimônio histórico e cultural no Brasil4 sobre esse recorte espacial. Desta forma, a ideia de “localidade” é utilizada como contraponto à homogeneização de experiências ao se tomar divisões e fronteiras estabelecidas por questões políticas, valorizando-se a diversidade e as particularidades de recortes a partir de certas culturas, comunidades e localidades. “Sendo assim a produção da História Local, seja por amadores ou profissionais poderia estar cobrindo uma lacuna, participando desta necessidade de história/memória contemporânea [...]” (DONNER, 2012, p. 226). Em outras palavras, a História Regional/Local que se pretende, antes de ser uma história do micro espaço regional, local, é uma história produzida em perspectiva diferente e em concepção dialética. Sua diretriz metodológica contempla etapas de desconstrução, análise de elementos particulares, elaboração do meta-texto ou síntese final, criativa, original, como é a verdadeira síntese. História Regional/Local na perspectiva da micro-história significa revitalização nas formas de produção histórica com reconstrução do que aconteceu perto de nós, buscando respostas a problemas que se impõem no presente, em diferentes esferas e âmbitos (CONS- TANTINO, 2004, p. 177 apud DONNER, 2012, p. 232). O recorte espacial, portanto, torna-se objeto de investigação e ponto de partida para a produção de conhecimento sobre o passado e sua presentifi- cação por meio do patrimônio. Como em um jogo de escalas, em um recorte que privilegia a diversidade e a particularidade, pode-se compreender melhor determinadas práticas, certos comportamentos e de que forma as pessoas acessam e utilizam os bens culturais, materiais ou não. A “descentralização” promovida pela história local vinculada ao patri- mônio também é fundamental para as políticas de conservação, fomento e preservação. De acordo com Carvalho (2011, p. 120): [...] pela história local e regional passa a autêntica definição da identidade e da diversidade cultural de cada comunidade que se fortalece e resiste às influências externas; o enfraquecimento do peso esmagador da padronização cultural; a revalo- rização histórica da cultura. Constitui-se, sem dúvida, com a proposta dessas regiões, a base do plano político da descentralização. A dificuldade é ainda a tendência centralizadora que se manifesta no fato de haver pouca legislação voltada para elas. Em outras palavras, a história local, inserida em uma concepção de edu- cação patrimonial, permite expandir a noção de patrimônio para além de edificações consagradas, distantes, na maioria das vezes, da realidade da maioria das pessoas. A história local possibilita, desta forma, o fomento à diversidade e à representatividade, buscando aspectos culturais importantes em determinadas regiões, mais circunscritas, lidas a partir da história da comunidade ou local. O patrimônio histórico e cultural no Brasil 5 Os pesquisadores Abreu e Chagas (2009) afirmam que, ao focalizar as narrativas regionais e urbanas como uma forma de história local, é possível destacar certas caraterísticas invisibilizadas. Em outras palavras, o patrimônio cultural entendido a partir da história local permite uma valorização de grupos sociais historicamente situados à margem das grandes narrativas nacionais, que, com esse enfoque, assumem o lugar de sujeitos e desenvolvem novas experiências quanto ao direito à memória e à constituição do patrimônio cultural. Além disso, essa abordagem permite o reconhecimento como “patrimônio” de aspectos da cultura, como tradições, valores, representações, diretamente vinculados com a memória social. A preservação do patrimônio no Brasil Quando falamos em “conservação”, “fomento”, “preservação”, “promoção” e “proteção” estamos falando sobre a mesmas iniciativas? Quais as diferenças? O que implica, ou melhor, o que fica subentendido quando afirmamos que um patrimônio precisa ser preservado? Significa que ele deve ser conservado para as futuras gerações ou significa que eleestá sob ameaça? Ou, ainda, as duas coisas? O debate sobre a preservação do patrimônio é extenso, e, no Brasil, a chamada “política patrimonial” foi sendo constituída de forma lenta e gra- dual desde os anos 1930, quando certos intelectuais passaram a reivindicar ao estado determinadas políticas referentes à preservação do patrimônio (LOPIS, 2017). Desta forma, em 1937, durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), objetivando a defesa do patrimônio artístico e histórico brasileiro. Primeiro momento da preservação patrimonial brasileira seguiu uma concepção de política cultural de “Pedra e Cal”. Pois, para estes intelectuais, era urgente a preservação de elementos patrimoniais arquitetônicos. Principalmente os do período colonial brasileiro. Nesse período, chamado de 1º Momento da Preservação Patrimonial, predominou a perspectiva estética sobre qualquer outra. Os pioneiros do IPHAN, com apoio da elite culta, criaram a consciência nacional que deu suporte a uma prática de proteção ao patrimônio baseada no tombamento (tombar signi- fica inventariar ou inscrever nos 4 livros de tombo). Eles eram os porta-vozes da sociedade brasileira e agiam em nome do interesse da nação (LOPIS, 2017, p. 15). O patrimônio histórico e cultural no Brasil6 É importante salientar que, para esses intelectuais, a identidade nacional seria expressa por meio da sua memória materializada no patrimônio. Esses pensadores foram importantes para difundir a chamada “retórica da perda”: [...] a ameaça da destruição, o que levaria à perda da identidade, da memória brasileira. Por isso, a necessidade em resgatar valores, o que seria autêntico por estar mais próximo daquilo que significava, através da preservação de seus monumentos, seus bens patrimoniais reconhecidos como tal (LOPIS, 2017, p. 15). As mudanças nas políticas de preservação do patrimônio evidenciam novas concepções a respeito da conservação e da valorização de determinados bens. A partir do final dos anos 1950, houve uma valorização da chamada “cultura popular”, com a criação do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, criado em 1958 (LOPIS, 2017). Hoje esse órgão integra a estrutura do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacionais (IPHAN) e é responsável pelos procedimentos de registro de bens culturais do patrimônio imaterial. A promulgação da Constituição de 1988; as reformulações SPHAN, dando origem ao IPHAN; e o registro de itens do patrimônio imaterial como parte do patrimônio cultural são marcos importantes na legislação patrimonial brasileira e serão abordados na próxima seção. Foi também a partir do século XXI que houve um processo de descentra- lização da política de preservação patrimonial. Nos dias de hoje, os discursos sobre patrimônio enfatizam seu caráter de constru- ção ou invenção, derivado das concepções antropológicas de cultura, que passa a ser tomada como sistema simbólico, como estruturas de significado pelas quais os homens orientam suas ações. Vale notar que, em vez da ideia de autenticida- de – originalidade e permanência – que guiava o campo da preservação, agora são tomadas como parâmetro as noções de referência cultural e de continuidade histórica (LOPIS, 2017, p. 15–16). De acordo com Sant’anna (2009, p. 51): [...] as noções de autenticidade e permanência fundam a prática de preservação ocidental e orientam toda a sua lógica, conduzindo à criação de instrumentos voltados para a proteção, guarda e conservação dos bens patrimoniais, pelo tempo mais longo e da forma mais íntegra possíveis. Mas o que implica a conservação e a preservação de um patrimônio? Essa é considerada uma temática polêmica, porque envolve interesses diversos e, muitas vezes, contraditórios e conflituosos, principalmente se pensarmos nos binômios preservação-transformação e permanência-destruição (LOPIS, O patrimônio histórico e cultural no Brasil 7 2017). Escolher o que será preservado também implica uma seleção sobre o passado, subentendendo-se certa instrumentalização (ou uso) desse passado, que pode corresponder aos interesses de um grupo específico, deslocado do reconhecimento social. Esse fato pode gerar alguns infortúnios e colaborar para a desvalorização do patrimônio, como lembra Lopis (2017, p. 16): A degradação dos monumentos e a apatia populacional, com relação a esses eventos, em muitas situações são fruto do não reconhecimento daquela realidade enfocada pelo monumento como sendo sua, pois preserva-se o monumento de elite e a produção cultural popular pode ser esquecida, por tanto, passível de destruição. As políticas de conservação e preservação estão inseridas em conflitos e negociações atravessadas por questões políticas, em que diferentes seg- mentos da sociedade disputam o que será patrimonializado ou não. Devido à ausência de representatividade e à desigualdade que marcam a história do Brasil, sabemos que boa parte dos bens patrimonializados corresponde a uma cultura específica, o que faz uma parcela significativa da população não legitimar, não se reconhecer e não se identificar com o que é considerado patrimônio histórico nacional. É claro que toda operação em relação ao passado operará a partir de uma seleção, e certas história, memória e identidade, materializadas em patrimônios, serão consideradas mais importante ou significativas do que outras, ou seja, reconhecidas em seu valor artístico e histórico. No entanto, é importante lembrar que essas operações não significam “preservar o pas- sado”, mas uma narrativa específica sobre determinados acontecimentos, lugares e personagens. Além disso, levando em consideração as desigualdades locais e regionais no Brasil, a análise de Lopis (2017, p. 18) faz muito sentido, recuperando o interesse de diferentes atores nesse processo: As diferenças regionais e setoriais contribuem para essa disparidade, já que há uma apropriação privilegiada de determinadas localidades por possuir informação e formação para compreender e controlar melhor a dinâmica das questões patrimo- niais. Desta forma, o patrimônio serve como recurso para reproduzir as diferenças entre grupos sociais. E sendo o patrimônio, um elemento de disputa econômica, política e simbólica, este elemento está “cruzado” pela ação de três agentes: o setor privado, o estado e os movimentos sociais. Muitas vezes, as contradições relativas ao uso do patrimônio, tem a marca da interação entre esses setores, que tentam se sobrepujar um ao outro em diferentes períodos. O patrimônio histórico e cultural no Brasil8 Vejamos, de forma bastante suscinta, de que forma se apresentam os interesses do setor privado, do estado e dos movimentos sociais na preservação do patrimônio, de acordo com Lopis (2017). Setor privado: geralmente, seus interesses giram em torno da exploração imobiliária de certos bens culturais, como edificações e espaços. As ações mais destrutivas do setor privado ocorrem quando não existem políticas públicas que definem e regulem o desenvolvimento econômico e estabeleçam um marco gera para o desempenho de cada setor em suas ações relativas ao patrimônio. Entretanto, a ação privada não pode ser vista somente como destrutiva. Existem grupos em seu cerne que apreciam o valor simbólico do patrimônio, pois este incrementa o valor econômico (LOPIS, 2017, p. 18). Estado: ator com posição ambivalente em relação ao patrimônio, mesmo que seja a instituição elaboradora de legislação e políticas públicas para preservação patrimonial. De acordo com Lopis (2017, p. 18), essa ambivalência se dá: [...] pois por um lado o valoriza e o promove como elemento integrador de sua nacionalidade, além da utilização da ação do estado na restauração de centros históricos e na criação de museus e espaços dedicados a preservação da memória para sua utilização como elemento ideológico unificador. Mas a utilização do uso indiscriminado do patrimônio para fins turísticoscompõe o lado preocupante da ação deste setor com relação à preservação do objeto monumento. Movimentos sociais: diferentes movimentos sociais, vinculados a questões culturais e históricas, mas também ambientais e urbanísticas, têm apontado os problemas da ausência de políticas para a educação e a preservação patrimonial. Vejamos algumas formas de preservação do patrimônio cultural e his- tórico previstas na legislação brasileira e nas convenções em que o Brasil é signatário. � Inventário: levantamento por meio de estudos que identificam, com fins de preservação, os diversos tipos de patrimônio. � Registros: forma de preservação de bens culturais imateriais realizada a partir de registros em livros específicos. São exemplos de bens cul- turais imateriais as celebrações, as formas de expressão e os saberes que fazem parte da memória social de diferentes grupos que formam a sociedade brasileira. � Vigilância: forma de preservação que se dá por meio da inspeção do poder público em bens tombados, particulares ou não. � Tombamento: forma de preservação que impõe sua conservação da propriedade pública ou privada que tenha sido declarada com valor cultural ou histórico. O patrimônio histórico e cultural no Brasil 9 Vamos conhecer, no próximo item, algumas dessas leis e convenções que orientam as políticas de preservação do patrimônio do Brasil. As políticas de preservação patrimonial no Brasil Como dito anteriormente, a história das políticas de preservação patrimonial no Brasil se iniciou em 1937, com a criação do SPHAN, em 30 de novembro de 1937. O Decreto-lei nº 25 de 1937 continua sendo o principal instrumento jurídico utilizado até hoje pelo IPHAN, “[...] com o objetivo de articular o tema de patrimônio com cultura nacional e o projeto de descentralização do poder do Estado como uma tendência natural das democracias modernas” (CARVALHO, 2011, p. 117). Segundo Carvalho (2011, p. 118), em 1936, um anteprojeto, elaborado por Mário de Andrade objetivava: a criação de um serviço para defender e conservar o patrimônio artístico nacio- nal, o que, em sua essência, já revelava a preocupação do artista modernista de 1922 com a defesa de bens culturais de identidade nacional. Embora esse anteprojeto não tenha sido aprovado, ele não perdeu o valor de documento para contextualizar a história de patrimônio nacional. O Estado Novo já se autopro- clamava guardião dos ideais nacionais, do incremento e da defesa da produção nacional. A intelectualidade brasileira, na época, buscava os fundamentos que dessem especificidade à nação brasileira. Foi a etapa da redescoberta do Brasil, de sua história, geografia, língua, literatura, etnia, economia, saúde, política, cultura; enfim, de tudo que explicasse a realidade do nosso país. Patrimônio, determinismo, evolucionismo e darwinismo social tornaram-se mecanismos de explicação. Foi por meio dessa legislação que se criou o “tombamento”. “Tombar” significa registrar determinado bem em um livro-tombo, restringindo o direito à propriedade e impondo a questão da conservação. O tombamento, como ação do Estado por decreto, não chega a absorver a vontade da população, nem cria mecanismos internos ao seu discurso de proteção da con- vivência harmônica entre um bem cultural de expressão do colonizado europeu e os colonizados em processo de busca de identidade nacional, em tempo de busca de identidade nacional, mas já oferece meios importantes para não apagar ou rasurar um patrimônio que se vai tornando referência para o homem brasileiro (CARVALHO, 2011, p. 118). O patrimônio histórico e cultural no Brasil10 De acordo com Carvalho (2011, p. 118): O Decreto-Lei Federal nº 25 é a primeira norma jurídica de que se dispõe objeti- vamente sobre patrimônio, faz referência acerca da limitação administrativa ao direito de propriedade e define patrimônio histórico e artístico da União como conjunto de bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. Trata-se de Lei federal determinando o sujeito de controle do patrimônio histórico. O instituto do tombamento surge para dar ao Estado o direito de proceder ao tombamento de bens de particulares. De acordo com Porta (2012), o conceito de patrimônio histórico e artístico que orientou a atuação do IPHAN em suas primeiras décadas estabelecia que a função do órgão era identificar e proteger bens que se destacavam por sua excepcionalidade artística, histórica ou monumental, de acordo com os critérios que os intelectuais participantes do órgão estabeleciam para a configuração da identidade nacional: Por muito tempo, a atenção e as energias do principal órgão de preservação do país, que moldou a constituição dos órgãos estaduais, estiveram estritamente voltadas à proteção do legado material da colonização portuguesa e do período imperial. Esse foco concentrou a ação do Iphan no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e nos estados em que estão presentes os maiores legados da cultura do açúcar, destacadamente, Bahia e Pernambuco (PORTA, 2012, p. 11). Essa legislação foi complementada em 1941, pelo Decreto-lei nº 3.866, que dispõe sobre o cancelamento do tombamento pelo presidente da República, e, em 1975, pela Lei nº 6.292, que introduz homologação ministerial no pro- cedimento de tombamento (CARVALHO, 2011). Foi a partir dos anos 1970, acompanhando um movimento transnacional de debates sobre o patrimônio, que, no Brasil, houve discussões sobre a ampliação da definição de bens que deveriam ser preservados. Além disso, procurou-se evidenciar que não somente a cultura europeia deveria ser destacada como constituinte do patrimônio brasileiro, mas também a cultura afro-brasileira e dos povos originais, destacando que a cultura brasileira se forma por um contínuo processo de contato de uma diversidade de experi- ências e saberes. Tais legados, pouco presentes na forma de edificações ou monumentos, mas larga- mente reconhecíveis em saberes, modos de fazer, celebrações e expressões artísticas, estavam contemplados no projeto de criação do Iphan elaborado por Mário de Andrade, O patrimônio histórico e cultural no Brasil 11 mas não foram incorporados ao modelo adotado em termos de instrumentos de ação e metodologias de pesquisa. Não eram, portanto, alvo de pesquisa e de preservação. Do mesmo modo, os constantes aportes culturais dos diversos fluxos imigratórios, que se traduziram em legados materiais e imateriais, ainda permaneciam fora do foco (PORTA, 2012, p. 12). O SPHAN, posteriormente, transformou-se no IPHAN, responsável atual- mente pela preservação do patrimônio brasileiro. A política de preservação do patrimônio mudaria, posteriormente, com a promulgação da Constituição de 1988, representando um novo marco na elaboração dessas políticas: [...] em seus artigos 5, XXIII e 170, III, a função social da propriedade é destacada, por isso se pode entender que a propriedade tombada visa a garantir a proteção ao patrimônio histórico e cultural do país. O art. 216 preceitua taxativamente quais as formas de cultura que podem ser alcançadas pelo instituto do tombamento; e, dentre outros, o artigo 30, inciso IX que dispõe da competência para promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local (CARVALHO, 2011, p. 118). A política de preservação do patrimônio cultural e natural da humani- dade, instituída pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1946 e reelaborada em 1972, foi fundamental para o tombamento de cidades históricas brasileiras. Ouro Preto, em Minas Gerais, foi declarada, em 1968, Patrimônio da Humanidade (CARVALHO, 2011). De acordo com Porta (2012, p. 12): A Constituição Federal de 1988, modernizadora também no tocante ao patrimônio, é considerada um marco para a atualização da política de preservação do patrimônio no país. O texto constitucional alargou não apenas oconceito de patrimônio, mas as responsabilidades pela sua preservação e os instrumentos para efetivá-la. Com a ampliação do conceito de patrimônio por meio do texto constitu- cional de 1988, houve uma preocupação com os chamados bens imateriais, que culminou com a promulgação do Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, instituindo o registro de bens culturais de natureza imaterial e criando o Pro- grama Nacional do Patrimônio Imaterial, com o objetivo de implementar uma política específica de inventário, referenciamento e valorização desses bens. Essas transformações nas políticas de preservação patrimonial correspon- dem à ratificação, por parte do Brasil, de acordos e convenções internacionais, celebradas junto à UNESCO. O patrimônio histórico e cultural no Brasil12 Referências ABREU, R.; CHAGAS, M (org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. BRASIL. Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/ d3551.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%203.551%2C%20DE%204,Imaterial%20e%20 d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias. Acesso em: 17 fev. 2021. CANCLINI, N. G. O patrimônio cultural e a construção do imaginário nacional. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 23, p. 94–115, 1994. 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O patrimônio histórico e cultural no Brasil 13 Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. O patrimônio histórico e cultural no Brasil14 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Discutir o conceito de museu e sua relação com história e memória. > Apresentar as tipologias de museus e suas relações com o patrimônio cultural. > Identificar a função educacional dos museus e do patrimônio cultural. Introdução Durante muito tempo, os museus foram vistos como um espaço em que se expunha coleções com uma narrativa por muitas vezes irrefletida. Nas últimas décadas, houve uma revitalização dos museus e das narrativas museológicas, ainda mais porque nunca se arquivou e se colecionou tanto. Pode ser paradoxal que, em um mundo em constante aceleração, de descarte e de obsolescência, e do culto pelo novo, as pessoas cada vez mais estejam inte- ressadas em colecionar, guardar, invocar, lembrar e organizar bens que remetam a certa narrativa do passado. Esses atos tratam-se, contudo, de um sintoma dessa temporalidade presentista, que obriga a conservação do passado a partir de um presente que se expande para todas as direções. Nessa temporalidade, os museus assumem uma nova significação. Neste capítulo, você verá o que é um museu e de que forma a concepção desse espaço se relaciona com a história e a memória. Conhecerá os diferentes tipos de museus e de que forma contribuem para a preservação do patrimônio cultural. Por fim, aprenderá quais são as funções pedagógicas dos museus, pensados como ferramenta para a educação patrimonial. Os museus e o patrimônio cultural Caroline Silveira Bauer Museus, entre a história e a memória Eles estão por todas as partes e são de diferentes tipos. Mas você sabe o que define uma instituição como um “museu” e quando essa instituição surgiu? Segundo o Conselho Internacional de Museus (ICOM, 2007, p. 44), museus “[...] são instituições permanentes, sem fins lucrativos, à serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, abertas ao público, que adquirem, conservam, investigam, comunicam e expõem o patrimônio material e imaterial da hu- manidade e do seu meio com fins de educação, estudo e deleite.”. A origem da palavra remete à antiguidade grega, Mouseion, nome do templo das nove musas que representavam as artes e as ciências. Esses templos eram espaços de contemplação e estudos artísticos e científicos. Para Iniesta Gonzàlez (2018), os museus modernos em nada se assemelham aos “museum” renascentistas, e, a partir do século XVIII, com a separação entre o campo das artes e o das ciências, os preceitos colecionistas, de âmbito privado, adquirem um caráter público, com o surgimento de instituições que explicitam uma nova cultura política. O museu, dessa forma, se converte em um órgão político que buscará representar consensos e um lugar de memória em que as nações passam a render homenagens a si mesmas. O Estado pode, assim, difundir entre seus cidadãos o sentimento de compartilhar determinadas narrativas sobre suas identidades, suas histórias e suas memórias (INIESTA GONZÀLEZ, 2018). Trata-se de um processo paralelo às transformações ocorridas no conceito de patrimônio, que migra da esfera privada para a pública, designando a propriedade coletiva simbólica sobre bens que representam a “grande família” que é a nação. Ao longo do século XIX, debateu-se nos museus e sobre os museus a respeito da conferência de sentido e significado de determinados objetos; sobre a construção de distâncias entre o passado e o presente, de acordo com determinados interesses; e quanto à conformação das fronteiras entre as disciplinas, dominando, no âmbito dos museus históricos, uma narrativa metódica e positivista, demonstrando a “evolução” da “humanidade” – en- quanto um coletivo singular – e o progresso da história humana. Nos museus etnológicos, para citar outro exemplo, destacavam-se discursos nostálgicos frente à aceleração temporal promovida pela Revolução Industrial. Por meio das narrativas museológicas dessas instituições, acreditava-se ser possível conferir estabilidade e permanência através da cultura material organizada (INIESTA GONZÀLEZ, 2018).Os museus e o patrimônio cultural2 A partir da segunda metade do século XX, houve um intenso debate a respeito da instituição museu, que parecia obsoleta, ainda que vigente, frente às mudanças experimentadas pela humanidade. Nos anos 1980, segundo Iniesta Gonzàlez (2018), conformam-se três correntes críticas à ideia de museu associada às práticas do século XIX: � modelo compensatório ou neoconservador, para quem a erosão da ideia de tradição da Modernidade explica a proliferação dos espaços de recordação; � modelo pós-estruturalista, que teorizou o fim dos museus no final do século passado; � modelo da teoria crítica, que relaciona o fenômeno da eclosão de espaços memoriais com uma nova forma de consumo capitalista. Podemos afirmar que, a partir dessas críticas, a instituição museu sofreu grandes transformações, e seus acervos adquiriram novas formas de mani- festação, novos formatos e novos objetivos. Ainda assim, segundo Santos (2009, p. 115), os museus parecem guardar alguns traços que remetem ao sentido que lhes foi atribuído ao longo do século XIX: Os museus caracterizam-se por coletar objetos que não pertencem mais à com- preensão cotidiana da vida, estranhos ao tempo e à história que envolve. No entanto, essas instituições, além de contar a história do passado por meio de seus fragmentos, são essencialmente história. [...] As narrativas históricas reconstroem o passado de diversas maneiras e, além disso, os museus apresentam uma singu- laridade importante nesse narrar, que é a presença de objetos. Para analisarmos a relação dos museus com a história e a memória, vamos partir da reflexão de Chagas (2009, p. 159–160) sobre a memória social e sua conformação: Uma memória só pode ser social se puder ser transmitida e, para ser transmitida, tem que ser primeiro articulada. A memória social é, portanto, memória articulada. Essa articulação, como os autores observam, não se dá apenas por meio de palavras verbalizadas ou grafadas, mas também por imagens. Assim, do mesmo modo como há um vocabulário, há um imaginário vinculado à memória social. Esse imaginário social, produzido a partir dos indivíduos, é complexo, dinâmico e processual. De outro modo, tem sutilezas, reentrâncias e saliências, dobras e ondulações, e não está dado de maneira definitiva; ao contrário, está em construção. Imagens que estavam iluminadas podem, de uma geração para outra, ser lançadas na sombra e vice-versa. A noção fundamental é que, sem transmissão, a memória social não se constitui. A transmissão, portanto, implica a atualização da memória. Os museus e o patrimônio cultural 3 De acordo com essa passagem, os museus aproximam-se da história e da memória por dois vieses: pela elaboração de uma narrativa sobre deter- minado passado, sobretudo os museus de cunho histórico, mas também, e principalmente, pela ideia de transmissão. E quando falamos em transmissão e associando às instituições museológicas, estamos fazendo referência direta à preservação. Preservar é ver antes o perigo de destruição, valorizar o que está em perigo e tentar evitar que ele se manifeste como acontecimento fatal. Assim, a preservação participa de um jogo permanecente com a destruição, um jogo que se assemelha, totalmente, ao da memória com o esquecimento (CHAGAS, 2009, p. 160). Os tipos de museus Podemos afirmar que existem muitos tipos de museus, e uma tipologia pode ser construída tanto a partir da especificidade de seu acervo (artefatos arque- ológicos, obras de arte, paisagens, etc.) como em relação aos seus objetivos de construção de certa narrativa sobre o passado, seja ela historiográfica, identitária ou memorial. Hoje em dia, possuíamos instituições cujo tipo é facilmente identificado e outras que são híbridas ou que abrangem uma definição mais ampliada de patrimônio, sendo mais difícil categorizá-las. Além disso, desde o início do século XXI, os museus virtuais vêm sendo popularizados, tornando ainda problemáticas certas tipologias anteriormente aceitas. Afinal de contas, o acervo de um museu disponibilizado on-line configura um novo museu ou se trata apenas de uma virtualização? Na impossibilidade de abordarmos todos os tipos de museus existentes, vamos nos deter em alguns casos e enunciar outros modelos. Comecemos pelos museus históricos, que, segundo Santos (2009), estão diretamente relacionados à construção dos Estados nacionais e do discurso cientificista e historicista. Esses museus visavam forjar certa história, identidade e memória dos cidadãos das novas formações administrativas e políticas surgidas nos séculos XVIII e XIX. Esse processo também pode ser identificado no Brasil após o pro- cesso de Independência, em que instituições colaboraram para a construção da identidade e da memória. No entanto, não se trata apenas de uma questão simbólica, mas política, com a perpetuação do poder das elites econômicas e políticas: Os museus e o patrimônio cultural4 A construção da nação vincula-se a estruturas hierárquicas de poder e à inclusão tardia da população negra, mesmo assim a partir de traçados racistas e excludentes. Ironicamente, em que pensem as grandes diferenças entre nações, um dos temas centrais da intelectualidade e das elites é justamente a procura da singularidade nacional (SANTOS, 2009, p. 116). Esta compreensão é compartilhada por Chagas (2009, p. 139), para quem, nos museus nacionais, sobretudo os históricos, “[...] está em pauta a preser- vação, o uso e a transmissão de determinada herança cultural, composta de fragmentos a que se atribui o papel de representação do nacional, ou melhor, de representação de determinados eventos, narrados sob determinada ótica.”. Esse material simbólico, articulado a partir do presente, pode ser convertido na memória de um país, uma memória política. Além disso, é preciso lembrar que essas preservação e transmissão estão atreladas às políticas desenvolvidas pelas instituições museológicas, das quais dependem para se concretizar. Quanto aos museus de ciência e de história natural e os museus de arte, serão abordados juntos, para estabelecer uma diferenciação em sua proposta e em seus públicos. De acordo com Almeida (2005), citando Sicard (2001), as definições quanto a esses museus se consolidaram na França durante o Iluminismo. “No final do século XVIII ocorreu a dessacralização dos objetos de arte, cujo valor passou a equiparar-se aos objetos científicos e pedagógicos. Entretanto, no decorrer dos séculos XIX e XX os objetos artísticos passaram a ser mais valorizados do que os demais.” (ALMEIDA 2005, p. 35). Segundo a autora, outra distinção entre os museus de arte e de ciência diz respeito ao campo profissional: enquanto para os artistas e para os historiadores a ida aos museus parece indissociável de sua profissão, um cientista, enquanto pesquisador, não é cobrado ou repreendido caso não realize essas visitas (ALMEIDA, 2005). Almeida (2005, p. 36) explicita a construção desses estereótipos, identificando sua construção e posicionando-se contrariamente à manutenção dessa visão: Nas trajetórias dos museus de arte e de ciência, ao longo do tempo, foi se con- solidando a noção de que a arte pertence a um mundo acima da realidade coti- diana, superior a esta, e só pode ser compreendida por uma minoria iniciada e conhecedora de sua história, ao passo que a ciência, entendida como uma área do conhecimento dedicada ao mundo prático e imediato, não exigiria o domínio de sua história para a compreensão dos fenômenos estudados. Não concordamos com a desconsideração dos aspectos históricos da ciência para a sua compreensão, assim como não aceitamos que a arte só pode ser entendida e apreciada por alguns poucos iniciados. Entretanto, muitos museus parecem colaborar na continuidade dessas crenças, conforme evidencia o estudo dos públicos desses museus e a avaliação de suas exposições. Os museus e o patrimônio cultural 5 Além dos casos citados, podemos falar em espaços musealizados,como locais em que ocorreram determinados eventos considerados importantes para a história (p. ex., o lugar de uma batalha), ou então de paisagens, como parques naturais; ou ainda de cidades-monumentos. Os parques naturais constituem-se como exemplos da musealização de um território. Nesses espaços, a ênfase é dada aos diversos elementos que compõem um ecossistema, incluindo a presença humana, valorizando-se os processos culturais e naturais, suas consequências e seus produtos. Além dos elementos que constituem os parques, podem existir exposições mais tradicionais, com espécimes e objetos que façam referência ao ecossistema explorado de forma museológica. Quanto às cidades-monumento, também se caracterizam por ter seu território musealizado. A “exposição” é todo o conjunto da cidade, incluindo sua arquitetura, seus habitantes, etc. Nesses casos, existe uma valorização da ação dos seres humanos e de sua presença nesse espaço, transformando a natureza. Diferentemente dos parques em que o destaque é conferido ao tempo natural, nas cidades-monumento enfatiza-se o tempo social e, em sítios arqueológicos, o tempo geológico e o tempo humano. Nos casos das cidades-monumento, podem existir exposições tradicionais (vinculadas à temática da cidade), mas também todas as outras formas de museus. A cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, por exemplo, é uma cidade-monumento, declarada patrimônio da humanidade pela Unesco. Por fim, podemos falar dos museus virtuais, museus digitais ou cibermu- seus. De acordo com Brito e Magaldi (2018, p. 2): [...] as possibilidades tecnológicas, quando associadas aos museus, diversi- ficam e facilitam o entendimento da sociedade que ainda não associou ao senso comum o entendimento de museu virtual para além da internet e das TICs. O conceito de virtual, quando associado aos museus e ao acervo, nos faz questionar sobre a própria ideia de permanência, geralmente associada ao conceito de museu. Algumas experiências que relacionam o museu ao meio digital e ao meio virtual podem ser encontradas na internet como, por exemplo, os museus afro-digitais. O Museu Afro-Digital da Memória Africana e Afro-Brasileira, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), surge com a finalidade de mu- sealização e divulgação em rede de acervos relativos aos estudos afro- -brasileiros, de registros da cultura popular afrodiaspórica, tanto no Brasil como na África. Os museus e o patrimônio cultural6 Visite o Museu Afro-Digital da Memória Africana e Afro-Brasileira, da Universidade Federal da Bahia, fazendo uma busca por ele na internet. A relação dos museus com o patrimônio cultural De que maneira esses diferentes tipos de museus se relacionam com o patri- mônio cultural? Lembrando que o patrimônio cultural, seja ele referente a bens materiais ou imateriais, é diverso e múltiplo, e a preservação e a transmissão desses aspectos culturais podem ser realizadas por essas instituições. De acordo com Pinheiro (2015), as declarações internacionais da Unesco, das quais o Brasil é signatário, demonstram de que forma os museus podem ser concebidos enquanto espaços para a promoção do patrimônio cultural dos países. A Declaração de Santiago, de 1972, por exemplo, determinava que os museus deveriam estar a serviço das populações, desempenhando suas funções políticas e sociais. Duas décadas depois, a Declaração de Caracas, de 1992, reforçaria o compromisso social dos museus, e, paralelamente a esse reforço, promoveu uma redefinição de “objeto museológico” a partir da ampliação da noção de patrimônio (PINHEIRO, 2015). A partir dessas declarações, os museus passaram a ser vistos como [...] um instrumento de intervenção capaz de mobilizar von tades e esforços para a resolução de problemas comuns, no seio das comunidades humanas onde se encontram. O museu de base comunitária é, portanto, aquele em que os membros do território, são protagonistas de sua formulação, execu ção, manutenção e gestão, no qual deve haver acompanhamento de uma equipe interdisciplinar, dentre os seus membros museólogos e especialistas na área de arte, educação, patrimônio etc., de preferência formados na própria comunidade (PINHEIRO, 2015, p. 61–62). Nessa relação ampliada entre a comunidade, os museus e o patrimônio, os museus deixaram de ser considerados como “[...] instituições intocáveis, inquestionáveis, onde se priorizava o culto e repositório dos valores e modos de vida da elite detentora do poder, como espaço de abrigo das coleções, peças emblemáticas do viver elitista [...]”, passando a ser percebido como “[...] uma instituição vital na comunidade, um dos alicerces da consciência social e política [...]. O espaço museológico ganha o status de território habitado, com o patrimônio integrado, idealizado com e pela comunidade, um ins trumento de desenvolvimento para seus habitantes, um fator de sustentabilidade.” (PINHEIRO, 2015, p. 62). Os museus e o patrimônio cultural 7 Função pedagógica dos museus como educação patrimonial Até o momento, permaneceu subentendida uma dimensão educativa ou pedagógica dos museus. Nesta seção, vamos explicitar uma compreensão do museu como um espaço educativo e explorar sua potencialidade na promoção da educação patrimonial. Portanto, é necessário que partamos de uma definição de “espaço edu- cativo”. De acordo com Faria (2010, p. 25): Todo espaço que possibilite e estimule, positivamente, o desenvolvimento e as experiências do viver, do conviver, do pensar e do agir consequente [...]. Portanto, qualquer espaço pode se tornar um espaço educativo, desde que um grupo de pessoas dele se aproprie, dando-lhe este caráter positivo, tirando-lhe o caráter negativo da passividade e transformando-o num instrumento ativo e dinâmico da ação de seus participantes, mesmo que seja para usá-lo como exemplo crítico de uma realidade que deveria ser outra [...] o espaço não é educativo por natureza, mas ele pode tornar-se educativo a partir da apropriação que as pessoas fazem dele, ou seja, o espaço é potencialmente educativo. Mas como se dá o processo de ensino e aprendizagem nos museus? De que forma eles contribuem para a divulgação científica e desempenham suas funções pedagógicas relacionadas ao seu papel científico, cultural e social? Primeiro, é importante lembrarmos que os museus elaboram narrati- vas próprias, chamadas de “discurso museológico” a partir dos elementos presentes nas coleções e exposições, na sua composição, nas temáticas exploradas e nas formas de interação com o público. Nesse sentido, essa dimensão educativa se difere do ensino escolar quanto à intencionalidade, à organização e às formas de ensino e aprendizagem. Mesmo que os museus possam ser submetidos a “[...] um processo de escolarização dos museus, com a incorporação de métodos e finalidades do ensino escolar nesses espaços de educação não formal, ocasionando uma distorção quanto à área de atuação dos museus, restringindo-os a um complemento escolar [...]” (PEREIRA; VALLE, 2017, p. 836), eles não podem ser confundidos com o espaço escolar, mas entendidos como espaços de educação não formal. De acordo com Studart (2005 apud PEREIRA, VALLE, 2017, p. 836), “[...] na educação não formal, ao contrário daquela que acontece na escola, os interesses particulares dos indivíduos prevalecem, com liberdade de escolha de suas preferências e liberdade de acesso ao conhecimento, sem terem seu conhecimento colocado à prova.”