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<p>84</p><p>Demências</p><p>Além do notório déficit de memória (amnésia), demências podem apresentar declínios de</p><p>linguagem (afasia), de função motora (apraxia), de reconhecimento (agnosia), de função</p><p>executiva (AIVD, ABVD, resolução de problemas, memória de trabalho...) e alterações de</p><p>personalidade [ver Stahl Tabelas 13.5 e 13.16].</p><p>Tabela 7 Características clínicas de algumas das principais demências degenerativas.</p><p>DEMÊNCIA CARACTERÍSTICAS</p><p>DOENÇA DE ALZHEIMER</p><p>Amnésia / Afasia / Apraxia / Agnosia</p><p>DEMÊNCIA COM CORPOS DE LEWY</p><p>Amnésia / Flutuação da atenção /</p><p>SEP (alta sensibilidade a antipsicóticos) /</p><p>Alucinações visuais</p><p>DEMÊNCIA FRONTOTEMPORAL (DFT)</p><p>Amnésia / Desinibição (alterações</p><p>comportamentais, hipersexualização) /</p><p>Afasias / Hiperoralidade</p><p>DOENÇA DE HUNTINGTON</p><p>Amnésia / Coreia / Disfunção executiva</p><p>DOENÇA DE CREUTZFELDT-JAKOB</p><p>Amnésia / Ataxia / Mioclonias / Afasias</p><p>Muitos pacientes apresentam tipos mistos, especialmente de doença de Alzheimer junto</p><p>com demência com corpos de Lewy ou demência vascular. Por vezes, são clinicamente</p><p>indistinguíveis e só há diagnóstico definitivo na necropsia, pelos achados</p><p>anatomopatológicos.</p><p>No diagnóstico diferencial da síndrome demencial, deve-se sempre investigar causas não</p><p>degenerativas (demências reversíveis), como: vasculares; infecciosas (HIV, neurossífilis,</p><p>tuberculose, doença de Whipple, LEMP [leucoencefalopatia multifocal progressiva],</p><p>fungos, protozoários e sarcoidose); endócrinas (hipotireoidismo, síndrome de Cushing,</p><p>insuficiência adrenal, hipo/hiperparatireoidismo); vasculites (LES, Sjogren); deficiências</p><p>vitamínicas (B7, B12, ácido fólico, niacina); esclerose múltipla, insuficiências orgânicas</p><p>etc.</p><p>85</p><p>Hipótese da cascata amiloide</p><p>A hipótese da cascata amiloide para a doença de Alzheimer (DA) postula que a gênese</p><p>desta demência consiste no surgimento excessivo de peptídeos β-A tóxicos ou em sua</p><p>remoção insuficiente.</p><p>Estes se acumulam para formar placas amiloides/amiloidose, o que deflagra uma cascata</p><p>química letal (resposta inflamatória, ativação da micróglia e dos astrócitos, liberação de</p><p>citocina e radicais livres).</p><p>Com efeito, há hiperfosforilação de proteínas tau e conversão dos microtúbulos</p><p>neuronais em emaranhados neurofibrilares, o que finda em morte difusa de neurônios.</p><p>A DA ocorreria pela destruição difusa de neurônios devido ao depósito de placas amiloides</p><p>no cérebro, formadas por peptídeos β-A tóxicos.</p><p>Os peptídeos β-A não tóxicos têm propriedades antioxidantes, regulam o transporte de</p><p>colesterol e podem reparar vasos sanguíneos, vedando os locais de lesão vascular,</p><p>protegendo contra lesões cerebrais agudas. Assim, a DA pode ser entendida como um</p><p>processo análogo à deposição anormal de colesterol em vasos sanguíneos, que provoca a</p><p>aterosclerose.</p><p>Processamento da proteína precursora amiloide</p><p>No Alzheimer, pode haver processamento anormal da proteína precursora amiloide</p><p>(PPA) em formas β-A (tóxicas/amiloidogênicas).</p><p>Via de processamento não amiloidogênica:</p><p>PPA é clivado pela... ↬</p><p>enzima α-secretase, que forma... ↬</p><p>dois peptídeos: α-PPA + um menor, de 83 aminoácidos, que será clivado pela... ↬</p><p>enzima γ-secretase, produzindo... ↬</p><p>p7 e p3 (dois peptídeos ainda menores, não tóxicos/não amiloidogênicos).</p><p>Via de processamento amiloidogênica:</p><p>PPA é clivado pela... ↬</p><p>enzima β-secretase, que forma... ↬</p><p>dois peptídeos: β-PPA + um menor, de 91 aminoácidos, que será clivado pela... ↬</p><p>enzima γ-secretase, produzindo... ↬</p><p>peptídeos β-A (tóxicos/amiloidogênicos) de 40, 42* ou 43 aminoácidos.