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Guerra fria história e historio - Sidnei José Munhoz

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<p>Editora Appris Ltda.</p><p>1.ª Edição - Copyright© 2020 dos autores</p><p>Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.</p><p>Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar</p><p>de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão</p><p>de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o</p><p>Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis</p><p>nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.</p><p>Catalogação na Fonte</p><p>Elaborado por: Josefina A. S. Guedes</p><p>Bibliotecária CRB 9/870</p><p>M966g</p><p>2020</p><p>Munhoz, Sidnei J.</p><p>Guerra Fria : história e historiografia / Sidnei J. Munhoz. - 1. ed. –</p><p>Curitiba : Appris, 2020.</p><p>313 p. ; 23 cm. – (Ciências sociais - Seção história).</p><p>Inclui bibliografias</p><p>ISBN 978-85-473-3670-7</p><p>1. Guerra Fria. 2. Política internacional – 1945-1989. I. Título. II.</p><p>Série.</p><p>CDD – 909.825</p><p>Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT.</p><p>Editora e Livraria Appris Ltda.</p><p>Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês</p><p>Curitiba/PR – CEP: 80810-002</p><p>Tel: (41) 3156-4731 | (41) 3030-4570</p><p>http://www.editoraappris.com.br/</p><p>http://www.editoraappris.com.br/</p><p>FICHA TÉCNICA</p><p>EDITORIAL</p><p>Sara C. de Andrade Coelho</p><p>Marli Caetano</p><p>Augusto V. de A. Coelho</p><p>COMITÊ EDITORIAL</p><p>Andréa Barbosa Gouveia - UFPR</p><p>Edmeire C. Pereira - UFPR</p><p>Iraneide da Silva - UFC</p><p>Jacques de Lima Ferreira - UP</p><p>Marilda Aparecida Behrens - PUCPR</p><p>EDITORAÇÃO Jaqueline Matta</p><p>ASSESSORIA EDITORIAL Lucas Casarini</p><p>DIAGRAMAÇÃO Luciano Popadiuk</p><p>CAPA Eneo Lage</p><p>REVISÃO Cindy G. S. Luiz</p><p>GERÊNCIA DE FINANÇAS Selma Maria Fernandes do Valle</p><p>COMUNICAÇÃO</p><p>Carlos Eduardo Pereira</p><p>Débora Nazário</p><p>Karla Pipolo Olegário</p><p>LIVRARIAS E EVENTOS Estevão Misael</p><p>CONVERSÃO PARA E-PUB Carlos Eduardo H. Pereira</p><p>COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS</p><p>DIREÇÃO</p><p>CIENTIFICA Fabiano Santos - UERJ/IESP</p><p>CONSULTORES Alícia Ferreira Gonçalves –</p><p>UFPB</p><p>José Henrique Artigas de Godoy –</p><p>UFPB</p><p>Artur Perrusi – UFPB Josilene Pinheiro Mariz – UFCG</p><p>Carlos Xavier de Azevedo Netto</p><p>– UFPB Leticia Andrade – UEMS</p><p>Charles Pessanha – UFRJ Luiz Gonzaga Teixeira – USP</p><p>Flávio Munhoz Sofiati – USP,</p><p>UFSCAR</p><p>Marcelo Almeida Peloggio – UFC</p><p>Elisandro Pires Frigo –</p><p>UFPR/Palotina</p><p>Maurício Novaes Souza – IF</p><p>Sudeste MG</p><p>Gabriel Augusto Miranda Setti –</p><p>UnB</p><p>Michelle Sato Frigo –</p><p>UFPR/Palotina</p><p>Geni Rosa Duarte – UNIOESTE Revalino Freitas – UFG</p><p>Helcimara de Souza Telles –</p><p>UFMG</p><p>Rinaldo José Varussa –</p><p>UNIOESTE</p><p>Iraneide Soares da Silva – UFC,</p><p>UFPI Simone Wolff – UEL</p><p>João Feres Junior – UERJ Vagner José Moreira –</p><p>UNIOESTE</p><p>Jordão Horta Nunes – UFG</p><p>Dedico este livro à memória de meus pais, Daniel Munhoz Mustácio e Olga Viera Munhoz, que, provenientes</p><p>de famílias de semiletrados, sempre consideraram a educação de qualidade o maior bem que poderiam legar</p><p>aos seus filhos.</p><p>AGRADECIMENTOS</p><p>Este livro é o resultado de mais de 20 anos de estudos relacionados à Guerra</p><p>Fria. Essa caminhada não foi solitária, embora, como é natural, houvesse</p><p>momentos de isolamento criativo e de reclusão voluntária. Ao longo dessa</p><p>jornada, partilhei caminhos, sendas e trilhas com colegas de diferentes perfis</p><p>ideológicos e especialidades. Ao compartilhar os conhecimentos aqui</p><p>sistematizados, agradeço à generosidade sempre presente na comunidade</p><p>acadêmica. Ao fazê-lo, corro riscos, pois, certamente, acabarei por me esquecer</p><p>de alguém. Desde já, peço desculpas.</p><p>De início, agradeço à Universidade Estadual de Maringá (UEM), que me</p><p>ofereceu as condições para o desenvolvimento da docência, da pesquisa e da</p><p>extensão, mesmo sob os ataques sistemáticos de governantes determinados a</p><p>destruir a educação pública de qualidade. Governos vêm e vão, instituições são</p><p>perenes e, portanto, sobrevivem a esses acharques, embora possam ser</p><p>desfiguradas e terem a sua autonomia aviltada de tal forma que não mais</p><p>consigam cumprir a contento o seu papel social.</p><p>A UEM foi a minha âncora de 1984 até 2019, mas diferentes instituições</p><p>universitárias, em momentos diversos, forneceram energias revigorantes e</p><p>abriram novas perspectivas ao desenvolvimento dos meus estudos. Sublinho o</p><p>apoio recebido durante a minha graduação na Universidade Estadual Paulista</p><p>“Júlio de Mesquita filho” (Unesp-Assis) e, posteriormente, destaco o suporte</p><p>recebido, em diferentes momentos da minha carreira acadêmica, proveniente de</p><p>instituições distintas, dentre as quais ressalto a Universidade de Campinas</p><p>(Unicamp), a The London School of Economics (LSE), a Universidade de São Paulo</p><p>(USP), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Brown University e,</p><p>por fim, a instituição que ora me acolhe como professor visitante, a Universidade</p><p>Federal de Santa Catarina (UFSC). Devo ainda agradecer ao apoio financeiro</p><p>recebido em diferentes fases dessa jornada por intermédio da Capes, do CNPq,</p><p>da Faperj e da Finep. Sem esse apoio, nada disso seria possível. No momento</p><p>desta publicação, não posso deixar de lamentar que essas instituições estejam sob</p><p>ataque de governos irresponsáveis e antinacionais, que estão a destruir o sistema</p><p>de financiamento à ciência e à tecnologia no país.</p><p>Muitas das ideias contidas neste livro resultam de diálogos com colegas</p><p>especialistas em tópicos conexos à temática objeto deste estudo. Expresso os</p><p>meus sinceros agradecimentos a José Henrique Rollo Gonçalves, com quem</p><p>iniciei as primeiras prosas sobre o tema no início dos anos 1990. Essa</p><p>cooperação mantém-se até o presente e dela resultaram trabalhos em coautoria.</p><p>Sou grato à generosidade de Michael M. Hall, que supervisionou meu estágio de</p><p>licença sabática na Unicamp, quando iniciei os estudos sobre a Guerra Fria.</p><p>Francisco Carlos Teixeira da Silva acolheu-me em um pós-doutorado na UFRJ,</p><p>em 2001, quando desenvolvi estudos relacionados à reverberação do início da</p><p>Guerra Fria no Brasil. De lá para cá, muitos diálogos e parcerias materializaram-</p><p>se e resultaram em livros e obras coletivas.</p><p>Agradeço a Andreas Doeswijk, pela colaboração em diferentes tópicos, e a João</p><p>Fábio Bertonha, que leu o primeiro borrão dos originais, as suas sugestões foram</p><p>valiosas. Hilda Pívaro Stadnik revisou a segunda versão completa deste trabalho.</p><p>A sua leitura atenta e criteriosa foi essencial à reestruturação de partes da obra e à</p><p>correção de imprecisões. Reginaldo Benedito Dias efetuou uma criteriosa</p><p>revisão, e as suas sugestões foram de inestimável valia tanto no que se refere à</p><p>forma quanto ao conteúdo. Alexandre Busko Valim ofereceu valiosas sugestões</p><p>relacionadas ao cinema e à propaganda durante a II Guerra Mundial e no início</p><p>da Guerra Fria. Marcio Voigt leu o texto integral, comentou passagens e sugeriu</p><p>alterações precisas. Recebi ainda contribuições pontuais, de colegas de diferentes</p><p>instituições e países. Destaco, em ordem alfabética, Alexander Zhebit, Daniel</p><p>Aarão Reis, Fabiano Dawe, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Francisco C. A.</p><p>Ferraz, Frank D. McCann, Gabriel Passetti, James N. Green, Lízia H. Nagel,</p><p>Maria Helena R. Capelato, Masuda Hajimu, Meire Mathias, Paulo G.F. Visentini</p><p>e Shu Chang Sheng.</p><p>Agradeço, ainda, aos meus estudantes que leram e criticaram os originais de</p><p>capítulos deste livro. Muitos deles já se tornaram professores universitários.</p><p>Gostaria de agradecer nominalmente a alguns. Tiago J.J. Alves foi um auxiliar</p><p>atento na busca e na conferência de informações. Flávio A. Combat, Guilherme</p><p>Tadeu de Paula, José Victor de Lara, Natália Abreu Damasceno e Pedro Carvalho</p><p>Oliveira leram e comentaram capítulos específicos e contribuíram com tópicos</p><p>de sua especialidade. Agradeço a pessoas anônimas que levantaram questões em</p><p>minhas apresentações no Brasil, nos EUA, na Argentina, em Singapura e em</p><p>outros lugares, pois me auxiliaram a repensar problemas e a evitar interpretações</p><p>inadequadas. Agradeço a toda a equipe da editora Appris pelo profissionalismo,</p><p>pela competência e pela gentileza na condução do processo editorial da presente</p><p>obra. Por fim, isento todas as pessoas referenciadas nestes agradecimentos de</p><p>quaisquer responsabilidades sobre o conteúdo deste livro, que é de minha inteira</p><p>responsabilidade.</p><p>PREFÁCIO</p><p>É com muito prazer</p><p>bem-sucedida,</p><p>foi possível criar um protótipo de interpenetração e divisão do poder de modo</p><p>tão disseminado pela sociedade que dificulta a percepção dos limites e das</p><p>fronteiras existente entre cada um dos diferentes componentes do sistema</p><p>(HOGAN, 1994, p.227). Ainda nessa mesma linha argumentativa, acrescentam</p><p>esses autores que muitos dos líderes do setor privado tendiam a ocupar postos</p><p>em organismos públicos, o que facilitava a integração entre os setores público e</p><p>privado (HOGAN, 1994, p.233).</p><p>Michael Hogan defende a tese de que há uma linha de continuidade entre as</p><p>políticas domésticas executadas nos EUA no período entreguerras e aquelas</p><p>cumpridas no pós-Segunda Guerra. Mundial. Ele e outros historiadores</p><p>corporatistas minimizam as diferenças, mesmo aquelas mais contrastantes como</p><p>as executadas durante a gestão Hoover e os consecutivos governos Roosevelt,</p><p>notadamente no que se refere ao New Deal e às políticas a ele correlacionais. Para</p><p>Hogan, a política externa dos EUA foi intimamente abalizada pela pressão dos</p><p>grupos organizados internos, uma vez que as influências da economia doméstica,</p><p>dos problemas sociais e das questões ideológicas na diplomacia eram</p><p>irrefragáveis.</p><p>O autor conclui que, ao longo daqueles anos, buscou-se nos EUA a</p><p>estruturação de uma nova ordem econômica tanto interna quanto externa</p><p>(HOGAN, 1995a, p. 4-18). Em síntese, na concepção de Michael Hogan,</p><p>desenvolveu-se nos EUA um modelo de Estado associativo ou, como ele e outros</p><p>autores denominaram, um exemplo bem-sucedido de neocapitalismo</p><p>corporativo que, ao menos em tese, beneficiava amplos setores da sociedade.</p><p>Desse ponto de vista, o arcabouço dessa arquitetura de poder era estruturado</p><p>por intermédio da autorregulação dos grupos econômicos integrados por</p><p>coordenações institucionais e pelos mecanismos de mercado, liderados por elites</p><p>provenientes tanto do setor público quanto do privado, o que estreitava a</p><p>cooperação entre as partes do sistema; adicionalmente essa estrutura era</p><p>alimentada pela energia limitada, mas positiva do governo, em direção ao</p><p>crescimento econômico que pudesse ser compartilhado por todos (HOGAN,</p><p>1995b, p. 1-3).</p><p>Durante a guerra, os líderes estadunidenses concluíram que o caos e a</p><p>destruição gerados pelo conflito mundial haviam levado à erosão da antiga</p><p>ordem mundial e que havia a extraordinária oportunidade de substituí-la por</p><p>outra, estruturada a partir do modelo que entendiam funcionar muito bem nos</p><p>EUA. Com essas intenções, principiaram a planejar a arquitetura de uma nova</p><p>ordem mundial que era ela própria a expressão do projeto corporatista</p><p>doméstico. Os imperativos domésticos desse sistema orientaram as diretrizes da</p><p>política externa estadunidense, uma vez que grande parte dos policymakers de</p><p>Washington provinha das elites empresariais ou a elas estava associada. Para</p><p>Hogan, no entanto, essa política doméstica também foi influenciada pelas</p><p>condicionantes advindas da política externa. Desse modo, naqueles anos e nos</p><p>seguintes, tanto a compreensão dos problemas endógenos, expressos na política</p><p>doméstica, quanto a percepção das questões exógenas, associadas pela política</p><p>externa à crença de uma inexorável expansão comunista soviética, influenciaram</p><p>na elaboração das estratégias globais dos EUA (HOGAN, 1994, p. 226-236).</p><p>Entre os anos de 1944 e 1947, os EUA haviam investido cerca de 9 bilhões de</p><p>dólares nas diversas experiências frustradas de reconstruir as diferentes</p><p>economias locais europeias. Os resultados foram sempre insatisfatórios, ou</p><p>mesmo pífios, pois os problemas eram sistêmicos, ou, em outras palavras,</p><p>europeus, e daí resultava que não era possível obter resultados adequados</p><p>quando cada um deles era tratado como um problema localizado. Ou, em outras</p><p>palavras, eram tratados como problemas de um país específico, quando o</p><p>problema era europeu.</p><p>Em 1947, a economia europeia permanecia em patamares muito aquém</p><p>daqueles verificados em 1938, último ano anterior à guerra que possuía dados</p><p>econômicos completos e sem os impactos dos efeitos do conflito (HOGAN,</p><p>1995b, p. 30). Além disso, entre as elites, havia muitos temores relacionados à</p><p>expansão do comunismo na Europa. Kennan já havia apontado no seu longo</p><p>telegrama e, posteriormente, em Sources of Soviet Conduct8, que o caos provocado</p><p>pela guerra deveria ser rapidamente solucionado. Para ele, a destruição da</p><p>infraestrutura, o desemprego, o desabastecimento que, implicava racionamento e</p><p>fome; a falta de energia, de habitação e a falência dos serviços públicos em geral</p><p>eram propícios à agitação social e ao crescimento do ideário comunista. Leffler</p><p>ressalta que nos primeiros anos que se sucederam ao final do conflito mundial,</p><p>para parte significativa da população europeia, apesar da pilhagem e da violência</p><p>praticada pelos soviéticos nos países do Eixo, derrotados na guerra, o Exército</p><p>Vermelho era tido como libertador (LEFFLER, 1992, p. 7).</p><p>Para os historiadores corporatistas, o Plano Marshall foi fundamental para a</p><p>criação das condições necessárias à reconstrução de uma balança de poder na</p><p>Europa e ao mesmo tempo possibilitou aos EUA e aos seus aliados europeus as</p><p>condições para a contenção do bloco soviético. Acrescente-se que, por</p><p>intermédio da criação de novas alianças militares e de programas de assistência,</p><p>foi edificado um sistema de segurança coletiva, comandado pelos EUA, que</p><p>garantia a nova ordem contra qualquer potencial agressor. Nessa nova</p><p>arquitetura de poder mundial, a criação da ONU desempenhou um papel central</p><p>na definição e na regulação das relações entre as nações, de acordo com</p><p>princípios marcadamente influenciados pelos EUA. Em adição, a assinatura do</p><p>acordo de Bretton Woods, a criação do Banco Internacional para a Reconstrução</p><p>e o Desenvolvimento (que posteriormente dá origem ao Banco Mundial) e do</p><p>Fundo Monetário Internacional desempenharam um importante papel na</p><p>configuração de uma nova ordem econômica. Em paralelo, o Tratado Geral de</p><p>Tarifas e Comércio e o Tratado de reciprocidade Comercial foram agregados às</p><p>diretrizes da Open Door Policy implementada pelos EUA na primeira metade do</p><p>século (HOGAN, 1994, p. 233). Por fim, analisado de uma perspectiva mais</p><p>ampla, pode-se afirmar que o Plano Marshall não estava apenas relacionado aos</p><p>conflitos provenientes da Guerra Fria, mas atendia às necessidades do</p><p>capitalismo dos EUA, uma vez que a reconstrução da Europa era fundamental</p><p>para a nova ordem econômica, política e social planejada pelas elites</p><p>estadunidenses. Ele era fundamental não apenas para a recuperação da Europa,</p><p>mas para a reestruturação do capitalismo europeu em moldes que atendessem</p><p>aos interesses dos EUA. Ao mesmo tempo, essa perspectiva possuía uma</p><p>dimensão que atendia às necessidades de reprodução do capitalismo como um</p><p>sistema mundial (HOGAN, 1994, 1995b).</p><p>Do meu ponto de vista, tanto a perspectiva ortodoxa estadunidense quanto a</p><p>chamada pós-revisionista não são adequadas à compreensão da Guerra Fria; a</p><p>primeira por estar comprometida com os projetos das elites estadunidenses e, em</p><p>consequência, por minimizar as inconsistências entre o discurso e a prática da</p><p>política externa dos Estados Unidos; a segunda por ser uma remodelagem da</p><p>primeira adaptada ao contexto dos anos finais do século XX, momento em que</p><p>um dos contendores da Guerra Fria se esfacelava enquanto o outro emergia</p><p>como protagonista de uma possível nova era.</p><p>O revisionismo cumpriu o seu papel ao desafiar o consenso oficial em anos</p><p>bastante difíceis, ainda marcados pela “caça às bruxas”, quando a discordância</p><p>relacionada à política implementada pelo governo era, nos EUA, tratada como</p><p>ato de traição e rotulada de propaganda comunista. Naquele contexto, essa</p><p>corrente historiográfica apresentou teses bastante sólidas que perduram até os</p><p>dias de hoje, como, por exemplo, a de que a União Soviética buscava a</p><p>cooperação internacional em 1945 e não representava uma ameaça imediata à</p><p>Europa Ocidental. A escola ressaltou que a estruturação da política externa da</p><p>União Soviética se dava muito mais em termos da Realpolitik, de forma a</p><p>salvaguardar</p><p>os seus interesses de Estado, e que, nesse sentido, era verossímil</p><p>definir parâmetros de negociação duradouros que pudessem evitar a emergência</p><p>da Guerra Fria. Esse modelo de análise carece de uma melhor percepção das</p><p>influências recíprocas e da própria interdependência entre as políticas doméstica</p><p>e externa, ponto forte do modelo corporatista de análise. É plausível interrogar</p><p>se o tratamento dispensado pela literatura revisionista à política externa soviética</p><p>envidada por Stálin no imediato pós-guerra não é excessivamente generoso e</p><p>condescendente. O revisionismo, todavia, além de haver questionado tanto a</p><p>política doméstica quanto externa dos EUA, desempenhou um papel ético e</p><p>moral ao contestar os dogmas oficiais, ao denunciar o suporte do governo dos</p><p>EUA a regimes ditatoriais truculentos e ao expor à sociedade estadunidense e ao</p><p>mundo a relação entre a imposição de uma política externa agressiva e a</p><p>emergência dos conflitos que desembocaram na Guerra Fria. Advirto que no</p><p>presente trabalho, de modo até certo ponto bastante eclético, procurei</p><p>incorporar tanto os avanços representados pelas teses revisionistas quanto</p><p>corporatistas. Adicionalmente, apropriei-me das análises centradas na teoria do</p><p>sistema-mundo, em especial aquelas apresentadas por Fred Halliday em The</p><p>Making of the Second Cold War (HALLIDAY, 1983), embora eu discorde da</p><p>própria concepção da existência de uma Segunda Guerra Fria, como procurarei</p><p>evidenciar em momento oportuno.</p><p>2</p><p>A OPERAÇÃO BARBAROSSA E A SEGUNDA FRENTE DE</p><p>BATALHA</p><p>Desde o sucesso inicial da Operação Barbarossa, com a invasão do território</p><p>soviético por tropas do Eixo, a 22 de junho de 1941, a diplomacia soviética</p><p>trabalhou no sentido de convencer a Grã-Bretanha e, posteriormente, os EUA à</p><p>abertura de uma Segunda Frente de Batalha9. Essa medida era vista por Stálin e</p><p>pelos estrategistas soviéticos como fundamental à sobrevivência da URSS, uma</p><p>vez que o país estava a enfrentar a colossal força de ocupação germânica.</p><p>Segundo essa perspectiva, a abertura da nova frente de batalha no Ocidente,</p><p>solicitada desde julho de 1941, obrigaria a Alemanha a transferir parte das suas</p><p>tropas de ocupação do território soviético para as áreas sob ataque, o que</p><p>ampliaria as condições de defesa e criaria possibilidades de uma contraofensiva</p><p>por parte do Exército Vermelho.</p><p>Os primeiros atritos entre soviéticos e britânicos</p><p>No início de novembro de 1941, pouco antes dos EUA entrarem</p><p>formalmente na guerra, surgiram sinais de crise entre as diplomacias soviética e</p><p>britânica. Stálin principiou a interpretar, como manobra britânica, as seguidas</p><p>recusas de Winston Churchill, primeiro ministro britânico, explicadas sempre</p><p>com base na Carta do Atlântico10, às suas propostas de negociação, pautadas na</p><p>definição de um plano para o pós-guerra, que reconhecesse as fronteiras</p><p>soviéticas anteriores à invasão germânica11. As divergências eram claras, pois os</p><p>dirigentes britânicos, em especial Churchill, entendiam que assegurar essas</p><p>fronteiras significava reconhecer a incorporação dos Estados Bálticos, resultado</p><p>de uma agressão compartilhada entre a URSS e a Alemanha. As tensões chegaram</p><p>a tal ponto que, em termos claros, Stálin manifestou o seu entendimento da</p><p>situação ao ministro das relações exteriores da Grã-Bretanha, Anthony Eden, ao</p><p>afirmar: “Eu pensei que a Carta do Atlântico fosse direcionada contra aqueles</p><p>povos que estão tentando estabelecer uma dominação mundial. Agora, parece-</p><p>me que a Carta do Atlântico foi direcionada contra a URSS” (GARDNER, 1994,</p><p>p. 114, tradução do autor). Além disso, as contínuas negativas da Grã-Bretanha</p><p>em declarar guerra aos aliados da Alemanha (Finlândia, Hungria e Romênia)</p><p>incomodavam o líder soviético, pois tropas desses países participavam da</p><p>invasão à URSS. Naquele contexto, Stálin chegou a solicitar também o envio à</p><p>URSS de 20 a 30 divisões britânicas para auxiliar na defesa soviética</p><p>(GARDNER, 1994, p. 107-108).</p><p>As promessas de abertura da Segunda Frente</p><p>O presidente perguntou ao general Marshall se tínhamos elementos suficientes para</p><p>afirmar ao Sr. Stálin que estávamos preparando uma Segunda Frente. Como o general</p><p>tivesse respondido afirmativamente, o presidente autorizou o Sr. Molotov a</p><p>transmitir ao Sr. Stálin que esperávamos abrir uma Segunda Frente este ano</p><p>(SHERWOOD, 1998, p. 580)12.</p><p>A prometida frente não ocorreu em 1942 e nem mesmo no ano seguinte.</p><p>Muitos autores atribuem o atraso na abertura do Front a questões de estratégia e</p><p>logística, enquanto outros imputam a Winston Churchill, primeiro ministro</p><p>britânico, a responsabilidade pelo contínuo adiamento da operação</p><p>(BAGGULEY, 1969, p. 114). Outros entendem que a posição de Churchill</p><p>decorria da complexidade da operação e do fato de que ele considerava muito</p><p>arriscado cruzar o Canal da Mancha e atacar a França dominada pela Alemanha.</p><p>Acreditava-se, segundo essa perspectiva, que era necessário ter a certeza do</p><p>sucesso da empresa para não comprometer o esforço de guerra, pois os recursos</p><p>somente seriam suficientes para uma ocasião (SWIFT, 2003, Map 5).</p><p>Novamente, nesse campo há divergências. Para Bagguley, em 1942 Churchill</p><p>haveria mencionado a existência de cerca de 9 divisões alemãs a proteger as</p><p>costas da França. Assevera, ainda, que geralmente essas informações eram</p><p>infundadas, de forma a sugerir que, naquele ano, as defesas fossem até mais</p><p>frágeis (BAGGULEY, 1969, p. 114). Para o autor, havia condições para a</p><p>realização da operação. Deve ser enfatizado, no entanto, que o assunto demanda</p><p>algumas ponderações, pois não se pode esquecer que uma derrota ou a invasão</p><p>com excessivas baixas custaria a posição de Churchill e a reeleição de Roosevelt.</p><p>Sublinhe-se que vários dos dispositivos militares para invasão foram</p><p>desenvolvidos depois de 1942 – supor que poderiam ser desenvolvidos antes</p><p>nos levaria a uma história contrafactual e aos seus perigos. Entretanto, é possível</p><p>considerar que a opção de concentrar grande parte do esforço militar britânico e</p><p>estadunidense no desenvolvimento das operações no Norte da África houvesse</p><p>contribuído para o atraso na produção dos dispositivos necessários à operação</p><p>na Normandia.</p><p>Alguns especialistas consideram que uma coisa é enfrentar os japoneses em</p><p>ilhas inóspitas de poucas centenas de quilômetros quadrados, sofrendo os</p><p>mesmos pesadelos logísticos dos nipônicos (transporte, armas, munição,</p><p>equipamentos, alimentos e até água potável). Outra, bem diferente, seria cruzar o</p><p>Canal da Mancha, conquistar posições, mantê-las e avançar no interior francês,</p><p>sem linhas de comunicações estruturadas para fluxo de homens, armas,</p><p>equipamentos e combustíveis. Segundo esse ponto de vista, em 1942, as tropas</p><p>estadunidenses eram novatas e os seus praças e oficiais cometeram erros</p><p>primários no Norte da África. Uma operação de tamanha responsabilidade e</p><p>risco somente poderia ser feita com garantias mínimas. Se, de um lado, essa é</p><p>uma perspectiva defensável e verossímil, de outro, considera-se que a demora na</p><p>abertura da Frente tornou-a muito mais difícil, pois, após a derrota em território</p><p>soviético, os alemães deslocaram mais forças para as áreas ocidentais. Desse</p><p>modo, quando ocorreu a Operação Overlord, em junho de 1944 (Desembarque</p><p>na Normandia), os aliados enfrentaram forças muito superiores àquelas que os</p><p>alemães possuíam em 1942 ou mesmo em 1943.</p><p>Após as sucessivas derrotas da Wehrmacht em Stalingrado e Kursk, Hitler</p><p>concluiu que não mais poderia vencer o Exército Vermelho na Frente Oriental.</p><p>Daí em diante começou a pensar que uma derrota na Frente Ocidental seria</p><p>muito mais catastrófica, pois, se as forças aliadas conseguissem penetrar as</p><p>defesas do Reich na França, estariam muito próximas do coração industrial do</p><p>Ruhr e do Reno e, mesmo, de chegarem a Berlim. Com essa preocupação em</p><p>mente, em novembro de 1943, Hitler ordenou a sua diretiva número 51, pela</p><p>qual tornava prioritária a defesa da Costa da França e passou a reforçar</p><p>militarmente a região (AMBROSE, 1995, p. 28-29).</p><p>Entre a França e o Norte da África</p><p>Churchill foi a Washington em dezembro de 1941</p><p>e, nessa ocasião, sugeriu a</p><p>Roosevelt a realização de uma operação (Gymnast) a envolver as forças dos dois</p><p>países no Norte da África. Esse seria o primeiro passo para vencer o Eixo. Na</p><p>primeira Conferência de Washington, também conhecida como Conferência de</p><p>Arcádia13, há indícios de que Roosevelt havia sido convencido por Churchill a</p><p>concentrar os esforços no Norte da África e a pensar na ofensiva ao território</p><p>francês, então sob o domínio da Alemanha, pelo Canal da Mancha para 1943.</p><p>Diversos militares de alta patente, entre eles o general George Catlett Marshall e</p><p>o Almirante Ernest Joseph King, no entanto, opuseram-se a essa ação pela</p><p>periferia das áreas centrais do conflito e preferiam concentrar o ataque de forma</p><p>a aliviar a pressão que a União Soviética estava a sofrer. Segundo Bagguley,</p><p>Marshall e King chegaram a ameaçar um pedido de demissão, pois entendiam</p><p>que essas operações no Norte da África não eram importantes e que impediriam</p><p>qualquer manobra na Europa em 1942 e, além disso, dificultariam ou</p><p>impediriam essas operações mesmo na primavera de 1943. Conforme o autor,</p><p>“na opinião deles, a falha em agir na Europa em 1942 significaria uma fuga ao</p><p>compromisso americano para com a União Soviética” (BAGGULEY, 1969, p.</p><p>111).</p><p>Em abril de 1942, Churchill aceitou a proposta alternativa dos EUA de uma</p><p>ação preliminar de ataque à Europa ainda naquele ano (Operação Sledgehammer),</p><p>seguida da operação principal em 1943 (Operação Round-up, posteriormente</p><p>renomeada para Overlord). Em julho, Churchill, contudo, retrocedeu em sua</p><p>posição ao alegar que a operação seria inviável naquele contexto, pois estava</p><p>centrada principalmente nas forças britânicas. Em efeito, o líder britânico alegou</p><p>que o país não possuía equipamentos suficientes para o desembarque. Assegurou</p><p>que as defesas alemãs eram bastante sólidas e que as possibilidades de sucesso</p><p>eram remotas (GOOCH, 1995, p. 239).</p><p>Na Conferência de Washington, em maio de 1943, Churchill foi</p><p>praticamente compelido a aceitar a operação de invasão da França, programada</p><p>para 1944. Ao longo do outono, no entanto, ele ainda insistiu em operações no</p><p>Norte da África, depois nos Bálcãs, mesmo que essas opções custassem o atraso</p><p>da Operação Overlord. Segundo Gooch, quando o controle dos Bálcãs pela</p><p>União Soviética tornou-se mais provável, Churchill mudou a sua estratégia, que</p><p>até então se fundava em questões militares, e passou a fundamentar-se no risco</p><p>de os soviéticos controlarem a região. Para ele, Churchill desenvolveu outras</p><p>estratégias com vistas a protelar a abertura da Segunda Frente, inclusive haveria</p><p>manipulado a situação com o intuito de evitar que Stálin fosse convidado à</p><p>Conferência do Cairo (22 a 26/11/1942), pois acreditava que o líder soviético</p><p>aproveitaria a ocasião para pressionar pela abertura do Front (GOOCH, 1995, p.</p><p>240).</p><p>Na Aliança, havia um clima de dissensões e de suspeições, principalmente a</p><p>envolver soviéticos e ingleses. Apesar disso, houve novos acenos alusivos às</p><p>intenções com vista à abertura da frente em 1943, mas, de fato, o evento apenas</p><p>concretizou-se com a Operação Overlord, no chamado Dia D, em 6 de junho de</p><p>1944. Ao longo de todo esse intervalo, a União Soviética viu-se forçada a</p><p>combater as forças do Eixo com tenacidade e recursos limitados, embora</p><p>contasse com o apoio logístico e de fornecimento de equipamentos, armas,</p><p>munições e uma infinidade de outros produtos e equipamentos principalmente</p><p>por parte dos EUA. Enfim, as forças soviéticas foram impelidas a lutar como</p><p>podiam para fazer frente à maior máquina de guerra até então em operação.</p><p>Como resultado, ao final desses enfrentamentos, o Exército Vermelho não</p><p>apenas havia suplantado os adversários como havia se transformado na maior e</p><p>mais poderosa força de combates terrestres do planeta.</p><p>A Frente e a dissolução da Internacional Comunista</p><p>A 10 de junho de 1943, o Presidium do Comitê Executivo aprovou a</p><p>autodissolução da III Internacional, baseada na justificativa de que a experiência</p><p>havia demonstrado que a organização a partir de um único centro não haveria</p><p>dado certo; que se fazia necessária a criação de uma ampla coalizão frente ao</p><p>fascismo e que os comunistas deveriam se empenhar profundamente em auxiliar</p><p>a máquina de guerra das democracias que se opunham aos regimes e aos</p><p>movimentos fascistas. Em paralelo, a resolução recomendava ações de sabotagem</p><p>nos países ocupados pelas forças nazistas. O Presidium da Internacional</p><p>Comunista solicitava ainda, de forma complementar, que os diferentes partidos</p><p>comunistas espalhados pelo mundo atuassem dentro dos marcos nacionais e de</p><p>forma a respeitar os aliados de guerra. Em síntese, era uma recomendação para</p><p>subordinar os interesses locais ao conflito global e à defesa da União Soviética,</p><p>considerada então como a pátria do socialismo.</p><p>Assim, a organização, criada em 1919, com o intuito de exportar o projeto</p><p>revolucionário bolchevique, foi dissolvida 23 anos depois sem resultados</p><p>concretos tangíveis14. Entretanto a decisão de extinguir a organização ocorreu</p><p>justamente no momento em que eram vislumbradas perspectivas revolucionárias</p><p>em boa parte da Europa, além da grande inquietação crescente nos países</p><p>coloniais (CLAUDÍN, 1985, p. 27-50). Assevera o autor que a decisão de</p><p>extinguir a Internacional partiu de Stálin, pois apenas 28 das 76 seções da</p><p>Internacional foram consultadas (aquelas cujos líderes estavam em Moscou sob a</p><p>tutela do líder soviético). Para o autor, uma organização que não havia</p><p>funcionado por mais de 20 anos somente precisaria ser extinta às pressas se a</p><p>questão não fosse interna à organização, mas estivesse ligada a oferecer garantias</p><p>aos aliados da URSS no conflito global de que não haveria revoluções</p><p>(CLAUDÍN, 1985, p. 31-40). Dessa forma, segundo o autor e ativista comunista</p><p>espanhol, Stálin haveria demonstrado a Roosevelt e a Churchill a sua disposição</p><p>para a convivência e coexistência pacífica com as democracias ocidentais e, em</p><p>contrapartida, buscava conseguir a criação da Segunda Frente, assunto já</p><p>abordado neste texto.</p><p>Desse ponto de vista, a Internacional Comunista haveria sido dissolvida em</p><p>função dos interesses do Estado soviético e não pelas supostas necessidades do</p><p>movimento comunista internacional. A decisão balizava a disposição soviética de</p><p>cooperar com as democracias capitalistas ocidentais com vistas a um</p><p>ambicionado entendimento quanto aos destinos do mundo que emergiria do</p><p>conflito e quanto ao papel a ser desempenhado pela União Soviética na nova</p><p>ordem mundial que, certamente, seria edificada após a derrota do inimigo. Em</p><p>outra passagem, Claudín considera que o Estado soviético promoveu o</p><p>holocausto da Internacional Comunista no altar da “grande aliança” de guerra</p><p>(1985, p. 334).</p><p>É plausível conjecturar que a decisão de dissolver a Internacional, tomada</p><p>somente após a vitória soviética em Stalingrado, tinha como norte consolidar o</p><p>relacionamento amistoso entre a URSS e as potências capitalistas ocidentais,</p><p>com vistas às definições do pós-guerra, quando Stálin esperava que a União</p><p>Soviética pudesse desempenhar um papel de grande potência ao lado dos EUA.</p><p>Assim, quando foi tomada a decisão de encerrar as atividades da Internacional, a</p><p>fase mais ameaçadora da invasão alemã já havia passado, e a possibilidade de</p><p>derrota e de esfacelamento do regime soviético também havia se dissipado. Desse</p><p>modo, após as vitórias em Stalingrado e, posteriormente, em Kursk, o Exército</p><p>Vermelho havia assumido as iniciativas no teatro de operações e desencadeado</p><p>ações com o escopo de derrotar o inimigo, expulsá-lo do território soviético e na</p><p>sequência marchar sobre outras áreas ainda sob o controle das forças do Eixo.</p><p>Sublinhe-se que, após o ataque alemão à União Soviética, Stálin procurou</p><p>remover os possíveis entraves às negociações diplomáticas que tinham por</p><p>objetivo a criação de uma aliança com as nações capitalistas democráticas</p><p>ocidentais para enfrentar o Eixo. Ao extinguir a Internacional, em maio de 1943,</p><p>o líder soviético ofereceu uma demonstração do alcance da sua disposição para</p><p>negociar. Ressalte-se,</p><p>contudo, que esse ato era muito mais simbólico do que</p><p>real, pois Stálin mantinha controle sobre os partidos comunistas na esmagadora</p><p>maioria dos países onde eles existiam, fossem legais ou ilegais. Em paralelo, no</p><p>campo ocidental, muitos estrategistas acreditavam haver razões de sobra para</p><p>desconfiar dos desígnios do líder soviético. Do ponto de vista deles, os</p><p>comunistas consideravam que a história lhes era favorável, ou seja, o capitalismo</p><p>caminhava para sua destruição no médio e no longo prazo. Daí interpretavam</p><p>que a sobrevivência da URSS não era para conviver em paz indefinidamente com</p><p>o capitalismo. Nessa linha interpretativa, além das contradições internas do</p><p>sistema capitalista, haveria a força organizada e inspiradora da “pátria do</p><p>socialismo”.</p><p>Nos anos seguintes, Stálin não estimulou revoluções, ao contrário, agiu com</p><p>bastante prudência e cautela, inclusive com o intuito de contê-las. Somente</p><p>mudou essa diretriz quando a intensificação dos conflitos com os ex-aliados</p><p>ganhou corpo e ficou evidente a impossibilidade de um acordo satisfatório e de</p><p>uma possível convivência pacífica. Exemplo cristalino dessa linha de conduta foi</p><p>o posicionamento soviético em relação à Guerra Civil na Grécia. Em 1944, Stálin</p><p>e Churchill chegaram a um acordo sobre a predominância britânica na região.</p><p>Em decorrência, a Grã-Bretanha controlaria a Grécia e a URSS a Romênia. Desse</p><p>modo, os soviéticos não apoiaram a guerrilha grega, mesmo cientes de que ela</p><p>era a maior força política no país e de que, no interior da guerrilha, os</p><p>comunistas constituíam-se na maior força individual.</p><p>Na continuidade daquele ano, em dezembro de 1944, os britânicos</p><p>impuseram penosas derrotas à guerrilha. Muitos associam a consolidação da</p><p>posição britânica na Grécia ao massacre à população civil do país, quando foi</p><p>amplamente empregado o bombardeio de áreas controladas por nacionalistas e</p><p>comunistas que haviam tido um importante papel na derrota das forças fascistas.</p><p>Stálin não se manifestou de forma alguma sobre o massacre que estava a ocorrer</p><p>na Grécia. Os comunistas gregos, contudo, continuaram a receber apoio</p><p>proveniente da Iugoslávia. Com o início da Guerra Fria, nos EUA, acusava-se a</p><p>URSS de estar por trás da convulsão social na Grécia, tese que não apresenta</p><p>evidências robustas, uma vez que os fatos indicam um alheamento soviético em</p><p>relação ao conflito. Na ocasião, associava-se o auxílio iugoslavo como um</p><p>estratagema de Stálin, uma vez que era tendência predominante ver o</p><p>movimento comunista como um monólito manipulado por Moscou. Ao longo</p><p>dos anos, contudo, tornou-se conhecido que a Iugoslávia agia com grande</p><p>autonomia em relação a Moscou, uma vez que as forças locais derrotaram os</p><p>inimigos sem o auxílio do Exército Vermelho. Mais do que isso, rapidamente</p><p>ficou evidente que o nacionalismo de Josip Broz Tito e seus seguidores os levou</p><p>a imprimir uma política própria na região, o que resultou no forçoso confronto</p><p>com o regime de Stálin. Em 1946, ocorreram eleições na Grécia, apontadas por</p><p>observadores de diferentes matizes como fraudadas. Em 1948, porém, quando as</p><p>relações entre a Iugoslávia e a URSS se deterioram, os comunistas gregos</p><p>tomaram o lado de Stálin. Em consequência, perderam o apoio de Tito, o que</p><p>tornou inevitável a derrota das forças de esquerda na Grécia, em 1949, e selou o</p><p>final da guerra civil.</p><p>O Lend-lease</p><p>Não se pode deixar de mencionar que, apesar das sucessivas procrastinações</p><p>da Segunda Frente, os EUA mantiveram apoio à União Soviética por meio do</p><p>Lend-lease, com envio de arriscados comboios pelo Ártico. Havia sérios riscos de</p><p>torpedeamento por parte dos submarinos alemães. Todavia, por vezes, houve a</p><p>redução ou mesmo a suspensão temporária desse auxílio, em consequência das</p><p>necessidades advindas das demandas de outros dois teatros de operações, as</p><p>batalhas do Pacífico e do norte da África. Apenas para ficar em um exemplo, a</p><p>decisão de desencadear a Operação Torch, que tinha por objetivo vencer as forças</p><p>opositoras no norte da África e no Mediterrâneo, justificou corte nos</p><p>carregamentos para a União Soviética. Alguns autores procuram sublinhar a</p><p>importância do Lend-lease e ressaltar que, sem ele, a União Soviética não poderia</p><p>haver derrotado a Alemanha (DUNN, 1998, p. 245).</p><p>O auxílio dos EUA por meio do Lend-lease tornou-se suporte de inestimável</p><p>valia para sustentar o esforço de guerra soviético. O vultoso apoio material dos</p><p>EUA, no entanto, era insuficiente perante a dimensão das dificuldades soviéticas.</p><p>Naquele contexto, enquanto a Segunda Frente não saía do campo das intenções e</p><p>das promessas, Stálin pedia sempre mais e mais alimentos, equipamentos, armas,</p><p>munições e mesmo a montagem de fábricas para manter o esforço de guerra</p><p>soviético. Naquele contexto, muitas vezes, os aliados acabavam por prometer</p><p>mais do que era possível cumprir, e isso geraria discórdias no futuro.</p><p>Em Moscou, a intermitência no fornecimento de suprimentos induziu ao</p><p>avivamento das suspeições de que os Aliados queriam apenas garantir que a</p><p>URSS e a Alemanha mantivessem aquele combate sangrento a ponto de se</p><p>aniquilarem reciprocamente. Em síntese, a própria base da aliança efêmera entre</p><p>os chamados países capitalistas democráticos e o estatismo soviético para fazer</p><p>frente ao inimigo comum (HOBSBAWM, 1995, p. 144-177) possuía as sementes</p><p>dos desentendimentos futuros (SWIFT, 2003, Map 5). Do exposto, depreende-se</p><p>que, embora apenas o Lend-lease não atendesse às demandas dos soviéticos, pois</p><p>o que eles mais necessitavam era mesmo da criação de uma frente de combates na</p><p>Europa Ocidental, a sua suspensão em determinados períodos foi tão desastrosa</p><p>para a defesa soviética quanto para as relações entre os membros da aliança.</p><p>É possível aferir a dimensão da importância do Lend-lease quando são</p><p>observadas as informações relacionadas às profusas quantidades de itens</p><p>encaminhados à URSS pelos EUA. Durante todo o período da guerra, os Estados</p><p>Unidos enviaram à aliada ao redor de 427 mil caminhões, que foram</p><p>fundamentais na logística do confronto militar (BATEMAN III, 2000, p. 56).</p><p>Adicionalmente, foram fornecidos pelos EUA 15 milhões de pares de botas, 4</p><p>milhões de toneladas de alimentos, 34 milhões de uniformes, entre outros itens</p><p>de análoga relevância ao esforço bélico. Esse suporte vultoso permitiu aos</p><p>soviéticos concentrarem-se na produção de tanques e outros artefatos bélicos</p><p>que foram decisivos na condução da guerra (NEIGBERG, 2000, p. 58).</p><p>Estatísticas</p><p>Há divergências estatísticas relacionadas ao emprego de forças na Operação</p><p>Barbarossa e durante o período de ocupação do território soviético pela</p><p>Alemanha, mas essas discrepâncias não mudam de forma expressiva a</p><p>compreensão da magnitude do evento e do poderio bélico nele empregado. Para</p><p>David M. Glantz (coronel do Exército dos EUA e estudioso do conflito sovieto-</p><p>germânico, durante a II Guerra Mundial), a Alemanha empregou, na fase inicial</p><p>da Operação Barbarossa, cerca de três milhões de soldados. Segundo Glantz, de</p><p>início, os invasores demonstraram superioridade e, em pouco tempo, esmagaram</p><p>as defesas e avançaram com rapidez em território soviético. Sublinha o estudioso</p><p>que, por volta do final de 1941, as forças alemãs ameaçavam Moscou,</p><p>Leningrado e Rostov. Ressalta que, até o término de 1942, a Alemanha manteve</p><p>cerca de quatro milhões de soldados em operação no território soviético, o que</p><p>representava algo próximo de 70 a 80 por cento dos combatentes do Reich em</p><p>ação. Ainda, segundo o autor, o máximo de combatentes alemães empregados na</p><p>luta contra o Exército Vermelho alcançou a marca de seis milhões de soldados no</p><p>verão de 1944 (GLANTZ, 2001, p. 9).</p><p>Historiadores soviéticos afirmam que a Alemanha haveria empregado 4,6</p><p>milhões de soldados na operação Barbarossa, distribuídos em 153 divisões, mais</p><p>de 42 mil canhões e morteiros e 4 mil tanques e canhões de assalto e equivalente</p><p>número de aviões (KULKOV; RJECHEVSKI; TCHELICHEV, 1985, p. 111).</p><p>Tanto as informações soviéticas quanto aquelas provenientes de fontes</p><p>ocidentais indicam que a URSS possuía um poder defensivo</p><p>inicialmente</p><p>inferior às forças de ocupação. Em 1942, Stálin, em reunião com Winston</p><p>Churchill e William Averell Harriman, afirmou que a URSS estava a enfrentar</p><p>280 divisões alemãs. Na ocasião, o líder soviético insistiu que a abertura de uma</p><p>frente de combate, na França ocupada, obrigaria a Alemanha a deslocar em torno</p><p>de 40 divisões que se encontravam em operação em território da URSS. Stálin</p><p>acreditava que esse deslocamento pudesse fazer a correlação de forças pender de</p><p>forma favorável ao seu país, que, desse modo, poderia sobrepujar o adversário e</p><p>definir o encaminhamento da guerra (SHERWOOD, 1998, p. 630-631).</p><p>Frederick W. Marks III enfatiza que Stálin não permitia a nenhum líder</p><p>Ocidental se esquecer de que a União Soviética lutava sozinha contra 270</p><p>divisões alemãs enquanto os EUA e a Grã-Bretanha, combinados, enfrentavam</p><p>90 divisões alemãs e japonesas (MARKS III, 1995, p. 217).</p><p>Em sua crítica conservadora a Roosevelt, Marks III afirma que uma, entre</p><p>muitas outras, falhas do presidente dos EUA era não possuir um plano</p><p>alternativo. Para o autor, Roosevelt acreditava que a URSS ficaria exaurida em</p><p>sua luta contra a Alemanha e se associaria a um Ocidente cooperativo de forma a</p><p>rumar gradualmente em direção ao capitalismo e à democracia. Afirma, ainda,</p><p>que Stálin foi um mestre nas negociações ao final da guerra e que Roosevelt agiu</p><p>como um pupilo aprendiz. Assevera que Roosevelt deveria ter em mente a sua</p><p>própria analogia de que não era possível transformar um tigre em um gatinho</p><p>(MARKS III, 1995).</p><p>Marks III sublinha que as concessões feitas à União Soviética com o intuito</p><p>de torná-la mais amigável apenas aumentaram o seu apetite (MARKS III, 1995,</p><p>p. 215-217). O problema da análise do autor é que ele, de antemão, parte do</p><p>pressuposto de que Roosevelt era a parte mais frágil no processo de negociação</p><p>com Stálin, como se essa fosse uma característica inerente ao presidente dos</p><p>EUA. Roosevelt negociava com as armas que possuía e a não abertura da</p><p>Segunda Frente, constantemente protelada pelas evasivas de Churchill, deixaram</p><p>Stálin em posição vantajosa. Roosevelt teve que negociar com o que possuía, mas</p><p>não lhe era possível mudar o mundo real. Nele, os soviéticos possuíam cerca de</p><p>três vezes mais forças terrestres a controlar a Europa Central e Oriental do que</p><p>os seus aliados ocidentais.</p><p>No contexto histórico dos idos de 1942 e 1943, a abertura de uma nova</p><p>frente de batalha na Europa Ocidental era considerada pelos estrategistas</p><p>soviéticos como basilar para a redução da pressão das forças invasoras sobre as</p><p>exaustas defesas soviéticas. A historiografia revisionista estadunidense,</p><p>principalmente no transcorrer das décadas de 1960 e 1970, notadamente John</p><p>Bagguley, fez severas críticas à subestimação do papel da URSS na vitória da II</p><p>Guerra Mundial e, ao fazê-lo, também abalizou o problema da Segunda Frente</p><p>como elemento desencadeador das tensões que deram origem à Guerra Fria.</p><p>Bagguley afirma que houve a superestimação das forças alemãs na França</p><p>(empregada para justificar a impossibilidade de iniciar o novo Front tanto em</p><p>1942 quanto em 1943), e indica que havia apenas cerca de nove divisões na</p><p>região (BAGGULEY, 1969, p. 114). O autor também analisa as forças envolvidas</p><p>nos combates no Norte da África e na Itália:</p><p>Desde começos de 1941 até os desembarques na Normandia em junho de 1944, a força</p><p>total do Império Britânico e da Commonwealth empenhou entre duas e oito divisões</p><p>do principal poder do Eixo, a Alemanha. Durante todo esse período, excetuados seis</p><p>meses, a União Soviética resistiu, conteve, e finalmente repeliu, uma média de 180</p><p>divisões alemãs. O esforço ocidental foi, pela maior parte, dissipado num palco</p><p>secundário da guerra. Uma média de 12 divisões dos aliados ocidentais levou dois</p><p>anos e meio para fazer recuar cerca do mesmo número de divisões do Eixo desde o</p><p>Egito até o Norte da Itália [...] (BAGGULEY, 1969, p. 116)</p><p>Segundo outro autor, durante o conflito mundial, 80 por cento das mortes</p><p>ou desaparecimentos de soldados alemães em combate ocorreram na Frente</p><p>Oriental, o que totalizou cerca de 10 milhões e 700 mil homens. Se incluídas as</p><p>outras forças do Eixo, as ocorrências perfazem a cifra de 12.483.000 soldados</p><p>mortos, presos, capturados, desaparecidos ou mutilados de forma permanente</p><p>(GLANTZ, 2001, p. 14- 15). Novamente, há divergências estatísticas no que se</p><p>refere à dimensão e à composição tanto das forças soviéticas quanto das alemãs,</p><p>mas esses dados são de pouca relevância para o argumento aqui exposto, ou seja,</p><p>que a URSS enfrentou uma força de ocupação de proporções muito superiores</p><p>ao que a Grã-Bretanha e, depois, os EUA combateram ao longo do conflito</p><p>mundial.</p><p>O Turning Point da Guerra</p><p>Embora não haja consenso sobre o assunto, Glantz antecipa o primeiro</p><p>turning point da Segunda Guerra Mundial, ao assegurar que, por meio da</p><p>contraofensiva de Moscou, cumprida entre dezembro de 1941 e janeiro de</p><p>1942, os soviéticos já haviam selado a derrota da Operação Barbarossa de forma</p><p>a delinear-se pela primeira vez a impossibilidade da vitória alemã. Para a maioria</p><p>dos estudiosos da matéria, entretanto, o cenário somente encetou câmbios</p><p>mensuráveis com a derrota imposta à Alemanha pelo Exército Vermelho na</p><p>batalha de Stalingrado, quando os invasores haveriam experimentado a primeira</p><p>derrota militar de grande magnitude. Dessa forma, para os estrategistas dos</p><p>países que compunham as forças aliadas, o triunfo soviético em Stalingrado</p><p>consolidou a crença na irrefragável vitória sobre os regimes fascistas. Assim, o</p><p>planejamento foi direcionado, sobretudo, em relação a quando, a que custos</p><p>humanos e como a Alemanha seria vencida em um futuro próximo e, em</p><p>paralelo, iniciou-se o debate sobre que tipo de estrutura global deveria ser criada</p><p>para estabelecer a nova ordem mundial.</p><p>Mesmo a considerar esses fatos, entre meados de 1943 e o início de 1945,</p><p>cerca de 60 por cento das forças alemãs continuavam a combater na Frente</p><p>Oriental (GLANTZ, 2001, p. 9). Sublinhe-se a ocorrência das batalhas de</p><p>Moscou, Kursk, Karkov, Bielorrússia, Ucrânia, e mesmo a batalha de Berlim</p><p>como eventos decisivos para a conclusão da Segunda Guerra Mundial.</p><p>Entretanto, a historiografia produzida no Ocidente tendeu a minimizar e mesmo</p><p>a omitir esses embates, de forma que o papel desempenhado pela União</p><p>Soviética durante o conflito mundial foi subestimado (GLANTZ, 2001, p. 4). No</p><p>contexto da Guerra Fria, são perceptíveis as diferenças de abordagem da matéria,</p><p>de maneira especial aquelas marcadas pelo viés ideológico.</p><p>Para a historiografia soviética e para os historiadores críticos à nova ordem</p><p>arquitetada no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, a Batalha de Stalingrado</p><p>significou, de forma incontroversa, a grande guinada do conflito mundial.</p><p>Segundo essa perspectiva, com a derrota, a Alemanha perdeu a iniciativa no</p><p>teatro de operações e a URSS haveria passado à ofensiva, o que a levou, de forma</p><p>inexorável, primeiro à ocupação das áreas até então sob o controle alemão e</p><p>depois à conquista de Berlim. Para esses autores, o papel do Exército Vermelho</p><p>foi preponderante na vitória dos aliados, enquanto as contribuições dos EUA e</p><p>da Grã-Bretanha haveriam sido menores. No chamado mundo ocidental, de</p><p>forma predominante, o papel soviético na vitória contra o Eixo foi minimizado.</p><p>Sobre esse aspecto, Norman Davies observa que o historiador livre de</p><p>preconceitos considerará o esforço de guerra das potências ocidentais como</p><p>secundário (DAVIES, 2016, p. 31). O autor, de perfil conservador e crítico do</p><p>regime soviético, reconhece a colossal diferença entre as batalhas corridas no</p><p>Ocidente e aquelas da Frente Oriental. Veja a tabela a seguir sobre mortes em</p><p>combate nas principais batalhas da Segunda Guerra Mundial apresentada pelo</p><p>autor.</p><p>Tabela 1 – Número de fallecidos en campañas y batallas</p><p>Fonte: Davies (2016, p. 32)</p><p>Observe-se que o autor não aponta as fontes em que se baseou, indica que</p><p>são variadas e que os números resultam de estimativas, uma vez que não há</p><p>dados precisos sobre as mortes na Frente Oriental.</p><p>Para</p><p>historiografia tradicionalista estadunidense, também denominada como</p><p>ortodoxa, a reivindicação soviética da abertura da Segunda Frente, regra geral, é</p><p>mencionada de relance, sem que a questão seja amplamente debatida ou</p><p>apresentada. Nesse campo, encontramos autores que a apresentam como uma</p><p>impossibilidade antes de 1944 e outros que indicam a impaciência de Roosevelt</p><p>com os sucessivos atrasos na abertura da Frente ocasionados pela contínua</p><p>resistência emanada de Churchill e dos estrategistas militares britânicos. Nessa</p><p>perspectiva, a Batalha de Stalingrado aparece como apenas mais um entre outros</p><p>pontos de inflexão da guerra, ao lado das Batalhas de El Alamein, para ficar em</p><p>apenas um exemplo. Para Glantz, porém, Stalingrado é de uma magnitude</p><p>completamente diferente, com o envolvimento de um contingente de</p><p>combatentes e com baixas cerca de uma dezena de vezes superiores às ocorridas</p><p>no norte da África. Além disso, para o autor, a derrota da Alemanha na URSS</p><p>privou o III Reich de vultosos recursos (petróleo, alimentos, força de trabalho)</p><p>com os quais Hitler contava para dar continuidade à guerra.</p><p>Segundo Glantz, distorções na historiografia estadunidense e Ocidental</p><p>tenderam a pintar a guerra sovieto-germânica como um pano de fundo de</p><p>batalhas nas quais, de fato, o conflito mundial haveria sido definido, como, por</p><p>exemplo, El Alamein, Salerno, Anzio, Normandia ou Ardenas. Conforme o</p><p>autor, isso se deveu em grande medida ao eurocentrismo e à dependência das</p><p>fontes alemãs que descrevem a luta da Wehrmacht contra um inimigo disforme e</p><p>com infindáveis recursos humanos e materiais. Em adição, o autor sublinha que</p><p>as barreiras impostas pelo idioma (resultado do restrito contingente de</p><p>historiadores ocidentais que dominam o russo) e pela inacessibilidade aos</p><p>documentos soviéticos contribuíram para o predomínio da versão alemã</p><p>(GLANTZ, 2001, p. 4-5). Para o autor, mesmo após a abertura dos arquivos</p><p>soviéticos, iniciada na década de 1990, há muito a percorrer para que se possa</p><p>produzir uma análise mais balanceada dos eventos relacionados ao conflito</p><p>global.