. Os museus e o patrimônio cultural8 A partir dessa perspectiva, os museus, como um espaço para a edu- cação patrimonial (a promoção da diversidade e a preservação de bens culturais de diferentes tipos), transformam-se em instrumentos de desen- volvimento econômico, político e social. Assim, os museus são entendidos como um “[...] fórum de debates e de conquistas cidadãs [...]” (PINHEIRO, 2015, p. 56). Vejamos, então, de que forma os museus, como promotores do patrimônio cultural, podem exercer suas funções pedagógicas. Segundo Morin(2000 apud PINHEIRO, 2015, p. 57), esse ensino se dá por meio de “[...] processos de conhecimento, um conhecimento pertinente, que enseje a identificação, compreensão, incerteza, percepção de nossa condição planetária e res- ponsabilidade uns para com os outros.”. Isso significa atribuir sentidos aos patrimônios e, de acordo com Pinheiro (2015, p. 57): Atribuir sentidos é compreender a identidade humana, perceber que so mos indiví- duos históricos e culturalmente elaborados, aceitar que somos um fragmento do mundo no qual vivemos, do planeta que habitamos, um complexo entre comunidade e sociedade, suas interações; somos múltiplos com uma com plexidade indecifrável, imersos em uma infinidade de múltiplos de culturas, de identidades; é preciso que percebamos a nossa individualidade na complexidade das relações humanas, em uma sociedade diversa e singular. Atribuir sentidos aos patrimônios é compreender a nossa condição humana, compreender a diversidade de explicações, sobretudo, compreendermos uns aos outros, realizar a comunicação humana, colocar-se no lugar do outro, uma difícil tarefa em uma sociedade individualista, que não percebe a existência do outro, que o rejeita e o reduz ao nada, logo é preciso uma autoa- valiação e exame. Atribuir sentidos é aceitar a incerteza, o inesperado, temos que ser fortes e não desencorajarmos diante dos desafios. Ter consciência de nossa condição planetária, de um mundo globalizado, imerso em informações velozes, que não conseguimos processar e organizar. Entendidos como um espaço de ensino e de aprendizagem, e com grande potencialidade para a educação patrimonial e para o ensino de história, é impor- tante lembrar que os museus são espaços de sociabilidade; fórum de debates e de exploração de controvérsias; de troca de saberes, experiências e práticas; de afirmação da diversidade cultural e identitária; de construção e fortalecimento de memórias sociais e de valores socialmente compartilhados; de estabelecimento de vínculos e de interlocução comunitária. E todas essas características são compartilhadas com habilidades a serem desenvolvidas no ensino de história. “Portanto, são indiscutíveis as potencialidades dos patrimônios e dos museus, dos saberes e fazeres presentes nas comunidades, para estudos, inves tigações, sensibilizações e visibilidade da diversidade cultural.” (PINHEIRO, 2015, p. 58). Os museus e o patrimônio cultural 9 Referências ALMEIDA, A. M. O contexto do visitante na experiência museal: semelhanças e dife- renças entre museus de ciência e de arte. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 12, p. 31–53, 2005. BRITO, K.; MAGALDI, M. Museologia virtual e cibermuseologia: as diferentes definições de museus eletrônicos e a sua relação com o virtual. In: ENCONTRO DE MUSEOLOGIA DA UNB, 1., 2018, Brasília. Anais [...]. Brasília: UnB, 2018. CHAGAS, M. Memória política e política de memória. In: ABREU, R.; CHAGAS, M. (org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lampa- rina, 2009. 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No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Os museus e o patrimônio cultural 11 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Conceituar patrimônio imaterial. > Descrever o patrimônio imaterial brasileiro. > Identificar a contribuição do patrimônio imaterial para a formação da iden- tidade cultural brasileira. Introdução Na atualidade, existe um consenso de que certas festas, práticas, ritos e saberes fazem parte de nosso patrimônio cultural e contribuem para a construção de identidades locais e regionais, e, até mesmo, de nosso reconhecimento como brasileiros. Porém, “patrimônio imaterial”, nomenclatura dada a todas essas manifestações, é um conceito relativamente novo, datado dos anos 1970. Foi a partir da pressão pelo reconhecimento das manifestações culturais populares e do folclore que países do Sul global reivindicaram na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) uma ampliação da concepção de patrimônio, o que implicaria uma mudança radical nas narrativas sobre o passado, em sua forma historiográfica, identitária e mnemônica. Neste capítulo, definiremos o conceito de patrimônio imaterial, também cha- mado “patrimônio intangível”, e apresentaremos o histórico de sua formulação. Em seguida, abordaremos o patrimônio imaterial brasileiro e a legislação criada no Brasil para a elaboração de políticas públicas nesse campo. Por fim, você poderá compreender de que forma o patrimônio imaterial contribui para a compreensão da diversidade na formação da cultura e da identidade brasileiras. Patrimônio imaterial Caroline Silveira Bauer Definindo patrimônio imaterial De acordo com Sandra Pelegrini, uma das maiores especialistas brasileiras no campo do patrimônio cultural, “patrimônio imaterial” é um conceito que: [...] se refere a práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas — junto com instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados — que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos re- conhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural (PELEGRINI, 2020, p. 71). Segundo a autora, a formulação desse conceito foi possível a partir da ampliação da noção de patrimônio para além da materialidade, sendo essa uma vitória daqueles que reivindicavam que aspectos da cultura popular e do folclore fossem preservados como um legado às futuras gerações, prin- cipalmente por suas funções de construção de identidades e sentimentos de continuidade e pertencimento. A partir dessa preservação e transmissão, buscavam assegurar o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana (PELEGRINI, 2020). Falaremos mais sobre a relação entre patrimônio imaterial e formação cultural e identitária na última seção deste capítulo. No Dicionário Iphan do PatrimônioCultural, “patrimônio imaterial” é de- finido como: [...] um conceito adotado em muitos países e fóruns internacionais como com- plementar ao conceito de patrimônio material na formulação e condução de políticas de proteção e salvaguarda dos patrimônios culturais, sob a perspectiva antropológica e relativista de cultura. Usa-se, também, patrimônio intangível como termo sinônimo para designar as referências simbólicas dos processos e dinâmicas socioculturais de invenção, transmissão e prática contínua de tradições fundamentais para as identidades de grupos, segmentos sociais, comunidades, povos e nações (VIANNA, 2016, documento on-line). Nos processos de reconhecimento dos patrimônios imateriais, os grupos, as comunidades e os segmentos sociais envolvidos participam ativamente das ações de produção de conhecimento, reconhecimento oficial e salvaguarda. Isso porque esses bens somente serão preservados se incluírem esses sujeitos detentores desses conhecimentos, práticas e saberes (VIANNA, 2016). Como assinalado por Vianna (2016), alguns autores preferem utilizar o termo “patrimônio intangível” em vez de “patrimônio imaterial”. Essa preferência se deve às confusões que podem se originar das noções de materialidade e imaterialidade. Quando falamos em imaterialidade, não estamos nos referindo Patrimônio imaterial2 exclusivamente a abstrações ou ideias, em contraposição aos bens materiais; referimo-nos àquilo que é efêmero, fugaz, transitório. Assim, o termo “intan- gível” parece expressar melhor as características a que gostaríamos de fazer referência para distinguir o patrimônio material do imaterial. Para uma melhor compreensão da ideia de imaterialidade/intangi- bilidade de um bem patrimonial, vamos tomar como exemplo a arte dos repentistas, que, no improviso, a partir de uma palavra ou frase, elaboram um poema em forma de repente. Embora a presença física dos poetas e de seus instrumentos seja imprescindível para a execução do repente, esta forma de arte é produzida e tornada única pelos seus aspectos intangíveis, isto é, pela interação entre os repentistas, pelo improviso e pela agilidade na composição. O conceito de patrimônio imaterial surgiu paralelamente à ampliação da definição de patrimônio. Isso ocorreu em um processo gradual, iniciado após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939–1945), quando as práticas e os processos culturais passaram a ser compreendidos como bens patrimoniais em si, sem a necessidade de ser materializados ou mediados (SANT’ANNA, 2009). A redefinição da noção de patrimônio a partir de marcos legais e a sua consequente ampliação possibilitaram o desenvolvimento de reflexões sobre o biopatrimônio e o patrimônio genético, o que permitiu novas inter- pretações sobre a relação entre a cultura e a natureza, aproximando a ideia do patrimônio natural do aspecto intangível (ABREU; CHAGAS, 2009). Como aponta Sant’Anna (2009), o surgimento da noção de patrimônio imaterial, ou patrimônio intangível, está vinculado às manifestações e prá- ticas culturais dos países do Sul global, que expressam outras formas de compreender o mundo e a relação dos seres humanos com a natureza. Sendo assim, podemos considerar a construção dessa noção como uma resistência às concepções anteriores de patrimônio, as quais estavam vinculadas a um tipo específico de definição de cultura, bastante etnocêntrica e que não valorizava as manifestações culturais populares e folclóricas. No entanto, essa mudança não se deveu somente às reivindicações pelo reconhecimento, pela valorização e pela preservação das manifestações cultu- rais dos países do Sul global. Como nos lembra Sant’Anna (2009), a ampliação do conceito de patrimônio também está relacionada às transformações nas noções de conservação e preservação, pois, da forma como eram definidas pelas culturas ocidentais, não abrangiam os novos bens patrimoniais. Patrimônio imaterial 3 Segundo a autora: A prática ocidental de preservação, fundada na conservação do objeto e na sua autenticidade, bem como na sua codificação legal, baseada, em última análise, na limitação do direito de propriedade, simplesmente não dá conta dessa nova noção de patrimônio cultural que ganhou consistência a partir dos anos 1970, por meio da incorporação de seus aspectos imateriais ou processuais. Percebe-se, por fim, que retirar um objeto de seu contexto social de uso e produção, declará-lo patrimônio, conservá-lo como uma peça única e colocá-lo num museu não abrange todas as situações em que é possível reconhecer um valor cultural e preservá-lo. Não faz sentido, por exemplo, nos casos em que o que tem valor não é o objeto, inúmeras vezes rapidamente perecível ou consumível; importa saber produzi-lo. Não faz sentido, igualmente, nos casos em que nem mesmo há objetos, mas apenas palavras, sons, gestos e ideias (SANT’ANNA, 2009, p. 52). Se formos determinar um momento mais específico para o início des- ses debates, poderemos assinalar a realização, em 1972, da Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, da Unesco. Nessa convenção, diversos países do Sul global passaram a reivindicar um instrumento de proteção às manifestações populares de valor cultural (SANT’ANNA, 2009). Posteriormente, a Conferência Geral da Unesco aprovou a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, elaborada em 1989. Esse documento estabelece que os países membros devem identificar, salvaguardar, conservar, difundir e proteger a cultura tradicional e popular “[...] por meio de registros, inventários, suporte econômico, introdução de seu conhecimento no sistema educativo, documentação e proteção à pro- priedade intelectual dos grupos detentores de conhecimentos tradicionais” (SANT’ANNA, 2009, p. 53). Evidencia-se, por meio dessa Recomendação, uma mudança na definição de patrimônio, bem como as suas implicações nas práticas de conservação e preservação. Além dessa Recomendação, que reconhece a importância das culturas tradicionais e do folclore como patrimônios culturais, podemos assinalar outros três documentos do âmbito da Unesco como balizadores para a pre- servação do patrimônio imaterial ou intangível: � o Programa Tesouros Humanos Vivos (1993), que reconhece os mestres dos saberes tradicionais e seu papel na transmissão de conhecimentos às novas gerações; � a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2002), que con- clama a salvaguarda da diversidade cultural; Patrimônio imaterial4 � a Convenção sobre a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003), que sistematiza e sintetiza as indicações e recomendações anteriores, aprimoradas a partir das experiências desenvolvidas em diferentes países. O patrimônio cultural imaterial é um campo da área patrimonial em que a noção de diversidade cultural é instrumentalizada como forma de reconhecer as diferentes influências na conformação da cultura e das identidades. A seguir, vamos conhecer como esse campo se desenvolveu e se desenvolve no Brasil. Reconhecendo o patrimônio imaterial brasileiro Nos anos 1930, os então chamados “fatos culturais” já haviam sido reco- nhecidos como patrimônio no texto do anteprojeto de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) — não sendo, todavia, enfatizado esse entendimento no projeto de criação da instituição. Foi ape- nas décadas mais tarde que o Brasil teve o seu marco legal para a política de patrimônio cultural imaterial: a Constituição Federal de 1988. Essa nova compreensão se inseriu em um movimento mais amplo, iniciado ao final dos anos 1970, quando começaram a ocorrer algumas mudanças nos conceitos e nas práticas do campo do patrimônio nos espaços de discussão internacionais, passando as culturas populares tradicionais e o folclore a serem valorizados e passíveis de ações de patrimonialização (VIANNA, 2016). O texto da Constituição de 1988 define o patrimônio imaterial como parte do patrimônio cultural brasileiro, trazendo consigo referênciasà identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Como exemplos de patrimônio imaterial, a Constituição cita as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver (VIANNA, 2016). Segundo Abreu e Chagas (2009, p. 13): Essa antiga preocupação havia ecoado nos grupos de discussão da área cultural durante a Constituinte de 1988, tanto assim que os artigos 215 e 216 da Constituição Federal referem-se, de modo explícito, às responsabilidades do “poder público, com a colaboração da comunidade”, na promoção e na proteção do patrimônio cultural brasileiro. A partir da promulgação da Constituição de 1988, iniciou-se um debate no campo sobre a dimensão imaterial do patrimônio cultural, a fim de se desenvolver e se implementar uma política federal de preservação e promoção Patrimônio imaterial 5 desse patrimônio. Para criar instrumentos adequados ao reconhecimento, ao registro, à preservação e à promoção de bens culturais imateriais, o Estado brasileiro promulgou o Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, instituindo o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, executado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Com essa medida legal, foram implementados os primeiros instrumentos de proteção do patrimônio imaterial (VIANNA, 2016): � o registro de saberes, celebrações, formas de expressão e lugares em livros específicos; � o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial; � o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC). Nos dias de hoje, somam-se a esses instrumentos o Inventário Nacional da Diversidade Linguística e o Plano de Salvaguarda (VIANNA, 2016). São quatro os livros de registros do patrimônio imaterial ou intangível no Brasil (SANT’ANNA, 2009): � livro de registro dos saberes, para o registro de conhecimentos e modos de fazer; � livro das celebrações, para festas, rituais e folguedos; � livro das formas de expressão, para a inscrição de manifestações literárias, musicais, plásticas, cênica e lúdicas; � livro dos lugares, para a inscrição de espaços onde se concentram e se re- produzem práticas culturais. Como afirmamos na seção anterior, houve uma modificação no entendi- mento sobre conservação e preservação quando a definição de patrimônio foi ampliada e passou a incorporar as manifestações culturais ditas “imate- riais”, ou “intangíveis”. Preservar um complexo arquitetônico é diferente de preservar uma determinada prática ou certo saber. Por isso, Sant’Anna (2009) afirma que, com o Decreto nº 3.551/2000 e a criação do Instituto do Registro, a noção de preservação do patrimônio imaterial ou intangível estaria mais próxima do reconhecimento e da valorização. Patrimônio imaterial6 Segundo a autora: O registro corresponde à identificação e à produção de conhecimento sobre o bem cultural de natureza imaterial e equivale a documentar, pelos meios técnicos mais adequados, o passado e o presente dessas manifestações, em suas diferentes versões, tornando tais informações amplamente acessíveis ao público. O objetivo é manter o registro da memória desses bens culturais e de sua trajetória no tempo, porque só assim se pode “preservá-los” (SANT’ANNA, 2009, p. 55). Nesse sentido, a partir da aprovação desse decreto, houve um rompimento com uma atuação preservacionista dos órgãos vinculados ao patrimônio no Brasil, que se voltavam prioritariamente para o tombamento de complexos arquitetônicos chamados “bens de pedra e cal”, tais como igrejas, fortes, pontes, chafarizes, prédios e conjuntos urbanos, que remetiam a um estilo arquitetônico e um período histórico específicos (ABREU; CHAGAS, 2009). Com a criação do Instituto do Registro e seus livros, resultado da valorização do patrimônio imaterial ou intangível, houve o reconhecimento e a valorização de outras manifestações da cultura, constituindo-se “[...] um acervo amplo e diversificado de expressões culturais, em diferentes áreas: línguas, festas, rituais, danças, lendas, mitos, músicas, saberes, técnicas e fazeres diversi- ficados” (ABREU; CHAGAS, 2009, p. 13). A partir das categorias instituídas pelo Decreto nº 3.551/2000, foi formu- lado o INRC, um instrumento de pesquisa que, ao trabalhar com o conceito de “referência cultural”, busca superar a falsa dicotomia entre patrimônio material e imaterial, compreendendo ambos como expressões do patrimônio cultural. Dessa forma, o INRC se preocupa com as formas de produção desses bens, com os valores que as comunidades depositam neles, com as maneiras como eles são transmitidos pelas gerações e são reproduzidos, e com as transformações que vão acontecendo ao longo do tempo nessas práticas e nesses saberes (SANT’ANNA, 2009). Para compreendermos como ocorrem o reconhecimento e a preserva- ção dos bens culturais imateriais ou intangíveis no Brasil, é preciso que conheçamos um pouco mais a metodologia de abordagem do INRC. São três etapas — o levantamento preliminar, a identificação e a documentação, e o registro propriamente dito —, que são detalhadas no Quadro 1, conforme análise realizada por Sant’Anna (2009). Patrimônio imaterial 7 Quadro 1. Etapas do processo de reconhecimento e preservação dos bens culturais imateriais ou intangíveis no Brasil Etapa Descrição 1 Levantamento preliminar Realizam-se pesquisas em fontes secundárias e em documentos oficiais, entrevistas com a população e contatos com instituições, propiciando um mapeamento geral dos bens existentes em determinado sítio e a seleção dos que serão identificados. 2 Identificação e documentação Aplicam-se os formulários do inventário que descrevem e tipificam os bens selecionados; mapeiam-se as relações entre os itens identificados e outros bens e práticas relevantes; identificam-se, portanto, os aspectos básicos dos processos de configuração da manifestação, seus executantes, seus mestres, seus aprendizes e seu público, assim como suas condições materiais de produção — matérias-primas, acesso a estas, recursos financeiros envolvidos, comercialização, distribuição, etc. A etapa inclui ainda uma documentação, por meio de registro audiovisual mínimo, ficando seu detalhamento e sua complementação como atividade especializada a ser realizada na fase final de registro. 