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<p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>204</p><p>GULA E LITERATURA: DIÁLOGO GASTRONÔMICO COM A OBRA DE EÇA</p><p>DE QUEIRÓS</p><p>José Roberto de Andrade1</p><p>Recebido: 07/03/2015</p><p>Aprovado: 16/12/2015</p><p>RESUMO</p><p>O escritor Eça de Queirós (1845-1900) não se destacou pelas habilidades culinárias, mas marcou a</p><p>cozinha portuguesa. Sua obra literária e jornalística revela que Eça escolheu representar, também pela</p><p>perspectiva do estômago, a sociedade portuguesa de sua época, aproximando o escritor do</p><p>cozinheiro. Neste artigo, comentam-se textos jornalísticos do escritor português e faz-se a leitura de</p><p>um jantar de O Primo Basílio para destacar a possibilidade de diálogos entre a obra do escritor e a</p><p>gastronomia e a importância deste tema como chave interpretativa dos textos ecianos.</p><p>Palavras-chave: Eça de Queirós; Literatura Portuguesa; Gastronomia; O Primo Basílio.</p><p>GLUTTONY AND LITERATURE: GASTRONOMIC DIALOGUE WITH EÇA</p><p>DE QUEIRÓS’ WORK</p><p>ABSTRACT</p><p>Portuguese writer Eça de Queirós (1845-1900) has not only been noticed due to its culinary skills but</p><p>has also influenced Portuguese cuisine itself. His literary and journalistic work reveals that Eça chose</p><p>to portrait the Portuguese society of his time from a stomach point of view, intertwining the writer’s</p><p>and the cook’s makings. To highlight the relevant role gastronomy plays as an interpretive key of</p><p>Eça's texts, we will comment in this paper about some of the writer’s journalistic texts as well as read</p><p>one of the diners depicted in O Primo Basílio.</p><p>Keywords: Eça de Queirós; Portuguese Literature; Gastronomy; O Primo Basílio.</p><p>O escritor português Eça de Queirós (1845-1900) não se destacou pelas habilidades</p><p>culinárias, mas marcou, literariamente, a cozinha portuguesa. Talvez seja possível ler sua obra</p><p>como uma experimentação de “receitas” e “ingredientes”. Ele teria, por exemplo,</p><p>“cozinhado” e “servido” padres e carolas, n´O crime do padre Amaro, a família burguesa, n´O</p><p>primo Basílio, bacharéis, n´A Relíquia e n´O Mandarim, e a burguesia e nobreza decadente, n´Os</p><p>Maias, n´A Ilustre Casa de Ramires e n´As cidades e as serras.</p><p>Neste artigo, procurarei, de forma sucinta, dar destaque a alguns textos jornalísticos</p><p>em que Eça de Queirós tratou de cozinha e a alguns estudos que ressaltam a importância da</p><p>gastronomia nas narrativas ecianas. Também analisarei uma das cenas do romance O Primo</p><p>Basílio, publicado em 1880, para exemplificar como o “cozinheiro” Eça de Queirós elabora</p><p>gastronomicamente personagens e enredo. Comecemos pelos textos jornalísticos.</p><p>1 Doutor em Literatura pela UFBA, professor do IFBA, campus Salvador.</p><p>E-mail: andrade.escolas@gmail.com</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>205</p><p>Comida e comer foram temas em vários dos textos jornalísticos do escritor. Num dos</p><p>artigos publicados na Gazeta de Portugal, em 1867, Eça compara Lisboa a outras cidades</p><p>históricas. Em tudo encontra semelhanças: Lisboa tem a mesma quantidade de colinas que</p><p>Roma: sete; o céu de Lisboa é tão transparente quanto o de Atenas; e tal qual Jerusalém,</p><p>sacrifica os que querem lhe dar alma. Diferentemente de outras cidades, no entanto, “Lisboa</p><p>o que faz? Come!”. E só se pode ver seu brilho e sua beleza, à noite, depois que a cidade</p><p>comeu. (III, p. 79) 2. As cidades comem, mas os santos devem jejuar: em artigo intitulado</p><p>“Encíclica Poética”, publicado na Revista Moderna em 1897, com fina ironia, Eça de Queirós</p><p>ataca as orientações do papa Leão XIII sobre a alimentação cristã afirmando que, se</p><p>seguissem as orientações do sumo pontífice, os cristãos, além de engordar, nunca seriam</p><p>santos. A mastigação das cidades e dos cristãos não foram as únicas incursões de Eça pela</p><p>cozinha. O texto mais exemplar e programático sobre o tema talvez seja o artigo conhecido</p><p>como “Cozinha Arqueológica”, publicado em 1893, na Gazeta de Notícias. Nele, Eça afirmou:</p><p>“a mesa constituiu sempre um dos fortes, se não o mais forte alicerce das sociedades</p><p>humanas” e “O caráter de uma raça pode ser deduzido simplesmente de seu método de assar</p><p>a carne” (III, p. 1226). A declaração ressalta a intrínseca relação entre comida e sociedade,</p><p>que Eça reforça, ao adicionar: “a cozinha e adega exercem uma tão larga e direta influência</p><p>sobre o homem e a sociedade”, por isso “dize-me o que comes, dir-te-ei o que és” (III, p.</p><p>1226). Penso que Eça não se incomodaria se acrescentasse “com quem” e “como” a este</p><p>último período: “diga-me o que comes [como comes e com quem comes] e dir-te-ei quem</p><p>és”. O acréscimo é apropriado, pois Eça destaca a necessidade de se fazer a “arqueologia” ―</p><p>daí o título do artigo ― do sistema culinário greco-romano, ou seja, dizer o que, com quem</p><p>e como a sociedade comia para entender as relações entre cozinha, processos de cozimento</p><p>e relações sócio-políticas.