</p><p>Para Glantz, já entre dezembro de 1941 e janeiro de 1942, a despeito das</p><p>enormes dificuldades, os soviéticos promoveram um dos primeiros pontos de</p><p>virada do conflito mundial, com a contraofensiva de Moscou, de forma a</p><p>derrotar a Operação Barbarossa e a sinalizar a impossibilidade de vitória alemã</p><p>(GLANTZ, 2001, p. 11). Em paralelo, o Exército Vermelho impôs recuos à</p><p>Wehrmacht tanto nos flancos Norte quanto no Sul. Adicionalmente, a</p><p>contraofensiva soviética em Tikhvin e Rostov, respectivamente ao leste e ao sul</p><p>de Stalingrado, impediu aos alemães a conquista de qualquer um dos seus três</p><p>principais eixos estratégicos (GLANTZ, 2001, p. 19-20).</p><p>A posição do autor distingue-se tanto daqueles que privilegiam as operações</p><p>no Mediterrâneo quanto daqueles que demarcam Stalingrado como a primeira</p><p>grande virada da Segunda Guerra Mundial. Ele defende a tese de que, já em</p><p>dezembro de 1941, com a contraofensiva de Moscou e, ato contínuo, com a</p><p>ofensiva de janeiro de 1942, o Exército Vermelho haveria imposto uma primeira</p><p>derrota à Alemanha e, com isso cambiado a balança do conflito em favor dos</p><p>aliados. Para Glantz, já no início de 1942 haveria ocorrido um importante</p><p>Turning Point da guerra com a Batalha de Moscou. Para o autor, contudo, a</p><p>Batalha de Stalingrado foi o Turning Point decisivo da Segunda Guerra Mundial</p><p>(GLANTZ, 2001, p. 33-55).</p><p>Indagações e Hipóteses</p><p>Nessa matéria, uma questão chama a atenção. A partir do momento em que a</p><p>URSS debelou o ataque alemão e, depois, iniciou uma série de contraofensivas</p><p>que culminaram com a expulsão dos invasores do território soviético, que</p><p>motivos levariam, principalmente, Churchill a manter as estratégias protelatórias</p><p>para evitar a abertura da Segunda Frente? Com os seguidos sucessos soviéticos,</p><p>era previsível supor que o Exército Vermelho acabaria por dominar a Europa</p><p>Central e Oriental. Tornara-se também presumível que a imediata abertura da</p><p>Frente levaria as forças dos EUA e da Grã-Bretanha a moderarem o predomínio</p><p>soviético na região. Ademais, era sabido, desde o início dos conflitos, que a</p><p>URSS se empenharia no controle daqueles territórios, uma vez que os</p><p>considerava vitais à sua segurança.</p><p>Os soviéticos não escondiam as suas apreensões em relação à possibilidade</p><p>de que forças hostis pudessem manter o domínio de territórios contíguos às suas</p><p>fronteiras. Ressalte-se que, desde o início da aliança, o Kremlin insistia na</p><p>discussão da restauração das suas fronteiras anteriores à guerra. Essa era uma</p><p>questão sobre a qual Stálin mostrava uma obsessão marcada. A história</p><p>vivenciada pelos povos russos trazia à tona inquietações compreensíveis, pois o</p><p>império havia experimentado, ao longo de séculos, seguidas incursões</p><p>estrangeiras em seus territórios. Os então denominados bárbaros representavam</p><p>contínuas ameaças às planícies quase indefensáveis do antigo império.</p><p>Posteriormente, a Rússia foi invadida pela França, durante as guerras</p><p>napoleônicas, em 1812; pela França, Inglaterra, Império Otomano e seus aliados,</p><p>durante a Guerra da Crimeia, em 1854; pela Alemanha, em 1914, durante a I</p><p>Guerra Mundial; por uma coalizão que envolvia a Inglaterra, a França, a Polônia,</p><p>o Japão, os EUA e mercenários de diferentes países da Europa Oriental, durante a</p><p>Guerra Civil, em 1918; e, finalmente, pelas forças do Eixo, em 1941 (TAYLOR,</p><p>1967, p. 351; LaFEBER, 1997, p. 19-20).</p><p>Uma hipótese crível para explicar os motivos que haveriam instado Churchill</p><p>a manter um posicionamento avesso à abertura da Segunda Frente, mesmo após</p><p>tornarem-se evidentes as previsões de que o Exército Vermelho, com a</p><p>imposição de sucessivas derrotas à Alemanha, viesse a subjugar a Europa Central</p><p>e Oriental, é a de que a principal preocupação do primeiro ministro se</p><p>relacionava à preservação, a qualquer custo, das possessões imperiais da Coroa</p><p>britânica. Desse modo, manter o controle sobre Mediterrâneo era uma questão-</p><p>chave, uma vez que o seu bloqueio por qualquer força hostil tornaria as</p><p>comunicações entre Londres e as suas colônias muito mais difíceis, demoradas e</p><p>onerosas e, portanto, colocava em xeque o domínio imperial britânico.</p><p>Adicionalmente, o petróleo proveniente do Oriente Médio chegava a Londres</p><p>pelo Mediterrâneo e o seu eventual bloqueio por uma força inimiga significaria</p><p>uma catástrofe para a segurança energética do Reino Unido.</p><p>Promessas e evasivas</p><p>Como já se assinalou em outra passagem, apesar de Roosevelt haver</p><p>assegurado ao ministro das relações exteriores da URSS, que ele poderia</p><p>transmitir a Stálin o seu compromisso de que a Segunda Frente ocorreria em</p><p>1942, a decisão presidencial deparou com vários percalços e tornou-se inócua. A</p><p>princípio, Churchill interpôs os seus múltiplos receios associados aos riscos da</p><p>operação. Posteriormente, com a queda da Fortaleza de Tobruk (Líbia), a 21 de</p><p>junho daquele ano, perante as tropas comandadas por Erwin Rommel, o</p><p>primeiro ministro britânico, que se encontrava nos EUA, para uma reunião com</p><p>Roosevelt, clamou pela urgência de apoio estadunidense às forças inglesas que se</p><p>encontravam em difícil situação no norte da África (SHERWOOD, 1998, p. 605-</p><p>606). Essa mudança de cenário reforçou os argumentos daqueles que se</p><p>opunham à realização imediata da Segunda Frente tanto nos EUA quanto na</p><p>Grã-Bretanha.</p><p>Os soviéticos pressionaram o quanto puderam pela abertura da mencionada</p><p>Frente, muitas vezes até de forma pouco diplomática, como indica Averell</p><p>Harriman, ao narrar a reunião que ele e Churchill tiveram com Stálin, em</p><p>Moscou, em 12 de agosto de 1942. No telegrama encaminhado ao presidente</p><p>Roosevelt, Harriman reportou o ocorrido da seguinte forma:</p><p>Ontem à noite, o primeiro ministro e eu tivemos uma longa conversa com Stálin.</p><p>Molotov, Voroshilov e o embaixador inglês estavam presentes. O assunto principal se</p><p>concentrou nos planos estratégicos ingleses e americanos para o restante de 1942 e</p><p>para 1943, bem como suas repercussões sobre a situação militar russa.</p><p>Minha impressão foi que, considerando todas</p><p>as circunstâncias, a discussão não</p><p>poderia ter sido melhor encaminhada [...]</p><p>Segundo Harriman, no entanto,</p><p>[...] Em todas as vezes, Stálin discordou com uma rudeza que chegava às raias do</p><p>insulto. Fez observações do tipo: não se podem ganhar guerras com medo dos alemães</p><p>e sem vontade de correr riscos. Encerrou essa fase das discussões declarando</p><p>abruptamente, mas com dignidade que, embora não concordasse com os argumentos,</p><p>não estava em condições de nos forçar a agir (SHERWOOD, 1998 p. 627-628).</p><p>Como afiançou Harriman, apesar do tom agressivo, nesse primeiro dia até</p><p>que as negociações foram relativamente bem encaminhadas, mas,</p><p>posteriormente, a postura de Stálin tornou-se muito mais incisiva. Ao iniciar os</p><p>trabalhos do dia 13, Stálin entregou cópias de um aide-memoire a Churchill e</p><p>Harriman, por meio do qual, entre outras coisas, asseverava:</p><p>[...] É também fácil concluir que a recusa do governo da Grã-Bretanha em criar uma</p><p>segunda frente na Europa em 1942 inflige um golpe moral em toda a opinião publica</p><p>soviética, que contava com a criação da segunda frente, e afeta a situação do Exército</p><p>Vermelho, repercutindo sobre os planos do comando soviético (SHERWOOD, 1998, p.</p><p>630).</p><p>Da demora na abertura da Segunda Frente, resultaram as desavenças hoje</p><p>bem conhecidas dos historiadores, mas que já podiam ser conjecturadas ou</p><p>presumidas pelos policy-makers da época. O secretário da Guerra, Henry L</p><p>Stimson, escreveu ao presidente Roosevelt que a Grã-Bretanha parece acreditar</p><p>que é possível vencer a Alemanha com uma série de atritos no norte da Itália e</p><p>nos Bálcãs. Stimson informou que, em sua opinião, essa era uma atitude</p><p>terrivelmente perigosa em relação aos problemas do pós-guerra. Acrescentou</p><p>que foi prometida a abertura da Segunda Frente e que essas batalhas pontuais</p><p>não levarão Stálin a acreditar que mantivemos a nossa promessa (GARDNER,</p><p>1994, p. 165).</p><p>Em meados de 1943, mesmo após tomada a decisão de abrir a Segunda</p><p>Frente de batalha em 1944 (Operação Overlord, realizada em junho daquele ano),</p><p>Churchill buscou subterfúgios para mais uma vez postergá-la. Dessa vez,</p><p>manifestou a sua preocupação com a presença soviética na região dos Bálcãs e</p><p>operou no sentido de convencer os EUA da necessidade de agirem naquela</p><p>região de modo a contrabalancear a presença do Exército Vermelho.</p><p>As contínuas decisões da Grã-Bretanha e dos EUA no sentido de retardar a</p><p>abertura da Segunda Frente (muito mais pela iniludível influência de Churchill,</p><p>como mencionado por muitos historiadores e contemporâneos daqueles</p><p>episódios) imputaram ao Exército Vermelho a tarefa de debelar as forças de</p><p>ocupação do Eixo, pois, de outra forma, a URSS seria conquistada e atassalhada</p><p>pelas forças de Hitler. Essas cizânias alimentaram contendas de contemporâneos</p><p>daqueles eventos e continuam a nutrir debates ao longo de mais de meio século</p><p>de discórdias entre historiadores e estudiosos da Segunda Guerra Mundial.</p><p>Não obstante, em tempos de Guerra Fria, a exacerbação dos debates</p><p>ideológicos levou à tipificação caricatural do inimigo. De fato, poucos</p><p>historiadores, cientistas políticos e analistas conseguiram escapar aos</p><p>maniqueísmos daquele período histórico. Assim, por exemplo, em 1961,</p><p>Matthew Gallagher apresentou um sumário, bastante atualizado para a época,</p><p>sobre a produção historiográfica soviética relacionada à II Guerra Mundial. O</p><p>autor, porém, somente aponta os erros, os fracassos, as possíveis inconsistências</p><p>analíticas e outros problemas pertinentes à abordagem do tema produzida na</p><p>URSS. O leitor conclui, no entanto, a leitura do texto sem saber a dimensão do</p><p>esforço de guerra soviético, o peso da contribuição do país para a vitória sobre as</p><p>forças do Eixo e outras informações importantes sobre a participação da URSS</p><p>no esforço de guerra aliado durante a II Guerra Mundial. O texto, conquanto</p><p>muito bem informado, é uma espécie de reverso da medalha da história</p><p>produzida na União Soviética, durante os anos da Guerra Fria, quando se</p><p>glorificava a liderança e a genialidade do camarada Stálin na condução da luta da</p><p>URSS durante Grande Guerra Patriótica.</p><p>Rescaldos da demora</p><p>Como resultado das sucessivas postergações na abertura da Segunda Frente,</p><p>consolidou-se na URSS a convicção de que os aliados ocidentais evitaram o</p><p>embate direto com as forças alemãs. Segundo esse ponto de vista, a Grã-</p><p>Bretanha e os EUA haveriam protelado ao máximo a operação, na expectativa de</p><p>que o confronto entre a Wehrmacht e o Exército Vermelho levaria ao amplo</p><p>desgaste de ambos e que, do conflito, resultaria uma Alemanha vitoriosa, mas</p><p>extremamente fragilizada. Ainda, segundo esse ponto vista, naquele contexto, as</p><p>possibilidades de vitória sobre as forças do Reich tornar-se-iam bastante</p><p>plausíveis. Conforme essa interpretação, o ardil possibilitaria a derrota de dois</p><p>inimigos de uma só vez, a URSS, oponente ideológica, e a Alemanha,</p><p>concorrente imperialista (KULKOV; RJECHEVSKI; TCHELICHEV, 1985, p.</p><p>140-202).</p><p>Das divergências na condução da guerra e da demora na abertura da Segunda</p><p>Frente de batalha, consolidaram-se entre as lideranças soviéticas duas sensações</p><p>que impactaram a percepção (real ou imaginária) das intenções dos aliados</p><p>ocidentais em relação à União Soviética. Essa leitura da realidade pode haver</p><p>exacerbado a já complicada percepção de segurança soviética. A primeira</p><p>conclusão que ganhou corpo entre as elites do Kremlin foi a de que, de fato,</p><p>quem venceu a Alemanha e, portanto, a guerra foi a União Soviética e que o</p><p>restante dos aliados teve participação minoritária. Como resultado, ganhou vulto</p><p>a crença de que a URSS havia conquistado, na guerra, o direito de manter o</p><p>controle das amplas áreas adjacentes ao seu território, libertadas das forças</p><p>invasoras pelo Exército Vermelho.</p><p>A segunda percepção associada ao contínuo retardamento da abertura da</p><p>Segunda Frente foi a de que os aliados haviam assistido ao conflito, sempre a</p><p>evitar ou a postergar o confronto massivo com as forças do Reich. Desse ponto</p><p>de vista, havia a expectativa de que Alemanha e URSS saíssem devastadas dos</p><p>embates e com as suas máquinas de guerra em frangalhos.</p><p>Há outra percepção distinta das já apresentadas sobre a Segunda Frente.</p><p>Gardner menciona uma entrevista do chanceler soviético Vyatcheslav</p><p>Mikhailovitch Molotov em que ele descortina outra trama no interior da Grande</p><p>Aliança. Segundo o diplomata, a União Soviética pediu a Segunda Frente, em</p><p>1942, quando o Kremlin sabia que o Ocidente não podia fazê-lo. Molotov</p><p>acrescentou que a Frente também não foi aberta em 1943, quando o Ocidente</p><p>podia realizá-la. Para ele, essa quebra de promessa foi boa para a URSS: “Fomos</p><p>os últimos a sorrir”, pois a atitude quebrou a fé nos imperialistas. Sublinha o</p><p>diplomata soviético que o Ocidente somente resolveu abrir a Segunda Frente,</p><p>quando a metade da Europa já havia saído das mãos deles (GARDNER, 1997, p.</p><p>7).</p><p>Na literatura predominante no Ocidente, costumam ser enfatizados os</p><p>massacres cometidos sob a égide do stalinismo. Sublinham-se os milhões de</p><p>mortos, os deslocamentos em massa, os campos de concentração onde o trabalho</p><p>escravo ou semiescravo foi regra. Essas observações e análises mostram-se</p><p>corretas. De outro ponto de vista, contudo, vale indagar as responsabilidades</p><p>sobre outros milhões de mortos desse mesmo povo, decorrentes do que, por</p><p>muitas vezes, parece haver sido uma estratégia deliberada de postergar a Segunda</p><p>Frente, de forma a fazer sangrar tanto a União Soviética quanto a Alemanha.</p><p>Além dos milhões de combatentes, outros milhões de civis, entre os quais idosos,</p><p>crianças, mulheres, tiveram as suas vidas ceifadas ou despedaçadas pela</p><p>continuidade dos combates na Frente Oriental. Além disso, a continuidade da</p><p>guerra por mais um ou dois anos significou a continuidade da matança de civis e</p><p>militares e, inclusive, o extermínio em massa de judeus tanto na Europa</p><p>Ocidental quanto na Oriental. Neste texto, considera-se presumível a tese de que</p><p>o conflito mundial poderia haver sido abreviado caso a Frente houvesse ocorrido</p><p>no decorrer de 1943.</p><p>Consolidação de posições</p><p>estratégicas e negociações</p><p>A partir da vitória soviética em Stalingrado, consagrada nos primeiros dias de</p><p>fevereiro de 1943, os soviéticos obrigaram o inimigo a promover sucessivas</p><p>retiradas. Entre julho e agosto daquele ano, os alemães tentaram uma nova</p><p>ofensiva, dessa vez, na região de Kursk. Novamente foram detidos pelo Exército</p><p>Vermelho, que iniciou outra contraofensiva e adentrou pela região do Dnieper,</p><p>na Ucrânia, a partir de agosto de 1943, e impôs o constante recuo das tropas do</p><p>Reich. Por volta de julho de 1944, praticamente já não mais existiam forças</p><p>invasoras na URSS e, ao contrário, o Exército Vermelho iniciava a ocupação dos</p><p>antigos satélites alemães e a liberação das áreas antes ocupadas pelas forças do</p><p>Eixo. Em decorrência, a supremacia do Exército Vermelho na maior parte da</p><p>Europa Central e Oriental era uma realidade indubitável a partir do final de</p><p>1944 (KULKOV; RJECHEVSKI; TCHELICHEV, 1985, p. 138-180).</p><p>Com a proximidade do final da guerra, tornou-se urgente um acordo sobre a</p><p>reorganização do mundo após o fim do conflito. Roosevelt, que ao menos</p><p>teoricamente era contrário à divisão do globo em áreas de influência, pensava</p><p>que o mundo do pós-guerra poderia ser controlado por 4 grandes policiais: Os</p><p>EUA, a URSS, a Grã-Bretanha e a China. Segundo Walter LaFeber, os soviéticos</p><p>ficaram muito entusiasmados com essa ideia, pois entenderam que quem</p><p>“policiasse” uma região poderia controlá-la e, é claro, eles poderiam policiar o</p><p>Leste Europeu. Posteriormente, o Departamento de Estado alertou Roosevelt</p><p>que esse sistema de policiamento não se harmonizava com um mundo unido e</p><p>aberto e que as áreas controladas por um policial poderiam rapidamente ser</p><p>transformadas em esferas sob a dominação de um único poder.</p><p>Naquele contexto, havia, no Departamento de Estado dos EUA, uma disputa</p><p>entre os defensores da perspectiva wilsoniana da Open Door Policy e os</p><p>partidários da divisão do mundo em áreas de influência. Os primeiros entendiam</p><p>que não deveria haver qualquer negociação de áreas de influência ou fronteiras,</p><p>antes de acabar a guerra. Mais que isso, assessores ou diplomatas entendiam que</p><p>a divisão do mundo em áreas de influência não garantiria o equilíbrio de forças</p><p>suficiente para evitar uma nova guerra e que a Segunda Guerra Mundial era</p><p>resultado da falência do modelo baseado nesse tipo de balança de poder. Dentre</p><p>os defensores desse modelo interpretativo estava Cordell Hull, que possuía um</p><p>enorme prestígio por haver sido um homem muito próximo do ex-presidente</p><p>Woodrow Wilson.</p><p>De um lado, os universalistas entendiam que todas as nações possuíam</p><p>interesses comuns em todos os lugares do globo e julgavam que a segurança</p><p>nacional seria garantida por uma organização internacional que fosse capaz de</p><p>possibilitar a convivência cordial entre os diferentes interesses. Soma-se a isso o</p><p>fato de acreditarem que o “sistema americano” somente poderia funcionar</p><p>mundialmente e que, portanto, a divisão em esferas de influência inviabilizaria a</p><p>expansão global do modelo de sociedade estadunidense. Isso justifica, inclusive,</p><p>o fato de os EUA entenderem, posteriormente, como uma questão de segurança</p><p>nacional os conflitos surgidos na Grécia, na Turquia e na Coreia, apenas para</p><p>ficar em alguns exemplos. De outro lado, os defensores da divisão do mundo em</p><p>esferas de influência entendiam que cada grande potência receberia das demais as</p><p>garantias de sua atuação em sua área de interesse especial. Desse modo, a</p><p>segurança nacional seria garantida por um equilíbrio de poderes entre as nações</p><p>predominantes.</p><p>Para Schlesinger, a tradição do país era universalista e wilsoniana, e essa</p><p>tendência poderia ser percebida de forma exemplar em Cordell Hull, secretário</p><p>de Estado, um universalista convicto, e no próprio Roosevelt, ex-membro do</p><p>subgabinete de Wilson. Além deles, Averell Harriman, Summer Welles e Charles</p><p>Bohlen também seriam universalistas. No outro campo, George Frost Kennan,</p><p>Henry Lewis Stimson e Henry A. Wallace seriam defensores das áreas de</p><p>influência (SCHLESINGER, 1992).</p><p>Em meados de 1943, Roosevelt disse a Churchill que a Alemanha deveria ser</p><p>ocupada e dividida. Essa posição foi mantida na conferência de Teerã, onde</p><p>também foram discutidas as compensações territoriais à Polônia. Em setembro</p><p>de 1944, o secretário do Tesouro Henry Morgenthau Jr. apresentou um plano</p><p>em que era proposta a divisão da Alemanha, a sua desindustrialização e a</p><p>extração de reparações de guerra das áreas ocupadas (OFFNER, 2000, p. 235). A</p><p>princípio, Churchill apresentou resistências ao plano, mas o seu assistente</p><p>pessoal, Lord Cherwell, aparentemente o convenceu da importância do plano. A</p><p>proposta tinha, no entanto, a oposição de alguns dos auxiliares mais próximos de</p><p>Roosevelt, como o secretário de Estado Cordell Hull, que a considerou uma</p><p>aberração. Para Hull, o Plano Morgenthau levaria ao aumento da resistência</p><p>alemã, o que custaria muito mais vidas aos EUA. A partir do início de 1945, o</p><p>Departamento de Estado alertou a Roosevelt que a estabilidade europeia</p><p>dependeria da manutenção do continente unido e em condições econômicas</p><p>saudáveis e que a Alemanha era fundamental nesse processo. Esse alerta pode</p><p>haver levado Roosevelt a deixar o Plano Morgenthau em compasso de espera até</p><p>que tivesse maior clareza sobre a questão. O assunto ainda gera polêmica. Se</p><p>muitos autores entendem que Roosevelt abandonou o suporte ao plano, outros</p><p>apoiam-se em afirmações da sua esposa, Eleanor Roosevelt, de que até o final da</p><p>vida seu marido defendia aquele projeto, mas que o havia deixado de lado,</p><p>devido às críticas, e, segundo ela, ele esperava um momento mais adequado para</p><p>retomar a iniciativa.</p><p>Enquanto havia indefinições nos EUA, em relação a como reconfigurar o</p><p>mundo no imediato pós-guerra, de forma a atender aos interesses do país, os</p><p>dirigentes soviéticos trataram de consolidar as posições do Exército Vermelho na</p><p>Europa. Nessa época, Stálin afirmou às lideranças comunistas que “essa Guerra</p><p>não é como as do passado, aquele que ocupar um território, também imporá seu</p><p>próprio sistema social tão longe quanto seus exércitos possam conseguir”</p><p>(DJILAS apud LaFEBER, 1997, p. 12, trad. livre do autor).</p><p>Nesse cenário, o comando britânico, ao avaliar a situação e com o receio de</p><p>que o avanço soviético pudesse comprometer irremediavelmente os seus</p><p>interesses no novo mundo que certamente emergiria ao término do conflito,</p><p>apressou-se em propor um acordo de divisão da Europa em esferas de</p><p>influências.</p><p>Como já mencionei, do meu ponto de vista, o Reino Unido possuía uma</p><p>preocupação central, que era a preservação da sua presença no Mediterrâneo,</p><p>por onde fluía o intercâmbio entre a metrópole e as suas colônias ultramarinas.</p><p>Com esse objetivo em mente, Churchill chegou a Moscou a 9 outubro de 1944,</p><p>para negociar com Stálin a preservação dos interesses vitais do Império</p><p>Britânico. Após dois dias de reuniões foram esboçados os termos gerais de um</p><p>acordo, proposto por Churchill, pelo qual 90 por cento da Polônia e da Romênia</p><p>e 75 por cento da Bulgária ficariam sob a influência soviética; a Hungria e a</p><p>Iugoslávia foram divididas em 50 por cento de influência para cada campo e a</p><p>Grécia teria 90 por cento de influência Britânica e dez por cento soviética. Esse é</p><p>um aspecto minimizado pela literatura ortodoxa e neo-ortodoxa, pois não foi</p><p>Stálin quem definiu esses termos, nem foi Roosevelt quem haveria demonstrado</p><p>“fraqueza” e os haveria aceitado. Foi Churchill que, temeroso de ver</p><p>irremediavelmente comprometidos os interesses do Império Britânico no</p><p>Mediterrâneo, apressou-se em definir um acordo com a URSS. Na ocasião, o</p><p>líder britânico alertou a Stálin que essa negociação deveria ser posta em termos</p><p>mais diplomáticos e que o termo “divisão em esferas de influência” jamais deveria</p><p>ser empregado, pois chocaria os “americanos” (LaFEBER, 1997, p. 12-13).</p><p>Naquele contexto em que a guerra se definia favoravelmente às forças</p><p>aliadas, Stálin focava a sua atenção na garantia de que a URSS viesse a ocupar um</p><p>papel de potência global na nova ordem em construção. Desse</p><p>modo, a proteção</p><p>das fronteiras soviéticas era uma questão nodal em sua política externa. O líder</p><p>soviético não estava preocupado com a expansão de movimentos</p><p>revolucionários. Ao contrário, eles criavam problemas para sua política externa,</p><p>pois, naquele contexto, Stálin buscava chegar a um denominador comum com a</p><p>Grã-Bretanha e com os EUA. A ação de movimentos comunistas, que</p><p>extrapolavam o seu controle, criava embaraços e tornava as negociações muito</p><p>mais difíceis e morosas.</p><p>Stálin acreditava que a URSS, como a “Pátria do Socialismo”, naturalmente</p><p>viria a ser o guia da grande revolução que certamente ocorreria em um futuro</p><p>próximo, mas, naquele momento, entendia que era necessário ser pragmático e,</p><p>de forma realista, aceitou o plano do líder britânico sem delongas. Além disso, a</p><p>proposta de Churchill era perfeitamente adequada aos desígnios do Kremlin,</p><p>uma vez que possibilitava a criação de um escudo protetor constituído por</p><p>“nações amigas” que não representassem ameaças para a URSS e que pudessem</p><p>auxiliar na proteção ao território soviético frente a futuras agressões.</p><p>Por um lado, Roosevelt reconhecia a necessidade soviética de predomínio na</p><p>Europa Oriental. Afinal, os ataques seguidos sofridos pelos povos russos, através</p><p>daquela região, justificavam a busca da almejada proteção territorial. Por outro,</p><p>o presidente dos EUA temia que, se a União Soviética consolidasse a sua esfera</p><p>de influência, a Inglaterra, a França e outras potências pudessem buscar a</p><p>reconstrução dos seus impérios coloniais e, desse modo, seria muito mais</p><p>complicada a constituição de uma nova ordem global lastreada na Open Door</p><p>Policy, que era baseada no livre comércio.</p><p>A princípio, Roosevelt irritou-se quando soube do acordado entre Churchill</p><p>e Stálin durante o encontro por eles mantido em Moscou. De um lado, o</p><p>presidente dos EUA temia que os britânicos procurassem encaminhar as</p><p>estratégias de guerra para defender seus interesses imperialistas, objetivando, ao</p><p>fim da guerra, reorganizar e fechar seu império ultramarino. Essa medida não era</p><p>compatível com a política externa estadunidense delineada por Roosevelt para o</p><p>período do pós-guerra. Roosevelt temia que Churchill pudesse restaurar</p><p>monarquias e dar suporte a governos antidemocráticos. De outro, ele via em</p><p>Stálin a possibilidade de levar a URSS a uma política mais comedida e</p><p>pragmática, que abandonasse a luta no campo ideológico e se integrasse em um</p><p>mundo globalizado, o que era importante para o projeto político de criação das</p><p>Nações Unidas. Essas conjecturas eram muitas vezes resultado de uma percepção</p><p>pessoal do presidente e nem sempre possuíam respaldo dos técnicos do</p><p>Departamento de Estado. Desse modo, quando a fatalidade em abril de 1945 pôs</p><p>fim à vida de Roosevelt, era natural que as diferentes forças políticas presentes</p><p>naquele departamento, responsável pela elaboração da política externa dos EUA,</p><p>viessem a disputar os rumos que o país deveria seguir. Mais à frente</p><p>retomaremos essa questão.</p><p>Ialta: ápice da cooperação ou princípio de magnas divergências?</p><p>Quando aconteceu a Conferência de Ialta, a última da qual Roosevelt</p><p>participou, realizada de 4 a 11 de fevereiro de 1945, uma coisa era certa: a</p><p>presença do Exército Vermelho garantia a influência soviética em quase toda a</p><p>Europa Central e Oriental. Disso resultava que a sua supremacia militar não</p><p>podia ser evitada por mera retórica diplomática, uma vez que o Exército</p><p>Vermelho possuía ao redor de três vezes mais forças terrestres naquela região do</p><p>que a soma de todos os outros integrantes das forças aliadas. De certa maneira,</p><p>Roosevelt e Churchill tiveram que buscar a negociação e se satisfazer com as</p><p>concessões feitas pelos soviéticos.</p><p>Há que se ressaltar, entretanto, que o acordado em Ialta é aproximadamente a</p><p>expressão da proposta apresentada por Churchill a Stálin no encontro que eles</p><p>mantiveram em Moscou. A Conferência transcorreu em um clima de grande</p><p>cordialidade. Stálin ordenou que fosse oferecido aos participantes do evento</p><p>tudo o que havia de mais requintado e suntuoso. Isso, certamente, fazia parte da</p><p>estratégia para impressionar os convidados e de demonstrar que a URSS era uma</p><p>grande potência à altura dos novos desafios mundiais. Mais do que isso, é</p><p>verossímil supor que Stálin buscasse demonstrar um comportamento nos</p><p>moldes das grandes potencias tradicionais, de forma a tranquilizar os aliados</p><p>quanto ao modo como a União Soviética conduziria a sua política externa. As</p><p>questões consideradas estratégicas e cruciais para a defesa soviética, contudo,</p><p>eram inegociáveis. E, nesse quesito, o predomínio soviético na Europa Oriental</p><p>era o ponto-chave.</p><p>Não obstante, se Ialta foi o ponto alto no estabelecimento de boas relações</p><p>entre os Aliados, a Conferência também significou o ponto de inflexão das</p><p>relações amistosas entre as forças vencedoras daquele conflito global. Embora</p><p>muitas dificuldades, antes vislumbradas como intransponíveis, tenham sido</p><p>solucionadas, diversos problemas espinhosos foram postergados. A estratégia</p><p>geral, perseguida pelos três líderes das potências vencedoras, consistia em</p><p>consolidar todas as negociações possíveis e postergar eventuais problemas, uma</p><p>vez que a guerra ainda não estava completamente vencida e desavenças poderiam</p><p>representar obstáculos à conclusão do conflito. Naquele contexto, com as</p><p>economias das nações à beira do esgotamento, as forças armadas exauridas e a</p><p>população civil arruinada e inquieta, os respectivos chefes de Estado buscavam</p><p>um breve desfecho para aquele período sombrio.</p><p>Para Maurice Matloff:</p><p>Yalta foi a precursora de uma nova era. Uma poderosa aliança de guerra estava-se</p><p>rompendo, e a própria estrutura de poder estava-se alterando. O equilíbrio fora</p><p>modificado e o Ocidente e seus líderes não se aperceberam exatamente o que isso</p><p>significava. As grandes potências estavam no limiar da guerra atômica sem o saber</p><p>(MATLOFF, 1964, p. 69).</p><p>Ao analisarmos os trabalhos mais próximos à concepção ortodoxa</p><p>estadunidense, percebemos a superestimação dos problemas ocorridos em Ialta,</p><p>o que fundamentaria a tese de que não haveria ocorrido significativa alteração na</p><p>condução dos negócios da guerra com a posse de Harry Truman, se comparada</p><p>com aquela até há pouco implementada por Franklin D. Roosevelt. Em</p><p>contrapartida, os historiadores revisionistas, ao abordarem tal problemática,</p><p>tendem a minimizar os problemas havidos em Ialta, objetivando demonstrar a</p><p>nítida alteração da política rooseveltiana, a partir da posse no novo presidente.</p><p>Ao atentarmos para o texto dos Acordos de Ialta, percebemos que uma parte</p><p>significativa dos problemas foi solucionada. Dentre as questões encaminhadas</p><p>podemos destacar aquelas relacionadas à questão da criação do organismo</p><p>mundial, a definição da realização de uma Conferência na cidade de San</p><p>Francisco, EUA, para 25 de abril de 1945. Definiu-se ainda quem participaria do</p><p>evento e o texto do convite. Aprovou-se também o mecanismo de voto do</p><p>Conselho de Segurança da Entidade e foram apontadas algumas das diretrizes</p><p>nodais com vistas à consecução dos objetivos propostos e da rápida</p><p>implementação da instituição global que estava a se criar.</p><p>Outro ponto importante foi a aprovação de uma declaração sobre a Europa</p><p>libertada. Nessa declaração, podem ser destacados os seguintes pontos: a criação</p><p>de condições para o estabelecimento da paz interna; a efetivação de medidas para</p><p>socorrer a população em situação de miséria; a instituição de regimes</p><p>representativos de todos os setores democráticos, os quais deveriam se</p><p>comprometer com a realização de eleições livres, tão rápido quanto fosse</p><p>possível, estabelecendo governos que resultassem da vontade popular. O</p><p>problema é que muitas dessas questões eram amplas e vagas, como se pode</p><p>observar, e abriam margem a disputas e desavenças futuras, uma vez que podiam</p><p>ser interpretadas de diferentes formas.</p><p>Ainda durante o evento, definiu-se pelo desmembramento da Alemanha. O</p><p>estudo da forma por meio da qual o inimigo seria territorialmente dividido foi</p><p>entregue a uma comissão formada por Antony Eden</p><p>(Grã-Bretanha) –</p><p>presidente, John Gilbert Winant (EUA) e Fédor Gussey (URSS). Concordou-se</p><p>com a criação de uma zona de ocupação francesa, por intermédio de parcelas</p><p>territoriais originalmente pertencentes às zonas dos EUA e da Grã-Bretanha.</p><p>Sobre as reparações, foi aprovado o seguinte protocolo:</p><p>Conversações entre os três Governos presentes na Conferência da Criméia acerca das</p><p>reparações alemãs em espécie:</p><p>1º Os prejuízos que durante a guerra a Alemanha provocou nos países aliados serão</p><p>por ela reembolsados em espécie. As reparações serão recebidas, com prioridade, pelas</p><p>nações que suportaram maior fardo de guerra, que sofreram perdas mais pesadas e</p><p>que contribuíram para a vitória sobre o inimigo</p><p>2º As reparações em espécie serão exigidas à Alemanha sob as três formas seguintes:</p><p>a) transferência nos dois anos seguintes à rendição ou cessação de toda a resistência</p><p>organizada da Alemanha, dos bens alemães situados, quer propriamente no território</p><p>alemão, quer fora dele (equipamento, máquinas-ferramentas, barcos, material rolante,</p><p>bens alemães no estrangeiro, ações nas indústrias, transportes e quaisquer empresas na</p><p>Alemanha, etc.) sendo estas transferências feitas, sobretudo, com a intenção de</p><p>destruir o potencial de guerra da Alemanha;</p><p>b) fornecimento anuais de mercadorias de produção corrente durante período a fixar;</p><p>c) utilização de mão-de-obra alemã.</p><p>3º Para a execução, seguindo os princípios acima, de um plano pormenorizado, de</p><p>cobrança adiantada das reparações devidas pela Alemanha reunir-se-á em Moscou</p><p>uma Comissão Aliada de Reparações. Esta Comissão será composta por três</p><p>representantes: Um pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, um pelo Reino</p><p>Unido e um pelos Estados Unidos da América.</p><p>4º No que respeita à avaliação do montante total das reparações, bem como à sua</p><p>repartição entre os países que sofreram a agressão alemã, as delegações soviética e</p><p>americana estabeleceram o que se segue:</p><p>A Comissão de Reparações de Moscou tomará como base de discussão nos seus estudos</p><p>iniciais a proposta do Governo Soviético segundo a qual a soma total das reparações,</p><p>de acordo com os pontos a) e b), do parágrafo 2, será de 20 mil milhões de dólares,</p><p>revertendo 50% desta importância a favor da União das Repúblicas Socialistas</p><p>Soviéticas.</p><p>A Delegação britânica foi de opinião que não se mencionasse nenhum número, como</p><p>valor das reparações, durante o estudo que deste assunto fará a Comissão de Moscou.</p><p>A proposta sovieto-americana acima mencionada foi apresentada à Comissão de</p><p>Reparações de Moscou como uma das propostas a examinar</p><p>(CONTE, 1986, p. 283).</p><p>Outros assuntos receberam a devida atenção e foram atribuídas as</p><p>competências de quem deveria dar os encaminhamentos necessários. Assim, no</p><p>que se refere aos criminosos de guerra, estabeleceu-se que seriam objeto de um</p><p>inquérito a ser encaminhado pelos três ministros dos Negócios Estrangeiros.</p><p>Sobre a Polônia, aprovou-se a necessidade da ampliação das bases do</p><p>governo provisório, incluindo os chefes democráticos residentes no exterior.</p><p>Aprovou-se ainda que esse governo devesse se comprometer a realizar eleições</p><p>livres com a maior brevidade possível. Reconheceu-se como fronteira a linha</p><p>Curzon, com algumas correções, variando de cinco a oito quilômetros a favor da</p><p>Polônia. Recomendou-se à Iugoslávia, entre outras coisas, a execução do Acordo</p><p>Tito-Šubašić, o que implicaria a reorganização do governo provisório.</p><p>Ainda no decorrer da conferência, foram discutidos também a questão das</p><p>fronteiras entre a Itália e a Iugoslávia e entre a Itália e a Áustria; as relações entre</p><p>a Bulgária e a Iugoslávia; os problemas relativos ao Sudeste da Europa; a situação</p><p>do Irã; as divergências referentes à convenção de Montreaux.</p><p>A conferência aprovou, na sequência, a instituição de encontros periódicos</p><p>entre os três ministros dos Negócios Estrangeiros. Todavia deve-se ressaltar que</p><p>muitas das soluções acordadas em Ialta eram parciais e provisórias e que muitos</p><p>dos problemas foram deixados para um futuro próximo.</p><p>Entretanto, a partir de março de 1945, iniciou-se um processo de</p><p>deterioração nas relações entre os aliados. Faz-se necessário salientar que os</p><p>problemas existentes não afetavam apenas as relações entre as democracias</p><p>ocidentais e a União Soviética, mas que também havia problemas entre os EUA e</p><p>a Grã-Bretanha.</p><p>Além disso, a Alemanha, que estava a perder a guerra, passou a utilizar-se de</p><p>estratégias com o objetivo de dividir os inimigos. A retirada de tropas do Reich</p><p>da zona ocidental e a sua transferência para a frente russa, por exemplo, obteve</p><p>alguns resultados, pois levou à suspeita da existência de negociações em</p><p>separado. A reunião entre representantes da Alemanha, da Inglaterra e dos EUA,</p><p>ocorrida em março de 1945, em Berna, na Suíça, aparentava uma quebra dos</p><p>acordos dos aliados, pois as conversações incluíam até certos detalhes de uma</p><p>possível capitulação, o que contrariava o até então estabelecido (BAGGULEY,</p><p>1969, p. 137).</p><p>Os ocidentais desconfiavam dos rápidos movimentos do Exército Vermelho</p><p>pela Europa, das recusas de Tito e seus partisans em aceitarem a composição de</p><p>um governo com Šubašić, conforme as recomendações definidas em Ialta. Nessa</p><p>questão, é importante relembrarmos as seguidas recomendações de Stálin para</p><p>que Tito negociasse, pois, segundo a visão do líder soviético, não estava na</p><p>ordem do dia uma revolução socialista e a luta deveria dar-se dentro dos marcos</p><p>da chamada democracia burguesa (OPAT, 1987, p. 215). Problemas semelhantes</p><p>também ocorriam no Oriente, pois a guerrilha comunista chinesa recusava-se a</p><p>ceder espaço aos nacionalistas, temerosa de novos massacres como os de 1927,</p><p>quando, após um acordo com o Guomindang, os comunistas foram aprisionados</p><p>por ordem de Jiang Jieshi e assassinados em massa.</p><p>Na Romênia, a situação deteriorou-se quando os soviéticos pressionaram o</p><p>Rei Miguel a empossar, no início de março de 1945, um governo controlado</p><p>pelos comunistas. Em seguida, os soviéticos recusaram-se a aceitar três membros</p><p>indicados pelo governo de Londres para a composição do governo provisório da</p><p>Polônia. Para os aliados ocidentais, a posição soviética na Polônia tornou-se o</p><p>ponto central nos embates com o regime de Stálin.</p><p>Em 1º de abril, Roosevelt enviou uma nota a Stálin, em tom severo,</p><p>advertindo que os EUA não aceitariam a conduta soviética. Em 5 de abril,</p><p>Harriman, embaixador dos EUA em Moscou, insistiu com Roosevelt que os EUA</p><p>não poderiam permitir que Stálin implantasse o totalitarismo “[...] sem que nós</p><p>estejamos preparados para viver sob a dominação soviética do mundo, nós</p><p>temos que usar nosso poder econômico para ajudar aqueles países que</p><p>naturalmente são amistosos para conosco (LaFEBER, 1997, p.16)</p><p>Naquela situação, os membros do governo Roosevelt que eram defensores de</p><p>uma política de endurecimento para com os soviéticos tiveram aumentado o seu</p><p>poder de fogo e buscaram convencer o presidente de que não era possível manter</p><p>uma política dúbia em relação ao Kremlin.</p><p>3</p><p>A MORTE DE ROOSEVELT: TRUMAN COMO TIMONEIRO</p><p>DA POLÍTICA EXTERNA ESTADUNIDENSE</p><p>Franklin Delano Roosevelt foi um homem incomum para a sua época. Em</p><p>primeiro lugar, chegou à presidência da república da mais poderosa nação do</p><p>planeta, mesmo havendo se tornado paralítico já adulto e em meio a uma</p><p>promissora carreira política, em consequência da poliomielite. Isso tudo ocorreu</p><p>em uma época marcada pelo preconceito em relação aos portadores de</p><p>limitações físicas, pois o fato era associado à incapacidade e à invalidez.</p><p>Não obstante, Roosevelt fez muito mais do que isso. Foi aclamado pelo voto</p><p>popular em quatro sucessivos pleitos presidenciais. Na presidência, ousou</p><p>quebrar padrões consolidados em seu país ao adotar posturas pouco ortodoxas</p><p>para conter a depressão iniciada no governo do seu antecessor. Sempre imprimiu</p><p>um caráter pessoal às relações políticas e, por isso, tornou-se um ícone na</p><p>história do país. Quando se trata da análise desse período, regra geral as visões</p><p>tornam-se apaixonadas e conflitantes.</p><p>Para uns, era um político esperto</p><p>que recomendo aos leitores esta obra de Sidnei J.</p><p>Munhoz, especialista sobre o tema da Guerra Fria. Sua contribuição para o</p><p>entendimento desse período histórico, tão complexo, merece o reconhecimento</p><p>não só dos historiadores, mas também de profissionais de outras áreas.</p><p>Este livro é resultado de uma pesquisa muito ampla por meio da qual o autor</p><p>analisa os conflitos entre dois blocos de poder que ameaçaram, por longo tempo,</p><p>a paz mundial. Dividido em três, o autor analisa momentos distintos desse</p><p>período tão conturbado.</p><p>Na primeira parte, apresenta os primórdios do conflito, que se caracterizou</p><p>pela aliança dos Estados Unidos e da Inglaterra contra a União Soviética. Foi</p><p>nesse período que o presidente Truman se destacou como ator principal da</p><p>política externa norte-americana.</p><p>Dedicou-se, na segunda parte, à análise da construção e consolidação dos</p><p>dois Blocos de Poder, que resultou na “Guerra Fria”. A partir de uma</p><p>multiplicidade de informações, realizou uma interpretação muito consistente</p><p>desse período, marcado por conflitos entre os EUA e a União Soviética. Essa</p><p>“guerra” repercutiu no mundo todo e, em vários momentos, pairou a ameaça de</p><p>uma guerra nuclear.</p><p>Em “O crepúsculo da Guerra Fria”, terceira parte da obra, o leitor acompanha</p><p>uma análise sobre o final desse período e os resultados dessa longa crise.</p><p>Dialogando com uma vasta bibliografia, Sidnei Munhoz oferece ao leitor</p><p>uma interpretação muito ampla sobre essa conjuntura. Além de analisar</p><p>inúmeros acontecimentos relacionados à Guerra Fria e aos atores principais</p><p>dessa guerra, abordou conflitos paralelos que foram indiretamente provocados</p><p>por ela. Procurou mostrar que esses conflitos foram “largamente utilizados para</p><p>camuflar interesses imperiais e para controlar as populações em ambas as áreas</p><p>de influência”. Referiu-se a exemplos muito importantes relacionados à suposta</p><p>ameaça comunista fabricada por dirigentes norte-americanos para arquitetar</p><p>golpes que destituíram governos nacionalistas ou reformistas na Guatemala, no</p><p>Brasil e no Chile. No que diz respeito ao campo soviético, também abordou</p><p>aspectos relevantes, como a invasão da Hungria, Tchecoslováquia e Polônia.</p><p>Em “Notas Introdutórias”, o autor informa aos leitores que a obra foi</p><p>estruturada de forma a combinar reflexões teóricas e narrativa histórica sem</p><p>desprezar a “factualidade dos eventos que conformaram a emergência, o</p><p>desenrolar e o crepúsculo da Guerra Fria”. Tal objetivo indica o grande desafio</p><p>que o autor se propôs a realizar: o livro abrange um período longo, complexo e</p><p>marcado por disputas intensas entre os dois “Blocos de Poder”. Ao final da</p><p>leitura, constatamos que o historiador realizou, com grande maestria, sua</p><p>proposta desafiadora e, uma vez mais, confirma sua importante contribuição</p><p>para o entendimento desse período.</p><p>Maria Helena Capelato</p><p>Professora Titular do Departamento de História da USP</p><p>CRONOLOGIA DOS PRINCIPAIS EVENTOS DA GUERRA FRIA</p><p>1945</p><p>4-11 de fevereiro – Conferência de Ialta decide os termos da rendição alemã, o</p><p>ataque soviético ao Japão e o futuro da Europa Oriental.</p><p>12 de abril – Morte do presidente dos EUA Franklin D. Roosevelt e seu vice</p><p>Harry S. Truman é empossado.</p><p>23 de abril – Truman critica o controle soviético da Europa Oriental em</p><p>interlocução direta com Vyacheslav Molotov, chanceler da URSS.</p><p>25-26 de abril – Criação da Organização das Nações Unidas (ONU).</p><p>7 de maio – Rendição incondicional da Alemanha ao Exército Vermelho. Berlim</p><p>é dividida em quatro zonas sob o controle dos EUA, da União Soviética, da Grã-</p><p>Bretanha e da França.</p><p>8 de maio – Churchill solicita ao seu gabinete de guerra um plano para atacar as</p><p>forças soviéticas na Polônia. Um espião soviético informa Stálin do assunto.</p><p>16 de julho – Teste nuclear estadunidense.</p><p>17 de julho-2 de agosto – Conferência de Potsdam.</p><p>6 de agosto – Bombardeio nuclear a Hiroshima.</p><p>9 de agosto – Invasão soviética à Manchuria / Bobardeio nuclear a Nagasaki.</p><p>14 de agosto – Rendição japonesa e fim da II Guerra Mundial.</p><p>1946</p><p>9 de fevereiro – Discurso de Stálin sobre os dois campos e sobre a</p><p>incompatibilidade entre o comunismo soviético e o capitalismo ocidental.</p><p>5 de março – Discurso do ex-primeiro ministro britânico Winston Churchill, em</p><p>Fulton, (Missouri), EUA, em que usou a expressão “Cortina de Ferro” para se</p><p>referir ao Leste da Europa.</p><p>10 de março – Truman exige a saída soviética do Irã.</p><p>2 de dezembro – EUA, Grã-Bretanha e França fundem as suas zonas de</p><p>ocupação na Alemanha.</p><p>1947</p><p>12 de março – Anúncio da Doutrina Truman.</p><p>5 de junho – Anúncio do Plano Marshall.</p><p>Julho – O diplomata George Frost Kennan publica, com o pseudônimo de Mr.</p><p>X, “Sources of Soviet Conduct” na revista Foreign Affairs. O texto tornou-se a</p><p>base da Doutrina da Contenção.</p><p>12 de agosto-2 de setembro – Conferência do Rio de Janeiro e assinatura do</p><p>Tratado Interamericano de Ajuda Recíproca (Tiar).</p><p>5 de outubro – Criação do Cominform (Birô de Informação dos Partidos</p><p>Comunistas e Operários).</p><p>1948</p><p>A Comissão de atividades antiamericanas (HUAC) publica Cem coisas que você</p><p>deve saber sobre o comunismo nos EUA.</p><p>25 de fevereiro – Golpe comunista na Tchecoslováquia.</p><p>30 de março-2 de maio – Conferência de Bogotá.</p><p>14 de março – É anunciada, unilateralmente, a criação do Estado de Israel.</p><p>Iniciam-se os conflitos entre o novo Estado e os povos palestinos e árabes.</p><p>28 de junho – Expulsão da Iugoslávia do Cominform.</p><p>24 de junho – Início do bloqueio soviético a Berlim Ocidental.</p><p>1949</p><p>4 de abril – Criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).</p><p>5 de maio – Criação da República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental).</p><p>12 de maio – Fim do bloqueio a Berlim Ocidental pela URSS.</p><p>30 de maio – Criação da República Democrática da Alemanha (Alemanha</p><p>Oriental).</p><p>29 de agosto – Primeiro teste nuclear soviético.</p><p>1º de outubro – Vitória da Revolução Comunista e criação da República Popular</p><p>da China.</p><p>1950</p><p>Janeiro – O Conselho Nacional de Segurança dos EUA aprova o NSC-68 e</p><p>propõe um vigoroso incremento nas forças de defesa do país.</p><p>9 de fevereiro – O senador Joseph McCarthy, em discurso, afirma ter uma lista</p><p>de servidores públicos comunistas que ocupam postos no Governo.</p><p>7 de abril – Relatório secreto do NSC-68 pede o incremento de forças para</p><p>combater a ameaça soviética</p><p>24 de junho – Início da Guerra da Coreia.</p><p>1950-1954 – Perseguições macarthistas nos EUA.</p><p>1951</p><p>1º. de setembro – Criação da Anzus (Tratado de Segurança Coletiva) por EUA,</p><p>Austrália, Nova Zelândia.</p><p>1952</p><p>3 de outubro – Grã-Bretanha efetua o seu primeiro teste nuclear.</p><p>1953</p><p>20 de janeiro – Posse de Dwight Eisenhower como presidente dos EUA.</p><p>5 de março – Morte de Joseph Stálin, secretário geral do Partido Comunista e</p><p>premier da URSS.</p><p>16 de junho – Levante de Berlim Oriental.</p><p>19 de junho – Execução do casal Rosenberg sob a acusação de espionagem e</p><p>traição.</p><p>27 de junho – Assinatura de armistício e suspensão da Guerra da Coreia.</p><p>12 de agosto – URSS testa a sua primeira bomba de hidrogênio.</p><p>19 de agosto – Deposição do primeiro ministro do Irã, Mohammed Mosaddegh</p><p>, por intermédio de um golpe de Estado organizado pela CIA com o apoio do</p><p>M16 (Serviço Secreto Britânico).</p><p>1954</p><p>26 de abril – Início da Conferência de Genebra sobre o conflito no Vietnã.</p><p>7 de maio - Forças do Vietminh derrotam os franceses na Batalha de Dien Bien</p><p>Phu</p><p>18-27 de junho – Golpe de Estado na Guatemala articulado pela CIA.</p><p>21 de julho – Divisão do Vietnã em Vietnã do Norte e do Sul pelo Paralelo 17,</p><p>conforme acordo firmado na Conferência de Genebra.</p><p>8 de setembro – Criação da Organização do Tratado do Sudeste Asiático (Seato).</p><p>2 de dezembro – Senado dos EUA aprova nota de censura ao senador Joseph</p><p>McCarthy.</p><p>1955</p><p>18-24 de abril – Conferência de Bandung.</p><p>14 de maio – Assinatura do Pacto de Varsóvia.</p><p>1956</p><p>25 de fevereiro – Durante o XX Congresso do Partido Comunista da URSS,</p><p>Kruschev denuncia os crimes cometidos por Stálin.</p><p>26 de julho-15 de março de 1957 – Crise do Canal de Suez.</p><p>Outubro – início de rebelião/revolução na Hungria.</p><p>1º de novembro – Imre Nagy declara a neutralidade da Hungria.</p><p>4 de novembro – Tropas</p><p>que dizia uma coisa e fazia outra; para</p><p>muitos conservadores, era um socialista enrustido e perigoso para os valores e as</p><p>tradições do país; e, para outros, era um idealista que havia deixado os EUA em</p><p>uma difícil situação em termos de política externa ao final da guerra, com os</p><p>interesses do país ameaçados por um poderoso inimigo que então emergia como</p><p>potência global: a União Soviética. Tudo isso merece alguma reflexão, mesmo</p><p>que embrionária, para situar certos problemas expostos neste trabalho.</p><p>Sobre idealismos e realismos</p><p>Segundo Gary R. Hess, a historiografia estadunidense que trata da</p><p>diplomacia rooseveltiana para a guerra tem sido criticada a partir de duas</p><p>perspectivas. Na primeira, Roosevelt é acusado de ser excessivamente idealista e</p><p>de que os seus objetivos padeciam de uma clara definição dos interesses</p><p>estadunidenses; os críticos acrescentam que esses objetivos eram resultado da</p><p>compreensão incorreta do comportamento de outras nações. Conforme o autor,</p><p>essas críticas emergiram durante os períodos derradeiros do conflito mundial e</p><p>perduraram no pós-guerra, principalmente quando os EUA enfrentavam</p><p>dificuldades com a União Soviética e com a China (HESS, 1995).</p><p>Durante o período da Guerra Fria, esses historiadores (Hess não os</p><p>discrimina, mas, seguramente, refere-se à vertente mais conservadora da história</p><p>ortodoxa ou tradicionalista estadunidense) afirmaram que os esforços de</p><p>Roosevelt no sentido de promover um relacionamento amistoso e de cooperação</p><p>entre os EUA e a URSS eram ingênuos. Essas críticas assinalam a incapacidade de</p><p>o presidente compreender a gravidade das diferenças entre os EUA e a União</p><p>Soviética. Destacam ainda o fato de Roosevelt procurar a solução dos problemas</p><p>ancorada em uma diplomacia pessoal. Esses autores avaliam que as negociações</p><p>entre Roosevelt e Stálin eram fúteis e, em especial, enfatizam os acordos</p><p>firmados em Ialta que, segundo eles, haveriam sancionado o controle soviético</p><p>sobre a Europa Oriental.</p><p>De outra perspectiva, contemporâneos e especialistas no tema criticaram</p><p>Roosevelt por não conseguir aplicar o poder e a influência dos EUA para</p><p>granjear os objetivos do país. Segundo o Hess dessa perspectiva, Roosevelt não</p><p>era visto como tão idealista. Seus objetivos eram plausíveis e os haveria</p><p>concretizado se efetivamente fosse empregado o poder e a capacidade dos EUA.</p><p>As constantes demoras na abertura da Segunda Frente, contudo, haveriam</p><p>desgastado as relações com a URSS e criado obstáculos quase intransponíveis</p><p>aos propósitos do presidente estadunidense.</p><p>Essas críticas adicionalmente focam o seu plano para criar uma China forte, e</p><p>apontam a fragilidade dos meios para chegar aos objetivos. Da perspectiva</p><p>ortodoxa, essa situação era derivada do pouco apoio militar destinado à guerra</p><p>naquele país, resultado da prioridade à campanha de invasão às Ilhas japonesas.</p><p>Por fim, avaliam que o acalentado desejo de Roosevelt de por termo ao</p><p>colonialismo haveria sido erodido pela sua própria omissão ao não apoiar os</p><p>movimentos nacionalistas, principalmente na Índia (resultado natural das</p><p>implicações desse apoio nas relações com o Reino Unido). Para Hess, no entanto,</p><p>Roosevelt não era ingênuo, e muito menos indiferente à questão do poder. Para</p><p>esse autor, a liderança de Roosevelt era realista no sentido de que estava</p><p>solidamente lastreada nos interesses e nas capacidades dos EUA (HESS in:</p><p>PATERSON; MERRILL, 1995 p. 204-205). Em outras palavras, Roosevelt tinha</p><p>objetivos definidos de forma precisa, mas possuía consciência do que era</p><p>possível alcançar naquele contexto e do que deveria ser tratado como meta de</p><p>média ou longa duração.