3 Registro Essa etapa corresponde a um trabalho técnico, mais aprofundado, de natureza eminentemente etnográfica, que poderá ou não ser empreendido com vistas à inscrição do bem num dos Livros criados pelo Decreto nº 3.551/2000. Tais registros também devem ser periodicamente atualizados, para o acompanhamento da evolução e das transformações sofridas pelo bem. Fonte: Adaptado de Sant’Anna (2009). Podemos afirmar, portanto, que os instrumentos de reconhecimento, re- gistro, preservação e promoção do patrimônio imaterial criados pelo governo brasileiro levam em consideração o dinamismo desses bens e promovem a interação entre os aspectos materiais e imateriais do patrimônio cultural. Como consequência, forja-se uma ideia de identidade mais complexa, diversa e dinâmica, que será abordada na próxima seção. A listagem de bens culturais imateriais patrimonializados no Brasil até 2018 está disponível no site do Iphan, na seção “Patrimônio Cultural”, subseção “Patrimônio Imaterial”. Patrimônio imaterial8 Patrimônio imaterial e identidade nacional Como dito anteriormente, a transmissão geracional do patrimônio e a sua recriação com a passagem do tempo permitem que indivíduos, comunida- des, grupos e nações forjem um sentimento de continuidade, identidade e pertencimento. Quando essas manifestações recebem a mesma valoração do Estado, que elabora políticas para seu reconhecimento, seu registro, sua proteção e sua promoção, podemos afirmar que existe um respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. De acordo com Pelegrini (2020, p. 71): As práticas culturais propagam valores identitários que respeitam as tradições e contribuem paraa constituição de uma identidade regional ou grupal. Elas simbolizam características peculiares de grupos que se manifestam em compor- tamentos, valores e visões de mundo de uma comunidade. Os saberes curativos, religiosos e culinários constituem-se como patrimônio imaterial quando articu- lam as experiências e vivências correlacionadas no presente e no passado. Logo, alicerçam em si relações de sociabilidade, que envolvem práticas e domínios da vida social, expressos em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas). Encontramos em diversos trabalhos historiográficos desde o século XIX a referência às culturas africana, europeia e indígena como formadoras da sociedade brasileira. No entanto, o elemento europeu sempre foi o mais valorizado, porque era identificado por nossas elites letradas como portador das noções de civilidade e progresso. A cultura africana, embora arraigada nas práticas e nos saberes brasileiros, foi rechaçada, a partir de uma perspectiva racista e supremacista. Independentemente da valoração que, no passado, realizaram sobre a formação cultural e histórica brasileira, o Brasil é um país multicultural e pluriétnico, e a identidade “brasileira” é resultado de uma mescla en- tre diferentes costumes, práticas, rituais, saberes, etc. É importante não confundir essa “mistura”, compreendida como um sincretismo, com a ideia da miscigenação adotada na década de 1930 como uma política estatal de “branqueamento” da sociedade. Falemos um pouco mais sobre a formação cultural e identitária. A formação da identidade de um grupo, de uma comunidade ou de uma nação depende do reconhecimento e da legitimação de seus elementos culturais, da sua memória e da sua representação pelos membros desses grupos, comunidades ou nações. Tanto a noção de cultura quanto a de identidade pressupõem a Patrimônio imaterial 9 construção de vínculos e sentimentos de pertencimento, que contribuem para formar e modelar as próprias definições e distinções entre os grupos. De acordo com Corá (2013), a identidade é um instrumento de legitimação de um grupo, que se reconhece como tal em função de um sentimento de pertencimento, orientado pela nacionalidade, pela regionalidade, pela etnia, pela religião, pelo time de futebol ou pelas práticas sociais. Da mesma forma, trata-se de um processo dinâmico e diverso, com diferentes pertencimentos sobrepostos, o que leva a autora a considerar que é difícil nos referirmos à cultura no singular: “[...] esse processo dinâmico aceita que cultura seja pensada no plural como culturas, até porque os atores são diferentes e constroem espaços de identificações diferentes, permitindo a consolidação da ideia de diversidade social” (CORÁ, 2013, p. 121). O reconhecimento legal das definições ampliadas de patrimônio con- tribuiu para a afirmação de demandas históricas de setores da sociedade brasileira, que já haviam conseguido expressão no texto da Constituição de 1988, a qual reconhece a sociedade brasileira como multicultural e pluriétnica. Lembremos, de acordo com Toji (2009), que o texto constitucional define como patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial que sejam referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Segundo a autora, evidencia-se, dessa forma, que o reconhecimento do patrimônio imaterial ou intangível também reflete na afirmação de identidades “[...] ao visibilizar a presença social de atores, antes subestimados, e assim também modifica o campo político no qual tais grupos sociais estão envolvidos” (TOJI, 2009, p. 14). Essa multiculturalidade, resultado das diferentes matrizes que compu- seram nossa população, também expressa uma pluralidade de identidades culturais, expressas nas diferentes manifestações do patrimônio imaterial brasileiro. Como um direito assegurado constitucionalmente, a cultura deve ser valorizada em sua diversidade para que as diferenças étnicas, histó- ricas e sociais sejam reconhecidas e que os sujeitos se sintam inseridos e reconhecidos. Durante muito tempo, como houve uma valorização apenas do pa- trimônio cultural proveniente da colonização europeia, buscando-se uma vinculação aos valores de civilização e progresso, certas manifestações culturais oriundas dos povos originários ou de africanos escravizados não eram alvo do mesmo interesse pelos órgãos de reconhecimento e preservação. Nesse sentido, quando certos grupos apresentam demandas de reconhecimento de patrimônio imaterial, também reivindicam direitos sociais assegurados pela Patrimônio imaterial10 Constituição de 1988, pois não se trata apenas da invisibilização de sua cultura, mas também da ausência de reconhecimento de sua própria existência. Toji (2009) apresenta o interessante exemplo dos grupos de jongo. O jongo, também conhecido como “caxambu” ou “corimá”, é uma dança de origem africana praticada ao som de tambores. De acordo com a autora: “O Jongo foi registrado como Forma de Expressão no IPHAN em 2005. Atualmente, alguns grupos jon- gueiros de São Paulo e do Rio de Janeiro se organizam para reivindicar parcelas de terras enquanto remanescentes de quilombos” (TOJI, 2009, p. 14). Em outras palavras, da reivindicação de patrimônio cultural partiu-se para as reivindicações territoriais dos quilombolas. Esse movimento também pode ser observado em relação aos povos indígenas e às comunidades camponesas. E de que forma o patrimônio imaterial pode ser utilizado para difundir essa diversidade cultural e identitária formadora da sociedade brasileira? Segundo Pelegrini e Funari (2008), um dos principais caminhos é a educação patrimonial, direcionada não apenas para a explicitação da importância da preservação do patrimônio, mas também para a promoção da autoestima dos diferentes grupos e comunidades, a fim de que eles se percebam como cida- dãos e como contribuidores para a formação cultural e identitária brasileira. Além disso, a educação patrimonial também pode contribuir para que mais pessoas reivindiquem do Estado iniciativas de reconhecimento e registro de bens, permitindo a formação de memórias e de referências identitárias. Referências ABREU, R.; CHAGAS, M. Introdução. In: ABREU, R.; CHAGAS, M. (Orgs.). Memória e patri- mônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p. 13–16. CORÁ, M. A. J. Memória e patrimônio imaterial: formação de identidade a partir dos patrimônios culturais do Brasil. NAU Social, Salvador, v. 4, n. 6, p. 120–132, maio/out. 2013. PELEGRINI, S. Patrimônio imaterial. In: CARVALHO, A.; MENEGHELLO, C. (Orgs.). Dicionário temático de patrimônio: debates contemporâneos. Campinas: Unicamp, 2020. PELEGRINI, S. C.; FUNARI, P. O que é património cultural imaterial. São Paulo: Brasiliense, 2008. SANT’ANNA, M. A face imaterial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorização. In: ABREU, R.; CHAGAS, M. (Orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p. 49–58. TOJI, S. Patrimônio imaterial: marcos, referências, políticas públicas e alguns dilemas. Patrimônio e Memória, Assis, SP, v. 5, n. 2, p. 3–18, dez. 2009. Disponível em: http://pem. assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/60/526. Acesso em: 14 mar. 2021. VIANNA, L. C. R. Patrimônio Imaterial. In: GRIECO, B.; TEIXEIRA, L.; THOMPSON, A. (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro; Brasília: IPHAN/ DAF/Copedoc, 2016. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/dicionarioPatrimonio- Cultural/detalhes/85/patrimonio-imaterial. Acesso em: 14 mar. 2021. Patrimônio imaterial 11 Leituras recomendadas BELAS, C. A. Aspectos legais do INRC: relação com legislações nacionais e acordos internacionais. Belém: IPHAN, 2004. FONSECA, M. C. L. Para além da pedra e cal: Por uma concepçãoampla de património cultural. In: ABREU, R.; CHAGAS, M. (Orgs.). Memória e património: ensaios contempo- râneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 56–76. FONSECA, M. C. L. Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 2 ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 2005. FONSECA, M. C. L.; CAVALCANTI, M. L. V. C. Patrimônio imaterial no Brasil: legislação e políticas estaduais. Rio de Janeiro: Unesco, Educarte, 2008. HOBSBAWM, E. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (Orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 9–23. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Bens imateriais regis- trados nos estados. Brasília, DF: IPHAN, [2018]. Disponível em: http://portal.iphan.gov. br/pagina/detalhes/1617/. Acesso em: 14 mar. 2021. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Patrimônio imaterial12 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Discutir as possibilidades de pesquisa por meio do patrimônio histórico e cultural. > Relacionar diferentes fontes e abordagens relacionadas ao patrimônio. > Apontar diferentes trabalhos a respeito do patrimônio na historiografia. Introdução A pesquisa histórica, apesar de ser ciência, é vasta, complexa e possui particu- laridades como a própria história da historiografia. Analisar o que o historiador produziu faz parte de nosso papel de interpretar as sociedades do passado, e o objeto, o monumento e o edifício compartilham a mesma lógica, representam um período, uma ideia, um sentimento. O patrimônio cultural não foge dessa toada e precisa ser entendido por meio de sua historicidade, assim como a criação de seu conceito e da legislação de proteção aos bens. Contudo, diferentemente da historiografia em papel, o patrimônio, muitas vezes, está em nossa vida de uma forma que não percebemos. É a cantiga que aprendemos na escola, é o prédio mais antigo da cidade que foi desapropriado pela prefeitura, é um complexo ambiental — daí sua natureza diversa, de difícil análise e contraditória. Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica Ana Carolina Machado de Souza Neste capítulo, vamos tratar dos diferentes campos de estudo sobre o patri- mônio histórico e cultural, com ênfase em suas análises como fontes documentais, das primeiras iniciativas tomadas no Brasil para o estabelecimento do campo e da historiografia que deriva desses trabalhos, mas que, também, sustenta-os meto- dologicamente. Além disso, apresentaremos os patrimônios industrial e imaterial, novas matrizes de estudo que ajudam a entender a diversidade da temática e, também, os questionamentos acerca disso. Para melhor situar o cenário brasileiro, vamos falar sobre o surgimento do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artís- tico Nacional) e do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e como isso afetou o estabelecimento da legislação de proteção ao patrimônio. Para finalizar, alguns dos principais nomes da historiografia patrimonial serão analisados. A pesquisa em patrimônio Na Europa, a discussão sobre patrimônio e preservação se intensificou no século XIX, o que impactou as ações tomadas no Brasil. Antes disso, o rei João V (1689–1750), por exemplo, havia determinado que fosse feito um inventário de monumentos portugueses, fossem estátuas públicas ou edificações, o que demonstra que o interesse no assunto remonta a muitos anos antes. Portanto, ao se discutir a pesquisa científica cujo objeto de análise é o patrimônio, a história possui um papel fundamental, sobretudo na elaboração de conceitos explicativos que envolvam a teoria e a metodologia por trás do processo. De fato, o uso do espaço é uma das ideias que embasam a pesquisa, pois, a partir dele, diversos questionamentos emergem: quem o utiliza? Qual é sua função, se tem uma? A quem interessa? Nos séculos XVIII e XIX, o Estado-nação e o fim do Antigo Regime contri- buíram para que o debate acerca do patrimônio ganhasse a particularidade nacional, ou seja, tornasse-se pauta identitária. Isso é importante porque, segundo Funari e Pelegrini (2009, p. 20): [...] o patrimônio é entendido como um bem material concreto, um monumento, um edifício, assim como objetos de alto valor material e simbólico para a nação. Parte-se do pressuposto de que há valores comuns, compartilhados por todos, que se consubstanciam em coisas concretas. [...] aquilo que é determinado como patrimônio é o excepcional, o belo, o exemplar, o que representa a nacionalidade. Para a catalogação e a preservação, foram criadas instituições públicas e legislações específicas, e a pesquisa na área patrimonial virou parte desse processo, pois é com esse debate suscitado por ela que são delineados os limites públicos e privados, além dos históricos. Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica2 Em 2017, a estátua do general confederado Robert E. Lee (1807–1870) foi derrubada por manifestantes na cidade de Charlottesville, no estado da Virgínia, o que deixou em evidência o debate sobre racismo e pa- trimônio nos Estados Unidos. O general em questão liderou o exército sulista, que era a favor da escravidão, durante a Guerra Civil (1861–1865). Apesar de não ser um caso brasileiro, ele repercutiu no mundo todo por demonstrar como o sentido de representação e símbolo pode ser cíclico e contextual (FAUS, 2017). No Brasil, foi durante a República que mudanças expressivas ocorreram na área, mais especificamente a partir da década de 1930. Vale ressaltar que a atenção dada ao passado se tornou política pública desde o século XIX, mas os símbolos foram modificados quando os republicanos tomaram o poder. Uma nova representação do que deveria ser o “nacional” foi estabelecida a partir de elementos preexistentes e que configuraram o discurso de identidade construído pela institucionalidade. Porém, como toda construção imposta por um órgão ou uma comunidade, orgânica ou não, ela precisa ser aceita para vigorar (FONSECA, 1997). Com relação ao patrimônio, que toca exatamente nesse ponto, a primeira vez que se criou alguma regulamentação foi na Constituição de 1934, no art. 10, que previa: “Compete concorrentemente à União e aos Estados: [...] III — proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte” (BRASIL, 1934, documento on- -line). Dessa forma, o governo reconhece a necessidade de preservação e sua responsabilidade na articulação desse fato. Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Apesar da menção na Constituição, apenas com o Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, no início do Estado Novo, o governo definiu as bases da salvaguarda patrimonial com a criação do SPHAN. A partir desse momento, ficou definido como patrimônio histórico e artístico o “[...] o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, que por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (BRASIL, 1937, documento on-line). A missão do SPHAN era preservar aquilo que constituía a materialidade do passado brasileiro, projeto esse encabeçado por intelectuais preocupados com o desenvolvimento do País e que sabiam que esse processo passava pela alçada da memória. Gustavo Capanema (1900–1985) era o Ministro da Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica 3 Educação e Saúde (MES) quando solicitou, a Getúlio Vargas (1882–1954), a criação de um órgão protetor ao acervo nacional, que, mesmoexaltado pela historiografia, estava abandonado. A instituição foi ratificada com a Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, e se tornou parte importante do governo. Ru- bino (1992) observa que havia um debate tematizado acerca da preservação do patrimônio, o que significa que a pesquisa e a análise faziam parte do cenário intelectual, sobretudo dentro da história e da arquitetura. Com rela- ção à primeira, não existiu a defesa de monumentos brasileiros no período colonial, ainda que Portugal tenha expedido uma carta de lei em 1721 para inventariar seus bens. As iniciativas ocorridas em solo brasileiro partiram da ótica regional, como o caso do governador de Pernambuco entre 1735 e 1779, que desejava que cuidassem do Palácio das Duas Torres, construído no período de Maurício de Nassau (1604–1679). Algumas instituições que chancelavam os estudos primários sobre o que era patrimônio, como o Museu Nacional (em 1818), o Museu Goeldi (em 1886) e o Museu Paulista (em 1894), surgiram durante o século XIX. Esses acervos foram formados com peças de naturezas diferentes, desde fósseis e artigos etno-históricos até móveis, porcelanas, cristais e ob- jetos particulares de famílias importantes para a história brasileira. É o chamado lugar de memória, conceito caro para essa área de estudo e que concretiza a ideia de materialização de uma memória coletiva. Contudo, esta é formulada e criada a partir de pesquisas e de debates, refletindo a relevância histórica de um momento. É por isso que a pesquisa em patrimônio necessita se amparar na discussão histórica e na análise do espaço como reflexo de uma ideia (NORA, 1993). Durante a Primeira República (1889–1930), antes da fundação do SPHAN, as resoluções sobre patrimônio partiam da esfera privada, com o esforço de colecionadores e antiquários oriundos, sobretudo, da aristocracia bra- sileira. O IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), criado em 1838, teve papel fundamental no surgimento da pesquisa histórica que começou a compreender o patrimônio como eixo temático. Contudo, apenas em 1937 o governo concretizou o pedido de criação de um órgão, capitaneado por Capanema, que encomendou, ao poeta e intelectual modernista Mário de Andrade (1893–1945), um anteprojeto: um documento que caracterizaria os detalhes mais importantes dos manifestos sobre a preservação do patrimônio. Foi por meio dele que o Decreto-Lei nº 25 foi formulado, o que nos permite afirmar que o SPHAN estava alicerçado no movimento modernista. Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica4 O Modernismo foi um amplo movimento de cunho artístico e cultural que ganhou forças a partir da década de 1920, apesar de ter origem mais antiga. Além da Semana de Arte de 1922, quando um grupo de intelectuais tomou o Theatro Municipal de São Paulo, o movimento propunha uma ruptura com a arte tradicional e academicista para que um ideal brasileiro fosse encontrado. Nomes como Lúcio Costa (1902–1998), Oscar Niemeyer (1907–2012) e Roberto Burle Marx (1909–1994) internacionalizaram e concretizaram o Modernismo brasileiro (RUBINO, 2002). Mário de Andrade, na época, dirigia o Departamento de Cultura da Pre- feitura de São Paulo e foi quem indicou o bacharel em Direito Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898–1969) para que assumisse o SPHAN. Seu período à frente da instituição, que durou até 1961, é considerado o mais produtivo, ainda que o País vivesse um dos momentos mais repressivos da sua história política com o Estado Novo. Para Rubino (1992, p. 97): Para identificarmos a nação brasileira, dizia, teríamos de considerar a obra de civilização realizada no país: a produção material e espiritual que herdamos. Poucos de sua geração teriam tanta autoridade para tal assertiva. Afinal, identi- ficar obras de civilização espalhadas nesse mapa de extensão continental era a tarefa que esse advogado-jornalista-escritor vinha conduzindo, assessorado por companheiros notáveis de sua geração. Ou seja, pensar a história do País por meio dos monumentos se tornou política pública, mas houve algumas características importantes. Segundo Fonseca (1997), os primeiros tombamentos realizados pelo SPHAN em edifícios tinham os valores artísticos como prioridade em detrimento da história, situação flagrante devido à falta de historiadores no quadro de funcionários (o diretor da Seção de História era o poeta Carlos Drummond de Andrade [1902–1987]), e os conjuntos arquitetônicos adquiriam ar solene de represen- tação do passado, sem a problematização teórica sobre lugares de memória, espaço, pretérito, presente e futuro. Um grande feito prático desse momento foram as viagens de descobrimento, inventário e tombamento de bens em todo o Brasil. Apesar de não produzirem estudos históricos específicos com esses patrimônios como objeto de estudo, foi possível mapear os principais conjuntos de bens que, para essa geração, representavam o passado. Rubino (1992) aponta que a atividade do SPHAN, em seus primeiros anos, impactou com maior destaque estados importantes durante a colônia, com o Rio de Janeiro, a Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. No ano seguinte, São Paulo, Santa Catarina, Piauí, Paraíba e Rio Grande do Sul também tiveram bens Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica 5 tombados e, a partir dos anos 1940, praticamente toda a União recebeu as instalações do SPHAN. Observa-se, assim, a predileção pela estética europeia adaptada aos materiais regionais, deixando de lado manifestações indígenas e escravas, por exemplo. Outra iniciativa que comprova a institucionalização da pesquisa patrimo- nial no País foi a criação da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que possuía um rigor metodológico diferente do feito até então por priorizar diferentes estilos arquitetônicos e artísticos. O primeiro número, publicado em 1937, teve 22 artigos, sendo que a maioria abordava patrimônios religiosos, como as igrejas baianas e mineiras. Além disso, o diretor do órgão apontava, na descrição do periódico, que seu dever era cobrir as lacunas que a falta de recursos proporcionava, discutindo e divulgando os valores artísticos do Brasil que, por muito tempo, ficaram circunscritos a análises internacionais. Dessa forma, eles reconheceram a busca pela identidade brasileira também nessa seara e nesse espaço. Historiadores tiveram a oportunidade de analisar temas como a arte e a arquitetura, que foi o caso de Gilberto Freyre (1900–1987) com o artigo “Sugestões para o estudo da arte brasileira em relação com a de Portugal e a das Colônias” (ANDRADE, 1937). Em 1946, o SPHAN se tornou DPHAN (Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e apenas em 1970 se transformou no IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), como é até hoje (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, c2014). O exemplo dado pelo Instituto foi seguido por meio de outras políticas públicas, como o Programa de Reconstrução das Cidades Históricas, criado em 1973, que visava ampliar e promover o turismo, e o Programa Nacional da Cultura, criado em 1975, que tinha a função de fomentar ações culturais. Ainda que estivéssemos na Ditadura Militar e os incentivos fossem pequenos e direcionados a uma narrativa de exaltação nacional, o patrimônio se manteve como referência identitária. Com a criação da Fundação Nacional Pró-Memória, em 1979, coordenada pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), as pesquisas sobre patrimônio cultural ganharam mais financiamento, ampliando o debate acerca da própria definição de patrimônio e do que deveria ser preservado. De acordo com Funari e Pelegrini (2009, p. 49–50), a partir dos anos 1980: [...] a proteção de monumentos isolados, outrora priorizada, foi suplantada pela preservação dos espaços de convívio, assim como pela recuperação dos modos de viver de distintas comunidades, manifesta, por exemplo, na restauração de Patrimônio histórico e cultural: fontespara a pesquisa histórica6 mercados públicos e de outros espaços populares. Entre essas áreas, destacamos a do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho ou Ilé Axé Iya Nassô Oká, um dos mais antigos templos de culto religioso negro no Brasil. O caso relatado na citação se refere a uma ruptura importante nas po- líticas de tombamento do IPHAN que passaram a reconhecer edifícios e monumentos não cristãos. Em 1982, o Ilé Axé Iya Nassô Oká foi reconhecido como patrimônio de Salvador e, em 1986, do País, abrindo caminho para práticas de preservação que acompanham as novas pesquisas. Um exemplo disso é a ratificação de uma nova definição de patrimônio na Constituição de 1988, em específico no art. 216 da Seção II, Da Cultura, que diz (BRASIL, 1988, documento on-line): Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Assim, tornam-se patrimônio bens imateriais além dos imóveis, o que abarca a cultura de minorias que não possuem edificações ou grandes monu- mentos como símbolos dominantes, por diversos motivos. As manifestações afro-brasileiras e indígenas foram reconhecidas pelo poder público como partes contribuintes de nossa história. Esses investimentos estatais chegaram aos poucos e demonstraram a importância de estudar o patrimônio como objeto cultural, tendo-o como fonte de pesquisa. Patrimônio histórico e cultural como fonte de pesquisa O termo patrimônio tem um poder dentro da cultura e a sociedade por, de acordo com Poulot (2009, p. 9), acompanhar: O acúmulo de vestígios e restos revelados, conservados e aclimatados segundo práticas diversas, parece responder ao fluxo da produção contemporânea de arte- fatos. Desde modo, o patrimônio sanciona, a todo instante, a passagem acelerada que atribui uma posição de “destaque” a objetos ou práticas [...]. Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica 7 Ou seja, é um conceito amplo, que abrange uma variada gama de temas, e é uma fonte de pesquisa que consegue aprofundar discussões culturais e sociais. Os primeiros trabalhos enfatizavam a arquitetura e a arte como manifes- tações identitárias importantes. Utilizando, novamente, o primeiro número da Revista do SPHAN como exemplo, os principais objetos de estudo foram os monumentos arquitetônicos religiosos, além dos artigos sobre fotografia, sobre a proteção e a preservação do material arqueológico e etnográfico, e um exemplo foi o trabalho sobre o Forte de São Tiago de Bertioga feito pelo erudito Afonso d’Escragnolle Taunay (1876–1958). Nesse processo, é importante entender que os monumentos são memória e adquirem significado para a comunidade. Quando o conceito de patrimônio foi ampliado, novas concep- ções e possibilidades surgiram, como os patrimônios industrial e o imaterial. Patrimônio industrial Rufinoni (2020) observa que a atividade industrial se tornou relevante dentro do estudo patrimonial há pouco tempo. De fato, ela também é recente na história da humanidade, visto que a Revolução Industrial ocorreu no final do século XVIII na Inglaterra e no início do século XX no Brasil. Segundo a autora, essa discussão aumentou depois da Segunda Guerra Mundial (1939–1945), quando, no âmbito internacional, documentos discutindo o desenvolvimento da preservação patrimonial foram cunhados, como a Carta de Veneza, de 1964, e a Convenção do Patrimônio Mundial, em 1972. Isso ocorreu em um período de evolução tecnológica que se traduziu na construção de edifícios mais modernos. No caso do Brasil, ferrovias e fábricas foram paulatinamente destruídas para dar espaço a edificações que supriam as necessidades do presente. O patrimônio industrial, a partir desse momento, tornou-se tema e fonte de pesquisa por representar a memória coletiva associada ao trabalho. O foco se desloca dos grandes monumentos e das escolas arquitetônicas e se instala na compreensão social e cultural de um povo. A historiografia, a partir dos anos 1970, mudou seu foco ao buscar entender o ponto de vista dos que “vem de baixo”. O inglês E. P. Thompson (1924–1993), por exemplo, encabeçou a onda teórica que enfatizou a história dos operários com a publicação, em 1963, de A formação da classe operária inglesa. A tendência se espalhou e foi aderida no Brasil, que passou a analisar a cultura popular e, com isso, a classe operária. Segundo Azevedo (2010), o processo industrial, no Brasil, acelerou-se após a década de 1950, modificando sensivelmente a urbanização de grandes Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica8 cidades, sobretudo São Paulo. Mesmo assim, as primeiras iniciativas, que ocorreram no fim do século XIX e no início do XX, estabeleceram edifícios e conjuntos arquitetônicos que foram estudados desde o início das instituições científicas como parte do patrimônio industrial, o qual se amplia conforme o objeto de estudo analisado. Por exemplo, os engenhos de açúcar se tornaram parte da pesquisa patrimonial para além da estética colonial. O maquinário, os equipamentos e a produção foram, a partir desse momento, os elementos sob o holofote do patrimônio industrial. Para Azevedo (2010, p. 21): Sua proteção legal deve ter em consideração sua natureza específica. Ela deve ser capaz de proteger as fábricas e suas máquinas, seus elementos subterrâneos e suas estruturas no solo, os complexos e os conjuntos de edifícios, assim como as paisagens industriais. As áreas de resíduos industriais, assim como as ruínas, devem ser protegidas, tanto pelo seu potencial arqueológico como pelo seu valor ecológico. Isso é reflexo das discussões acerca das políticas de tombamento e sobre o que é patrimônio cultural. A memória dos trabalhadores passa a ser con- siderada não só pelas construções, mas também pela sociabilidade criada no entorno, e esse processo foi ratificado a partir de 2003, com a Carta Pa- trimonial de Nizhny Tagil. Não foi a primeira vez que o patrimônio industrial foi mencionado, pois a Carta de Veneza, de 1964, citou-o em seu postulado. A Grã-Bretanha foi uma das primeiras a desenvolver a área de arqueologia industrial, explanada pelo documento de 2003, ainda nos anos 1950, sedi- mentando a necessidade de se pensar e ampliar o debate. Segundo Kühl (2010), o objeto de estudo, nesse caso, engloba não apenas construções, mas também sistemas de transporte, o entorno dos espaços fabris, considerados fundamentais para a compreensão de uma cultura. Veja o caso do patrimônio ferroviário de São Paulo. As primeiras fontes documentais que embasaram os estudos e a prática preservacionista indus- trial foram os complexos ferroviários, com destaque para a Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema, localizada em Iperó, no estado de São Paulo, que foi tombada pelo SPHAN em 1964. Porém, só em 1986 ocorreu um encontro de pesquisadores para debater o assunto, que foi o Seminário Nacional de História e Energia em São Paulo. Para Oliveira (2010), contudo, a ascensão desse objeto de estudo ocorreu a partir da formação do Grupo de Estudos de História da Técnica (GEHT) na Universidade Estadual de Campinas nos anos 1990, depois da Carta de Campinas, de 1988. Esta destacava as instalações e os espaços industriais da cidade que fica no interior paulista e teve impor- tante papel no desenvolvimento do estado durante o ciclo do café, quando as ferrovias foram expandidas. Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica 9 A primeira estação a ser tombadapelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) foi a Estação Ferroviária de Bananal, que fazia ligação com a Estrada de Ferro Central do Brasil. Cinco anos depois de ser desativada (1964), o órgão paulista tombou as técnicas construtivas utilizadas para erguer o local. A partir de então, uma série de práticas foram adotadas para outras estações do interior, sendo fundamentais para o crescimento do estado. Patrimônio imaterial Os estudos patrimoniais foram ainda mais ampliados com a definição de patrimônio imaterial, que, segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (2010, documento on-line), refere-se a “[...] a práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas — junto com instru- mentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados — que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”. O Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), do IPHAN, foi ins- tituído pelo Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, com a intenção de viabilizar e financiar projetos que salvaguardem o patrimônio imaterial. Para isso, foi realizado um inventário dos bens com a intenção de identificá-los e classificá-los. O primeiro bem registrado e tombado foi a fabricação das panelas de barro de Vitória, no Espírito Santo, que se chamou “Ofício das Paneleiras de Goiabeiras”, em 2002. Todo o processo artesanal de produção se tornou patrimônio imaterial. Conforme a noção de cultura se modificou ao longo dos anos 1980 e 1990, as tradições culturais populares ganharam destaque, de- monstrando uma virada epistemológica nos estudos patrimoniais e históricos. No caso brasileiro, práticas tradicionais de todos os cantos se tornaram passíveis de tombamento e preservação por representarem a identidade coletiva regional ou nacional. Essa capilarização do patrimônio demonstra a importância dos objetos culturais como fontes de pesquisa para romper com uma leitura mais conservadora tanto da ideia de patrimônio quanto da de sociedade. Por exemplo, em 2004, o samba de roda do Recôncavo Baiano se candidatou para se tornar Obras-Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica10 a Ciência e a Cultura). Esse foi um longo processo de discussão embasado pelos estudos históricos, antropológicos e sociológicos e encabeçado pelo Ministério da Cultura. A primeira indicação, feita pelo Ministro Gilberto Gil (1942), foi o samba brasileiro, por ser uma manifestação marcante para o País. Contudo, é neces- sário circunscrever geograficamente o bem a ser preservado, pois ele deve estar em perigo de desaparecimento diante da globalização (SANDRONI, 2010). Dessa maneira, enviar o samba como candidato se mostrou inviável, devido a sua variedade amplamente difundida pelo Brasil e sua presença constante na mídia nacional e estrangeira. O samba de roda baiano, por sua vez, foi a escolha certeira, por atingir os critérios do processo conduzido pela Unesco. Sandroni (2010) relata que essa manifestação cultural não era salvaguardada pelo governo brasileiro até pou- cos meses antes do concurso. Havia, porém, associações de sambadores, mas sem a ambição do sentido corporativista; ou seja, não existia a possibilidade de se tornarem um grupo representante de uma arte em particular. Isso ocorre porque havia, no próprio Recôncavo, rivalidades entre as associações, pois “[...] como o Recôncavo é grande, ali se desenvolveram tradições de samba de roda muito diferentes, cuja legitimidade nem sempre era reconhecida por sambadores de pontos distantes um dos outros” (SANDRONI, 2010, p. 376). Esta é uma das dificuldades inerentes ao patrimônio imaterial: os bens se metamorfoseiam de acordo com o tempo e o espaço. Tradi- ções caminham com a sociedade e adquirem características do presente, seja na confecção de roupas e acessórios, por exemplo, até na forma de apresentação. Isso, porém, não invalida a legitimidade de se preservar a cultura popular, sobretudo de minorias políticas, como a indígena. Acessando o site do IPHAN, é possível conhecer todas as práticas tom- badas até hoje de acordo com vários critérios. Um exemplo é o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), instrumento para o reconhecimento, a catalogação e a preservação dos bens imateriais. No Acre, a região do mu- nicípio de Xapuri, que fica próxima à fronteira com a Bolívia, identificou, em 2008, quatro celebrações culturais e um tipo de saber local, que foi o corte da Seringa. Já as outras são as celebrações de São Sebastião e de São João do Guarani, a Festa de São João e “os terços” da Festa do Terço. A atividade extrativista foi considerada uma tradição cultural relevante para a região e, por consequência, para o País, mas ainda podemos perceber a difusão dos rituais e festas cristãos. Conforme Pelegrini (2009), porém, não é qualquer Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica 11 saber ou tradição que pode ser considerado patrimônio imaterial, pois precisa se articular com as experiências e vivências não só do presente, mas também do passado. Dessa maneira, os estudos históricos são imprescindíveis para analisar e selecionar qual tipo de manifestação cultural deve ser preservada. No século XXI, a dimensão do patrimônio aumentou com a pluralização do número de pesquisaa para preservar a memória coletiva. Contudo, apesar da diversidade, novos questionamentos surgiram. Segundo Funari e Pelegrini (2009), os governos decidiram unir a necessidade de investimento na gestão patrimonial com o fomento ao turismo. O exemplo trazido por eles se refere aos patrimônios inca e colonial encontrados tanto em Lima, no Peru, quanto em Quito, no Equador, cidades que foram reavaliadas dentro dos critérios de proteção. Assim, as intervenções tinham por objetivo revitalizar aquilo que as tornavam únicas, valorizando as identidades e integrando preservação e dinâmica urbana. Porém, essa estratégia é complexa e pouco eficaz em outros sentidos, pois exige uma parceria entre público e privado que causa proble- mas imediatos, como interesse direto em definir o que é ou não patrimônio. O mesmo ocorre entre os saberes e as manifestações imateriais, o que evidencia a dificuldade de manter instrumentos reguladores e jurídicos que consigam abarcar a diversidade. Quando um patrimônio fica coberto pela proteção legal, outro ainda está à deriva. Uma solução imediata é pulverizar o assunto, criando cada vez mais áreas como patrimônio hospitalar, prisional, natural, LGBTQIA+, entre tantos outros que também suscitam o questiona- mento da perda de sentido macro conforme os conceitos são particularizados. Historiografia do patrimônio Assim como em outras áreas da história, a bibliografia produzida por histo- riadores sobre o patrimônio é vasta e, para ser estudada, portanto, precisa de recortes, que podem ser teóricos, cronológicos, temáticos, etc. Aqui, serão privilegiados aqueles que se dedicaram a teses, a livros e a artigos sobre o estudo patrimonial após o surgimento do SPHAN e, posteriormente, IPHAN. Isso significa que os trabalhos conversam com a história institucional balizada pelo órgão de proteção, que também possuía sua Revista científica. Um dos autores mais importantes para a análise do colecionismo, do pa- trimônio e da cultura material é Ulpiano T. Bezerra de Meneses, que produziu muitos estudos sobre os temas citados, inclusive para várias publicações do IPHAN. Em primeiro lugar, ele corrobora a ideia, já debatida internacional- mente, de que os objetos possuem uma compreensão mais complexa do que o texto, pela pluralidade de significados e de símbolos intrínsecos (MENESES, Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica12 1994). Assim, por exemplo,um utensílio de porcelana pode ter função utilitária ou histórica, dependendo do olhar e da narrativa a ele atribuídos. Por isso o autor argumenta que os museus, antes de tudo, são exemplos da criação da história. Sejam os museus de história, de arte ou de ciências, todos são produtos do presente, assim como a memória, pois (MENESES, 1992, pp. 10-11): [...] a memória enquanto processo subordinado à dinâmica social desautoriza, seja a ideia de construção no passado, seja a de uma função de almoxarifado desse passado. A elaboração da memória se dá no presente e para responder a solicitações do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe incentivo, tanto quanto as condições para se efetivar. Em 2009, Meneses ministrou uma conferência no I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, organizado