</p><p>Ao tratar de culinária em seus artigos jornalísticos, Eça ecoa ideias de tratados</p><p>gastronômicos de época, como Fisiologia do Gosto, publicado em 1825, pelo célebre advogado,</p><p>político e cozinheiro francês Brillart Savarin, e ― como todo autor excepcional ― antecipa</p><p>reflexões de historiadores como Jean François-Revel (1996) e Massimo Montanari (2004),</p><p>para quem os valores do sistema alimentar são resultado da representação dos processos</p><p>2 Os trechos da obra de Eça de Queirós foram retirados da edição, em quatro volumes, publicada pela editora</p><p>Aguilar, sob a coordenação de Beatriz Berrini. Nas citações, referir-me-ei simplesmente aos volumes (I, II, III</p><p>e IV) e às páginas.</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>206</p><p>culturais e a relação humana com os alimentos se estabelece segundo critérios econômicos,</p><p>nutricionais e simbólicos. Por isso a comida “se configura como um elemento decisivo de la</p><p>identidad humana y como uno de los instrumentos más eficaces para comunicarla”</p><p>(MONTANARI, 2004, p. 10). Além de ecoar e antecipar, as afirmações de Eça, tomadas na</p><p>perspectiva da proposta de representação realista da sociedade portuguesa, significam, em</p><p>alguma medida, considerar a cozinha e a comida como forma de caracterizar personagens e</p><p>sociedade. Comida seria também matéria a ser observada e moldada nas narrativas. No caso</p><p>de Eça de Queirós, essa interpretação torna-se mais consistente à medida que se saboreia, na</p><p>obra, a “arqueologia culinária” da sociedade portuguesa. O escritor não só propôs a</p><p>observação da cozinha nas sociedades clássicas, mas também considerou, em certa medida,</p><p>a gastronomia como arqué — elemento básico — das representações da sociedade</p><p>portuguesa. Arqué que foi notada por vários de seus leitores e críticos.</p><p>A comida despertou a atenção Machado de Assis, já em 1878. Na conhecida crítica</p><p>sobre O Primo Basílio, Assis arrolou “a pilha de doces”, da confeitaria em que se encontram</p><p>casualmente Sebastião e Juliana, e “o longo jantar do Conselheiro Acácio” entre os itens que</p><p>configurariam a exagerada preocupação de Eça pelo acessório. A importância da leitura de</p><p>Machado de Assis, naquele momento, não reside somente no fato de ter vislumbrado a mesa</p><p>como elemento da narrativa, mas também na maneira como elabora seu raciocínio. A</p><p>excessiva ênfase no acessório seria decorrente das preocupações com os princípios da escola</p><p>realista: “O sr. Eça de Queirós não quer ser um realista mitigado, mas intenso e completo”</p><p>(ASSIS, 1997, p. 908). O que Assis não conseguiu intuir é que, para ser zeloso com os</p><p>princípios da escola, Eça poderia ter esquecido a cozinha e dado atenção somente ao guarda-</p><p>roupa ou à biblioteca. Mas foi zeloso com a comida também. Machado de Assis viu aí fartura</p><p>desnecessária. Ao argumento do excesso,</p><p>no entanto, pode-se contrapor o da coerência</p><p>gastronômica que se constitui ao longo da obra. A comida seria um excesso de escola, se Eça</p><p>não tivesse continuado a ser zeloso com o tema. O cuidado com a comida só fez aumentar</p><p>de quantidade e qualidade nas obras e versões posteriores, reforçando a hipótese de que o</p><p>autor de Os Maias pode ter escolhido a cozinha como elemento fundamental de seu projeto</p><p>de representação de Portugal.</p><p>Mais recentemente, a importância da comida nesse projeto de representação foi notada</p><p>por vários estudiosos da sua obra. Destacarei alguns.</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>207</p><p>A variedade da cozinha eciana inspirou obras como Era Tormes e amanhecia: dicionário</p><p>gastronômico cultural de Eça de Queirós. O autor, Dario Moreira de Castro Alves, organizou e</p><p>catalogou 400 verbetes culinários, com 4.488 citações das obras de Eça. Na apresentação de</p><p>seu dicionário, Castro Alves ressalta que “Por toda a obra do grande escritor o tema comer</p><p>surge de forma poderosa, sob os mais variados ângulos: o comer bem, o comer muito, o</p><p>jantar na hora vernácula, o comer mal, a tolerância e simpatia com a glutonaria...” (ALVES,</p><p>1992, p. 15).</p><p>Na busca por interpretar a variedade catalogada por Castro Alves, encontram-se</p><p>autores como José dos Santos Werneck, que, em estudo publicado em 1946, escreveu:</p><p>Em toda obra variada de Eça ― romance, conto, crônica, lendas de santos</p><p>e até na correspondência particular, há um constante movimento de</p><p>talheres, retinir de baixelas, ou sons abafados de grosseiras malgas, que</p><p>contribuem poderosamente para a compreensão do ambiente, material e</p><p>moral e a caracterização das personagens (WERNECK, 1946, p. 161).