</p><p>*A forma de β-A mais amiloidogênica é a que contém 42 aminoácidos.</p><p>86</p><p>A mutação no cromossomo 21 codifica um defeito na PPA, com aumento de depósito β-</p><p>amiloide. Por isso, praticamente todas as pessoas com síndrome de Down desenvolvem</p><p>Alzheimer até os 50 anos de idade.</p><p>Atividade da apoliproteína E</p><p>Outra possibilidade é que a remoção de β-A esteja deficiente no Alzheimer por</p><p>ineficiência na atividade da apoliproteína E (ApoE).</p><p>A ApoE é a proteína que se liga aos peptídeos amiloides para removê-los. Existem três</p><p>alelos (variantes) dos genes que a codificam: E2, E3 e E4. A variante E4 está mais associada</p><p>ao desenvolvimento da doença, enquanto a variante E2 parece ser ligeiramente protetora.</p><p>Os tratamentos atuais para a doença de Alzheimer (comentados a seguir) não atuam na</p><p>gênese da doença (acúmulo de peptídeos β-A tóxicos), mas nas consequências desta.</p><p>Porém, proposições futuras têm como alvo a cascata amiloide: por exemplo, vacinas e</p><p>imunoterapia contra β-amiloide, inibidores da γ-secretase e inibidores da β-secretase.</p><p>Nenhuma destas tentativas, contudo, obteve êxito até o momento.</p><p>Estágios da doença de Alzheimer</p><p>A progressão da doença de Alzheimer é estruturada em três estágios sequenciais que</p><p>refletem o grau das lesões estruturais cerebrais e do comprometimento funcional. Alguns</p><p>biomarcadores auxiliam nesta caracterização [ver Stahl Figs. 13.10 a 13.13]:</p><p>Tabela 8 Estágios da doença de Alzheimer.</p><p>ESTÁGIO CARACTERÍSTICAS</p><p>ESTÁGIO 1:</p><p>PRÉ-CLÍNICO</p><p>(AMILOIDOSE</p><p>ASSSINTOMÁTICA)</p><p>⇲ Clínica: assintomático;</p><p>⇲ PET: ⇑ amiloide;</p><p>⇲ LCR: ⇓ peptídeos β-A tóxicos.</p><p>(β-A deveria estar sendo eliminado no LCR, mas está se acumulando no cérebro)</p><p>ESTÁGIO 2:</p><p>CCL</p><p>⇲ Clínica: alguns sintomas;</p><p>⇲ PET: ⇓ metabolismo da glicose no cérebro;</p><p>⇲ LCR: ⇑ proteína tau;</p><p>⇲ RM: ⇓ volume de áreas cerebrais essenciais.</p><p>ESTÁGIO 3:</p><p>DEMÊNCIA</p><p>⇲ Déficits cognitivos graves; doença instalada.</p><p>Legenda: CCL = Comprometimento Cognitivo Leve; LCR = Líquido Cefalorraquidiano;</p><p>PET = Tomografia por Emissão de Pósitrons; RM = Ressonância Magnética.</p><p>87</p><p>Ressalva-se que cerca de 25% dos idosos com cognição normal são positivos para amiloide</p><p>no PET e, portanto, estão no estágio 1 da doença de Alzheimer, mas, por outro lado,</p><p>aproximadamente metade dos pacientes com CCL não exibe deposição amiloide neste</p><p>exame.</p><p>A depressão - em idosos - é um diagnóstico diferencial importante das demências, pois,</p><p>na idade avançada, pode cursar mais com déficit cognitivo que propriamente com humor</p><p>deprimido, e, por outro lado, também constitui importante pródromo sintomático da</p><p>doença de Alzhemier. Além disso, pode apresentar modificações em biomarcadores</p><p>semelhantes, como baixos níveis de peptídeos β-A no liquor e placas amiloides nos exames</p><p>de imagem.</p><p>Dos pacientes com CCL que exibem imagem amiloide (PET), metade evolui para demência</p><p>em um ano e 80% em três anos. O prejuízo de memória episódica (capacidade de</p><p>aprender e reter novas informações) constitui o sintoma cognitivo mais observado nos</p><p>pacientes com CCL que evoluem para demência.</p><p>Pacientes com CCL que apresentam o genótipo E4 da ApoE (responsável pela remoção</p><p>dos peptídeos β-A) têm evolução mais rápida para o estágio de demência. Outros fatores</p><p>de risco para progressão desfavorável são depressão, diabetes tipo 2 e doença vascular,</p><p>especialmente embolia cerebral.