pelo IPHAN, em Ouro Preto, na qual ele abor- dou questões caras ao patrimônio, sobretudo as práticas engessadas de se avaliar e conceituar manifestações culturais. Um dos pontos é o que chama de “polaridade entre material e imaterial” por fragmentar algo mais complexo, que é a própria cultural de uma sociedade. Para o autor (2009, p. 31): [...] o patrimônio cultural tem como suporte, sempre, vetores materiais. Isso vale também para o chamado patrimônio imaterial, pois se todo patrimônio material tem uma dimensão imaterial de significado e valor, por sua vez todo patrimônio imaterial tem uma dimensão material que lhe permite realizar-se. As diferenças não são ontológicas, de natureza, mas basicamente operacionais. Considere, por exemplo, uma igreja jesuítica do século XVII que abriga uma festa popular em determinado período do ano. Ainda que a festa seja considerada patrimônio imaterial, ela tem a dimensão material da igreja como norteadora e vice-versa, pois ela também pode ser longeva devido às atividades sociais ali realizadas. O que o autor discute breve- mente se relaciona às amarras jurídicas inerentes a qualquer classificação estabelecida. Um texto clássico sobre as narrativas do patrimônio cultural brasileiro foi escrito por José Reginaldo Santos Gonçalves. A Retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil, de 1996, apresenta os silêncios causados pelo processo de preservação de patrimônio, que cria uma narrativa de legitimidade para uns em detrimento de outros, tornando-o paradoxal. Esse é um debate fundamental na história, pois toda escolha pressupõe uma renúncia. A partir do momento que a historiografia é produzida após um recorte cronológico temático e teórico, outras linhas de pensamento são “perdidas”. Seu texto foi importante por aplicar uma lógica questionadora já Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica 13 existente em outras áreas da história para a discussão sobre patrimônio no Brasil. Enquanto alguns monumentos adquirem força simbólica identitária, outros são “destruídos”. Para Gonçalves (1996, p. 25): No entanto, este discurso, que se opõe vigorosamente àquele processo de des- truição, é o mesmo que, paradoxalmente, o produz. [...] No mesmo movimento produzem-se, transformados em colações e patrimônio culturais, os objetos que estão sendo destruídos e dispersados. Esses objetos são concebidos nos termos de uma imaginária e originária unidade, onde estariam presentes atributos tais como coerência, continuidade, totalidade e autenticidade. [...] Embora haja um lamento constante em relação a esse processo de fragmentação e perda, ele, na verdade não é apenas um fato exterior ao discurso, mas algo que coexiste com o esforço de preservação tal como aparece nos discursos sobre patrimônio cultural. Apesar do sentido destrutivo que esse processo tem, o autor reitera o que foi criado, mas entende a importância de se questionar ideias preesta- belecidas. É o que fazemos na história da historiografia: desvelar as nuances do presente na produção histórica. Gonçalves continua e cita que Rodrigo Melo Franco de Andrade e Aloísio Magalhães (1927–1982), que também dirigiu o SPHAN, objetificaram o Brasil cada um a sua maneira. Lowande (2014) corrobora essa ideia ao afirmar que Melo Franco de Andrade decidiu reduzir a proposta de Mário de Andrade acerca da pluralização cultural. Ele tinha alguns desafios pontuais, como agradar os intelectuais paulistas (que queriam maior reconhecimento de seus projetos culturais), os modernistas mineiros (que buscavam a valorização da arquitetura colonial), os cariocas (sobretudo arquitetos, que desenvolviam os novos projetos modernos) e a diretoria do Museu Nacional (que buscava mais recursos para a proteção do patrimônio antropológico e natural). A posição do SPHAN contemplou os três primeiros grupos, silenciando a estratégia de uma abordagem nacional. Essa escolha diz muito mais sobre o ponto de vista e a narrativa da instituição e de quem a comandava do que sobre os objetos em si. A historiadora e antropóloga Silvana Rubino publicou, em 1992, um dos primeiros grandes trabalhos sobre a formação do SPHAN: As fachadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1937–1968. Para desvendar o mito da origem, ela utiliza documentos oficiais e produções próprias dos principais nomes envolvidos no processo. Seu recorte cronológico corresponde aos anos dou- rados do Instituto, que só começou a se reinventar na década de 1980, com a nova história e a história social. Os anos de Melo Franco de Andrade, até 1968, foram definidos por uma condução personalista, ou seja, ele participava ativamente das decisões. Po- Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica14 rém, Rubino embasa sua argumentação a partir do prefácio da edição de Casa grande e senzala (1933), que menciona Lúcio Costa como um dos formadores de opinião sobre o patrimônio nacional. Dessa maneira, ela coloca uma das grandes obras daquela época, de Gilberto Freyre (1900–1987), como chave para a interpretação da sociedade. O fascínio pela casa grande e pela arquitetura colonial, adotado pelo SPHAN desde seu início como critério de preservação, demonstra a tendência de uma época de ainda pensar sociedade sob o prisma das elites e da aristocracia brasileira que se manteve ativa mesmo com o fim da Monarquia. Pode-se comparar esse argumento com o de Gonçalves (1996) sobre a “perda”. Da década de 1930 e até os anos 1980, as minorias eram vírgulas nas pesquisas; só se tornaram protagonistas posteriormente. Em 2011, a zona portuária do Rio de Janeiro passou por uma reforma na qual foram descobertos vestígios do Cais do Valongo, antigo porto de desembarque de escravos que recebeu mais de um milhão de pessoas compulsoriamente do continente africano. Os arqueólogos e historiadores reivindicaram proteção patrimonial da região e foi criado, na cidade, o Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana, que alçou aos olhos do povo a cultura material de um dos períodos formadores do Brasil, mas que estava invisível até então. Os escravizados eram parte do sistema ou estereotipados, narrativa que só começou a mudar a partir dos anos 1980 (PINHEIRO; CARNEIRO, 2016). Para que a historiografia sobre o patrimônio se desenvolva, a teoria e a metodologia são necessidades basilares. Uma das principais autoras da área é a francesa Françoise Choay, que publicou, em 1982, o clássico a Alegoria do patrimônio. De maneira geral, Choay (2014) define que o patrimônio histórico é uma expressão que designa a importância comunitária, seja de ordem local, regional, nacional ou mundial, a um bem material ou imaterial, fixo ou móvel. Isto é, apesar de sua natureza diversa, é importante estabelecer limites e definições para que o estudo e a compreensão do patrimônio sejam viáveis. Sua intenção, ao longo do texto, é apresentar, didaticamente, a evolução do conceito de patrimônio, desde a ideia de monumento, passando pela história e a memória. Porém, o que conecta cada uma dessas ideias é a identidade nacional,e o plano de fundo é o presente, levando a uma reflexão importante sobre o patrimônio na era da globalização (CHOAY, 2014, p. 15): O acordo patrimonial e o ajuste das práticas conservadoras não se faz, no entanto, sem dissonâncias. Estes aspectos começam a inspirar alguma inquietação. Será que engendrarão a destruição da sua razão de ser? Os efeitos negativos do turismo Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica 15 não se fazem apenas sentir em Florença e em Veneza. A velha cidade de Quioto degrada-se dia após dia. No Egipto, foi necessário encerrar os túmulos do Vale dos Reis. Na Europa, como noutros locais, a inflação patrimonial é igualmente combatida e denunciada por outras razões: custos de manutenção, inadaptação às necessi- dades actuais, acção paralisante sobre os grandes projectos de ordenamento do território. São igualmente invocadas a necessidade de inovar e as dialécticas de destruição que, ao longo dos séculos, substituem os antigos monumentos por novos. Sua crítica reside na inflação aos bens patrimoniais conforme a cultura da preservação se tornou parte da especulação imobiliária. Não há uma saída ou resposta específica para tal problema, pois, como diz na citação anterior, cidades como Veneza, Florença, Paris, entre outras, apesar de iniciarem o debate crítico acerca do número de turistas e do esvaziamento de sentido que vivem, são dependentes diretamente do turismo. Assim, Funari e Pelegrini (2009) corroboram seu questionamento, que foi pioneiro na época. Os estudos patrimoniais ganharam destaque na história depois dos anos 1950, quando a maioria das pesquisas se direcionava para os monumentos arquitetônicos. Isso se modificou posteriormente, mas Choay já observava, desde a década de 1970, o possível desgaste da legislação e a conexão com a iniciativa privada. Há, nesse processo, uma análise identitária, pois a Europa se via mantendo estruturas urbanas medievais e modernas a fim de preservar seu passado, enquanto o desenvolvimento tecnológico levava os Estados Unidos a cons- truírem edifícios como o World Trade Center, inaugurado em 1973. Existem, porém, outras contribuições fundamentais para que a discussão se aprofunde, como as dos também franceses André Chastel e Jean Pierre Babelon, autores da obra La notion de patrimoine, de 1980, que definiram conceitos sob a ótica de seu local, que lidava diretamente com as novas leis preservacionistas. É importante, de fato, destacar a influência francófona, pois a base da teoria da história adotada nas universidades paulistas e cariocas advém de lá, aproximando as discussões. Referências ANDRADE, R. M. F. de. Programa. Revista do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, nº 1, p. 92–93, 1937. BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 16 jul. 1934. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34. htm. Acesso em: 19 fev. 2021. Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica16 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 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Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Patrimônio histórico e cultural: fontes para a pesquisa histórica18 OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Conceituar educação patrimonial. > Discutir as possibilidades e estratégias de ensino de história e educação patrimonial. > Identificar diferentes referências em educação patrimonial. Introdução Desde o Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, quando o governo federal estabeleceu o registro do patrimônio imaterial, ampliando o sentido de bens culturais, o modo de pensar a conservação e a divulgação do patrimônio mu- dou. O historiador, além de contribuir para definição, inventário, tombamento e catalogação, passa a utilizar a educação patrimonial como ferramenta que proporciona a aprendizagem sobre memória, história, identidade e, inclusive, cidadania. O professor de história, por sua vez, consegue explorar novas facetas para o ensino, não só com relação ao conteúdo programático, mas, sobretudo, com relação ao pertencimento a uma herança cultural, seja ela um monumento, uma peça no museu ou um ofício praticado há séculos. O patrimônio é a materialização das relações sociais e culturais que ocorrem ao longo do tempo, ainda que seja considerado uma prática “imaterial”. Essa classifi- cação existe no sentido normativo para a criação de uma legislação protetiva, mas Ensino de história e educação patrimonial Ana Carolina Machado de Souza cada saber ou celebração estão conectados a uma materialidade. Assim, os bens culturais preservados por órgãos como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e pelas instituições estaduais e municipais, representam o espírito de uma época. Neste capítulo, você vai estudar o conceito de educação patrimonial, os pro- cessos por trás da categorização de um bem e a sua conexão com a sala de aula. Além disso, serão discutidas memória e história, temas fundamentais para a definição de patrimônio, tanto no campo científico quanto na prática. Para finalizar, será apresentado um estudo de caso sobre a historicidade do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e suas diretrizes, assim como a conceituação de identidade nacional. Educação patrimonial Um dos grandes desafios do professor de história é fazer o aluno entender o seu papel no tempo e no espaço, o que inclui compreender a definição do que é importante dos eventos passados. Portanto, aprender sobre história é mais do que absorver datas e fatos, é entender a identidade cultural em que estamos inseridos, é reconhecer os discursos criados ao longo do tempo, é identificar o contexto de formação da nossa sociedade. O patrimônio cultural incorpora todos esses elementos educativos porque possui sua historicidade e tombamento, além de ser um exemplo de identidade e de memória de uma época, assim como do que é construída no presente. O IPHAN, a partir dos anos 2000, mudou sua classificação sobre patrimô- nio acrescentando o conceito de imaterial. Dessa forma, práticas, ofícios, saberes, celebrações foram considerados bens culturais referenciais para compreender a sociedade brasileira. Essa ação do órgão vem 12 anos depois da determinação legal com os artigos 215 e 216 da Constituição de 1988, que reconheceram esses novos bens culturais. Para isso, foram criados o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) e o aumento da área de cobertura do Inventário Nacional de Referências Culturais (INCR). Contudo, a aprimoração jurídica continuou com a estruturação do sistema de salvaguarda em 2004 com o Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI), e, em 2010, para especificar ainda mais o processo, foi aprovado o Decreto nº 7.387, em 9 de dezembro, no qual ficou estabelecido o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL). Isso significa que o mapeamento do tronco linguístico brasileiro se tornou uma prática por formar uma das raízes da nossa cultura (FLORÊNCIO, 2019). Ensino de história e educação patrimonial2 Quanto ao conceito de educação patrimonial, Bezerra (2020, p. 63) afirma: Educação patrimonial é uma dimensão da educação cujo principal objetivo é pro- mover a sensibilização sobre a importância do patrimônio e da sua preservação, na formação de sujeitos de sua própria história, que atuem na reivindicação de seus direitos coletivos e no fortalecimento de sua cidadania. Quando a autora diz que o patrimônio forma sujeitos da própria história, ela corrobora a ideia de emancipação por meio do conhecimento de Paulo Freire (1921-1997), um dos principais teóricos da educação brasileira, que afirmou a importância da educação patrimonial como parte do autoconhecimento e da transformação de um cidadão consciente. Florêncio (2019, p. 60) argumenta que a expressão “educação patrimonial” sintetiza “[...] uma grande variedade de ações e projetos com concepções, métodos, práticas e objetivos pedagógicos distintos foi realizada em todo o país”. Ou seja, não existe uma definição específica ou uma metodologia própria, pois se refere a uma série de práticas que são criadas de acordo com a necessidade e especificidade da proposta. Dessa forma, ela pode ocorrer por meio da elaboração de materiais escritos de apoio para professores e alunos, publicações acadêmicas, dinâmicas comunitárias, atividades pontuais sobre um determinado tema ou até a promoção de uma ação constante. Apesar da variedade, alguns princípios norteadores foram determinados para que houvesse um projeto alinhado no IPHAN e nos órgãos estaduais de proteção do patrimônio cultural. Apesar das leis já existentes, é comum datarem o 1º Seminário sobre o uso Educacional de Museus e Monumentos realizado no Museu Imperial de Petrópolis/RJ em 1983 como sendo o início da educação patrimonial no Brasil, baseado no modelo de evento inglês Heritage education (educação patrimonial), em que os educadores da Inglaterra procuraram criar políticas pedagógicas mais atraentes para os estudantes (BEZERRA, 2000). Partindo do pressuposto de que a educação patrimonial é um conjunto de práticas que visam a um objetivo, é imprescindível se atentar ao objeto, isto é, ao bem que se pretende preservar. É por isso que Florêncio et al. (2012) apontam que a participação comunitária é fundamental na criação e execução das atividades, pois o primeiro ganho ocorre nessa escala menor, já que a comunidade poderá aprender sobre suas próprias raízes e referências culturais. Assim (FLORÊNCIO et al. 2012, p. 20): Ensino de história e educação patrimonial 3 Para tanto, as políticas de preservação devem priorizar a construção coletiva e democrática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os agentes institucionais e sociais e pela participação das comunidades detentoras e produ- toras das referências culturais. Nesse processo, as iniciativas educativas devem ser encaradas como um recurso fundamental para a valorização da diversidade cultural e para o fortalecimento da identidade local, fazendo uso de múltiplas estratégias e situações de aprendizagem construídas coletivamente. Os marcos educacionais foram definidos ao longo da história do IPHAN, desde a sua fundação em 1937 com o Decreto nº 25, sancionado pelo presidente Getúlio Vargas (1882-1954), e o SPHANpriorizou edificações e sua estética a fim de preservar estilos como o colonial, que foi reinventado por meio de novas técnicas construtivas. Mário de Andrade (1893-1945), delineou pontos iniciais sobre o conceito de patrimônio material e imaterial, levando em consideração tanto os bens físicos quanto as representações culturais, como danças, crenças, etc. Con- tudo, a materialidade foi privilegiada pelo governo e pela própria diretoria da instituição. Os estudos publicados no primeiro volume da revista do órgão se referiam, na sua maioria, à arquitetura religiosa do Brasil colônia, sobretudo as igrejas de Salvador e as do círculo de Ouro Preto. Conforme a atuação institucional evoluía, novas formas de se trabalhar com a preservação e a conservação desses bens. Em 2016, a Portaria nº 137 do IPHAN definiu os marcos normativos da educação patrimonial, considerando como base o Plano Nacional de Cultura instituído pela Lei nº 12.343 de 2 de dezembro de 2010 e a Carta de Nova Olinda, de 2009, onde consta: Art. 2º Para os efeitos desta Portaria, entende-se por Educação Patrimonial os processos educativos formais e não formais, construídos de forma coletiva e dialógica, que têm como foco o patrimônio cultural socialmente apropriado como recurso para a compreensão sócio-histórica das referências culturais, a fim de colaborar para seu reconhecimento, valorização e preservação. Parágrafo único. Os processos educativos deverão primar pelo diálogo permanente entre os agentes sociais e pela participação efetiva das comunidades. Art. 3º São diretrizes da Educação Patrimonial: I — Incentivar a participação social na formulação, implementação e execução das ações educativas, de modo a estimular o protagonismo dos diferentes grupos sociais; II — Integrar as práticas educativas ao cotidiano, associando os bens culturais aos espaços devida das pessoas; III — valorizar o território como espaço educativo, passível de leituras e interpre- tações por meio de múltiplas estratégias educacionais; IV — Favorecer as relações de afetividade e estima inerentes à valorização e pre- servação do patrimônio cultural; Ensino de história e educação patrimonial4 V — Considerar que as práticas educativas e as políticas de preservação estão inseridas num campo de conflito e negociação entre diferentes segmentos, setores e grupos sociais; VI — Considerar a intersetorialidade das ações educativas, de modo a promover articulações das políticas de preservação e valorização do patrimônio cultural com as de cultura, turismo, meio ambiente, educação, saúde, desenvolvimento urbano e outras áreas correlatas; VII — incentivar a associação das políticas de patrimônio cultural às ações de sustentabilidade local, regional e nacional; VIII — considerar patrimônio cultural como tema transversal e interdisciplinar. (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, 2016, p. 6). De acordo com a legislação, a educação patrimonial é um processo, antes de tudo, do