</p><p>Percepção semelhante à de Werneck tem a professora Andrée Crabé Rocha,</p><p>responsável pelo verbete “Alusões Alimentares”, do Dicionário de Eça de Queirós, organizado</p><p>por A. Campos Matos (1988). A quantidade e a extensão das cenas gastronômicas e a intensa</p><p>utilização da culinária para caracterizar seus personagens revelam obsessão pelo tema e</p><p>despertam a seguinte dúvida: a gastronomia não teria conduzido Eça de Queirós a exorbitar</p><p>“nesta via, deixando-nos uma visão distorcida dos homens de seu tempo”? (ROCHA apud</p><p>MATOS, 1988, p. 63).</p><p>Sem se questionar sobre as possíveis distorções na realidade representada, a</p><p>pesquisadora Maria José de Queiróz destacou a importância do tema na obra de Eça de</p><p>Queirós. Mineira e gourmet, escreveu o excelente A Literatura e o Gozo Impuro da comida. Nas</p><p>onze páginas dedicadas a Eça ― a maior quantidade para um único escritor ―, identifica os</p><p>endereços gastronômicos frequentados pelo autor e por suas personagens ― O restaurante</p><p>do Hotel Central, em que João da Ega oferece o jantar ao Cohen, em Os Maias, teria sido o</p><p>mesmo em que Eça pediu a mão de sua esposa, Emília ―, refere-se à disposição do autor</p><p>para oferecer boa comida aos amigos e a seus problemas gástricos, que o impediam, muitas</p><p>vezes, de saborear as iguarias de que gostava. A autora, no entanto, não se restringe à</p><p>identificação do espaço do mundo, representante, e o espaço da ficção, representado, e às</p><p>relações entre autor e gastronomia. Ela quer demonstrar que o tema teve papel importante</p><p>na literatura de língua portuguesa. E Eça é um dos seus autores exemplares. Nele, a culinária</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>208</p><p>não é mero tema decorativo. Instruído na fisiologia do gosto, leitor de</p><p>Flaubert e Zola, dispensa-lhe o desvelo de um aficionado um aficionado à</p><p>nona arte e a atenção de um discípulo do realismo (QUEIRÓZ, 1994, p.</p><p>202).</p><p>A atenção seria decorrente, também, da “grande vocação de gourmet” e do empenho</p><p>pessoal “na condenação da sociedade” que levariam o escritor a projetar, em suas</p><p>personagens, as delicadezas do paladar exigente e “[a] pinta[r] com crueza os excessos do</p><p>ventre”:</p><p>Servem-se também à mesa a falta de pudor, de modéstia com que os</p><p>burgueses agridem a moral e os costumes. Fortemente acentuado pelos</p><p>traços da caricatura, o apetite instrui as mais variadas formas de</p><p>comportamento. Compete à temperança e à gula determinar as reações</p><p>instintivas, as peculiaridades de caráter e demais pronunciamentos da</p><p>individualidade (QUEIRÓZ, 1994, p. 202-203).</p><p>Os comportamentos gastronômicos das personagens e a importância da culinária na</p><p>obra eciana também não escaparam à observação atenta de Beatriz Berrini, que preparou a</p><p>edição da Obra Completa de Eça de Queirós e organizou o belíssimo Comer e beber com Eça de</p><p>Queirós (1995), livro que traz receitas inspiradas nas narrativas ecianas e instrui os leitores a</p><p>elaborar os pratos, alguns oferecidos na Fundação Eça de Queirós, em Tormes, onde o</p><p>percurso turístico passa pela “mesa de Eça”. Berrini afirma que as personagens ecianas</p><p>comem, bebem e sentem prazer ou desprazer com isso. Comer e beber são elementos da</p><p>representação crítica dos costumes sociais da época e as considerações em torno das refeições</p><p>contribuem, por exemplo, para desenvolvimento do enredo, apresentação e caracterização</p><p>das personagens, exposição de ideias e marcação de contrastes.</p><p>Castro Alves, Werneck, Rocha, Queiroz e Berrini referem-se ao conjunto da obra</p><p>eciana e indicam que o zelo com a comida não era, como imaginou Machado de Assis, um</p><p>exagero de escola. Em Eça de Queirós, as cenas gastronômicas estruturam o ambiente moral</p><p>e material, servem à caracterização das personagens, ao desenvolvimento do enredo e ao</p><p>exercício da crítica e da sátira. Assim, a cozinha, em certa medida, ordena o universo narrativo</p><p>de Eça e revela uma importante possibilidade de interpretação de seu projeto de</p><p>representação da sociedade portuguesa. Em artigos anteriores (ANDRADE, 2012 e 2013)</p><p>procurei destacar como esse projeto se concretiza em O Crime do Padre Amaro, Os Maias, A</p><p>Relíquia e O Mandarim. Aqui, analisarei uma cena de O Primo Basílio, com o objetivo de</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>209</p><p>exemplificar os procedimentos de Eça de Queirós na caracterização gastronômica de seus</p><p>personagens.</p><p>Como sugeri anteriormente, o ingrediente principal d´O Primo Basílio é a família da</p><p>burguesia média de Lisboa. O romance inicia-se Jorge e Luísa vivendo o idílio, a placidez e a</p><p>estabilidade de um casamento burguês. As exigências do trabalho de Jorge, um engenheiro</p><p>de minas, levam-no a viajar pelo Alentejo e deixar Luísa, solitária e entediada, em Lisboa.