</p><p>Controle da diabetes e de fatores de risco cardiovasculares podem ser úteis na prevenção</p><p>da evolução da doença. Como é sabido, hábitos de vida positivos (alimentação</p><p>balanceada, sono adequado, exercícios físicos, lazer, estímulos intelectuais etc.) também</p><p>ajudam no envelhecimento saudável do cérebro, embora não se tenha comprovado que</p><p>retardem a progressão do estágio pré-clínico para a demência.</p><p>Ressonância magnética e neurodegeneração</p><p>A RM volumétrica é o método de escolha como biomarcador no estadiamento e</p><p>seguimento da doença de Alzheimer. Observa-se:</p><p>Atrofia do hipocampo</p><p>(5%/ano vs. 1,5%/ano [idoso normal]);</p><p>Aumento ventricular</p><p>(7,7cm³/ano vs. 2,5cm³/ano [CCL] vs. 1,3cm³/ano [idoso normal]);</p><p>Perda da espessura cortical</p><p>(Padrão: temporal medial 14%; temporal 11%; parietal 9,6%; frontal 7,8%).</p><p>88</p><p>Acetilcolina</p><p>Síntese e degradação</p><p>Ilustração 14 Síntese e degradação da acetilcolina.</p><p>Ambas as enzimas de degradação</p><p>estão presentes em todo o cérebro, mas a BuChE está</p><p>especialmente concentrada nas células gliais, sendo a AChE mais relevante na inativação</p><p>das sinapses colinérgicas.</p><p>A colina originada da degradação da ACh é transportada de volta para o neurônio pelo</p><p>transportador de colina, reciclada novamente em acetilcolina e, então, transportada para</p><p>as vesículas pelo transportador vesicular de acetilcolina (VAChT).</p><p>Receptores nicotínicos</p><p>Os receptores colinérgicos nicotínicos são canais iônicos controlados por ligante, que</p><p>podem ser bloqueados pelo curare.</p><p>Subtipo α4β2: regula liberação de dopamina no nucleus accumbens (alvo da nicotina).</p><p>Subtipo α7 pós-sináptico: regula funcionamento cognitivo no córtex pré-frontal.</p><p>Subtipo α7 pré-sináptico: presente tanto em neurônios colinérgicos (autorreceptores)</p><p>quanto em neurônios glutamatérgicos e dopaminérgicos (heterorreceptores), potencializa</p><p>a liberação dos respectivos neurotransmissores (ACh, glutamato, DA), quando ativado.</p><p>Receptores muscarínicos</p><p>Os receptores colinérgicos muscarínicos são receptores ligados à proteína G, que podem</p><p>ser bloqueados pelos “anticolinérgicos”, como a atropina e a escopolamoina.</p><p>Subtipo M1: regula funções de memória da ACh.</p><p>Subtipo M2: regula feedback negativo de ACh (é um autorreceptor).</p><p>Subtipo M3: regula efeitos periféricos da ACh (expresso fora do cérebro).</p><p>89</p><p>Anticolinesterásicos</p><p>A acetilcolina se relaciona ao processo de formação de memórias (especialmente de</p><p>curto prazo) e sua deficiência pode estar envolvida na amnésia observada no Alzheimer e</p><p>em outras demências. Por isso, fármacos que atuam potencializando a ação colinérgica</p><p>são úteis no tratamento destas morbidades.</p><p>Alguns neurônios colinérgicos têm corpos celulares no tronco encefálico e se projetam</p><p>para diversas áreas cerebrais, como córtex pré-frontal, prosencéfalo basal, tálamo,</p><p>hipotálamo, amígdala e hipocampo. Outros neurônios colinérgicos têm corpos celulares</p><p>no prosencéfalo basal (mais especificamente, no núcleo basal de Meynert) e se projetam</p><p>para córtex pré-frontal, amígdala e hipocampo. Estes são os mais importantes para</p><p>processos relacionados à memória [ver Stahl Figs. 13.23 e 13.24].</p><p>A donepezila, a rivastigmina e a galantamina são inibidores das colinesterases (enzimas</p><p>que degradam a ACh).</p><p>A donepezila é um inibidor seletivo da acetilcolinesterase (AChE). Não produz ação sobre</p><p>a butirilcolinesterase (BuChE). É de fácil administração e possui efeitos colaterais</p><p>transitórios, principalmente gastrointestinais, pois também inibe a AChE na periferia.</p><p>A rivastigmina também inibe AChE, mas mais especificamente no córtex e no hipocampo,</p><p>e inibe a BuChE na glia, o que contribui para aumentar os níveis de ACh no SNC, mas</p><p>provoca mais efeitos colaterais gastrointestinais pela via oral. Possui uma formulação</p><p>transdérmica que reduz bastante estes efeitos periféricos.