</p><p>De outro ponto de vista, Dennis J. Dunn procura mostrar um presidente</p><p>frágil, idealista e sem planos claros para a Europa Oriental. Esse autor afirma que</p><p>Stálin sabia como manipular Roosevelt por meio da amizade pessoal. Segundo</p><p>Dunn, Stálin apoiava-se na análise psicológica da delegação dos EUA, em Ialta,</p><p>elaborada pelo especialista soviético em inteligência, Pavel Sudoplatov (DUNN,</p><p>1998, p. 240-241). Uma das teses de Dunn é que Roosevelt desconsiderou as</p><p>orientações provenientes do Departamento de Estado e procurou imprimir uma</p><p>política nas relações dos EUA com a URSS por meio do estreitamento de laços</p><p>pessoais com Stálin. Além disso, o autor traça o perfil de um presidente fraco,</p><p>que postergou decisões importantes e que produziu uma situação bastante</p><p>crítica na qual os interesses dos povos da Europa e dos EUA haveriam sido</p><p>postos de lado em nome da manutenção de uma aliança e da tentativa de atrair a</p><p>União Soviética para um melhor relacionamento com o mundo ocidental.</p><p>Para Dunn, Roosevelt e Harry Hopkins15 estavam doentes em Ialta, no</p><p>entanto, ressalta que os resultados trágicos da conferência para os EUA, segundo</p><p>o seu ponto vista, não eram resultado da saúde deles, mas da política equivocada,</p><p>delineada por Roosevelt ao longo da aliança com a URSS. Dunn desenhou um</p><p>Roosevelt ingênuo, propenso a vislumbrar de forma inflexível um Stálin mais</p><p>liberal democrata do que um competidor ideológico. Para o autor, Roosevelt</p><p>estava deprimido com a falência da sua política, norteada pela transformação da</p><p>Aliança em amizade pessoal.</p><p>Em Ialta, Roosevelt haveria buscado oferecer aos soviéticos tudo aquilo que</p><p>eles consideravam sua legítima necessidade de segurança. O autor afiança que</p><p>Roosevelt procurou seduzir Stálin para a Organização das Nações Unidas e</p><p>mostrar que confiava nele, acreditando que, ao levar a União Soviética à posição</p><p>de liderança, ela poderia rumar em direção a algum tipo de socialismo</p><p>democrático (DUNN, 1998, p. 242). O autor alonga-se no raciocínio de que</p><p>Roosevelt acreditava nisso, mas afirma que ele não compreendeu Stálin;</p><p>acrescenta que o líder soviético precisava dos EUA para manter a sua máquina de</p><p>guerra e derrotar Hitler. Dunn reitera que, no cenário próximo da vitória, o</p><p>interesse do Kremlin era a consolidação do poder e a expansão do comunismo</p><p>soviético na Europa.</p><p>Dunn insiste que Stálin se aproveitou de tudo o que Roosevelt concedeu,</p><p>mas estava ciente de que a aproximação real com o Ocidente seria destrutiva para</p><p>o seu regime ditatorial. Por fim, conclui que os objetivos de Stálin estavam</p><p>claramente delineados. Em primeiro lugar, pretendia restaurar o seu poder</p><p>ditatorial na União Soviética, afrouxado durante o esforço de guerra, e ocultar as</p><p>fraquezas e as vulnerabilidades do seu império. Em adição, segundo Dunn, Stálin</p><p>planejava estender o sistema soviético aos territórios ocupados pelo Exército</p><p>Vermelho, no vácuo do colapso da Alemanha e do Japão (DUNN, 1998, p. 243-</p><p>245).</p><p>Os argumentos apresentados pelo autor, embora tomem por base muitos</p><p>eventos reais, são bastante distorcidos, uma vez que omitem fatos importantes e</p><p>sempre estão centrados na perspectiva daqueles que redefiniram a política</p><p>externa dos EUA após a morte de Roosevelt. Esse, no entanto, não é o maior</p><p>problema. Stálin era um ditador cruel e sanguinário e esse é um ponto sobre o</p><p>qual não há muitas discórdias; o líder soviético era pragmático, definia</p><p>estratégias e as perseguia independente do custo social e humano. Isso é algo</p><p>reconhecido pela grande maioria dos estudiosos familiarizados com a temática.</p><p>Roosevelt tinha plena consciência sobre quem era Stálin e do que ele era capaz</p><p>de fazer para atingir os seus objetivos. O experiente presidente dos EUA não era</p><p>pueril como o autor procura pintá-lo. O problema que Roosevelt precisava</p><p>resolver no cenário europeu, com uma correlação de forças bastante</p><p>desfavorável aos EUA e à Grã-Bretanha, era oferecer a Stálin, além das honrarias</p><p>e do reconhecimento, objetivos concretos e sinais de que não almejava</p><p>confrontar interesses vitais da União Soviética ao final da guerra.</p><p>Assim, o então presidente dos EUA entendia que não era possível retirar da</p><p>União Soviética, na mesa de negociações, aquilo que o Exército Vermelho havia</p><p>conquistado nos campos de batalha. Dunn não aborda satisfatoriamente as</p><p>implicações práticas da disposição das forças aliadas no cenário europeu,</p><p>decorrentes das constantes evasivas de</p><p>Churchill de forma a retardar a Segunda</p><p>Frente de Batalha. Entre outras implicações, esse caminho possibilitou à União</p><p>Soviética chegar ao final da Guerra em situação estratégica privilegiada, na qual,</p><p>apesar de toda a destruição de que foi alvo, havia ocupado grande parte da</p><p>Europa Central e Oriental.</p><p>Caso a Segunda Frente houvesse ocorrido em 1942 ou mesmo em 1943,</p><p>como solicitado por Stálin e prometido por Roosevelt, mas sempre obstado por</p><p>Churchill, quase certamente a URSS não haveria assumido o controle daquelas</p><p>importantes áreas da Europa. Em 1943, Churchill procurou outras estratégias</p><p>evasivas para evitar a operação, com tentativas de envolver os aliados em outras</p><p>ações em teatros secundários, como nos Bálcãs. Caso a operação não fosse</p><p>realizada em junho de 1944, Ambrose considera que muito provavelmente a</p><p>guerra se estenderia até o final de 1945 ou mesmo 1946 e, nesse caso, as forças</p><p>soviéticas poderiam até mesmo libertar e ocupar a Europa Ocidental</p><p>(AMBROSE, 1995, p. 40-41)16.</p><p>Outra questão a ser considerada é que Roosevelt conhecia muito bem a</p><p>pressão da opinião pública nos Estados Unidos em relação às baixas de guerra.</p><p>Ele acreditava que elas seriam bastante pesadas caso houvesse a necessidade de</p><p>invasão das ilhas nipônicas e, nesse caso, contava com as forças soviéticas. Dessa</p><p>forma, precisava buscar um caminho intermediário que não fosse o da</p><p>confrontação. Por fim, e não menos importante, Roosevelt tinha a certeza de que</p><p>os soviéticos precisariam de alimentos, produtos industrializados, capital e</p><p>transferência de tecnologia para a reconstrução do país e, certamente, essa era</p><p>uma situação que lhe favoreceria em muito no sentido de buscar posições</p><p>intermediárias que atendessem a ambas as partes. Harriman, que advogava uma</p><p>posição mais dura em relação à URSS, também sabia disso, e, em decorrência,</p><p>advertiu ao Secretário de Estado, Cordell Hull, que os dólares eram armas</p><p>efetivas que que os EUA poderiam utilizar para influenciar os eventos europeus e</p><p>impedir a esfera de influência soviética (DONOVAN, 1977, p.38).</p><p>Além disso, Stálin era informado, por intermédio dos seus espiões, sobre as</p><p>hostilidades em relação à União Soviética em diferentes níveis do governo tanto</p><p>nos EUA quanto na Grã-Bretanha. A Polônia era crucial para Stálin e Roosevelt</p><p>sabia que era necessário ceder, da mesma forma que abdicou das suas posições</p><p>em favor daquelas defendidas por Churchill em relação à questão colonial, muito</p><p>embora o presidente estadunidense alimentasse a ideia de que, com o final da</p><p>guerra, seria possível por fim à dominação colonial. Roosevelt entendia, porém,</p><p>que não era possível impor o seu ponto de vista e que Churchill não abriria mão</p><p>da manutenção dos interesses do Império nas áreas sob dominação colonial. Na</p><p>sua visão, era preciso ir passo a passo, promover os câmbios de forma gradual e,</p><p>por isso, ele postergava muitas decisões importantes. Em outras palavras,</p><p>Roosevelt era um político hábil que sabia o que podia e o que não podia fazer em</p><p>um determinado contexto. Essa foi a sua linha de conduta, tanto no que se refere</p><p>a Stálin quanto a Churchill.</p><p>De um lado, Roosevelt percebia o aumento da intensidade dos conflitos entre</p><p>soviéticos e britânicos e procurava adotar uma postura mais equidistante que,</p><p>muitas vezes, desagradava a ambos os governos, mas com isso preservava a</p><p>Aliança. De outro, o presidente era temeroso de que, mesmo com conflitos de</p><p>interesses, soviéticos e britânicos pudessem definir um acordo para garantir as</p><p>suas respectivas esferas de influência, pois, a depender da conformação desses</p><p>encaminhamentos, o seu projeto de instituição de uma nova ordem mundial,</p><p>conforme os princípios gerais estabelecidos na Carta do Atlântico, poderia</p><p>naufragar.</p><p>Roosevelt, até certo ponto de forma pragmática, navegava entre o desejado e</p><p>o possível e esperava gradualmente impor o seu ponto de vista sem colocar em</p><p>risco a Aliança. É por isso que Roosevelt postergou muitas decisões importantes</p><p>e, em outras palavras, deixou-as para o final da guerra. Ele estava convencido de</p><p>que a dissensão entre os Aliados, resultado de projetos de mundo distintos para</p><p>o pós-guerra, poderia atrapalhar as operações de guerra e mesmo levar à</p><p>negociação de uma paz em separado com a Alemanha. De fato, como é</p><p>verossímil supor, a aliança entre as três grandes potências que encabeçavam as</p><p>Nações Unidas possuía um inimigo comum que as unia (HOBSBAWM, 1995).</p><p>Muitos problemas oriundos dos objetivos específicos de cada uma delas, porém,</p><p>geravam focos de tensões.</p><p>Em síntese, EUA, Reino Unido e URSS eram aliados, mas havia sempre a</p><p>suspeita em relação aos interesses do outro e entre eles havia o fantasma da paz</p><p>em separado com Hitler. Saliente-se que a União Soviética receava que os EUA e</p><p>o Reino Unido pactuassem a paz com a Alemanha e, ao mesmo tempo, a</p><p>recíproca era verdadeira (MONIZ BANDEIRA, 2005, p. 132-134). Os aliados</p><p>espionavam-se mutuamente, e daí decorria a exacerbação de tensões, uma vez</p><p>que as suspeições de um dos atores eram corroboradas por espiões que</p><p>obtinham acesso a informações restritas e privilegiadas que revelavam planos,</p><p>muitas vezes, surgidos do receio da ação do outro. Assim, em certas ocasiões</p><p>uma precaução, uma ação de perfil predominantemente defensivo, poderia ser</p><p>interpretada pelo outro campo como um ardil agressivo com vistas a confrontar</p><p>os interesses considerados inegociáveis.</p><p>Sobre a perspectiva expressa por Dunn, do ponto de vista das políticas</p><p>realistas, é plausível questionar por que os EUA poderiam manter a sua</p><p>predominância e o direito de interferência em todo o continente americano e a</p><p>URSS não poderia fazer o mesmo em territórios que, em grande parte, havia</p><p>poucas décadas pertenciam ao antigo Império Russo do qual ela era sucessora? O</p><p>que falar da restauração dos impérios coloniais britânico e francês que</p><p>afrontavam a Carta do Atlântico, tanto quanto o controle soviético sobre a</p><p>Europa Oriental? Roosevelt não era ingênuo como os seus críticos procuram</p><p>caricaturá-lo. O presidente estadunidense estava ciente desses problemas e</p><p>pretendia um caminho mais longo, mas ao mesmo tempo, mais seguro em</p><p>direção à construção de uma comunidade de nações que evitasse os conflitos</p><p>semelhantes àqueles que deram origem às duas guerras mundiais. Mais uma vez,</p><p>Roosevelt não era um acólito pueril, como o caracterizou outro historiador</p><p>(MARKS III, 1995), pois, em seu governo, projetava-se no detalhe uma</p><p>arquitetura de poder mundial lastreada no modelo das instituições</p><p>estadunidenses. Dessa forma, o presidente estadunidense e os seus assessores de</p><p>confiança intencionavam garantir a hegemonia negociada do país no cenário</p><p>internacional Mais do que isso, Roosevelt também acenava para a necessidade de</p><p>reformas sociais nos EUA (UNITED STATES OF AMERICA, 1944), de forma a</p><p>minorar o apartheid étnico e social existente no país. De fato, jamais será possível</p><p>saber, de um lado, até onde as propostas, alinhavadas naquele State of the Union</p><p>de 1944, eram parte de uma estratégia destinada às eleições que se avizinhavam</p><p>ou se, de outro, implicavam a radicalização das políticas sociais esboçadas por</p><p>Roosevelt em seus três até então sucessivos mandatos (o quarto iniciar-se-ia com</p><p>mais uma vitória eleitoral em 1944)17. As tentativas de implementar reformas</p><p>sociais nos EUA durante os governos Roosevelt sempre foram enfrentadas com</p><p>desmesurada fúria pelas elites, muitas delas inclusive no seio do Partido</p><p>Democrata. A presumível opção de Roosevelt pelo caminho de promover</p><p>reformas sociais mais profundas, mais de sete décadas depois, continua esculpida</p><p>no imaginário conservador como pecado inaceitável e irredimível no sagrado</p><p>território das valorações consideradas como legítimas expressões do American</p><p>way of life.</p><p>Outros autores entendem que Roosevelt falhou ao acreditar na possibilidade</p><p>de levar Stálin à moderação e ao não compreender que era impossível negociar</p><p>com o líder soviético, uma vez que ele era paranoico e estaria sempre à espreita</p><p>de golpes e traições (SCHLESINGER JR., 1992, p. 212). Walter LaFeber lembra,</p><p>todavia, que, se os soviéticos tinham suspeitas do Ocidente, eles eram realistas,</p><p>não paranoicos. O autor sublinha as invasões ao território russo entre 1917 e</p><p>1920; a recusa à cooperação com os soviéticos, na década de 1930, perante a</p><p>crescente ameaça fascista; a tentativa de jogar Hitler contra Stálin, em 1938; as</p><p>quebras das sucessivas promessas da abertura da Segunda Frente; e, por fim,</p><p>observa a tentativa de penetração, em 1945, em áreas consideradas cruciais para</p><p>a segurança soviética (LaFEBER, 1997, p. 20-21).</p><p>Acrescento que, quando LaFeber escreveu esse texto, ele desconhecia o plano</p><p>britânico Operation Unthinkable para atacar as forças soviéticas na Europa</p><p>(UNITED KINGDOM, 1945), uma vez que os documentos até então secretos</p><p>não haviam chegado ao conhecimento público (Sobre o assunto, veja o capítulo</p><p>5 deste livro). Com certeza, se LaFeber soubesse, acrescentaria mais esse motivo</p><p>para indicar que as precauções soviéticas não eram resultado da mera paranoia</p><p>de Stálin, mas produto de um tenso e complexo relacionamento com as</p><p>potências ocidentais, em que ambos os lados possuíam motivos de sobra para se</p><p>resguardar e temer eventuais ações que proviessem do outro campo.</p><p>Para LaFeber, Stálin possuía uma política bem definida ao final da Segunda</p><p>Guerra Mundial e ele a perseguia de forma vigorosa. O autor afirma, contudo,</p><p>que o chefe de Estado soviético agia de boa fé com os seus aliados ocidentais;</p><p>exemplifica que Stálin procurou conter o Partido Comunista Francês ao invés de</p><p>estimulá-lo à conquista do poder, mas pondera que ele esperava um tratamento</p><p>semelhante na Europa Oriental. Para o autor, durante o governo Truman, ao</p><p>mesmo tempo em que os EUA se opunham à esfera de influência soviética na</p><p>Europa Oriental, paradoxalmente, trataram de fortalecer a sua no Hemisfério</p><p>Ocidental (LaFEBER, 1997, p. 20-21).</p><p>Esse é um ponto que eu gostaria de ressaltar. O projeto de arquitetura de</p><p>poder estadunidense em elaboração no Departamento de Estado, seguramente</p><p>desde 1942, visava tornar os EUA a única potência global. Havia até a</p><p>pressuposição de conferir à União Soviética o papel de potência também global,</p><p>mas numa posição hierárquica bastante distinta. Tudo dependeria da cooperação</p><p>de Stálin e de se o país rumaria ou não em direção a uma espécie de socialismo</p><p>democrático, que não interferisse no projeto de hegemonia estadunidense. Com</p><p>base nas fontes disponíveis e ancorado na revisão crítica da literatura arrolada</p><p>neste texto, defendo a tese de que Roosevelt possuía uma análise realista do</p><p>contexto político internacional muito mais refinada do que a dos seus críticos</p><p>contemporâneos. Sustento que a sua análise do contexto político está</p><p>solidamente alicerçada na materialidade da ocupação da Europa por forças</p><p>militares soviéticas, estadunidenses e britânicas entre o início e meados de 1945.</p><p>Dessa perspectiva, a sua análise mostra-se mais adequada do que aquelas</p><p>provenientes de intelectuais que lastreados nos princípios da reação, até o</p><p>presente, interpretam de forma imprópria o seu projeto realista para uma nova</p><p>ordem global duradoura, que respeitasse minimamente as diferenças entre os</p><p>seus principais fiadores. Ressalte-se que a consolidação das zonas estadunidense</p><p>e britânica na Alemanha era percebida pelos diplomatas soviéticos como forma</p><p>de reduzir a influência comunista no país e de reorganizar o poder sob bases</p><p>reacionárias. A recusa por parte dos EUA de transferência de reparações de</p><p>guerra da sua Zona para a URSS reforçava de forma acentuada essa percepção</p><p>(PECHATNOV, 2010, p. 103).</p><p>Há indícios de que Stálin tenha trabalhado com ao menos três possibilidades</p><p>conflitantes em relação à Alemanha, que era considerada vital em sua política,</p><p>uma vez que significava a manutenção da presença e do controle soviético no</p><p>coração da Europa. Uma perspectiva era a de unificar uma Alemanha pró-</p><p>soviética, como ele haveria professado a Georgi Dimitrov, ex-dirigente da</p><p>Internacional Comunista e colaborador do círculo íntimo de Stálin. Ele também</p><p>trabalhou com a possibilidade de desmilitarizar e neutralizar a Alemanha, que</p><p>deveria funcionar como um escudo entre as esferas ocidental e soviética. E, por</p><p>fim, lidava com a possibilidade de consolidar a sua zona de dominação na parte</p><p>oriental da Alemanha, tornando-a um Estado subordinado (PECHATNOV,</p><p>2010, p. 103).</p><p>Segundo Pechatnov, os documentos revelam que, em oposição às alegações</p><p>dos EUA, a URSS não demonstrava planos ofensivos na Europa Ocidental, uma</p><p>vez que o orçamento militar soviético em 1946-1947 alcançava apenas a metade</p><p>do implementado durante o período da guerra. Em adição, o autor afirma que</p><p>em 1948 o Exército Vermelho já havia sido reduzido a apenas um quarto do</p><p>tamanho alcançado ao final do conflito mundial. O mesmo autor ressalta que as</p><p>muitas solicitações de comandantes navais para o fortalecimento da frota</p><p>soviética eram respondidas por Stálin como muito onerosas e desnecessárias</p><p>para a defesa costeira, o que implicaria uma perspectiva meramente defensiva</p><p>(PECHATNOV, 2010, p. 103-104).</p><p>Por fim, neste tópico, resta frisar que, certamente, com ou sem Truman, as</p><p>tensões entre os projetos pensados nos EUA, no Reino Unido e na URSS</p><p>tenderiam a se contrapor em algum momento, mas suponho que o caminho</p><p>trilhado por Roosevelt não levaria ao confronto de quatro décadas, ao custo de</p><p>aproximadamente 25 milhões de vidas ou mais, como foi a Guerra Fria.</p><p>Seguramente, outros focos de tensões emergiriam, algumas guerras haveriam</p><p>ocorrido, pois possuíam as suas dinâmicas regionais, muitas vezes, fora do</p><p>controle das duas potências globais; mas é razoável supor que a cooperação</p><p>pretendida era mais segura do que o caminho do confronto delineado com</p><p>nitidez desde que Truman tomou posse. Nesse ponto, enfatizo o imperativo de</p><p>focar o problema com as lentes apropriadas para a adequada percepção da</p><p>matéria. Regra geral, a perspectiva lastreada no chamado excepcionalismo</p><p>“americano”, no entanto, tende a naturalizar as ações estadunidenses em</p><p>diferentes áreas do planeta e a vislumbrar como agressivas as ações soviéticas nas</p><p>adjacências do seu território.</p><p>De Roosevelt a Truman: para além da primavera da cooperação, há o</p><p>inverno do dissenso</p><p>Quando Truman assumiu a presidência dos EUA, as decisões consagradas na</p><p>Conferência de Ialta já haviam definido uma linha geral que pressupunha a</p><p>divisão do mundo em áreas de influência. Roosevelt não era plenamente</p><p>favorável a essa divisão, mas entendeu que era o possível para preservar a</p><p>influência do Ocidente (e principalmente dos EUA) no contexto europeu, onde a</p><p>presença soviética era marcadamente forte ao final da guerra. Em tese, Roosevelt</p><p>pressupunha que era possível estabelecer as bases mínimas de cooperação entre</p><p>os aliados e com isso levar à moderação tanto os interesses dos EUA quanto do</p><p>império britânico e da URSS.</p><p>Para os autores revisionistas, como, por exemplo, William Appleman</p><p>Williams, Gabriel Kolko, Gar Alperovitz e David Horrowitz18, houve uma</p><p>mudança na direção da política dos EUA, conforme faremos referências a seguir.</p><p>De outro ponto de vista, Arthur Schlesinger Jr. defende a tese de que Truman</p><p>seguia as recomendações de Roosevelt e de que a ruptura com a URSS haveria</p><p>sido uma continuidade dos problemas emergidos ao final da guerra, ainda</p><p>durante o governo Roosevelt. Para ele, o conflito com a União Soviética era</p><p>inevitável. Schlesinger Jr. reproduz uma conversa ocorrida entre Roosevelt e</p><p>Anna Rosenberg Hoffman, com quem o presidente haveria almoçado em 24 de</p><p>março de 1945, último dia em que esteve em Washington. Segundo o autor, na</p><p>ocasião Roosevelt haveria dito que estava descontente com Stálin e que “Averell</p><p>tem razão. Não se pode negociar com Stálin. Ele rompeu todas as promessas que</p><p>fêz em Yalta” (SCHLESINGER JR., 1992, p. 189).</p><p>A referência feita por Schlesinger Jr. pode ter, eventualmente, alguma</p><p>importância, embora seja bastante vaga e imprecisa. Segundo o autor, após</p><p>receber um telegrama, Roosevelt haveria ficado irritado e pronunciado essa frase.</p><p>Não há nenhuma evidência factível que comprove essa</p><p>ocorrência. Como</p><p>sabemos, havia muitas disputas pela memória e, principalmente, pela herança do</p><p>incomensurável patrimônio político deixado por Roosevelt. Em consequência,</p><p>situações como a do almoço registrado por Schlesinger Jr. simplesmente podem</p><p>haver ganhado outra conotação pela boca de Hoffman. Ela havia sido auxiliar de</p><p>Roosevelt no Social Security Board e foi enviada especial do presidente para</p><p>diversos assuntos europeus durantes os seus sucessivos governos. É imaginável</p><p>supor que a aproximação com as posições de Truman pode haver garantido a</p><p>continuidade da sua influência durante o governo do novo presidente. O</p><p>escrutínio do historiador demanda mais evidências do que as apresentadas.</p><p>Esse não, porém, é o maior problema no argumento do autor. Schlesinger Jr.</p><p>omite, deliberadamente, outra fonte, por ele bem conhecida, que, certamente,</p><p>teria muito mais peso que a de Anna Hoffman. Refiro-me à posição tomada pelo</p><p>filho de Franklin, Elliott Roosevelt. Elliott secretariou, como adido militar, para</p><p>o presidente, muitas reuniões importantes ocorridas durante a Grande Aliança,</p><p>entre elas as conferências de Casablanca, do Cairo e de Teerã. Ele era coronel da</p><p>Força Aérea e havia atuado em mais de 300 missões durante o conflito mundial,</p><p>inclusive na Operação Overlord. Elliott teve uma vida controversa, recebeu altas</p><p>condecorações, mas também foi acusado, após a guerra, quando já fazia críticas</p><p>abertas ao governo do seu país, de haver beneficiado uma grande corporação</p><p>industrial a vencer uma encomenda de aviões efetuada pelo governo. As</p><p>investigações sobre esses supostos eventos nunca foram conclusivas e acabaram</p><p>por deixar sempre alguma dúvida.</p><p>Elliott afirmou amiúde que Truman estava a se desviar das recomendações de</p><p>seu pai, principalmente no que se referia às relações com a União Soviética. Em</p><p>1946, descontente como os caminhos da política externa do seu país, escreveu o</p><p>livro As He Saw It. O livro foi publicado no Brasil, em 1947, com o título Como</p><p>meu pai os via. A obra foi editada pelo Instituto Progresso Editorial, criado por</p><p>um grupo de influentes capitalistas de origem italiana, dentre eles, os Matarazzo</p><p>e os Crespi, que funcionou entre os anos de 1947 e 1949. O título do livro</p><p>expressa, no entendimento de Elliott, a visão do presidente Roosevelt sobre a</p><p>importância da cooperação com os soviéticos durante e após a guerra. De fato, o</p><p>livro constitui-se em um cáustico manifesto contra a corrida armamentista e as</p><p>políticas internacionais implementadas pelos EUA no imediato pós-guerra,</p><p>consideradas por Elliott como agressivas e descumpridoras dos acordos</p><p>firmados durante a Segunda Guerra Mundial. O livro é um pequeno compêndio</p><p>de denúncias, por vezes efetuadas de forma bastante apaixonada. Elliot não</p><p>poupa críticas ao governo do seu país e logo de início escreve:</p><p>Tomei esta decisão [escrever o livro] recentemente, compelido por graves ocorrências.</p><p>Influíram para tanto: o discurso de Winston Churchill, em Fulton, Missouri; as</p><p>reuniões do Conselho de Segurança, em Hunter College, em New York e as ideias</p><p>nelas expressas; o número crescente de bombas atômicas americanas armazenadas; os</p><p>sinais da sempre maior desunião entre as principais nações do mundo; as promessas</p><p>quebradas, as forças políticas renascentes do imperialismo voraz e desesperado foram-</p><p>me um estímulo neste ousado cometimento (ROOSEVELT, 1947, p. 11).</p><p>Em outra passagem, o autor afirma, de forma taxativa, a sua compreensão</p><p>sobre as mudanças operadas por Truman logo que assumiu a presidência dos</p><p>EUA.</p><p>E vi violadas as promessas, as condições sumária e cinicamente menosprezadas, a</p><p>estrutura da paz repudiada.</p><p>Escrevo portanto, para vós, que concordais comigo que Franklin Roosevelt foi o</p><p>arquiteto, a tempo da guerra, da união das Nações Unidas; para vós que concordais</p><p>comigo que os ideais e atributos como estadista de Franklin Roosevelt seriam</p><p>suficientes para conservar esta união numa entidade vital no após-guerra; e que</p><p>comigo concordais ainda que o roteiro por ele traçado foi grave- e deliberadamente-</p><p>repudiado. (ROOSEVELT, 1947, p. 14)</p><p>Talvez, se retrocedermos no tempo, possamos ter uma ideia mais clara do</p><p>ponto de vista que embalava as decisões encaminhadas por Truman. Em 24 de</p><p>junho de 1941, logo após o ataque de Hitler à União Soviética, o então senador</p><p>Harry Truman fez uma declaração publicada no The New York Times: “Se nós</p><p>vemos que a Alemanha está vencendo nós devemos ajudar a Rússia, e se a Rússia</p><p>estiver vencendo nós deveremos ajudar a Alemanha e, desta forma, então, deixar</p><p>que as duas se matem tanto quanto possível, contudo eu não quero ver Hitler</p><p>vitorioso sob nenhuma circunstância” (LaFEBER, 1997, p. 6 DONOVAN, 1996,</p><p>p. 36, tradução do autor).</p><p>Na seara desse debate sobre se Harry Truman imprimiu mudanças abruptas</p><p>na condução da política externa do país, tal qual ela se encontrava em</p><p>desenvolvimento sob o último governo Roosevelt, é imperativo perscrutar o</p><p>caminho seguido pelo novo presidente logo após sua posse. No dia seguinte, já</p><p>como novo presidente dos EUA, Truman, que em suas memórias informou que</p><p>não estava inteirado sobre muitos aspectos de como Roosevelt havia conduzido</p><p>as negociações sobre a guerra, afirmou ao secretário Stettinius: “Nós temos que</p><p>parar os Russos [...]. Nós temos sido muito fáceis com eles” (LaFEBER, 1997, p.</p><p>15, tradução do autor)</p><p>Em outras palavras, mesmo pouco informado sobre o assunto, Truman já</p><p>tinha uma opinião muito bem formada. Ele já havia escolhido um caminho e essa</p><p>via levava à confrontação dos soviéticos em pontos que eles consideravam</p><p>inegociáveis. Esse posicionamento de Harry Truman tornou-se mais consistente</p><p>quando alguns de seus auxiliares mais próximos, como Harriman, Leahy e</p><p>Forrestal, que eram favoráveis a mudanças substanciais na condução das</p><p>negociações com o Kremlin, relataram ao presidente o que eles consideravam</p><p>uma “barbárie Soviética” e recomendaram a adoção de uma postura mais dura</p><p>em relação à URSS. Ressalte-se, como ficará demonstrado ao longo deste texto,</p><p>que outros, como Hopkins, Wallace, Marshall e mesmo Eisenhower,</p><p>vislumbravam a possibilidade de cooperação e de buscarem denominadores</p><p>comuns que possibilitassem uma convivência com vistas ao estabelecimento de</p><p>um relacionamento pacífico.</p><p>Truman e Molotov</p><p>No dia 23 de abril de 1945, Harry S. Truman recebeu em audiência oficial,</p><p>pela primeira vez, o chanceler soviético Molotov. Pouco antes dessa reunião, no</p><p>dia 22, o presidente teve um encontro informal, de alguns poucos minutos, com</p><p>Molotov, na Blair House, onde o diplomata estava hospedado (DONOVAN,</p><p>1996, p. 39). No dia 23, ao início da tarde, Truman reuniu-se com sua assessoria</p><p>para discutir os encaminhamentos a serem dados nas negociações com o</p><p>representante soviético. Participaram dessa conversa: Edward R. Stettinius Jr,</p><p>secretário de Estado; Henry Stimson, secretário da Guerra; James Forrestal,</p><p>secretário da Marinha; James Dunn, assistente do secretário de Estado para</p><p>assuntos da Europa, Oriente e África. Participaram, ainda, os almirantes William</p><p>D. Leahy e Ernest J. King, os generais George C. Marshall e John R. Deane;</p><p>Averell Harriman, embaixador em Moscou, e o assessor diplomático Charles</p><p>Bohlen.</p><p>Em conformidade com as memórias do presidente Harry S. Truman,19</p><p>iniciou-se a reunião com a discussão do problema polonês. Segundo o</p><p>presidente, o secretário de Estado Edward R. Stettinius Jr. lembrou que o</p><p>governo de Lublin20 não era representativo do povo polonês e que os russos</p><p>desejavam impor aos EUA e à Inglaterra esse governo de fantoches.</p><p>Na sequência, Truman disse que, até aquele momento, os acordos dos EUA</p><p>estabelecidos com a União Soviética haviam sido cumpridos unilateralmente e</p><p>que isso não poderia continuar. Ato contínuo, Stimson disse que, nos assuntos</p><p>militares importantes, os russos haviam mantido a palavra. Enfatizou que,</p><p>frequentemente, haviam feito mais que o prometido. Acrescentou a necessidade</p><p>de verificar porque atuavam desse modo com os seus países fronteiriços e quais</p><p>eram as suas ideias de independência e democracia em zonas</p><p>que consideravam</p><p>vitais para sua segurança. Stimson admitiu que os soviéticos houvessem causado</p><p>pequenos problemas em diferentes assuntos, e que foi necessário lhes ensinar</p><p>boas maneiras. Sublinhou, todavia, a importância do assunto e afirmou que, sem</p><p>estar totalmente inteirado de como os soviéticos encaravam o problema polonês,</p><p>poder-se-ia chegar a uma situação muito perigosa.</p><p>O próximo a tomar a palavra foi o então secretário da Marinha, James</p><p>Forrestal. A princípio, afirmou o seu entendimento de que o problema polonês</p><p>não deveria ser tratado como um problema separado. Segundo o seu ponto de</p><p>vista, os soviéticos estavam dando provas de que pretendiam dominar os países</p><p>adjacentes, aparentemente acreditando na tolerância dos EUA. Disse estar</p><p>convencido da necessidade de colocar, imediatamente, as cartas na mesa.</p><p>O próximo a fazer uso da palavra foi Harriman. O diplomata iniciou por</p><p>responder a Stimson que, quando Stálin e Molotov regressaram de Ialta,</p><p>perceberam o potencial impasse da eventual colocação de um legítimo</p><p>representante do povo polonês no governo de Lublin. Esse fato significaria a</p><p>eliminação dos membros daquele governo indicados pelo Kremlin, restando</p><p>saber se os EUA seriam ou não cúmplices com a dominação soviética na Polônia.</p><p>Afirmou, ainda, que esse problema poderia levar a uma ruptura com a União</p><p>Soviética, sendo necessária muita habilidade para contornar essa situação.</p><p>Em continuidade, Truman afirmou que não era a sua intenção apresentar um</p><p>ultimato, mas que gostaria de deixar bem clara qual era a posição dos EUA. Em</p><p>prosseguimento à reunião, Stimson indagou até onde poderia ir a reação</p><p>soviética frente a uma posição firme nessa questão. Os soviéticos, acrescentou,</p><p>eram mais realistas que os “norte-americanos” em relação à sua segurança.</p><p>Leahy, ao fazer uso da palavra, disse crer que o governo soviético não tinha a</p><p>intenção de permitir um governo livre na Polônia. Acrescentou que seria</p><p>surpreendente se agissem de outra forma, pois o Acordo de Ialta possibilitava</p><p>duas interpretações. Em complemento, considerou como muito séria uma</p><p>possível ruptura com os soviéticos, mas disse que pensava ser importante deixar</p><p>claro que os EUA eram defensores de uma Polônia livre e independente. Nesse</p><p>momento, Stettinius fez uso da palavra e leu uma passagem sobre o acordo</p><p>relativo à chamada questão polonesa. Na sequência, afirmou que o texto</p><p>aprovado não deixava margem a dúvidas, pois somente permitia uma</p><p>interpretação e sublinhou que deveria haver a formação de um novo governo e</p><p>precisavam ser realizadas eleições livres no país.</p><p>Ao fazer uso da palavra, o general Marshall afirmou que a situação na Europa</p><p>era segura e acrescentou esperar a entrada dos soviéticos na guerra com o Japão.</p><p>Segundo Marshall, em caso de desavenças, os soviéticos poderiam atrasar a sua</p><p>entrada nessa guerra, até a abertura do caminho pelos EUA. Assim como</p><p>Stimson, Marshall considerava com muita preocupação a possibilidade de uma</p><p>ruptura com os soviéticos e as implicações dela advindas em relação à guerra do</p><p>Pacífico.</p><p>Stimson indicou a sua concordância com Marshall, e disse acreditar que os</p><p>soviéticos não cederiam na Polônia. Acrescentou que era necessário</p><p>compreender que, além dos EUA e, talvez, da Inglaterra, existiam poucos países</p><p>onde se compreendia o significado de eleições livres, pois o partido no poder</p><p>sempre ganhava as eleições, como ele constatava, por experiência própria, na</p><p>Nicarágua.</p><p>O Almirante King tomou a palavra e indagou se o problema era uma</p><p>referência ao convite para o governo de Lublin participar da Conferência de San</p><p>Francisco. Truman respondeu que esse não era o problema e ressaltou que a</p><p>desavença estaria no descumprimento do acordado. Afirmou que diria a</p><p>Molotov esperar o cumprimento do acordo pela União Soviética, da forma</p><p>como os EUA o cumpriam.</p><p>Harriman, ao fazer uso da palavra, disse que, em realidade, os soviéticos</p><p>haviam cumprido muitos dos acordos militares, mas isso haveria ocorrido</p><p>quando as circunstâncias o exigiam, pois, em outros assuntos, não poderia dizer</p><p>que houvessem honrado a sua palavra. Acrescentou que havia um ano os</p><p>soviéticos prometeram iniciar os preparativos para a guerra no Extremo Oriente</p><p>e até o momento a promessa não havia sido cumprida.</p><p>Por fim, o General Deane disse acreditar na participação da União Soviética</p><p>na Guerra do Pacífico, tão logo houvesse a definição da situação em outros</p><p>territórios; considerou que os soviéticos não poderiam fazer seus homens</p><p>esperarem mais, pois eles encontravam-se exaustos. Disse que não se deveria</p><p>temer os soviéticos e salientou que, quando houvesse razão, seria necessário</p><p>adotar uma postura firme com eles (TRUMAN, 1965, p. 90-96)</p><p>Para Donovan, Truman, apesar de demonstrar maior propensão a acatar as</p><p>falas mais duras em relação à União Soviética, foi aconselhado a adotar uma</p><p>linha mais prudente. A exceção foi a intervenção de Forrestal, que recomendava</p><p>o confronto. Segundo o autor, Truman não deu qualquer indicação de que não</p><p>acataria essas recomendações, embora demonstrasse a sua indignação com as</p><p>últimas táticas de Molotov, e estava quase a ponto de “colocá-lo na linha” no</p><p>encontro das 5 da tarde (DONOVAN, 1996, p. 40). O autor está correto em sua</p><p>assertiva, mas observo que a posição de Stettinius, embora não clamasse pelo</p><p>confronto, certamente levaria a ele. Além disso, como o próprio autor narrou</p><p>poucas páginas antes, no dia anterior, Harriman, que mostrou comedimento</p><p>durante a reunião, disse a Truman que os soviéticos estavam a promover uma</p><p>“bárbara invasão à Europa” (DONOVAN, 1996, p. 38). Certamente Truman, que</p><p>já tinha posicionamento prévio contrário aos soviéticos, como tornou público</p><p>em 1941, sentiu-se fortalecido para adotar posturas mais rígidas.</p><p>Encerrada essa conversação, logo teve início a reunião o ministro das</p><p>relações exteriores da URSS, Vyatcheslav M. Molotov. Dela participaram, pelos</p><p>EUA, o presidente Truman, assessorado pelo secretário de Estado, Stettinius,</p><p>pelo embaixador dos EUA em Moscou, Averell Harriman, pelo assessor</p><p>diplomático Charles Bohlen e pelo Almirante Lehay. Da comitiva soviética,</p><p>participaram Molotov, o embaixador soviético em Washington, Andrei</p><p>Gromyko, e o intérprete M. Pavlov.</p><p>Truman consagrou em suas memórias o fato de a reunião ser iniciada sem</p><p>protocolos. Afirmou que principiou a lamentar o fato de não haver ocorrido</p><p>qualquer progresso na questão polonesa. Em resposta, Molotov também</p><p>lamentou a situação. Ato contínuo, Truman referiu-se à mensagem conjunta</p><p>datada de 16 de abril, quando ele e Churchill haviam encaminhado a Stálin</p><p>propostas justas e razoáveis. Afirmou que haviam ido tão longe quanto foi</p><p>possível para atender às solicitações efetuadas por Stálin em sua mensagem de 7</p><p>de abril. O governo dos EUA – asseverou – não poderia concordar com a</p><p>formação de um governo polonês no qual não estivessem representados todos os</p><p>democratas do país. Acrescentou que se sentia profundamente contrariado pelo</p><p>fato de que somente houvessem sido consultados os representantes poloneses do</p><p>regime de Varsóvia (TRUMAN, 1965, p. 96). Logo na sequência, Truman</p><p>entregou uma mensagem escrita a Molotov, pedindo que ele a encaminhasse</p><p>imediatamente a Stálin.</p><p>Segue adiante a transcrição integral do original.</p><p>President Truman to the Chairman of the Council of People’s Commissars of the</p><p>Soviet Union (Stálin)</p><p>Washington, April 23, 1945.</p><p>There was an agreement at Yalta in which President Roosevelt participated for the</p><p>United States Government to reorganize the Provisional Government now</p><p>functioning in Warsaw in order to establish a new Government of National Unity in</p><p>Poland by means of previous consultation between representatives of the Provisional</p><p>Polish Government of Warsaw and other Polish democratic leaders from Poland and</p><p>from abroad.</p><p>In the opinion of the United States Government the Crimean decision on Poland can</p><p>only be carried out if a group of genuinely representative democratic Polish leaders</p><p>are invited to Moscow for consultation. The United States Government cannot be</p><p>party to any method</p><p>of consultation with Polish leaders which would not result in</p><p>the establishment of a new Provisional Government of National Unity genuinely</p><p>representative of the democratic elements of the Polish people. The United States and</p><p>British Governments have gone as far as they can to meet the situation and carry out</p><p>the intent of the Crimean decisions in their joint message delivered to Marshal Stálin</p><p>on April 18th.</p><p>The United States Government earnestly requests that the Soviet Government accept</p><p>the proposals set forth in the joint message of the President and Prime Minister to</p><p>Marshal Stálin. And that Mr. Molotov continue the conversations with the Secretary</p><p>of State and Mr. Eden in San Francisco on that basis.</p><p>The Soviet Government must realize that the failure to go forward at this time with</p><p>the implementation of the Crimean decision on Poland would seriously shake</p><p>confidence in the unity of the three Governments and their determination to</p><p>continue the collaboration in the future as they have in the past (TRUMAN, 1965, p.</p><p>97-98)21.</p><p>Na sequência, Molotov afirmou que o governo soviético desejava colaborar</p><p>com os EUA e com a Grã-Bretanha como antes. Truman intercedeu e afirmou</p><p>que, se assim não o fosse, de nada adiantaria a conversa. Molotov prosseguiu e</p><p>apresentou o seguinte ponto de vista do governo Soviético:</p><p>1. Havia sido estabelecida uma base de colaboração e, apesar de que haviam ocorrido</p><p>algumas dificuldades inevitáveis, os três governos haviam podido falar uma</p><p>linguagem comum e assim foram solucionando as diferenças.</p><p>2. Os três governos haviam atuado equitativamente e não se havia permitido que um</p><p>ou dois dos três pudessem impor sua vontade ao outro e que como base de cooperação</p><p>esta era a única forma aceitável pelo Governo Soviético (TRUMAN, 1965, p. 98).</p><p>Truman disse que desejava o cumprimento, pelos soviéticos, do acordo da</p><p>Crimeia (Ialta) sobre a Polônia. Ato contínuo, Molotov respondeu que o seu</p><p>governo era defensor do acordo; acrescentou ser essa uma questão de honra e</p><p>disse ainda que o governo soviético estava convencido da possibilidade de que</p><p>essas dificuldades fossem superadas. Truman, ao retomar a palavra, então</p><p>afirmou secamente que o acordo sobre a Polônia já havia sido firmado, e que só</p><p>restava a Stálin cumpri-lo. Em síntese, no restante da reunião predominaram a</p><p>tensão e as desavenças. Finalmente, Truman narrou em suas memórias que</p><p>Molotov haveria reclamado que nunca lhe haviam falado assim e que ele haveria</p><p>respondido “Cumpram os seus acordos que ninguém falará assim” (TRUMAN,</p><p>1965, p. 99).</p><p>Essa versão dos fatos, apresentada pelo próprio Truman, explicita um</p><p>tratamento considerado muito rude para as relações diplomáticas,</p><p>principalmente se considerarmos as questões em lide e a delicada situação</p><p>existente naquele contexto histórico. Ressalte-se que, naquele momento, não</p><p>havia a certeza de que seria possível contar com o emprego dos artefatos</p><p>nucleares e que Marshall havia advertido da importância de contar com o apoio</p><p>dos soviéticos na Guerra do Pacífico. Poder-se-ia argumentar sobre a</p><p>possibilidade de o relato de Truman estar organizado segundo a memória que ele</p><p>pretendia deixar de si mesmo, no mundo dominado pelo anticomunismo, do</p><p>qual ele foi um dos edificadores.</p><p>Devemos lembrar que as suas memórias foram publicadas em 1956, quando</p><p>a Guerra Fria tinha uma existência real e, portanto, ele poderia estar a se</p><p>valorizar ao mostrar-se mais duro do que, de fato, haveria sido. Entretanto a</p><p>linha geral do relato dessa reunião com Molotov pode ser corroborada pelos</p><p>opositores e dissidentes do governo do sucessor de Roosevelt, mesmo que as</p><p>lembranças de outros participantes não registrem as falas mais desabridas</p><p>eternizadas por Truman em suas memórias. Há a possibilidade de que ele não as</p><p>tenha dito, como revela Donovan. Segundo o autor, Truman haveria dito: “Isto é</p><p>tudo Mr. Molotov, eu apreciaria você transmitisse a minha posição ao Marechal</p><p>Stálin”. Na sequência, Truman “dispensou o representante soviético, que haveria</p><p>saído apressadamente, aparentando estar ofendido” (DONOVAN, 1996, p. 42).</p><p>Dando prosseguimento, entendemos que Harry S. Truman, imediatamente</p><p>após a sua posse, desconsiderou as últimas recomendações do presidente F. D.</p><p>Roosevelt e acatou as sugestões daqueles membros do secretariado que ansiavam</p><p>por mudanças na conduta dos EUA nas relações com a União Soviética. Eles</p><p>aconselharam o novo presidente a adotar uma postura mais dura com os</p><p>soviéticos. Sublinhe-se também que o novo presidente não considerou as</p><p>objeções de Stimson e o entendimento do general Marshall de que, no geral, os</p><p>soviéticos estavam a cumprir os seus acordos.</p><p>Wilson Miscamble atribuiu pouca importância ao evento e afirmou que</p><p>Truman exagerou nas suas memórias. Mais que isso, Miscamble criticou as</p><p>leituras revisionistas do episódio e insistiu que, em seus primeiros meses de</p><p>gestão, Truman seguiu a linha impressa por Roosevelt e somente quando se</p><p>convenceu de que não havia outro caminho é que adotou posturas mais duras</p><p>em relação à URSS (MISCAMBLE, 2007). Os autores revisionistas entendem</p><p>que os desentendimentos provenientes dessa reunião intensificaram as tensões</p><p>entre os EUA e a URSS e foram os primeiros sinais da futura Guerra Fria. A</p><p>resposta do Kremlin à nova estratégia adotada pelo presidente dos EUA,</p><p>conforme previsto por Stimson, foi a adoção de posturas mais rígidas e</p><p>inflexíveis do lado soviético.</p><p>Sinais da mudança</p><p>Sublinhem-se outros pontos que corroboram a possível ruptura do</p><p>presidente Truman em relação às diretrizes impressas por seu antecessor no que</p><p>se refere ao relacionamento com os soviéticos. Dentre eles merece menção o fato</p><p>de que, entre o final de junho e setembro de 1945, o novo presidente substituiu</p><p>seis secretários de governo, das dez secretarias então existentes. De fato, Truman</p><p>trocou os titulares das secretarias mais importantes, incluindo Henry Stimson,</p><p>secretário da Guerra, Henry Morgenthau, secretário do Tesouro, e até Stettinius,</p><p>secretário de Estado (HOROWITZ, 1965, p. 53-54).</p><p>Harry Truman afirmou que algumas dessas mudanças estavam associadas ao</p><p>desejo pessoal de secretários que se mantinham em suas funções pelos laços de</p><p>proximidade com Roosevelt e agora sentiam-se à vontade para retornar aos seus</p><p>negócios pessoais, pois já haviam anteriormente manifestado a intenção de</p><p>deixar os seus postos (TRUMAN, 1965, p. 358-366). De outra perspectiva, é</p><p>possível concluir que essa profunda mudança no secretariado indica a mudança</p><p>de orientação política no governo. Deve-se destacar que houve controvérsias</p><p>entre Truman e alguns desses ex-secretários, como, por exemplo, Morgenthau,</p><p>que insistiu em ir a Potsdam e foi imediatamente exonerado. Truman pediu a</p><p>Stettinius para que se exonerasse.</p><p>Stettinius havia sido também o chefe da delegação dos EUA na assembleia de</p><p>criação da ONU. Após sair da secretaria de Estado, assumiu o posto de</p><p>embaixador dos EUA na ONU, mas, em junho de 1946, demitiu-se do cargo, por</p><p>considerar que o presidente se recusava a utilizar a organização como</p><p>instrumento para resolver os problemas com a URSS. Por fim, em setembro de</p><p>1946, Henry Wallace, secretário do Comércio e vice-presidente de Roosevelt na</p><p>gestão anterior, também foi demitido e, em seguida, passou a criticar duramente</p><p>o governo do seu país, responsabilizando-o pelas tensões com a União Soviética</p><p>e pela corrida armamentista que estava a se iniciar.</p><p>Embora discorde de algumas análises revisionistas, à luz das fontes atuais e</p><p>do debate historiográfico sobre o tema, estou convencido de que os revisionistas</p><p>estão corretos quando afirmam que Truman promoveu uma evidente</p><p>reorientação da política externa estadunidense. Parece-me que as evidências são</p><p>suficientes para corroborar essa tese. Sublinhe-se que Roosevelt havia</p><p>estabelecido negociações com a diplomacia soviética desde o ataque alemão à</p><p>antiga terra dos czares. Houve altos e baixos nessa parceria, com momentos de</p><p>aproximação e de distanciamento, quando as diferenças ideológicas, de</p><p>concepção de mundo e de projetos políticos que expressavam</p><p>os interesses das</p><p>duas grandes potências se manifestavam. A arte da política de Roosevelt consistia</p><p>exatamente em minimizar as divergências e maximizar as convergências. Essa era</p><p>uma característica que marcava de modo indelével a sua trajetória política.</p><p>A adequada análise histórica torna evidente que Truman via a questão de</p><p>outra perspectiva. O novo presidente revela a sua posição, a priori, ao afirmar</p><p>que era preciso parar os “russos”, que as negociações haviam sido efetuadas como</p><p>uma via de sentido único, sempre com concessões aos soviéticos, e que era</p><p>preciso reverter a situação enquanto ainda restava tempo. Essa visão demarca</p><p>uma diferença entre a nova orientação política implementada por Truman e</p><p>aquela praticada por Roosevelt até a sua morte.</p><p>É fato também que mesmo Roosevelt estava a encontrar problemas nessas</p><p>negociações, mas não há evidências sólidas de que ele estivesse prestes à ruptura.</p><p>Ao contrário, recomendou a Churchill que minimizasse os problemas. Churchill,</p><p>contudo, era um político muito hábil e havia tentado manobrar Roosevelt por</p><p>diversas vezes, pois via nos ideais presentes na Carta do Atlântico, que ele</p><p>mesmo havia endossado quando a Grã-Bretanha se encontrava em uma situação</p><p>crítica, uma ameaça à sobrevivência do império onde o sol nunca se punha. Essa</p><p>via possibilita outra percepção do que veio a ocorrer após a morte de Roosevelt.</p><p>Desse ponto de vista, é possível inferir que o líder britânico da velha estirpe</p><p>vislumbrou, na chegada do neófito e anticomunista à Casa Branca, a</p><p>possibilidade de ouro para cambiar essa situação. Além disso, é preciso atentar</p><p>para o fato de que, no Departamento de Estado, havia muitos descontentes com</p><p>as políticas progressistas de Roosevelt. Assim, Truman logo encontrou muitos</p><p>conservadores competentes dispostos a alavancar a sua guinada na política</p><p>externa estadunidense, que tendeu a levar o país a adotar uma postura bem mais</p><p>aguerrida no relacionamento com a União Soviética.</p><p>Para compreendermos melhor esse período, é necessário perceber que a</p><p>política dos EUA não seguiu uma linha reta. Conforme demonstramos</p><p>inicialmente, Truman adotou uma linha dura, que ladeava a truculência política.</p><p>Naquele contexto, alertado por seu secretário da Guerra, Henry L. Stimson, de</p><p>que era necessária moderação para proteger os interesses do país, o presidente</p><p>adotou posições um pouco mais prudentes.</p><p>De fato, havia duas propostas nos altos escalões do governo dos EUA, uma</p><p>previa a demonstração de força a curtíssimo prazo e a outra pressupunha a</p><p>protelação desse posicionamento até que os EUA houvessem demonstrado o</p><p>poderio de sua nova arma: a bomba atômica. Stimson era contrário à ruptura</p><p>com a URSS porque entendia que a sua cooperação era fundamental para a paz</p><p>europeia, e que esta era indispensável para a segurança dos EUA. Ele entendia</p><p>que fome, doenças e falta de estabilidade poderiam levar a convulsões sociais e</p><p>ao comunismo.</p><p>Próximo aos últimos dias de Roosevelt na Casa Branca, Stimson havia</p><p>manifestado a sua oposição ao Plano Morgenthau, pois considerava que a</p><p>desestruturação e o desmembramento da Alemanha tornariam a Europa instável.</p><p>Em decorrência dessa percepção, Stimson advertiu Roosevelt da importância de</p><p>uma Alemanha economicamente forte para restaurar a estabilidade na Europa</p><p>Central. Quando Truman assumiu a presidência, Stimson externou que, em sua</p><p>opinião, era inábil pressionar na questão polonesa, naquele momento, pois</p><p>aquele era um ponto fundamental para os soviéticos e eles não cederiam.</p><p>Acrescentou que o confronto nesse assunto atrapalharia as negociações em</p><p>outras questões, de fato, vitais aos EUA, mas, segundo LaFeber, não foi ouvido</p><p>por Truman, que optou pela linha mais dura defendida por Harriman (LaFEBER,</p><p>1997, p. 15-16, 23).</p><p>De acordo com Gar Alperovitz, historiador revisionista que se debruçou</p><p>sobre o tema, foi pela influência de Stimson que Truman reviu parcialmente a</p><p>questão do Lend-Lease. Segundo esse autor, a posição inicial de Truman era um</p><p>fiasco e não se sustentava, pois confrontava os próprios interesses do país. Em</p><p>fins de maio, o novo presidente enviou Harry Hopkins a Moscou, uma vez que</p><p>ele era considerado confiável pelos soviéticos e seria a melhor pessoa para</p><p>solucionar o problema. A missão de Hopkins era também buscar um acordo</p><p>momentâneo sobre a Polônia e outros conflitos emergentes, o que, de fato,</p><p>ocorreu no início de junho. Com essa estratégia, evitou-se uma solução</p><p>unilateral soviética para a questão da Polônia, o que, certamente, aumentaria</p><p>ainda mais as tensões entre os Aliados.</p><p>Gar Alperovitz advoga a tese de que, naquele contexto, o real debate no</p><p>governo Truman não era se os EUA endureciam ou não com a União Soviética,</p><p>mas quando seria o melhor momento para fazê-lo. O autor revisionista afirma,</p><p>ainda, que muitos dos assessores do presidente e os aliados britânicos ficaram</p><p>atônitos com sua mudança de posição a partir do final de maio de 1945. Stimson</p><p>seria a favor da utilização de uma Diplomacia Atômica, forçando a URSS a ceder</p><p>aos EUA, após a demonstração do poderio da nova arma. A proposta de Stimson</p><p>previa a criação de uma comissão internacional de controle nuclear e também</p><p>que os EUA não deveriam manter o monopólio desse segredo científico-militar.</p><p>Segundo Alperovitz, Stimson haveria percebido, no decorrer de setembro</p><p>daquele ano, o perigo presente em sua proposta de usar a diplomacia da bomba e</p><p>haveria tentado redirecioná-la, mas, frustrado em seu intento, acabou por</p><p>desligar-se do governo. Esse é um aspecto controverso da conduta de Stimson e</p><p>tornou-se motivo de debates entre ortodoxos e revisionistas. É importante</p><p>ressaltar que as evidências apontadas por Alperovitz indicam que Stimson,</p><p>inicialmente, não era contra endurecer, mas contra o momento no qual se estava</p><p>a tomar essa atitude. Acrescenta que Stimson a princípio defendeu o emprego da</p><p>bomba atômica para por fim à Guerra com o Japão. Somente após o seu uso e, no</p><p>bojo dos encaminhamentos políticos daí decorrentes, haveria percebido os</p><p>perigos advindos de tal política e, então, buscou redirecioná-la sem sucesso</p><p>(ALPEROVITZ, 1969).