</p><p>Nesse momento, volta do Brasil o primo Basílio, com quem Luísa conviveu e flertou na</p><p>adolescência. Ele se reaproxima da prima, inicia um jogo de sedução e é correspondido. A</p><p>criada de Luísa, Juliana, apodera-se de uma carta de amor que Luísa escreve a Basílio e</p><p>chantageia a patroa. No final, a carta é recuperada e Juliana morre, mas Jorge descobre a</p><p>traição e o final é trágico também para Luísa.</p><p>Se em outras obras a culinária contribui para o desenvolvimento do enredo e</p><p>caracterização das personagens, n´O Primo Basílio não poderia ser diferente. Analisarei a cena</p><p>de um jantar que Luísa oferece a sua amiga Leopoldina para entender qual o papel da mesa</p><p>e da comida nessa caracterização. Na edição das obras completas, a cena, desde a chegada de</p><p>Leopoldina até sua saída da casa de Luísa, vai da página 561 à 569, do capítulo X, volume I,</p><p>mas há dois importantes episódios anteriores: ausência de Basílio e a visita de Sebastião.</p><p>Naquele dia, Basílio não veio visitar Luísa, que está, por isso, preocupada e entristecida. Ela</p><p>começa a escrever uma carta para o primo, mas é interrompida pela chegada de Sebastião,</p><p>amigo do casal, que vem para alertar Luísa sobre os comentários da vizinhança: as “línguas</p><p>danadas” (I, p.</p><p>559) já falam das visitas diárias de Basílio. Luísa ouve as admoestações do</p><p>amigo, mas sente-se contrariada, irritada e injustiçada. A intromissão de Sebastião e “os</p><p>‘palratórios’ da rua” são pérfidos e inaceitáveis, principalmente se contrastados com a</p><p>imagem que Luísa faz de si: ela tinha certeza de que “podia ter lá dentro uma fraqueza... Mas</p><p>seria sempre uma mulher de bem, fiel, só dum!” (I, p. 561).</p><p>Ao receber a amiga Leopoldina, Luísa está, portanto, triste e preocupada com a</p><p>ausência do primo, exasperada com a invasão de sua intimidade, irritada com os comentários</p><p>da vizinhança e já envolvida no jogo de sedução que Basílio iniciou. Nutre desejo pela</p><p>aventura adúltera e o jantar com a amiga vai apimentar essa vontade. Embora tenham sido</p><p>vizinhas e amigas íntimas no colégio, Leopoldina é conhecida por suas aventuras amorosas,</p><p>por suas ideias “sediciosas” e não é — principalmente segundo os maridos — companhia</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>210</p><p>adequada para “uma mulher de bem, fiel, só dum!”.3 Luísa, entretanto, percebe-se forte e</p><p>capaz de resistir à “má influência” de Leopoldina e a recebe para jantar. A fragilidade de</p><p>Luísa e a ascendência de Leopoldina sobre ela vão, porém, se concretizar antes, durante e</p><p>depois do jantar. Antes de sentarem à mesa, Leopoldina:</p><p> detalha as exigências e desmazelos de Justina, sua criada;</p><p> fala da ausência do marido: “Lá o meu senhor foi para o Campo Grande” (I,</p><p>p. 562);</p><p> menciona seus amantes, sem deixar de se demonstrar independência crítica e</p><p>“paladar”: esteve para jantar com um deles, mas “olha, a falar a verdade, nem</p><p>sabia onde, nem tinha dinheiro... Que ele coitado com a sua mesada mal lhe</p><p>chega. Disse comigo: nada, vou ver a Luísa” (I, p. 562).</p><p>Os temas do jantar e, também, da trama estão, portanto, postos à mesa, antes do caldo</p><p>e do assado: criadas, amantes e maridos. E o tratamento desses temas já revelam os contrastes</p><p>básicos das personagens. Luísa entristece com a ausência de Basílio e pretende ser mulher de</p><p>um homem só, anunciando, em certa medida, sujeição e dependência. Leopoldina,</p><p>diferentemente, queixa-se das criadas, mas demonstra maleabilidade para não as contrariar</p><p>“quando a gente depende delas” (I, p. 562); reclama do marido, mas não deixa de chamá-lo</p><p>“meu Senhor”; entrega-se às aventuras amorosas, mas posiciona-se com independência em</p><p>relação aos amantes: dispensa o atual por não ter mesada que permita oferecer certeza de</p><p>qualidade no “cardápio” e no “restaurante”. Essa relativa autonomia e flexibilidade vão se</p><p>acentuar em Leopoldina, a começar pelo relativo desrespeito à “etiqueta gastronômica”,</p><p>interferindo no cardápio:</p><p>— Tens tu bacalhau?</p><p>Devia haver, talvez. Que extravagância! Por quê?</p><p>— Ai! — exclamou. — Manda-me assar um bocadinho de bacalhau! Meu</p><p>marido detesta bacalhau! Aquele animal! Eu é a minha paixão. Com azeite</p><p>e alho! — Mas calou-se, contrariada — Diabo!</p><p>— O quê?</p><p>— É que hoje não posso comer alho... (I, p. 562)</p><p>3 Talvez seja importante retomar um trecho da caracterização de Leopoldina:</p><p>Era a sua íntima amiga. Tinham sido vizinhas, em solteiras, na Rua da Madalena, e estudado no mesmo colégio,</p><p>à Patriarcal, na Rita Pessoa, a coxa. [...] Tinha feito um casamento infeliz com um João Noronha, empregado</p><p>da Alfândega. [...]</p><p>Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha vícios. Jorge odiava-a. E dissera muitas vezes a Luísa: Tudo,</p><p>menos a Leopoldina!