</p><p>A galantamina tem duplo mecanismo de ação: além da inibição da AChE, é um modulador</p><p>alostérico positivo dos receptores colinérgicos nicotínicos. Porém, não há comprovação</p><p>de que este segundo efeito produza benefícios clínicos.</p><p>Estes fármacos perdem efetividade com o avançar da demência, pois, com a morte dos</p><p>neurônios, não há mais onde a ACh agir.</p><p>Memantina</p><p>Uma hipótese formulada para a disfunção cognitiva na Doença de Alzheimer é que o</p><p>glutamato seja liberado em excesso devido às placas de amiloide e emaranhados</p><p>neurofibrilares, que influiriam na cadeia de eventos necessária à ativação dos receptores</p><p>NMDA. Reduzir a ação glutamatérgica poderia, portanto, ser capaz de melhorar a</p><p>função cognitiva e retardar a taxa de declínio da demência.</p><p>A memantina é um antagonista NMDA, cujo mecanismo é a ocupação do sítio alostérico</p><p>do magnésio, mimetizando a sua ação como NAM. Costuma ser empregada em fases</p><p>mais avançadas da demência, concomitante aos anticolinesterásicos.</p><p>90</p><p>A memantina realiza uma ligação de baixa afinidade, de modo que descargas</p><p>glutamatérgicas fásicas conseguem “superá-la”. Assim, não produz ações psicotomiméticas</p><p>de outros antagonistas NMDA mais potentes, como a fenciclidina e a cetamina.</p><p>Tratamento dos sintomas comportamentais da demência</p><p>Os antipsicóticos não são recomendados para o tratamento de agitação e sintomas</p><p>comportamentais na doença de Alzheimer por haver pouca evidência de eficácia e pelo</p><p>aumento de eventos cardiovasculares e da mortalidade em pacientes idosos. Porém, se</p><p>necessários antipsicóticos, a risperidona em doses muito baixas é, com frequência, o</p><p>fármaco de eleição.</p><p>É importante diferenciar a doença de Alzheimer da demência com corpos de Lewy antes</p><p>de prescrever antipsicóticos, pois pacientes com esta última, embora apresentem aparência</p><p>psicótica, sintomas comportamentais proeminentes, flutuações acentuadas e alucinações</p><p>visuais, são, também, extremamente sensíveis a sintomas extrapiramidais, mesmo com</p><p>antipsicóticos atípicos.</p><p>Os inibidores das colinesterases (donepezila, rivastigmina, galantamina), embora atuem</p><p>melhor em prevenção, constituem primeira linha para o tratamento destes sintomas na</p><p>doença de Alzheimer. Na demência frontotemporal, ISRS (ex: citalopram e escitalopram)</p><p>e ISRN (ex: duloxetina) podem ser particularmente benéficos.</p><p>Nas demências de modo geral, o tratamento farmacológico de primeira linha para</p><p>agitação e agressividade envolve ISRS/IRSN. Como segunda linha, para evitar o uso de</p><p>antipsicóticos, anticonvulsivantes (valproato, gabapentina, pregabalina…) podem ser</p><p>tentados.</p><p>Contudo, muitas vezes a reversão dos precipitantes da agitação - como dor, abstinência</p><p>de nicotina, efeitos colaterais de medicamentos, doenças clínicas e neurológicas não</p><p>diagnosticadas, ambientes desfavoráveis, dentre outros – é a medida mais fundamental a</p><p>ser observada, acima de qualquer intervenção medicamentosa.</p><p>91</p><p>Impulsividade,</p><p>Compulsividade</p><p>e Adição</p><p>Impulsividade é a incapacidade de interromper o início de uma ação.</p><p>(Incapacidade de adiar recompensa, incapacidade de inibição motora...)</p><p>Compulsividade é a incapacidade de interromper a continuidade de uma ação.</p><p>(Incapacidade de adaptar comportamento após retroalimentação negativa.)