</p><p>A Conferência de Potsdam</p><p>A Conferência de Potsdam, que antes da sua realização era nomeada nas</p><p>mensagens secretas dos aliados pelo codinome Terminal, foi a terceira</p><p>conferência a contar com a presença de todos os três líderes das grandes</p><p>potências aliadas: EUA, Grã-Bretanha e URSS. O evento foi realizado no palácio</p><p>Cecilienhof, em Potsdam, cidade conurbada com Berlim, residência da dinastia</p><p>dos Hohenzollern que governou a Alemanha até 1918, quando, como resultado</p><p>das crises econômica, política e social decorrentes da I Guerra Mundial, uma</p><p>revolução derrubou a monarquia e instituiu o sistema republicano. O palácio</p><p>Cecilienhof foi construído entre 1914 e 1917 para ser a residência do príncipe</p><p>Wilhelm e da duquesa Cecilia de Mecklenburg-Schwerin.</p><p>A conferência foi marcada por um hábil jogo diplomático no qual, de um</p><p>lado, os EUA e a Grã-Bretanha procuravam reduzir ao máximo a influência</p><p>soviética na Europa do Leste e o Kremlin, por outro, procurava consolidar o</p><p>espaço já conquistado. Dos três líderes das potências mundiais, somente Stálin</p><p>participou integramente das três mais importantes conferências que definiram as</p><p>bases da nova ordem mundial: Teerã, Ialta e Potsdam. Franklin D. Roosevelt, que</p><p>faleceu em abril de 1945, foi substituído por Harry Truman e Churchill, que</p><p>participou das duas conferências anteriores e do início da conferência de</p><p>Potsdam, em decorrência da sua derrota eleitoral, foi substituído, em 26 de</p><p>julho, por Clement Attlee, novo primeiro ministro britânico.</p><p>O evento foi definidor para a reestruturação de uma nova ordem global e era</p><p>natural que emergissem tensões provenientes dos diferentes projetos de mundo</p><p>alinhavados pelas equipes das três potências globais. Durante o evento, EUA e</p><p>Grã-Bretanha aturam no sentido de restringir a presença soviética na Europa</p><p>Oriental. No debate sobre os novos regimes, em processo de edificação, cada</p><p>lado possuía trunfos diferentes. Em Potsdam, todavia, a</p><p>União Soviética viu</p><p>ruírem diversas negociações já em andamento. As demandas pelo pagamento por</p><p>parte da Alemanha de indenizações pelos danos sofridos durante a guerra, sobre</p><p>os quais havia negociações em estágio avançado com Roosevelt e que já no</p><p>governo Truman haviam recebido sinais positivos de Stettinius, foram negadas.</p><p>É importante observar que Henry Morgenthau Jr. foi exonerado do cargo de</p><p>secretário do Tesouro por defender essa proposta e por insistir em ir a Potsdam,</p><p>como mostrei em outra passagem deste texto. Além disso, a posição de</p><p>Morgenthau sobre a internacionalização do vale do Rhur (importante área</p><p>industrial e de recursos minerais da Alemanha), também defendida pela União</p><p>Soviética, foi negada do mesmo modo que a tutela partilhada das antigas</p><p>colônias italianas no Mediterrâneo e a instalação de bases soviéticas nos estreitos</p><p>turcos. A URSS conseguiu, entretanto, manter as suas posições na Europa</p><p>Central e Oriental, que eram consideradas vitais à sua segurança. Em</p><p>decorrência, apesar do clima de tensões e de reveses sofridos, o Kremlin fez uma</p><p>avaliação relativamente positiva do evento, uma vez que já esperava o aumento</p><p>dos contratempos resultantes da nova linha impressa por Harry Truman à</p><p>política externa estadunidense (PECHATNOV, 2010, p. 96).</p><p>A URSS tinha o Exército Vermelho estacionado na Europa Oriental e, por</p><p>isso, qualquer mudança na reorganização dos regimes nesses territórios somente</p><p>ocorreria com a concordância soviética. Os exércitos dos EUA haviam avançado</p><p>de modo muito mais ligeiro do que se esperava, em função do remanejamento</p><p>das tropas alemãs e, desse modo, alcançaram o coração da Alemanha, o que</p><p>implicou a ocupação de regiões pré-determinadas aos soviéticos.</p><p>Além disso, em 16 de julho, os EUA testaram o primeiro artefato nuclear</p><p>com absoluto sucesso. A experiência ligada ao Projeto Manhattan foi</p><p>comandada, no campo militar, pelo major-general Leslie Groves e, no campo</p><p>científico, pelo físico Julius Robert Oppenheimer. Como os soviéticos</p><p>ignoravam esse sucesso, os representantes dos EUA pensavam com a vantagem</p><p>estratégica dessa conquista científica e militar de grande vulto. Em Potsdam,</p><p>Truman e os seus assessores mais próximos acreditavam que o emprego imediato</p><p>dos artefatos nucleares alteraria a correlação de forças de forma muito favorável</p><p>aos EUA.</p><p>Secretário da Guerra, Henry L. Stimson, acompanhou os testes do artefato</p><p>nuclear, realizados em Alamogordo, Novo México, no dia 16 de julho e partiu</p><p>de lá para Potsdam com a certeza de que todas as expectativas haviam sido</p><p>superadas e que o poder destrutivo da nova arma era inclusive superior ao</p><p>imaginado anteriormente. De posse dessas informações ultrassecretas, Stimson,</p><p>ao chegar a Potsdam, relatou ao presidente o imenso sucesso dos testes e</p><p>detalhou, conforme as informações colhidas da equipe de cientistas e militares</p><p>que comandavam o projeto Manhattan, as possibilidades de emprego imediato</p><p>do segredo bélico.</p><p>Naquela ocasião, o presidente e Stimson chegaram ainda a discutir os</p><p>possíveis encaminhamentos ulteriores. No decorrer da própria conferência, no</p><p>dia 17 de julho, após ser inteirado do assunto por Stimson, Truman reuniu-se</p><p>com um grupo muito restrito dos seus assessores e decidiu bombardear o Japão</p><p>com armas Atômicas. Truman consagrou em suas memórias que foi efetuado um</p><p>ranking das cidades a serem bombardeadas, por ordem de prioridade. As cidades</p><p>de Hiroshima, Kokura, Nagasaki e Niigata foram as escolhidas. Hiroshima e</p><p>Nagasaki foram arrasadas, respectivamente, em 6 e 9 de agosto, no decorrer do</p><p>regresso de Truman de Potsdam. Kokura seria a segunda cidade a ser</p><p>bombardeada, mas a instabilidade do tempo e a avaliação de que a cidade possuía</p><p>uma defesa aérea mais consistente levaram à decisão de bombardear Nagasaki.</p><p>Em Potsdam, Truman disse a Stálin, de relance e de forma imprecisa, que os EUA</p><p>haviam testado a nova arma. Stálin, aparentemente, sabia do que se tratava, mas</p><p>não conhecia detalhes e, de forma dissimulada, não demonstrou interesse pelo</p><p>assunto. Ao encerrar a Conferência, Truman retornou aos EUA a bordo do USS</p><p>Augusta e, durante a sua viagem, recebeu a confirmação de que Hiroshima havia</p><p>sido bombardeada de acordo com o planejado. Isso, contudo, é assunto para o</p><p>próximo capítulo.</p><p>4</p><p>A GUERRA NO EXTREMO ORIENTE22</p><p>Ao final da guerra, o conflito com o Japão combinou desafios de magnitude e</p><p>gerou dilemas tanto para os EUA quanto para a União Soviética. Quando a</p><p>guerra na Europa começou a rumar inexoravelmente para a vitória aliada, ambas</p><p>as potências se viram frente à situação de buscarem uma definição em relação ao</p><p>conflito no Extremo Oriente. Nos EUA, onde havia, desde a Primeira Guerra</p><p>Mundial, uma crescente opinião pública contrária ao envolvimento do país em</p><p>guerras, o governo temia que o prolongamento do conflito com o Japão e a</p><p>necessidade de invasão das ilhas nipônicas com o previsível grande número de</p><p>baixas pudessem lhe acarretar um desgaste político muito grande.</p><p>Paradoxalmente, a sociedade estadunidense fora impactada pelo ataque japonês a</p><p>Pearl Harbor e acreditava, estimulada pela propaganda desenvolvida durante os</p><p>anos de conflito, na necessidade de punir severamente o Japão pela agressão</p><p>cometida. É imperativo assinalar que, desde a guerra de 1812, quando</p><p>Washington foi bombardeada pelos britânicos, que o território dos EUA não era</p><p>alvo de ataque. Apesar de Pearl Harbor não fazer parte da área continental dos</p><p>EUA, é parte integrante do seu território desde a anexação do Havaí, ocorrida em</p><p>1898, e a sua posterior transformação em território em 1900. O Havaí somente</p><p>tornou-se o quinquagésimo estado da União em 1959.</p><p>O sentimento popular, em grande medida induzido pelo próprio governo,</p><p>levou as lideranças estadunidenses a entenderem que era necessário impor a</p><p>derrota total e a rendição incondicional ao adversário. Ao longo da guerra,</p><p>campanhas publicitárias nos EUA haviam adotado posturas racistas em relação</p><p>aos japoneses. Os nipônicos e seus descendentes internados em campos de</p><p>concentração nos EUA foram alvo de repressão muito mais intensa que italianos</p><p>e alemães (BESS, 2006, p. 33-36 e p. 242-243). Dentre as campanhas que mais</p><p>estimularam o ódio aos japoneses nos EUA, estão as oito campanhas realizadas</p><p>entre 1941 e 1946. Com o intuito de levantar fundos por intermédio da venda</p><p>de bônus para o esforço de Guerra, essas campanhas também enfatizaram a</p><p>vilania do inimigo e o valor e o patriotismo dos EUA e aliados. Além disso, a</p><p>venda dos bônus de guerra era vista como uma forma de retirar dinheiro de</p><p>circulação e evitar a inflação, além de reforçar o caixa dos governos. É possível</p><p>notar tanto em campanhas estatais quanto privadas, que o sentimento de ódio</p><p>aos japoneses foi particularmente explorado por meio de imagens. Os pôsteres</p><p>talvez tenham sido o meio por intermédio do qual mais se difundiu tais</p><p>mensagens, mesmo se considerarmos os filmes e desenhos animados produzidos</p><p>no mesmo período. Enquanto especialistas divergem sobre os números –</p><p>estimam em cerca de 150 desenhos animados e 50 filmes com mensagens</p><p>antinipônicas mais incisivas-, o total de pôsteres com representações</p><p>antinipônicas pode haver chegado a 1.000, com uma tiragem total que pode</p><p>haver ultrapassado as 500 mil unidades (BLUM, 1976; LINGEMAN, 2003;</p><p>KIMBLE, 2006). Ambos, desenhos animados e pôsteres, comumente teciam</p><p>associações entre japoneses e animais, como jumentos, urubus, cobras e macacos.</p><p>Havia algo, no entanto, mais importante que enfatizar a superioridade cultural e</p><p>social dos estadunidenses em relação aos “japs”: era imperativo impingir-lhes</p><p>inferioridade biológica. Dentre os exemplos mais exacerbados e lamentáveis</p><p>desse tipo de propaganda estão: Bugs Bunny Nips the Nips (1944), dirigido por</p><p>Isadore “Friz” Freleng e distribuído pela Warner Bros; Tokio Jokio (1943),</p><p>dirigido por Norman McCabe e distribuído pela Warner Bros; e You’re a Sap,</p><p>Mr. Jap (1942), dirigido por Dan Gordon e distribuído pela Paramount Pictures</p><p>(COHEN, 2004, p. 49-77; SHULL; WILT, 1987, p. 31-53; SMOODIN, 1993, p.</p><p>71-95)23.</p><p>Os</p><p>governantes estadunidenses acreditavam que era necessário buscar um</p><p>caminho para a vitória com baixo custo de vidas. Para a consecução desse</p><p>objetivo, Roosevelt trabalhou no sentido de envolver a União Soviética na</p><p>Guerra do Pacífico. A decisão de Stálin de participar do conflito estava associada</p><p>à política perseguida pelo Kremlin com o objetivo de garantir à União Soviética</p><p>um papel de potência global na nova ordem mundial em construção. Os</p><p>soviéticos haviam demonstrado enorme capacidade de combate frente às forças</p><p>alemãs, muito superiores às tropas japonesas. Ao final da guerra na Europa, as</p><p>tropas soviéticas encontravam-se muito mais bem armadas e treinadas, embora</p><p>seja plausível supor que estivessem consideravelmente desgastadas em</p><p>consequência do longo período de combates, na maioria das vezes sem</p><p>interrupções e descansos, como ocorria com a maioria das tropas ocidentais. O</p><p>regime autoritário vigente no país e as experiências pregressas, ressalte-se, muito</p><p>dolorosas e a um custo de vidas espantoso, indicavam que aquela sociedade se</p><p>dispunha a sacrificar um número infinitamente superior de combatentes do que</p><p>o tolerado pela sociedade estadunidense. Naquele contexto, os EUA</p><p>desenvolviam, em ritmo frenético, o projeto Manhattan, com vistas a tornar</p><p>realidade o emprego de artefatos nucleares no conflito.</p><p>Nas negociações ocorridas em Ialta, quando indagado sobre a possibilidade</p><p>de a União Soviética entrar em guerra com o Japão, Stálin acenou, a princípio,</p><p>serem indispensáveis seis meses, após o encerramento da guerra na Europa, para</p><p>que fosse possível colocar as forças soviéticas em condições de combate no</p><p>Extremo Oriente. Ainda durante a conferência, no entanto, Stálin concordou em</p><p>declarar guerra ao Japão três meses após o final do conflito europeu. Os líderes</p><p>soviéticos explicavam a demora do seu ingresso na guerra contra o Japão em</p><p>razão das necessidades do conflito na Europa e devido à magnitude da operação</p><p>de deslocamento das forças para o Oriente.</p><p>Antes da capitulação alemã, a justificativa fundamental apresentada por</p><p>Stálin e por seus principais colaboradores vinculava-se ao fato de a URSS</p><p>enfrentar a maior parte das forças do Eixo. Desse modo, justificavam que seria</p><p>impossível manter duas colossais frentes de combate de modo simultâneo.</p><p>Naquele contexto, Stálin tinha consciência de que a garantia dos interesses da</p><p>URSS, conquistados nos embates com as forças do Eixo na Europa Central e</p><p>Oriental, estava associada à supremacia do poder do Exército Vermelho na</p><p>região. O governante soviético lidava com uma equação em que as suas forças</p><p>militares precisavam manter a superioridade na Europa para preservar os</p><p>interesses conquistados. Stálin, no entanto, entendia que os soviéticos</p><p>precisavam ter uma participação robusta na vitória contra o Japão, de modo a</p><p>justificar qualquer possível demanda de expansão da influência soviética naquela</p><p>região do planeta e mesmo uma participação na eventual partilha do Japão.</p><p>A União Soviética, por uma questão estratégica, com vistas a evitar enfrentar</p><p>combates em mais uma frente, havia estabelecido um pacto de não agressão com</p><p>o Japão. Observe-se que Stálin denunciou esse pacto com o Japão no início de</p><p>abril de 1945, sob a alegação de que o país era um aliado da Alemanha e,</p><p>portanto, a auxiliava na guerra contra a União Soviética. Desde então, os</p><p>documentos trocados entre diferentes instâncias do alto escalão do governo</p><p>japonês começaram a indicar o aumento da preocupação com uma possível</p><p>declaração de guerra soviética. Os japoneses, todavia, não foram capazes de</p><p>interpretar de modo apropriado os movimentos políticos que estavam a ocorrer</p><p>em Moscou e prosseguiram a vislumbrar a possibilidade de concretizar um</p><p>acordo com o Kremlin por intermédio da garantia dos interesses e privilégios na</p><p>região. Era um engano funesto, pois, em 15 de abril daquele ano, Stálin já havia</p><p>assegurado aos Aliados que declararia guerra ao Japão três meses após o final do</p><p>conflito na Europa, conforme o acordado anteriormente em Ialta. Desse modo, a</p><p>crença nipônica de que seria possível chegar a um acordo com os soviéticos não</p><p>era mais factível e os japoneses, ao continuarem a alimentar essas expectativas</p><p>irreais, acabavam por imobilizar a sua diplomacia em outras frentes, o que</p><p>custaria muito caro ao Império do Sol Nascente.</p><p>O líder soviético cumpriu o prometido aos Aliados no prazo anunciado, por</p><p>intermédio de uma imensa operação de guerra que culminou na invasão da</p><p>Manchúria, iniciada na madrugada de 8 para 9 de agosto daquele ano. A região,</p><p>ocupada pelo Japão desde 1931, era defendida por cerca de 1.200.000 soldados.</p><p>As forças soviéticas empregadas naquela operação contavam com 1.577.725</p><p>soldados, distribuídos em 89 divisões, contando com 27.086 morteiros e peças</p><p>de artilharia, 1.171 múltiplos lançadores Katyuchas, 5.556 tanques, 3.721 aviões,</p><p>85.819 veículos diversos, além do apoio naval (GLANTZ, 1983, p. 42, table 3). A</p><p>Batalha da Manchúria, muito provavelmente como fruto dos embates da Guerra</p><p>Fria, tornou-se uma das batalhas da Segunda Guerra Mundial esquecidas no</p><p>mundo ocidental. Essa operação constituiu-se, todavia, em uma das mais</p><p>arrojadas e vitoriosas campanhas bélicas de todos os tempos. De fato, os</p><p>soviéticos inclusive superaram as suas próprias expectativas e conquistaram a</p><p>Manchúria (uma área um pouco maior que toda a Europa Ocidental) em</p><p>aproximadamente uma semana. Do lado soviético houve 36.500 feridos e 12 mil</p><p>mortos, já entre os japoneses ocorreram cerca 80 mil mortes e mais 500 mil</p><p>combatentes foram aprisionados (ROBERTS, 2007, p. 293).</p><p>Ao analisar-se o desenrolar da guerra no Extremo Oriente, um dado chama a</p><p>atenção nessa batalha, pois, enquanto os japoneses resistiram bravamente em</p><p>diversos outros cenários, na Manchúria chegou a haver fuga desorganizada. Uma</p><p>possível explicação para o fato é que, diferentemente da terra pátria, na</p><p>Manchúria os soldados não estavam a defender de modo direto a divindade do</p><p>imperador e a terra sacra. É admissível, contudo, supor também que a estratégia</p><p>adequada, a rapidez, a surpresa e a violência da operação soviética tenham</p><p>produzido esse efeito.</p><p>As apreensões do governo Japonês</p><p>Uma mensagem do embaixador japonês em Moscou, datada de 14 de abril,</p><p>interceptada pela inteligência dos EUA, por meio da Operation Magic, que</p><p>decifrava as comunicações inimigas e as repassava à OSS (Office of Strategic</p><p>Services), revelou a preocupação com notícias recebidas por meio de informantes</p><p>de que os soviéticos estavam a deslocar, em direção ao Oriente, cerca de 25 mil</p><p>soldados através da Sibéria. A mensagem informava também o deslocamento de</p><p>aproximadamente 150 aviões e 550 veículos motorizados (ALPEROVITZ, 1995,</p><p>p. 100-101). Os EUA continuaram a acessar as informações japonesas, uma vez</p><p>que a inteligência inimiga desconhecia que eles houvessem quebrado o código</p><p>purple empregado nessas mensagens. De fato, mesmo após a rendição, forças</p><p>imperiais japonesas continuaram a empregar esses códigos (LERNER, 2004).</p><p>Ao longo dos meses de junho e julho novas mensagens trocadas pelo serviço</p><p>diplomático japonês mostravam a preocupação com a movimentação de tropas</p><p>soviéticas em direção ao Extremo Oriente. A interceptação de um comunicado</p><p>do ministro das relações exteriores, Shigenori Togo, a Naotake Sato, embaixador</p><p>japonês em Moscou, em 4 de junho daquele ano, revela a extrema apreensão do</p><p>governo nipônico em relação ao possível ingresso da URSS na guerra.</p><p>Na mensagem interceptada, Togo afirma ser uma questão da máxima</p><p>importância não apenas evitar que a União Soviética entre na guerra, mas</p><p>também induzi-la a adotar uma posição favorável ao Japão. Em adição, o</p><p>ministro recomenda ao embaixador que não perca a oportunidade de conversar</p><p>com os líderes soviéticos (ALPEROVITZ, 1995, p. 121). Alperovitz arrola uma</p><p>grande quantidade de documentos decodificados pela operação Magic ao longo</p><p>daquele período e a leitura dessas mensagens indica a crescente inquietação dos</p><p>líderes japoneses com um possível ataque soviético. Em 30 de junho, a Divisão</p><p>de Inteligência</p><p>do Departamento de Guerra dos EUA, em um documento</p><p>denominado “A situação estimada do inimigo”, apresentava a seguinte análise:</p><p>Acredita-se que muitos japoneses agora considerem a derrota como provável. Os</p><p>crescentes efeitos do bloqueio e a cumulativa devastação provocada pelos bombardeios</p><p>estratégicos devem tornar essa percepção crescentemente mais geral. A entrada da</p><p>União Soviética na guerra poderia finalmente convencer os japoneses da</p><p>inevitabilidade da derrota (ALPEROVITZ, 1995, p. 124, tradução do autor)</p><p>A bomba atômica</p><p>É possível constatar que, a partir dos resultados positivos com os testes</p><p>nucleares em Alamogordo, em 16 de julho de 1945, Truman iniciou o processo</p><p>de exclusão dos soviéticos na participação da construção de uma nova ordem no</p><p>Extremo Oriente, conforme pactuado em Ialta. Com os bombardeios em</p><p>Hiroshima e Nagasaki, ocorridos respectivamente em 6 e 9 de agosto, ele</p><p>procurou definir a guerra antes que os soviéticos conquistassem maior</p><p>participação naquele teatro de operações. Posteriormente, recusou a solicitação</p><p>de Stálin relativa à participação da URSS na rendição japonesa e pressionou os</p><p>soviéticos em relação às ilhas Curilas. Além disso, Truman ordenou a ocupação</p><p>do Porto de Dalian, que, pelos acordos de Ialta, ficaria sob administração</p><p>soviética (PECHATNOV, 2010, p. 96-97). A questão é polêmica e sobre ela</p><p>muito já se escreveu e escrever-se-á. Nos arquivos estadunidenses e da Rússia,</p><p>documentos importantes sobre o assunto continuam com acesso restrito, o que</p><p>torna mais difíceis as análises do problema. Desse modo, é bastante plausível que</p><p>no futuro, quando novos documentos vierem à tona, muitas dúvidas sobre a</p><p>matéria sejam sanadas e, ao mesmo tempo, muitas das certezas hoje existentes</p><p>sejam demolidas. Resta-nos esperar, trabalhar pela liberação desses documentos</p><p>e nos debruçarmos sobre o problema com os materiais de que dispomos.</p><p>Diplomacia atômica?</p><p>Em linhas gerais, a corrente ortodoxa e os neo-ortodoxos sustentam a tese de</p><p>que os bombardeios nucleares às cidades japonesas foram um último recurso</p><p>para pôr fim àquela guerra sangrenta que estava a ceifar a vida de milhares de</p><p>soldados estadunidenses e de civis e militares japoneses. Os defensores dessa</p><p>posição afirmam que o governo japonês se recusava a reconhecer a derrota e a</p><p>aceitar a rendição incondicional conforme os termos decididos pelos EUA e Grã-</p><p>Bretanha em Potsdam. Argumentam, em complemento, que, com o emprego das</p><p>bombas, evitou-se a necessidade da invasão do Japão, que custaria a vida de mais</p><p>de 500 mil jovens estadunidenses, além de mais de um milhão de militares e civis</p><p>japoneses. Em adição, os historiadores ortodoxos ou neo-ortodoxos afirmam</p><p>que, dessa forma, o emprego das bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki é</p><p>perfeitamente justificado, pois salvou incalculáveis vidas de ambos os lados.</p><p>Os historiadores revisionistas defendem a tese de que a bomba foi usada para</p><p>fazer chantagem nuclear com os soviéticos. Eles entendem que, nos EUA, nos</p><p>dias que antecederam os bombardeios nucleares, havia ocorrido mudanças no</p><p>comando militar de guerra em relação à avaliação sobre o desfecho do conflito</p><p>no Japão. Segundo essa perspectiva, indicava-se, em primeiro lugar, que seria</p><p>dispensável o auxílio soviético para derrotar o inimigo. Como resultado, o</p><p>Estado Maior das Forças Armadas foi avisado, em 24 de julho, de que os EUA</p><p>não mais precisariam dos soviéticos para invadir o Japão. Em segundo lugar, já</p><p>havia acenos de uma possível rendição japonesa. Em Potsdam, os representantes</p><p>soviéticos informaram aos representantes dos EUA que haviam sido procurados</p><p>pelos japoneses para intermediar as possíveis negociações. Os soviéticos</p><p>informaram ainda que se recusaram a essa intermediação e que, portanto,</p><p>estavam a informar o assunto aos seus aliados. Os motivos da recusa não ficaram</p><p>claros, mas indicaram que os termos japoneses eram muito vagos. Sabe-se, no</p><p>entanto, que Stálin era defensor ardoroso da rendição incondicional.</p><p>Os historiadores revisionistas, principalmente Alperovitz, associam uma</p><p>mudança no foco da política de Truman em relação à União Soviética com o</p><p>desenvolvimento dos artefatos nucleares. Para esses historiadores, os</p><p>bombardeios nucleares às cidades japonesas foram desnecessários e estavam</p><p>muito mais associados a uma estratégia de limitar as ambições da União</p><p>Soviética na Europa e na Ásia. Alperovitz afirma que Truman procurou</p><p>postergar ao máximo a realização da Conferência de Potsdam com a intenção de</p><p>aguardar os testes nucleares, pois, caso houvesse o sucesso esperado, teria um</p><p>trunfo secreto em suas mãos que lhe daria muitas vantagens na negociação.</p><p>De acordo com esse autor, com o sucesso dos testes nucleares, Truman</p><p>procurou descartar a opção soviética e mesmo evitar o possível ataque do</p><p>Exército Vermelho ao Japão. Acrescenta que a estratégia desenvolvida durante</p><p>aquele verão em relação à conclusão da guerra no Pacífico, baseada na entrada da</p><p>URSS na guerra e na oferta de garantias à vida do imperador, foi abandonada e</p><p>foram iniciados os preparativos para os bombardeios nucleares. Afirma, por</p><p>exemplo, que a União Soviética não foi chamada a assinar o ultimato ao governo</p><p>japonês emitido em Potsdam e que também não foram oferecidas as garantias à</p><p>vida do imperador e à manutenção da coroa, que eram fundamentais à desejada</p><p>rendição japonesa.</p><p>Nessa linha de argumento apresentada por Alperovitz, tais medidas não</p><p>foram adotadas, pois se seguia uma estratégia que previa a continuidade do</p><p>conflito até o emprego das armas nucleares. Caso os soviéticos assinassem o</p><p>documento, confirmassem o seu ingresso na guerra e se abrisse a possibilidade</p><p>da rendição em termos considerados aceitáveis pelos japoneses, a estratégia da</p><p>demonstração do poderio nuclear ficaria inviabilizada. Dessa perspectiva, seria</p><p>perdida a oportunidade de demonstrar aos soviéticos o novo poderio militar dos</p><p>EUA e, com isso, perder-se-ia a possibilidade de limitar as suas ambições. Resulta</p><p>dessa linha de análise o entendimento, apresentado de forma predominante por</p><p>historiadores revisionistas, de que os bombardeios nucleares se constituem</p><p>muito mais no primeiro ato da Guerra Fria do que no epílogo da Segunda</p><p>Guerra Mundial (ALPEROVITZ, 1995).</p><p>Para reforçar a sua linha de argumento, Alperovitz relaciona muitos</p><p>documentos em que estão expressas as condenações ao emprego dos artefatos</p><p>nucleares por parte de militares estadunidenses de alta patente e que ocupavam</p><p>postos-chave no Comando de Guerra. Dentre os militares que manifestaram a</p><p>sua oposição ao bombardeio nuclear do Japão, merecem destaque os generais</p><p>George C. Marshall, comandante das Forças Armadas dos EUA; Dwight</p><p>Eisenhower, comandante das forças aliadas na Europa; Douglas MacArthur,</p><p>comandante das forças dos EUA no Pacífico; almirante Ernst J. King,</p><p>comandante da frota naval dos EUA; almirante Chester W. Nimitz, comandante</p><p>da frota dos EUA no Pacífico, e o general Henry Harley “Hap” Arnold,</p><p>comandante da Força Aérea dos EUA. Como é possível verificar, segundo</p><p>Alperovitz, os militares que ocupavam as posições mais importantes nas forças</p><p>armadas dos EUA opuseram-se ao uso da bomba atômica contra o Japão.</p><p>Marshall assim se expressou em 29 de maio, em uma reunião, conforme</p><p>anotado no memorando assinado por John J. McCloy:</p><p>General Marshall disse que essas armas deveriam primeiro ser empregadas</p><p>diretamente contra objetivos militares como uma grande instalação naval e então se</p><p>não houver resultado provocado pelo efeito dela, ele pensa que deveríamos designar</p><p>um número de grandes áreas industriais, que o povo deveria ser advertido a</p><p>abandonar – dizendo aos japoneses que pretendíamos destruir aqueles centros [...]</p><p>Todo esforço deve ser feito para deixar nossos registros de clara advertência. Nós</p><p>precisamos evitar com esses métodos, o opróbrio que se deve seguir a um mal emprego</p><p>dessa força (ALPEROVITZ, 1995, p. 53, tradução do autor).</p><p>O Almirante William D. Leahy, então presidente do Joint Chief Staff, afirmou,</p><p>sete semanas antes do primeiro bombardeio nuclear, que, em sua opinião,</p><p>do Pacto de Varsóvia invadem a Hungria.</p><p>1957</p><p>7 de março – aprovação da Doutrina Eisenhower pelo Congresso dos EUA.</p><p>4 de outubro – URSS lança o Sputinik I, primeiro satélite artificial a orbitar a</p><p>Terra.</p><p>3 de novembro – URSS lança o Sputinik II com a cadela Laika.</p><p>1958</p><p>16 de junho – Imre Nagy é executado sob a acusação de traição.</p><p>Julho – Nasa inicia o projeto Mercúrio.</p><p>1959</p><p>1º de janeiro – Vitória da Revolução em Cuba.</p><p>17 de setembro – Nikita Kruschev visita os EUA.</p><p>28 de setembro – Discurso de Kruschev em Moscou: “Paz e Progresso precisa</p><p>triunfar em nosso tempo”.</p><p>1960</p><p>1º de maio – O avião espião dos EUA U-2 foi derrubado em território soviético</p><p>(prisão do piloto e crise diplomática).</p><p>1961</p><p>3 de janeiro – Rompimento de relações diplomáticas entre os EUA e Cuba.</p><p>20 de janeiro – Posse de John F. Kennedy como presidente dos EUA.</p><p>1º de março – Kennedy cria o “Peace Corps”.</p><p>17 de abril – Fracasso da invasão de Cuba por paramilitares treinados pelos</p><p>EUA.</p><p>12 de abril – Iuri Gagarin torna-se o primeiro ser humano a orbitar a Terra.</p><p>17 de agosto – Início da construção do Muro de Berlim.</p><p>Agosto – Criação da Aliança para o Progresso.</p><p>2 de dezembro – Fidel Castro afirma ser marxista leninista e que Cuba adotará o</p><p>comunismo.</p><p>1962</p><p>Outubro – Crise provocada pela descoberta da instalação de mísseis soviéticos</p><p>em Cuba.</p><p>1963</p><p>5 de agosto – Assinatura do primeiro acordo sobre limitações de testes nucleares</p><p>entre EUA, URSS e Grã-Bretanha.</p><p>22 de novembro – Assassinato do presidente dos EUA J. F. Kennedy, que é</p><p>substituído por seu vice, Lyndon B. Johnson.</p><p>1964</p><p>31 de março-2 de abril – Golpe civil-militar, com apoio dos EUA, no Brasil.</p><p>Agosto – Incidente do Golfo de Tonkin (Guerra da Indochina).</p><p>15 de outubro – Golpe e deposição do premiê soviético Nikita Kruschev, que é</p><p>substituído por Leonid Brejnev.</p><p>16 de outubro – China efetua o seu primeiro teste nuclear.</p><p>1965</p><p>8 de março – EUA enviam as primeiras unidades de combate em solo ao Vietnã</p><p>(tem início a escalada da guerra).</p><p>28 de abril – Estados Unidos invadem a República Dominicana.</p><p>1966-1976</p><p>Revolução Cultural na China.</p><p>1968</p><p>Conflitos estudantis em diferentes partes do mundo.</p><p>Crescem os protestos contra a guerra nos EUA.</p><p>31 de janeiro – Ofensiva do Tet (Guerra do Vietnã/Guerra da Indochina).</p><p>20 de agosto – Forças do Pacto de Varsóvia invadem Tchecoslováquia e põem</p><p>fim à Primavera de Praga.</p><p>1969</p><p>20 de janeiro – Posse de Richard Nixon como presidente dos EUA.</p><p>18 de março – EUA iniciam bombardeios ao Camboja e expandem a guerra na</p><p>Indochina.</p><p>20 de julho – Estados Unidos pousam Apolo 11 na Lua.</p><p>1970</p><p>Abril – Nixon expande a Guerra do Vietnã para o Camboja.</p><p>17 de abril – Início das negociações do Salt I (Acordo de limitação de armas</p><p>nucleares).</p><p>4 de maio – Nos EUA, quatro estudantes da Kent State University são</p><p>assassinados pela polícia em protestos contra a guerra.</p><p>1971</p><p>13 de junho – Daniel Ellsberg publicou os “Pentagon Papers”.</p><p>25 de outubro – República Popular da China é admitida na ONU.</p><p>1972</p><p>20 de fevereiro – Nixon visita a China e inicia negociações para o</p><p>estabelecimento de relações entre os dois países</p><p>27 de maio – Salt I, acordo de limitação de armas nucleares, é assinado por EUA</p><p>e URSS.</p><p>1973</p><p>27 de janeiro – Assinado cessar fogo entre EUA e Vietnã do Norte e o fim do</p><p>envolvimento dos EUA no conflito.</p><p>27 de junho – Leonid Brejnev viaja aos EUA para discutir acordos de</p><p>cooperação associados à Détente.</p><p>11 de setembro – Golpe de Estado no Chile com envolvimento dos EUA.</p><p>1974</p><p>27 de junho – Nixon viaja a Moscou para continuar negociações com Brejnev.</p><p>9 de agosto – Nixon renuncia para evitar o impeachment em decorrência do caso</p><p>Watergate. Seu vice, Gerald Ford, é empossado.</p><p>23 de novembro – Ford vai a Vladvostok encontrar-se com Brejnev.</p><p>1975</p><p>30 de abril – Fim da Guerra do Vietnã com a reunificação do país após a vitória</p><p>do Vietnã do Norte.</p><p>25 de junho – Independência de Moçambique.</p><p>1º de agosto – Assinatura do Acordo de Helsinki.</p><p>11 de novembro – Independência de Angola.</p><p>1975-2002 – Guerra Civil em Angola</p><p>1977</p><p>20 de janeiro – Posse de Jimmy Carter como presidente dos EUA.</p><p>1977-1992 – Guerra Civil em Moçambique</p><p>1978</p><p>17 de setembro – Menachem Begin e Anuar Sadat assinam do acordo de paz</p><p>entre Israel e Egito em Camp David (EUA), com mediação de Jimmy Carter.</p><p>1979</p><p>1º de janeiro – Estabelecimento formal de relações diplomáticas entre os EUA e</p><p>a República Popular da China.</p><p>25 de dezembro – invasão e ocupação do Afeganistão pela URSS.</p><p>1980</p><p>31 de agosto-17 de setembro – Criação do Solidariedade na Polônia.</p><p>1981</p><p>20 de janeiro – Posse de Ronald Reagan como presidente dos EUA.</p><p>1982</p><p>10 de novembro – Morte do líder soviético Leonid Brejnev, que é sucedido por</p><p>Yuri Andropov.</p><p>1983</p><p>25 de novembro – Invasão de Granada pelos EUA.</p><p>1984</p><p>9 de fevereiro – Morte do líder soviético Yuri Andropov, que é sucedido por</p><p>Konstantin Chernenko.</p><p>1985</p><p>10 de março – Morte do líder soviético Konstantin Chernenko, que é sucedido</p><p>por Mikhail Gorbachev.</p><p>Novembro – Encontro de Gorbachev e Reagan em Viena.</p><p>1986</p><p>25 de fevereiro-6 de março – Durante o 27º Congresso do PCUS, Gorbachev</p><p>apresenta as propostas da Perestroika e da Glasnost.</p><p>26 de abril – Acidente nuclear em Chernobyl.</p><p>1987</p><p>8 de dezembro – Gorbachev e Reagan assinam o Tratado de Limitação de Armas</p><p>de médio alcance.</p><p>1989</p><p>11 de janeiro – Reformas na Hungria garantem liberdade individual e criação de</p><p>partidos e organizações.</p><p>15 de fevereiro – Conclusão da retirada das tropas soviéticas do Afeganistão.</p><p>26 de março – Comunistas derrotados nas eleições. Yeltsin vence em Moscou e</p><p>consolida oposição a Gorbachev.</p><p>15 de abril-4 de junho – Protestos na Praça da Paz Celestial (Tian’anmen), na</p><p>China (evento também conhecido como Massacre da Praça da Paz Celestial).</p><p>2 de maio-setembro – Abertura da fronteira da Hungria com a Áustria.</p><p>11 de maio – Gorbachev anuncia redução de forças nucleares na Europa</p><p>Oriental.</p><p>4 de junho – Vitória do Solidariedade nas eleições na Polônia.</p><p>16-20 de outubro – O Parlamento da Hungria aprova o sistema multipartidário</p><p>e a realização de eleições diretas para presidente.</p><p>Outubro – crescimento da crise política na Alemanha Oriental (RDA).</p><p>18 de outubro – Renúncia de Erich Honecker, secretário geral do Partido</p><p>Socialista Unificado da RDA.</p><p>23 de outubro – É criada a República da Hungria.</p><p>4 de novembro – Intensificação das manifestações de massa em Berlim Oriental.</p><p>9 de novembro – Derrubada do muro de Berlim.</p><p>24 de novembro – Comunistas renunciam ao governo na Tchecoslováquia.</p><p>1-3 de dezembro – Encontro de Gorbachev e Reagan para discutirem as</p><p>mudanças na Europa Oriental.</p><p>22 de dezembro – Queda do governo romeno e execução de Nicolau Ceausescu.</p><p>1990</p><p>11 de março – Lituânia declara a sua independência da URSS.</p><p>18 de março – Derrota comunista nas eleições da Alemanha Oriental.</p><p>1991</p><p>12 de junho – Yeltsin vence as eleições em Moscou e, pouco depois, declara a</p><p>independência da Rússia.</p><p>1º de julho – Dissolução do Pacto de Varsóvia.</p><p>19 de agosto – Tentativa de golpe contra Gorbachev. Boris Yeltsin fortalece-se e</p><p>aparece como “salvador” de Gorbachev.</p><p>20 de agosto-16 de dezembro – Estônia, Latávia, Ucrânia, Bielorrússia,</p><p>Moldávia, Azerbaijão, Uzbequistão, Quirguízia, e Tadjiquistão, Armênia,</p><p>Turcomenistão, Chechênia, Ossétia, Nagorno Karabakh, Kazaquistão declaram</p><p>suas independências.</p><p>8 de dezembro – Rússia, Ucrânia e Bielorrússia decidem pela extinção da URSS e</p><p>criam a Comunidade de Estados Independentes (CEI). Gorbachev denúncia a</p><p>ilegalidade da decisão.</p><p>12 de dezembro – O Soviet Supremo ratificou o acordo de criação da CEI.</p><p>21 de dezembro – 11 das 12 repúblicas soviéticas criam uma federação de</p><p>Estados independentes.</p><p>25 de dezembro – Renúncia de Gorbachev.</p><p>26 de dezembro – Dissolução da URSS.</p><p>Glossário das principais correntes historiográficas relacionadas à</p><p>Guerra Fria</p><p>Ortodoxia estadunidense</p><p>A ortodoxia estadunidense estruturou-se a partir dos escritos dos elaboradores</p><p>da política externa dos EUA. George Frost Kennan, criador da Doutrina da</p><p>Contenção, é o maior expoente dessa corrente. A partir de 1949, no entanto, o</p><p>diplomata distanciou-se</p><p>a</p><p>rendição japonesa podia ser negociada em termos considerados aceitáveis pelo</p><p>governo daquele país e que, ao mesmo tempo, deveriam ser garantidas as</p><p>condições de defesa dos EUA contra futuras agressões (ALPEROVITZ, 1995, p.</p><p>324). Outro importante militar, major-general Curtis LeMay, considerado um</p><p>hawk, asseverou em coletiva à imprensa, realizada em 20 de setembro de 1945:</p><p>LeMay: A guerra terminaria em duas semanas mesmo que os soviéticos não entrassem</p><p>[na guerra com o Japão] e sem a bomba atômica</p><p>Imprensa: quer dizer que, senhor? Sem os soviéticos e a bomba atômica?</p><p>LeMay: sim, com os B-29....</p><p>Imprensa: General, por que usar a bomba atômica? Por que nós a usamos então?</p><p>LeMay: Bem, outras pessoas não estavam convencidas....</p><p>Imprensa: Não teriam eles se rendido por causa da bomba?</p><p>LeMay: a bomba atômica não tem nada a ver com o final da guerra. (ALPEROVITZ,</p><p>1995, p. 336, tradução do autor).</p><p>Alperovitz relaciona diversas passagens com excertos de manifestações do</p><p>general Dwight Eisenhower em que ele expressa a sua oposição ao emprego da</p><p>bomba atômica. Em uma delas, citada aqui a título exemplar, o general afirma:</p><p>“Eu expressei o desejo de que nós nunca tivéssemos que usar essa coisa [a bomba</p><p>atômica] contra qualquer inimigo, porque eu não gostaria de ver os Estados</p><p>Unidos liderar a introdução na guerra de uma coisa tão horrível e destrutiva</p><p>como essa nova arma era descrita ser.” (ALPEROVITZ, p. 353, tradução do</p><p>autor).</p><p>A linha de análise expressa por Alperovitz em sua obra seminal leva à</p><p>conclusão de que o emprego da bomba atômica, do ponto de vista militar, foi</p><p>desnecessário e poderia ser evitado se os EUA houvessem criado as condições</p><p>mínimas para uma rendição aceitável por parte do governo japonês. Desse ponto</p><p>vista, depreende-se que a decisão teve um cunho político acentuado e estava</p><p>muito mais associada à intenção de demonstrar o poderio da nova arma ao</p><p>Kremlin e reduzir o peso da União Soviética na nova ordem mundial. Truman,</p><p>Byrnes e Stimson avaliaram que, com o domínio da tecnologia nuclear e após a</p><p>demonstração prática do poderio da nova arma, seria possível impor a vontade</p><p>dos EUA à União Soviética. Essa avaliação não se mostrou tão correta, pois</p><p>Stálin, embora houvesse ficado impactado quando soube da nova arma, concluiu</p><p>que a bomba era uma novidade militar importante, mas, como disse ao líder</p><p>comunista polonês Gomulka, no calor dos eventos, eram os exércitos que</p><p>decidiam as guerras (ROBERTS, 2007, p. 293 e p. 362).</p><p>Tsuyoshi Hasegawa afirma que o impacto da invasão soviética à Manchúria</p><p>influenciou mais os governantes japoneses a aceitarem a rendição nos termos</p><p>definidos em Potsdam do que os bombardeios nucleares. Para o autor, a</p><p>neutralidade soviética, tanto política quanto militar, era fundamental para a</p><p>estratégia do Japão. O autor enfatiza o fato de que o governo japonês ansiava a</p><p>intermediação soviética para negociar termos de rendição aceitáveis. Sublinha</p><p>que o ataque soviético à Manchúria destruiu essa perspectiva (HASEGAWA,</p><p>2005, p. 295-296).</p><p>O autor acrescenta que, sem a rápida rendição japonesa, as forças soviéticas</p><p>continuariam a avançar para além da Manchúria, da Coreia, das ilhas Curilas e da</p><p>ilha Sacalina. Dessa forma, entende que membros do governo japonês se</p><p>preocuparam com o impacto desse avanço soviético no Extremo Oriente. Por</p><p>intermédio de abordagem em termos da história contrafactual, e com todos os</p><p>riscos a ela inerentes, Hasegawa traça a hipótese de que Truman certamente</p><p>tentaria barrar a invasão do Exército Vermelho a Hokkaido (a segunda maior ilha</p><p>do Japão e a que fica mais ao Norte), mas acredita que devido, ao alto custo de</p><p>vidas humanas nessa ocupação, poderia conceder algum grau de participação aos</p><p>soviéticos na administração do Japão. Para o autor, o receio da ocupação</p><p>soviética foi fundamental na decisão pela rendição japonesa nos termos de</p><p>Potsdam (HASEGAWA, 2005, p. 296). Outro autor enfatiza que somente a</p><p>bomba não levaria à imediata rendição japonesa e afirma que há quase um</p><p>consenso de que a invasão soviética à Manchúria teve profundo impacto no</p><p>Japão e apressou a sua rendição (ROBERTS, 2007, p. 293).</p><p>Hasegawa afirma que a posição japonesa não mudou muito após o</p><p>bombardeio a Hiroshima e nem mesmo a Nagasaki. Aponta como evidência a</p><p>continuidade das discussões e a ausência de consenso entre os Seis Grandes24. O</p><p>grupo estava dividido ao meio. Os três moderados eram propensos a estabelecer</p><p>a paz nos termos do ultimato de Potsdam, desde que preservados a vida e o</p><p>trono do imperador (primeiro ministro, Kantaro Suzuki; ministro das Relações</p><p>Exteriores, Shigenori Togo; ministro da Marinha, Mitsumasa Yonai). De forma</p><p>diferente, os três integrantes que compunham a chamada linha dura (ministro da</p><p>Guerra, Korechika Anami; comandante do Exército, Yoshijiro Umezu;</p><p>comandante da Marinha, Soemu Toyoda) não viam diferenças entre a nova arma</p><p>e as anteriores (BESS, 2006, p. 215). Hasegawa argumenta que, sem a invasão</p><p>soviética, muito provavelmente os EUA ver-se-iam frente ao dilema de terem</p><p>que jogar não duas, mas três, quatro ou muito mais bombas até que a rendição</p><p>japonesa ocorresse (HASEGAWA, 2005, p. 298).</p><p>Os historiadores ortodoxos e neo-ortodoxos tendem a justificar o emprego</p><p>das armas nucleares com base na alegação de que os japoneses se recusavam a</p><p>aceitar os termos de rendição impostos pelos aliados com a declaração de</p><p>Potsdam. Afirmam que as bombas não apenas pouparam a vida de centenas de</p><p>milhares de jovens estadunidenses quanto dos próprios japoneses, pois a</p><p>ocupação implicaria batalhas sangrentas e cruéis (MADDOX, 2007).</p><p>Historiadores revisionistas criticam essa perspectiva e centram a sua</p><p>contestação em dois pontos. Primeiro, os japoneses estavam a buscar a</p><p>intermediação soviética para conseguir melhores termos para a rendição. Em</p><p>segundo, mostram que as avaliações do próprio comando de guerra dos EUA</p><p>haviam mudado significativamente nos dias que antecederam o ataque nuclear.</p><p>Acrescentam que já se estimava não mais ser necessária uma operação de</p><p>desembarque em massa (que implicaria grandes perdas humanas), pois, com o</p><p>embargo imposto e com a entrada da URSS na guerra, avaliava-se que os</p><p>conflitos chegariam até o início de novembro ou, em um cenário menos</p><p>promissor, até dezembro de 1945 (ALPEROVITZ, 1995, p. 645).</p><p>Para Robert J. Maddox, existe um mito fundado na crença de que os EUA</p><p>pudessem derrotar o Japão e ocupá-lo com baixa taxa de fatalidades, como tem</p><p>defendido Barton Bernstein (MADDOX, 2007, p. 4). Segundo Bernstein (1995)</p><p>essas perdas girariam entre 25 e 46 mil vidas de soldados dos EUA. Maddox</p><p>trabalha com uma estimativa de 500 mil mortes, divulgada à época por Truman</p><p>e, posteriormente, defendida por Stimson em artigo publicado em 1947.</p><p>Maddox considera também um mito a avaliação de que se fossem oferecidas</p><p>garantias de vida ao imperador japonês seria possível chegar a termos aceitáveis</p><p>de rendição para os japoneses. Maddox (2007, p. 7-11) questiona as evidências</p><p>apresentadas por Alperovitz e o acusa de desvirtuá-las, por meio da omissão de</p><p>palavras ou frases e pela descontextualização de muitos problemas. Na mesma</p><p>linha de raciocínio, Dennis Giangrieco apresenta previsões ainda mais</p><p>pessimistas sobre a possível invasão e ocupação das ilhas japonesas. Para</p><p>corroborar o seu ponto de vista, cita um memorando escrito pelo ex-presidente</p><p>Hoover a Truman com estimativas de perdas humanas a variar de 500 mil a um</p><p>milhão de soldados dos EUA (GIANGRECO, 2007, p. 92). Sadao Asada afirma</p><p>que os bombardeios nucleares a Hiroshima e a Nagasaki foram fundamentais</p><p>para que os moderados dos Seis Grandes, defensores da rendição nos termos de</p><p>Potsdam, ganhassem força e conseguissem por fim à guerra (ASADA, 2007, p.</p><p>54).</p><p>De outro ponto de vista, Michael Bess analisa de forma detalhada um</p><p>conjunto de doze questões relacionadas ao final da Guerra do Pacífico e aos</p><p>bombardeios a Hiroshima e Nagasaki. O autor as avalia sempre a partir do</p><p>escopo da escolha moral e indaga a possibilidade de chegar a termos satisfatórios</p><p>para a rendição japonesa sem</p><p>que fossem necessários os bombardeios nucleares.</p><p>Por meio de indagações pontuais, inicia o debate a perguntar se era necessário</p><p>bombardear o Japão com armas nucleares para conseguir a sua rendição. Conclui</p><p>que não era necessário, pois os aliados encaminhavam-se para derrotar o Japão</p><p>com ou sem a bomba.</p><p>Bess sublinha que a Operação Olimpic já estava planejada para novembro</p><p>daquele ano, com a previsão de desembarque em massa; lembra que já havia o</p><p>plano para um segundo e definitivo ataque ao Japão (Operação Coronet), previsto</p><p>para a primavera de 1946. O autor aponta, contudo, que mesmo os membros</p><p>moderados do governo japonês demandavam a garantia de que o imperador</p><p>Michinomiya Hirohito permanecesse no trono, defendiam a não ocupação do</p><p>Japão, o controle da desmobilização do pós-guerra pelo governo japonês e o</p><p>julgamento de civis e militares por cortes japonesas. Segundo Bess, como essas</p><p>condições eram inaceitáveis para os aliados, os conflitos tenderiam a se</p><p>prolongar por mais tempo que o esperado (BESS, 2006).</p><p>Bess, porém, afirma que seria uma distorção da história desenhar um retrato</p><p>dessa situação como clara e sem ambiguidades e sublinha que o momento era de</p><p>grande confusão e de mudanças diárias. Entende que evoluções na conjuntura</p><p>interna japonesa poderiam reforçar a posição daqueles que defendiam a busca de</p><p>uma rápida paz por meio de possível acordo (BESS, 2006 p. 200-201).</p><p>O autor indaga se a bomba nuclear era diferente das outras armas e responde</p><p>que, em linhas gerais, não era. Aponta os dados sobre a destruição provocada</p><p>pelos bombardeios convencionais em cidades como Tóquio, Dresden,</p><p>Hamburgo, entre outras. Ao final enfatiza, todavia, que, enquanto nos</p><p>bombardeios convencionais as vítimas são afetadas de imediato, os efeitos da</p><p>bomba atômica continuaram a matar e a impor sofrimentos atrozes à população</p><p>japonesa, como decorrência dos efeitos da radiação. Nesse aspecto, ele diferencia</p><p>os artefatos nucleares dos armamentos convencionais (BESS, 2006, p. 201-210).</p><p>Bess diverge de Hasegawa e defende que os bombardeios nucleares</p><p>apressaram a rendição japonesa, mas considera relevante a entrada soviética no</p><p>conflito. O mesmo autor interpreta o ultimato exarado em Potsdam de forma</p><p>distinta de Hasegawa. Para ele, o documento procurava demonstrar aos</p><p>japoneses como era mais vantajoso aceitar a rendição do que continuar um</p><p>combate impossível de ser vencido e que somente acrescentaria mais destruição e</p><p>sofrimento. Ressalta que a declaração foi endereçada a todas as facções do</p><p>governo japonês e oferecia garantias ao povo e ao país no pós-guerra, estabelecia</p><p>que o Japão retornasse à democracia e que os criminosos de guerra fossem</p><p>punidos (BESS, 2006, p. 210-211). Nesse ponto, é possível problematizar os</p><p>dois últimos aspectos dessa interpretação, uma vez que as noções de democracia</p><p>no Japão eram rudimentares e que a maior parte da população não considerava</p><p>os seus líderes como criminosos de guerra. Acrescento que boa parte dos súditos</p><p>estava disposta a sacrificar a vida pelo imperador e pela honra do Japão. Desse</p><p>modo, esse ponto de vista do autor não me parece sustentável.</p><p>Bess detalha os combates travados na defesa das ilhas japonesas e ressalta o</p><p>altíssimo índice de fatalidade entre os combatentes e civis japoneses. Avalia que o</p><p>governo continuava a preparar o Ketsu Go (Operação Decisiva) com o intuito de</p><p>tornar a ocupação do território japonês uma operação sangrenta. Nessa</p><p>perspectiva, o governo japonês acreditava que em algum momento os aliados</p><p>fossem forçados a definir termos de rendição aceitáveis para o país. O autor</p><p>sublinha o treinamento da população para ações de guerrilha para a defesa de</p><p>Kyushu (a terceira maior ilha do Japão e a que fica mais ao Sul). Acrescenta que</p><p>entre janeiro e junho de 1945 os efetivos para a defesa da ilha saltaram de 150</p><p>mil para aproximadamente 545 mil combatentes.</p><p>Na continuidade, Bess afiança que Hirohito aprovava essa política até</p><p>meados de julho, mas adverte que o imperador começou a modificar a sua</p><p>posição na primeira semana de agosto, quando se tornam perceptíveis os sinais</p><p>da sua relutância em dar continuidade ao conflito. Segundo ele, Hirohito e os</p><p>moderados começam a buscar oportunidades para uma solução negociada</p><p>(BESS, 2006, p. 212-213). Sem consenso, porém, a resposta do governo japonês</p><p>ao ultimado de Potsdam foi efetuada, de forma bastante vaga, em 28 de julho.</p><p>Nela, foi empregado o termo Mokusatsu, que literalmente significaria “matar com</p><p>o silêncio”. Bess, contudo, indica que a expressão foi interpretada no sentido de</p><p>que o ultimato deveria ser ignorado, tratado com o silêncio. Bess sublinha que</p><p>para Coughlin esse foi um grande erro de interpretação, pois o termo possuía um</p><p>sentido dúbio que abria as portas para a negociação (COUGHLIN, 1953). O</p><p>autor pondera um conjunto de informações e avaliações de outros especialistas e</p><p>ao final conclui que a luta pela ocupação do Japão seria sangrenta.</p><p>Bess considera que mesmo após o bombardeio a Hiroshima (6 de agosto) e a</p><p>invasão soviética à Manchúria (madrugada de 8 para 9 do mesmo mês), o grupo</p><p>linha dura mantinha-se coeso e a votação continua três a três. Informa que</p><p>mesmo com a chegada da notícia do bombardeio a Nagasaki a situação não se</p><p>alterou de modo significativo e que, então já na madrugada do dia 10, o</p><p>imperador rompeu a sua habitual posição de neutralidade e afirmou que havia</p><p>chegado o momento de “suportar o insuportável” e aceitou o ultimato de</p><p>Potsdam na forma indicada pelos moderados. Lembra ainda que houve tentativa</p><p>de articulação de golpe e que muitos militares se suicidaram após saberem da</p><p>decisão do imperador (BESS, 2006, p. 216-217).</p><p>Esse autor avalia que mesmo sem as bombas atômicas e sem a invasão</p><p>soviética os japoneses inevitavelmente se renderiam, mas acredita que a</p><p>ocupação do Japão poderia levar a um banho de sangue. A partir da perspectiva</p><p>contrafactual, desenvolve hipóteses de caminhos alternativos para chegar à</p><p>rendição japonesa. Inicia a sua reflexão com a possibilidade da flexibilização dos</p><p>termos de rendição. Acrescenta a hipótese de continuidade dos bombardeios</p><p>convencionais e do bloqueio até a submissão total do Japão.</p><p>Na sequência, Bess avalia a proposta de emissão de uma advertência para a</p><p>evacuação e posterior bombardeio nuclear de uma área isolada para demonstrar</p><p>o poderio da nova arma. Por fim, elenca a combinação desses fatores e conclui</p><p>que a guerra poderia perdurar por mais seis meses, sem a invasão e sem a bomba.</p><p>Aponta, no entanto, que, dessa forma, as fatalidades poderiam ser maiores, pois a</p><p>combinação de bombardeios com bloqueio levaria inclusive ao risco de fome</p><p>generalizada e de mortalidade em massa (BESS, 2006, p. 218-230).</p><p>Bess critica os bombardeios nucleares às cidades japonesas e censura o fato</p><p>de os EUA não advertirem o governo inimigo, caso houvesse a recusa à rendição.</p><p>O autor afirma ainda que foi perdida a grande oportunidade avisar o adversário e</p><p>depois, sob inspeção internacional bombardear áreas isoladas, com o objetivo de</p><p>mostrar o poder destrutivo da nova arma. Entretanto, nesse aspecto em</p><p>concordância com os ortodoxos e neo-ortodoxos, Bess conclui que os</p><p>bombardeios salvaram vidas, pois muito mais gente morreria na continuidade do</p><p>conflito. Apesar dessa posição, Bess, reconhece que corria uma mudança no</p><p>posicionamento do imperador e se delineava também a possibilidade,</p><p>considerada pelo próprio autor, de que, com a evolução da situação, fosse</p><p>possível chegar a um termo pela rendição.