coletivo para ele próprio, tendo como foco o diálogo e a compreensão do patrimônio cultural. Segundo Florêncio (2019), essa definição ocorreu a partir de um intenso debate entre intelectuais do patrimônio (historiadores, arquitetos, museólogos, entre outros), a sociedade civil, técnicos do IPHAN e o poder público. Dentro dessas grandes categorias está a escola, e, nesse caso, o professor de história fica encarregado de trazer e explicitar os elementos da consciência histórica. Nesse contexto, o patrimônio deve ser utilizado como ferramenta para se ensinar a história assim como são os documentos nos arqui- vos e as peças do museu. Esse último, por sua vez, suscita um intenso debate entre os historiadores desde a sua natureza até o tipo de acervo que possui. A museologia estuda a relação entre o homem e o seu objeto-me- mória, e nisso está inclusa a historicidade da criação do museu. O museu é uma sede institucionalizada que abriga um acervo determinado por alguém, um conjunto de peças que tiveram um valor atribuído. Dessa forma, pode-se afirmar que uma coleção possui um objetivo que é escopo de pesquisa e explicação para o contexto social, político, econômico e cultural. De qualquer maneira, a coleção disposta em um museu passa pelo crivo da escolha, semelhante ao que ocorre com o monumento para se tornar bem cultural. Vale destacar que, no início do IPHAN, os museus foram preteridos devido à urgência de catalogarem o patrimônio espalhado pelo Brasil. Contudo, uma das primeiras manifestações de coleção e exposição de memórias ocorreu por meio dos museus. O Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi inaugurado em 1818 no reinado de D. João VI (1767-1826), iniciando uma tradição que já era estabelecida na Europa desde o século XVIII. Antes de se tornar uma prática pública, o colecionismo partiu da iniciativa privada, sendo os museus de história e de arte formados inicialmente, em sua maioria, por coleções particulares doadas ou desapropriadas (BORGES, 2011). Ensino de história e educação patrimonial 5 No caso do Brasil, Schwarcz (2001) aponta que nas primeiras décadas do século XIX, o interesse era mapear a natureza do país, além da sociedade. Já no final, após a década de 1870, novas ideias circulavam entre a intelectualidade, que tem novas teorias científicas e sociais como base. A evolução de Charles Darwin (1809-1882), o positivismo de Auguste Comte (1798-1857), o naturalismo, entre outros, embasam o que a autora descreve como fundação da cultura nacional, o que também impacta diretamente a maneira de se fazer história. Nesse contexto, Robalinho (2016, p. 56) questiona: Como esse adolescente percebe, entende, visualiza, olha para a representação que o Museu da República oferece sobre o Império? E ainda, de que forma os objetos que estão no museu e pertenceram a essa temporalidade podem servir para elucidar esse século XIX? E de que maneira esses mesmos objetos são percebidos como objetos que se relacionam com o hoje e se relacionaram com o seu tempo? Essas questões permeiam a educação patrimonial porque estão inseridas na intersecção da atividade técnica dos órgãos definidores do patrimônio e da vivência humana. Isto é, o que é considerado representação cultural deve — e necessita — ser parte daquela sociedade. A circulação de saberes e celebrações, por exemplo, nem sempre são suficientes para que eles se tornem bens tombados por precisarem responder a uma série de critérios, como peso cultural naquela comunidade. Porém, nenhuma instituição consegue impor um sentimento de pertencimento se ele não existiu previamente. Assim, como diz Chagas (2004), ao patrimônio é atribuída uma essência pedagógica por materializar os valores identitários. A identidade, contudo, é formada tanto no nível macro — como a nação — quanto micro — como bairro, cidade, estado. Marchette (2016) sugere, portanto, que estudemos a educação patrimonial a partir de divisões temáticas espe- cíficas, mas sem deixar de lado a perspectiva global. O exemplo que traz é o da paisagem cultural urbana, que tem destaque nas políticas de preservação desde o início do SPHAN. Os espaços urbanos compreendem mudanças diárias e significativas ao longo do tempo, e esse processo é interessante para se entender o desenvolvimento social. Contudo, essa característica também significa que as representações construtivas e arquitetônicas de diferentes épocas podem ser perder. Buscando preservar a memória e a arte nacional, em 1933, Ouro Preto, cidade mineira no centro do ciclo da mineração no século XVIII, foi alçada à categoria de monumento nacional, antes da aprovação da Constituição de 1934 ou da própria fundação do SPHAN. Há, nesse sentido, um motivo político além do histórico, pois segundo Marchette (2016, p. 68): Ensino de história e educação patrimonial6 A cidade, antiga capital de Minas Gerais, havia perdido seu potencial econômico com a queda da exploração do ouro; o fato de ter perdido o posto de centro político- -administrativopara a capital moderna, Belo Horizonte, demonstra que, junto aos atos preservacionistas, sempre há uma espécie de esquecimento. No caso relatado, esse fato permitiu que a arquitetura colonial alcançasse destaque como potencial do desenvolvimento local, revitalizando-a na condição de "cidade histórica". Apesar de o mesmo ocorrer, posteriormente, com os centros históricos de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, como a cidade de Olinda, Minas Gerais foi o estado mais beneficiado pelas políticas iniciais do SPHAN. No decorrer dos anos, o IPHAN aumentou o compartilhamento de responsabilidades sobre a preservação urbana com os estados e municípios. Um exemplo disso foi a assinatura do Estatuto da Cidade, como ficou conhecida a Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001, que sancionou os deveres do poder público para a ma- nutenção, segurança, bem-estar da sociedade, além da propriedade urbana (BRASIL, 2001). A forma jurídica legítima para a salvaguarda do patrimônio é o tombamento, mas para ele ser possível uma série de medidas precisam ser articuladas, uma vez que a criação de um bem cultural impacta o coletivo. Marchette (2016) finaliza argumentando que conhecer esses mecanismos é se educar sobre o patrimônio cultural, dessa forma, deve ser incluído em pautas que abordem a jurisdição da preservação patrimonial. Além disso, comprova que cada objetivo tem um caminho educacional. Ensino de história e educação patrimonial Pelegrini (2009) afirma que existem dilemas no ensino de história em relação à educação patrimonial. Na prática escolar, algumas dificuldades se revelam mais latentes do que outras, sobretudo por causa da desigualdade social em nosso país. Para tentar padronizar e facilitar a didática do professor, métodos são propostos como: [...] o primeiro passo a ser empreendido diz respeito ao levantamento da literatura sobre o enfoque temático considerado por ele mais adequado à suas turmas ou à realidade da escola. O segundo passo centra-se na delimitação dos objetivos a serem alcançados por meio das atividades planeadas e da definição da metodologia mais adequada para o bom êxito do trabalho (PELEGRINI, 2009, p. 42). A educação patrimonial deve ser adaptável às diferentes realidades do país, portanto, o ensino de história, assim como outras áreas do ensino, pode se apoiar na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), definida pelo Ministério da Educação, e que apresenta temas considerados normativos, ou seja, a história Ensino de história e educação patrimonial 7 oficializada do Brasil. O professor que se dedica aos anos escolares, muitas vezes possuem uma bagagem mais voltada à licenciatura e isso dificulta a difusão de conteúdos que ampliem a visão sobre a própria historiografia, por exemplo. Em relação ao patrimônio, esse caso se repete, já que a própria inflexibilidade do currículo escolar dificulta novos tipos de abordagem. Teixeira (2008) aponta que o desconhecimento em relação ao patrimô- nio histórico e cultural é produto, dentre tantas causas, da modernização urbana, que exige a expansão de infraestrutura muitas vezes incompatível com o bem tombado. Muitos centros históricos, classificados assim devido ao seu traçado urbano, à sua importância cultural e aos monumentos ar- quitetônicos, não resistem à especulação imobiliária e ao próprio avanço tecnológico, se tornando anacrônicos. A educação patrimonial pode mudar essa percepção, tanto no ambiente de ensino, como em escolas e universidades, quanto informal, com o incentivo comunitário ou de instituições, como os museus. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB nº 9.394/1996) incluiu temas transversais na sua proposta como parte da construção do currículo escolar, com destaque para o ensino fundamental. Isso significa que o patrimônio não pertence à narrativa con- duzida pelos governos, dependendo da boa vontade do professor e da escola para que algumas atividades sejam incluídas no programa escolar, o que, muitas vezes, esbarra na falta de conhecimento sobre o bem ou na possibi- lidade de aceitação de um novo conteúdo teórico pela diretoria. A solução que Pelegrini (2009) acredita ser mais viável é o bom senso, ou seja, os bens culturais não precisariam ser tópicos de aprendizagem todo o momento e serem guardados para situações específicas que exijam tal conhecimento. Apesar do teor didático desses argumentos, é possível questionar o próprio sistema no qual a BNCC é conduzida. A preservação do patrimônio não ocorre apenas pela via normativa, é necessário o apoio e reconhecimento popular. A identidade oficial de uma nação, ainda que seja construída artificialmente, deve ser aceita e absorvida pela população, ou não funciona. O patrimônio como representação cultural e social precisa ser abordado em sala de aula por ser um bem nacional e, assim, ser entendido como tal. Hack (2013) argumenta que a prática pedagógica deve se livrar das amarras positivistas de um ensino de história pouco didático aos alunos. Para isso, as memórias históricas locais precisam ser inseridas no contexto escolar, e a maneira que isso é feito hoje em dia é por meio da educação patrimonial. Por exemplo, observar o entorno nos revela aspectos da história conduzida por órgãos oficiais do governo. O nome de ruas, praças, monumentos apre- sentam personalidades ou momentos importantes para o País, por isso são preservados por meio desses símbolos. Ensino de história e educação patrimonial8 Chegou-se ao consenso de que o ensino de história precisa se atualizar no intuito de promover um aprendizado mais ligado à cidadania. É o que diz o primeiro Parâmetro Curricular Nacional (PCN) de história e geografia, publicado em 1997, época em que as reformas educacionais sob perspectiva legislativa foram iniciadas. Desde a Ditadura Militar (1964-1985), o ensino não era revisto e adequado ao cenário democrático dos anos 1990. Hack destaca, contudo, que a mudança tem que ocorrer primeiro na formação do professor, ou seja, o currículo pedagógico apresentado na faculdade precisa conter o tópico da educação patrimonial e a metodologia proposta pelo IPHAN. Hack (2013, p. 39) acrescenta que: [...] além de colaborar na formação de sua identidade cultural é de suma importância mostrar ser possível ensinar e aprender história por intermédio da história local (e sua relação com outras locais). Com base nisso se pode incluir o uso de diversas fontes históricas, com o objetivo de provocar a investigação e a verificação de que existem várias interpretações sobre um determinado fato histórico. Assim, é possível analisar de que modo os bens culturais podem ajudar a compreender como as pessoas se organizavam social e economicamente no passado e como essa forma de organização ainda constitui o tempo presente. A autora aborda a necessidade de transformações institucionais para auxiliar o professor em sala de aula. O estudante precisa ter contato com conteúdos diversos, mas o professor precisa estar amparado teoricamente para novas atividades. Uma forma de fazer isso é por meio de museus, que são instituições que salvaguardam patrimônio e memória. Pacheco (2010) discute as estratégias educacionais desenvolvidas pelo museu Memorial da UFRPE, mantido pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. As ações educativas voltadas para a comunidade, isto é, um público de variadas faixas etárias e sociais, tinha como objetivo expor o trabalho de ensino, pesquisa e extensão realizado na universidade. Esse processo é inte- ressante pois demonstra a amplitude temática da política preservacionista, que vai além das grandes datas e eventos do nosso passado. A instituição de ensino é patrimônio intelectual da sua comunidade e sua história deve ser transmitida para aqueles que podem usufruir dela. Essa é uma abordagem necessária em um país em que quase 26% da população entre 18 e 24 anos não completou o ensino médio e apenas 3,5% concluiu a graduação (BRASIL, 2018). Ainda que os dados não estejam atualizados, épossível ter um panorama geral da exclusividade que cerca o ensino superior, com destaque para as instituições públicas. Dessa forma, a atitude tomada pela UFRPE ajuda a desmistificar o trabalho realizado na universidade e cria um lugar de memória para a comunidade. Ensino de história e educação patrimonial 9 Pacheco (2010) relata que em 2009 uma equipe formada por um professor e quatro alunos bolsistas tiveram acesso a um espaço climatizado e adequado para a realização de atividade que estava em desuso, assim como o acesso da memória institucional. Nesse contexto, surgiu o projeto, que se transformou em exposição permanente, intitulado “UFRPE: ensino, pesquisa e extensão”. Segundo Pacheco (2010, p. 148), a metodologia desenvolvida e aplicada pelo grupo foi dividida em etapas, sendo elas: [...] 1º) pesquisa inicial: os pesquisadores da equipe se utilizaram das referências teóricas e metodológicas de diferentes áreas do conhecimento (história, Sociolo- gia, Antropologia e Educação) para construir subprojetos utilizando os objetos do acervo do Memorial da UFRPE para abordar as relações entre educação, memória e patrimônio. 2º) comunicação museal: as conclusões das pesquisas iniciais foram transformadas em sínteses capazes de serem incorporadas à exposição museológica. Assim, não interessaram extensos relatórios, mas seleções de objetos, cartazes, etiquetas que comunicassem as conclusões para, desse modo, informarem a memória da comunidade acadêmica sobre a importância histórica do objeto exposto. 3º) programa educativo: tanto no momento da pesquisa como no da montagem da exposição, teve-se em mente que o material exposto seria objeto de uma ação educativa. O planejamento e a execução dessa ação visavam potencializar os signi- ficados da exposição e potencializar o valor histórico do patrimônio e da memória coletiva. Assim, o planejamento das ações educativas do Memorial da UFRPE foi iniciado juntamente com a montagem da exposição permanente. As etapas transparecem ideias apresentadas pela educação patrimonial como o fato de se entender que as instituições de memória contribuem para a formação do sujeito em cidadão. Pelo fato de ser um museu, existe um debate sobre a absorção do conhecimento exposto naquele espaço, de que o visitante não é passivo diante do que vê. A intenção, de acordo com Pacheco (2010), era de estabelecer propostas educativas a partir das ideias de observação, registro, exploração e apropriação. A cultura material é o objeto que vai ser problematizado na exposição, pois o autor destaca a influência de Paulo Freire (1921-1997) na premissa de “leitura do mundo” adotada pelos promotores do museu. O resultado foi a criação de um roteiro de visitação, que dá à pessoa autonomia e jogos didáticos, utilizados, sobretudo, pelas excursões escolares como atividade pedagógica. Esse exemplo corrobora a ideia de Silva (2018) de que o ensino de história é essencialmente conectado a uma missão. Isto é, um projeto com objetivo definido, e, no caso da educação patrimonial, é relacionar o bem cultural, sua história e o presente vivido pelo aluno. A autora aborda o desenvolvimento de uma história regional, com o foco no estado do Tocantins e o uso do patrimônio para esse fim. Ensino de história e educação patrimonial10 Lembre-se que durante o século XIX, desde a fundação do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), em 1838, e por boa parte do século XX, a historiografia enfatizou a perspectiva macro da história do Brasil. Esse ponto de vista causa uma dissonância no ensino, já que a regionalidade é deixada de lado em prol de uma educação de viés político. Os ciclos econômicos, por exemplo, privilegiam os acontecimentos em alguns pontos específicos do país. No período do açúcar era Pernambuco e Bahia, no surgimento do ouro, era Minas Gerais e Rio de Janeiro, enquanto no desenvolvimento do café São Paulo e Rio de Janeiro eram destaques. O Nordeste ficava restrito ao litoral e à zona da mata, e o Norte só ganhou as páginas escolares com o ciclo da borracha, no século XIX. A continentalidade do Brasil não permite uma história tão sintética, e os marcos historiográficos a partir dos anos 1970 permitiram a ampliação de es- tudos acadêmicos. Porém, o trabalho conduzido a partir da revolução da nova história cultural e social no Brasil só foi sentido nos livros didáticos décadas depois. Isso está relacionado ao caráter político intrínseco à produção de obras de apoio aos professores e alunos. O processo é complexo e demorado, e os de história carregam a narrativa vigente na época de sua produção. Silva (2018) aborda essa questão ao discorrer sobre as mudanças no curso de história ao longo do século XX. Há uma clara exaltação da área e do patrimônio com o surgimento do SPHAN, que corroborou a produção de uma história nacional ainda centrada nas principais cidades do período colonial e nos estados do Sudeste. Porém, a partir da década de 1960, as disciplinas de história e geografia foram substituídas por uma só: estudos sociais. Ao amalgamar dois currículos, o Ministério da Educação restringia o conteúdo programático, adquirindo maior controle sobre o que era ensinado. Em 1971, foi aprovada a Lei nº 5.692, na qual os militares ratificaram a exclusão da autonomia da história, além de retirarem a obrigatoriedade do seu ensino no primeiro grau (o que hoje equivale ao ensino fundamental I e II). Havia uma agenda clara nessa decisão, a de minar o surgimento da resistência contra um regime que é historicamente contra o desenvolvimento do pensamento crítico. Essa situação só começou a mudar nos anos 1990, após a aprovação da LDB de 1996 e dos PCNs, de 1997. A Associação Nacional de história (ANPUH), criada em 1961, pressionou os congressistas a discutirem de forma séria e urgente a disciplina de história. Segundo Silva (2018, p. 32): Ensino de história e educação patrimonial 11 Os PCNs justificaram a necessidade de um ensino de história autônomo em seu texto e para isso se basearam nos fracassos escolares durante o período de vi- gência dos Estudos Sociais. Como alternativa, tratou-se de conceber um ensino de história cuja atuação alcançaria além da escola, do saber científico, que pudesse ser realizado em diferentes espaços e que levassem ao pleno desenvolvimento da consciência histórica e na dimensão atitudinal do conteúdo. Ou seja, busca-se uma concepção de ensino em que o aluno adote atitudes e valores em relação ao conhecimento adquirido, visando à interpelação do mesmo com a realidade. Ao passo que a consciência história dá ao sujeito uma atribuição de sentido ao tempo, permitindo que este estabeleça uma relação com o passado e presente, possibilitando a apropriação de uma percepção da sua realidade e para a com- preensão de si mesmo. Nesse contexto, surge a discussão, e concordância geral, do alinhamento da educação patrimonial e o ensino de história, pois amplia a noção que a transmissão de conhecimento ocorre para além dos muros da escola. No entanto, após décadas de retrocesso nesse campo, surgiu uma atitude mais assertiva, com o uso dos bens culturais como documentos para se entender o passado e se relacionar com ele. Nesse sentido, a história regional se privilegia das práticas pedagógicas patrimoniais. Ainda na questão da história local, Cavalcanti (2019) discorre