</p><p>Circuitos da impulsividade e da compulsividade</p><p>A impulsividade e a compulsividade ocorrem pela incapacidade das estruturas corticais de</p><p>inibirem (“de cima para baixo”) os estímulos advindos do estriado (“de baixo para cima”):</p><p>Circuito da impulsividade:</p><p>CPFVM / Córtex Cingulado Anterior ↔ Estriado Ventral (nucleus accumbens) ↔ Tálamo</p><p>Circuito da compulsividade:</p><p>COF ↔ Estriado Dorsal ↔ Tálamo</p><p>Atos impulsivos podem, com o passar do tempo, tornarem-se compulsivos devido a</p><p>alterações neuroplásticas que migram os impulsos da alça ventral para a alça dorsal do</p><p>estriado [ver Stahl Fig. 14.1 a 14.3]. A amígdala (recompensa/condicionamento) e o</p><p>hipocampo (memória) também fornecem impulsos reguladores para esse sistema.</p><p>A desregulação destes circuitos contribui para a gênese não apenas dos transtornos por</p><p>uso de substância, mas também de uma série de outras condições, como TOC, transtornos</p><p>de controle dos impulsos e transtornos sexuais [ver Stahl Tabela 14.1].</p><p>Adição a substâncias</p><p>Sequestro da via de recompensa</p><p>Diversos neurotransmissores de ocorrência natural têm correspondentes artificiais, que</p><p>irão proporcionar respostas similares nos sítios de ação:</p><p>Endorfinas ↭ Opiáceos (morfina, heroína)</p><p>Anandamida ↭ Maconha</p><p>Dopamina ↭ Cocaína/Anfetaminas</p><p>Nicotina ↭ Acetilcolina</p><p>92</p><p>Todos estes neurotransmissores agem na via mesolímbica, estimulando neurônios</p><p>dopaminérgicos a liberarem DA no estriado ventral (também denominado nucleus</p><p>accumbens).</p><p>Esta via de reforço e recompensa tem utilidade em processos de aprendizado. É</p><p>estimulada em diversas situações, como realizações intelectuais ou atléticas, orgasmo,</p><p>ouvir música etc.</p><p>Entretanto, substâncias que provocam adição aumentam a dopamina de maneira mais</p><p>aguda – explosiva - do que</p><p>ocorre naturalmente, obtendo efeito, portanto, mais intenso</p><p>e fugaz, o que incorre no uso abusivo.</p><p>Comportamentos desadaptativos (jogo patológico, compras, internet, comer em</p><p>demasia...) podem desencadear reações semelhantes a estas drogas na via de</p><p>recompensa.</p><p>Cocaína e estimulantes</p><p>Quanto mais rápida a entrada de uma substância de uso abusivo no cérebro, mais potente</p><p>será o efeito de reforço, por deflagrar descargas dopaminérgicas fásicas. Neste sentido, a</p><p>via mais rápida é fumar, com absorção imediata pela área de superfície maciça dos</p><p>pulmões e evitando o mecanismo de primeira passagem hepática.</p><p>Exemplo disso é a distinção entre a cocaína (e derivados, como o crack) e os</p><p>estimulantes utilizados no tratamento do TDAH (metilfenidato, lisdexanfetamina): embora</p><p>ajam pelo mesmo mecanismo farmacodinâmico (antagonismo de NAT e DAT), a</p><p>farmacocinética é diferente, visto que a cocaína induz liberação fásica destes</p><p>neurotransmissores, enquanto os estimulantes provocam liberação tônica.</p><p>Adicionalmente, a cocaína também provoca inibição de SERT e age em receptores</p><p>opioides. Para pacientes dependentes de cocaína, pode-se associar buprenorfina</p><p>(agonista parcial dos receptores opioides μ e κ) e naltrexona (antagonista dos receptores</p><p>opioides μ). Resulta-se, deste modo, em estimulação apenas dos receptores κ, o que ajuda</p><p>a diminuir a autoadministração compulsiva de cocaína sem produzir adição a opioides.</p><p>Maconha</p><p>O THC (Δ9-tetraidrocanabinol) é o componente da maconha que age nos receptores</p><p>canabinoides CB1 e CB2. O CB2 predomina no sistema imune, enquanto o CB1, presente</p><p>no cérebro, pode mediar não apenas as propriedades de reforço da maconha, como</p><p>também do álcool e de outras substâncias psicoativas (possivelmente, até de alimentos).</p><p>O principal endocanabinoide (neurotransmissor de ocorrência natural com propriedades</p><p>semelhantes ao THC) é a anandamida (ananda, do sânscrito, significa “felicidade</p><p>suprema”).