</p><p>Do ponto de vista ético, acrescento a necessidade imperiosa de se diferenciar</p><p>as fatalidades de envolvidos em combate daquelas provenientes de cidades</p><p>aniquiladas por um único artefato, sem qualquer possibilidade de defesa para os</p><p>seus habitantes. É óbvio que os bombardeios a Dresden, Hamburgo, Tóquio,</p><p>Londres, Berlim e Osaka provocaram milhares de vítimas civis indefesas. Muitas</p><p>cidades japonesas foram arrasadas por bombas incendiárias, pois as suas</p><p>construções eram predominantemente de madeira, tornando-se verdadeiras</p><p>fornalhas humanas. Apesar disso,</p><p>identifico diferenças relevantes entre o</p><p>emprego desse tipo de bombardeio e a opção pelos bombardeios nucleares.</p><p>Bess acredita que o bombardeio a Nagasaki foi precipitado e desnecessário.</p><p>O autor conclui que se construiu um mito de que as bombas atômicas tenham</p><p>sido empregadas apenas para salvar vidas. Lembra que os bombardeios nucleares</p><p>não foram usados como últimos recursos frente a um inimigo que não cedia após</p><p>todas as tentativas esgotadas. Considera factível a hipótese de que foram</p><p>empregadas com o intuito de evitar a necessidade de os soviéticos entrarem na</p><p>guerra e que, em consequência, participassem da ocupação e da partilha do Japão</p><p>(BESS, 2006, p. 236-242)</p><p>Nesse tópico, em grande parte, as conclusões do autor foram baseadas no</p><p>trabalho pregresso de Hasegawa, já referenciado neste texto. Bess (2006, 231-</p><p>236) adverte que não se pode concluir, a partir da interpretação de Hasegawa,</p><p>que o emprego das bombas atômicas tinha como primeiro objetivo evitar que a</p><p>URSS entrasse na Guerra do Pacífico. Esse é um ponto central na diferença entre</p><p>as posições dos revisionistas, de Hasegawa e de Bess. Nenhum deles adota o</p><p>ponto de vista da ortodoxia, porém as nuanças são bastante demarcadas e em</p><p>alguns pontos há aproximações das posições de Bess com aquelas defendidas</p><p>pela corrente ortodoxa.</p><p>De um lado, tanto os historiadores ortodoxos quanto Bess sustentam que os</p><p>bombardeios nucleares salvaram milhares, segundo eles, talvez mais de um</p><p>milhão de vidas, o que é uma questão controversa e de difícil sustentação, pois</p><p>esse raciocínio tem por base a cristalização dos posicionamentos entre os Seis</p><p>Grandes. Não me parece que essa fosse a situação. De outro, Tanto Hasegawa</p><p>quanto Bess compartilham com os revisionistas as críticas ao emprego dos</p><p>bombardeios nucleares, embora com nuanças que demarcam posicionamentos</p><p>distintos.</p><p>Em relação a esse debate, sublinho a existência da possibilidade da</p><p>intervenção do imperador, como, de fato, o fez, quando considerou que a</p><p>continuidade da guerra levaria à completa destruição do Japão. Parece-me</p><p>verossímil a pressuposição de que nos primeiros dias de agosto de 1945, além</p><p>dos moderados, o imperador também caminhava no sentido de encontrar uma</p><p>possibilidade de negociação que evitasse a completa ruína do império. Em</p><p>decorrência, vejo a possibilidade de aceitar a rendição como uma evolução</p><p>natural da relutância de Hirohito em dar continuidade ao conflito sangrento e</p><p>impossível de ser vencido. Desse ponto de vista, os bombardeios nucleares às</p><p>cidades japonesas foram desnecessários e as justificativas para o seu emprego são</p><p>inaceitáveis. Para finalizar, sublinho a crítica do historiador japonês Tadashi</p><p>Saito, para quem havia uma postura hipócrita dos governos japoneses ainda ao</p><p>final do século XX, que continuavam a não reconhecer as suas responsabilidades</p><p>pelas muitas atrocidades cometidas pelas suas topas, principalmente na chamada</p><p>esfera de coprosperidadede. A título exemplar Saito menciona o Massacre de</p><p>Nanquim e a escravização sexual de mulheres em regiões ocupadas pelo Japão.</p><p>Saito cobra empenho dos historiadores para enfrentar esse debate e ressalta que</p><p>o governo de Tóquio precisa assumir a culpa pelos crimes de guerra japoneses</p><p>para, assim, conquistar a autoridade moral e exigir, em tribunais internacionais, o</p><p>julgamento dos EUA pelos crimes contra a humanidade, cometidos com os</p><p>Bombardeios a Hiroshima e Nagasaki (SAITO, 1999-2000).</p><p>5</p><p>OPERATION UNTHINKABLE</p><p>Um dos estereótipos mais consolidados no imaginário ocidental durante os</p><p>anos da Guerra Fria foi aquele relacionado à agressão soviética à Europa</p><p>Ocidental. De modo ao menos parcialmente divergente, procuraremos</p><p>demonstrar neste texto que as evidências documentais indicam que a URSS</p><p>adotou posturas bastante moderadas e buscava chegar a um acordo com as</p><p>nações capitalistas desenvolvidas ao final do conflito mundial. Desse ponto de</p><p>vista, Stálin teria procurado agir nos moldes das grandes potências</p><p>convencionais e se postado na defesa de interesses estratégicos da URSS e de tal</p><p>forma que haveria sacrificado, sem escrúpulos, os interesses de diferentes</p><p>partidos comunistas em benefício da Grande Estratégia soviética. Para Melvyn</p><p>Leffler, Truman e seus principais assessores sabiam que a URSS estava devastada</p><p>e que não representava perigo imediato à Europa Ocidental ou aos EUA. Eles</p><p>entendiam, todavia, que a União Soviética ao controlar os recursos de grande</p><p>parte da Europa e de outra parte da Ásia, poderia colocar desafios significativos</p><p>aos interesses dos EUA (LEFFLER, 1992, p. 6-12). Em decorrência, os</p><p>elaboradores da política externa de Washington procuraram impedir o acesso</p><p>soviético a essas regiões e recursos. Nessa estratégia, a construção da imagem de</p><p>uma agressão soviética à Europa e, posteriormente, ao mundo ocidental cumpriu</p><p>um papel chave.</p><p>Como já apontado anteriormente, Stálin operou abertamente para</p><p>desestimular revoluções em diferentes áreas, de modo a evitar conflitos com os</p><p>EUA e a Grã-Bretanha, como pode ser observado no caso emblemático da</p><p>Grécia, mas não apenas nele. Esse não foi, contudo, o entendimento dos outros</p><p>atores globais ou, em outra hipótese também plausível, EUA e Grã-Bretanha até</p><p>poderiam ter essa percepção, mas mantinham o discurso da orquestração de</p><p>Stálin para a expansão do comunismo onde quer que isso fosse possível, de</p><p>modo a transformar essa suposta agressão em instrumento de propaganda</p><p>ideológica.</p><p>Nessa perspectiva, os estrategistas de Washington e Londres sabiam que</p><p>muito dessa agitação que explodia no vácuo da desestruturação do domínio do</p><p>Reich estava para além do controle de Stálin, e muitas vezes tinha mais a ver com</p><p>os diferentes nacionalismos emergentes do que com uma possível expansão</p><p>comunista. Observe-se ainda que, por vezes, essas forças locais buscaram no</p><p>comunismo uma via para impedir a recondução ao poder de segmentos políticos</p><p>que haviam abertamente colaborado com os invasores do Eixo; em outras</p><p>ocasiões, viram no comunismo uma possibilidade de obstaculizar os intentos de</p><p>restauração do poder colonial das metrópoles europeias.</p><p>Esse viés analítico não implica considerar que o pragmático, frio e calculista</p><p>líder soviético desperdiçaria oportunidades, caso elas viessem a lhe cair às mãos.</p><p>O que se afirma aqui é a existência de evidências de que, do final do conflito</p><p>global até aproximadamente o início de 1946, Stálin havia focado os seus</p><p>objetivos na reconstrução da União Soviética, se possível com o apoio financeiro</p><p>dos EUA e com as reparações de guerra que ele esperava receber da Alemanha (aí</p><p>também com aval dos EUA e da Grã-Bretanha); além disso, esperava o</p><p>reconhecimento internacional da URSS como uma potência global. Assim, para</p><p>ele, conter os aliados comunistas era fundamental, uma vez que as suas ações</p><p>desestabilizavam as relações da URSS com os EUA e a Grã-Bretanha. Essa</p><p>temática é complexa, as suas conclusões são parciais e provisórias, e são válidas à</p><p>luz dos fatos e das evidências disponíveis no presente momento histórico.</p><p>Enfatize-se, como diria Edward Thompson (1981) ao discorrer sobre o</p><p>conhecimento histórico, essas conclusões estão sujeitas a críticas e a</p><p>reconsiderações.</p><p>Não obstante, já com os conflitos da Guerra Fria encerrados, próximo ao</p><p>crepúsculo do século XX, o acaso trouxe à tona novas evidências documentais</p><p>que abriram a oportunidade para outra perspectiva, uma senda praticamente</p><p>desconhecida mesmo pelos especialistas. Assim, considero razoável nos</p><p>debruçarmos sobre essas fontes e analisarmos as suas implicações nas estratégias</p><p>soviéticas em relação à Europa Oriental. Ressalto a possibilidade de existirem</p><p>outros documentos ainda secretos que possam completar as lacunas existentes</p><p>ou contraditar o que se apresenta nesta análise. De qualquer forma, a análise da</p><p>matéria pode iluminar um pouco esse campo, mas, ao mesmo tempo, colocar</p><p>formidáveis desafios para a análise da conduta dos principais rivais naqueles</p><p>anos do final da Segunda Guerra Mundial e do início da Guerra Fria. Vamos</p><p>então olhar por essa janela de oportunidade e ver se,</p><p>por intermédio dela,</p><p>guiados por nossas fontes, encontramos mais vestígios de como se deram aqueles</p><p>eventos, verificar se, por meio de uma metodologia adequada, será possível</p><p>enxergar algo robusto para além da névoa que acoberta e distorce a nossa</p><p>percepção sobre o real.</p><p>Em maio de 1945, Churchill solicitou ao Joint Planning Staff (JPS) o</p><p>planejamento de um ataque às tropas soviéticas, então a maior força de combate</p><p>na Europa Central e Oriental. Churchill não descartou mesmo a possibilidade de</p><p>empreender uma Guerra Total contra a aliada momentânea. Com o plano,</p><p>pretendia empregar 47 divisões da Grã-Bretanha e dos EUA, somadas a outras</p><p>forças a serem compostas por prisioneiros da Wehrmacht, que deveriam ser</p><p>rearmados, para, se necessário, atacar as forças soviéticas e restabelecer a</p><p>liberdade na Polônia (HASTINGS, 2010).</p><p>Churchill estava exasperado com os acontecimentos que estavam a se</p><p>desenrolar na Europa Oriental, sobre a qual, de um lado, a Grã-Bretanha e os</p><p>Estados Unidos e, de outro, a União Soviética divergiam em diferentes aspectos</p><p>relacionados à organização dos futuros governos, à redefinição de fronteiras e</p><p>aos sistemas políticos e econômicos a serem implantados na região. Os aliados</p><p>ocidentais entendiam que Stálin não estava a cumprir o acordado em Ialta. Esse</p><p>tema foi, inclusive, objeto de calorosas divergências entre Truman e Molotov,</p><p>quando o presidente dos EUA recebeu oficialmente, pela primeira vez, o</p><p>diplomata soviético, conforme já narramos em outra passagem deste livro</p><p>(capítulo 3). Em especial, a questão da Polônia foi objeto de contendas e de</p><p>cizânias entre os membros da aliança que estava a se esfacelar conforme o</p><p>inimigo que os havia unido se evanescia e não mais representava perigo.</p><p>No crepúsculo da Segunda Guerra Mundial, a princípio pode parecer que</p><p>Churchill estava obcecado com a ideia de restabelecer a liberdade na Polônia,</p><p>mesmo que para isso arriscasse um conflito aberto com a União Soviética. De</p><p>fato, a questão era bem mais obscura e as justificativas de defesa da liberdade</p><p>polonesa resguardam outros interesses. Com a derrota alemã e como Grã-</p><p>Bretanha e EUA possuíam uma sólida aliança, a única nação capaz de ameaçar os</p><p>interesses do Império Britânico era a União Soviética. A pedido de Churchill, o</p><p>JPS chegou a efetuar um plano para o ataque, então nominado como Operation</p><p>Unthinkable (UNITED KINGDOM, 1945). O assunto foi polêmico mesmo no</p><p>JPS, afinal a solicitação era para planejar o ataque a um poderoso aliado em meio</p><p>à guerra que não estava completamente vencida. A Alemanha já havia se rendido,</p><p>mas restava o conflito no Pacífico.</p><p>Há debates sobre a materialidade e os objetivos desses planos. Sublinhe-se</p><p>que forças militares trabalham com diferentes cenários e com planos hipotéticos,</p><p>o que nem sempre significa intenção do seu emprego. Contudo os documentos</p><p>britânicos relacionados ao caso indicam consistência na intenção de realizar a</p><p>operação e, do meu ponto de vista, corroboram a tese segundo a qual a</p><p>conclusão de que não seria possível vencer a URSS foi determinante para que o</p><p>plano fosse abortado. É óbvio, essa é uma hipótese que não pode ser testada e</p><p>merece ser analisada e confrontada com essas e outras evidências de tal modo</p><p>que seja possível uma percepção mais acurada da questão.</p><p>A análise arguta da matéria aponta para uma equação bastante verossímil. Os</p><p>receios de Churchill de que a supremacia soviética na Europa viesse a</p><p>comprometer, de forma mortal, os interesses do Império levou-o a solicitar os</p><p>estudos da possibilidade de uma guerra contra a URSS. Stálin, que desconfiava</p><p>das intenções dos aliados e os espionava, da mesma forma como era por eles era</p><p>espionado, foi informado sobre o plano. Um espião com acesso a informações</p><p>privilegiadas do JPS e do White Hall transmitiu a Stálin a notícia sobre a ordem</p><p>vinda de Londres para que o Marechal Bernard Montgomery passasse a estocar</p><p>as armas alemãs apreendidas com vistas ao possível futuro emprego</p><p>(HASTINGS, 2010).</p><p>É crível supor que essas informações viriam a ratificar as suspeitas de Stálin</p><p>de que os aliados ocidentais desejavam expulsar os soviéticos da Europa Oriental</p><p>ou mesmo que planejassem, no futuro, um ataque à URSS. Em outras palavras ao</p><p>receber informações sobre o plano de um possível ataque às forças soviéticas,</p><p>Stálin teve reforçadas as suas convicções sobre a hostilidade ocidental à URSS</p><p>(DILKS, 2000, p. 46). Esse é um dos motivos pelos quais a tese de que a paranoia</p><p>de Stálin (defendida por Schlesinger, entre outros autores ortodoxos) foi, em</p><p>grande medida, responsável pela emergência da Guerra Fria não se sustenta. A</p><p>questão é bem mais complexa e abarca muito mais do que traços psíquicos de</p><p>um líder ou diferenças ideológicas, pois as celeumas envolviam os múltiplos</p><p>interesses daquelas potências ao final do conflito mundial.</p><p>Stálin, ao ser informado do plano de Churchill, ficou colérico e transmitiu a</p><p>informação ao seu principal homem no Comando de Guerra Aliado. O Marechal</p><p>Georgy Zhukov anotou em suas memórias haver recebido informações</p><p>confiáveis de que Churchill havia enviado um telegrama ao Marechal</p><p>Montgomery para recolher e armazenar as armas capturadas das unidades</p><p>alemãs. Conforme essas anotações, caso o avanço soviético continuasse, elas</p><p>poderiam ser distribuídas às forças alemãs que se dispusessem a cooperar com os</p><p>britânicos. Zhukov afirmou que fez um duro pronunciamento na Comissão de</p><p>Controle Aliado, afirmando que a história conhecia poucos casos de traição e de</p><p>perfídia como aquele. Montgomery haveria procurado refutar as acusações, mas</p><p>o general estadunidense Lucius Clay ficou em silêncio, o que foi entendido por</p><p>Zhukov como um sinal de que ele estava informado da instrução de Churchill.</p><p>Com certeza, as memórias de Zhukov, construídas e reconstruídas a posteriori,</p><p>estão profundamente marcadas pelos interesses em disputa naquele período</p><p>histórico e no momento em que ele as tornou publicas. Hastings afirma que a</p><p>versão de Zhukov foi sensacionalista, mas concorda que ela estava baseada em</p><p>documentos que continuaram desconhecidos na Grã-Bretanha até 1998</p><p>(HASTINGS, 2010, p. 462-463).</p><p>Interpreto a questão de outro ponto de vista. Zhukov, ao fazer o</p><p>pronunciamento, procurou intimidar os britânicos, demonstrando que sabia o</p><p>que estava a ocorrer. Não se pode dizer, todavia, que isso era sensacionalismo.</p><p>Parece-me, ao contrário, que os soviéticos atuaram com prudência, não</p><p>tornaram o fato público, não levaram as coisas para as ruas e para a mídia, em</p><p>momento no qual havia um enorme sentimento popular de gratidão ao Exército</p><p>Vermelho na Grã-Bretanha e em grande parte da Europa, pois ele era visto como</p><p>o grande vencedor das forças alemãs. Os soviéticos mantiveram o silêncio</p><p>público em relação ao assunto ao longo de muitos anos, pois, caso contrário, o</p><p>documento não haveria ficado desconhecido no Ocidente por inacreditáveis 53</p><p>anos.</p><p>Sobre essa questão, considero que o silêncio soviético sobre o plano</p><p>britânico – exceto o que se sabe hoje, o protesto de Zhukov – é tão importante</p><p>quanto a natureza do plano “impensável”. Até o presente momento não são</p><p>conhecidos documentos que evidenciem claramente os motivos que levaram os</p><p>soviéticos a não explorarem publicamente a descoberta do plano de Churchill, o</p><p>que certamente deixaria o primeiro ministro e o seu governo em situação</p><p>bastante delicada. Uma hipótese verossímil, mas que somente poderia ser</p><p>comprovada com evidências cabais, é a de que o interesse soviético em chegar a</p><p>um bom termo com os aliados ocidentais com vistas a conseguir financiamento</p><p>dos EUA destinado à sua reconstrução e chegar a uma definição sobre as</p><p>reparações de guerra, levou Stálin a silenciar-se sobre o assunto. É plausível</p><p>considerarmos essa hipótese como uma explicação razoável, no entanto, como</p><p>explicar que, após o início da Guerra Fria, os soviéticos não houvessem</p><p>explorado esse fato? Até o presente, da minha perspectiva, não há respostas</p><p>convincentes sobre o assunto.</p><p>É admissível supor que o conhecimento soviético sobre a existência de um</p><p>plano de agressão</p><p>às suas forças possa haver levado à decisão de aumentar a sua</p><p>presença na região, de forma a garantir o seu controle sobre a área e, de forma</p><p>correlata, assegurar a sua defesa. No Ocidente, a opinião pública desconhecia o</p><p>fato. Isso lhe foi ocultado pelas autoridades britânicas, que continuaram a acusar</p><p>a União Soviética de impor regimes cruéis à Europa Oriental. Aos olhos do</p><p>grande público, as ações soviéticas na região eram mostradas como medidas</p><p>agressivas, o que corroboraria as teses daqueles que, na Grã-Bretanha e nos EUA,</p><p>afiançavam que a URSS possuía um projeto de dominação de toda a Europa e,</p><p>posteriormente, de expansão global do seu regime.</p><p>O Joint Planning Staff (JPS) discutiu o assunto nas sessões de 24 e 31 de maio</p><p>de 1945 e apresentou os Resultados a Churchill a 8 de junho (LEWIS, 2003, p.</p><p>37). Segundo Lewis, quando foram publicados os diários do CIGS (Chief of</p><p>Imperial General Staff), pelo seu comandante, o Marechal de Campo Sir Allan</p><p>Brooke, em 1959, havia menções genéricas à operação, mas não havia detalhes.</p><p>Acreditava-se que não houvesse nenhum documento escrito, pois não</p><p>aparentava haver lacunas nos documentos do JPS. Foi o Daily Telegraph que</p><p>publicou, em 1º de outubro de 1998, o artigo de Ben Fenton: “Churchill’s Plan</p><p>for Third World War against Stálin”. Segundo o noticiado, os documentos</p><p>estavam sob o insuspeito título de “Russia: ‘Anglo-US Discussions on Post-war</p><p>Defense’” (LEWIS, 2003, p. XXX-XXXI).</p><p>Uma análise do documento produzido pelos estrategistas britânicos indica</p><p>que eles concluíram que não havia qualquer possibilidade de confrontar o poder</p><p>soviético na Europa, sem que estivessem dispostos e enfrentar uma longa e difícil</p><p>guerra, com resultados imprevisíveis (UNITED KINGDOM, 1945).</p><p>Observe-se que foi avaliada a perspectiva de obter uma vitória rápida,</p><p>mesmo que pontual, sobre as forças do Exército Vermelho na Polônia, com o</p><p>objetivo de impor a vontade dos EUA e da Grã-Bretanha sobre a União</p><p>Soviética. O documento, porém, é vago nesse ponto e indica que essa</p><p>possibilidade poderia ou não se realizar e que, se os soviéticos desejassem a</p><p>Guerra Total, eles estariam em posição de tê-la (UNITED KINGDOM, 1945, p.</p><p>1).</p><p>O Documento considera a marinha da URSS fraca e ultrapassada, aponta</p><p>alguma superioridade numérica no ar, em paralelo, indica que haveria</p><p>superioridade em termos de tecnologia das aeronaves e dos pilotos ocidentais,</p><p>embora reconheça que os soviéticos possuíssem bons pilotos. O ponto nodal era</p><p>a questão das forças terrestres soviéticas, apontadas no documento como muito</p><p>superiores numericamente aos contingentes ocidentais, mesmo que</p><p>tecnologicamente inferiores em algumas áreas, com problemas de formação de</p><p>oficiais, muito hierarquizada e desgastada pela longa guerra. O documento</p><p>levanta dúvidas sobre como os EUA comportar-se-iam em relação ao assunto.</p><p>Além das forças dos EUA, da Grã-Bretanha e da Polônia, o plano previa,</p><p>inclusive, o uso do que restava da capacidade industrial da Alemanha e o</p><p>emprego de prisioneiros de guerra alemães para recompor dez divisões da</p><p>Wehrmacht, com a finalidade combater as forças soviéticas. Os estrategos</p><p>supunham que, nesse eventual novo conflito, haveria a possibilidade de que a</p><p>União Soviética e o Japão pudessem estabelecer uma aliança (UNITED</p><p>KINGDOM, 1945, p. 1).</p><p>O documento conclui:</p><p>a) Se o nosso objetivo político deve ser alcançado com certeza e com resultados</p><p>duradouros, a derrota da União Soviética em uma guerra total será necessária;</p><p>b) O resultado de uma guerra total coma União Soviética não é possível de ser</p><p>previsto, mas uma coisa com certeza é que para vencer levaremos um tempo muito</p><p>longo (UNITED KINGDOM. OPERATION UNTINKABLE, 1945, p. 3, tradução do</p><p>autor).</p><p>Em continuidade, foi enfatizado que, para haver possibilidades de vitória, era</p><p>indispensável contar com a mobilização e a capacidade industrial dos EUA, de</p><p>modo que fosse possível suportar o novo esforço de guerra na Europa. Sublinha</p><p>que havia ainda a necessidade de reorganizar e reequipar as forças da Alemanha e</p><p>de toda a Europa Ocidental (UNITED KINGDOM, 1945, p. 2-3).</p><p>O documento destaca que há a possibilidade de ser conseguida uma rápida</p><p>vitória localizada sobre a URSS e impor a vontade da Grã-Bretanha e dos EUA,</p><p>mas salienta que, se essa percepção estiver errada, e a União Soviética não se</p><p>submeter, haverá guerra total. Nesse caso, os autores do documento acrescentam</p><p>que não será possível limitar as hostilidades a uma área específica do planeta e,</p><p>dessa forma, a guerra poderá tornar-se um conflito de dimensão global. Na</p><p>continuidade, o documento expressa a preocupação de que, se não forem</p><p>alcançados resultados duradouros, do ponto de vista militar, a capacidade da</p><p>URSS não estará destruída e ela poderá recomeçar o conflito quando desejar</p><p>(UNITED KINGDOM, 1945, p. 3).</p><p>Por fim, os elaboradores do plano afirmam:</p><p>a) Se nós embarcarmos em uma guerra com a União Soviética, precisamos estar</p><p>preparados para entrar em uma guerra total, que será longa e custosa;</p><p>b) Nossa inferioridade numérica em terra torna extremamente duvidoso se seria</p><p>possível conseguir um limitado e rápido sucesso, mesmo que a [nossa] apreciação</p><p>política considerasse que isso bastasse para conquistar o nosso objetivo político</p><p>(UNITED KINGDOM, 1945, p. 6, tradução do autor).</p><p>As seis páginas do documento são acompanhadas por um conjunto de anexos</p><p>que detalham a composição das forças soviéticas e aliadas, estabelecem</p><p>comparações e definem pontos fracos do adversário e alinhavam estratégias de</p><p>ação. Quando Churchill recebeu o plano e tomou conhecimento das análises do</p><p>JPS, solicitou então um estudo para proteger a Grã-Bretanha de um eventual</p><p>ataque soviético. Nessa época havia recebido um telegrama de Truman deixando</p><p>claro que os EUA não participariam daquela aventura (HASTINGS, 2010, p.</p><p>465-466).</p><p>Do documento e da decisão, fica evidente que a operação foi considerada</p><p>pelos estrategistas do JPS como “impensável” e, por isso, Churchill abandonou-a.</p><p>Com certeza, a posição dos EUA reforçou essa decisão. Além disso, pouco depois</p><p>Churchill foi derrotado nas eleições e perdeu a maioria no parlamento e, em</p><p>consequência, teve que renunciar ao seu mandato de primeiro ministro para a</p><p>formação de um novo governo, agora de orientação trabalhista. Desse modo, o</p><p>plano foi definitivamente aposentado.</p><p>PARTE II</p><p>AS DIFERENTES PERSPECTIVAS DE PODER</p><p>DAS NOVAS POTÊNCIAS GLOBAIS E A EMERGÊNCIA DA</p><p>GUERRA FRIA</p><p>6</p><p>KENNAN E A ARQUITETURA DA POLÍTICA EXTERNA</p><p>DOS EUA DURANTE A PRIMEIRA FASE DA GUERRA FRIA25</p><p>Neste capítulo, discorrerei sobre como, no imediato pós-Segunda Guerra</p><p>Mundial, o diplomata George Frost Kennan cunhou as diretrizes que orientaram</p><p>a política externa dos EUA em relação à URSS e, de forma correlacional,</p><p>delineou as matrizes que nortearam a política externa global dos EUA durante a</p><p>Guerra Fria. Isso será efetuado por intermédio da análise de como Kennan</p><p>aquilatava o regime soviético e de que modo ele concebia a estratégia de como os</p><p>EUA deveriam agir com o objetivo de conter a potência rival. De início,</p><p>sublinhe-se que em sua análise, o principal desafio interposto pela União</p><p>Soviética não era militar, mas era derivado da capacidade de atração ideológica</p><p>do comunismo no interior das sociedades democráticas ocidentais.</p><p>Em consonância com essa percepção, Kennan expressou o seu ponto de vista</p><p>em um documento por ele elaborado durante o exercício de funções</p><p>diplomáticas na embaixada estadunidense em Moscou. Esse documento escrito</p><p>em 1946, a partir de indagações do Departamento de Estado a respeito de como</p><p>o país deveria relacionar-se com a URSS, tornou-se conhecido como “Longo</p><p>Telegrama” (KENNAN, 1946). Nele, o diplomata estadunidense alinhavava de</p><p>forma sumária a história e a cultura do povo russo e preconizava algumas</p><p>recomendações de como os EUA deveriam agir em relação à potência adversária.</p><p>No ano seguinte, o diplomata adensou a sua análise e a publicou sob</p><p>pseudônimo de Mr. X o artigo intitulado “The Sources of Soviet Conduct”, na</p><p>Foreign Affairs, o mais reconhecido periódico dedicado</p><p>à política externa</p><p>estadunidense.</p><p>Posteriormente, as diretrizes enunciadas por Kennan orientaram a</p><p>elaboração da política externa dos EUA e passaram a ser designadas como</p><p>“Doutrina da Contenção”, de modo que, com celeridade, vieram a se tornar o</p><p>eixo fulcral da estratégia política estadunidense durante a Guerra Fria. Sublinhe-</p><p>se de início que o diplomata, um exímio expert na compreensão da sociedade</p><p>soviética, produziu durante a sua carreira uma vultosa obra concernente à</p><p>política externa estadunidense e aos desafios postos pela URSS aos EUA naquela</p><p>quadra histórica. Desde a posse de Harry Truman em sua segunda administração</p><p>(1949-1953), no entanto, Kennan começou a se distanciar do seleto grupo</p><p>responsável pela elaboração política daquele governo.</p><p>De fato, já em 1947, o diplomata manifestava certo desconforto com a</p><p>chamada Doutrina Truman (KENNAN; COSTIGLIOLA, 2014, p. 207). Por</p><p>volta do final de 1948, ele concluiu que a sua Doutrina da Contenção havia</p><p>sofrido distorções e estava a adquirir um caráter militarista que, do seu ponto de</p><p>vista, inexistia em sua concepção originária. Esse é um ponto controverso que</p><p>ainda hoje é foco de debates. Adicionalmente, o diplomata começou a advogar a</p><p>necessidade de se buscar um diálogo construtivo com o regime soviético. Com a</p><p>posse de Dean Acheson como titular da Secretaria de Estado, em 1949, as</p><p>diferenças tornaram-se cada vez mais marcadas. Nesse processo, houve um</p><p>duplo movimento em que o pai da Doutrina da Contenção, cada vez mais se</p><p>afastava do governo e ao mesmo tempo era posto à margem da elaboração</p><p>política da administração de Harry Truman. Em 1950, Kennan deixou o</p><p>Departamento de Estado, e integrou-se ao Instituto de Estudos Avançados de</p><p>Princeton, com o qual doravante manteve vínculos acadêmicos até o final da sua</p><p>vida (STEPHANSON, 1992, p. 114; MUNHOZ, 2012).</p><p>Ao dedicar-se aos estudos e a ensinar diplomacia, Kennan ganhou mais</p><p>autonomia e passou gradualmente a tecer críticas mais consistentes à condução</p><p>da política externa dos EUA. Desse modo, em diferentes momentos daqueles</p><p>conturbados anos, o diplomata expressou pontos de vistas divergentes do seu</p><p>governo e as suas formulações passaram a ser interpretadas e reivindicadas de</p><p>diferentes formas, tanto por aliados incondicionais quanto por críticos que se</p><p>perfilavam num campo mais à esquerda da política estadunidense. Nas próximas</p><p>páginas, procurarei analisar esse processo e oferecer algumas chaves para a</p><p>melhor compreensão da atuação de Kennan e como as suas propostas marcaram</p><p>a construção da política externa dos EUA naquele período histórico.</p><p>De um lado, para compreender o pensamento político de Kennan é</p><p>necessário entender a sua percepção em termos de uma história de longa duração</p><p>do mundo russo, a sua argúcia e refinamento ao avaliar a primazia dos objetivos</p><p>de Estado do regime do Kremlin sobre eventuais projetos revolucionários de</p><p>diferentes partidos comunistas espalhados pelo planeta. De outro, é imperativo</p><p>entender a sua perspectiva sobre o papel a ser desempenhado pelos EUA em um</p><p>mundo caótico, em que as estruturas convencionais de poder internacional</p><p>haviam soçobrado como resultado da Segunda Guerra Mundial. Em uma época</p><p>de maniqueísmos exagerados, de batalhas entre o bem e o mal, entre a</p><p>“civilização ocidental” e a “barbárie russa” como muitos professavam em</p><p>Washington, Kennan expressava um ponto de vista conservador, fortemente</p><p>arraigado nos valores estadunidenses dominantes, mas ao mesmo tempo abria</p><p>janelas para lampejos cosmopolitas que lhe possibilitavam a construção de uma</p><p>visão sobre civilização russa que, em muito, se distinguia da perspectiva de</p><p>outros diplomatas estadunidenses.</p><p>A conformação de um arcabouço teórico que tornasse possível interpretar a</p><p>cultura, os valores, as tradições russas e decodificar os objetivos do Estado</p><p>soviético eram consonantes com a experiência de vida do diplomata. Em síntese,</p><p>a capacidade analítica do diplomata era proveniente dos seus encontros e</p><p>desencontros pregressos com esse universo desmesuradamente desconhecido</p><p>pelo povo estadunidense e pela maioria dos seus colegas de ofício. É importante</p><p>destacar que, embora o investimento nos estudos dos países considerados</p><p>relevantes para os interesses dos EUA tenha sido vigoroso desde meados do</p><p>século XIX, a constituição de um grupo de russófilos no Departamento de</p><p>Estado encontrava-se ainda em processo de consolidação nos anos iniciais da</p><p>Guerra Fria. Naquele contexto, a sofisticada visão de Kennan sobre o regime</p><p>soviético, mas nem por isso desprovida de preconceitos, tornou-se fulcral à</p><p>elaboração da política externa estadunidense.</p><p>Assim, com seus erros e acertos, suas vicissitudes e dilemas, certezas e</p><p>incertezas, o diplomata delineou um modelo que definiu as bases da política</p><p>externa estadunidense por cerca de quatro décadas. Como já sinalizado, Kennan,</p><p>contudo, entendeu que as suas diretrizes ganharam uma nova configuração que</p><p>não se coadunavam com as suas premissas e, desse modo, distanciou-se do</p><p>segundo governo Truman e passou, embora discretamente, a tecer críticas à</p><p>condução da política externa estadunidense (STEPHANSON, 1992;</p><p>MUNHOZ, 2012).</p><p>O final da Segunda Guerra Mundial e a emergência da Guerra Fria</p><p>A aliança contra o Eixo havia promovido a união de forças em princípio</p><p>irreconciliáveis, como o capitalismo estadunidense e inglês, de um lado, e o</p><p>stalinismo soviético, de outro. A unidade dessas forças, entretanto, era</p><p>assegurada mais pela primazia de um inimigo comum do que por objetivos</p><p>compartilhados. Dessa forma, ao final da Segunda Guerra Mundial, com o</p><p>adversário vencido, as discrepâncias de objetivos ganharam proeminência e as</p><p>disputas entre as duas maiores potências econômicas e militares do planeta</p><p>tornaram plausível a emergência de um novo conflito de proporções globais</p><p>(HOBSBAWM, 1995).</p><p>De fato, havia projetos bastante distintos para a reconstrução da Europa e</p><p>com vistas à redefinição de uma nova ordem mundial. De um lado, os EUA</p><p>emergiram como a maior potência vitoriosa, com o seu parque industrial ileso,</p><p>de onde procediam aproximadamente dois terços dos produtos industrializados</p><p>do mundo. Em adição, o país havia se tornado o maior credor mundial. Além</p><p>disso, os EUA eram os únicos detentores da tecnologia nuclear recém-</p><p>desenvolvida. Assim, era presumível que almejassem reconfigurar o novo mundo</p><p>que despontava das ruínas daquela devastadora guerra conforme os seus</p><p>desígnios. De outro, a URSS, embora bastante combalida pela destruição</p><p>proveniente da longa invasão perpetrada pela colossal máquina de guerra alemã e</p><p>de seus aliados, emergia como a segunda grande potência global. Naquele</p><p>cenário ainda bastante conturbado, os líderes soviéticos anteviam ameaças</p><p>provenientes do que acreditavam ser um projeto de hegemonia global concebido</p><p>pelos EUA, com vistas a retirar-lhes a área de influência, conquistada pelo</p><p>Exército Vermelho a um custo exorbitante de vidas humanas e pactuada durante</p><p>as conferências de Ialta e de Potsdam, no crepúsculo daquele conflito mundial</p><p>(LaFEBER, 1997).</p><p>Ao final da Segunda Guerra Mundial, a situação internacional era muito</p><p>cômoda aos EUA e, naquela conjuntura, a sua diplomacia por intermédio da</p><p>exuberância da sua economia e da irrefragável supremacia bélica, buscava alargar</p><p>a sua presença nos mercados externos até então controlados por outras</p><p>potências, muitas delas impérios coloniais europeus, fortes aliados da grande</p><p>potência ocidental. Apesar de os EUA nunca constituírem um império formal,</p><p>como o inglês ou o francês, demandas econômicas domésticas e embates</p><p>ideológicos levaram o país a adotar uma política externa mais agressiva, o que</p><p>regra geral implicava a intervenção nos negócios internos de outras nações, com</p><p>o intuito de controlar as fontes de matérias-primas, de energia e mercados</p><p>consumidores, sendo bastante verossímil reconhecermos nesse processo a</p><p>constituição de um império informal (MUNHOZ, 2009). Muitos autores</p><p>apontam a última década do século XIX como o momento da gênese de uma</p><p>política imperial dos EUA (WILLIAMS, 1988; LaFEBER,</p><p>1994; 1997), no</p><p>entanto, é razoável admitir que somente ao final da Segunda Guerra Mundial a</p><p>arquitetura dessa política se consolidou plenamente, quando o país assumiu a</p><p>posição de potência global hegemônica. Assim, durante os dois governos de</p><p>Harry Truman (1945-1953) foram concebidas políticas com o objetivo de</p><p>controlar áreas anteriormente sob o domínio das forças do Eixo e, ao mesmo</p><p>tempo, conter uma eventual expansão soviética na Europa e na Ásia.</p><p>Além disso, a crise dos impérios coloniais britânico e francês permitiu a</p><p>expansão da presença dos EUA na África e na Ásia. Em contrapartida, nessas</p><p>regiões, a eclosão de lutas por independência nacional, em territórios até então</p><p>sob o domínio colonial de potências europeias, aproximava-se das teses</p><p>socialistas e muitos desses movimentos independentistas buscavam na União</p><p>Soviética um possível apoio estratégico e militar. Em que pese a relutância da</p><p>URSS em apoiar essas ações de forma direta, em decorrência de seus imediatos</p><p>interesses de Estado, voltados a um acordo com os Estados Unidos, na maioria</p><p>das vezes a política soviética para essa região era vista pelos seus rivais como</p><p>expansionista.</p><p>Não obstante, como sublinha Bradley, no imediato pós-Segunda Guerra</p><p>Mundial, tanto os EUA quanto a União Soviética deram pouca importância às</p><p>lutas por independência no hemisfério Sul. Segundo o autor, as duas potências</p><p>globais estavam focadas nos problemas emergentes na Europa, em especial a</p><p>questão da ocupação da Alemanha, a reconstrução da Europa Ocidental, as</p><p>tensões no Leste Europeu e o problema da guerra civil na Grécia. Para Bradley,</p><p>os EUA reconheciam a radicalidade de alguns desses movimentos</p><p>independentistas, mas ainda não os associavam à dinâmica da Guerra Fria.</p><p>Bradley salienta que, a princípio, para os EUA e a URSS esses movimentos eram</p><p>periféricos à sua confrontação na Guerra Fria. Desse ponto de vista, somente</p><p>com a vitória comunista na China e com o desencadear da Guerra da Coreia, o</p><p>denominado Sul global adquire maior importância nas dinâmicas da Guerra Fria</p><p>(BRADLEY, 2010, p. 472). Do meu ponto de vista, essa perspectiva deve ser</p><p>relativizada, pois entre 1947 e 1949 houve um contínuo movimento em ambos</p><p>os campos que tendeu cada vez mais à intensificação dos conflitos, de tal sorte</p><p>que as dinâmicas da Guerra Fria tenderam à mundialização. Posteriormente, com</p><p>o desenlace da guerra civil chinesa e a emergência da Guerra da Coreia esse</p><p>processo ganhou uma nova dimensão.</p><p>Dessa perspectiva, ao final da Segunda Guerra Mundial os antigos</p><p>movimentos revolucionários anticoloniais e os novos Estados do chamado</p><p>Terceiro Mundo associam-se de forma inseparável aos conflitos e às ideologias</p><p>vinculados à Guerra Fria (WESTAD, 2008, p. 74). Originariamente, tanto EUA</p><p>quanto URSS possuíam projetos modernizadores para aquela parte do mundo</p><p>que emergia dos antigos impérios coloniais (LATHAM, 2010) e preconizavam</p><p>perspectivas genuinamente anticoloniais. Na dinâmica da Guerra Fria global,</p><p>contudo, passaram cada vez mais a adotar posturas semelhantes aos antigos</p><p>colonialistas, temendo a vitória do rival (WESTAD, 2008, p. 397).</p><p>Em consequência do exposto, os conflitos que motivaram a Guerra Fria eram</p><p>provenientes de uma complicada trama de interesses geopolíticos das duas</p><p>potências que despontaram ao final da Segunda Guerra Mundial como as</p><p>maiores forças econômicas, políticas e militares do planeta. Naquele contexto,</p><p>cada uma dessas potências buscou a criação e a consolidação das suas respectivas</p><p>áreas de influência, o que deu origem à estruturação de blocos antagônicos que,</p><p>em maior ou menor medida, marcaram todo o período da Guerra Fria.</p><p>Como salientei na primeira parte deste livro, aquele foi um período</p><p>conturbado da história do imediato pós-guerra. Havia muita incerteza e</p><p>suspeições sobre as atitudes do adversário. Em cada um dos blocos em processo</p><p>de edificação, buscava-se interpretar os movimentos e as prováveis ações do</p><p>oponente, que cada vez mais era traduzido para as populações locais como um</p><p>inimigo diabólico capaz de tudo para alcançar os seus objetivos inconfessáveis, o</p><p>que, dessa perspectiva maniqueísta, levaria à destruição da paz e a um novo</p><p>período de guerras.</p><p>Assim, o confronto de interesses de Estado içava o tom dessa dissensão de</p><p>modo cada vez mais escancarado. Ao mesmo tempo, no interior de cada campo,</p><p>a construção no imaginário popular de um inimigo poderoso foi utilizada pelos</p><p>respectivos governos para demonizar e controlar as oposições ou dissidentes</p><p>(CHOMSKY, 1996). Desse modo, houve o incremento exponencial dos</p><p>discursos belicosos, da propaganda anti-imperialista em um campo e</p><p>anticomunista no outro, da intolerância e da perseguição política. Em pouco</p><p>tempo, a expansão do número de países administrados por governos</p><p>democráticos ou que tendiam de alguma forma à democracia cedeu vez às</p><p>ditaduras ou assemelhados, que logo começaram a se espalhar tanto sob o manto</p><p>protetor dos EUA quanto na esteira da União Soviética.</p><p>Houve a preservação de regimes democráticos nas sociedades capitalistas</p><p>desenvolvidas, mas, na vasta área do chamado Terceiro Mundo, o breve</p><p>interregno democrático foi sufocado com celeridade. Apenas de modo exemplar,</p><p>sublinhe-se, como aponta Leslie Bethell, que na América Latina, onde se deu a</p><p>expansão de regimes democráticos sob a influência dos EUA entre meados de</p><p>1944 e meados de 1946, logo houve um marcado retrocesso e, em pouco tempo,</p><p>apenas três regimes daquela região poderiam ser caracterizados como</p><p>democráticos, obviamente, se os critérios de aferição fossem razoavelmente</p><p>elásticos (BETHELL, 1992; 1994).</p><p>O papel cumprido pelo Exército Vermelho no triunfo dos Aliados sobre as</p><p>forças do Eixo, com a correlata liberação dos territórios dominados por essas</p><p>forças invasoras, transferiu à União Soviética um prestígio de grande amplitude</p><p>perante a opinião pública internacional, mesmo que de forma efêmera. Ao</p><p>mesmo tempo, denúncias de violências e atrocidades, entre as quais se inclui</p><p>execuções sumárias e o estupro em massa, cometidas pelos soviéticos na tomada</p><p>de Berlim, magnificaram a resistência à presença soviética na Europa Oriental.</p><p>Além disso, existem controvérsias robustas sobre uma premeditada</p><p>procrastinação do Exército Vermelho para ocupar Varsóvia, com o intuído</p><p>aguardar o massacre dos poloneses pró-ocidentais e, desse modo, garantir o</p><p>predomínio comunista na Polônia. Observem-se as semelhanças entre esse</p><p>argumento e aquele que aponta a demora na abertura da segunda frente como</p><p>uma estratégia ocidental para levar soviéticos e alemães à mútua destruição.</p><p>Naquele contexto, o Exército Vermelho dominava a maior parte da Europa</p><p>Central e Oriental. Em paralelo, a situação social na Europa Ocidental era</p><p>caótica, uma vez que a infraestrutura da maioria dos países havia sido atassalhada</p><p>pela guerra. Esse cenário povoava o imaginário das elites e elevava o temor de</p><p>uma vaga revolucionária. Os comunistas haviam conquistado consideráveis</p><p>resultados nos pleitos eleitorais recém-ocorridos na França e na Itália. Em</p><p>paralelo, as organizações comunistas ramificavam-se em outras regiões do</p><p>continente. Ao mesmo tempo, havia profundas tensões políticas na Turquia e no</p><p>Irã, guerras civis em curso na Grécia e na China e numerosas lutas anticoloniais</p><p>na África e na Ásia. Como resultado, a influência soviética não se restringia às</p><p>áreas sob o seu comando, pois os partidos comunistas haviam ganhado força</p><p>política e representatividade tanto em muitas democracias ocidentais quanto na</p><p>emergente área até então sob domínio colonial, de tal modo que alcançava as</p><p>mais diferentes regiões do planeta (MUNHOZ, 2004a).</p><p>O homem e a sua história</p><p>George Frost Kennan nasceu em 16 de fevereiro de 1904, em Milwaukee,</p><p>Wisconsin, filho do advogado Kossuth Kent Kennan e de Florence James</p><p>Kennan. Por parte de pai, George F. Kennan era descendente de imigrantes</p><p>irlandeses muito pobres que foram tentar a sorte na América ainda no século</p><p>XVIII. O pequeno George perdeu sua mãe dois meses após o seu nascimento, em</p><p>função de uma peritonite decorrente de</p><p>uma apendicite. O pequeno George,</p><p>porém, acreditava que a mãe havia falecido em seu parto. Alguns autores</p><p>atribuem a essa crença, a tristeza e a melancolia que marcaram a vida de Kennan.</p><p>Constigliola ao comentar os diários de Kennan observa que eles não corroboram</p><p>essa perspectiva, uma vez que, aos onze anos de idade, o garoto Kennan mostra-</p><p>se nas passagens do seu diário como curioso, esperto, feliz e ativo (KENNAN;</p><p>COSTIGLIOLA, 2014, p. 5). Aos oito anos de idade, o jovem Kennan foi residir</p><p>na Alemanha com a sua madrasta, período em que aprendeu alemão, língua que</p><p>lhe foi muito útil ao iniciar a sua carreira diplomática.</p><p>Em sua família, havia uma longa história de contato com o mundo russo. Seu</p><p>primo de segundo grau, George Kennan (1845-1924), legou ao seu familiar,</p><p>muito mais do que o nome e a mesma data de aniversário. Ambos nasceram em</p><p>16 de fevereiro. O primeiro George era jornalista, escritor e comerciante que</p><p>viveu e estabeleceu longos vínculos com a Rússia, tornando-se um russófilo. No</p><p>início da sua carreira, era simpatizante do regime czarista dos Romanov, quando</p><p>chegou inclusive a justificar e a defender os projetos expansionistas do Império</p><p>Russo. Posteriormente, após o assassinato do Czar Alexander II, em 1881, ele</p><p>decidiu conhecer o sistema penal russo e como eram os exílios políticos na</p><p>Sibéria. Retornou da Sibéria impressionado com o que viu e escreveu Siberia and</p><p>the exile system, livro em dois volumosos tomos que na primeira edição</p><p>totalizavam 984 páginas, onde apresentou detalhados relatos sobre as condições</p><p>das prisões e sobre as terríveis condições de vida dos condenados a cumprir</p><p>penas nos campos de trabalhos forçados. Essa experiência transformou a</p><p>percepção de George sobre o regime russo e ele, ao retornar aos EUA, tornou-se</p><p>crítico do czarismo e ativista pela democratização da Rússia. A influência do</p><p>outro Kennan legou ao jovem George Frost um profundo interesse por tudo que</p><p>se dizia respeito àquele estranho universo. Em suas memórias acentua a</p><p>influência do parente em sua formação e explica que possuíam tanta coisa em</p><p>comum, que muitos erroneamente pensavam que se tratava de seu pai. O</p><p>diplomata relembra que além de compartilharem nome e data de nascimento,</p><p>ambos foram expulsos da Rússia, ambos criaram organizações para dar suporte a</p><p>refugiados russos, escreveram e discorreram profusamente sobre o mundo russo,</p><p>tocavam guitarra, amavam barcos à vela e possuíam outras semelhanças</p><p>(KENNAN, 1967a, p. 8).</p><p>Kennan estudou na St. John’s Military Academy e na sequência cursou</p><p>História em Princeton, onde se graduou em 1925. Em 1926, ingressou no</p><p>serviço diplomático e, no ano seguinte, assumiu o posto de vice Consul em</p><p>Genebra, onde permaneceu por um breve período. Logo, foi para Berlim, Tallinn</p><p>e Riga. Em Berlim, iniciou o aprendizado do idioma russo e passou a dedicar-se</p><p>com afinco aos estudos relacionados à União Soviética. Em novembro de 1933,</p><p>ainda durante a primeira administração de Franklin D. Roosevelt, os EUA</p><p>estabeleceram relações diplomáticas com a URSS. Na ocasião, William C. Bullitt</p><p>foi indicado para o posto de embaixador em Moscou e George F. Kennan passou</p><p>a ocupar o posto de terceiro secretário daquela embaixada. Dois anos depois, foi</p><p>designado para Viena e, posteriormente, para Berlim (KENNAN, 1967;1973;</p><p>STEPHANSON, 1992).</p><p>Aquele era um período de incertezas e instabilidade política que, certamente,</p><p>lançou desafios descomunais aos jovens diplomatas como Kennan. Se, de um</p><p>lado, esse cenário incerto e complexo representava, muitas vezes, barreiras quase</p><p>que intransponíveis, de outro, representava oportunidades inusitadas. Essas</p><p>ocasiões não tardaram a aparecer para Kennan. Ele esteve a serviço da diplomacia</p><p>dos EUA em lugares-chave, em momentos cruciais que, de uma forma ou de</p><p>outra, reconfiguraram o cenário político do século XX. Assim, ele pôde observar</p><p>a emergência da farsa dos processos de Moscou (1936-1938); ao servir entre</p><p>1938 e 1939 na Tchecoslováquia, presenciou a ocupação de Praga pelas tropas</p><p>alemãs que, após ocuparem os Sudetos em outubro de 1938, conforme acordado</p><p>por intermédio do Pacto de Munique, em março do ano seguinte, violaram o</p><p>pacto e anexaram o que restava do país.</p><p>Há um longo debate sobre a influência dos eventos relacionados ao Pacto de</p><p>Munique e à ocupação da Tchecoslováquia pela Alemanha no Pacto Germânico-</p><p>Soviético. Kennan em diferentes ocasiões criticou acidamente os soviéticos pelo</p><p>acordo, mas reconheceu que a postura dos ingleses e franceses nesse processo</p><p>haveria levado a um erro trágico e que a indiferença dos EUA não era motivo</p><p>para glória. Ao mesmo tempo deixa claro que, do seu ponto de vista, a União</p><p>Soviética de Stálin não era um aliado digno do Ocidente frente ao fascismo</p><p>(KENNAN, 1969, p. 267-274).</p><p>Na sequência, Kennan foi enviado a Berlim, onde serviu até a declaração de</p><p>guerra da Alemanha aos EUA. Desse evento, resultou a sua detenção por quase</p><p>seis meses, entre dezembro de 1941 e abril de 1942, quando então foi liberado</p><p>pelas autoridades alemãs para sair do país. Imediatamente, Kennan foi designado</p><p>a servir em Lisboa, onde permaneceu até 1944, quando, no outono daquele ano,</p><p>foi enviado a Londres, por um curto interregno e então foi novamente indicado a</p><p>ocupar um posto na embaixada de Moscou. Assim, ao fim da II Guerra Mundial,</p><p>encontrava-se mais uma vez em Moscou, quando se intensificaram as</p><p>divergências entre os EUA e a União Soviética, o que culminou na retomada de</p><p>antigas rivalidades e na emergência de um novo tipo de conflito entre as duas</p><p>novas potências globais emergentes (KENNAN, 1967; 1973; 1996). Conforme</p><p>relata Kennan, em Moscou, ele encontrou certas dificuldades, uma vez que o</p><p>embaixador Harriman era altamente centralizador e possuía acesso direto à Casa</p><p>Branca. Desse modo, as funções atribuídas a Kennan desagradavam-no, pois</p><p>eram marcadamente burocráticas. Por fim, ele discordava da política de</p><p>cooperação com os soviéticos, implementada por Roosevelt (STEPHANSON,</p><p>1992, p. 28). Assim, as alterações na condução da política externa dos EUA em</p><p>relação à URSS implementadas por Truman, abriram mais espaço para Kennan e</p><p>possibilitaram sua aproximação com os novos policymakers estadunidenses.</p><p>Em 1946, Kennan deixou Moscou e retornou ao seu país, onde assumiu o</p><p>posto de assessor do National War College e, no ano seguinte, a direção de</p><p>planejamento político do Departamento de Estado, função que exerceu entre 5</p><p>de maio de 1947 e 31 de maio de 1949. Em 1947, ele coordenou a elaboração do</p><p>Plano Marshall e esteve envolvido em diferentes projetos do Departamento.</p><p>Ainda, entre 4 de agosto de 1949 e 11 de junho de 1951, foi conselheiro do</p><p>secretário de Estado Dean Acheson (função equivalente nos dias atuais ao</p><p>subsecretário de Estado) mas, desde o final de 1948, cresciam as divergências</p><p>entre o diplomata e as diretrizes vindas de seus superiores e essas discordâncias o</p><p>levaram a se afastar do núcleo dirigente do governo. Alguns autores apontam</p><p>Kennan como um dos mentores do processo de estruturação das operações</p><p>clandestinas da Agência Central de Inteligência (CIA), ainda nos anos iniciais da</p><p>Guerra Fria (WEINER; CROSSETTE, 2005).</p><p>Stephen Kotkin, sublinha a diferença entre o que Kennan escrevia e o que</p><p>muitas vezes ele fazia. Ele era conhecedor da psicologia e do comportamento do</p><p>povo e do governo soviético. Havia escrito sobre isso no detalhe, no entanto, em</p><p>uma entrevista coletiva à imprensa no aeroporto de Tempelhof, em Berlim, ele</p><p>comparou as condições em que estava a viver em Moscou, com restrições de</p><p>movimento, com a sua detenção na Alemanha de Hitler. O governo soviético,</p><p>irado com a conduta do diplomata, negou a sua entrada novamente na URSS e</p><p>assim o seu posto de embaixador durou menos de cinco meses. Kotkin ressalta</p><p>que, se de um lado, Kennan pregava a paciente contenção das ações</p><p>expansionistas soviéticas, por debaixo dos panos, apoiava ações de sabotagem</p><p>anticomunista e operações secretas de apoio a movimentos anticomunistas</p><p>(KOTKIN, 2016).</p><p>Em 1952, Kennan retornou à União Soviética como embaixador,</p><p>e em suas</p><p>memórias, expressa o seu descontentamento com a situação a que estava</p><p>submetido em Moscou. Relata as dificuldades dessa fase da vida e indica que as</p><p>condições haviam se tornado muito piores do que no período da aliança de</p><p>guerra, quando ele possuía maior liberdade de movimento e possibilidades de</p><p>contatos e mesmo de alguma vida social em Moscou. O diplomata relembra que</p><p>nessa fase dos anos mais difíceis da Guerra Fria, haviam desaparecido aqueles</p><p>soviéticos com quem ele podia manter uma conversa amistosa. Relata ainda</p><p>alguns episódios difíceis com os quais teve que se defrontar. Dentre eles,</p><p>sublinha o caso de um jovem que adentrou à embaixada a se dizer filho do ex-</p><p>ministro da Segurança de Estado, Victor S. Abakumov, que havia sido</p><p>recentemente “expurgado”. O diplomata afirma não se lembrar dos detalhes com</p><p>exatidão, mas que o jovem haveria sugerido que precisava de dinheiro e armas</p><p>para que ele e outros amigos em situação semelhante pudessem agir e eliminar o</p><p>líder soviético. Kennan afirma que desconfiou do relato e pensou que certamente</p><p>seria uma provocação.</p><p>Assim, haveria dito ao jovem que isso não era problema seu, que não violaria</p><p>as leis soviéticas ou interferiria em suas políticas domésticas. Relembra que o</p><p>jovem lhe indagara como sairia de lá, pois a embaixada era vigiada. Kennan</p><p>recorda que após ouvir o jovem, respondeu que isso não era problema seu e que</p><p>o jovem deveria haver pensado nisso antes de adentrar à embaixada. Dito isso,</p><p>ressalta que solicitou ao rapaz que se retirasse. Ao reconstruir suas memórias,</p><p>Kennan salienta que alguns dias depois, um colega lhe mostrou uma foto tirada</p><p>havia cerca de um ano na embaixada britânica, quando da apresentação de</p><p>credenciais dos diplomatas soviéticos, em que o jovem aparecia logo atrás de</p><p>figuras chaves da solenidade. Kennan então concluiu que Stálin havia enviado o</p><p>jovem com o objetivo de levar o embaixador a cometer algum deslize</p><p>(KENNAN, 1973, p. 147-151).