sobre refle- xões resultantes a partir de um desafio promovido pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Um grupo de alunos decidiu pesquisar o cine Marrocos Marabá, no Pará e, para isso, fotografaram as instalações, os materiais de projeção, catalogaram os pôsteres dos filmes exibidos e entrevistaram antigos funcionários. A partir desse método, o autor discute que a produção foi tanto de história quanto de memória, haja vista que o local não recebia tal cuidado. Neste caso, entende-se que há pouca preservação do patrimônio regional e a iniciativa de transformá-lo em protagonista de um estudo cria umanova maneira de se compreender o nosso meio vivido. O cine Marrocos não é reconhecido oficialmente como patrimônio cultural, o que nos mostra como esse processo é político. A construção da narrativa se relaciona diretamente ao controle sobre o que é ou não patrimônio e memó- ria, ou seja, representação da sociedade que frequentou o local. Contudo, o cinema hoje é administrado pelo município e é reconhecido como um espaço multicultural que recebe festivais de música, teatro e cinema. Dessa forma, ele teve seu significado reformulado quando o governo mu- nicipal o fez bem público. Cavalcanti (2019) relata que o edifício, que passou por uma pequena reforma em 2002, ficou aberto de 1953, sua inauguração, até 1986. Em uma placa comemorativa instalada em seu interior, os pesqui- sadores encontraram os dizeres “Trouxe educação e entretenimento ao povo Ensino de história e educação patrimonial12 de Marabá” (CAVALCANTI, 2019, p. 9). O autor consegue deduzir a importância do estabelecimento para a cidade e seu nascimento faz parte do contexto de imigração libanesa para o Brasil. O dono era o descendente Hiran Bichara Gantus, então com 25 anos e natural de Marabá. Por ser um local relacionado ao entretenimento e lazer, Cavalcanti (2019) relata que o conteúdo e os funcionários eram fiscalizados pelos órgãos re- pressores do Regime Militar. Essas informações constroem um quebra-cabeça formado por pedaços de memória e que constituem a história de uma região paraense e brasileira. Apesar das especificidades locais, um patrimônio como esse apresenta elementos comuns a outros locais do tipo no Brasil, criando um laço identitário regional, mas também, nacional. Mello e Barra (2017) abordam o desenvolvimento de um projeto de pesquisa em parceria com a direção e os docentes do Instituto de Educação Carmela Dutra, do bairro de Madureira, na zona Norte do Rio de Janeiro. Intitulado “Memória, história e Patrimônio Cultural: desafios e perspectivas na educação básica” o intuito é ampliar e difundir o conhecimento sobre o bairro, que recebe a atenção do governo da cidade, apesar de estar distante do outro e das áreas que foram trabalhadas durante os Jogos Olímpicos. Essa região faz parte da formação dos subúrbios cariocas desde o início do século XX, principalmente depois da Reforma urbana promovida pelo prefeito Francisco Pereira Passos (1836-1913) entre 1904 e 1906. Com a saída das moradias populares, como os cortiços, do centro e o surgimento de novos meios de transportes, a população ocupou a zona Norte, que se tornou “[...] uma categoria simbólica de referência social” (MELLO; BARRA, 2017, p. 140). O foco dos pesquisadores é entender o foco identitário construído a partir da temática do patrimônio cultural, sendo que Madureira é considerado o exemplo do “subúrbio carioca”. A metodologia aplicada foi reunir os profes- sores e a diretoria para entender o conhecimento deles sobre os conceitos de patrimônio cultural. Após o questionário, conseguiram reunir dados em relação ao conhecimento da comunidade sobre o seu entorno. A história oral, as celebrações e costumes entraram nas discussões e a identidade do bairro foi capitaneada por aqueles que fazem parte dela. Debate historiográfico: identidade Assim como qualquer conceito, a identidade nacional possui sua historicidade. Woodward (2000), ao abordar a crise dos Bálcãs, que afligiu diferentes nações que conviviam em um mesmo território, definiu que a identidade é relacional, isto é, você depende de algo para existir, o outro afirma quem você é. Para a autora (WOODWARD, 2000, p. 11): Ensino de história e educação patrimonial 13 [...] a afirmação das identidades nacionais é historicamente específica. Embora possa remontar as raízes das identidades nacionais em jogo na antiga Iugoslávia à história das comunidades que existiam no interior daquele território, o conflito entre elas surge em um momento particular. Nesse sentido, a emergência dessas diferentes identidades é histórica; ela está localizada em um ponto específico no tempo. Uma das formas pelas quais as identidades estabelecem suas reivindicações é por meio do apelo a antecedentes históricos. A busca pela origem é o primeiro caminho para se construir e estabelecer a identidade coletiva de um país. No caso brasileiro, que possui um território de dimensões continentais e que teve suas fronteiras modificadas constan- temente ao longo dos séculos, criar algum tipo de unidade é uma atividade complexa. Os elementos que conectam a sociedade, como a língua, por exem- plo, também têm suas características particulares, regionais sobretudo. Porém, elementos identitários são constantemente revisitados no decorrer da história, sendo que os momentos de crise despertam essa necessidade. Nos Bálcãs, as guerras civis na década de 1990 marcaram a formação dos novos estados nacionais após a queda da Iugoslávia em 1991. O Brasil, por sua vez, possui séculos de conflitos que muitas vezes são analisados como crises locais. Hoje em dia, após o revisionismo responsável, pode-se afirmar que nossa estrutura social está alicerçada na guerra, na diferença e na desigualdade. Essa é uma discussão identitária motivada pelos questionamentos do presente, mas amparada nos estudos históricos. Quando uma transformação ocorre em um país, a ideia de nação é uma das primeiras a serem reanalisa- das. Que direção tomar? O que nós somos? As respostas nunca são exatas e possuem prazo de validade. Durante os anos 1920, por exemplo, o país vivia uma República classificada como oligárquica, comandada pela elite e para a elite, com pouca participação popular. A Constituição que vigorava ainda era a de 1891, aprovada após a instituição da República em 1889. As contestações se tornaram frequentes assim como o desenvolvimento tecnológico (BORGES, 2007). As Greves Gerais de 1917, por exemplo, expuseram a exploração da mão de obra trabalhadora não só operária. Os direitos trabalhistas se tornaram pauta e foram criados na década de 1940. Existem, portanto, novos Brasis cada vez que uma nova camada da nossa história é conhecida, modificando elementos da nossa identidade, que se forma a partir da comparação com o outro. Lopis (2017, p. 11), por sua vez, diz: O elemento patrimonial cultural deve estar atrelado ao seu contexto de um passado histórico e social, não como um artefato isolado, como vem sendo praticado por algumas sociedades que isolam o bem histórico de seu contexto, para “preservá-lo” em um museu ou instituição. Atualmente entendemos que os artefatos mudam Ensino de história e educação patrimonial14 de função ao longo do tempo. Essa mudança advém de alterações nos costumes, como consequência dos ideais de modernidade, da implementação do “estilo de vida moderno” e pelo processo de ressignificação de espaços que possuem bens/ monumentos patrimoniais. A construção identitária precisa de elementos materiais, como o patrimônio arquitetônico, e imateriais, como a história oral, para se estabelecer em uma sociedade. A preservação da memória na contemporaneidade está atrelada à globalização e às facilidades de se deslocar pelos continentes. Dessa forma, aquilo que nos representa e nos identifica perante o outro se torna latente, mais uma condição primordial para a promulgação e disseminação da edu- cação patrimonial. Ainda, segundo Lopis (2017, p. 12): O patrimônio é o símbolo de uma vivência que é temporária, mas que se torna eterna através de seus bens/monumentos, traz em si um elemento identitário muito forte, construindo um conjunto de imaginários que nos diz quem somos, de onde viemos e para onde queremos ir. Assim, o patrimônio é uma representação do passado, escolhida no pre- sente, que dita e será analisado no futuro. Patrimônio e educação patrimonial Como a área de educação patrimonial é ampla e necessita de diversos campos de pesquisa, como história, antropologia, pedagogia, arquitetura, para ser constituída, as principais obras foram encomendadaspelo IPHAN. Em 1999, foi publicado o Guia Básico de Educação Patrimonial, pelas autoras Maria de Lourdes Parreiras Horta, Evelina Grunberg e Adriana Queiroz Monteiro, a principal referência sobre a metodologia pedagógica, que até hoje suscita debates. O texto foi produzido 16 anos após o primeiro evento sobre a edu- cação patrimonial no País, ocorrido em Petrópolis, no Rio de Janeiro. O guia possui três partes, sendo a primeira dedicada à conceituação do termo e da área, com destaque para a diversidade dos bens encontrados no Brasil, o que dificulta a criação de uma metodologia única. Para Horta, Grunberg e Monteiro (1999, p. 6), a educação patrimonial: [...] trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional cen- trado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e signi- ficados o trabalho de Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural. Ensino de história e educação patrimonial 15 Elas enfatizam que a pluralidade identitária de cada região faz com que a escolha do bem patrimonial estudado seja particular. Ou seja, o objeto de estudo e ensino pode ser um bem material, como um edifício, assim como uma manifestação cultural, uma paisagem natural, um objeto, um saber, entre tantos. Após a escolha da sua fonte documental, deve-se observá-la, identificá-la, registrá-la, explorá-la, analisá-la e interpretá-la. Esse passo a passo é similar ao da produção do conhecimento histórico, o que difere é o movimento final: a apropriação, ou seja, se reconhecer no seu entorno esta- belece uma ligação próxima com o bem patrimonial, o protegendo por tabela. Na segunda parte, as autoras apresentam estudos de caso (Museu Impe- rial/ RJ, Sítio Arqueológico de São Miguel das Missões/ RS, Centro Histórico de Antônio Prado/ RS, a 4ª Colônia de Imigração italiana no Rio Grande do Sul, Patrimônio indígena dos Tikuna) para exemplificarem a aplicação me- todológica e os resultados da aproximação entre o público e o patrimônio. A relação entre o Sul do país com a ancestralidade europeia vai dos laços familiares e afetivos até a uma construção histórica acerca da identidade regional. Por isso que pensar a interdisciplinaridade entre a história e a linguística, por exemplo, auxilia no aprofundamento do debate. Porém, essa conexão fica mais tênue quando o patrimônio é mais antigo, como ocorre com os vestígios das Missões Jesuítico-Guaranis. No Brasil, existem quatro sítios que fazem parte do complexo que estão em: São Miguel Arcanjo, São Nicolau, São João Batista e São Lourenço Mártir. Junto da parte argentina, se tornaram, em 1983, Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, e o lado brasileiro já estava sob a jurisdição do IPHAN. Para aproximar os alunos dos ensinos fundamental II e médio, Horta, Grunberg e Monteiro (1999, p. 39) destacam a criação da Oficina de Arqueologia por técnicos do Instituto para apresentar o trabalho arqueológico e estreitar a conexão entre a comunidade e a região, ou até de estudantes de outros locais que passam a compreender ainda mais a história do país. A intenção dessa experiência é de: [...] desenvolver o aspecto investigativo latente na criança, de forma lúdica, levando- -a a compreender o papel do arqueólogo na tradução das evidências do passado, e a relacionar este passado com o presente e o futuro. É comum, após a realização da oficina, que algumas crianças devolvam pequenos fragmentos de cerâmica recolhidos durante a visita inicial, demonstrando a efetividade do método da Educação Patrimonial na mudança de atitude em relação ao Patrimônio Cultural, no caso, um sítio arqueológico. Ensino de história e educação patrimonial16 Para finalizar, a terceira parte traz uma série de elementos que auxiliam na elaboração de materiais didáticos voltados à prática da educação patrimonial. Esse guia embasou toda a bibliografia que surgiu desde então, sobretudo pelo seu caráter direto e didático. Em 2012, foi publicado o livro Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos, o qual desenvolve a ideia de educação voltada para o cenário brasileiro, enfatizando as práticas pedagógicas defendidas pelo próprio IPHAN desde a sua formação. Os autores, Sônia R. Florêncio, Pedro Clerot, Juliana Bezerra, Rodrigo Ramassote, elaboraram uma linha do tempo desde a criação do anteprojeto de Mario de Andrade (1893-1945), que indicava a necessidade de políticas pedagógicas para o patrimônio, pois sem o reconhecimento geral pouco poderia ser feito pela preservação do bem. Para solidificar a posição do órgão, na década de 1970, o diretor Aloísio Sérgio Barbosa de Magalhães (1927-1982) aprovou a criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), que atualizava os processos de preservação que precisam ser revistos de tempos em tempos. Com isso, o apoio pedagógico teórico ganhou substância. Sandra Pelegrini (2009), por sua vez, escreveu a obra Patrimônio Cultural: Consciência e Preservação, por meio da qual pontuou as necessidades de se conscientizar sobre o espaço que ocupamos. Em relação à sala de aula, um dos pontos semelhantes aos das autoras do Guia diz respeito à rigidez do currículo escolar no geral, que prioriza a competição entre as disciplinas em vez de estabelecer uma educação mais inclusiva. Por exemplo, em relação à posição do educador, a autora diz (PELEGRINI, 2009, p. 51): Não pode escapar ao educador a abordagem dos nexos históricos das distintas tipologias patrimoniais, a discussão acerca das condições de bens que estejam em situação de perigo como: centos históricos, sítios arqueológicos e conjuntos arquitetônicos em ruínas ou utilizados de maneira inadequada; ambientes em processo contínuo de degradação e poluição; o risco de desaparecimento de es- pécies da flora e da fauna, como vegetações ou animais em extinção; a dissipação de saberes, rituais, festas e celebrações, entre outras formas de manifestação da cultura popular tradicional [...]. No trecho, ela aponta a existência de intersecção de áreas na análise do patrimônio. Geografia, biologia, física, química são disciplinas necessárias para se entender o espaço, o bioma, a estrutura, as reações corrosivas, por exemplo. Dessa maneira, a discussão ultrapassa os limites do ensino de história, pois o bem cultural abrange mais sentidos do que apenas a análise do passado. Ensino de história e educação patrimonial 17 A educação patrimonial é aplicada aos museus, que abrigam não só peças materiais, mas também imaginário e memória. Pense no caso do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, que se dedica a mapear e apresentar as variações da nossa língua a partir de uma abordagem cultural. Mário Cha- gas (2004), por sua vez, apresenta a ideia do Saci e a relação com o Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro. Temos, aqui, um estudo específico de imaterialidade que o autor utiliza para debater a transposição do termo Heritage education para a realidade brasileira e entender a conexão entre a narrativa criada pelo museu e a própria cidade, que é o tema da instituição. A “Perna do Saci” foi catalogada em uma ficha e mantida no arquivo do museu, e motivou a análise de Chagas (2004) sobre materialidade e o patrimônio. O autor deixa claro que (CHAGAS, 2004, p. 137): [...] a suposição de sua existência [do Saci] e o fato de um dia alguém ter imaginado que o seu registro estaria ali no núcleo documental do Museu são suficientes. Síntese: meu interesse está concentrado na memória social e no debate que se organiza em torno do denominado patrimônio cultural. A musealização da cultura imaterial significa transformá-la em conheci- mento oficial e institucionalizado. Como o autor destaca, não é a veracidade da existência da entidade que interessano caso e sim o fato dela ter sido escolhida para fazer parte desse universo. Além disso, a catalogação a coloca no patamar de patrimônio material, o que Chagas (2004) denomina como o paradoxo da aproximação entre o mito e o corpo. O próprio nome “Perna do Saci” já induz esse debate, devido ao destaque dado ao hipotético membro corporal da entidade. A discussão também resvala na identidade nacional, com a busca por elementos formadores da nossa cultura. Assim, o autor relata o papel de Monteiro Lobato (1882-1948) na investigação do imaginário popular sobre o Saci. Chagas (2004, p. 141) afirma que: A iniciativa do autor [ele se refere a Lobato] de promover a atualização e o registro da potente memória do Saci tem correspondência com o que na atualidade de denomina de Registro do Patrimônio Imaterial, oficialmente instituído por meio do Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000. Ensino de história e educação patrimonial18 Em relação à educação patrimonial, entender a musealização dos bens culturais é ampliar o debate do próprio alcance da prática pedagógica, que é vasta, e, para Chagas (2004), deve-se manter assim. A educação patrimonial arqueológica teve seu início formal com a vin- culação desse campo de estudo à Política Nacional do Meio Ambiente, na década de 1980. Contudo, a práxis se torna frequente a partir da Portaria do IPHAN nº 230, de 17 de dezembro de 2002, que reforça a adoção de atividades pedagógicas para a socialização da arqueologia. A autora resgata, porém, os esforços anteriores conduzidos sobretudo pelos museus, que salvaguardam o patrimônio arqueológico desde o século XIX, mas ganhou destaque a partir dos anos 1970 com a fundação do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), da USP, o Museu Arqueológico de Sambaqui, de Joinville (SC0 e do Museu Paraense Emílio Goeldi (PA) (CARNEIRO, 2014). Carneiro (2014, p. 448) também critica a rigidez da educação patrimonial pois, [...] prevalece como principal forma de ação educacional a elaboração das fa- mosas cartilhas e/ou a realização de palestras – meios pelos quais o conteúdo arqueológico pode ser divulgado. Aliás, é no caminho da divulgação científica que muitas ações “ditas” educacionais caminham. Esses métodos, apesar de em alguns casos se configurar em estratégias iniciais e o que é possível ser realizado em determinado contexto, não podem ser confundidos com processo educacional, nem mesmo o ganho metodológico de considerar as referências patrimoniais como fonte primária faz parte destas ações. Apesar disso, a autora aponta ser importante manter o termo “educação patrimonial”, pois assim as ações planejadas possuem um direcionamento nem que seja epistemológico. A diversidade do campo de estudos é importante ao mesmo tempo em que impede uma política mais assertiva de difusão de conhecimento. Leia a obra de Carla Gilbertoni Carneiro, Educação patrimonial e arqueologia: alguns aspectos dessa interface, em que a autora reflete sobre a disseminação do patrimônio e da própria prática arqueológica. Para isso, ela enfatiza o contexto amazônico que necessita ser problematizado por várias esferas além da arqueologia, ou seja, exige a multidisciplinaridade. Ensino de história e educação patrimonial 19 Referências BEZERRA, M. Patrimônio e educação patrimonial. In: CARVALHO, A.; MENEGUELLO, C. (Org.). Dicionário temático de patrimônio: debates contemporâneos. Campinas: Ed. UNICAMP, 2020. p. 63-66. BORGES, M. E. L. (Org.). Inovações, coleções, museus. Belo Horizonte: Autêntica, 2011 BORGES, V. P. Anos trinta e política: história e historiografia. In: FREITAS, M. C. (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2007. p. 159-182. BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, DF, ano 138, n. 133, seção 1, p. 1-5, 11 jul. 2001. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/ jsp/visualiza/index.jsp?data=11/07/2001&jornal=1&paginp=1&totalArquivos=80. Acesso em: 6 mar. 2021. BRASIL. Ministério da Educação. 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