</p><p>Moduladores alostéricos positivos de GABAA</p><p>Como já descrito no capítulo 11, os moduladores alostéricos positivos de GABAA (BZD,</p><p>fármacos Z…) podem, também, ocasionar dependência. Destacam-se, aqui, os</p><p>barbitúricos, muito menos seguros e com muito maior potencial de abuso.</p><p>93</p><p>Alucinógenos</p><p>Os alucinógenos mais conhecidos (MDMA, LSD, psilocibina) atuam nas sinapses</p><p>serotoninérgicas do sistema de recompensa (via mesolímbica), com agonismo dos</p><p>receptores 5HT2A. O MDMA, em particular, também bloqueia SERT.</p><p>Outra classe de alucinógenos, relacionada às anfetaminas, assemelha-se mais à</p><p>noradrenalina e à dopamina: mescalina, DOM, dentre outras.</p><p>Todas estas substâncias produzem alucinações psicodélicas (“consciência sensorial</p><p>ampliada”) e psicotomiméticas (semelhante a um estado de psicose). Porém, o efeito</p><p>psicotomimético é mais superficial em relação aos estimulantes (cocaína, anfetamina) e</p><p>outras drogas recreativas - como fenciclidina (PCP) - que imitam muito mais fielmente a</p><p>psicose.</p><p>Opioides</p><p>Tanto opioides endógenos (endorfinas, encefalinas, dinorfinas) – liberados por neurônios</p><p>opioides que se originam no núcleo arqueado – quanto os opioides exógenos (heroína,</p><p>morfina, outros medicamentos para dor...) atuam em receptores μ, δ e κ localizados na</p><p>área tegmental ventral, participando do circuito de recompensa que, em última análise,</p><p>irá proporcionar liberação de dopamina no nucleus accumbens.</p><p>A naloxona é um antagonista competitivo de receptores opioides, utilizada para</p><p>reverter quadros agudos de intoxicação por opioides (que podem provocar</p><p>rebaixamento de nível de consciência). Porém, pode, da mesma forma, precipitar</p><p>síndrome de abstinência em indivíduos dependentes.</p><p>Anestésicos de uso recreativo</p><p>Tanto fenciclidina (PCP), quanto cetamina, foram desenvolvidas inicialmente como</p><p>anestésicos, pela ação de antagonismo dos receptores NMDA. Porém, tornaram-se</p><p>substâncias de uso recreativo/abusivo, por exercer ação nas sinapses glutamatérgicas do</p><p>sistema de recompensa mesolímbico, provocando experiências</p><p>alucinatórias/psicotomiméticas semelhantes às da esquizofrenia. A cetamina produz</p><p>estes efeitos em menor grau e, por isso, ainda é utilizada como anestésico. Quando em</p><p>contexto de uso abusivo, é conhecida como Special K.</p><p>Nicotina</p><p>A nicotina, como o nome sugere, age diretamente nos receptores colinérgicos nicotínicos.</p><p>Existem dois subtipos de receptores nicotínicos no cérebro: α4β2 e α7.</p><p>Os receptores α4β2 são os mais associados à adição ao cigarro. Estão presentes em</p><p>neurônios dopaminérgicos na área tegmentar ventral e, quando ativados, estimulam a</p><p>liberação de DA no nucleus accumbens.</p><p>O comprimento do cigarro contém a quantidade “ideal” (nem mais, nem menos) para</p><p>dessensibilizar por completo estes receptores e, portanto, não se obter mais</p><p>prazer/recompensa pelo estímulo da nicotina ou da acetilcolina.</p><p>94</p><p>Quando os receptores se ressensibilizam, surgem a fissura e a abstinência, o que leva</p><p>à busca por mais cigarro. E o tempo necessário para essa ressensibilização é cerca de 45</p><p>minutos, o que possivelmente justifica o fato de um maço conter 20 cigarros – o suficiente</p><p>para manter os receptores dessensibilizados durante o dia inteiro.</p><p>Com o passar do tempo, a dessensibilização contínua induz os neurônios a</p><p>suprarregularem o número de receptores, para compensar a ausência de receptores</p><p>funcionantes, o que aumenta ainda mais a fissura.</p><p>Este é o princípio do tratamento da adição ao cigarro conduzido por nicotina administrada</p><p>por outras vias (goma de mascar, pastilhas, adesivos transdérmicos...): reduzir a fissura</p><p>pelo aporte de uma quantidade constante de nicotina, o que dessensibiliza uma porção</p><p>importante dos receptores nicotínicos em processo de ressensibilização.