</p><p>As memórias desse período da sua vida em Moscou são ainda marcadas pela</p><p>descoberta de um mecanismo de escuta em uma parede da embaixada (Spaso</p><p>House), segundo Kennan, após uma redecoração efetuada no local, pelos</p><p>soviéticos e sem a supervisão de pessoal dos EUA. O diplomata relembra das</p><p>suspeitas, mas afirma que inicialmente a equipe de segurança da embaixada não</p><p>conseguiu detectar qualquer indício de presença de equipamento de escuta.</p><p>Então trouxeram especialistas dos EUA e depois de muito trabalho, descobriram</p><p>o mecanismo, que aparentemente era de uma nova geração e que foi enviado a</p><p>Washington para ser analisado. Kennan lembra que foi nesse clima que ele</p><p>deixou o país para ir à conferência em Londres (KENNAN, 1973, p. 147-167).</p><p>Das memórias de Kennan, onde há a menção ao fato de que essa reforma foi</p><p>efetuada entre a saída do antigo embaixador e a sua chegada a Moscou,</p><p>depreende-se que esse mecanismo de escuta funcionou durante todo o período</p><p>em que ele esteve na embaixada. Caso procedente a informação, é plausível</p><p>supor-se que, por meio da espionagem, os soviéticos tiveram acesso a muitas</p><p>informações do que ocorria no interior da embaixada, e isso, certamente,</p><p>contribuiu para tornar as relações mais turbulentas. É necessário observar que,</p><p>em especial nesse período, a espionagem mútua entre os EUA e a URSS era uma</p><p>constante e que o fato ocorrido não fugia muito à expectativa existente em</p><p>ambos os lados.</p><p>Naquele contexto, nos meios diplomáticos estadunidenses havia uma</p><p>pressuposição de que Kennan fosse designado para outra embaixada, no entanto</p><p>os republicanos e o novo secretário de Estado, John Foster Dulles e seus</p><p>principais aliados, consideravam a Doutrina da Contenção negativa, fútil e</p><p>imoral e prometiam a libertação da Europa Oriental. Essa nova orientação</p><p>impressa à política externa estadunidense levou à erosão da sustentação de</p><p>Kennan no Departamento de Estado. Em decorrência, ele não foi indicado para</p><p>um novo posto de embaixador e então retornou a Princeton (ARMS, 1994, p.</p><p>321-322).</p><p>A Doutrina da Contenção</p><p>Foi em meio às crescentes desavenças entre os EUA e a URSS no imediato</p><p>pós Segunda Guerra Mundial que o diplomata George Frost Kennan propôs</p><p>uma estratégia objetivando conter qualquer suposta ação expansionista da</p><p>URSS. Em 22 de fevereiro de 1946, Kennan enviou, de Moscou, uma mensagem</p><p>que ficou conhecida como Longo Telegrama. O texto, fora dos padrões usuais</p><p>para um telegrama diplomático, continha pouco mais que 5.300 palavras26. No</p><p>telegrama, Kennan discorre sobre as indagações formuladas pelo Departamento</p><p>de Estado, por intermédio de um documento interno datado do dia 11 daquele</p><p>mês. Em sua resposta, o diplomata analisava a condução da política externa</p><p>soviética, a vinculava à ideologia comunista, às políticas domésticas do Kremlin e</p><p>prescrevia uma estratégia direcionada ao relacionamento dos EUA com a URSS.</p><p>Em síntese, a recomendação de Kennan estava alicerçada na premissa da</p><p>existência de interesses antagônicos e irreconciliáveis entre os EUA e a URSS. O</p><p>diplomata avaliava, contudo, que os EUA deveriam se colocar como nação líder</p><p>do mundo democrático e apontar caminhos às outras nações com vistas a</p><p>superar os inúmeros problemas vigentes nas sociedades democráticas.</p><p>Recomendava ainda que os EUA deveriam evitar a todo custo o confronto direto</p><p>com a União Soviética (KENNAN, 1946).</p><p>No National War College, Kennan pode aprofundar a sua elaboração sobre a</p><p>política externa do país (KENNAN, 1967, p. 298). Em dezembro de 1946, o</p><p>secretário da Marinha, James V. Forrestal, encaminhou a Kennan um</p><p>memorando sobre a política externa soviética (Dialectical Materialism and</p><p>Russian Objectives) elaborado por Edward F. Willet, que era professor do Smith</p><p>College e que havia se tornado o especialista da Marinha em marxismo e política</p><p>externa da União Soviética (WILLET, 1946).</p><p>Kennan considerou o memorando bem informado, no entanto, do seu ponto</p><p>de vista, o documento era uma miscelânea que revelava a ausência de uma</p><p>percepção acurada dos desígnios estratégicos e da política externa soviética.</p><p>Entre outras coisas, Willet afirmava que a URSS poderia ir à guerra com os EUA</p><p>por causa dos dogmas do materialismo histórico. Em decorrência, Kennan</p><p>consultou o secretário sobre o seu interesse na preparação de uma análise mais</p><p>detalhada da matéria. Com o aceno positivo, o diplomata reviu e adensou a sua</p><p>análise sobre o tema contida no chamado Longo Telegrama. Disso resultou a</p><p>elaboração de um documento mais sofisticado em que o diplomata examinava a</p><p>conduta soviética e recomendava estratégias para o relacionamento dos EUA</p><p>com a URSS (STEPHANSON, 1992, p. 65).</p><p>Stephanson sublinha que Kennan possuía uma ótica sobre a questão da</p><p>ideologia na URSS distinta das duas posições antagônicas então existentes nos</p><p>EUA. De um lado, havia uma perspectiva que subordinava tudo o que acontecia</p><p>na URSS à questão da ideologia e, de outro, havia aqueles para quem a ideologia</p><p>não era nada, senão mera fachada. Conforme aponta Stephanson, Kennan</p><p>entendia que, durante o esforço de guerra, tendeu-se a uma perspectiva de que a</p><p>ideologia comunista era uma mera fachada e que o Kremlin atuava como</p><p>qualquer potência tradicional, perseguindo o seu interesse de Estado. Com o fim</p><p>da guerra, houve uma guinada em sentido oposto e, desse ponto de vista, a União</p><p>Soviética passava a significar pura e simplesmente conquista comunista. O</p><p>Diplomata discordava das duas perspectivas e defendia uma posição</p><p>intermediária.</p><p>É bem verdade que, como de outras vezes, a posição de Kennan oscilou e é</p><p>possível detectar contradições em seu pensamento. No início de 1947, abordou a</p><p>questão da ideologia na política externa soviética em diferentes ocasiões e é</p><p>possível observar essas incongruências em suas preleções. Em janeiro daquele</p><p>ano, falou para um grupo restrito de membros do Council on Foreign Relations,</p><p>em Nova Iorque. Em sua locução (The Soviet way of thought and its effect in</p><p>Foreign Policy), ampliou o escopo da sua análise. Conforme demonstra</p><p>Stephanson, há duas versões dessa apresentação, uma de 7 e outra de 24 de</p><p>janeiro.</p><p>Kennan não escreveu suas falas, mas elas foram anotadas</p><p>confidencialmente, e desse modo é possível perceber essas diferenças, conforme</p><p>indicado na edição especial da Foreign Affairs, dedicada a abordar a questão da</p><p>Contenção 40 anos depois (FOREIGN AFFAIRS, 1987).</p><p>A partir de uma interpretação que considerava a perspectiva marxista, ao</p><p>menos em tese, estruturante do regime stalinista, Kennan entendia que a</p><p>ideologia não era tudo, pois se constituía em um produto das necessidades do</p><p>sistema então vigente na URSS. Para ele, contudo, esse processo não podia ser</p><p>compreendido de forma mecânica. Kennan procura demonstrar que o</p><p>constructo ideológico empregado pelo regime era produto das necessidades do</p><p>sistema soviético e, em certa medida, o antecediam. Nesse aspecto, ele situa a</p><p>questão em termos de preservação do poder autoritário existente na Rússia</p><p>czarista frente ao que aquele regime entendia ser um ambiente externo hostil aos</p><p>seus interesses.</p><p>Em relação aos dirigentes soviéticos, ele diferenciava Lenin do restante.</p><p>Entendia que Lenin era um socialista sincero e que se seu governo perdurasse</p><p>seria possível esperar alguma moderação27. Ressalta, porém, que durante a</p><p>construção do regime soviético, a percepção de que estavam cercados por um</p><p>mundo hostil os levou a desenvolver os aparatos de segurança. Para ele, nesse</p><p>tipo de regime todas aquelas atividades relacionadas à segurança de Estado</p><p>foram expandidas, enquanto os outros setores tenderam à atrofia. Em paralelo,</p><p>Kennan discordava da perspectiva de que a ideologia não possuía papel algum e</p><p>procurava demonstrar que ela tinha papel importante, uma vez que, para ele,</p><p>talvez fosse ela o único aspecto positivo do regime (STEPHANSOM, 1992, p.</p><p>68-69).</p><p>Em 31 de janeiro de 1947, Kennan encaminhou o documento ao secretário</p><p>Forrestal que afirmou haver gostado muito da análise e informou que a</p><p>encaminharia ao secretário de Estado, general George C. Marshall (KENNAN,</p><p>1996. p. 110)28. Em suas memórias, aventou a hipótese de que a sua posterior</p><p>indicação para a coordenação da equipe de planejamento estratégico do</p><p>Departamento de Estado e a atribuição do encargo para coordenar a elaboração</p><p>de um plano para a recuperação da Europa, que posteriormente ficou conhecido</p><p>como Plano Marshall, fossem resultado dessa indicação de Forrestal. Pouco</p><p>depois, foi instado pelo editor da Foreign Affairs, Hamilton Fish Armstrong, que</p><p>havia participado da sua apresentação para o Council on Foreign Relations, a</p><p>escrever um texto sobre o tema (KENNAN, 1967, p. 354). Kennan explicou que</p><p>o havia escrito a pedido de Forrestal e que em decorrência somente o poderia</p><p>publicar sob pseudônimo. Armstrong, a princípio ficou em dúvida, pois</p><p>habitualmente o magazine não publicava textos sem a adequada identificação do</p><p>autor. Assim, consultou seu editor assistente, Byron Dexter, e este considerou a</p><p>importância das reflexões do diplomata e sugeriu a publicação. Dexter sugeriu</p><p>então que o artigo fosse assinado com o pseudônimo de Mr. “X” (FOREIGN</p><p>AFFAIRS, 1987).</p><p>A Foreign Affairs era a principal publicação de política internacional nos EUA</p><p>e, quase certamente, no mundo. Muitos dos policymakers estadunidenses</p><p>costumavam contribuir com o periódico que reverberava, regra geral, o</p><p>mainstream da política externa do país. Kennan pensou em aproveitar o texto que</p><p>ele havia encaminhado privadamente ao secretário Forrestal. Ao mesmo tempo,</p><p>como funcionário governamental que havia produzido aquele documento, ele se</p><p>considerava impendido de torná-lo público, sem a devida autorização da</p><p>burocracia estatal.</p><p>No início de março, Kennan consultou o almirante Forrestal sobre a eventual</p><p>publicação e, como não houve objeção, encaminhou o material no dia 13</p><p>daquele mês para o comitê de publicações não oficiais do Departamento de</p><p>Estado, para a habitual liberação e recebeu a autorização em 8 de abril</p><p>(KENNAN, 1967a, p. 354-355). Então, enviou o texto ao magazine e ele foi</p><p>publicado com o título de “The Sources of Soviet Conduct” na edição de julho</p><p>do periódico. O artigo era assinado por Mr. X. Forrestal, no entanto, havia</p><p>mostrado o original do diplomata a muita gente, e o colunista do The New York</p><p>Times, Arthur Krock, que havia visto a primeira versão do texto, estabeleceu a</p><p>relação entre os dois e tornou pública origem oficial do artigo de Mr. X. Isso</p><p>gerou uma enorme celeuma, de tal modo que Kennan foi chamado pelo general</p><p>Marshall a quem explicou que havia solicitado e recebido autorização do setor</p><p>competente do Departamento de Estado para a publicação. Desse modo, a</p><p>situação foi resolvida, mas ela gerou um mal-estar (KENNAN, 1967a, p. 356-</p><p>357).</p><p>Conforme Stephanson assinala, Kennan não reduzia as questões do conflito</p><p>entre os EUA e a URSS à questão ideológica. No artigo publicado na Foreign</p><p>Affairs, em julho de 1947, contudo, o diplomata sublinhava a matriz ideológica</p><p>do problema. Desse modo, o pai da Doutrina da Contenção via na ideologia o</p><p>único aspecto positivo de um regime que caso contrário implicaria, do seu ponto</p><p>de vista, apenas crueldade e sofrimento para os seres humanos que vivessem sob</p><p>o seu domínio. Quando os seus escritos produzidos naquele momento da</p><p>história são colocados sob escrutínio, é possível perceber um balanço quase</p><p>pendular em relação a esse tema. Como ele não conseguia uma alternativa nem</p><p>àquela visão para quem tudo o que acontecia na URSS era decorrência da</p><p>ideologia nem para a perspectiva de que ideologia era mera fachada para os</p><p>interesses do Estado soviético, ele procurou construir uma alternativa que</p><p>transitava entre um campo e outro, ora mais próximo do centro, ora mais</p><p>próximo de um ou do outro polo. Por isso, é possível encontrar diferenças</p><p>significativas em relação a essa questão em falas proferidas ou em escritos</p><p>produzidos entre 1946 e 1947 (STEPHANSON, 1992, p. 65-66).</p><p>Muito provavelmente é em decorrência desses embates associados à questão</p><p>da ideologia que em Sources of Soviet Conduct o autor, já em seu primeiro</p><p>parágrafo, afirma que a característica política do poder soviético deriva de dois</p><p>campos: da ideologia e das circunstâncias; da ideologia herdada dos movimentos</p><p>políticos de onde seus líderes são provenientes e das circunstâncias em que eles</p><p>estão a exercer o poder há três décadas. Em continuidade, Kennan assegurava</p><p>que, da perspectiva do Kremlin, não poderia haver um compromisso sincero que</p><p>envolvesse a União Soviética e as democracias ocidentais. O diplomata</p><p>justificava que, na concepção marxista-leninista, fundamento ideológico do</p><p>regime soviético, havia teses basilares a serem consideradas: a questão central na</p><p>existência da humanidade, que determina o caráter da vida pública e a fisionomia</p><p>da sociedade, é o sistema por intermédio do qual as riquezas são produzidas e</p><p>trocadas; o sistema capitalista é perverso e nele é inerente a exploração do</p><p>proletariado pela burguesia e, além disso, o sistema é incapaz de desenvolver</p><p>adequadamente os recursos econômicos da sociedade e de promover a</p><p>distribuição das riquezas provenientes do trabalho humano; o capitalismo</p><p>contém em seu interior as sementes da sua própria destruição, uma vez que a</p><p>burguesia é incapaz de se adaptar às mudanças necessárias, o que leva à</p><p>transferência do poder ao proletariado pela via revolucionária; o imperialismo,</p><p>fase final do capitalismo na concepção leninista, leva inevitavelmente à guerra e à</p><p>revolução (KENNAN. 1999, p. 107-108).</p><p>Em outras palavras, Kennan sublinha que na concepção soviética lastreada</p><p>numa leitura marxista da sociedade capitalista, em especial da sua fase</p><p>imperialista, é inevitável a intensificação da luta de classes para promover a</p><p>transferência do poder da burguesia ao emergente proletariado. O diplomata,</p><p>entretanto, cita Lenin para explicar que, desse ponto de vista, a princípio o</p><p>socialismo poderia florescer apenas em alguns países ou em um único país e que</p><p>o proletariado vitorioso desses países deveria se erguer e apontar o caminho às</p><p>classes oprimidas dos outros países. Sublinha que, segundo essa concepção, não</p><p>há garantias de que o capitalismo venha a perecer</p><p>dos centros decisórios do Governo e passou a criticar a</p><p>política externa do seu país e a afirmar que haveria ocorrido uma distorção no</p><p>emprego da sua doutrina. Nessas críticas, Kennan afirma que foi adicionado um</p><p>caráter militarista que a Doutrina da Contenção não possuía em sua concepção</p><p>original. Os historiadores ortodoxos estadunidenses responsabilizam a União</p><p>Soviética pela emergência da Guerra Fria e a acusam de desrespeitar os acordos</p><p>firmados ao final da II Guerra Mundial e de apoderar-se militarmente dos</p><p>territórios localizados no Centro e no Leste da Europa. Dentre os autores</p><p>ortodoxos, além do próprio Kennan, destacam-se William McNeill, Herbert Feis</p><p>e Arthur Schlesinger Jr. Desse ponto de vista, os EUA foram obrigados a</p><p>defender os seus aliados da agressão comunista soviética e isso teria levado ao</p><p>crescimento dos conflitos e à emergência da Guerra Fria.</p><p>Ortodoxia soviética</p><p>A ortodoxia soviética constitui-se o outro lado da moeda da corrente anterior.</p><p>Seus expoentes também estão associados ao serviço diplomático e expressam a</p><p>visão da política externa do seu país. Essa corrente interpretativa responsabiliza</p><p>os EUA pela emergência do novo conflito global, surgido ao fim da II Guerra</p><p>Mundial, como resultado da ação imperialista e do desrespeito aos tratados</p><p>firmados em Ialta e em Potsdam. Dessa perspectiva, a Guerra Fria resultou das</p><p>ações dos EUA e dos seus aliados para se apoderarem da esfera soviética,</p><p>negociada ao final da II Guerra Mundial, na Europa Central e Oriental. Esses</p><p>autores sublinham que o Exército Vermelho venceu as forças do Eixo nesse</p><p>quadrante da Europa e que a URSS estimulou a formação de governos amigos</p><p>nesses territórios. Acrescentam que os EUA impulsionaram a subversão da</p><p>ordem na região com o intuito de ameaçar a URSS e os seus aliados. De acordo</p><p>com esse enfoque, a preservação dessa esfera de influência era vital para a</p><p>segurança do país, pois ela constituía-se em um escudo protetor frente a futuras</p><p>agressões. Assim, à União Soviética restou defender a região dos EUA e dos seus</p><p>aliados, que promoveram uma agressão imperialista e desencadearam uma</p><p>corrida armamentista, quando a URSS aspirava apenas à paz e à reconstrução.</p><p>Revisionismo</p><p>A crítica revisionista despontou em 1959 e desenvolveu-se nas décadas</p><p>seguintes, na esteira da publicação de The Tragedy of American Diplomacy, de</p><p>Williams A. Williams. Para os historiadores revisionistas, havia nos EUA uma</p><p>história da Guerra Fria que reverberava, de forma acrítica, a visão oficial</p><p>produzida pela diplomacia do país. Esses historiadores indicavam a influência</p><p>decisiva da economia doméstica e da ideologia na edificação da política externa</p><p>dos EUA. Sublinhavam a incompreensão, nos EUA, tanto da política interna</p><p>quanto externa da URSS. Divergiam da história oficial que responsabilizava a</p><p>União Soviética pelo início da Guerra Fria. Afirmavam que o país havia perdido</p><p>de 15 a 20 milhões de habitantes durante a guerra e que se encontrava arrasado.</p><p>Em decorrência, os revisionistas afirmavam que a URSS não ameaçava a Europa</p><p>ou os EUA. Esses historiadores concluíam que a ação soviética era, sobretudo,</p><p>defensiva. Para eles, na avaliação soviética, os EUA adotaram, após a morte de</p><p>Roosevelt, posturas agressivas que ameaçavam o leste da Europa e a segurança da</p><p>URSS. Essa percepção levou ao fechamento político no leste da Europa e a</p><p>medidas de defesa que foram consideradas agressivas pelo Ocidente. Dentre os</p><p>historiadores revisionistas, destacam-se William A. Williams, Walter LaFeber,</p><p>Gabriel Kolko e Lloyd Gardner.</p><p>Pós-revisionismo</p><p>Na década de 1980, o historiador John Lewis Gaddis propôs a superação dos</p><p>modelos ortodoxo e revisionista para a análise da Guerra Fria. Para esse autor,</p><p>com o final daquele conflito de dimensões globais, era imprescindível buscar um</p><p>consenso pós-revisionista. Nesse percurso, Gaddis defendeu a adoção de uma</p><p>perspectiva próxima à neutralidade como caminho para a melhor compreensão</p><p>do período da Guerra Fria.</p><p>Dessa proposição derivou uma corrente histórica nominada como pós-</p><p>revisionista. Uma análise mais acurada das principais teses contidas nas obras de</p><p>Gaddis e de seus seguidores, no entanto, evidencia a crítica sistemática ao</p><p>revisionismo e a reiteração das teses ortodoxas, mesmo que de uma forma mais</p><p>refinada. Desse modo, o pós-revisionismo, na prática, corporificou-se como uma</p><p>antítese revisionista ou em uma neo-ortodoxia. De forma dominante, a</p><p>perspectiva pós-revisionista enfoca, principalmente, as políticas concertadas</p><p>pelas elites e as transformações no equilíbrio de poder no campo das relações</p><p>internacionais. Além disso, essa corrente cultiva uma atenção especial às</p><p>estratégias, elaboradas pelos policy-makers estadunidenses, concernentes à</p><p>garantia da segurança interna e à promoção da defesa do país frente às possíveis</p><p>ameaças externas.</p><p>Corporatismo</p><p>Os corporatistas defendem a existência de uma linha de continuidade na Grande</p><p>Política dos EUA ao longo do século XX. Para Hogan, a economia doméstica e as</p><p>questões sociais e ideológicas influenciaram a diplomacia dos EUA. Dessa forma,</p><p>a política externa do país tornou-se alvo da pressão dos grupos organizados.</p><p>Hogan afirma que se desenvolveu nos EUA um Estado associativo ou um</p><p>neocapitalismo corporativo, ancorado na autorregulação dos grupos</p><p>econômicos, integrados por coordenações institucionais e por mecanismos de</p><p>mercado. Para ele, os EUA buscaram, durante o século XX, planejar uma ordem</p><p>mundial referenciada no modelo corporatista doméstico. Hogan acredita, no</p><p>entanto, que esse não é um percurso de mão única, pois entende que muitos</p><p>aspectos da política doméstica também foram influenciados pela política externa</p><p>do país. Ao final da II Guerra Mundial, tanto questões endógenas (política</p><p>interna) quanto exógenas (expansão soviética) influenciariam as estratégias dos</p><p>EUA. Naquele contexto, foi edificada uma arquitetura de poder global alicerçada</p><p>no Tratado de Bretton Woods, na ONU, no Banco Mundial, no Fundo</p><p>Monetário Internacional e no Tratado Geral de Tarifas. Posteriormente, o Plano</p><p>Marshall, a Doutrina Truman e as alianças regionais foram agregados a essa</p><p>estrutura. A implementação dessas políticas foi vista pelo Kremlin como uma</p><p>ameaça. Assim, a União Soviética adotou posturas que também foram vistas</p><p>pelos EUA como agressivas. Isso tudo aumentou o clima de tensão e levou à</p><p>emergência da Guerra Fria.</p><p>SUMÁRIO</p><p>PARTE I – EUA, GRÃ-BRETANHA E UNIÃO SOVIÉTICA: DA GRANDE ALIANÇA ÀS ORIGENS</p><p>DO NOVO CONFLITO GLOBAL 27</p><p>NOTAS INTRODUTÓRIAS 29</p><p>1</p><p>DIFERENTES PERSPECTIVAS SOBRE A GUERRA FRIA 35</p><p>2</p><p>A OPERAÇÃO BARBAROSSA E A SEGUNDA FRENTE DE BATALHA 53</p><p>3</p><p>A MORTE DE ROOSEVELT: TRUMAN COMO TIMONEIRO DA POLÍTICA EXTERNA</p><p>ESTADUNIDENSE 83</p><p>4</p><p>A GUERRA NO EXTREMO ORIENTE 109</p><p>5</p><p>OPERATION UNTHINKABLE 127</p><p>PARTE II – AS DIFERENTES PERSPECTIVAS DE PODER DAS NOVAS POTÊNCIAS GLOBAIS E</p><p>A EMERGÊNCIA DA GUERRA FRIA 135</p><p>6</p><p>KENNAN E A ARQUITETURA DA POLÍTICA EXTERNA DOS EUA DURANTE A PRIMEIRA</p><p>FASE DA GUERRA FRIA 137</p><p>7</p><p>A EDIFICAÇÃO DOS BLOCOS DE PODER E A ARQUITETURA DE UM NOVO SISTEMA</p><p>GLOBAL 161</p><p>8</p><p>IMPERIALISMO E ANTI-IMPERIALISMO, COMUNISMO E ANTICOMUNISMO DURANTE A</p><p>GUERRA FRIA 191</p><p>PARTE III – O CREPÚSCULO DA GUERRA FRIA 209</p><p>9</p><p>DAS DÉTENTES À NOVA CONFRONTAÇÃO GLOBAL 211</p><p>10</p><p>A CRISE DO SISTEMA SOVIÉTICO E O FIM DA GUERRA FRIA 243</p><p>CONSIDERAÇÕES PARCIAIS E PROVISÓRIAS SOBRE UM TEMA MOVEDIÇO 265</p><p>REFERÊNCIAS 279</p><p>ÍNDICE ONOMÁSTICO E REMISSIVO 297</p><p>PARTE I</p><p>EUA, GRÃ-BRETANHA E UNIÃO SOVIÉTICA:</p><p>DA GRANDE ALIANÇA ÀS ORIGENS DO</p><p>NOVO CONFLITO GLOBAL</p><p>NOTAS INTRODUTÓRIAS</p><p>Este livro tem como objetivo apresentar ao leitor uma história e efetuar um</p><p>balanço historiográfico da Guerra Fria. De início, essa tarefa será realizada por</p><p>intermédio da análise de alguns eventos que se tornaram centrais na</p><p>configuração das percepções dos principais atores internacionais e na definição</p><p>das suas estratégias de ação que, de uma forma ou de outra, resultaram nas</p><p>tensões que deram origem à Guerra Fria. Em continuidade, serão apresentadas as</p><p>diferentes percepções desse conflito global.</p><p>sem a revolução proletária e</p><p>que seria necessário um golpe final do proletariado revolucionário para derrubar</p><p>a estrutura cambaleante do capitalismo (KENNAN, 1999, p. 108).</p><p>Não obstante, alicerçado na sua compreensão da história do povo russo e da</p><p>concepção marxista da história adotada, ao menos em tese, pelas lideranças do</p><p>Kremlin, Kennan acreditava que a estratégia da diplomacia soviética</p><p>pressupunha a inevitabilidade da vitória do socialismo sobre o capitalismo como</p><p>um processo de longa duração. Além disso, conforme ele afirma ao fazer</p><p>referência a Lenin, os dirigentes soviéticos entendiam que havia a necessidade de</p><p>grande cautela e flexibilidade na consecução dos objetivos comunistas. Compara</p><p>ainda esses objetivos de longa duração com os da Igreja e afirma que, do ponto</p><p>de vista dos soviéticos, não há pressa em atingir esses objetivos, pois ninguém</p><p>teria o direito de arriscá-los de forma aventureira. Nesse ponto, retoma a história</p><p>do Império Russo, e afirma que durante séculos suas forças enfrentaram</p><p>obscuras batalhas para defender as planícies vulneráveis de invasões de povos</p><p>nômades. Para ele, esses eventos levaram os russos à prudência, a considerarem</p><p>posicionamentos mais flexíveis e a recuarem face a adversários superiores</p><p>(KENNAN, 1999, p. 118). Embasado nessa percepção do mundo russo, da</p><p>doutrina marxista e da estrutura de poder então vigente na URSS, Kennan</p><p>defendia que os EUA passassem a empregar uma política externa de longa</p><p>duração alicerçada em uma paciente, duradoura e vigilante contenção das</p><p>possíveis tendências expansionistas soviéticas (KENNAN, 1947; 1969; 1999). O</p><p>diplomata preconiza que em um eventual sinal de agressão ou tentativa de</p><p>expansão soviética os Estados Unidos deveriam estar prontos para se</p><p>contraporem à adversária de forma a dissuadi-la do seu intento. O diplomata</p><p>ressalva, contudo, que o conflito direto deveria ser evitado.</p><p>A partir dessa análise, Kennan concluiu ainda que, em um futuro próximo, os</p><p>EUA não deveriam esperar a aproximação política com a URSS. Essa assertiva se</p><p>baseava em uma leitura de que a União Soviética não estava a buscar a</p><p>coexistência e a paz, mas, de modo oposto, perseguia uma sofisticada estratégia</p><p>de contínua pressão contra os EUA com o desígnio de desgastar, desacreditar e</p><p>reduzir o seu poder e a sua capacidade de influência global. Kennan entendia que</p><p>do ponto de vista soviético, no futuro, a superioridade do sistema socialista</p><p>frente ao capitalismo conduziria à vitória sobre o capitalismo, porém não havia</p><p>previsão de quando isso viria a ocorrer e também não havia a sugestão de que</p><p>esse objetivo fosse alcançado por intermédio de um conflito militar.</p><p>Em consonância com essa leitura, Kennan distanciava-se de outros</p><p>estrategistas estadunidenses, como, por exemplo, Dean Acheson, John Foster</p><p>Dulles e Paul Nitze, ao asseverar que a principal ameaça soviética não provinha</p><p>do campo militar, mas da ideologia. Para ele, a capacidade de ação e de sedução</p><p>das organizações comunistas no interior das nações democráticas era o maior</p><p>trunfo soviético. Diante disso, ele opinava que os EUA deveriam ser capazes de</p><p>promover a união das principais correntes ideológicas do mundo ocidental e de</p><p>comandar as democracias rumo a um futuro promissor em que as suas</p><p>populações pudessem desfrutar das melhorias advindas desse progresso. Em</p><p>contraste, o comunismo soviético se tornaria, cada vez mais, estéril e quixotesco,</p><p>o que esvaziaria a sua capacidade de atração. Kennan entendia que a URSS era,</p><p>seguramente, a parte mais frágil no conflito. Para ele, apesar da sua rápida</p><p>industrialização e desenvolvimento econômico, o regime soviético não podia</p><p>atender às necessidades sociais do seu povo e essa incapacidade o levaria à ruína.</p><p>De fato, ele operava uma espécie de inversão da teoria marxista, ao prever que</p><p>contradições internas geradas no interior da sociedade soviética, em decorrência</p><p>da incapacidade do seu sistema produtivo para atender as necessidades</p><p>socialmente produzidas, gerariam forças sociais que entrariam em choque com o</p><p>regime e levariam à sua superação.</p><p>A crítica de Walter Lippmann</p><p>Walter Lippmann, à época um dos mais consagrados jornalistas dos EUA,</p><p>criticou a perspectiva de Mr. X, pseudônimo adotado por Kennan, por</p><p>intermédio de um texto publicado no New York Herald Tribune. O artigo de</p><p>Lippmann, intitulado The Cold War, teve grande repercussão, o que levou o</p><p>jornalista a escrever outros sobre temas correlatos, posteriormente reunidos em</p><p>um livro também denominado The Cold War. Saliente-se que a partir da</p><p>reverberação dos artigos de Lippmann e do seu livro, a expressão “Guerra Fria”</p><p>passou a ser empregada, cada vez mais, para se referir aos conflitos crescentes a</p><p>envolver os EUA, a URSS e os seus respectivos aliados. Assim, em pouco tempo,</p><p>a metáfora Guerra Fria ganhou uma dimensão global. George Orwell já havia</p><p>empregado o termo em 1945, Bernard Baruch e Herbert Swope, em 1946, no</p><p>entanto foi Lippmann o responsável pela sua universalização (HALLIDAY, 1983;</p><p>REYNOLDS, 1994; MUNHOZ, 2004a). Para Lippmann, tanto a Doutrina</p><p>Truman quanto a Doutrina da Contenção eram inaceitáveis e implicavam</p><p>interferências nas políticas domésticas de outras nações (LIPPMANN, 1947).</p><p>Walter Lippmann entendia que, naquele contexto, era necessário chegar a</p><p>bom termo com a União Soviética, pois de alguma forma seria necessário buscar</p><p>um modo de convivência com os soviéticos. Para o jornalista, o caminho até</p><p>então trilhado pelos EUA levaria ao esgotamento moral e político do país.</p><p>Lippmann asseverava que sem um acordo, o Exército Vermelho permaneceria no</p><p>continente europeu. Ressaltava que ocupação da Europa por tropas estrangeiras</p><p>era inaceitável, fossem elas soviéticas ou dos EUA. Concluía que a perspectiva</p><p>apresentada no artigo de Mr. X levava ao aumento das tensões na Europa e que</p><p>isso implicava o alargamento das desavenças entre os EUA e a URSS, o que</p><p>poderia rumar para um conflito de proporções catastróficas (LIPPMANN,</p><p>1947).</p><p>O Plano Marshall</p><p>Entre 1946 e o início de 1947, Kennan conquistou respeito e espaço na</p><p>equipe de governo dos EUA. O Almirante Forrestal, então secretário da Marinha</p><p>e que se tornou o primeiro secretário da Defesa dos EUA, a partir de setembro de</p><p>1947, o introduziu no restrito círculo dos policymakers estadunidenses. Inclui-se</p><p>aí a aproximação com o General George C. Marshall, que assumiu o</p><p>Departamento de Estado em 21 de janeiro de 1947. Marshall logo convidou</p><p>Kennan para criar e coordenar o Policy Planning Staff. Essa equipe deveria</p><p>produzir uma análise da política global dos EUA e subsidiar o secretário de</p><p>Estado em suas decisões e projetos. Pouco depois, Marshall solicitou a Kennan a</p><p>elaboração de um plano destinado à recuperação da Europa. O Plano foi</p><p>apresentado ao público por Marshall em um discurso efetuado em 5 de junho de</p><p>1947, na Universidade de Harvard, com o nome de European Recovery Program.</p><p>O programa teve a sua implementação iniciada em abril de 1948 e ao longo de</p><p>quase quatro anos investiu cerca de 13,3 bilhões de dólares, em valores da época,</p><p>na Europa (HOGAN, 1995b).</p><p>A elaboração do Plano Marshall partiu de demandas advindas do</p><p>Departamento de Estado, onde crescia a preocupação com a situação vigente na</p><p>Europa, que ainda era caótica, apesar dos 9 bilhões de dólares investidos pelos</p><p>EUA no continente em 1945 e 1946. Os resultados alcançados por intermédio</p><p>desses investimentos, contudo, foram desalentadores. No contexto em que se</p><p>agravavam os conflitos a envolver os EUA e a URSS, a situação europeia era vista</p><p>como um caldo de cultura favorável à expansão de movimentos reivindicatórios</p><p>e rebeliões que poderiam ampliar ainda mais a força das agremiações comunistas</p><p>no continente, conforme o próprio Kennan apontava em Sources of Soviet</p><p>Conduct. Esse cenário era considerado preocupante, pois poderia favorecer a</p><p>uma hipotética estratégia expansionista soviética rumo ao Ocidente europeu</p><p>(HOGAN, 1995b; MUNHOZ 2004b).</p><p>Ao analisar a matéria, Kennan e seus auxiliares mais diretos concluíram que</p><p>os fracassos anteriores decorriam</p><p>do fato de que os problemas de cada país</p><p>haviam sido até então tratados de forma isolada, quando, de fato o que havia era</p><p>um problema europeu. Em consonância com essa análise preliminar, concluíram</p><p>que era necessário um tratamento sistêmico do problema que afetava a retomada</p><p>do sistema produtivo europeu. Assim, foi elaborado um plano que respondia a</p><p>essa necessidade e, ao mesmo tempo, considerava as questões particulares de</p><p>cada país. Uma vez definida a concepção do projeto, passou-se a uma segunda</p><p>fase que envolvia a integração das equipes de cada um dos países interessados em</p><p>participar da iniciativa. Desse modo, procurou-se envolver os respectivos</p><p>governos no processo, de tal forma que eles fossem coadjuvantes dessa</p><p>empreitada. Houve divergências quanto ao montante, uma vez que as</p><p>expectativas dos países participantes iam além da disponibilidade ou disposição</p><p>dos EUA e também em relação a muitas das exigências provenientes de</p><p>Washington. Naquele processo, contudo, chegou-se a denominadores comuns e</p><p>o plano foi implementado com resultados que superaram as expectativas iniciais</p><p>de ambas as partes (HOGAN, 1995b, MUNHOZ 2004b).</p><p>Michael Hogan defende a tese de que as ambições do plano excediam a</p><p>simples recuperação da economia europeia. Para esse autor, o Plano Marshall</p><p>objetivava criar uma nova ordem internacional ancorada na expansão do modelo</p><p>econômico, das instituições e dos valores estadunidenses. Adicionalmente, o</p><p>plano era um instrumento importante no sentido de conter a URSS e, ao mesmo</p><p>tempo, redirecionar o capitalismo europeu de modo a torná-lo mais próximo aos</p><p>interesses dos EUA. O Plano foi um sucesso e em pouco tempo resultou na</p><p>melhoria do abastecimento, do fornecimento de energia, dos transportes e do</p><p>mercado de trabalho. Por volta de 1950, a inflação estava sob controle na grande</p><p>maioria dos países participantes, talvez com a grande exceção da França. A</p><p>produção industrial da Europa Ocidental cresceu cerca de 40 por cento entre</p><p>1948 e 1951, de modo a superar mesmo as expectativas mais otimistas. A</p><p>recuperação da agricultura ficou aquém do esperado, ao atingir 11 por cento no</p><p>mesmo período. Na média, a economia europeia teve um crescimento próximo</p><p>de 32 por cento nesse período de cerca de três anos e meio (HOGAN, 1995b). Há</p><p>diferentes perspectivas sobre o papel do Plano Marshall na recuperação da</p><p>Europa, sobre o peso dos investimentos dos EUA na região e sobre os níveis de</p><p>adesão e resistência europeia aos propósitos iniciais dos EUA, mas essa discussão</p><p>vai além do escopo deste trabalho.</p><p>De criador a crítico</p><p>Como já apontado anteriormente, a partir de 1947, Kennan começou a</p><p>manifestar os primeiros sinais de descontentamento em relação à forma como a</p><p>sua Doutrina da Contenção estava a ser entendida, distorcida e implementada.</p><p>Além disso, ele também guardava reservas em relação à Doutrina Truman. Desse</p><p>modo, era natural que houvesse algum tipo de afastamento do núcleo duro de</p><p>elaboração política da administração Truman. Assim, em 1948, quando Truman</p><p>venceu as eleições presidenciais e foi reconduzido a um novo mandato, Kennan</p><p>já não possuía a mesma inserção no governo e o seu espaço de atuação na</p><p>elaboração política tornava-se cada dia mais restrito. Nesse percurso, o seu</p><p>afastamento acentuou-se ainda mais quando passou a divergir do novo titular do</p><p>Departamento de Estado, Dean Acheson que tomou posse em 21 de janeiro de</p><p>1949, no início da segunda administração Truman. Além disso, naquele mesmo</p><p>ano, Kennan censurou o projeto de criação da Organização do Tratado do</p><p>Atlântico Norte (Otan). Na ocasião ele afirmou que a simples existência da</p><p>organização provocaria o incremento das tensões e criaria novos obstáculos à</p><p>política de contenção da União Soviética, uma vez que se tornaria um elemento</p><p>desestabilizador das relações e aumentaria as suspeitas soviéticas em relação aos</p><p>Estados Unidos. Desse ponto de vista, Kennan antecipava que a criação da</p><p>organização poderia levar a uma nova corrida armamentista.</p><p>Nos anos seguintes, o diplomata manteve o seu posicionamento crítico em</p><p>relação a muitas estratégias adotadas por seu governo. Nesse sentido, ele chegou</p><p>a discordar do início do envolvimento dos EUA na Indochina e criticou a entrada</p><p>do país na Guerra da Coreia. Nesse ponto, a sua percepção da dinâmica daquele</p><p>conflito foi bastante precisa, pois ele inclusive advertiu que a presença dos EUA</p><p>na península da Coreia poderia levar a China a se envolver na questão, o que</p><p>certamente levaria ao aumento das tensões e à ampliação do conflito</p><p>(STEPHANSON, 1992; MUNHOZ, 2012). Kennan manteve uma coerência</p><p>nesse posicionamento ao longo dos anos, pois em 1965, em depoimento ao</p><p>Congresso, afirmou que era um erro os EUA se envolverem no conflito no</p><p>Vietnã. (KENNAN, 1967b).</p><p>Em fevereiro de 1950, Kennan encaminhou um memorando a Dean</p><p>Acheson, no qual criticava a militarização da política externa dos Estados</p><p>Unidos. Essa atitude selou a sua marginalização no governo, uma vez que nele os</p><p>críticos da sua Doutrina da Contenção haviam se tornado maioria. Além disso, a</p><p>aprovação, no mesmo ano do National Security Council (NSC-68) foi visto por</p><p>Kennan como inadequado e belicoso, o que aumentaria ainda mais as disputas</p><p>armamentistas.</p><p>Assim, dia-a-dia, Kennan perdia espaço no segundo termo de Harry Truman.</p><p>Nesse contexto, em 1952, como já mencionado, ele foi indicado para o posto de</p><p>embaixador em Moscou, mas logo foi declarado persona non grata naquele país e,</p><p>desse modo, retornou aos EUA, onde se afastou da carreira diplomática e passou</p><p>a integrar os quadros do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de</p><p>Princeton, onde permaneceu até 1974, com um breve interregno entre 1961 e</p><p>1963 quando foi indicado para ser o embaixador dos EUA na Iugoslávia.</p><p>Ao longo dos anos, Kennan continuou as suas atividades acadêmicas em</p><p>Princeton, produziu muitos livros e artigos e posicionou-se por diversas vezes</p><p>de forma crítica ao seu governo, como por exemplo, quando, aos 99 anos de</p><p>idade, afirmou que o plano de George W. Bush para atacar o Iraque era um erro,</p><p>pois aquela era uma guerra que não poderia ser vencida. Era um novo Vietnã.</p><p>Kennan faleceu em 17 de março de 2005, aos 101 anos de idade.</p><p>7</p><p>A EDIFICAÇÃO DOS BLOCOS DE PODER E A</p><p>ARQUITETURA DE UM NOVO SISTEMA GLOBAL</p><p>De uma guerra a outra</p><p>De início sublinho os problemas e os riscos relacionados ao emprego do</p><p>termo “Blocos de Poder”. Destaco que esse caminho possibilita o ordenamento</p><p>da análise a partir de uma percepção de que, no imediato pós-Segunda Guerra</p><p>Mundial, houve um alinhamento de países em dois campos, cada qual com</p><p>características predominantes (capitalismo liberal de um lado e estatismo</p><p>soviético de outro). Esse percurso, entretanto, tende a reduzir o enfoque a uma</p><p>visão bipolar do mundo. Essa percepção de um mundo bipolar é útil para a</p><p>compreensão do grande embate global, mas, ao mesmo tempo, ela contribui para</p><p>embaralhar e dissimular as divergências e as disputas ocorridas no interior de</p><p>cada campo. Feitas essas advertências iniciais, enfatizo o meu ponto de vista de</p><p>que esses campos nunca foram tão homogêneos, como, muitas vezes, acredita-se,</p><p>e ressalto que, muitas vezes, comportaram mais divergências do que lhes são</p><p>atribuídas.</p><p>Ao longo de 1945, a aliança composta por potências alicerçadas em</p><p>ideologias antinômicas, concertada de forma custosa durante o curso da Segunda</p><p>Guerra Mundial, com o escopo compartilhado de confrontar e vencer as forças</p><p>do Eixo, começou a se esgarçar. Naquela contextura, as desavenças surgidas no</p><p>crepúsculo daquela conflagração global engendraram novas contendas que</p><p>conduziram a humanidade pela senda de um novo conflito planetário. Naquele</p><p>encadeamento singular, havia diferentes expectativas em relação às diretrizes que</p><p>norteariam o novo mundo que despontava dos escombros da recente</p><p>hecatombe, que havia ceifado entre 50 e 55 milhões de vidas sacrificadas no altar</p><p>de Marte. Além das diferenças de projetos, um ancorado na chamada democracia</p><p>liberal e outro lastreado no estatismo soviético havia desconfianças mútuas</p><p>erigidas</p><p>ao longo da história recente, de modo que essas cizânias constituíam</p><p>terreno fértil para a eclosão de novos conflitos.</p><p>Na perspectiva soviética, Grã-Bretanha e França não demonstraram interesse</p><p>na formação de uma aliança antifascista para conter a Alemanha de Hitler e seus</p><p>aliados, como proposto por Stálin em 1935. As sucessivas postergações para a</p><p>concretização dessa aliança ao longo dos anos que se seguiram eram percebidas</p><p>como um conluio imperialista para atacar a União Soviética. Assim, segundo essa</p><p>interpretação, em 1939 o regime de Stálin haveria sido forçado a fazer um pacto</p><p>com o inimigo (Pacto Germano-Soviético), para, desse modo, retardar um</p><p>provável ataque à URSS.</p><p>Iniciada a previsível guerra desencadeada por Hitler em agosto de 1939 e</p><p>dada a sua ulterior evolução com a invasão da URSS pela Alemanha, em junho de</p><p>1941, o regime soviético passou a demandar seguidas e continuadas vezes a</p><p>abertura de uma Segunda Frente de batalha na região costeira da França, então</p><p>ocupada por forças do Reich. Essa Segunda Frente deveria ser organizada pelas</p><p>forças aliadas de modo a obrigar a Alemanha a retirar parte dos contingentes</p><p>invasores da URSS, com vistas a proteger as áreas ocidentais, então sob domínio</p><p>do Reich, do planejado ataque. Ressalte-se que o diplomata soviético Maxim</p><p>Litivinov solicitou, pela primeira vez, essa Frente em 8 de julho de 1941.</p><p>Vyacheslav Molotov, então ministro das relações exteriores da URSS, foi aos</p><p>EUA, em 29 de maio de 1942, quando Roosevelt lhe assegurou que poderia</p><p>informar a Stálin que a frente seria realizada ainda naquele ano (SHERWOOD,</p><p>1998, p. 580).</p><p>Para o governo soviético, a procrastinação na abertura da Segunda Frente</p><p>reforçou a percepção de que os EUA e a Grã-Bretanha aguardavam o resultado</p><p>do confronto entre a Alemanha e a URSS, com o propósito de levar tanto a</p><p>primeira quanto a última ao esgotamento. Desse ponto de vista, era plausível a</p><p>hipótese de que as democracias ocidentais esperassem a vitória de uma Alemanha</p><p>enfraquecida pelo combate extenuante, almejando derrotá-la posteriormente</p><p>com maior facilidade e menores perdas humanas e materiais (esse tema foi</p><p>desenvolvido de forma mais detalhada no cap. 1).</p><p>Segundo essa interpretação, a estratégia permitiria às democracias capitalistas</p><p>livrarem-se, de uma só vez, da URSS – de quem eram adversárias ideológicas – e</p><p>da Alemanha, com quem estavam em guerra. Esses receios soviéticos</p><p>encontravam guarida em manifestações de autoridades estadunidenses. A esse</p><p>propósito, chama a atenção uma declaração do então senador Harry S. Truman,</p><p>publicada no The New York Times, em 24 de junho de 1941, portanto cerca de</p><p>quatro anos antes de se tornar presidente dos EUA. Na ocasião, Truman disse</p><p>que, se nós percebermos que a Alemanha está a vencer, devemos ajudar a Rússia,</p><p>e, se a Rússia estiver a sobrepujar a adversária, nós devemos auxiliar a Alemanha</p><p>e, desse modo, então, deixar que as duas se matem tanto quanto possível,</p><p>contudo eu não quero ver Hitler vitorioso sob nenhuma circunstância</p><p>(LaFEBER, 1997, p. 6).</p><p>Enfatize-se que a demora na abertura dessa Frente de batalha até junho de</p><p>1944, quando foi realizada a operação Overlord, evento que se tornou conhecido</p><p>como Dia D, possibilitou o controle da maior parte do Centro e do Leste da</p><p>Europa pelo Exército Vermelho. Desse modo, em fevereiro de 1945, quando</p><p>ocorreu a Conferência de Ialta, a União Soviética mantinha sob controle toda a</p><p>região. Enfatizo, como já defendi em outro capítulo, que a demora na abertura</p><p>da Segunda Frente foi o que possibilitou aos soviéticos a supremacia militar e,</p><p>portanto, o controle da Europa Central e Oriental. Em decorrência, Churchill foi</p><p>a Moscou em outubro de 1944 e logo buscou um acordo com líder soviético que</p><p>garantisse os interesses britânicos no Mediterrâneo. Da mesma forma, quando</p><p>ocorreu a Conferência de Ialta, os aliados ocidentais da URSS não estavam em</p><p>posição de fazer exigências a Stálin e tiveram que se contentar com o que foi</p><p>possível negociar (MUNHOZ, 2004a, p. 269-271; SEBESTYEN, 2014, p. 264-</p><p>266). Nesse sentido, as acusações de que Stálin não cumpriu o acordado em Ialta</p><p>e Potsdam merecem ser tratadas com um pouco de cautela, pois são, em grande</p><p>medida, produto dos discursos belicosos irradiados no contexto e nos embates</p><p>da Guerra Fria. Obviamente, havia interpretações divergentes em cada um dos</p><p>campos, sobre o sentido de muitos pontos alinhavados após horas de exaustivas</p><p>e infindáveis reuniões. Em consequência, havia reciprocidade nas acusações de</p><p>descumprimento dos acordos.</p><p>Desconfianças e discórdias</p><p>De início, a desconfiança nutrida pelo Ocidente em relação à URSS provinha</p><p>do caráter anticapitalista e revolucionário do regime instituído pelos sovietes em</p><p>1917. Dessa perspectiva, ao tomarem o poder pela força, os bolcheviques</p><p>haveriam estimulado a revolução proletária internacional, abolido a propriedade</p><p>privada, confiscado os bens e os recursos das companhias estrangeiras e</p><p>promovido a sua estatização. Além disso, o novo regime não haveria honrado as</p><p>dívidas internacionais contraídas tanto por empresas privadas quanto pelo</p><p>império russo. Nessa mesma direção, inclui-se a retirada da Rússia</p><p>revolucionária da Grande Guerra e a assinatura do tratado de Brest-Litovsk,</p><p>estabelecido com a Alemanha. Por fim, o Pacto Germano-Soviético, consumado</p><p>em agosto de 1939, haveria, segundo esse ponto de vista, corroborado a</p><p>percepção, predominante no Ocidente, de que o regime de Stálin não era</p><p>confiável (KENNAN, 1969).</p><p>Em consequência, ao final da Segunda Guerra Mundial, as tensões a envolver</p><p>os EUA e a URSS adquiririam proporções maiores ao se expandirem, de modo</p><p>célere, pelas respectivas áreas de influência ainda em conformação. Assim, entre a</p><p>morte de Franklin D. Roosevelt e a posse de Harry S. Truman (abril de 1945) e</p><p>meados de 1947, houve a crescente elevação no tom das discórdias e na</p><p>intensidade das advertências de confronto provenientes de ambos os campos.</p><p>Essa situação evoluiu de maneira que naquela quadra histórica se consolidou a</p><p>percepção de um mundo em marcha rumo a um novo conflito global, logo</p><p>designado como Guerra Fria.</p><p>Essas discórdias estavam enredadas em uma trama na qual se emaranhavam</p><p>os desígnios geopolíticos das duas novas superpotências globais e, de forma</p><p>correlata, das suas atinentes áreas de influências. Ao contrário do hipotético</p><p>monolitismo atribuído a esses dois campos ainda em conformação, havia</p><p>divergências entre o hegemon e os seus parceiros menores. Além disso, não era</p><p>incomum a eclosão de rivalidades e querelas entre atores subalternos, à procura</p><p>da realização dos denominados interesses nacionais e, por vezes, na aspiração da</p><p>conquista de hegemonias regionais. Por fim, conflitos latentes no interior de</p><p>cada uma dessas sociedades afloravam de modo imprevisível, de forma colocar</p><p>em risco a estabilidade dos regimes vigentes e ameaçar os interesses da potência</p><p>hegemônica em determinadas regiões (MUNHOZ; ROLLO, 2015).</p><p>Desse modo, após a Segunda Grande Guerra, diferentes áreas do planeta</p><p>experimentaram a proliferação de crises, muitas delas a desembocar em guerras</p><p>regionais, outras a ganhar contornos de guerras civis, ou ainda a associar ambas</p><p>as características em um mesmo conflito. Não raras vezes, essas crises, surgidas</p><p>no então recém-denominado Terceiro Mundo, foram suprimidas com o</p><p>emprego da força, por intermédio de golpes militares e pela instituição de</p><p>ditaduras de distintos matizes. Nesse emaranhado de convulsões sociais, guerras</p><p>civis, truculências praticadas por regimes ditatoriais, associadas de um modo ou</p><p>de outro às disputas da Guerra Fria, aproximadamente 25 milhões de seres</p><p>humanos perderam a vida. É plausível supor que essas cifras sejam alargadas em</p><p>futuro próximo, com a ampliação do acesso a documentos, hoje ainda secretos e</p><p>guardados em arquivos de segurança, mantidos por diferentes países. Além disso,</p><p>os feridos, mutilados, presos e torturados, embora não possam ser</p><p>contabilizados com razoável precisão, certamente ultrapassam a casa da centena</p><p>de milhões.</p><p>Durante o período</p><p>da Guerra Fria, EUA e URSS rivalizaram na busca da</p><p>consolidação dos seus diferentes projetos políticos. A Europa constituiu-se no</p><p>primeiro cenário desse longo confronto. Por um lado, a Guerra Fria significou a</p><p>intensificação de conflitos, em escala planetária29. Por outro, ela produziu, após a</p><p>exacerbação inicial, certa estabilidade, além de padrões toleráveis e previsíveis de</p><p>confronto. Como aponta Martin Walker, as duas nações enfrentavam-se pela</p><p>ação dos seus países “satélites”, mas, ao mesmo tempo, impediam que guerras</p><p>regionais escapassem ao controle e se transformassem em conflitos de</p><p>proporções mundiais (WALKER, 1995, p. 6-7). É bastante verossímil a imagem</p><p>do mundo bipolarizado, porém, como é possível observar na literatura</p><p>especializada, o processo jamais foi estático. Os diferentes países pertencentes a</p><p>cada um dos blocos possuíam interesses distintos e não agiam de forma</p><p>homogênea. Assim, de tempos em tempos, atores coadjuvantes buscavam agir</p><p>com certa autonomia, o que provocava tensões e fissuras no interior dos blocos.</p><p>Essa autonomia, contudo, sempre foi frágil, como demonstra a postura</p><p>intervencionista, tanto dos EUA quanto da URSS (MUNHOZ; ROLLO, 2015).</p><p>Outro aspecto cardeal à compreensão do tema é a concepção da noção de</p><p>segurança empregada pelas duas superpotências globais. Desde o seu processo de</p><p>constituição como nação, as elites dirigentes dos EUA abalizavam as suas</p><p>diretrizes políticas a partir de concepções de segurança de espectro continental.</p><p>Essa percepção, muitas vezes irrealista, foi exacerbada pelo trauma ocasionado</p><p>pelo bombardeio a Pearl Harbor e estimulada, no pós-guerra, pelos setores</p><p>ligados ao complexo industrial-militar (LEFFLER, 1992). As seguidas invasões</p><p>sofridas pelo império russo e depois pela sua sucessora, a União Soviética, ao</p><p>longo dos séculos XIX e XX deixaram marcas profundas e exacerbaram as</p><p>noções de segurança do Kremlin. A Rússia imperial fora invadida pelas tropas</p><p>francesas, em 1812; por ingleses e franceses durante Guerra da Crimeia, em</p><p>1854; pelo Império Alemão, em 1917; a Rússia revolucionária foi atacada por</p><p>forças diversas, durante a guerra civil (1918-1921) e a União Soviética pelas</p><p>tropas do Eixo em 1941 (TAYLOR, 1967, p. 35). Essas experiências</p><p>contribuíram para a conformação de políticas externas de caráter</p><p>intervencionista tanto nos EUA quanto na URSS, uma vez que essa orientação</p><p>sempre era legitimada como imperativa à garantia da segurança doméstica de</p><p>cada uma dessas potências.</p><p>Ainda, como assegura Chomsky, a Guerra Fria desempenhou papel</p><p>fundamental nas estratégias de controle das populações dessas duas</p><p>superpotências no pós-Segunda Guerra Mundial. Da perspectiva de Chomsky, a</p><p>Guerra Fria possibilitou tanto à União Soviética quanto aos Estados Unidos</p><p>justificarem a repressão às dissidências internas como uma decorrência daquele</p><p>conflito global (CHOMSKY, 1996, p. 11). Para esse autor, o argumento da</p><p>presumida ameaça imperialista foi fundamental para justificar a reconstrução do</p><p>aparelho repressor soviético, que havia sido afrouxado ao longo do conflito</p><p>mundial. Em paralelo, nos EUA, o macarthismo e as arbitrariedades a ele</p><p>associadas foram justificados pela suposta ameaça comunista ao país. Nos EUA,</p><p>consolidou-se a noção de que, se não contida a propagação global do</p><p>comunismo, haveria uma expansão soviética, o que representaria uma ameaça</p><p>aos valores e à soberania estadunidenses. As elites da maior potência capitalista</p><p>acreditavam que a consolidação da União Soviética como um poder global</p><p>representava a concretização de um modelo alternativo de modernidade que os</p><p>EUA combatiam desde a chegada dos bolcheviques ao poder (WESTAD, 2008, p.</p><p>25).