</p><p>Leopoldina tinha então vinte e sete anos. Não era alta, mas passava por ser a mulher mais bem feita de Lisboa.</p><p>(I, p. 464)</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>211</p><p>Leopoldina aproveita a ausência do marido, que não suporta a iguaria, e exige o</p><p>extravagante bacalhau, mas se priva, inicialmente, do alho, para resguardar a “etiqueta</p><p>amorosa”. Privação momentânea. Entre o amor e o sabor, Leopoldina escolhe os dois: come</p><p>a seu gosto e, com hálito de alho, vai ao encontro de Fernando, poeta e amante:</p><p>E como Juliana entrava com o bacalhau assado, fez-lhe uma ovação!</p><p>— Bravo! Está soberbo!</p><p>Tocou-lhe com a ponta do dedo, gulosa; vinha louro, um pouco toscado,</p><p>abrindo em lascas.</p><p>— Tu verás — dizia ela. — Não te tentas? Fazes mal!</p><p>Teve então um movimento decidido de bravura, disse:</p><p>— Traga-me um alho, Sra. Juliana! Traga-me um bom alho!</p><p>E apenas ela saiu:</p><p>— Eu vou ter logo com o Fernando, mas não me importa!... Ah! Obrigada,</p><p>Sra. Juliana! Não há nada como o alho!...</p><p>Esborrachou-o em roda do prato, regou as lascas do bacalhau de um fio</p><p>mole de azeite, com gravidade. — Divino! — exclamou. Tornou a encher</p><p>o copo; achava aquilo uma pândega. (I, p. 564-565).</p><p>Ao solicitar o bacalhau e, depois, o alho, Leopoldina caracteriza-se como decidida,</p><p>corajosa, gulosa e amante da diversão e do prazer. Essas características contrastam com as</p><p>de Luísa — que se espanta com a extravagância da amiga e, aparentemente, não se deixa</p><p>“tentar” pelo bacalhau — e vão somar-se a outras como, por exemplo: desafinada e teatral</p><p>interprete de fado. Enquanto espera o bacalhau assar, canta para atender ao desejo de Luísa:</p><p>“queria alguma coisa triste, doce... O fado! Que tocasse o fado!” (I, p. 563). O desejo de Luísa</p><p>relaciona-se ao seu estado de tristeza e de dupla solidão, já que o marido está distante e o</p><p>primo não veio para a visita diária. Leopoldina escolhe cantar o mais recente e sentimental</p><p>fado que circula nos salões de Lisboa:</p><p>— Ai, o fado novo! Tu não ouviste? É lindo! Os versos são divinos!</p><p>[...]</p><p>— Tu não sabes isto, Luísa? Oh, filha! É o último! É de chorar!</p><p>Recomeçou, com o tom muito quebrado. Era a história rimada de um</p><p>amor infeliz. Falava-se nas "raivas do ciúme, nas rochas de Cascais, nas</p><p>noites de luar, nos suspiros da saudade", todo o palavreado mórbido do</p><p>sentimentalismo lisboeta. Leopoldina dava tons dolentes à voz, revirava</p><p>um olhar expirante; uma quadra sobretudo enternecia-a; repetiu-a com</p><p>paixão:</p><p>Vejo-o nas nuvens do céu,</p><p>Nas ondas do mar sem fim,</p><p>E por mais longe que esteja</p><p>Sinto-o sempre ao pé de mim.</p><p>— Lindo! — suspirava Luísa.</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>212</p><p>E Leopoldina terminava com ais! em que a sua voz se arrastava numa</p><p>extensão desafinada. (I, p. 562-563).</p><p>Luísa mostra-se inapetente, melancólica e encanta-se com “o palavreado mórbido do</p><p>sentimentalismo lisboeta”. Leopoldina, diferentemente, é apaixonada e exageradamente</p><p>fervorosa ao interpretar o fado, mas não se deixa tomar pela melancolia da música. À mesa,</p><p>faz-se loquaz e “servia-se muito, com gula”. Gulosa e apaixonada no servir, mas contida no</p><p>comer: “depois picava um bocadinho na ponta do garfo, provava, deixava, punha-se a comer</p><p>côdeas de pão que barrava de manteiga” (I, p. 563).</p><p>. A melancolia e a gula, em Leopoldina, são mais encenação que ação; ela não se</p><p>entristece nem se empanturra. O que lhe permite rir e conversar animadamente com Luísa</p><p>sobre alguns temas centrais do universo feminino.</p><p>Comendo o bacalhau, o assado, depenicando bagos de uvas e bebericando golinhos de</p><p>vinho e de champanhe — que Leopoldina “se fosse rica, bebia sempre” (I, p. 566) —,</p><p>Leopoldina fala de criadas, maridos, amantes e chega às recordações do colégio. As</p><p>lembranças do colégio trazem para a mesa personagens e cenas da formação amorosa e</p><p>sexual4 de Luísa e Leopoldina. Lembram um tal Espinafre — a quem “todas [as meninas]</p><p>escreviam bilhetes, desenhavam-lhe corações de onde saia uma fogueira” (I, p. 563) — e de</p><p>Micaela que “foi apanhada, no cacifo dos baús, a devorá-lo [Espinafre] de beijos!...” (i, p.</p><p>563). Luísa reage à lembrança com uma exclamação de pudor — “que</p><p>horror”! (I, p. 563) —</p><p>mas não interrompe a conversa que, entre o assado, vinho, frutas, avança até os</p><p>“sentimentos”, eufemismo para se referir aos relacionamentos homoafetivos que ela e</p><p>Leopoldina mantiveram com outras meninas. Novamente aqui, as amigas revelam diferentes</p><p>concepções. Luísa classifica essas relações de “tolices” e Leopoldina entende que são amores</p><p>intensos e duradouros:</p><p>Ai! Era sempre com saudades que falava dos sentimentos. Tinham sido as</p><p>primeiras sensações, as mais intensas. Que agonia de ciúmes! Que delírio</p><p>de reconciliações! E os beijos furtados! E os olhares! E os bilhetinhos, e</p><p>todas as palpitações do coração, as primeiras da vida!