</p><p>A vareniclina, de modo semelhante, também reduz a fissura, pelo agonismo parcial</p><p>seletivo dos receptores colinérgicos nicotínicos α4β2.</p><p>Uma terceira estratégia consiste em oferecer aporte dopaminérgico tônico ao nucleus</p><p>accumbens pela inibição de DAT e NAT exercida pela bupropiona.</p><p>A bupropiona obtém resultados semelhantes em relação aos métodos nicotínicos</p><p>(adesivos, pastilhas etc.), e cerca de metade da taxa de abandono da vareniclina.</p><p>Os receptores α7 pré-sinápticos, presentes em neurônios glutamatérgicos na área</p><p>tegmentar ventral, também contribuem à via de reforço/recompensa, uma vez que</p><p>estimulam a liberação de glutamato, que, por sua vez, estimula a liberação de dopamina</p><p>no nucleus accumbens. No córtex pré-frontal, as ações da nicotina sobre os receptores α7</p><p>pós-sinápticos se relacionam a ações pró-cognitivas e de alerta mental, mas não à adição.</p><p>Dentre todas as drogas – lícitas e ilícitas - a substância de maior potencial de adição é o</p><p>tabaco, com 32% de probabilidade de desenvolver dependência após experimentada ao</p><p>menos uma vez. Cerca de dois terços dos fumantes desejam parar de fumar; um terço tenta,</p><p>porém apenas 2 a 3% conseguem.</p><p>Álcool</p><p>Os efeitos do álcool derivam de três mecanismos de ação:</p><p>⇈ GABA: Estimula diretamente receptores GABAA (principalmente subtipo δ) +</p><p>Bloqueia autorreceptores GABAB;</p><p>⇊ Glutamato: Bloqueia VSCC + Bloqueia receptores glutamatérgicos NMDA e</p><p>metabotrópicos (mGluR);</p><p>Atua nos receptores opioides: Estimula diretamente os receptores opioide μ +</p><p>Libera encefalina (opioide endógeno).</p><p>Portanto, o álcool tem, além dos propriedades depressoras (aumentar GABA e reduzir</p><p>glutamato), um mecanismo estimulatório (ação opioide).</p><p>95</p><p>Dentre as linhas de tratamento farmacológico na dependência do álcool, destacam-se:</p><p>A naltrexona, antagonista dos receptores opioides μ, reduz o efeito de</p><p>euforia/prazer do uso do álcool, sendo uma estratégia no tratamento da</p><p>dependência desta substância, bem como na adição de opioides.</p><p>Possui formulação de injeção IM mensal.</p><p>O acamprosato - um derivado da taurina - é um “álcool artificial”, que também</p><p>inibe o sistema glutamatérgico e estimula o gabaérgico. Assim, alivia os efeitos de</p><p>abstinência (estado de superexcitação</p><p>glutamatérgica e deficiência de GABA),</p><p>decorrentes da tentativa de retirada do álcool.</p><p>O dissulfiram é um inibidor irreversível da enzima aldeído desidrogenase (que</p><p>participa da metabolização do álcool). Assim, há um acúmulo tóxico de acetaldeído,</p><p>provocando efeito antabuse (experiência aversiva de vômitos, hipotensão etc., ao</p><p>consumir álcool).</p><p>Tabela 9 Medicamentos direcionados aos transtornos por uso de substâncias.</p><p>FÁRMACO MECANISMO DE AÇÃO INDICAÇÃO</p><p>NALTREXONA</p><p>Antagonismo dos</p><p>receptores opioides μ</p><p>Adição a opioides e álcool</p><p>NALOXONA</p><p>Antagonismo competitivo</p><p>dos receptores opioides</p><p>Intoxicação aguda por</p><p>opioides</p><p>BUPRENORFINA</p><p>Agonismo parcial dos</p><p>receptores opioides μ e κ</p><p>Adição a opioides</p><p>VARENICLINA</p><p>Agonismo parcial seletivo</p><p>dos receptores colinérgicos</p><p>nicotínicos α4β2</p><p>Adição a nicotina</p><p>DISSULFIRAM</p><p>Inibição irreversível da</p><p>enzima aldeído</p><p>desidrogenase</p><p>Adição ao álcool</p><p>ACAMPROSATO</p><p>“Álcool artificial”: inibe o</p><p>sistema glutamatérgico e</p><p>estimula o sistema</p><p>gabaérgico</p><p>Adição ao álcool</p><p>96</p><p>Compulsões alimentares</p><p>Vias do apetite</p><p>O centro cerebral de controle do apetite é o hipotálamo.