</p><p>A morte Roosevelt e a posse de Truman</p><p>Como já exposto anteriormente, com a morte de Roosevelt e a imediata</p><p>posse do seu vice, Harry S. Truman, em 12 de abril de 1945, defendo que houve</p><p>uma avultada mudança na direção da política externa estadunidense. Muitos</p><p>autores revisionistas apontam essa guinada na administração Truman como a</p><p>causa do início dos conflitos que desencadearam a Guerra Fria. Autores</p><p>ortodoxos, como, por exemplo, Arthur Schlesinger Jr., minimizam as mudanças</p><p>e indicam uma continuidade administrativa (LaFEBER, 1997; SCHLESINGER,</p><p>1992)</p><p>O Exército Vermelho ocupava a Europa Oriental e, por isso, qualquer</p><p>mudança na reorganização dessa região somente ocorreria com a concordância</p><p>dos soviéticos. Os EUA , no entanto, haviam avançado mais rapidamente do que</p><p>se esperava, em decorrência do remanejamento das tropas alemãs, em direção ao</p><p>front Oriental e, dessa forma, alcançaram o coração da Alemanha, ocupando</p><p>inclusive regiões pré-determinadas aos soviéticos. Em julho de 1945, quando</p><p>ocorreu a Conferência de Potsdam, a guerra na Europa havia terminado e os</p><p>EUA já haviam testado com sucesso a bomba atômica. Como os soviéticos</p><p>desconheciam esses detalhes, os representantes dos EUA pensavam</p><p>estrategicamente com a vantagem desse grande segredo militar. Somente em 24</p><p>de julho, os soviéticos foram informados sobre o desenvolvimento de uma nova</p><p>arma de força incomum, contudo não foi mencionado que era uma arma baseada</p><p>na tecnologia nuclear (ALPEROVITZ, 1995, p. 383-389). Segundo essa</p><p>perspectiva, em Potsdam, os EUA adotaram uma postura mais intransigente,</p><p>forçando os soviéticos a diversos recuos.</p><p>Com os bombardeios nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, foi imposta a</p><p>rendição incondicional aos japoneses. Muitos autores não veem o uso da bomba</p><p>atômica como uma necessidade para concluir a guerra no Pacífico, mas para</p><p>terminá-la antes da entrada dos soviéticos na guerra contra o Japão e, assim,</p><p>evitar qualquer divisão de áreas de influência na região. Adicionalmente, o</p><p>bombardeio haveria sido um sinal para impor o recuo soviético na Europa30.</p><p>Dessa perspectiva, o emprego das bombas nucleares contra o Japão poderia ser</p><p>considerado o marco inicial da Guerra Fria (essa matéria foi tratada de forma</p><p>mais detalhada no capítulo 4).</p><p>A edificação dos blocos de poder</p><p>Existe um cáustico debate sobre o caráter autoritário da dominação soviética</p><p>na Europa Oriental. Nele, é ressaltada a agressividade da URSS em relação à</p><p>Europa Ocidental. Ainda em relação ao assunto, debatem-se o descumprimento</p><p>dos acordos de Ialta e Potsdam por ambas as potências e a tentativa</p><p>estadunidense de eliminar qualquer influência soviética na Europa. Acredito ser</p><p>bastante verossímil a hipótese da existência de tendências expansionistas de</p><p>longo prazo na política externa soviética, mas, como indicou Kennan, a URSS</p><p>não representava uma ameaça militar à Europa. O país estava arrasado e tinha</p><p>como principal tarefa a sua reconstrução. Ainda segundo Kennan, a principal</p><p>ameaça soviética provinha da eficiência da sedução ideológica das organizações</p><p>de esquerda, no interior das democracias ocidentais, explorando o prestígio</p><p>político adquirido, em decorrência do seu papel na derrota das forças do Eixo</p><p>(KENNAN, 1947, 1996). Além disso, a postura expansionista e intervencionista</p><p>estadunidense regra geral é naturalizada, de forma que não é, na maioria das</p><p>É</p><p>vezes, debatida. É plausível sustentar que a expansão da influência estadunidense</p><p>nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial foi tão ou mais intensa do que a</p><p>da URSS, no entanto o caráter dessa expansão era distinto tanto da rival quanto</p><p>das antigas potências coloniais.</p><p>Ancorado nessa análise, discordo da visão de alguns historiadores</p><p>revisionistas de que a postura soviética era meramente defensiva, mas também</p><p>não é possível corroborar a versão ortodoxa de que o conflito se deu porque os</p><p>soviéticos ameaçavam a Europa Ocidental, restando aos EUA a alternativa de</p><p>lutar em defesa da democracia. Além disso, discordo das conclusões de Geir</p><p>Lundestad e de John Lewis Gaddis de que, se os EUA adotaram uma política</p><p>imperial no pós-guerra, isso se deu a convite das democracias ocidentais que se</p><p>sentiam ameaçadas pela URSS (LUNDESTAD, 1986, p. 263-277; 1999, p. 52-</p><p>91; GADDIS, 1983, p. 174-204; 1997, p. 285-286). Os EUA atuaram em</p><p>diferentes lugares, inclusive para desestabilizar ou derrubar</p><p>governos</p><p>democraticamente eleitos, como, por exemplo, na Guatemala, no Brasil e no</p><p>Chile, apenas para mencionarmos alguns casos. Desse modo, enfatizo a</p><p>fragilidade do argumento desses autores, que não resiste a uma análise mais</p><p>acurada. Defendo a tese de que a intensificação dos conflitos que resultaram na</p><p>Guerra Fria se deveu ao projeto estadunidense de consolidar-se como única</p><p>potência global e de impor à URSS recuos na Europa e na Ásia, seguidos da</p><p>aceitação do papel de uma mera potência de segundo escalão. Discorro</p><p>longamente sobre essa temática na parte 1 deste livro e as conclusões aqui</p><p>expressas estão ancoradas nos argumentos anteriormente apresentados.</p><p>Em síntese, desse ponto de vista, é possível afirmar que, desde a posse de</p><p>Truman, os EUA confrontaram a URSS com o intuito de reverter o seu</p><p>predomínio na Europa Oriental e de restringir a sua atuação na área</p><p>anteriormente controlada pelo Japão. Adicionalmente, há evidências que</p><p>distinguem as mudanças implementadas pelo novo presidente na coordenação</p><p>do governo e, em especial, na condução da política externa estadunidense.</p><p>Entre as evidências que apontam nessa direção sublinhe-se que seis dos dez</p><p>secretários de Estado de Roosevelt foram substituídos entre o final de junho e</p><p>meados de julho de 1945. Outros secretários foram exonerados posteriormente</p><p>(HOROWITZ, 1965, p. 53)31. No Kremlin, a adoção de uma nova postura, pelos</p><p>EUA, levantou sérias suspeitas de que as democracias ocidentais pretendessem</p><p>eliminar a influência soviética na Europa Oriental. Os soviéticos ainda buscaram</p><p>a negociação diplomática, durante 1946, mas a tensão cresceu de forma</p><p>progressiva na região.</p><p>Essas suspeitas muitas vezes eram corroboradas por ações dos EUA e da Grã-</p><p>Bretanha. Um exemplo a ser destacado foi a Operation Unthinkable, solicitada</p><p>por Churchill ao seu gabinete de guerra em maio de 1945. Na ocasião, Churchill</p><p>solicitou um plano para atacar as forças soviéticas na Polônia. Um espião</p><p>soviético no White Hall, no entanto, informou a Stálin sobre o possível plano. É</p><p>verossímil supor que muitas das medidas para aumentar o controle soviético na</p><p>região estejam relacionadas ao evento e ao receio de uma tentativa de expulsão</p><p>dos soviéticos da Europa Oriental (Discorro sobre o assunto de forma detalhada</p><p>no capítulo 5).</p><p>A Cortina de Ferro</p><p>Entre 1946 e 1947, a URSS intensificou a repressão e restringiu a experiência</p><p>democrática que se encontrava em expansão na sua área de influência na Europa</p><p>Oriental com o objetivo de manter o controle sobre essa região estratégica.</p><p>Dessa forma, as críticas ao controle soviético na Europa Oriental ganharam mais</p><p>substância. Em março de 1946, Churchill pronunciou o seu famoso discurso</p><p>sobre a cortina de ferro que havia sido imposta a diversas capitais europeias. De</p><p>fato, a literatura ortodoxa omite as origens da expressão, uma vez que elas</p><p>poderiam ser, de certo modo, constrangedoras, pois Joseph Goebbels empregou</p><p>o termo em 25 de fevereiro de 1945, portanto antes de Churchill.</p><p>Deve-se observar que, mesmo muito antes do uso por Goebbels, o termo já</p><p>havia sido empregado em 1918 pelo filósofo russo Vasily Rozanov, em The</p><p>Apocalypse of Our Times. Nele, o autor afirmou que “An iron curtain is being</p><p>lowered, creaking and squeaking, at the end of Russian history” (WHO…, 2006).</p><p>A mesma frase do autor russo é referenciada de forma um pouco diferente em</p><p>1946: the Making of the Modern World, de Victor Sebestyen, que diz: “with</p><p>clanging, creaking, and squeaking, an iron curtain is lowering over Russian</p><p>history” (SEBESTYEN, 2014, p. 163). Em 1920, a mesma expressão foi</p><p>empregada pela socialista e feminista inglesa Ethel Snowden (Ethel Annakin,</p><p>depois viscondessa Snowden), mas, nesse caso, para indicar a criação de uma</p><p>cortina de ferro pelo Ocidente para isolar a Rússia soviética. Snowden, ao final</p><p>do capítulo 2 do seu livro, quando ainda está a relatar o início da viagem de</p><p>socialistas britânicos à Rússia, após expressar uma visão até certo ponto</p><p>simpática ao que percebia na Rússia soviética, afirma: “We were behind the ‘iron</p><p>curtain’ at last” (SNOWDEN, 1920, p. 32)32. Sublinhe-se que, ao longo do livro,</p><p>a autora mostra muito desapontamento em relação à concentração de poder nas</p><p>mãos de uma minoria e ao crescimento de uma perspectiva autoritária sob o</p><p>bolchevismo. Apesar disso, em sua conclusão, a autora manifesta a esperança de</p><p>que a paz e o suporte externo para pôr fim à fome pudessem auxiliar a superar</p><p>essas características autoritárias que ela via emergir no bolchevismo. Para ela,</p><p>Let us intervene, then, in Russian affairs with the only intervention that was ever</p><p>justified—with food and clothing and medicines; with raw materials, agricultural</p><p>machinery and sanitary supplies; with doctors and nurses and sanitary experts; with</p><p>railway workers, plumbers and engineers. Let us do all in our power to help the</p><p>Russians quickly to re-establish their economic life. Then, perhaps, the past may come</p><p>to be forgotten and forgiven, and Russia becomes what she was destined from before</p><p>the foundations of the world to become—a great leader in the humanitarian</p><p>movements of the world. (SNOWDEN, 1920, p. 188).</p><p>Há ainda outras menções a origens precoces do termo, mas o que merece</p><p>destaque é o emprego por Churchill da expressão utilizada anteriormente por</p><p>Goebbels para fazer referência à área de dominação soviética. Como aponta</p><p>Sebestyen, Goebbels empregou essa frase em um artigo publicado no jornal Das</p><p>Reich, em 25 de fevereiro de 1945, portanto um ano antes do discurso de</p><p>Churchill de 5 de março de 1946, em Fulton, Missouri, nos EUA. O autor, como</p><p>outros, observa também que Churchill empregou o termo em um telegrama ao</p><p>presidente dos EUA, Harry Truman, em 12 de maio de 1945 e novamente fez</p><p>uso da expressão em um cabograma a Truman, cerca de um mês depois. Ainda</p><p>segundo o autor, durante a conferência de Potsdam empregou essa locução para</p><p>dizer a Stálin que uma cortina de ferro havia descido sobre os Bálcãs. Stálin,</p><p>segundo o autor, após um ríspido olhar, haveria respondido que a afirmação era</p><p>um absurdo (SEBESTYEN, 2014, p. 163-164).</p><p>Grécia, Turquia e a Doutrina Truman</p><p>Entendo que, até certo ponto, ao final da Segunda Guerra Mundial, Stálin</p><p>praticou uma política realista ao buscar alguma forma de acomodação com os</p><p>EUA e a Grã-Bretanha. Isso o levou, no futuro, a ser criticado por militantes e</p><p>intelectuais de esquerda por não apoiar movimentos revolucionários que se</p><p>espraiavam pelo mediterrâneo e outras áreas do globo (CLAUDÍN, 1985). Em</p><p>maio de 1946, pressionada, a URSS retirou as suas tropas do Irã. Em agosto,</p><p>eclodiu a crise sobre o controle de Dardanelos. Ainda em 1946, intensificou-se a</p><p>guerra civil na China.</p><p>Nos EUA, em 12 de março de 1947, foi anunciada a Doutrina Truman,</p><p>inicialmente, com a promessa de ajuda à Grécia e à Turquia, que</p><p>experimentavam, cada qual a seu modo, intensas agitações sociais. Na Turquia,</p><p>havia muita instabilidade interna decorrente das disputas entre liberais,</p><p>organizados no recém-criado Partido Democrático, e os seguidores do Partido</p><p>Popular Republicano, fundado por Mustafa Kemal (1881-1938), líder</p><p>nacionalista e criador do moderno Estado turco (GONÇALVES, 2004, p. 730-</p><p>735). Na Grécia, a situação desembocou em uma guerra civil, com presença</p><p>marcante comunista, mas proveniente de uma aliança de diferentes forças,</p><p>inclusive liberais que se opunham ao novo governo, que possuía em sua</p><p>composição ativos colaboradores das tropas de ocupação do Reich.</p><p>No processo em curso na Grécia, durante a Segunda Guerra Mundial e nos</p><p>primeiros anos após aquele conflito global, sublinhe-se que os primeiros sinais</p><p>de resistência aos alemães e aos governos colaboracionistas por eles instituídos</p><p>entre abril de 1941 e outubro de 1944 ocorreram por intermédio da criação da</p><p>Frente de Libertação Nacional – EAM (Edhnikon Apeleftherolikon Metopon),</p><p>organizada pelo Partido Comunista Grego (KKE), em setembro de 1941. Da</p><p>EAM, faziam parte, além dos comunistas, a Democracia Popular, o Partido</p><p>Socialista, o Partido Socialista Unido e o Partido</p><p>Agrário. O Braço armado do</p><p>EAM era o Exército de Libertação Nacional ELAS (Ellinikós Laikós</p><p>Apeleftherotikós Stratós), criado em dezembro de 1942.</p><p>O país estava cindido desde a sua ocupação pelas tropas do Eixo.</p><p>Agrupamentos políticos de diferentes matizes aglutinaram-se na resistência e</p><p>enfrentaram as atrocidades dos invasores e dos seus colaboradores. A partir de</p><p>1944, porém, as dissensões internas tornaram-se mais complexas e</p><p>comprometeram a unidade que se procurava costurar. Naquele contexto, os</p><p>comunistas, por intermédio EAM-ELAS, constituíam a maior força política</p><p>organizada no país.</p><p>O EAM-ELAS desempenhou papel fundamental na libertação do território</p><p>grego do domínio dos invasores, principalmente no norte do país, onde se</p><p>concentrava a maior parte das suas forças de resistência. Efetivamente, não havia</p><p>qualquer outra organização política de porte comparável ao EAM-ELAS que</p><p>houvesse se engajado no combate aos nazistas e aos seus colaboradores.</p><p>Entretanto, quando os alemães foram expulsos da Grécia, os ingleses ficaram</p><p>muito temerosos de que se instalasse ali um governo com características</p><p>populares, o que poderia colocar em risco os interesses britânicos na área. Dessa</p><p>forma, ao final da guerra, os ingleses ofereceram todo o suporte para reconduzir</p><p>a antiga monarquia ao poder. Ressalte-se que muitos dos líderes ligados à antiga</p><p>monarquia aderiram ao ideário fascista ou colaboraram com os invasores.</p><p>Era natural que, ao final da guerra, os antagonismos entre as forças</p><p>populares, representadas pelo EAM-ELAS e as forças conservadoras,</p><p>representadas pelo Exército Nacional Democrático Grego - EDES (Ellínikos</p><p>Dímokratikos Ethnikós Strátos), o braço armado das forças monarquistas, viessem</p><p>a se defrontar. Assim, em dezembro de 1944, eclodiu a guerra civil. O agente</p><p>definidor deste processo não foi a correlação de forças internas, nas quais o</p><p>EAM-ELAS possuía predominância, aproximadamente, de 75% do país. As</p><p>intervenções da Grã-Bretanha e, posteriormente, dos EUA foram definidoras do</p><p>processo.</p><p>Pelos acordos de áreas de influência firmados em Ialta e depois reafirmados</p><p>em Potsdam, o predomínio na Grécia seria 90% britânico. Stálin cumpriu</p><p>fielmente essa disposição. A acusação de que uma pequena força comunista</p><p>bancada pelos soviéticos ameaçava a Grécia, conforme foi amplamente divulgada</p><p>por ingleses e estadunidenses, não se sustenta quando confrontada com as</p><p>evidências factuais.</p><p>Stálin, além de recomendar aos comunistas gregos que levassem sua luta</p><p>dentro do chamado campo democrático burguês, não forneceu apoio logístico</p><p>ou militar significativo, como também se esquivou de fazer qualquer protesto,</p><p>mesmo na imprensa soviética, sobre os massacres promovidos pelos</p><p>bombardeios ingleses no norte da Grécia. As denúncias desses terríveis</p><p>acontecimentos foram efetuadas pela própria imprensa britânica e</p><p>estadunidense. os comunistas iugoslavos, entretanto, davam suporte ao EAM-</p><p>ELAS, o que era decodificado nos EUA e na Grã-Bretanha como apoio soviético.</p><p>A estratégia era bastante simples: o prioritário para os interesses de Estado</p><p>soviético era a criação da sua zona de proteção. Não queriam que ninguém</p><p>interferisse lá e estavam dispostos a aceitar com naturalidade qualquer atitude</p><p>que fosse tomada na zona anglo-americana. Entendiam que deveria haver uma</p><p>contrapartida. Eles poderiam fazer o que quisessem no Leste Europeu e os</p><p>ingleses o mesmo na Grécia, por exemplo (GITLIN, 1969).</p><p>Nesse contexto, o EAM-ELAS resistiu à brutal ação da Grã-Bretanha, que</p><p>bombardeou áreas civis sob o total silêncio soviético. O EAM-ELAS, contudo,</p><p>passou a praticar contra os seus opositores e desafetos as mesmas atrocidades</p><p>que anteriormente condenava. Assim, a Grécia experimentou os momentos de</p><p>maior brutalidade política entre 1946 e 1949, quando finalmente a guerrilha foi</p><p>derrotada (GITLIN, 1969, p. 167-217; GITLIN, 1969, p. 619-620; OPAT, 1987,</p><p>p. 233-234; LOWE, 2017, p. 332-352). Esses cenários turbulentos na Turquia e</p><p>na Grécia foram utilizados para a implementação de uma ação governamental</p><p>dos EUA, aprovada pelo Congresso em março de 1946, e que logo se tornou</p><p>conhecida como Doutrina Truman.</p><p>De fato, a chamada Doutrina Truman, não era uma doutrina propriamente</p><p>dita, mas um plano de apoio aos governos da Grécia e da Turquia, que</p><p>enfrentavam crescentes movimentos populares a contestar a sua legitimidade.</p><p>Ainda em relação à Turquia, havia o problema das pressões soviéticas para a</p><p>abertura do estreito de Dardanelos à sua navegação. Naquele contexto, em 12 de</p><p>março de 1947, o presidente Harry Truman, efetuou um pronunciamento a uma</p><p>sessão conjunta do Congresso solicitando a aprovação de um projeto que previa</p><p>a liberação de 400 milhões de dólares em auxílio à Turquia e à Grécia. Na</p><p>ocasião, Truman justificou que esse plano era necessário para combater as forças</p><p>de minorias armadas, que pretendiam impor o comunismo naqueles países.</p><p>Sublinhou a importância da aprovação desses recursos para a defesa das</p><p>liberdades democráticas naquelas regiões e em outras que viessem a estar sob</p><p>ameaça. Na sua preleção, Truman justificou que com o afastamento da Inglaterra</p><p>da região, em decorrência da crise em que o império se encontrava ao final da</p><p>guerra, caso os EUA não assumissem o apoio concreto àqueles países, seria</p><p>inevitável que os comunistas conquistassem o poder.</p><p>Sublinhe-se que o discurso de Truman possuía dois alvos distintos. Um se</p><p>relacionava à política externa dos EUA e o outro à política doméstica. No campo</p><p>da política externa, ele pretendia assinalar aos aliados uma postura de defesa dos</p><p>interesses dos EUA e do chamado mundo ocidental frente ao que era qualificado</p><p>como agressão comunista. O discurso de Truman perante a sessão conjunta do</p><p>Congresso, contudo, tinha também por objetivo mostrar uma posição de força</p><p>na política externa do país, com o objetivo de conquistar dividendos na política</p><p>doméstica, ao atrair setores dos republicanos que estavam a fazer marcada</p><p>oposição ao seu governo, com vistas a desmantelar o que restava do welfare state</p><p>edificado no período Roosevelt. Nesse aspecto, o discurso anticomunista do</p><p>presidente foi bem articulado e, mesmo sem fazer menção direta à URSS,</p><p>deixava evidente a existência de uma ameaça soviética.</p><p>O projeto não foi uma unanimidade, mas recebeu amplo apoio no</p><p>Congresso. Muitos congressistas, independente da vinculação partidária, viram</p><p>no discurso de Truman uma demonstração de que o governo não toleraria a</p><p>intervenção soviética em áreas do interesse dos EUA. Isso, por exemplo, levou à</p><p>aproximação de muitos republicanos, que antes teciam duras críticas ao governo.</p><p>O discurso, entretanto, foi criticado por congressistas que entendiam ser</p><p>preferível o retorno ao isolacionismo do período anterior à guerra e temiam que</p><p>o projeto pudesse contribuir para uma nova escalada de conflitos e mesmo para a</p><p>emergência de uma nova guerra mundial. Ainda, emergiram críticas provenientes</p><p>de atores políticos que não viam os regimes vigentes na Grécia e da Turquia</p><p>como democráticos, mesmo com a adoção de critérios bastante flexíveis. Após a</p><p>aprovação dos recursos solicitados pelo presidente e com a reverberação positiva</p><p>do seu discurso na política doméstica, a então logo chamada Doutrina Truman</p><p>ganhou uma nova dimensão e foi ampliada para a defesa de qualquer área real ou</p><p>supostamente ameaçada pelo comunismo e tornou-se um dos eixos da política</p><p>externa dos EUA nos anos que se seguiram. Alguns autores veem a Doutrina</p><p>Truman como uma mundialização da Doutrina Monroe, outros viram nela a</p><p>fusão dos desígnios presentes na doutrina Monroe e na Open Door Policy</p><p>(ARMS, 1994, p. 552-553; MUNHOZ, 2015, p. 164-165).</p><p>A espiral das tensões, a expansão dos conflitos e as tentativas de</p><p>negociações</p><p>Com o acirramento das tensões provenientes do novo conflito de dimensões</p><p>globais, em maio de 1947, os comunistas franceses, italianos e belgas foram</p><p>expulsos dos seus respectivos governos. De fato, naquele contexto, houve o</p><p>aumento da pressão sobre os comunistas e ativistas que se aproximavam das suas</p><p>áreas de influência</p><p>em toda a Europa Ocidental (VAN DIJK, 2013).</p><p>Em 5 de junho do mesmo ano, os EUA anunciaram o Plano Marshall,</p><p>implementado a partir de abril de 1948. O plano foi denunciado pelos soviéticos</p><p>como um ardil estadunidense para subordinar economicamente a Europa. Em</p><p>setembro de 1947, foi firmado, no Rio de Janeiro, o Tratado Interamericano de</p><p>Assistência Recíproca (Tiar), primeira aliança regional do pós-guerra. Em</p><p>outubro foi criado o Cominform, organização que aglutinava os partidos</p><p>comunistas (uma espécie de sucessor do Comintern extinto por Stálin em 1943,</p><p>mas com objetivos bem mais modestos, pois efetivamente não pregava a</p><p>revolução mundial).</p><p>Em 25 de fevereiro de 1948, os comunistas assumiram o governo da</p><p>Tchecoslováquia por meio de um golpe. Há autores que divergem sobre o tema,</p><p>pois defendem que a ação tinha por objetivo prevenir um golpe conservador</p><p>(VIZENTINI, 2004). Em maio do mesmo ano, foi criada a Organização dos</p><p>Estados Americanos (OEA), durante a Conferência de Bogotá. Em junho</p><p>seguinte, em meio a crescentes divergências entre Stálin e Tito, a Iugoslávia foi</p><p>expulsa do Cominform e teve início a perseguição de simpatizantes do líder</p><p>iugoslavo em toda a esfera de influência soviética. Em 24 de junho de 1948, a</p><p>criação de uma moeda única nos setores ocidentais de Berlim levou os soviéticos</p><p>a bloquearem todas as rotas para a cidade. De modo desafiador, os EUA</p><p>organizaram uma gigantesca operação de abastecimento aéreo à cidade. O</p><p>bloqueio de Berlim foi mantido até 12 de maio de 1949, quando os soviéticos</p><p>suspenderam a medida (ARMS, 1994).</p><p>Foi no contexto dos confrontos relacionados ao Bloqueio de Berlim que, em</p><p>4 de abril de 1949, foi criada a Organização do Tratado do Atlântico Norte</p><p>(Otan), com o declarado objetivo de enfrentar as ameaças soviéticas à Europa</p><p>Ocidental. De fato, a perspectiva de criar-se uma organização de defesa militar</p><p>do Atlântico Norte surgiu no encadeamento do Pacto de Bruxelas, assinado em</p><p>17 de março de 1948 por Bélgica, França, Grã-Bretanha, Holanda e</p><p>Luxemburgo. Esse acordo previa a formação de uma estrutura de defesa para</p><p>proteger a Europa Ocidental de uma eventual agressão da União Soviética. Do</p><p>ponto de vista dos policymakers estadunidenses, a criação da organização era</p><p>fundamental para manter a União Soviética fora da Europa Ocidental e garantir</p><p>a estabilidade da região. A criação da Otan influenciou de forma marcada as</p><p>relações entre os EUA e a URSS e contribuiu para a definição de um padrão de</p><p>conflito que perdurou por pouco mais de quatro décadas (MUNHOZ, 2013).</p><p>Além disso, a criação da organização expressou o envolvimento direto dos</p><p>EUA com a Europa e foi resultado da decisão de criar de uma aliança política e</p><p>militar de cunho permanente. Para alcançar esse denominador, ocorreram</p><p>muitos embates no Congresso dos EUA, principalmente entre os chamados</p><p>internacionalistas e os isolacionistas. Estes últimos opunham-se ao envolvimento</p><p>direto dos EUA na Europa e argumentavam que isso poderia gerar novos</p><p>conflitos e impactar o erário, o que produziria a elevação de impostos. Contudo</p><p>os internacionalistas conseguiram maioria suficiente para a aprovação de uma</p><p>resolução que propunha a participação dos Estados Unidos em uma aliança com</p><p>o declarado objetivo de proteger o Atlântico Norte.</p><p>Sublinhe-se que, apesar dos protestos iniciais do Kremlin em relação à</p><p>criação de uma aliança que considerava uma ameaça à sua segurança e da sua</p><p>esfera de influência na Europa Central e Oriental, uma vez que implicava</p><p>rearmar a Alemanha e sugeria a permanência de forças dos EUA na região, a</p><p>diplomacia soviética considerou seriamente a possibilidade buscar um acordo</p><p>sobre o assunto. Na ocasião, pouco após a criação da criação da Otan, o ministro</p><p>dos Negócios Estrangeiros da URSS, Andrei Vichinski, encaminhou uma</p><p>proposta à Grã-Bretanha, sugerindo a participação soviética na Aliança, mas não</p><p>obteve qualquer resposta. Entre 1952 e 1954, repetidamente, as lideranças</p><p>soviéticas acenaram com a possibilidade da criação de um sistema de segurança</p><p>europeu e do ingresso da URSS na Otan. Adicionalmente, os soviéticos</p><p>apresentaram várias propostas para a estabilização da situação alemã, incluindo-</p><p>se a sua unificação, desde que garantida a neutralidade. A essas propostas</p><p>também não houve receptividade33.</p><p>A morte de Stálin, em março de 1953, não alterou de modo significativo esse</p><p>quadro. Naquele contexto, as novas lideranças soviéticas empenharam-se na</p><p>busca de uma negociação para a questão. Em fevereiro de 1954, Molotov sugeriu</p><p>uma alternativa ao sistema de segurança coletiva europeu, planejado pelo</p><p>Ocidente. A proposta foi rejeitada pelas lideranças ocidentais, pois consideraram</p><p>que ela excluía os EUA, que, juntamente com a China, teriam apenas o status de</p><p>observadores, e por calcularem que a proposição tinha por objetivo criar</p><p>problemas para a consolidação da Otan e para a criação do sistema de defesa</p><p>europeu.</p><p>Após negociações internas e alterações efetuadas no projeto original pelo</p><p>restrito círculo de poder do Kremlin, Molotov concluiu a redação de uma nova</p><p>minuta de acordo que o governo soviético encaminhou, em 31 de março de</p><p>1954, à Grã-Bretanha, à França e aos EUA. Na nova proposta, o regime soviético</p><p>defendia a criação de um sistema pan-europeu de segurança coletiva, agora com</p><p>a participação dos EUA, e considerava a possibilidade de a URSS ingressar na</p><p>Otan, caso a organização abandonasse o seu caráter agressivo. Em continuidade,</p><p>os soviéticos insistiam que a Otan deveria deixar de ser uma aliança militar e se</p><p>abrir a outros países, criando um efetivo sistema europeu de segurança coletiva</p><p>que fosse decisivo na promoção da paz universal. Em maio de 1954, a proposta</p><p>soviética foi rejeitada pelas lideranças ocidentais, por intermédio do argumento</p><p>de que ela era incompatível com os princípios democráticos e com os propósitos</p><p>de defesa. Há muitos debates sobre a seriedade das propostas soviéticas, mas,</p><p>segundo Geoffrey Roberts, efetivamente, as lideranças do Kremlin estavam</p><p>dispostas à negociação da criação de um sistema coletivo de segurança europeu,</p><p>o que poderia haver levado ao fim da Guerra Fria. Ainda desse ponto de vista,</p><p>essa posição soviética tinha por objetivo evitar uma nova guerra mundial,</p><p>mesmo que implicasse a unificação de uma Alemanha neutra e rearmada</p><p>(ROBERTS, 2011, 2012; TIMOFEITCHEV, 2018).</p><p>Apesar da rejeição da proposta soviética, Molotov continuou a buscar uma</p><p>solução para o problema da Alemanha. Nesse percurso, buscou negociar, entre o</p><p>final de 1954 e o início do ano seguinte, um acordo que levasse à reunificação da</p><p>Áustria. Ele acreditava que a solução do problema austríaco poderia pesar</p><p>positivamente e servir de modelo para o caso alemão. Nesse processo, em</p><p>meados de abril de 1955, o chanceler austríaco Julius Raab foi a Moscou para as</p><p>negociações. Ao final, foi emitido um comunicado conjunto apontando para a</p><p>reunificação da Áustria, condicionado à sua permanente neutralidade e ao</p><p>compromisso soviético de retirar todas as suas forças de ocupação do país até o</p><p>final daquele ano. Para a consecução dos objetivos, havia ainda a necessidade da</p><p>concordância dos termos do tratado pelas quatro potências que então ocupavam</p><p>a Áustria. Para cumprir esses desígnios, representantes dos Estados Unidos, Grã-</p><p>Bretanha, França e URSS reuniram-se em Viena e, no dia 15 de maio, assinaram</p><p>o tratado que promoveu a reunificação do país, a adoção da sua neutralidade e a</p><p>retirada de todas as forças de ocupação do seu território. Não houve, entretanto,</p><p>sucesso no que se refere à questão da reunificação e neutralização da Alemanha.</p><p>Em decorrência do rearmamento da Alemanha Ocidental e do seu ingresso na</p><p>Otan, os soviéticos e os países da sua esfera de influência, reunidos em Varsóvia</p><p>entre 11 e 14 de maio de 1955, firmaram um tratado multilateral de cooperação,</p><p>amizade e assistência mútua, que se tornou conhecido como Pacto de Varsóvia.</p><p>Os soviéticos, contudo, mantiveram uma porta aberta para a negociação da</p><p>situação da Alemanha (ROBERTS, 2012). Erroneamente, muitos associam o</p><p>Pacto</p><p>de Varsóvia à criação da Otan. Em primeiro lugar, observe-se um intervalo</p><p>de seis anos entre um evento e o outro. Isso já indica que não é razoável intuir</p><p>que a aliança encabeçada pelos soviéticos fosse uma resposta à aliança liderada</p><p>pelos EUA. De modo adicional, observem-se os esforços soviéticos para a criação</p><p>de um sistema coletivo de segurança europeu que implicava um caminho que se</p><p>distanciava dessa premissa. Por fim, sublinho que, para os soviéticos, a</p><p>inadmissibilidadedo rearmamento da Alemanha Ocidental e a sua integração à</p><p>Otan os levaram a criar outra aliança com o objetivo de estruturar um sistema de</p><p>defesa que garantisse segurança à sua esfera de influência.</p><p>Em meio aos conflitos relacionados à criação da Otan, ao fracasso nas</p><p>negociações da questão alemã, aos problemas advindos da integração da</p><p>República Federal da Alemanha a essa aliança e à posterior criação do Pacto de</p><p>Varsóvia, outros conflitos emergiram em diferentes áreas do planeta e em</p><p>distintos campos de competição que envolviam as duas potências globais. Assim,</p><p>no campo bélico, em 29 de agosto de 1949, a URSS testou a sua primeira bomba</p><p>atômica, o que pôs termo à hegemonia nuclear estadunidense. O evento superou</p><p>as previsões estadunidenses e retirou-lhes o trunfo de serem os únicos</p><p>detentores da tecnologia nuclear. Em outro campo, a Guerra Civil Chinesa, que</p><p>perdurava ao menos desde a Segunda Guerra Mundial, com antecedentes</p><p>provenientes desde o massacre de Xangai (1927), chegou ao fim em outubro de</p><p>1949, com a vitória comunista e a criação da República Popular da China.</p><p>Em janeiro de 1950, os EUA produziram a primeira bomba de hidrogênio.</p><p>Em 25 de junho daquele ano, forças norte-coreanas cruzaram a fronteira da</p><p>Coreia do Sul e iniciaram a ocupação do seu território. Em resposta, os EUA</p><p>conseguiram a aprovação no Conselho de Segurança da ONU do envio de tropas</p><p>da organização, sob o seu comando, e assim houve a expansão do conflito na</p><p>península da Coreia. Observe-se que a URSS, que estava a boicotar as reuniões</p><p>do Conselho de Segurança da ONU, por divergir dos encaminhamentos</p><p>propostos pelos EUA, mesmo ciente de que o tema seria discutido na reunião,</p><p>não compareceu e, por isso, não pode usar o seu poder de veto. Compreender os</p><p>motivos desse encaminhamento por parte da representação soviética ainda é uma</p><p>incógnita, pois o acesso aos arquivos das duas superpotências do período da</p><p>Guerra Fria ainda sofre restrições severas.</p><p>A Grã-Bretanha testou o seu primeiro artefato nuclear em 1952. Nos EUA,</p><p>em janeiro de 1953, encerrou-se a segunda administração de Harry S. Truman e</p><p>tomou posse o general Dwight D. Eisenhower. Em 5 de março do mesmo ano,</p><p>morreu Stálin. A saída de cena das lideranças das duas potências antagônicas</p><p>influenciou o arrefecimento das tensões e a retomada de negociações em</p><p>diferentes temas em disputa. Nesse novo contexto, em julho daquele ano, foi</p><p>suspenso o conflito na Coreia, por intermédio de um armistício. Essas disputas,</p><p>no entanto, continuaram em diferentes regiões do planeta. Assim, em agosto de</p><p>1953, um golpe arquitetado pela CIA (Central Intelligence Agency) levou à</p><p>derrubada do governo constitucional iraniano. No ano seguinte, novamente com</p><p>o envolvimento da CIA, foi destituído o governo democraticamente eleito da</p><p>Guatemala (MUNHOZ, 2004a).</p><p>Nos dois blocos em processo de edificação é possível encontrar um marco</p><p>comum, embora com variação de forma, método e intensidade. Nesses dois</p><p>campos havia a manipulação da informação com vistas à formação de um</p><p>consenso em que a perseguição político-ideológica tornou-se cada vez mais</p><p>intensa e quem exteriorizava a divergência era tratado como um traidor da</p><p>pátria. Nos EUA, houve a intensificação da crescente intolerância principalmente</p><p>a partir de 1947. De fato, o pequeno interregno na perseguição anticomunista</p><p>ocorrido entre 1941e 1945, quando EUA e URSS se aliaram para fazer frente ao</p><p>perigo nazista, logo sofreu uma rápida erosão. Na URSS, o afrouxamento da</p><p>repressão estalinista ocorrido durante o período da II Guerra Mundial logo foi</p><p>abandonado enquanto a máquina repressiva ganhava novos alentos.</p><p>A violação da democracia nos EUA</p><p>Nos EUA, nos anos que se seguiram houve a contínua e crescente</p><p>desconstrução da imagem de uma União Soviética e de um povo russo aliados e</p><p>lutadores a combater com vigor a então denominada barbárie nazista. Aos</p><p>poucos, toda a simbologia empregada para se referir ao inimigo fascista foi</p><p>transmutada de forma a estabelecer uma fácil associação entre fascismo e</p><p>comunismo. Desse modo, logo o comunismo voltou à ribalta como o principal</p><p>inimigo do American way of life e da própria sociedade cristã ocidental. Esse</p><p>processo teve o seu ápice entre aproximadamente 1950 e 1954, quando a</p><p>democracia estadunidense se tornou refém dos interesses do que posteriormente</p><p>veio a ser conhecido como complexo militar industrial e das grandes</p><p>corporações midiáticas que quase em uníssono reverberavam as diatribes</p><p>macarthistas.</p><p>Naquele contexto, as persecuções levadas a cabo pelo senador Joseph</p><p>McCarthy, por seu séquito e também pela House Un-American Activities</p><p>Committee (HUAC), sempre com grande cobertura das mídias, erodiram a</p><p>democracia e arruinaram a vida de milhares de cidadãos e imigrantes. Com o</p><p>crescente clima de intolerância que se abateu sobre os EUA, a crítica foi</p><p>silenciada e a possibilidade da reflexão acadêmica independente deixou de</p><p>existir. Na conjuntura da Guerra da Coreia, o macartismo tornou-se cada vez</p><p>mais virulento. Em decorrência, muitos servidores públicos, professores e</p><p>pesquisadores foram constrangidos, expostos à execração pública ou</p><p>sumariamente demitidos por intermédio de ações que violavam os seus direitos</p><p>constitucionais. Em paralelo, houve a drástica redução de recursos para o</p><p>financiamento de pesquisas de conteúdo crítico, principalmente associadas às</p><p>humanidades, ao mesmo tempo em que aquelas vinculadas, de forma direta ou</p><p>indireta, ao desenvolvimento de tecnologias bélicas foram irrigadas com</p><p>recursos provenientes tanto de fontes governamentais quanto do grande capital</p><p>privado (SCHRECKER, 1994; CHOMSKY, 1997; MUNHOZ, 2004a; VALIM;</p><p>MUNHOZ, 2004).</p><p>Na sociedade estadunidense dos anos iniciais da Guerra Fria, o</p><p>anticomunismo tornou-se ainda mais exacerbado e naquela conjuntura as</p><p>sessões da House Un-American Activities Committee - HUAC, criada em 1938,</p><p>metamorfosearam-se em espetáculos mediáticos que nutriam o imaginário</p><p>popular com mensagens de vieses cada vez mais conservadores e incitavam</p><p>homens e mulheres a acreditarem que o país estava infestado de comunistas. Por</p><p>vezes, era crível que a população estava tomada pela histeria coletiva em que se</p><p>concebia uma quimera de que a qualquer momento o país poderia ser atacado e</p><p>ocupado por forças soviéticas. Em 1947, o comitê acusou e investigou o suposto</p><p>envolvimento de comunistas na indústria cinematográfica de Hollywood. Como</p><p>resultado, além do famoso caso dos dez de Hollywood, cerca de 300 pessoas,</p><p>entre atores, atrizes, diretores, roteiristas e produtores, foram incluídas numa</p><p>chamada lista de indesejáveis, à época preconceituosamente denominada de lista</p><p>negra (black list), e foram boicotadas pelos estúdios cinematográficos. Na</p><p>sequência, essa agora dócil indústria cinematográfica passou a produzir filmes</p><p>cada vez mais marcadamente patrióticos, de perfil conservador e anticomunista.</p><p>Durante a década de 1940 e ao longo da maior parte da seguinte, por</p><p>intermédio do Smith Act, as críticas ao governo ou às suas diretrizes políticas</p><p>ganharam contornos de ato de subversão ou de antiamericanismo. Naquela</p><p>quadra da história, perpetrou-se a sistêmica coação ao direito de livre expressão</p><p>dos cidadãos e, desse modo, direitos constitucionais foram atassalhados. Assim,</p><p>houve a brutal inversão dos ditames legais de tal modo que homens e mulheres</p><p>delatados como comunistas ou acusados de traição, em verdadeiros tribunais de</p><p>exceção, eram considerados culpados até que provassem ser inocentes. Como</p><p>posteriormente ficou comprovado, muitas provas foram forjadas a partir de</p><p>falsas delações</p><p>obtidas com promessas de que seriam retiradas as acusações</p><p>contra o denunciado que, a temer pela sua sorte, incriminava inocentes sem</p><p>qualquer evidência factível. Igualmente, por intermédio da cooperação ou</p><p>subserviência dos veículos de comunicação de massa, foi edificada a falsa</p><p>imagem de que a sociedade estadunidense estava ameaçada pelo comunismo</p><p>(MUNHOZ, 2004a; VALIM; MUNHOZ, 2004). Em 1957, a suprema corte</p><p>considerou muitos desses julgamentos como casos de violação constitucional e</p><p>revogou diversas condenações.</p><p>Em 1952, no auge da febre anticomunista desencadeada pelo macarthismo,</p><p>foram construídos cinco campos de concentração com o objetivo de aprisionar</p><p>comunistas (Florence e Wickemburg, no estado do Arizona; Tule Lake, na</p><p>Califórnia; El Reno, em Oklahoma; e Allenwood, na Pensilvânia). Esses campos</p><p>de concentração estavam aptos para abrigar, aproximadamente, 26 mil e</p><p>quinhentos prisioneiros, no entanto, eles não chegaram a ser utilizados</p><p>(PARENTI, 1970, p. 60).</p><p>O caso Rosenberg</p><p>Em 19 de junho de 1953, o casal Julius Rosenberg e Esther Ethel Greenglass</p><p>Rosenberg foi executado pelo crime de traição, após condenação sob a acusação</p><p>de transmitir segredos nucleares aos soviéticos. O processo judicial foi</p><p>controverso e produziu disputas pela memória que se estendem até o presente.</p><p>Enfatize-se que o casal sempre se pronunciou inocente (MUNHOZ, 2004a).</p><p>Embora não haja mais dúvidas sobre o engajamento político do casal com a</p><p>causa comunista, há no caso um acalorado debate sobre se Julius haveria</p><p>repassado segredos aos soviéticos ou se eles já possuíam aquelas informações.</p><p>Do mesmo modo, não há evidências conclusivas de que Ethel tenha cometido</p><p>algum crime. Também é plausível arguir a desproporcionalidade na aplicação da</p><p>pena capital mesmo que Julius e Ethel fossem culpados, principalmente a se</p><p>considerar que outros acusados com envolvimento comprovado no caso foram</p><p>punidos com penas muito mais brandas. Além disso, hoje é de conhecimento</p><p>público que o físico alemão Klaus Fuchs, participante ativo do projeto</p><p>Manhattan, já havia repassado aos soviéticos informações muito mais detalhadas</p><p>e precisas do que aquelas repassadas por David Greenglass a Julius Rosenberg.</p><p>Durante o julgamento, o irmão de Ethel, David Greenglass, foi a peça-chave da</p><p>acusação, mas, em 2001, ao final da vida, ele admitiu que o seu testemunho era</p><p>falso e que havia estabelecido um acordo com a acusação para proteger a sua</p><p>esposa Ruth Greenglass. Afirmou ainda não imaginar que Ethel fosse sentenciada</p><p>à morte, mas sublinhou que não se arrependia da sua atitude, pois, para ele, a sua</p><p>esposa era mais importante do que a sua irmã ou mãe, que ela era a mãe dos seus</p><p>filhos e, portanto, ele deveria protegê-la (ROBERTS, 2014; 2015).</p><p>O processo ocorreu em um dos períodos mais conflituosos da Guerra Fria,</p><p>no contexto da Guerra da Coreia e das exacerbações do macartismo.</p><p>Adicionalmente, como hoje é sabido, o processo foi maculado pela condenação</p><p>baseada em falso testemunho, por ausência de provas irrefutáveis, por</p><p>comportamentos impróprios do judiciário, pela condenação antecipada pela</p><p>mídia, pela manipulação da chamada opinião pública e por oportunismos</p><p>políticos desenfreados (ROBERTS, 2014; 2015). Na ocasião, nos EUA, fora do</p><p>tribunal, poucos levantaram-se para defender a inocência do casal Rosenberg.</p><p>Conforme aponta Meeropol, a esquerda fora marginalizada com a derrota do ex-</p><p>vice-presidente Henry Wallace nas eleições de 1948, com expurgo dos quadros</p><p>dos sindicatos de trabalhadores acusados de serem comunistas ou seguidores</p><p>daquele ideário, em decorrência do início da Guerra da Coreia, e pelo</p><p>indiciamento do Partido Comunista, com base no Smith Act. Naquele contexto,</p><p>os comunistas e os seus seguidores adotaram uma tática de defender a legalidade</p><p>do partido e procuraram distanciar-se dos acusados de espionagem</p><p>(MEEROPOL, 1994).</p><p>Em síntese, é bastante plausível aquiescer com a hipótese de que o</p><p>julgamento foi um ato político. O próprio presidente do tribunal, juiz Irving</p><p>Kaufman, inadvertidamente, evidenciou a parcialidade daquela corte quando,</p><p>durante o julgamento, pronunciou: “esse país está engajado em uma luta de vida</p><p>e morte com um sistema completamente diferente” (MEEROPOL, 1994, p.</p><p>XVII). É exatamente sobre isso que o conhecido historiador da New Left</p><p>estadunidense Howard Zinn se manifestou ao dizer: “Para mim, não importa se</p><p>eles eram culpados ou não, a coisa mais importante foi que eles não tiveram um</p><p>julgamento justo na atmosfera da histeria da Guerra Fria” (ROBERTS, 2008).</p><p>Conforme defende Michael Rosenberg (Michael Meeropol), isso implicava</p><p>que se determinada pessoa, de alguma forma, viesse a prover algum tipo de ajuda</p><p>ao outro campo, logo se tornava alvo do ódio e do medo por parte dos cidadãos</p><p>comuns. Ainda como afirma o filho mais velho dos Rosenbergs, àquela época, “a</p><p>maioria dos americanos [estadunidenses] aprovou a sentença de morte e, por fim,</p><p>a execução de meus pais, ainda que alguns tivessem dúvidas e muitos</p><p>considerassem a pena muito severa, mesmo sem duvidar da culpa ou da natureza</p><p>hedionda do crime” (MEEROPOL, 1994, p. XVII).</p><p>O processo no qual os Rosenberg foram enredados teve início quando o</p><p>físico alemão naturalizado britânico Klaus Fuchs, que trabalhou no projeto</p><p>Manhattan, em Los Alamos, foi preso na Inglaterra, em fevereiro de 1950. Na</p><p>ocasião, Fuchs denunciou o seu contato nos EUA, “Raymond” Harry Gold, que,</p><p>por sua vez, informou que o seu contato era um jovem maquinista e deu as</p><p>indicações que permitiram identificá-lo. O contato logo foi reconhecido como</p><p>David Greenglass (KOGEN, 2009). A princípio, Greenglass reconheceu que</p><p>havia transmitido certas informações aos soviéticos, mas não acusou Ethel</p><p>Rosenberg, sua irmã. Posteriormente, perante o tribunal, mudou a sua versão e</p><p>afirmou que a sua mulher (Ruth Greenglass) havia informado aos agentes do FBI</p><p>que Ethel havia datilografado as notas que, conforme a acusação, seriam enviadas</p><p>aos soviéticos (McFADDEN, 2014; ROBERTS, 2015). Greenglass foi</p><p>condenado a quinze anos de prisão, mas foi libertado com pouco menos de dez</p><p>anos de cumprimento da pena. Sua esposa Ruth Greenglass, que colaborou com</p><p>a justiça e delatou Ethel com a acusação inverídica, não foi processada, conforme</p><p>o acordo firmado entre a acusação e David Greenglass (ROBERTS, 2014; 2015).</p><p>O caso Rosenberg ainda hoje gera divergências. Ethel e Julius eram judeus.</p><p>Ethel, de fato, ingressou no Partido comunista em 1931. Havia uma influência</p><p>comunista marcada em setores da comunidade judaica nova-iorquina, em grande</p><p>medida resultado da postura antifascista dos comunistas. Somente após o</p><p>conhecimento do Pacto Germano-Soviético, assinado em agosto de 1939, houve</p><p>a erosão das bases comunistas judaicas nos EUA.</p><p>Sublinhe-se que Julius e Ethel Rosenberg eram militantes comunistas, o que</p><p>não era ilegal nos EUA, mas, ao mesmo tempo, ser comunista ou simpatizante</p><p>tornou-se um fio condutor para justificar a repressão naqueles anos sombrios.</p><p>Ainda durante a II Guerra Mundial, Julius, ao saber que o cunhado, David</p><p>Greenglass, estava a trabalhar no projeto Manhattan, em Los Alamos, o recrutou</p><p>para o partido. Desde o início do processo contra os Rosenbergs, Greenglass</p><p>acusou Julius, mas, a princípio, não incriminou a sua irmã. Há muitas questões</p><p>abertas sobre o julgamento do caso. Entre elas, é questionado se o que Julius</p><p>comunicou aos soviéticos era segredo nuclear ou se já era de conhecimento</p><p>deles. Há indicações robustas de que Klaus Fuchs já havia enviado informações</p><p>muito mais detalhadas à URSS. Não há provas de que Ethel tenha enviado</p><p>qualquer informação aos soviéticos ou de que estivesse envolvida no envio de</p><p>tais informações. Além disso, especialistas questionam a pena capital imputada a</p><p>Julius e, principalmente, a Ethel. No testemunho de Ruth Greenglass perante o</p><p>Grande Juri, ela confirmou que anotou em um papel as informações e que Julius</p><p>ficou com elas, mas no julgamento ela afirmou que Ethel datilografou as notas.</p><p>David confirmou as informações de Ruth e isso praticamente selou a sentença de</p><p>morte da sua irmã (ROBERTS, 2014; 2015). No primeiro depoimento privado,</p><p>efetuado perante o tribunal, David Greenglass não fez qualquer acusação à sua</p><p>irmã. O acesso a essa documentação somente tornou-se possível a partir da sua</p><p>desclassificação e liberação em 11 de setembro de 2008, resultado de uma</p><p>petição com base no Freedom of Information Action (FOIA), efetuada pela The</p><p>National Security Archive e outras organizações, dentre elas a American Historical</p><p>Association (THE NATIONAL SECURITY ARCHIVE, 2008).</p><p>Ainda merece nota o comentário de Khruschev sobre uma possível ajuda dos</p><p>Rosenberg no desenvolvimento da bomba soviética. No livro Khrushchev</p><p>Remembers: the Glasnost tapes (publicado no Brasil, em 1991, como As Fitas da</p><p>Glasnost – Memorias de Khruchtchev)34, o líder soviético reconhece que haveria</p><p>sido informado por Stálin da ajuda dos Rosenbergs para o desenvolvimento da</p><p>bomba soviética. Meeropol sublinha, no entanto, que a parte das fitas com</p><p>referências aos Rosenbergs não teve a comprovação de que a voz fosse</p><p>efetivamente do líder soviético. Segundo Meeropol há três problemas que levam</p><p>ao questionamento da fidedignidade da informação. Em primeiro lugar, não é</p><p>possível afirmar com certeza que a voz gravada na fita fosse mesmo a de</p><p>Khruschev. Segundo ele, o perito que havia comprovado a autenticidade da voz</p><p>nos dois volumes anteriores não conseguiu certificar que a voz registrada nesse</p><p>novo volume fosse mesmo verdadeira. Em segundo lugar, ele observa que se</p><p>trata de uma fita apresentada em 1989, gravada por volta de 1973, sobre</p><p>conversações que o líder soviético supostamente haveria tido em 1953.</p><p>Acrescenta que, naquele momento, todos os envolvidos estavam mortos e não</p><p>era mais possível confirmar a veracidade da informação. Por fim, ressalta que,</p><p>mesmo que isso houvesse ocorrido, poderia ser uma recordação imprecisa de</p><p>Khurschev sobre fatos muito antigos, e que, em decorrência, ele poderia haver</p><p>confundido com as informações provenientes de Fuchs, de Morris ou Lona</p><p>Cohen (MEEROPOL, 1994, p. XXVIII-XXX).</p><p>Após a condenação de Julius e Ethel Rosenberg em 29 de março de 1951 e a</p><p>promulgação da sentença com a determinação da aplicação da pena de morte em</p><p>5 de abril do mesmo ano, teve início um périplo com seguidos pedidos da defesa</p><p>para a comutação ou adiamento da pena. O juiz que presidiu o tribunal, Irving</p><p>Kaufman, era judeu assim como os condenados. A nomeação de um magistrado</p><p>judeu alimenta a hipótese da politização do processo, pois sugere a adoção de</p><p>uma estratégia por intermédio da qual a atribuição da presidência do tribunal a</p><p>um judeu tinha como intuito evitar previsíveis acusações de antissemitismo.</p><p>Destaque-se que o julgamento se deu em um momento em que a opinião pública</p><p>era bastante sensível ao tema, em decorrência do recente holocausto perpetrado</p><p>pelo regime de Hitler contra os judeus, durante a II Guerra Mundial. Conforme</p><p>nos mostra Júlio Cattai em um artigo sobre o papel da United States Information</p><p>Agency (USIA) na formação de uma opinião pública internacional a favor da</p><p>condenação dos Rosenberg, há evidências de que a CIA pensou em utilizar o</p><p>caso para manipular o casal no sentido de pedir aos judeus de todos os países</p><p>para que se afastassem do comunismo em troca do “esquecimento do caso”.</p><p>Cattai situa o processo contra os Rosenberg no contexto da chamada Guerra Fria</p><p>Cultural e da perseguição aos judeus promovida por Stálin na URSS e no Leste</p><p>da Europa. Adicionalmente o autor mostra como jornais brasileiros</p><p>acompanhavam o processo, regra geral, reproduzindo as notícias provenientes</p><p>da USIA, que defendiam a condenação como justa e a necessidade do</p><p>cumprimento da pena capital (CATTAI, 2019).</p><p>Ao longo do processo, o casal foi acompanhado pelo rabino Irving Koslowe,</p><p>que procurou interceder pelos condenados de diferentes formas e, por fim, os</p><p>acompanhou durante a execução da pena capital. Em uma última tentativa de</p><p>postergação, o rabino Koslowe pediu o adiamento da pena e justificou que ela</p><p>poderia violar o dia sagrado dos judeus, o que de fato aconteceu, uma vez que</p><p>Ethel demorou mais para morrer. O caso todo é emblemático e torna verossímil</p><p>a hipótese da intencionalidade política na execução do casal. Esse é um aspecto</p><p>que ainda merece investigação mais detalhada, pois, de outra forma, como</p><p>explicar todo o empenho para se consumar o fato. O Juiz Irving Kaufman ficou</p><p>em um plantão especial com o intuito de evitar qualquer postergação, mas, ao</p><p>mesmo tempo, manteve uma possibilidade aberta, caso Julius ou Ethel</p><p>resolvessem delatar seus possíveis cúmplices. O presidente Eisenhower negou o</p><p>pedido de clemência efetuado pela defesa e um dos advogados que procurou</p><p>contatá-lo teve impedido o acesso à Casa Branca. Houve mobilizações</p><p>internacionais e o próprio Papa intercedeu pela vida do casal judeu. Durante os</p><p>eventos, houve manifestações pela vida dos Rosenbergs em diferentes lugares do</p><p>mundo, mas elas quase não foram mostradas ou foram minimizadas pela mídia</p><p>estadunidense (MEEROPOL, 1994).</p><p>Os filhos do casal Rosenberg, em decorrência dos efeitos deletérios do</p><p>processo, foram adotados e tiveram nome alterado pelas autoridades</p><p>estadunidenses para Michael e Robert Meeropol. Robert, que tinha três anos</p><p>quando os Rosenberg foram presos e seis quando executados, tem viajado pelo</p><p>mundo e proferido conferências em defesa da memória dos seus pais. Robert</p><p>esteve no Brasil em 2012, quando proferiu uma conferência na Congregação</p><p>Judaica do Brasil, no Rio de Janeiro. De fato, Robert e seu irmão mais velho</p><p>Michael, recuperaram o sobrenome Rosenberg quando adultos. Robert é um</p><p>ativista pela paz e preside a Fundação Rosenberg, que cuida de crianças em</p><p>situação de risco, com pais desempregados ou em prisão. Ele afirma que a</p><p>atuação da fundação tem como objetivo evitar que pessoas passem pelos</p><p>sofrimentos que ele e seu irmão passaram (ATIVISTA..., 2012). Como se</p><p>depreende desses eventos contemporâneos, ainda há muito a esclarecer e, para</p><p>isso, é necessária a desclassificação de documentos relativos ao processo que</p><p>ainda continuam inacessíveis.