</p><p>— Nunca — exclamou —, nunca, depois de mulher, senti por um homem</p><p>o que senti pela Joaninha!... Pois podes crer... (I, p. 564).</p><p>4 Afirmei em publicações anteriores que gula e luxúria estão estreitamente relacionadas na obra de Eça. Relação</p><p>que foi percebida por Isabel Pires de Lima: “a aproximação entre gula e luxúria [...] é frequente no universo</p><p>romanesco queirosiano” (1997, p. 717). Em Eça, os espaços dedicados à comida e à sexualidade (o comer no</p><p>sentido metafórico) e os discursos sobre essas atividades estão intimamente relacionados. Neste artigo, não é</p><p>nosso objetivo tratar dessa relação, mas é impossível não a perceber na cena escolhida para análise.</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>213</p><p>Embora considere “tolices”, Luísa acompanha atentamente o discurso de Leopoldina</p><p>e dele não discorda, apenas cuida para que a criada, Juliana, não ouça a conversa e se preserve</p><p>a respeitabilidade da casa:</p><p>Um olhar de Luísa deteve-a. — A Juliana! Diabo! Tinha-se esquecido!</p><p>[...]</p><p>— Ah! A respeitabilidade da casa! Tens razão! — murmurou. (I, p. 564)</p><p>Mesma respeitabilidade que Luísa procura conservar quando Leopoldina deseja fumar:</p><p>[...] Sabes tu, fumava agora um cigarrito...</p><p>O pior é que Juliana podia sentir o cheiro. E parecia tão mal!...</p><p>— É um convento, isto! — murmurou Leopoldina. — Não tens má</p><p>prisão, minha filha! (I, p. 566)</p><p>Fumo e relações homoafetivas não são recomendados a mulheres “de bem”, mas são</p><p>tolerados desde que se resguarde a aparência de moralidade. Essa dinâmica de respeito e de</p><p>ataques aos bons costumes não se configura de forma simples. Leopoldina adota práticas</p><p>que destoam das concepções morais da burguesia lisboeta, mas respeita, ainda que com uma</p><p>ponta de ironia, os limites impostos a si — Gama, o marido, é senhor e proíbe o bacalhau</p><p>na sua mesa — e à amiga: “não tens má prisão, minha filha”. E Luísa, embora tome o partido</p><p>das aparências no caso do fumo e dos sentimentos, parece defender mais aguerridamente</p><p>algumas das respeitáveis posições da família burguesa. Por exemplo, quando falam de religião</p><p>e de Deus:</p><p>— Ah, os padres... — murmurou Luísa.</p><p>— Os padres quê? São a religião! Nunca vi outra. Deus, esse, minha rica,</p><p>está longe, não se ocupa do que fazem as mulheres.</p><p>Luísa achava horrível aquele modo de pensar. A felicidade, a verdadeira,</p><p>segundo ela, era ser honesta... (I, p. 566).</p><p>da promiscuidade de Leopoldina:</p><p>— Pois olha que com as tuas paixões, umas atrás das outras...</p><p>Leopoldina estacou:</p><p>— O quê?</p><p>— Não te podem fazer feliz!</p><p>— Está claro que não! — exclamou a outra. — Mas... — [...] disse apenas</p><p>com um tom seco: — Divertem-me! (I, p. 568)</p><p>e da independência masculina, que Leopoldina inveja:</p><p>— Ah! — exclamou. — Os homens são bem mais felizes que nós! Eu</p><p>nasci para homem! O que eu faria!</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>214</p><p>[...]</p><p>— Um homem pode fazer tudo! Nada lhe fica mal! Pode viajar, correr</p><p>aventuras... (I, p. 566)</p><p>e Luísa desdenha: “São tolices, no fim, andar, viajar! A única coisa neste mundo é a</p><p>gente estar na sua casa, com o seu homem, um filho ou dois...”. (I, p. 566)</p><p>A esposa de Jorge prega honestidade, defende que mulheres devam ficar em casa,</p><p>criando os filhos — condição inaceitável para Leopoldina —, condena a promiscuidade</p><p>amorosa e a maneira da amiga falar da religião e de Deus, mas não percebe os caminhos</p><p>contraditórios que seu pensamento percorre durante o jantar. Embora fale da vida caseira e</p><p>maternal, Luísa “ambicionava um cupê; e queria viajar, ir a Paris, a Sevilha, a Roma” (I. p.</p><p>566). A defesa da honestidade não tem espaço, quando o tema são os possíveis amantes de</p><p>Luísa. Ela ruboriza na lembrança de Basílio:</p><p>E então Leopoldina, com os olhos no prato, partindo devagar, muito</p><p>atenta, lascazinhas de bacalhau:</p><p>— E teu primo veio ver-te?</p><p>Luísa fez-se vermelha. (I, p. 565)</p><p>e sorri na menção a outro pretendente, o banqueiro Castro:</p><p>— Sabes quem me falou ontem de ti?</p><p>— Quem?</p><p>— O Castro.</p><p>[...]</p><p>— Muito apaixonado por ti sempre.</p><p>Luísa riu. (I, p. 568-569)</p><p>O desejo de viagem, o rubor e o sorriso são indicativos da curiosidade e do desejo, que</p><p>Luísa vai explicitar, quando Leopoldina, envolta num ar de confidência e sensualidade,</p><p>continua a tratar de sua relação com seu atual amante, Fernando:</p><p>o champanhe, a meia obscuridade deram-lhe bem depressa a necessidade</p><p>de cochichar confidenciazinhas. [...] pôs-se a falar dele. Era ainda o</p><p>Fernando, o poeta. Adorava-o.