</p><p>Uma importante via estimuladora do apetite é mediada por dois peptídeos:</p><p>neuropeptídeo Y e AgRP (proteína relacionada com Agouti).</p><p>Uma importante via inibidora do apetite é mediada por neurônios de pró-</p><p>opiomelanocortina (POMC), que produzem o peptídeo POMC, clivado em β-endorfina</p><p>ou α-MSH (hormônio α-melanócito estimulante). O α-MSH interage com os receptores de</p><p>melanócitos 4 - no hipotálamo - para suprimir o apetite.</p><p>Pode haver ganho de peso por atividade excessiva da via estimuladora ou atividade</p><p>deficiente da via inibidora do apetite [ver Stahl Fig. 14.20A]. Além disso, outros</p><p>reguladores hipotalâmicos, como orexina, leptina, grelina, insulina, glucagon etc.</p><p>também contribuem para o impulso de comer, interagindo com as vias de recompensa.</p><p>Fentermina e topiramato</p><p>A fentermina é aprovada como monoterapia para o tratamento da obesidade.</p><p>Atua como estimulante (bloqueio de NAT, DAT e, em doses altas, VMAT), aumentando</p><p>a disponibilidade de dopamina e noradrenalina, que estimularão neurônios de pró-</p><p>opiomelanocortina (POMC) a liberarem α-MSH (hormônio α-melanócito estimulante) no</p><p>hipotálamo (via inibidora do apetite).</p><p>É comum o desenvolvimento de tolerância (assim, o peso costuma retornar), adição/uso</p><p>abusivo (pelo estímulo dopaminérgico nos circuitos de recompensa) e complicações</p><p>cardiovasculares (efeitos noradrenérgicos na elevação de PA e FC).</p><p>Uma alternativa para estes inconvenientes é reduzir a dose da fentermina,</p><p>potencializando-a com a associação com topiramato, que atua inibindo a via</p><p>estimuladora do apetite, pela potencialização do impulso gabaérgico nesta via [ver</p><p>Stahl Fig. 14.20C].</p><p>Bupropiona e naltrexona</p><p>A associação de bupropiona com naltrexona também pode ser utilizada no tratamento</p><p>de obesidade.</p><p>A bupopiona (antagonista de DAT e NAT) age pela estimulação - por dopamina e</p><p>noradrenalina - dos neurônios pró-opiomelanocortina (POMC), ocasionando liberação</p><p>de α-MSH: via supressora do apetite.</p><p>A naltrexona (antagonista dos receptores opioides μ) age pela inibição da alça de</p><p>retroalimentação negativa mediada por opioides endógenos que, normalmente, limita a</p><p>ativação de neurônios POMC nesta via [ver Stahl Fig. 14.20E].</p><p>A dose de naltrexona usada para este fim é mais baixa do que a habitualmente usada no</p><p>tratamento da adição de álcool e opioides.</p><p>97</p><p>Outros tratamentos para obesidade</p><p>A lorcaserina, já comentada no capítulo 5, é um agonista seletivo dos receptores</p><p>serotoninérgicos 5HT2C (presentes nos neurônios POMC da via supressora do apetite).</p><p>A sibutramina age como IRSN em doses baixas ou como inibidor triplo de recaptação</p><p>de monoaminas em doses altas. Foi retirada do mercado americano pelo risco de</p><p>hipertensão e complicações cardíacas.</p><p>Comportamentos impulsivos e compulsivos</p><p>Tais quais substâncias psicoativas, comportamentos também podem ser reforçadores e</p><p>aditivos, talvez compartilhando o mesmo circuito da adição a drogas: jogo patológico,</p><p>adição a internet, piromania, cleptomania, parafilias etc.</p><p>Transtornos do neurodesenvolvimento - como TDAH, transtorno do espectro autista,</p><p>Síndrome de Tourette e transtornos de tique - também têm impulsividade e compulsão</p><p>como dimensões dos sintomas.</p><p>Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)</p><p>Os tipos mais comuns de compulsões no TOC são os de verificação e de limpeza.</p><p>Além da terapia cognitivo-comportamental, a primeira linha de tratamento deste</p><p>transtorno inclui a abordagem farmacológica com ISRS e, como segunda linha, tricíclicos,</p><p>IRSN ou IMAO. Pode-se potencializar os ISRS com BZD, lítio ou buspirona. Alguns estudos</p><p>apontam a clomipramina como fármaco de eficácia superior neste transtorno.</p>