</p><p>Guerra Fria e repressão</p><p>Na área de influência soviética, no Centro e no Leste da Europa, um</p><p>embrionário caminho em direção a um modelo de socialismo distinto do</p><p>praticado na URSS, que a duras penas estava em processo de edificação entre</p><p>1944 e 1946, foi logo totalmente submetido ao regime de Stálin, conforme a</p><p>Guerra Fria ganhava corpo e virulência. Naquela contextura histórica, a cogitada</p><p>pluralidade de ideias e organizações políticas e a edificação de vias específicas de</p><p>cada país rumo ao socialismo cederam terreno à vigorosa imposição de uma</p><p>ordem soviética. O conflito cada vez mais aberto foi utilizado para intensificar a</p><p>repressão tanto na URSS quanto na sua nova esfera de influência. Assim, no</p><p>Leste da Europa, entre 1946 e 1948, a reconstrução daquelas sociedades em</p><p>moldes pluripartidários e de economia mista de forma célere cedeu lugar a</p><p>regimes de partido único e de economias centralizadas e planificadas. Em</p><p>paralelo, houve a vertiginosa expansão de julgamentos questionáveis, que</p><p>culminaram no aprisionamento em massa e na execução de muitos dos “inimigos</p><p>do Estado” (SPRIANO, 1987; OPAT, 1987).</p><p>Ao longo das quatro décadas de sua duração, a Guerra Fria conformou o que</p><p>grosso modo é chamado de imaginário popular em quase todo o planeta. Havia,</p><p>porém, diferentes percepções de mundo a depender bloco em que estava</p><p>inserido o país em que vivia o receptor do discurso e de acordo com a concepção</p><p>ideológica a que o cidadão ou o agrupamento político estava vinculado.</p><p>Conforme já aventado em outras passagens, a Guerra Fria cumpriu um papel</p><p>nodal no controle das populações tanto no bloco soviético quanto no</p><p>estadunidense. Assim, tanto em um campo quanto no outro, muito foi investido</p><p>em publicidade para convencer o cidadão comum de que o modo de vida do seu</p><p>país era o melhor e de que o adversário representava uma ameaça à sociedade e à</p><p>própria humanidade. Naquele contexto dos anos mais duros da Guerra Fria, para</p><p>a maioria da população soviética, invariavelmente,</p><p>Nesse percurso, serão examinados os</p><p>diferentes debates relacionados às origens, ao desenvolvimento e ao desfecho</p><p>daquele conflito de dimensões mundiais.</p><p>O livro foi estruturado de forma a combinar a apresentação de reflexões</p><p>teóricas e, ao mesmo tempo, oferecer uma narrativa histórica que não despreze a</p><p>factualidade dos eventos que conformaram a emergência, o desenrolar e o</p><p>crepúsculo da Guerra Fria. Essa escolha objetiva atender tanto às expectativas</p><p>dos especialistas quanto aos anseios de leigos. Os primeiros, regra geral, mais</p><p>afeitos aos debates de cunho teórico e metodológico, os segundos mais</p><p>interessados em conhecer a história factual dos eventos e compreender um</p><p>pouco melhor o tema abordado.</p><p>Assim, na primeira parte do livro, serão examinados temas relacionados à</p><p>Segunda Guerra Mundial que influenciaram a emergência de conflitos entre os</p><p>aliados após vitória contra o inimigo comum. Esse percurso será iniciado pela</p><p>análise da Operação Barbarossa e das desavenças relacionadas à organização de</p><p>uma Segunda Frente de Batalha, solicitada de modo reiterado pela União</p><p>Soviética pouco após a sua invasão pela Alemanha e, consequentemente, após a</p><p>ruptura do Pacto Germano-Soviético. Na sequência, o livro tratará da morte do</p><p>presidente Franklin D. Roosevelt e abordará a condução da política externa dos</p><p>EUA por seu sucessor, Harry S. Truman, que governou os EUA entre 12 de abril</p><p>de 1945 e 20 de janeiro de 1953. Em continuidade, serão tratados os problemas</p><p>relacionados à Guerra do Pacífico, em especial, os debates pertinentes aos</p><p>bombardeios nucleares a Hiroshima e a Nagasaki e analisadas as dinâmicas</p><p>relacionadas à Batalha da Manchúria. Por fim, será submetido ao crivo o</p><p>planejamento da Operation Unthinkable a pedido de Churchill e os possíveis</p><p>impactos do vazamento de informações sobre o plano na percepção soviética do</p><p>cenário internacional ao final da guerra.</p><p>Na segunda parte, serão abordados diferentes aspectos que deram origem à</p><p>conformação daquele conflito global, em especial, a Doutrina da Contenção, a</p><p>formação dos blocos capitalista e soviético, a intensificação e a expansão dos</p><p>conflitos e a sua mundialização. Na terceira, serão ponderadas as tentativas de</p><p>acomodação e de busca de uma possível convivência pacífica por meio da</p><p>distensão das relações entre as potências globais; a emergência da chamada</p><p>“Segunda Guerra Fria”; e, por fim, serão tratados o colapso do sistema soviético e</p><p>o fim da Guerra Fria.</p><p>A análise desses eventos será permeada pelo diálogo com algumas das</p><p>principais correntes historiográficas voltadas ao estudo da matéria. Desde já,</p><p>assinalo o meu posicionamento no campo das críticas à produção historiográfica</p><p>ortodoxa e às neo-ortodoxias que a sucederam. Isso será efetuado por meio da</p><p>incorporação dos avanços propiciados ao estudo do tema por intelectuais</p><p>vinculados a diferentes correntes de pensamento. Dentre essas correntes,</p><p>merecem destaque o revisionismo, o chamado pós-revisionismo, o</p><p>corporatismo, e, em parte, o world system. Alerto ao leitor que as conclusões aqui</p><p>expressas são provisórias, limitadas, sujeitas a críticas e a revisões, uma vez que</p><p>assumo o legado metodológico de E. P. Thompson (1981, p. 49-50). Acrescento</p><p>que, apesar dos inúmeros avanços ocorridos nesse campo de estudos, ao final do</p><p>século XX e no início do século XXI, ainda há muito a ser feito, uma vez que</p><p>documentos continuam inacessíveis nos arquivos dos principais países</p><p>envolvidos nas disputas que deram origem à Guerra Fria. O exercício do ofício</p><p>do historiador, no entanto, pressupõe trabalhar com essas lacunas, dialogar com</p><p>as evidências disponíveis e submetê-las ao escrutínio com o rigor do método e,</p><p>desse modo, buscar uma maior aproximação com o real. Para a consecução dos</p><p>objetivos propostos, articularei, como fio condutor do debate, uma análise que</p><p>considere os elementos presentes em diferentes ocasiões das relações entre os</p><p>EUA, a Grã-Bretanha e a URSS durante a Segunda Guerra Mundial e no</p><p>contíguo pós-guerra. Ressalte-se a erosão da aliança, articulada por esses países</p><p>durante a guerra, provocada pela contínua eclosão de conflitos em um cenário</p><p>global marcado por intensas transformações.</p><p>Daniel Yergin (1990), em uma obra considerada clássica, assevera que, em</p><p>1945, o mundo havia sido remodelado pela morte, pela destruição e pela</p><p>convulsão social. A Alemanha e o Japão estavam vencidos e ocupados, e os</p><p>velhos impérios europeus encontravam-se à beira da desintegração. Para o autor,</p><p>o antigo sistema internacional baseado na balança de poder havia ruído, restando</p><p>apenas duas nações dominantes, os Estados Unidos e a União Soviética</p><p>(YERGIN 1990, p. 5).</p><p>Na Conferência de Potsdam, dos três líderes das principais potências que</p><p>compuseram a Grande Aliança e orquestraram a complexa sinfonia da</p><p>cooperação entre as Nações Unidas (termo empregado para fazer referência à</p><p>aliança criada durante a guerra com o propósito de enfrentar as forças do Eixo),</p><p>somente um continuava no comando do seu governo. Franklin D. Roosevelt,</p><p>então presidente dos EUA, havia falecido, a 12 de abril de 1945, em</p><p>consequência de uma hemorragia cerebral, e foi substituído pelo seu vice, Harry</p><p>S. Truman. Winston Churchill, após a derrota eleitoral ocorrida em paralelo à</p><p>Conferência, cedeu o posto ao novo primeiro ministro do Reino Unido, Clement</p><p>Attlee. Assim, dos líderes que conduziram as forças aliadas à vitória na guerra e</p><p>lançaram os alicerces de uma nova ordem mundial, baseada na cooperação entre</p><p>as Nações Unidas, somente Josef Stálin estava presente ao encerramento da</p><p>Conferência de Potsdam. Em síntese, em um contexto extremamente complexo e</p><p>delicado, dois neófitos viram-se na condução dos negócios dos seus respectivos</p><p>países. Leituras apaixonadas daqueles eventos em permanente ebulição, por</p><p>vezes ancoradas na visão de mundo dos seus protagonistas, costumam atribuir</p><p>ao “outro”, ao adversário, as responsabilidades pela emergência dos conflitos que</p><p>desembocaram na Guerra Fria.</p><p>A Aliança possuía uma finalidade imediata em comum, qual seja, derrotar as</p><p>forças do fascismo, mas cada uma das potências nela envolvida possuía objetivos</p><p>particulares de média e de longa duração. Entretanto, aqueles eram tempos</p><p>complexos e difíceis. A situação cambiava de forma célere e os policymakers eram</p><p>instados a tomar decisões no calor da hora e, regra geral, com informações</p><p>parciais e imprecisas dos acontecimentos. Agentes públicos portadores de uma</p><p>ótica doméstica, prisioneira de valores enraizados na política nacional de seus</p><p>países, regida por preconceitos em relação ao “outro”, filtravam boa parte dessas</p><p>informações. Sob o estresse do momento, cansados física e mentalmente,</p><p>irritados com as decisões dos outros atores, mediados por perspectivas que</p><p>distorciam a percepção dos fatos, diplomatas, funcionários graduados e líderes</p><p>das duas novas potências globais vislumbravam, muitas vezes, ações defensivas</p><p>do antigo aliado como atos agressivos do novo inimigo em (re)construção.</p><p>Ressalte-se, no arrazoado de ideias expresso neste texto, porém, que essas</p><p>mediações e a busca por compreender as condições nas quais certas decisões</p><p>foram tomadas não devem servir de escusas para ocultar interesses de Estado, de</p><p>grupos de press��o e das elites de cada uma das potências envolvidas nos conflitos</p><p>que deram origem à Guerra Fria.</p><p>A parceria ocorrida ao longo da guerra implicou breve interregno em antigas</p><p>rivalidades, que foram retomadas com maior virulência quando os motivos</p><p>indutores da sua penosa construção deixaram de existir. Hobsbawm assim avalia</p><p>aquele conturbado período:</p><p>A democracia só se salvou porque, para enfrentá-lo [o fascismo], houve uma aliança</p><p>bizarra entre capitalismo liberal e comunismo: basicamente a vitória sobre a</p><p>Alemanha de Hitler foi, como só poderia ser, uma vitória do Exército Vermelho [...] A</p><p>vitória da União Soviética sobre Hitler foi uma realização do regime lá instalado pela</p><p>Revolução de Outubro [...] sem isso, o mundo hoje (com exceção dos EUA)</p><p>provavelmente seria um conjunto de variações sobre temas autoritários e fascistas,</p><p>o conflito global era resultado</p><p>da ininterrupta ameaça e da chantagem imperialista proveniente dos EUA e dos</p><p>seus aliados.</p><p>Nessa visão de mundo, a União Soviética era a pátria do socialismo, um país</p><p>que pregava a solidariedade e defendia a paz universal. Desse ponto de vista,</p><p>contudo, a agressividade imperialista afetava a estabilidade de todo o mundo</p><p>soviético por intermédio da infiltração ideológica e da ameaça nuclear. No outro</p><p>campo, para o cidadão mediano estadunidense, a Guerra Fria representava o</p><p>perigo da agitação comunista enraizada e espalhada pelo país e pelo mundo, da</p><p>subversão da ordem, do risco da imposição da ditadura “totalitária” e da</p><p>iminente ameaça de um ataque nuclear soviético. Dessa perspectiva, os EUA</p><p>eram o país da oportunidade, da abundância, da liberdade e da tolerância, mas</p><p>tudo isso se encontrava em permanente ameaça em consequência da subversão</p><p>comunista patrocinada pela URSS e por seus aliados (MUNHOZ, 2004a).</p><p>As políticas públicas das duas superpotências emergentes e de seus aliados</p><p>eram, de modo predominante, conformadas pelos receios reais ou imaginários de</p><p>um novo conflito global. Naquele contexto conturbado, para a maioria dos</p><p>habitantes da Europa, o cenário, dos dois novos centros de poder global, apesar</p><p>de distinto, era nutrido pela paranoia da ameaça comunista ou imperialista. No</p><p>caso europeu, havia o estigma de um processo dirigido por governos</p><p>estrangeiros que mantinham forças militares colossais no continente. A Europa</p><p>foi armada por potências estrangeiras (em que pese o fato de que a URSS fosse,</p><p>em parte, europeia), uma vez que, no processo de reordenamento do mundo no</p><p>imediato pós-guerra, aquela região do globo era de fundamental importância,</p><p>tanto para os EUA quanto para a URSS.</p><p>Na evolução dos conflitos, cada campo, além das suas alianças globais,</p><p>procurou definir parcerias e tratados regionais. Em 1947, foi elaborado o</p><p>primeiro pacto de proteção regional no pós-guerra, o Tratado Interamericano de</p><p>Assistência Recíproca (Tiar). No ano seguinte, o Pacto de Bruxelas foi firmado</p><p>pela Bélgica, pela Holanda, pela França e pela Grã-Bretanha, tendo por objetivo a</p><p>assistência militar mútua. Em 1955, a Itália e a República Federal da Alemanha</p><p>aderiram à organização.</p><p>O Conselho para a Cooperação Econômica Mútua (Comecon) foi criado</p><p>pelos países da órbita soviética, em janeiro de 1949, com o objetivo de dar</p><p>suporte ao desenvolvimento econômico da esfera soviética. A Organização do</p><p>Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi criada em abril de 1949; o Pacto de</p><p>Varsóvia (o equivalente soviético à Otan), foi criado em maio de 1955. A</p><p>Organização do Tratado do Sudeste Asiático (Seato) foi criada em 8 de setembro</p><p>de 1954, tendo como principal justificativa instituir um sistema de defesa e</p><p>cooperação econômica que impedisse a expansão comunista no Sudeste Asiático</p><p>e nas áreas afins do Pacífico. Observe-se que a criação ocorre poucos meses após</p><p>a derrota francesa no Vietnã em maio de 1954 e o consequente aumento da</p><p>presença estadunidense na região.</p><p>O Pacto de Bagdá foi firmado por Grã-Bretanha, Irã, Iraque, Paquistão e</p><p>Turquia em 1955, objetivando conter a influência da URSS no Oriente Médio.</p><p>Com a Revolução Iraquiana de 1958, o país, que era a sede da instituição,</p><p>retirou-se do organismo em 1959. Os EUA não participavam formalmente da</p><p>organização, mas ela era importante em seu sistema estratégico para a região e</p><p>contava com o seu apoio. No início de 1950, ocorreram os primeiros passos na</p><p>direção da criação da Comunidade Econômica Europeia. No início de 1957,</p><p>foram assinados, em Roma, dois tratados que preparavam a formalização do</p><p>organismo pelos seus signatários, Itália, França, Alemanha Ocidental, Holanda,</p><p>Bélgica e Luxemburgo.</p><p>Enfatize-se que as estratégias adotadas pelas grandes potências, durante a</p><p>Guerra-Fria, influenciaram profundamente a vida do cidadão comum, nas mais</p><p>diversas regiões do planeta, mesmo que, cotidianamente, ele não se desse conta</p><p>de tal fato. Desse modo, a percepção que o cidadão comum possuía do conflito</p><p>era conformada pelos veículos de comunicação de massa, pelo cinema, pela</p><p>literatura, pela música, pelas histórias em quadrinhos e por outros meios que</p><p>definiam contornos ideologizados e estereotipados do confronto. Assim, nos</p><p>últimos anos, tem crescido sistematicamente o estudo sobre a influência dos</p><p>meios de comunicação na conformação de visões de mundo em diferentes</p><p>períodos da Guerra Fria. Dessa forma, fontes antes vistas como secundárias ou</p><p>outrora menosprezadas têm sido reconhecidas como de grande relevância para o</p><p>estudo dos efeitos gerados pela Guerra Fria ao longo do século XX.</p><p>8</p><p>IMPERIALISMO E ANTI-IMPERIALISMO, COMUNISMO E</p><p>ANTICOMUNISMO DURANTE A GUERRA FRIA35</p><p>A aliança constituída durante a II Guerra Mundial contra as forças do Eixo</p><p>havia promovido a união das chamadas democracias capitalistas com o</p><p>socialismo estalinista soviético. Os interesses antagônicos surgidos ao final</p><p>daquele conflito mundial, contudo, produziram novas tensões internacionais</p><p>que levaram a humanidade à beira de uma nova guerra mundial. Havia</p><p>expectativas díspares em relação à edificação da nova ordem internacional. No</p><p>campo soviético, a demora na abertura da segunda frente de batalha – solicitada</p><p>por Stálin, logo após a invasão da URSS pela Alemanha, em junho de 1941 –</p><p>alimentou a percepção de que a vitória sobre as forças do Eixo fora uma</p><p>conquista essencialmente soviética. Como sublinhado na primeira parte deste</p><p>livro, essa atitude fortaleceu a percepção de que os EUA e a Inglaterra haveriam</p><p>aguardado o desfecho do conflito entre a Alemanha e a URSS, com a esperança</p><p>de que os dois contendores chegassem ao esgotamento mútuo (LaFEBER, 1997).</p><p>Desse ponto de vista, acreditava-se que as forças anglo-americanas</p><p>intencionavam derrotar os dois inimigos (o socialismo soviético e o nazismo</p><p>alemão) de uma só vez, pois o vitorioso do conflito germano-soviético sairia tão</p><p>fragilizado da contenda que poderia ser facilmente sobrepujado. No campo</p><p>ocidental, havia desconfianças em relação à URSS associadas a questões que</p><p>remontavam ao caráter do regime soviético, instituído quando os bolcheviques</p><p>chegaram ao poder por meio da via revolucionária. Para os liberais ocidentais, a</p><p>pregação de uma revolução proletária internacional, a expropriação da</p><p>propriedade privada na Rússia Soviética e o não reconhecimento dos débitos</p><p>internacionais do império russo ainda eram feridas abertas e jamais cicatrizadas.</p><p>Além disso, a retirada da Rússia da I Guerra Mundial, em 1918, por intermédio</p><p>do Acordo de Brest-Litovsk, firmado com a Alemanha e, pouco mais de duas</p><p>décadas depois, o Pacto Germano-Soviético, assinado em agosto de 1939,</p><p>reforçaram o sentimento de traição e de que não se podia confiar nos soviéticos</p><p>(KENNAN, 1996).</p><p>Como já indicado anteriormente, defendo a perspectiva ancorada nas</p><p>interpretações revisionistas de que em decorrência da morte de Roosevelt e a</p><p>consequente posse de Truman, ocorrida em abril de 1945, houve a reorientação</p><p>da política externa estadunidense, principalmente no concernente ao</p><p>relacionamento com a URSS. Na União Soviética, a percepção dessa nova</p><p>postura dos EUA reforçou as suspeitas já existentes de que as democracias</p><p>ocidentais pretendiam eliminar a sua área de influência no Leste da Europa. Essas</p><p>desconfianças ganharam dimensão ainda maior quando Stálin soube, por</p><p>intermédio de um agente infiltrado no White Hall que Churchill havia solicitado</p><p>ao seu Gabinete de Guerra um plano para atacar as forças soviéticas na Europa.</p><p>Stálin soube ainda que o general Montgomery haveria recebido ordens para</p><p>estocar armamentos apreendidos para futuro uso, pois previa-se a necessidade</p><p>do emprego de unidades alemãs, então aprisionadas, para um possível ataque às</p><p>forças soviéticas (UNITED KINGDOM, 1945) Assim, é muito provável que,</p><p>com a intenção de consolidar o controle da região e impedir qualquer estratégia</p><p>dos aliados ocidentais para retirar-lhe o predomínio sobre Europa Oriental, a</p><p>URSS aumentou a repressão e restringiu o processo democrático em toda a sua</p><p>mais que de variações sobre temas parlamentares liberais. Uma das ironias deste</p><p>estranho século é que o resultado mais duradouro da Revolução de Outubro, cujo</p><p>objetivo era a derrubada global do capitalismo, foi salvar seu antagonista tanto na</p><p>guerra quanto na paz, fornecendo-lhe o incentivo – o medo – para reformar-se após a</p><p>Segunda Guerra Mundial e, ao estabelecer a popularidade do planejamento</p><p>econômico, oferecendo-lhe alguns procedimentos para sua reforma (HOBSBAWM,</p><p>1995, p. 17).</p><p>Segundo o autor britânico, “assim que não houve mais um fascismo para uni-</p><p>los, capitalismo e comunismo mais uma vez se preparam para enfrentar um ao</p><p>outro como inimigos mortais” (HOBSBAWM, 1995, p. 177). Sublinhe-se a</p><p>existência de oportunidades para que, apesar de todas as diferenças políticas,</p><p>ideológicas e de interesses de Estado entre os principais protagonistas, soluções</p><p>fossem compartilhadas e se vislumbrasse definir um denominador comum aceito</p><p>pelas partes envolvidas. Essas oportunidades, no entanto, dissiparam-se quando</p><p>um lado procurou impor o seu projeto político global ao outro.</p><p>No desenvolvimento deste trabalho, analisarei alguns dos aspectos da</p><p>condução da aliança de guerra encabeçada pelos EUA, pela URSS e pela Grã-</p><p>Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial, de modo a estabelecer uma</p><p>associação entre os problemas emergentes nessa parceria e a gênese da Guerra</p><p>Fria. De início, esclarece-se que, nas duas últimas décadas, a Guerra Fria e a</p><p>temática a ela associada tornaram-se o meu foco privilegiado de estudos. Sobre a</p><p>matéria já publiquei artigos e capítulos de livros, mas, por motivos diversos</p><p>relacionados à própria estrutura da carreira acadêmica, retardei a escrita deste</p><p>livro. Em um desses trabalhos pregressos, em especial, efetuei uma revisão</p><p>panorâmica da historiografia e situei os principais debates concernentes ao tema</p><p>(MUNHOZ, 2004a). O propósito daquele estudo, no entanto, era proporcionar</p><p>ao leitor informações gerais vinculadas às origens do conceito de Guerra Fria, à</p><p>evolução dos estudos relacionados ao tema e uma análise balanceada das</p><p>principais diferenças interpretativas sobre a temática. No presente, considero</p><p>fundamental ir ao cerne das controvérsias sobre as origens e o desenrolar da</p><p>Guerra Fria.</p><p>1</p><p>DIFERENTES PERSPECTIVAS SOBRE A GUERRA FRIA</p><p>De início, cumpre situar algumas questões relacionadas ao debate</p><p>historiográfico sobre a Guerra Fria1. Dentre as principais correntes</p><p>interpretativas sublinhem-se os marcos que seguem. Na perspectiva ortodoxa</p><p>estadunidense (ou tradicionalista) é enfatizada a responsabilidade da União</p><p>Soviética pela gênese da Guerra Fria, como decorrência do expansionismo e da</p><p>ameaça militar ao Ocidente. Não há, todavia, um consenso intrínseco a essa</p><p>escola de pensamento em relação ao modus operandi do Kremlin, de tal forma</p><p>que é possível perceber a existência de modelos teóricos contraditórios a explicar</p><p>a política externa soviética. Alguns analistas dessa corrente descortinam a União</p><p>Soviética a partir da perspectiva realista, que, desse ponto de vista, agia como</p><p>uma grande potência à busca da maximização da sua segurança e poder e,</p><p>portanto, procurava garantir os seus interesses de Estado. Outros enxergam a</p><p>ideologia como a principal força motriz do regime de Stálin, que, dessa forma,</p><p>buscaria agir como ator global com a finalidade de expandir a ideologia</p><p>marxista-leninista e os regimes comunistas, abolir os Estados-nação, estabelecer</p><p>sociedades sem classes e conquistar a preponderância global. Seja como for, a</p><p>partir de qualquer uma dessas linhagens da ortodoxia, a União Soviética é</p><p>mostrada como a responsável pela gênese da Guerra Fria e, de modo derivado, a</p><p>Doutrina da Contenção surge como uma resposta dos EUA a esse desafio</p><p>(BLUTH, 2001, p. 101-102). Em síntese, desse ponto de vista, ao final da</p><p>Segunda Guerra Mundial, um novo conflito de proporções globais emergiu</p><p>como decorrência de uma postura agressiva por parte da URSS. Ainda segundo</p><p>essa perspectiva, a União Soviética haveria desrespeitado os acordos firmados</p><p>durante a guerra e se aproveitado do seu predomínio militar na Europa Central e</p><p>Oriental para impor regimes tirânicos por ela tutelados àquela região do planeta</p><p>(SCHLESINGER, 1992). Em consequência do exposto, os EUA viram-se</p><p>forçados a defender os seus aliados, o que haveria aumentado as tensões e levado</p><p>à eclosão do novo conflito de dimensões globais. É importante observar que, na</p><p>segunda metade dos anos 1940 e ao longo da década seguinte, nos EUA imperou</p><p>o predomínio avassalador de uma história oficial da Guerra Fria, elaborada a</p><p>partir de intelectuais vinculados ao próprio Departamento de Estado ou a outras</p><p>instituições governamentais. George Frost Kennan, o pai da doutrina da</p><p>Contenção, seguramente foi o maior expoente dessa corrente de pensamento</p><p>(sobre o assunto, veja o capítulo 6).</p><p>O reverso da medalha da perspectiva ortodoxa estadunidense é a perspectiva</p><p>elaborada a partir da ótica do Kremlin, que produziu uma história oficial ou, em</p><p>outros termos, uma ortodoxia soviética. Dessa perspectiva, a Guerra Fria</p><p>resultou da agressividade imperialista dos EUA e dos seus aliados ocidentais,</p><p>que, ao final da Segunda Guerra Mundial, com os inimigos derrotados, passaram</p><p>a descumprir os acordos firmados em Teerã, em Ialta e em Potsdam e começaram</p><p>a agir com o propósito de subverter a ordem na esfera de influência soviética.</p><p>Segundo essa perspectiva, o objetivo de tais ações era instigar as populações</p><p>locais contra os governos alinhados à União Soviética, de forma a desestruturá-</p><p>los e a destituí-los e, uma vez alcançados esses objetivos, agir com vistas à</p><p>desestabilização da própria URSS. Ainda desse ponto de vista, como resultado</p><p>dessas ações agressivas, a União Soviética precisou defender a região e a si</p><p>própria, e isso teria levado à emergência do novo conflito global.</p><p>O Revisionismo constituiu-se em uma crítica desafiadora à explicação oficial</p><p>estadunidense sobre as origens da Guerra Fria implexa à própria ação da</p><p>diplomacia daquela superpotência. Embora essa corrente de pensamento tenha</p><p>se materializado como modelo crítico à interpretação oficial da política externa</p><p>dos EUA em meados da década de 1960, no contexto da escalada da Guerra da</p><p>Indochina, as suas matrizes assentam-se no livro seminal de William Appleman</p><p>Williams, The Tragedy of American Diplomacy, publicado em 1959. Essa corrente</p><p>minimiza as questões ideológicas, associa o posicionamento dos EUA às suas</p><p>políticas domésticas e enfatiza as ações soviéticas no campo da construção da sua</p><p>esfera de poder; por fim, responsabiliza os EUA pelo início da Guerra Fria, pois</p><p>entende que a União Soviética, naquele contexto histórico, buscava a cooperação</p><p>internacional e não representava ameaça à Europa ou ao mundo capitalista. Em</p><p>adição, defensores desse ponto de vista exploram o fato de a URSS estar</p><p>completamente devastada pela guerra e afirmam que, em consequência, o país</p><p>não poderia suportar um novo conflito global prolongado2. Isaac Deutscher</p><p>afirma que, ao final da Segunda Guerra Mundial, mais de 20 milhões de</p><p>soviéticos haviam perecido nos conflitos e outro montante da mesma magnitude</p><p>era composto por mutilados de guerra (DEUTSCHER in HOROWITZ, 1969, p.</p><p>15-16).</p><p>Ao final do século XX e no início do século XXI, no entanto, as estimativas</p><p>mais aceitas sobre o número de soviéticos mortos apontam para cerca de 27</p><p>milhões (ZUBOK; PLESHAKOV, 1996, p. 6). O debate sobre a estatística</p><p>populacional soviética no período da Segunda Guerra Mundial e anos seguintes</p><p>é motivo de grandes controvérsias ainda hoje. Nos anos que se seguiram ao</p><p>conflito, diferentes autores apontavam para perdas soviéticas de menor monta,</p><p>embora muito significativas e, mesmo assim, as mais altas da Segunda Guerra</p><p>Mundial. Veja-se, por exemplo, a análise de Eugene M. Kulischer, que, após</p><p>confrontar diferentes dados populacionais soviéticos do período, calculou entre</p><p>10 e 14 milhões de mortes causadas pela guerra entre 1939 e 1945</p><p>(KULISCHER, 1949).</p><p>Deutscher assevera que na URSS, após o conflito mundial, havia uma</p><p>descomunal falta de homens jovens, de modo que só era possível ver homens</p><p>velhos e mutilados, mulheres e crianças a lavrar os campos. O autor acrescenta</p><p>que no censo de 1959, portanto 14 anos após o término do conflito mundial,</p><p>havia, na URSS, 31 milhões de homens com mais de 32 anos perante 52 milhões</p><p>de mulheres. O autor questiona os efeitos desse desequilíbrio sexual nos mais</p><p>diferentes aspectos da vida familiar e social do país. Por fim, indica que, como</p><p>consagrado na história do período, dois colossos emergiram e defrontaram-se ao</p><p>final da Segunda Guerra Mundial, mas, segundo o autor, enquanto um se</p><p>encontrava em pleno vigor (EUA), o outro (URSS) estava prostrado, a sangrar de</p><p>forma copiosa. Apesar disso, para Deutscher, a imagem do maligno colosso russo</p><p>prestes a conquistar e a controlar o mundo povoou o pensamento dos povos do</p><p>Ocidente. Deutscher conclui que qualquer demógrafo saberia que seriam</p><p>necessários ao menos de 15 a 20 anos para que a URSS pudesse preencher as</p><p>lacunas do seu potencial humano. Embora o autor não o diga de modo explícito,</p><p>depreende-se do seu texto que esse seria o tempo mínimo necessário para que a</p><p>União Soviética pudesse se reestruturar e vir a representar alguma ameaça ao</p><p>mundo capitalista (DEUTSCHER, 1991, p 121-123; 1969, p. 15-16)3.</p><p>Os historiadores revisionistas acrescentam que a cooperação internacional</p><p>era vital à estratégia soviética para assegurar o apoio financeiro dos EUA à</p><p>reconstrução da infraestrutura do país, destroçada pela guerra. Salientam que,</p><p>com a morte de Roosevelt, muitos dos compromissos subscritos em Ialta</p><p>passaram a ser recriminados pelo grupo de estrategistas associados à chamada</p><p>linha dura do Departamento de Estado, que ganhou proeminência logo após a</p><p>posse de Truman. A nova linha impressa à política externa dos EUA haveria</p><p>ameaçado interesses que Stálin considerava basilares à segurança da União</p><p>Soviética. Em resposta, Stálin apressou a consolidação do predomínio soviético e</p><p>a edificação do seu escudo protetor na Europa Oriental (ação previsível mesmo</p><p>se pensarmos em termos de uma potência convencional que se percebe</p><p>ameaçada). Essas ações foram interpretadas nos EUA como movimentos</p><p>agressivos e expansionistas da adversária e suscitaram respostas logo</p><p>decodificadas na União Soviética como a confirmação de que os seus receios de</p><p>uma agressão imperialista estavam corretos. Saliente-se que Stálin havia sido</p><p>informado por um espião infiltrado no Gabinete de Guerra de Churchill de que,</p><p>imediatamente após a rendição alemã, o primeiro ministro britânico haveria</p><p>solicitado um plano para analisar a possibilidade de promover um ataque às</p><p>forças soviéticas na Polônia (o assunto será tratado mais detalhadamente no</p><p>capítulo 5). Tudo isso produziu uma escalada nas tensões que desembocaram no</p><p>novo conflito global.</p><p>Yergin entende que, ao final da Segunda Guerra Mundial, havia entre os</p><p>policymakers estadunidenses dois modelos de interpretação da política externa da</p><p>URSS que competiam pela hegemonia. O primeiro modelo interpretava a URSS</p><p>como um Estado revolucionário global que impedia a possibilidade de</p><p>coexistência com o restante do mundo, pois era movido por uma implacável</p><p>guerra ideológica, com o objetivo de dominação mundial. Essa perspectiva</p><p>analítica é nominada por Yergin como Axiomas de Riga4. O segundo modelo</p><p>relativizava a influência da ideologia e do regime autoritário soviético na sua</p><p>política externa. Desse ponto de vista, a União Soviética era vista como uma</p><p>grande potência que atuava de forma tradicional na defesa dos seus interesses e</p><p>pautava a sua ação no interior do sistema internacional e não com a intenção de</p><p>destruí-lo. Yergin qualifica esse modelo como os Axiomas de Ialta5. Para Yergin,</p><p>os Axiomas de Riga triunfaram nos EUA nos anos que se sucederam ao final da</p><p>Segunda Guerra Mundial e formaram o consenso anticomunista. Para o autor,</p><p>os axiomas de Riga contribuíram para delinear a Guerra Fria e os de Ialta</p><p>conformaram a Détente (YERGIN, 1990, p. 11).</p><p>Christoph Bluth, de perspectiva neo-ortodoxa, entende que os historiadores</p><p>revisionistas estão corretos quando afirmam que Stálin buscava a cooperação</p><p>com o Ocidente após a Segunda Guerra Mundial. Segundo o autor, no entanto,</p><p>Stálin fazia isso a pensar em termos de uma estratégia que demandava tempo</p><p>para a reconstrução da União Soviética. Desse modo, a sua perspectiva sobre o</p><p>futuro da Europa era irreconciliável com aquelas do Ocidente e, por ela, o líder</p><p>soviético previa um conflito entre esses dois mundos em um futuro próximo.</p><p>Bluth entende que os revisionistas estão errados quando denunciam a</p><p>diplomacia ou os objetivos econômicos globais dos EUA como responsáveis pela</p><p>emergência da Guerra Fria (BLUTH, 2001, p. 106-110). Esse autor aponta</p><p>questões centrais na apreciação do problema, contudo a sua tese implica aceitar</p><p>que as medidas de defesa adotadas pela URSS para fazer frente ao que eles</p><p>entendiam constituir uma ameaça à segurança e aos interesses do Estado</p><p>desmentissem as intenções de cooperação soviética. O problema nesse exercício</p><p>analítico é que ele sugere a renúncia dos interesses de Estado, o que é</p><p>incompatível com o papel desse ator no cenário internacional. Além disso, caso</p><p>aplicado o mesmo juízo do autor aos objetivos de médio e de longo prazo dos</p><p>EUA, pode-se concluir que os soviéticos estavam corretos em sua postura, pois a</p><p>potência americana intencionava expandir a sua influência de forma global, ao</p><p>mesmo tempo em que pretendia impedir o acesso da URSS a recursos</p><p>fundamentais ao seu desenvolvimento.</p><p>A aceitação dessa perspectiva defendida por Bluth e por outros neo-</p><p>ortodoxos implica o reconhecimento dos EUA como uma potência global que</p><p>pode agir a milhares de quilômetros das suas fronteiras, enquanto a URSS tende</p><p>a ser considerada como uma potência agressiva ao fazê-lo em suas próprias</p><p>adjacências. Por trás desse painel analítico, há uma percepção determinante,</p><p>resultado do difuso processo de deliberada construção das imagens dos EUA e</p><p>da URSS ao longo muitas décadas de história. Nela, deu-se a naturalização das</p><p>ações (militares ou de outro cunho) dos EUA nas mais diferentes áreas do planeta</p><p>como parte da defesa de valores apresentados como universais e únicos para a</p><p>expansão da democracia. Já a União Soviética foi sempre apresentada como</p><p>agressiva e defensora de modelos opressivos de sociedade incompatíveis com os</p><p>valores enraizados no Ocidente.</p><p>Enfatize-se que o regime soviético, principalmente sob Stálin, havia</p><p>esmagado qualquer forma de oposição, reprimido a organização popular,</p><p>efetuado aprisionamentos, deslocamentos e execuções em massa. Desse modo,</p><p>Stálin e os seus seguidores haviam destruído valores fundamentais à noção de</p><p>democracia, fosse ela liberal capitalista, fosse anarquista ou fosse socialista.</p><p>Reconhece-se, no entanto, que esse regime tornou a União Soviética uma</p><p>potência econômica, política e militar, elevou os padrões de vida para parte</p><p>significativa da população e, principalmente, ressalte-se que as evidências</p><p>históricas mostram o Exército Vermelho como o grande destruidor das forças do</p><p>Eixo (GLANTZ, 2001). Por fim, como aponta Roberts (2012) naquele momento</p><p>histórico, a URSS buscava a aproximação e a cooperação com as nações</p><p>ocidentais capitalistas democráticas.</p><p>Para Paulo Visentini, ao final da Segunda Guerra Mundial, a URSS agia</p><p>como uma potência convencional e pressionava os movimentos comunistas em</p><p>diferentes partes do mundo à moderação e à participação em governos de</p><p>coalizão, ajudando na reconstrução do capitalismo. Tal medida foi considerada</p><p>por muitos líderes comunistas como traição, mas Stálin seguia essa via, pois,</p><p>apesar de o Exército Vermelho ser uma força militar colossal, a marinha e a força</p><p>aérea soviéticas eram frágeis, e o país precisava evitar confrontos, ser</p><p>reconhecido como potência de fato e garantir a política definida nos acordos de</p><p>Moscou, Teerã e Ialta (VIZENTINI, 2004, p. 66). João Fábio Bertonha afirma</p><p>que, ao longo da Segunda Guerra Mundial, as alianças foram conformadas de tal</p><p>modo que mesclavam interesses</p><p>de uma Realpolitik com as concepções</p><p>ideológicas que davam sustentação aos governos das principais potências</p><p>envolvidas no conflito. Essa discussão remete às diferentes percepções de</p><p>realistas e de idealistas. Os primeiros tendem a enfatizar as ações com vistas a</p><p>garantir os interesses do Estado e os segundos a dar mais atenção ao campo</p><p>ideológico (BERTONHA, 2016).</p><p>De fato, tanto os EUA quanto a União Soviética (e o seu antecessor, o</p><p>Império Russo) possuíam noções de segurança muito amplas, de dimensões</p><p>continentais. Segundo Melvin Leffler, ao final Segunda Guerra Mundial, os EUA</p><p>possuíam uma clara supremacia econômica em relação aos seus aliados e</p><p>possíveis competidores. O Produto Interno Bruto dos EUA era três vezes maior</p><p>do que o da URSS e cinco vezes o da Grã-Bretanha. Além disso, a União</p><p>Soviética, embora houvesse saído da guerra fortalecida, estava com a sua</p><p>infraestrutura industrial, urbana e com importantes áreas de mineração e</p><p>agricultura completamente arrasadas. Ao mesmo tempo, a marinha dos EUA</p><p>dominava os mares, suas forças armadas possuíam capacidade de projeção de</p><p>poder por meio do controle dos oceanos e, naquele preciso momento histórico,</p><p>os EUA detinham o monopólio da bomba atômica. Enfim, afiança o autor, os</p><p>EUA eram o poder preponderante (LEFFLER, 1992, p. XX).</p><p>Para os policymakers do Departamento de Estado, a segurança nacional dos</p><p>EUA era pensada em termos de correlação de poder. Por sua vez, o poder era</p><p>definido pelo controle de recursos, de infraestrutura industrial e de bases</p><p>externas. Desse ponto de vista, a segurança do país residia na superioridade</p><p>econômica e tecnológica sobre qualquer potencial adversário. Considerando a</p><p>proeminência dos EUA ao final da guerra, as suas elites planejaram remodelar o</p><p>mundo à sua imagem e delinearam a criação do “século americano”. A ideia</p><p>fundava-se na virtual promoção da paz mundial, da estabilidade internacional e</p><p>em assegurar os interesses dos EUA de forma global. Assim, o raciocínio dos</p><p>governantes em Washington era efetuado em termos de perpetuar o poder e</p><p>aumentar a prosperidade da maior potência mundial (LEFFLER, 1992, p. 3-4).</p><p>A amplitude dessa noção de segurança possuía uma dimensão que podia ser</p><p>considerada ameaçada por eventos ou transformações ocorridas em qualquer</p><p>região do planeta. Destarte, solidificou-se uma perspectiva em que problemas de</p><p>alcance meramente regional, em qualquer área do globo, pudessem ser</p><p>considerados como ameaça à segurança nacional dos EUA. Leffler considera a</p><p>noção de segurança dos EUA tão ampla que ela passa a ser percebida como</p><p>ameaça à segurança de outros povos, uma vez que eventos ocorridos em regiões</p><p>remotas do planeta são compreendidos como ameaças aos interesses do país e,</p><p>portanto, como questão de segurança nacional (LEFFLER, 1992, p. 1-24).</p><p>Leffler, ao fazer referência ao tema da segurança nacional dos EUA e ao</p><p>relacioná-lo com a sua percepção pelo regime de Stálin, afirma</p><p>[...] a própria concepção estadunidense de segurança nacional tendeu, talvez não-</p><p>intencionalmente, a gerar ansiedades e a provocar contramedidas de um governo</p><p>orgulhoso, suspeito, inseguro e cruel que era ao mesmo tempo legitimamente</p><p>apreensivo sobre as implicações provenientes a longo prazo da reabilitação de</p><p>tradicionais inimigos e do desenvolvimento de bases estrangeiras na periferia do seu</p><p>território (LEFFLER, 1994, p. 39, tradução do autor)</p><p>Leffler acredita que os oficiais de Washington entendiam que a União</p><p>Soviética poderia se tornar uma formidável competidora dos EUA caso</p><p>conseguisse capturar ou cooptar a infraestrutura, os recursos naturais e o</p><p>trabalho qualificado dos países desenvolvidos. Desse ponto de vista, os</p><p>elaboradores da política externa estadunidense, de fato, não esperavam uma</p><p>agressão soviética, mas temiam que a URSS pudesse empregar o</p><p>desenvolvimento alcançado para fortalecer a sua vantagem em termos de longo</p><p>prazo (LEFFLER, 1992, p. 6). Leffler entende que os policymakers de</p><p>Washington tinham como objetivo impedir que a União Soviética pudesse</p><p>acessar os vastos recursos de produtos in natura, tecnologia e trabalho</p><p>capacitado da Eurásia (LEFFLER, 1992, p. 11-12). A princípio, os estrategistas</p><p>de Washington não tinham a certeza se os comunistas que estavam a desafiar o</p><p>poder estabelecido em diferentes áreas do planeta eram instigados por Moscou,</p><p>mas acreditavam que, onde quer que eles chegassem ao poder, e por quaisquer</p><p>meios, seguiriam direta ou indiretamente as políticas que atendessem aos</p><p>interesses da URSS (LEFFLER, 1992, p. 7).</p><p>Christoph Bluth defende a tese de que, embora a União Soviética buscasse a</p><p>cooperação com os EUA e com os outros aliados ocidentais, os seus objetivos,</p><p>como a criação da sua esfera de influência na Europa, eram inaceitáveis e feriam</p><p>os valores e os interesses do Ocidente. De forma complementar, o autor entende</p><p>que o conflito entre o campo socialista e o capitalista havia sido apenas</p><p>retardado, mas não superado. Dessa perspectiva, no contexto de meados da</p><p>década de 1940, a União Soviética procurou consolidar o seu poder sobre a</p><p>Europa Oriental e estimular revoluções no Mundo em Desenvolvimento.</p><p>O autor acrescenta que “[...] a Guerra Fria perdurou mesmo após a morte de</p><p>Stálin, porque a existência do Estado e a legitimidade do poder foram</p><p>construídas ao redor da alteridade do campo socialista e do conflito com o</p><p>Ocidente” (BLUTH, 2001, p. 107, tradução do autor).</p><p>Bluth não está completamente errado em sua assertiva, no entanto ela é</p><p>limitada, uma vez que o inimigo representou um papel muito importante tanto</p><p>em um campo quanto no outro, de forma a servir à consolidação dos projetos</p><p>das elites locais e a justificar a repressão aos dissidentes e até mesmo a violação</p><p>da lei (CHOMSKY, 1993, p. 11-12; MUNHOZ, 2004, p. 270-271). Além disso,</p><p>não há evidências verossímeis de que, entre 1944 e 1946, Stálin houvesse</p><p>estimulado revoluções em qualquer área definida como de influência anglo-</p><p>americana. Para David S. Painter, até meados de 1947, os soviéticos executaram</p><p>uma política relativamente cautelosa na Europa, com variações de país para país,</p><p>conforme o contexto local. O autor afirma que, em contraste com a imposição de</p><p>governos subservientes na Polônia, na Romênia, na Bulgária e na zona soviética</p><p>da Alemanha, foram permitidas eleições relativamente livres na Hungria e na</p><p>Tchecoslováquia em 1945. Painter ressalta que a União Soviética contribuiu para</p><p>a criação de governos representativos na Áustria e na Finlândia. Ele acrescenta</p><p>que a União Soviética desencorajou os partidos comunistas da França, da Itália,</p><p>da Grécia e da Espanha a adotarem posturas revolucionárias e recomendou aos</p><p>comunistas iugoslavos a limitação das suas demandas territoriais e a suspensão</p><p>do apoio às guerrilhas comunistas gregas (PAINTER, 1999, p. 22).</p><p>De fato, as evidências da moderação da postura soviética entre 1944 e 1946</p><p>são bastante amplas. Na sua própria área de influência, Stálin não se empenhou</p><p>em promover o processo de sovietização. É possível indagar se a estratégia das</p><p>Frentes Populares6 ocultava, por trás da fachada de uma democracia parlamentar</p><p>multipartidária e de economia mista, um projeto futuro de sovietização ou se, de</p><p>fato, Stálin acreditava na perspectiva de construção de uma via pacífica para o</p><p>socialismo, com respeito às especificidades nacionais (PECHATNOV, 2010, p.</p><p>94). De forma adicional, sublinhem-se as recomendações de Stálin para que os</p><p>comunistas iugoslavos negociassem com o grupo liberal liderado por Ivan</p><p>Šubašić, com vistas a compor um governo de coalizão nacional (OPAT, 1987, p.</p><p>225-227), e a insistência para que, na China, Mao Zedong negociasse com o</p><p>Guomindang (Partido Nacionalista)7.</p><p>Não obstante, por exemplo, em relação à China, havia robusta resistência por</p><p>parte dos comunistas locais, como resultado dos eventos ocorridos em 1927,</p><p>quando o líder nacionalista Jiang Jieshi (Chiang Kai-Shek) ordenou o</p><p>aprisionamento e a execução sumária dos principais líderes comunistas com</p><p>quem havia estabelecido uma aliança. Essa questão é bastante intricada, e a forma</p><p>como</p><p>esses partidos estruturavam-se e associavam-se não era menos complexa.</p><p>Mais do que uma simples aliança, o Partido Comunista Chinês era parte</p><p>integrante do Guomindang. Além disso, o Guomindang fora aceito como</p><p>partido simpatizante na Internacional Comunista, e Jiang Jieshi havia sido</p><p>nomeado como membro de honra do presidium de seu Comitê Executivo</p><p>(CLAUDÍN, 1985, p. 328).</p><p>Ao debruçar-se sobre os planos de reconfiguração do mundo no crepúsculo</p><p>do conflito global, o historiador daqueles eventos, certamente, confrontar-se-á</p><p>com as recomendações de Stálin para Palmiro Togliatti, principal líder</p><p>comunista italiano. Togliatti, que se encontrava em Moscou durante a guerra,</p><p>retornou ao seu país com a difícil incumbência de convencer os comunistas</p><p>locais a deporem as armas e a devolverem aos seus proprietários as terras e as</p><p>fábricas, então respectivamente sob controle camponês e operário. As</p><p>recomendações de Stálin foram seguidas à risca e, na prática, selaram o fim do</p><p>processo revolucionário em curso no Norte da Itália. Na sequência, muitas</p><p>lideranças operárias e camponesas foram perseguidas e assassinadas por milícias</p><p>armadas pelas elites locais com a complacência governamental.</p><p>Para Viola</p><p>[...] devido aos Acordos de Yalta, executados fielmente sob a direção de Togliatti, a</p><p>Itália ficava sob Influência anglo-norte-americana, e o mais que os revolucionários</p><p>podiam esperar, era a instauração de uma “democracia ampla”, mas burguesa em</p><p>definitivo.</p><p>Assim o aparato estatal burguês foi reconstruído, as empresas devolvidas a seus donos,</p><p>as terras aos latifundiários e os guerrilheiros foram desarmados com o eficaz apoio do</p><p>PCI. (VIOLA, 1986, p. 576).</p><p>A postura soviética também foi bastante comedida na Grécia, onde os</p><p>comunistas eram a maior força individual em uma aliança bastante ampla que</p><p>fazia frente a um governo considerado espúrio e repleto de membros que haviam</p><p>colaborado com as potências do Eixo. Os comunistas locais e rebeldes de outros</p><p>matizes políticos, no entanto, mantiveram a agitação revolucionária e foram</p><p>massacrados por bombardeios britânicos que destruíram completamente áreas</p><p>civis sob o silêncio de Stálin (VIZENTINI, 2004, p. 66). Gitlin ressalta que houve</p><p>tentativas de negociações na busca da articulação de uma unidade nacional,</p><p>sempre recusadas pelo governo reacionário apoiado pela Inglaterra.</p><p>Posteriormente, Stálin foi inclusive acusado por comunistas de haver</p><p>abandonado a causa da revolução para defender os acordos firmados com os</p><p>EUA e o Reino Unido. O autor afirma que, no momento em que havia grande</p><p>possibilidade de revolução nas áreas coloniais, Stálin agiu no sentido e barrá-las,</p><p>para evitar problemas com os aliados (GITLIN, 1969, p. 195-197). Outro autor</p><p>que aponta nessa direção é Fernando Claudín. Em síntese, diferentes autores de</p><p>perspectiva revisionista ou que a ela se aproximam defendem a tese de que ao</p><p>final da II Guerra Mundial, Stálin havia buscado um diálogo com os EUA e com</p><p>a Grã-Bretanha de modo a colocar em plano secundário promissores</p><p>movimentos revolucionários. Para Claudín, Stálin haveria abandonado a causa</p><p>da revolução com o objetivo de garantir o status quo e os interesses do regime</p><p>que ele havia imposto à União Soviética (CLAUDÍN, 1985, p. 263).</p><p>Na senda aberta pelos diálogos acadêmicos estabelecidos com vistas à melhor</p><p>compreensão das origens da Guerra Fria, são cogentes algumas linhas sobre a</p><p>chamada corrente pós-revisionista, encabeçada por John Lewis Gaddis. A</p><p>corrente surgiu ao final da Guerra Fria e, como Gaddis mesmo afirmava, era</p><p>necessário buscar um consenso, uma síntese pós-revisionista que superasse as</p><p>limitações tanto da perspectiva ortodoxa quanto da revisionista. Gaddis no</p><p>entanto, não faz o que promete, pois apenas reforça as teses ortodoxas. Mesmo</p><p>em seu terceiro livro daquela fase, intitulado We now know, a promessa de que,</p><p>com o acesso aos novos documentos disponibilizados em arquivos do antigo</p><p>mundo soviético e outros desclassificados nos EUA, seria possível buscar um</p><p>consenso, nem de longe é perseguida. De fato, Gaddis era um ortodoxo, talvez</p><p>um pouco envergonhado, quando publicou os seus primeiros trabalhos sobre o</p><p>tema, no contexto dos anos finais da Guerra da Indochina. Naquele cenário, a</p><p>perspectiva ortodoxa encontrava-se sob frontal ataque, mas as teses de Gaddis</p><p>não se distanciavam muito dela. Passada a agitação social experimentada pelos</p><p>EUA, naqueles anos turbulentos em que o poderio da maior potência global</p><p>parecia se precipitar tanto em casa quanto em diferentes áreas do planeta, as suas</p><p>elites saíram da defensiva e retomaram, de diferentes formas, a reconstrução de</p><p>um discurso convincente sobre a excepcionalidade e a particularidade da</p><p>democracia edificada pelos pais fundadores. E, nesse quesito, Gaddis estava a</p><p>postos para cumprir o seu papel.</p><p>O pós-revisionismo foca a sua análise no contexto internacional, nas</p><p>políticas elaboradas pelas elites dirigentes, no estudo das mudanças no equilíbrio</p><p>de poder, e nas questões relacionadas à segurança doméstica. Do meu ponto de</p><p>vista, porém, as chamadas análises pós-revisionistas padecem de um pecado</p><p>capital. Não possuem uma tese que não esteja ancorada nas premissas ortodoxas</p><p>e, mais do que isso, edulcoram e alavancam essas teses produzidas nos anos mais</p><p>duros da Guerra Fria. Outro problema que me parece central nas teses de Gaddis</p><p>é a adoção do conceito de “imperialismo por convite”, compartilhado por ele e</p><p>por Geir Lundestad. Esse autor afirma que os EUA não são uma nação</p><p>imperialista e, mesmo quando sob determinadas condições adotaram posturas</p><p>compatíveis com essa classificação, o fizeram à revelia da sua própria vontade,</p><p>regra geral, a convite de aliados que lhes pediam proteção frente às ameaças</p><p>soviéticas (LUNDESTAD, 1986, p. 263-277; 1999, p. 52-91; GADDIS, 1997, p.</p><p>285-286).</p><p>Em primeiro lugar, a literatura é bastante farta sobre a postura imperial e a</p><p>ação imperialista dos EUA a partir da última década do século XIX, ao longo do</p><p>século XX e nesse início do século XXI (não me alongarei nesse ponto, pois esse</p><p>não é o foco do debate). Em segundo, a adoção da tese do imperialismo por</p><p>convite também serve muito bem para justificar todas aquelas ações, também</p><p>imperiais, adotadas pela União Soviética na sua esfera de influência. Em adição, o</p><p>conceito traz outros problemas, pois muitas vezes os EUA agiram contra</p><p>governos democraticamente eleitos, por meio de ações secretas. Nessas ocasiões,</p><p>desestabilizaram governos, insuflaram oposições e articularam golpes, como, por</p><p>exemplo, no Irã, em 1953; na Guatemala, em 1954; no Brasil, em 1964; no</p><p>Chile, em 1973, apenas para ficar em alguns poucos exemplos. Desse modo, a</p><p>tese do imperialismo por convite é frágil, não resiste ao escrutínio minucioso e,</p><p>portanto, deve ser refutada.</p><p>Para Bruce Cumings, Gaddis nunca foi pós-revisionista, mas um anti-</p><p>revisionista (CUMINGS, 1995, p. 44.). Do meu ponto de vista, uma leitura</p><p>arguta dos trabalhos de Gaddis demonstra que, sob o estratagema de uma</p><p>pseudoneutralidade, o autor procurava negar as teses revisionistas e modernizar</p><p>os pressupostos nodais das teses ortodoxas, tornando-as mais palatáveis. Assim,</p><p>no limite, Gaddis poderia ser considerado no máximo um neo-ortodoxo.</p><p>De outro ponto de vista, a historiografia de orientação corporatista delineia o</p><p>sistema capitalista estadunidense como ancorado no relacionamento entre</p><p>grupos funcionais organizados, institucionalmente reconhecidos como</p><p>instrumento de representação dos diferentes setores da sociedade, como os</p><p>trabalhadores urbanos, o empresariado e os agricultores. Esse sistema, urdido de</p><p>forma difusa durante o século XX, é baseado na regulação institucional e no</p><p>desenvolvimento de mecanismos de controle de forma a possibilitar a integração</p><p>dos diferentes ramos de atividade em um único organismo. Os historiadores</p><p>corporatistas entendem que a funcionalidade desse sistema está associada à</p><p>colaboração das elites tanto do setor público quanto do privado com o desígnio</p><p>de tornar o conjunto harmônico.</p><p>Segundo essa perspectiva, como resultado dessa empreitada</p>

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