</p><p>— Se tu soubesses! — murmurava com um ar de êxtase. — É um amor</p><p>de rapaz!</p><p>A sua voz velada tinha inflexões de uma ternura cálida. Luísa sentia-lhe o</p><p>hálito e o calor do corpo, quase deitada também, enervada; a sua respiração</p><p>alta tinha por vezes um tom suspirado; e a certos detalhes mais picantes</p><p>de Leopoldina soltava um risinho quente e curto, como de cócegas... (I, p.</p><p>569)</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>215</p><p>A escuta atenta dos detalhes picantes, a aproximação física e o “risinho quente e curto”</p><p>revelam mais interesse que indignação. E Leopoldina demonstra habilidade na condução da</p><p>conversa: parte o bacalhau lentamente, observa as reações de Luísa, bebe o vinho e o</p><p>champanhe, e espera estarem próximas, quase deitadas, para falar, “com ar de êxtase”, do</p><p>amante.</p><p>Em todos os diálogos e ações, Leopoldina se mostra — sem muitas vezes ser — gulosa,</p><p>corajosa, questionadora, sedutora, apaixonada, pândega e amante dos prazeres da vida. Luísa</p><p>se encanta com algumas características de Leopoldina e se deixa seduzir por elas, mas procura</p><p>manter a imagem de esposa fiel, contida, respeitadora da religião e conservadora dos bons</p><p>costumes familiares. É um jogo de aparências e conveniências que se constitui, também, no</p><p>menu e na forma de comer. Quem recusa convites, direciona o cardápio e insiste no alho,</p><p>apesar do amante, cria uma imagem de quem põe o prazer gustativo acima do amor, sem</p><p>dispensar este último. E Leopoldina pauta a conversa, sugere o cardápio e serve-se com gula,</p><p>mas só “belisca” o assado, as frutas, e trincha delicadamente e vagarosamente o bacalhau.</p><p>Também saboreia o vinho e o champanhe, devagar, com gosto. Prefere comer antes de amar,</p><p>mas não dispensa o amor, mesmo depois de comer alho. Leopoldina procura sentir prazer</p><p>com a comida, com a conversa e com os amores que “divertem-me”. Luísa aparece mais</p><p>contida, não leva a comida à boca, entedia-se com a solidão, entristece-se por não realizar os</p><p>desejos. Em certa medida, deixa de comer e de amar. Na mesa, Leopoldina demonstra, em</p><p>relação à comida e à bebida, a mesma independência e distância relativa que consegue manter</p><p>dos amantes e aos padrões sociais. Come e bebe do melhor, satisfaz o paladar, mas não se</p><p>empanturra nem se embebeda. Luísa, diferentemente, quase não leva comida à boca, prefere</p><p>ouvir e se embriagar com a melancolia do fado e o álcool do champanhe. E embora esboce</p><p>críticas, revela-se</p><p>seduzida pela personalidade forte e, em certa medida, masculina, de</p><p>Leopoldina; sedução que vai continuar depois de servido o café.</p><p>Leopoldina parte para os braços do amante e Luísa fica só, em meio à “noite cálida,</p><p>bela e doce, [que] atraía-a, chamava-a para fora, para passeios sentimentais, [...] com as mãos</p><p>entrelaçadas” (I, p. 570). O calor da noite e o desejo do contato, trazem-lhe de volta “as</p><p>conversas de Leopoldina e a lembrança das suas felicidades” (I, p. 570). Além disso, “uma</p><p>pontinha de champanhe agitava-se no sangue” (I, p. 570). O calor, a solidão, a lembrança da</p><p>conversa, a embriaguez, levam Luísa a:</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>216</p><p>sem querer, não podia desprender a idéia de Leopoldina que ia ver o seu</p><p>amante! O seu amante!... [...] — e que delicioso, que ávido, que profundo</p><p>o primeiro beijo! Suspirou. Também ela amava — e um mais belo, mais</p><p>fascinante. Por que não tinha vindo? (I, p. 570)</p><p>Nesse momento, em que pensa na aventura amorosa de Leopoldina, Luísa se esquece</p><p>do marido, lembra do primo, e:</p><p>de repente a campainha retiniu. [...] Pôs-se a escutar assustada. Vozes</p><p>falavam à cancela.</p><p>— Minha senhora — veio dizer Joana baixo — é o primo da senhora que</p><p>se vem despedir...</p><p>Abafou um grito, balbuciou:</p><p>— Que entre!</p><p>Os seus olhos dilatados cravavam-se febrilmente na porta. [...] Basílio</p><p>entrou, pálido, com um sorriso fixo.</p><p>— Tu partes! — exclamou ela surdamente, precipitando-se para ele.</p><p>— Não! — E prendeu-a nos braços. — Não! Imaginei que me não</p><p>recebias a esta hora, e tomei este pretexto. (I, p. 570)</p><p>Toda a atmosfera do jantar atiçou o desejo em Luísa. Ela também está apreensiva com</p><p>a ausência do primo. Por isso, o pretexto da partida é perfeito. Luísa estremece diante da</p><p>possibilidade de perder o amante e não realizar seus desejos amorosos. Precipita-se para</p><p>Basílio, que:</p><p>Apertou-a contra si, beijou-a; ela deixava, toda abandonada; os seus lábios</p><p>prendiam-se aos dele. Basílio deitou um olhar rápido, em redor, pela sala,</p><p>e foi-a levando abraçado, murmurando: — Meu amor! Minha filha! —</p><p>Mesmo tropeçou na pele de tigre, estendida ao pé do divã.</p><p>— Adoro-te!</p><p>— Que susto que tive! — suspirou Luísa.</p><p>— Tiveste?</p><p>Ela não respondeu; ia perdendo a percepção nítida das coisas; sentia-se</p><p>como adormecer; balbuciou: — Jesus! Não! Não! — Os seus olhos</p><p>cerraram-se. (I, p. 570)</p><p>Aqui, na entrega, o contraste se acentua. Leopoldina pede o bacalhau e o alho; mantém</p><p>marido e amantes; seduz tanto quanto se deixa seduzir. Luísa não revela essa mesma agilidade</p><p>e força. Frágil na mesa, frágil no amor: deixa-se seduzir e entrega-se ao amante, dentro da</p><p>própria casa, quase diante das criadas, comprometendo definitivamente a “respeitabilidade</p><p>do lar”.</p><p>Retomando a analogia entre cozinha e literatura que procurei estabelecer no início</p><p>deste artigo: das possíveis “receitas” para as mulheres de uma família da burguesia lisboeta,</p><p>Eça de Queirós parece ter seguido a mesma para “cozer” Luísa e Leopoldina: são vizinhas,</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>217</p><p>estudam num mesmo colégio, partilham experiências amorosas, encomendam roupas nas</p><p>mesmas modistas, comem às mesmas mesas, casam-se e, se desejam amantes, precisam lidar</p><p>com as exigências e desmazelos das criadas. As diferenças aparecem na maneira como</p><p>modelam essas experiências e na importância que dão a certos aspectos da vida, ou seja, no</p><p>“tempero” e no “modo de preparo”. E o bacalhau com alho simboliza esse contraste.</p><p>Extravagância para Luísa, prazer para Leopoldina. O extravagante prato é um símbolo do</p><p>destemor de Leopoldina para questionar padrões de convivência, gastronômica e amorosa,</p><p>sem deixar de aceitá-los quando é conveniente. Coragem que Luísa não desenvolve: entrega-</p><p>se ao amante em sua própria casa, mas terá dificuldade para saborear e, depois, divertir-se</p><p>com a aventura. Quem conhece o romance sabe que Luísa não conseguirá comer “bacalhau</p><p>com alho”, nem flexibilizar suas concepções e “lidar com as criadas quando se precisa delas”.</p><p>A caracterização de Luísa e Leopoldina à mesa é coerente com os seus destinos na</p><p>narrativa. E a análise desse episódio gastronômico d´O Primo Basílio é um exemplo de que</p><p>comida e comer não são acessórios no texto eciano. No projeto de representação da</p><p>sociedade portuguesa, cardápio, maneiras e companhias à mesa constituem a base do alicerce</p><p>social e concretizam o programa que Eça de Queirós expôs no texto “Cozinha</p><p>Arqueológica”: “diga-me o que [como e com quem] comes e dir-te-ei quem és”.</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>ALLENDE, Isabel. Afrodite: contos, receitas e outros afrodisíacos; ilustrações Robert Shekter;</p><p>receitas Panchita Llona; tradução Claudia Schilling. Rio de Janeiro: Bertrand, 1998.</p><p>ALVES, Dario Moreira de Castro. Era Tormes e Amanhecia: dicionário gastronômico cultural de Eça</p><p>de Queirós. Rio de Janeiro: Nordica, 1992.</p><p>ANDRADE, José Roberto de. Comer e comer: um verbo, dois (re)cortes em O Crime do</p><p>Padre Amaro. Revista Eletrônica do IFBA. Ano 3, Nº 3, Julho-Dezembro/2012, p. 33-45.</p><p>Disponível em . Acesso em 16</p><p>jan. 2013.</p><p>ANDRADE, José Roberto de. Culinária e modificações do gosto em Eça de Queirós: O</p><p>Crime do Padre Amaro e Os Maias. In: Petrov, Petar; Sousa, Pedro Quintino de; Samartim,</p><p>Roberto López-Iglésias & Torres Feijó, Elias J. (eds.). Avanços em Literatura e Cultura</p><p>Portuguesas. De Eça de Queirós a Fernando Pessoa. Santiago de Compostela―Faro: Associação</p><p>Internacional de Lusitanistas―Através Editora, 2012, p. 141-158. Depósito legal: C 594-2012</p><p>ANDRADE, José Roberto de. Intermitência gastronômica? Sonho, realidade e farsa n´A</p><p>Relíquia e n´O Mandarim. Anais do XXIII Congresso Internacional da Associação Brasileira de</p><p>Professores de Literatura Portuguesa (ABRAPLIP). Disponível em: . Acesso em</p><p>12 dez. 2012.</p><p>DESASSOSSEGO 14 | DEZ/2015 | ISSN 2175-3180</p><p>DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v7i14p204-218</p><p>218</p><p>ASSIS, Machado. Eça de Queirós: O Primo Basílio. In: Obra Completa. V. III. Rio de Janeiro:</p><p>Aguillar, 1997, p. 903-913.</p><p>BERRINI, Beatriz (Org.). Comer e beber com Eça de Queirós. Rio de Janeiro: Index, 1995.</p><p>BERRINI, Beatriz. Eça de Queirós e os prazeres da mesa. Semear, Rio de Janeiro, v. 01, n.</p><p>01, p. 53-66, 1997.</p><p>CAL, Ernesto Guerra da. Língua e Estilo de Eça de Queirós. São Paulo: Edusp; Rio de Janeiro:</p><p>Ed. Tempo Brasileiro, 1969.</p><p>FLANDRIN, Jean-Louis. A distinção pelo Gosto. In: Aries, Fhiplipe e Chartier, Roger.</p><p>História da Vida Privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. Tradução Hildegard Feist. São</p><p>Paulo: Companhia das Letras, 1991. P. 267-309.</p><p>KELLY, Ian. Carême: cozinheiro dos reis. 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